O impacto da nutrição nos doentes oncológicos - Biblioteca

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O impacto da nutrição nos doentes oncológicos - Biblioteca
Nº1 - Ano 2006 - 4€
Setembro/Outubro
Revista bimestral de ciência e investigação em saúde
O impacto da nutrição nos
doentes oncológicos
Porque é que as emoções
controlam a dor?
Malformações no desenvolvimento
embrionário da coluna vertebral:
a importância do relógio molecular
editorial
Sei que produzir uma revista, em português, na área das ciências
da saúde não é tarefa simples. Mas são estes desafios que me
cativam. Senti o desejo de derrubar muros e criar uma publicação
para os mais diversos profissionais nas áreas de saúde, mesmo a
saber que algum conhecimento fica reservado a alguns grupos
restritos e que Portugal não é um país com história em investigação
neste campo.
Um desejo simples de querer editar um meio de divulgação
de ciência multidisciplinar em saúde, dar a conhecer estudos,
torná-los de fácil leitura, atraentes, sem nunca anular a cientificidade
dos trabalhos. Contra os compartimentos da divulgação em
saúde, quero criar uma unidade na diversidade de temas, de
ideias, de propostas, de conhecimentos, de vida. Consegui dar
fundamento a este desejo com o ISAVE – Instituto Superior de
Saúde do Alto Ave, e tenho a certeza que, aos poucos, ele será
ampliado e reconhecido. Só com muita dedicação e persistência
se consegue concretizar sonhos.
Está nas vossas mãos a revista número 1. Não quero destacar
temas por sentir que todos fazem parte de um conhecimento
múltiplo e são, todos eles, a vida, o trabalho dos autores. Será
esta primeira imagem que vamos manter, com muitas outras
ideias e desejos que vão criar em cada Ser Saúde algo que
acreditamos ser inovador e essencial.
A Ser Saúde não é grande em tamanho, é de fácil transporte,
de fácil manuseamento e encontrará entre as suas preferências
um óptimo lugar. Quero a Ser Saúde como referência para
pessoas que trabalham de alguma forma neste domínio. Penso
que será utilizada como enciclopédia de saber múltiplo e plural,
e o caminho que vai percorrer ajudará a clarificar alguns conceitos
e a criar uma saúde melhor.
Tenho de agradecer a quem tornou este projecto possível, a
todos os que nos enviaram e continuam a enviar trabalhos, a
quem de perto sempre me apoiou, e eram imensos os nomes
que tinha de referir. Agradeço a quem tem a revista neste momento nas mãos e lê estas curtas palavras … mas o coração da revista
é o trabalho publicado no interior.
Eugénio Pinto
6
Walter Osswald
Humanização em Saúde
Humanizar é, em resumo, esforçar-se por colocar o
doente no centro dos serviços de saúde, que só existem
em sua função. Humanizar é servir e respeitar a pessoa
doente na sua globalidade biológica, psicológica, sociológica
e espiritual, sem estabelecer destrinças entre estas suas
facetas, que não passam de manifestações de diversa
ordem da mesma realidade única
14
2
Liliana Osório, Isabel Palmeirim
Malformações no
desenvolvimento embrionário
da coluna vertebral: a
importância do relógio
molecular
O tempo em que ocorre o desenvolvimento
embrionário é constante e cuidadosamente regulado
22
Livro
O Cérebro Analfabeto
A influência do conhecimento das regras da leitura e da
escrita na função cerebral
Resumo do livro de Alexandre Castro-Caldas
Director
Eugénio Pinto
[email protected]
[email protected]
Editor
Rui Castelar
Corpo redactorial
André Dominguez
Patrícia Morais
Isabela Vieira
Director de arte e grafismo
Ângelo Mendes
[email protected]
26
Entrevista
Regenerar tecidos
Entrevista a Rui Reis
32
Colóquio
Procurando vencer o cancro:
a hora dos tratamentos biol gicos
Rui Mota Cardoso, Manuel Sobrinho Simões, Leonor David,
Raquel Seruca, José Manuel Lopes, Paula Soares
44
Paula Ravasco, Isabel Monteiro Grillo,
Marques-Vidal P, Camilo ME
Cancro:doença e nutrição são
determinantes chave da
Qualidade de Vida dos doentes
O impacto da Nutrição nos doentes oncológicos
O presente estudo mostra claramente que a QV dos doentes
com cancro é multifactorial e que é distintamente influenciada
pela doença, intervenções terapêuticas e vários parâmetros
nutricionais
Fotografia
Cláudio Capone
Tiragem
5 mil exemplares / Bimestral
Publicidade
Celmira Dias
Contactos
Campus Académico do ISAVE - Instituto
Superior de Saúde do Alto Ave
Quinta de Matos - Geraz do Minho
4830-316 Póvoa de Lanhoso
Telefone – 253 639 800
Fax – 253 639 801
www.isave.edu.pt
[email protected]
[email protected]
Propriedade
Ensinave
Campus Académico do ISAVE - Instituto
Superior de Saúde do Alto Ave
Quinta de Matos - Geraz do Minho
4830-316 Póvoa de Lanhoso
Impressão
Orgal impressores
Rua do Godim, 272
4300 - 236 Porto
Nº de Registo na ERC 124994
ISSN 1646-5229
58 98
Sandra Macedo-Ribeiro
Intermediários de agregação da
proteína ataxina-3: Novos alvos
na terapêutica da doença de
Machado-Joseph
A doença de Machado-Joseph, também designada ataxia
espinocerebelosa tipo 3, é uma doença neurodegenerativa
rara, descrita pela primeira vez nos anos 70 em
descendentes de açorianos e para a qual não existe ainda
nenhum tratamento eficaz
66
Armando Almeida, Hugo Leite-Almeida
Porque é que as emoções
controlam a dor?
A dor não possui apenas uma dimensão sensorial,
responsável pela determinação da intensidade, duração,
localização e tipo de dor, “é uma experiência sensorial,
afectiva e cognitiva desagradável associada a uma lesão
do corpo real ou virtual, ou descrita com termos usados
numa lesão desse tipo”
Margareta I. Correia e Fernando A. Arosa
A importância do microambiente
hepático para o desenvolvimento
dos linfócitos T
102
Gonçalo Castelo-Branco
Sinalização por lipoproteínas
Wnt no desenvolvimento de
neurónios dopaminérgicos do
mesencéfalo ventral
A terapia por substituição celular constitui uma
aproximação terapêutica alternativa para a doença de
Parkinson, consistindo na transplantação de células
funcionais para a área do cérebro afectada, de modo a
que as novas células possam substituir os neurónios em
degenerescência
112
82
Gustavo Afonso, Lara Costa, Marta Miranda
Maria Arminda Mendes Costa
Enfermagem geriátrica: a “arte”
de aprender cuidando
A explicitação dos fenómenos sociais e humanos, que
ocorrem no universo dos cuidados aos idosos, surge como
indiciadora de ligações entre os acontecimentos do percurso
de vida dos enfermeiros, designadamente os de natureza
familiar, e os modos de acção e interacção com os
utilizadores idosos dos cuidados
Abordagem da ferida crónica:
tratamento local
Ao efectuar o tratamento local da ferida crónica baseado
no conceito de tratamento em meio húmido, atinge-se
um elevado nível de eficácia e eficiência relativamente aos
recursos materiais e humanos, visto que se consegue
diminuir o número de intervenções curativas e, assim,
diminuir o tempo de cicatrização
92 120
Fernando Duarte, Carina Ramos
Antigénio específico da próstata
– PSA – Aplicação forense
Paula Espírito Santo
A determinação da presença e concentração de PSA em
materiais provenientes de amostras de manchas de cenários
de crimes sexuais, onde o corpo de delito é o esperma,
é de extremo valor
Planeamento Cirúrgico e
Protético Virtual na Reabilitação
de Pacientes Desdentados Totais
O conceito de planeamento cirúrgico e protético virtual
permite replicar o tratamento planeado em realidade clínica
na reabilitação de pacientes parcial ou totalmente
desdentados
Poster
AVC em doente jovem – caso
clínico
J. M. Macedo, M. Ribeiro, M. J. Sampaio, R. Lopes, C.
Fraga, J. A. Freire Soares
3
Biocant
Como centro de investigação e desenvolvimento aplicado em Ciências da Vida, o
Biocant cria produtos e serviços inovadores em
biotecnologia.
4
Unidades de Biologia Celular, Biotecnologia
Molecular, Bioinformática, Genómica,
Microbiologia e Serviços Avançados, equipadas
todas as unidades com as tecnologias mais
avançadas, bem como com equipamentos de
última geração, o Biocant promove a inovação
Ciências da Vida em investigação
em consórcio com a indústria e apoia o bioempreendedorismo em Portugal.
Instalado no Biocant Park, o primeiro parque
de biotecnologia em Portugal, o Biocant tem
abertas as portas de um centro de investigação
e desenvolvimento em biotecnologia, com
quadro próprio de investigadores e alicerçado
na forte tradição científica dos centros de
investigação de excelência das universidades
de Coimbra e Aveiro.
Prémio BIAL 2006
Actualidade
Com a presença de Sobrinho Simões,
presidente do júri do Prémio Bial 2006, Luís
Portela, presidente do grupo e da Fundação
BIAL, e Nuno Grande, figura emblemática do
Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar,
foi apresentado na Casa do Médico, no Porto,
a edição 2006 do Prémio Bial.
reconhecido mérito, como Armando Porto,
Henrique de Barros, João Lobo Antunes,
António Rendas e Maria de Sousa. Promovido
bianualmente desde 1984, o Prémio Bial é
considerado um dos mais importantes prémios
europeus da área da Saúde.
A edição 2006 do Prémio O galardão contempla as categorias “Grande
Bial distinguirá, uma vez
Prémio Bial de Medicina” e “Prémio Bial de
mais, duas obras nas
seguintes modalidades: Medicina Clínica”, e as obras a concurso terão
“Grande Prémio Bial de
Medicina” – destinado a de ser entregues até 31 de Outubro
galardoar obras nacionais ou internacionais, de
A Fundação Bial é uma instituição sem fins
índole médica, com tema livre que representem lucrativos, considerada de utilidade pública,
uma investigação de grande repercussão ou criada em 1994 pelos Laboratórios Bial em
que se distingam pela sua qualidade e relevância conjunto com o Conselho de Reitores das
científica (150 mil euros) – e “Prémio Bial de Universidades Portuguesas. A Fundação Bial
Medicina Clínica”, que visa distinguir um tema tem como missão a promoção do estudo do
livre de elevada qualidade dirigido à prática de Homem, distinguindo-se pelo seu papel
Clínica Geral (50 mil euros). O galardão da incentivador da investigação médica e científica
Fundação Bial premiará ainda algumas obras a nível internacional. Para além do prémio Bial,
com Menção Honrosa (5 mil euros cada). a Fundação Bial atribui Bolsas de Investigação
Científica e organiza, bianualmente e desde
Para além de Sobrinho Simões, fazem parte 1996, o Simpósio Aquém e Além do Cérebro.
do júri médicos, cientistas e investigadores de
Walter Osswald
Professor aposentado da Faculdade de Medicina do Porto, membro
do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa
6
Humanizaçã
As excepções, por o serem, não fazem a regra; e os cuidados de
saúde são muitas vezes prestados em condições e ambientes
pouco dignos, por profissionais apressados, arrogantes ou
insensíveis às angústias e medos dos doentes, com excesso de
burocracia, sem comunicação adequada, de forma descortês,
autoritária ou desrespeitosa.
Não é esta a primeira vez que partilho a
minha reflexão sobre este tema e sempre que
procedi a este exercício me surpreendi a
questionar-me sobre a justeza da terminologia
usada. Se humanização é tornar humano, será
apropriado, “justo, racional e salutar” falar de
humanização dos cuidados de saúde? Não é a
prestação destes cuidados, alta, nobre e virtuosa
actividade, na qual seres humanos vão ao
encontro de outros seres humanos e põem ao
seu serviço os seus conhecimentos e técnicas
para os aliviar dos seus achaques, para prevenir
o desconforto e a doença, para os ajudar a
superar os seus padecimentos e até, eventualmente, para os curar? Não são para tal empenho
necessárias nobres e valorosas qualidades humanas, baseadas na solidariedade e na benevolência?
Não se orgulham os médicos e os enfermeiros
da longa tradição de abnegado serviço em favor
dos mais marginalizados, doentes e pobres?
Não estão vivos os nomes de tantos que tudo
deram para salvar vidas e aliviar padecimentos
– dos físicos vitimados pelas pestilências aos
voluntários médicos praticando no deserto ou
sob as bombas, de Florence Nightingale a Albert
Schweitzer? E a Igreja Católica não elevou aos
altares figuras como João de Deus, Camilo de
Lellis, Ricardo Pampurri, Giuseppe Moscati
(preparando-se certamente para o fazer com
Raoul Follereau ou Teresa de Calcutá, nossos
7
ão em Saúde
contemporâneos), cuja santidade se traduziu
na devoção com que se entregaram ao cuidado
dos seus doentes?
Sim, tudo isto é verdade: sempre floriram as
virtudes da caridade, da compaixão, da
solidariedade, da oblação em prol dos desfavorecidos e doentes. Mas... às perguntas acima
formuladas responderemos com a afirmativa,
mas logo se impõe a adversativa, pois isso não
significa que sempre e em toda a parte
encontremos essas atitudes louváveis, essas
pessoas exemplares, as altas virtudes que
admiramos. As excepções, por o serem, não
fazem a regra; e os cuidados de saúde são muitas
vezes prestados em condições e ambientes
pouco dignos, por profissionais apressados,
arrogantes ou insensíveis às angústias e medos
dos doentes, com excesso de burocracia, sem
comunicação adequada, de forma descortês,
autoritária ou desrespeitosa. Mormente no
grande Hospital, o doente sente-se frequentemente perdido, despersonalizado, privado
de vontade e até de liberdade. Os nostálgicos
dirão: como estamos longe do João Semana!
Mas os cínicos responderão: felizmente, porque
ele não tinha antibióticos nem TAC. Ora, esta
não é a questão correcta, pois não se trata aqui
de poder técnico-científico mas sim de relação
inter-subjectiva
8
As causas da desumanização
Podemos afirmar, sem risco de desmentido,
que a evolução das ciências da saúde no último
meio século foi, de facto, extraordinária,
acelerada (no melhor sentido da palavra),
sensacional mesmo. Nesta área, o progresso
registado tem sido caudaloso ou torrencial,
graças às descobertas das ciências fundamentais
(genética, imunologia, bioquímica, patologia,
farmacologia...), às inovações tecnológicas (v.g.
imagiologia, telemedicina, cirurgia laparoscópica,
cardiologia de intervenção) e ao desenvolvimento de equipamentos e medicamentos.
Mais: estes progressos verificam-se em todas as
áreas da saúde, desde a medicina prénatal até
às doenças degenerativas do sistema nervoso
central, relacionadas com a idade. Não há
dúvida de que a medicina avançou mais nestes
50 anos do que nos 25 séculos que nos separam
de Hipócrates de Cós.
Perante este risonho panorama, custa
introduzir de novo a adversativa: mas o preço
pago por estes progressos notáveis foi muito
elevado e – o que é mais grave – não era
exigido pelo mesmo progresso. É que o aprendiz
de feiticeiro se deixou fascinar pela técnica e
relegou o doente para um sombrio segundo
plano, erguendo à condição de fim o que não
passa de um meio para servir o doente (a técnica,
as terapias). Mais ainda: retomou uma crença
que já demonstrou a sua intrínseca falibilidade,
curvando-se reverentemente perante o ídolo
do cientismo; para ele, a ciência tudo resolverá
e merece todos os sacrifícios, talvez até os
humanos.
Ainda em ligação umbilical a este culto do
cientismo está o apreço pela proeza, pelo recorde
médico, pelo sensacionalismo: intervenção pela
primeira vez praticada no nosso país, técnica
original desenvolvida no nosso grupo, trabalho
publicado na prestigiada revista XYZ com o
relato de um dos dez casos conhecidos à escala
mundial – nada disto está moralmente incorrecto
ou é censurável, desde que se mantenha nos
limites éticos e deontológicos e não resulte de
uma menor atenção, mais apressado atendimento ou menor atenção, ou menor investimento na grande coorte dos doentes
“vulgares”, que não sofrem de doenças raras
nem dão azo a publicações. A organização dos
serviços e sistemas de saúde, provavelmente
burocratizada e complexa em excesso, tende
a tornar anónimo o paciente, reduzido à
condição de utente portador de um cartão ou
de beneficiário de uma assistência que lhe é
magnanimamente concedida e de cujos serviços
se deve aproximar com deferente reverência.
Assim, o cidadão que recorre aos serviços de
saúde parece dever assumir a atitude de um
peticionário e não a de um parceiro cooperante.
Também contribui para tornar menos
A organização dos serviços e sistemas de saúde, provavelmente
burocratizada e complexa em excesso, tende a tornar anónimo o
paciente, reduzido à condição de utente portador de um cartão ou
de beneficiário de uma assistência que lhe é magnanimamente
concedida e de cujos serviços se deve aproximar com deferente
reverência.
9
humana a relação médico-doente a crescente
tendência para a intervenção de equipas de
saúde (frequentemente multidisciplinares),
certamente justificada ou até exigida pelo
próprio progresso, mas em que o rosto do
médico “assistente” se desfoca e dilui na fotografia do grupo; o “meu” médico não pode
ser substituído pelos meus médicos, psicólogos,
terapeutas, enfermeiros, etc.
Entre médico e doente não deveria haver
intromissão. Ora, a entrada de terceiros nesta
relação privilegiada é hoje uma constante; de
forma mais ou menos aparente, aí está a
segurança social, a companhia de seguros, o
empregador, a direcção geral, etc., a estabelecer
regras, a impor procedimentos, a coarctar
liberdades, a vigiar atitudes, tornando poligonal
uma relação que deveria ser bipolar.
A contínua escalada dos preços dos cuidados
de saúde (vencimentos dos profissionais, custos
do internamento hospitalar, espiral dos preços
dos medicamentos mais recentes e, sobretudo,
incrementos exponenciais do custo das cada
vez mais sofisticadas técnicas de diagnóstico e
terapêutica) veio por em causa a sustentabilidade
do financiamento dos serviços de saúde públicos.
As respostas encontradas em alguns países
(selecção de grupos de patologias ou de pacientes
elegíveis para comparticipação, escalonamento
desta última, estabelecimento de limites de
idade para acesso a certos tratamentos, etc.) são
de natureza economicista, pura e dura, e têm
óbvias consequências discriminatórias e
desumanizantes.
Finalmente, a mudança de atitudes de natureza
cultural no que diz respeito à doença, ao
sofrimento e ao papel dos profissionais de saúde
(que aqui teremos de nos limitar a registar, sem
pretensões de adequada análise) têm também
contribuído para dificultar a relação doenteprofissional de saúde. Rejeitado o sofrimento,
exigida a saúde como direito, projectado o
retrato do profissional de saúde como o do
técnico que não tem direito a enganar-se, o
cidadão comum não está em boas condições
para entrar numa relação humana, confiante e
tolerante com o profissional que deve ser
competente e compassivo mas não é isento de
defeitos, incapaz de errar ou imune a pressões.
Uma estratégia humanizante
Urge, pois, humanizar os cuidados de saúde
e para tal há que traçar uma estratégia e ter em
conta a realidade. Antes de mais, identificar os
locais prioritários para a intervenção
humanizadora, no duplo sentido topográficoinstitucional e fásico-conceptual. Não restam
dúvidas de que no sentido dos locais físicos, a
prioridade deve atribuir-se aos Centros de
10
Saúde e suas extensões e, a seguir, aos Hospitais
de maior dimensão. Já no que respeita às fases
do percurso do doente numa instituição, poderse-ia afirmar que todas necessitam, e muito, de
sofrer um influxo humanizante; mas parece
razoável seleccionar o atendimento, o
acolhimento, os cuidados paliativos e os
terminais como sendo as áreas que necessitam
de maior investimento, em termos de humanização. Limites de espaço não nos permitem
esclarecer esta posição nem apresentar a
respectiva fundamentação nem sequer introduzir
os temas, igualmente importantes, das condições
tantas vezes desumanas em que se processa o
trabalho dos profissionais e do relacionamento
(ou sua ausência) com os familiares dos doentes.
Quem e como: os agentes e o modo
Se a humanização é urgente, e não apenas
necessária, se os locais da sua intervenção
saneadora e reabilitante são identificáveis, então
está indicado perguntar quais são os seus agentes,
ou, por outras palavras, a quem cabe humanizar
os cuidados de saúde e como o deve fazer. A
resposta que imediatamente ocorre e que
certamente é a correcta, ou seja, que se trata
de tarefa comum a todos os cidadãos, pode,
por demasiado lata, redundar em desculpabilização e inacção: o que é de todos acaba
por não ser assumido por ninguém em
particular. Já por esse motivo, e mais
particularmente ainda pelo facto indiscutível
da sua proximidade e responsabilidade em
relação ao doente, é natural que seja atribuído
especial e proeminente protagonismo aos
profissionais de saúde. Sob esta designação se
entendem não apenas os médicos e enfermeiros,
mas todos os que intervêm na complexa rede
da prestação de cuidados, mesmo que de forma
indirecta, como por ex. os gestores e administradores, auxiliares, maqueiros, contínuos,
seguranças, empregados administrativos,
técnicos, analistas, farmacêuticos, ou outros
ainda que em conjunto exercem uma profissão
que em última análise deriva a sua justificação
e tarefa do simples facto da existência de pessoas
doentes. A telefonista que atende um pedido
de informação ou uma tentativa de marcação
de consulta, a recepcionista que do lado de lá
do balcão se confronta com o lado de cá da
vulnerável vida, o médico que ouve as queixas,
o enfermeiro que muda o penso ou presta
cuidados higiénicos, a empregada que traz o
tabuleiro com a refeição, o capelão que ministra
sacramentos, o profissional que comunica aos
familiares o falecimento do seu ente querido
– todos eles, e muitos mais, têm de ser agentes
da humanização. Para o serem, necessitam de
reflectir sobre esta sua tarefa – missão, de lhe
delimitarem os contornos, de se tornarem
convictos adeptos da intervenção humanizadora,
de se assumirem como arautos da norma ética
Humanizar os cuidados de saúde será,
pois, por em prática tudo o que possa
contribuir para o respeito maior da
dignidade de cada pessoa, tudo o que
evite discriminação, humilhação,
sensação de vergonha ou de ser
desprezado, de ser maltratado ou
menosprezado; humanizar será ter em
atenção permanente as condições do
exercício da liberdade do doente, que
na prática desagua na sua autonomia,
respeitável até ao limite do absurdo…
11
que subjaz à humanização e de a porem em
prática, através da humanização do seu agir.
Todos são chamados a esta tarefa, mas ainda
aqui a proximidade e a responsabilidade apontam
o dedo aos enfermeiros e médicos como agentes
de primeira linha da concretização de medidas
humanizantes. Mas há, obviamente, outros
intervenientes no processo, não podendo ser
esquecidos os voluntários, os ministros das
diversas religiões, as Comissões de Humanização,
que são verdadeiros agentes catalizadores das
transformações que é necessário realizar.
Não se nega que seja possível humanizar sem
aprofundar previamente, através da reflexão, a
questão fundamental da filosofia, ou seja, a
pergunta acerca do que é o homem, ou melhor,
o que é a pessoa humana. A verdade, porém,
é que uma humanização consciente e
responsável terá de ter como sólida base um
conceito de antropologia filosófica – como
tornar mais humano sem saber o que é o humano, o próprio da pessoa? Se nos abalançarmos
a elucidar esta questão, corremos o risco, dirse-á, de nos perdermos na floresta das
interpretações com que as diversas correntes
filosóficas têm contribuído para o estudo desta
questão. Mas tais reais dificuldades não nos
devem demover do nosso propósito inicial,
aconselhando-nos apenas a optar pela virtude
da prudência, contentando-nos com inquirir
acerca do que convém ou não convém ao ser
humano, acerca do que lhe é próprio e
característico e tem de ser respeitado e
fomentado quando a sua condição de doente
actual ou potencial o leva a procurar os serviços
de saúde. Nesta perspectiva prudencial, já será
fácil obter respostas consensuais: são a sua
dignidade intrínseca, a sua liberdade, a sua
responsabilidade e exigência de alteridade as
características essenciais, por assim dizer os
traços que fundam o rosto humano, traços esses
que se não perdem quando a pessoa se declara
ou está doente. Humanizar os cuidados de
saúde será, pois, por em prática tudo o que
possa contribuir para o respeito maior da
dignidade de cada pessoa, tudo o que evite
discriminação, humilhação, sensação de
vergonha ou de ser desprezado, de ser maltratado
ou menosprezado; humanizar será ter em
atenção permanente as condições do exercício
da liberdade do doente, que na prática desagua
na sua autonomia, respeitável até ao limite do
absurdo (p. ex., a recusa de se sujeitar a uma
terapia que se prevê salvadora da vida);
humanizar será ainda confrontar o paciente
com a sua responsabilidade pessoal e incentiválo a colaborar nas decisões, sem lhe negar a
possibilidade de abdicar desse direito, para
confiadamente se entregar ao cuidado dos
profissionais de saúde; humanizar será ainda
ajudar o doente a entender que o seu caso não
é o único nem necessariamente prioritário, por
serem muitos os que sofrem e o seu sofrimento
O mais urgente é pensar e agir:
pensar e agir, para que os cuidados
de saúde sejam mais humanos e,
assim, tenham melhor qualidade,
já que a qualidade técnica é
apenas secundante da excelência
humana.
12
poder não ser aquele que mais necessita de
atenção.
Tudo isto, que em teoria se apresenta
complicado e eriçado de dificuldades, se torna
simples através da postura empática e dialógica.
Atender com cortesia, informar com exactidão,
mostrar disponibilidade, escutar com atenção
e paciência, interessar-se, procurar partilhar as
melhores soluções, esclarecer, dizer a verdade
(se desejada) com carinho e gradualidade, tentar
compreender as queixas dos maçadores ou dos
impertinentes, corrigir inverdades, abusos ou
falsas acusações a que a condição humana (por
nós partilhada com os doentes) não é imune –
tudo isto é humanizar. Também o é o cuidar
pelas coisas materiais, pelo conforto e amenidade
dos ambientes em que o doente tem de passar
o seu tempo de espera (da consulta, do
tratamento, da alta hospitalar, por fim da morte):
aquecimento ou ar condicionado, mobiliário,
meios de entretenimento (televisão, jornais,
revistas), cor das paredes, limpeza (particularmente dos quartos de banho), música de
ambiente, espaços, atenção às necessidades
específicas de crianças (jogos, brinquedos), de
incapazes ou de velhos com deficiência sensorial.
Também é humanizar o prover os Hospitais
de serviços a que os doentes possam recorrer,
tais como telefones, correios, florista,
cabeleireiro/barbeiro, venda de livros e jornais,
biblioteca itinerante. É ainda humanizar facilitar
as visitas, permitir que um familiar escolhido
pelo doente possa estar junto dele durante
longos períodos (e eventualmente lhe preste
assistência na higiene e na alimentação),
promover o contacto do doente com o ministro
da sua religião, sempre que o pretenda.
Humanizar é, em resumo, esforçar-se por colocar o doente no centro dos serviços de saúde, que só existem em sua função.
Humanizar é servir e respeitar a pessoa doente
na sua globalidade biológica, psicológica,
sociológica e espiritual, sem estabelecer destrinças
entre estas suas facetas, que não passam de
manifestações de diversa ordem da mesma
realidade única.
Humanizar: um imperativo
Milhões de consultas foram feitas no último
ano no nosso país. Centenas de milhares de
pessoas estiveram deitadas em leitos hospitalares
e cerca de 50.000 neles morreram. Não sabemos
quantos encontraram condições e tratamentos
condignos com a humanização, mas temos a
certeza de que este problema de ética médica
afectou incomparavelmente mais pessoas do
que as questões relacionadas com a procriação
medicamente assistida ou o abortamento.
Todavia, existe um grande silêncio branqueador,
como se nada se passasse – mas a esmagadora
maioria das reclamações constantes dos livros
13
existentes nas instituições diz respeito a faltas
de humanidade nas relações com os doentes.
É necessário, é urgente humanizar os cuidados
de saúde e o primeiro passo consiste na
interiorização do problema pelos profissionais
de saúde, no estudo da realidade, no
planeamento das soluções e na sua concretização
prática. Muitos considerarão utópico este
projecto, mas quem, como nós, teve a inolvidável experiência de ver centenas de
profissionais de saúde reunirem-se única e
exclusivamente para debater os problemas da
humanização, para encontrar as melhores vias
para a sua concretização, realizando-as depois
através de actos, intervenções, mudanças de
atitude, dentro dos muros das suas instituições,
e isto ao longo dos anos – quem teve esta
experiência sabe que é possível e desejável
travar esta batalha pacífica pela humanização.
O mais urgente é pensar e agir: pensar e agir,
para que os cuidados de saúde sejam mais
humanos e, assim, tenham melhor qualidade,
já que a qualidade técnica é apenas secundante
da excelência humana.
Algumas indicações bibliográficas
OSSWALD, W. – A relação enfermeiro-doente e a humanização dos
cuidados de saúde. Cad. Bioética, 11 (23): 41-45, 2000
ALVES, L. – Ser voluntário. Humanização em Notícia, 8, Junho
de 2001
IMPERATORI, E. – Humanização – vista panorâmica dos nossos
hospitais. Humanização em Notícia, 6, Junho de 2000
OSSWALD, W. – A humanização como forma de solidariedade. In
Política da Saúde e Solidariedade Cristã, Actas dos XIII e XIV
Encontros Nacionais da Pastoral da Saúde. Fátima, 1999, 2000. Paulus
Editora, 2001 (pp 247-251).
Comissão Nacional para a Humanização dos Serviços de Saúde
(Ministério da Saúde) – Programa de acção. Lisboa, 2000
OSSWALD, W. – A urgência da humanização crescente dos serviços de
saúde. Nortesaúde 3: 10-11, 2001
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OSSWALD, W. – Humanizar a saúde. Notícias Med., nº 2440: 23, 1997
Liliana Osório1
Isabel Palmeirim2
1 Licenciatura em Biologia, ramo científico – Faculdade de Ciências
da Universidade do Porto; aluna de Doutoramento da Escola das
Ciências da Saúde da Universidade do Minho e da Université
Pierre et Marie Curie (Paris VI).
2
Licenciatura em Medicina – Faculdade de Medicina da
Universidade Clássica de Lisboa; "Doctorat en Sciences de
l'Universite Pierre et Marie Curie (Paris VI)" – área de Biologia do
Desenvolvimento.
14
Malformações no
da coluna vertebral:
Introdução
Os vertebrados incluem diversos organismos,
tais como: o homem, o ratinho, a galinha, a
tartaruga, o peixe, etc. Estes animais são aparentemente muito diferentes quer a nível
morfológico, quer a nível fisiológico. No entanto, durante as primeiras etapas do desenvolvimento embrionário, os seus embriões são
inacreditavelmente semelhantes (Figura 1). Por
este motivo, os conhecimentos acumulados sobre o desenvolvimento embrionário dos animais
podem ser, mais ou menos directamente, extrapolados para o embrião humano.
Figura 1
15
desenvolvimento embrionário
a importância do relógio molecular
Figura 1. Desenvolvimento embrionário
nos vertebrados. A – Esquema comparativo
do desenvolvimento embrionário de diferentes
vertebrados, onde é possível observar a
semelhança existente entre os diversos embriões
nas primeiras etapas de desenvolvimento. B –
Fotografia de embrião humano (à esquerda),
com 8 semanas de desenvolvimento e embrião
de galinha (à direita), com cerca de 3 a 4 dias
de desenvolvimento, mostrando a semelhança
entre os dois embriões.
O tempo que um embrião de vertebrado
demora a desenvolver-se é constante e
cuidadosamente regulado em todos os orga-
nismos. Este controlo de tempo é um fenómeno
crucial para o embrião, dado que as várias etapas
do seu desenvolvimento só atingirão o efeito
desejado se ocorrerem no local e no momento
adequados.
Segmentação do corpo dos vertebrados
Os vertebrados são organismos segmentados
e esta segmentação corresponde à repetição de
estruturas semelhantes (vértebras, no caso dos
vertebrados) ao longo do eixo céfalo-caudal
do embrião. Esta segmentação é crucial para a
organização espacial embrionária e estabelece-
16
se muito cedo durante o desenvolvimento
embrionário, manifestando-se pela formação
de umas estruturas chamadas sómitos.
Durante os estadios iniciais do desenvolvimento de um embrião de vertebrado podem
observar-se o tubo neural e a notocorda, órgãos
ditos axiais porque definem o eixo do embrião.
Estes órgãos são ladeados pela mesoderme
paraxial (PSM) que se divide em dois
compartimentos (representados a vermelho na
Figura 2): anteriormente, um território já
subdividido em sómitos (estruturas esféricas);
posteriormente, a mesoderme paraxial presomítica não segmentada. Num processo extraordinariamente bem coordenado e periódico,
um grupo de células da parte mais anterior de
cada PSM, separa-se
desta formando-se
assim um par de
sómitos. Simultaneamente, na região posterior do embrião, novas
células são recrutadas
para a PSM, garantindo
o alongamento posterior desta estrutura.
Figura 2. Embrião
de galinha e embrião
humano. Fotografia (A) e esquema (B) de
embrião de galinha, com cerca de 45 horas de
desenvolvimento, apresentando 13 sómitos que
flanqueiam o tubo neural localizado axialmente.
Os sómitos formam-se, segundo uma direcção
antero-posterior a partir da PSM. C – Embrião
humano com cerca de 5 semanas de desenvolvimento, apresentando 10 sómitos formados.
Os sómitos formam-se e, algumas horas
depois, as suas células dissociam-se dando origem
a várias estruturas segmentadas do corpo adulto,
tais como as vértebras, os discos intervertebrais,
as costelas e ainda todos os músculos esqueléticos
(com excepção dos da cabeça). Os sómitos são
morfologicamente idênticos mas, como
sabemos, as vértebras não são todas iguais e as
costelas só se formam ao nível das vértebras
torácicas. Isto significa que as células que
compõem um sómito
têm uma noção da sua
posição no eixo
antero-posterior do
embrião.
O número total de
pares de sómitos,
assim como o tempo
necessário para formar
cada um destes pares,
é constante e caracteFigura 2
rístico de uma espécie.
Um par de sómitos é formado cada 90 minutos
no embrião de galinha (o qual apresenta um
Um par de sómitos é formado cada 90 minutos no embrião de
galinha (o qual apresenta um número total de 53 pares de sómitos)
e cada 150 minutos no homem, até atingir um número total de 42
pares de sómitos. A espantosa periodicidade e simetria deste
processo sugere que o embrião tem um relógio interno, que controla
o ritmo de formação e o número total de pares de sómitos a formar,
de acordo com a sua espécie.
número total de 53 pares de sómitos) e cada
150 minutos no homem, até atingir um número
total de 42 pares de sómitos. A espantosa
periodicidade e simetria deste processo sugere
que o embrião tem um relógio interno, que
controla o ritmo de formação e o número total
de pares de sómitos a formar, de acordo com
a sua espécie.
Como é que as células contam o tempo?
A primeira evidência molecular da existência
de um relógio molecular a operar no embrião
de um vertebrado surgiu a partir de trabalhos
realizados por Palmeirim e colaboradores, em
1997. Estes investigadores descobriram que em
cada célula da PSM o gene c-hairy1 era “lido”
de uma forma cíclica, com um tempo de ciclo
igual ao tempo necessário para formar um par
de sómitos.
Todas as células do nosso organismo têm os
mesmos genes. No entanto, cada célula só “lê”
alguns dos seus genes. Este é um processo
complexo que engloba diferentes etapas:
inicialmente, a célula copia o gene, produzindo
uma molécula de RNA dito “mensageiro”,
específico do gene em questão. Posteriormente,
o RNA mensageiro irá dar origem a uma proteína, responsável por uma determinada função.
Experiências de hibridação in situ, que
permitem a marcação a azul das células que
produzem o RNA mensageiro em estudo
mostraram que o gene c-hairy1 é “lido” nas
células da PSM, mas de forma muito variável
(Figura 3). Posteriormente, utilizando-se diversas
técnicas de embriologia experimental, verificouse que esta variação se deve a uma alternância
entre o estado “lido” e “não-lido” deste gene
e que estas oscilações apresentam uma
periodicidade de 90 minutos, o que corresponde
ao tempo de formação de um par de sómitos.
17
O tempo em que ocorre o
desenvolvimento embrionário
é constante e cuidadosamente
regulado.
18
“informação temporal” em “informação
posicional” ao longo do eixo antero-posterior
da PSM do embrião (Andrade et al., 2005,
Freitas et al., 2005).
Figura 3
Figura 3. “Leitura” dinâmica do gene
c-hairy1 na PSM. Fotografias da metade
posterior de embriões de galinha com 15
sómitos, apresentando diferentes padrões de
“leitura” do gene c-hairy1 ao nível da PSM. As
moléculas de RNA mensageiro do gene chairy1 foram identificadas recorrendo à técnica
de hibridação in situ, ficando coradas de azul
(adaptado de Palmeirim et al., 1997).
Os dados disponíveis actualmente sugerem
que cada célula da PSM será sujeita a um
número predeterminado de oscilações entre o
estado de “lido” e “não-lido” de c-hairy1, desde
que entra na PSM até à sua incorporação no
sómito. Consequentemente, através da
“contagem” do número de ciclos de leitura do
gene c-hairy1 a que foram submetidas, as células
da PSM poderão saber há quanto tempo
entraram na PSM, e daí inferirem qual a sua
posição no eixo antero-posterior do embrião.
Desta forma, o relógio molecular da
segmentação poderá ser uma forma de converter
Outros genes cíclicos nos vertebrados
Outros genes que apresentam um
comportamento oscilatório semelhante ao de
c-hairy1 foram posteriormente identificados em
embriões de outros animais, indicando que o
relógio de segmentação é uma característica
conservada nos vertebrados (Tabela 1). A
maioria dos genes cíclicos identificados até ao
momento faz parte de uma família de genes
pertencentes à via de sinalização Notch (Andrade
et al., 2005; Freitas et al., 2005). Sabe-se hoje
que esta via é fundamental para o funcionamento
do relógio de segmentação.
Tabela 1. Genes cíclicos identificados
em diferentes vertebrados (adaptado de
Freitas et al., 2005).
Todas as células possuem diversas vias de
sinalização que utilizam não só para
comunicarem entre si, mas também com o
ambiente em que se encontram. De uma
maneira geral, as vias de sinalização consistem
na interacção específica entre moléculas
existentes em diferentes células, o que conduz
19
Tabela 1
a uma determinada resposta (ex: a “leitura” de
um determinado gene). As vias de sinalização
constituem um sistema complexo e altamente
especializado de recepção e envio de mensagens
utilizado por qualquer célula do organismo.
A perturbação do processo de
segmentação no homem
Em laboratório, a mutação de genes
implicados na via de sinalização Notch, conduz
a perturbações no processo de segmentação.
Em alguns ratinhos mutantes, estas anomalias
são comparáveis a determinadas doenças descritas
no homem. Esta constatação constituiu um
ponto de partida importante para o estudo da
base genética destas doenças.
O ratinho pudgy (Kusumi et al., 1998)
apresenta uma mutação num gene da via de
sinalização Notch. Esta mutação conduz a
malformações importantes da coluna vertebral,
como fusão das vértebras, formação de
hemivertebras e fusão das costelas. No homem,
a doença displasia espondilocostal (SD; OMIM
277300), também conhecida como síndrome
de Jarcho-Levin, manifesta-se por malformações
semelhantes (Figura 4). Este facto tornou o
gene mutado no ratinho pudgy um potencial
candidato para explicar este síndrome,
conduzindo Bulman e colaboradores (2000) a
analisar este gene nos pacientes afectados por
SD. De facto, em diferentes famílias com SD,
três diferentes mutações foram identificadas em
genes da via de sinalização Notch, reforçando
assim o papel fundamental desta via na formação
do esqueleto axial. Ao nível do desenvolvimento
embrionário, as anomalias observadas no
processo de formação de sómitos parecem
ocorrer devido à interrupção do relógio de
segmentação nas células da PSM (Dunwoodie
et al., 2002).
Figura 4. Malformações no esqueleto
axial. Coloração de azul-ciano e vermelho de
Alzarin (que marcam tecido ósseo e
cartilaginoso), evidenciando diversas malformações ao nível das vértebras e das costelas
em ratinhos pudgy (B), comparativamente a
ratinhos normais (A). C - radiografia de um
paciente adulto afectado com SD, em que as
vértebras não são facilmente distinguíveis, e a
coluna vertebral apresenta curvaturas fixas e
movimento restrito (adaptado de Kusumi et
al., 1998 e Dunwoodie et al., 2002).
A síndrome de Alagile (AGS, OMIM
118450) é uma outra doença que se caracteriza
por diversas malformações, nomeadamente ao
nível de órgãos como o fígado, o coração, os
olhos e ainda as vértebras, as quais apresentam
O relógio de segmentação parece resultar da comunicação de várias
vias de sinalização e este é um mecanismo evolutivamente
conservado. O conhecimento das diferentes moléculas envolvidas
neste processo constitui um aspecto crucial para a compreensão
de diversas anomalias congénitas humanas.
20
resultar da comunicação de várias vias de sinalização e este é um mecanismo evolutivamente
conservado. O conhecimento das diferentes
moléculas envolvidas neste processo constitui
um aspecto crucial para a compreensão de
diversas anomalias congénitas humanas.
Tabela 4
a forma de borboleta. Uma mutação num outro
membro da via de sinalização Notch, foi
identificada nos pacientes afectados com este
síndrome (Boyer et al., 2005).
Todos estes exemplos mostram que os genes
envolvidos no processo de segmentação, e em
particular estes pertencentes à via de sinalização
Notch, serão assim potenciais candidatos para
explicar geneticamente diversas anomalias
congénitas envolvendo o esqueleto axial.
Bibliografia
Andrade, R.P., Pascoal, S. and Palmeirim, I. (2005). Thinking
clockwise. Brain Research Reviews, 49(2): 114-9.
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Conclusão
O tempo em que ocorre o desenvolvimento
embrionário é constante e cuidadosamente
regulado. Actualmente, o único relógio
biológico conhecido a operar durante esta fase
é o relógio de segmentação, intimamente ligado
ao processo de formação de sómitos nos
vertebrados. O relógio de segmentação parece
Kusumi, K., Sun, E.S., Kerrebrock, A.W., Bronson, R.T., Chi,
D.C., Bulotsy, M.S., Spencer, J.B., Birren, B.W., Frankel, W.N. and
Lander, E.S. (1998). The mouse pudgy mutation disrupts Delta
homologue Dll3 and initiation of early somite boundaries. Nat. Genet.,
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Palmeirim, I., Henrique, D., Ish-Horowicz, D. and Pouquie, O.
(1997). Avian hairy gene expression identifies a molecular clock linked
to vertebrate segmentation and somitogenesis. Cell 91: 639-648.
22
Livro
O Cérebro
Analfabeto
A influência do conhecimento das regras
da leitura e da escrita na função cerebral
Resumo por Isabela Vieira
Este livro, resulta do desenvolvimento de
um projecto com muitos anos e tem o objectivo
de «compreender como é que a frequência da
escola e a aprendizagem de algumas capacidades
pode moldar não só os comportamentos, mas
também a estrutura biológica que processa a
informação […] Podemos, assim, dizer que o
conhecimento da leitura e da escrita corresponde
ao aproveitamento de múltiplos recursos
existentes no cérebro humano. Aquilo que
com simplicidade se pode considerar o saber
ler e escrever é um processo neurobiológico
de grande complexidade e que modifica
radicalmente a forma de funcionar do cérebro».
Escolhido o método, tendo em conta os
resultados, as questões de dominância
hemisférica, estudadas as questões da linguagem
oral (estudos sobre a capacidade de nomeação,
estudos em que se tomou em atenção a estrutura
fonológica, estudos em que se tomou em
consideração a estrutura léxico-semântica e
estudos em doentes afásicos), conclui-se que
«a escolaridade tem implicações fundamentais
na capacidade de recepção visual e que isso
pode ter importância para a
velocidade de processamento
de informação […] Consideramos que os aspecto mais
significativo deste trabalho,
para além da confirmação de
resultados expectáveis à
priori, como sejam a maior
capacidade de memória de
trabalho dos letrados, foi o
de demonstrar que a aprendizagem da leitura e da escrita
influencia aspectos qualitativos do processamento
cognitivo, não só na linguagem, mas também noutras
funções cognitivas como seja,
naturalmente, a memória […]
Este estudo contribui, assim,
para melhor compreender como organizam os
analfabetos, de forma espontânea, o seu pensamento, predominantemente baseado em
analogias semânticas». Noutros estudos, ainda
sem resultados definitivos, os resultados
preliminares fazem prever que «os analfabetos
encontram mais utilidades para os objectos
podendo, por isso, ser considerados mais
criativos».
O último capítulo do livro debruça-se sobre
o «aprender a ler na idade adulta». Seguem-se
os comentários finais e implicações práticas que
transcrevemos: «O desenvolvimento deste
projecto, que tem mobilizado alguma atenção
da comunidade científica internacional, permitiu
até agora compreender que existem sinais sensíveis do domínio cognitivo que se podem
relacionar com o facto de se ter, ou não,
frequentado a escola na idade própria. Ficou
até agora demonstrado que é
possível descrever dois efeitos.
Um que designamos por difuso
que se relaciona com a
frequência escolar e que mais
dificilmente permite fazer
previsões no contexto de um
modelo orientador; outro que
designamos por focal,
relacionado com o facto de ter
havido a aprendizagem da
ortografia e cuja exploração
tem vindo a pôr em evidência
sinais de pior desempenho
cognitivo em áreas alvo e sinais
de diferenças de função,
mensuráveis com os novos
métodos de imagem cerebral.
«O domínio da ortografia, obtido através da
aprendizagem escolar na idade própria,
condiciona modificações biofuncionais que
interessam o processamento visual de informação
precodificada modificando provavelmente o
córtex estriado e peri-estriado, a interface parietal
com o sistema motor central e com a função
auditiva temporal, a transferência interhemisférica e ainda mecanismos automáticos
23
24
de processamento de informação que
corresponde a modos de facilitação e economia
do sistema. Por outro lado, a ausência de
processos de aculturação organizados,
analfabetos, só que na maioria dos casos passando
pelo processo de escolarização que vai
estimulando outras competências importantes
também para o desenvolvimento do cérebro.
como acontece no sistema de ensino, não
constrange tanto o modo de funcionar sendo
mais ideosincrático o processo adaptativo
individual. Isso parece ter como resultado uma
maior liberdade criativa, no contexto, naturalmente, dos elementos concretos da vida
quotidiana.
«Finalmente, importa dizer que as
Neurociências Cognitivas estão a permitir
compreender melhor a natureza humana nas
suas múltiplas dimensões e, espera-se, começam
a formular hipóteses com implicações no quotidiano dos seres humanos. Ultrapassou-se a
dimensão biológica pura e regista-se a confluência dos saberes na pergunta fundamental
que respeita a natureza humana tão claramente
definida nas palavras de Edgar Morin: Todo o
indivíduo é uno, simples e irredutível. E,
contudo, ele é ao mesmo tempo duplo, plural,
inumerável e diverso. Ele é o indivíduo, o
representante da espécie e o membro da
sociedade que se move na complexidade dos
intervenientes que determina a sua existência.
«A identificação das regiões morfo-funcionais
do cérebro que estão implicadas nos processos
de aquisição das capacidades de ler e de escrever
permitiu prolongar as perguntas para uma nova
população: a daqueles que aprendem a ler na
idade adulta. Na realidade os resultados obtidos
na população de analfabetos permitiu elaborar
hipóteses que começaram agora a ser
confirmadas nos recém escolarizados. Começamos, assim, a compreender melhor as
dificuldades encontradas pelos educadores e
pelos alunos adultos podendo desta forma
propor melhores soluções.
«É ainda importante salientar que estes
resultados têm encontrado eco nos
investigadores interessados na dislexia de
desenvolvimento. Na verdade muitos destes
achados permitem dizer o que constitui o
verdadeiro síndrome de dislexia e o que são os
resultados da ausência de leitura. Não há dúvida
de que tendo os disléxicos dificuldades em
adquirir a função de ler eles vão sofrer as
consequências de o não fazer. Por essa razão
eles acabam por ser na realidade próximos dos
«Acabou a década do cérebro enquanto
estandarte de empenho no desenvolvimento
dos projectos científicos. Vivemos hoje com
as ciências do cérebro no nosso quotidiano,
participando na discussão de múltiplos assuntos
que preocupam a sociedade. O analfabetismo
e a falta de cultura são de facto temas que
constituem preocupação importante. É nosso
desejo que o presente projecto continue a
esclarecer as questões que o seu próprio
desenvolvimento vai gerando mas é sobretudo
nosso desejo que não exista, num futuro breve,
população disponível para realizar estes estudos.
Seria sinal de que a sociedade portuguesa tinha
finalmente atingido o nível de educação a que
todos devemos ter direito».
Alexandre Castro-Caldas Grande Prémio Bial da Medicina 2002
Regenerar
tecidos
26
humanos
Investigações recentes na área da saúde levarão,
certamente, no futuro a novas e revolucionárias
metodologias terapêuticas. Falar de regenerar
tecidos, osso, cartilagem e pele, ou mesmo utilizar
regularmente a libertação controlada de
determinados fármacos, parece algo que daqui
a alguns anos será perfeitamente normal. No
departamento de investigação 3B’s (biomaterias,
biodagradáveis, biomiméticos) da Universidade
do Minho, estes estudos estão avançados. Tudo
sob a coordenação de Rui Reis.
Entrevista a
Rui Reis
3B’s?
3B´s significa biomateriais, materiais
biodegradáveis e biomiméticos. Os biomateriais
são tudo o que são materiais de implante.
Materiais que desenvolvemos para serem
implantados no corpo humano e para
substituírem ou regenerarem determinado
tecido, por exemplo: osso, cartilagem, pele.
Biodegradáveis, são materiais propositadamente
pensados e desenvolvidos para se degradarem
no corpo humano, como nos pontos, as suturas
absorvíveis. Aqui estamos a pensar noutro tipo
de coisas mais complicadas que também vão
fazer a sua função durante determinado tempo
e depois vão-se degradar. Biomiméticos são
materiais que são capazes, por eles mesmos, de
copiarem uma determinada função biológica.
Eles são tão inteligentes que são capazes de
fazer qualquer coisa que só um sistema vivo,
um sistema biológico,
Rui Reis é director do Centro de Engenharia de Polímeros da Universidade do
Minho e do Grupo de Investigação 3B’s. Licenciatura em Engenharia Metalúrgica
e de Materiais, mestrado em Engenharia de Materiais, doutoramento em Engenharia
de Polímeros.
Os biomateriais são desenvolvidos para
utilização no corpo humano. Como?
São desenvolvidos propositadamente para
serem utilizados no interior do corpo humano
como materiais de implante para resolver
múltiplas situações, pode ser uma prótese interna
para substituir um joelho, uma válvula cardíaca,
um material qualquer para substituir uma artéria,
um vaso sanguíneo. Em muitas aplicações são
degradáveis. Nós trabalhamos sempre com
biodegradáveis, desenvolvidos para se
degradarem num determinado espaço de tempo.
Cumprem a sua função durante x tempo e
depois desaparecem, são absorvidos pelo corpo.
ser considerado para potencial aplicação pelas
empresas com que trabalhamos. Por exemplo
nos biomiméticos tivemos projectos com uma
das maiores empresas ortopédicas dos Estados
Unidos. O que nós fazemos é deles, eles pagam,
registam a patente. Somos autores, inventores,
simplesmente. Tipicamente eles pagaram o
projecto, a propriedade intelectual, fizemos
tudo sob contrato para eles. Há muitas outras
tecnologias que esperamos ser nós próprios,
através de parcerias, ou através de empresas que
nós pensamos vir a criar, a vir a desenvolver e
a comercializar. Mas há sempre que entender
que a ciência é algo mundial, uma aldeia global.
Um exemplo…
Tenho uma fractura e implanto uma placa
metálica com parafusos para fixar essa fractura.
Está lá 3/6 meses, mas depois é necessário fazer
uma segunda operação, para retirar a placa e
os parafusos. Na nossa abordagem pretendemos
fazer uma placa biodegradável, com parafusos
que também são degradáveis, com a resistência
suficiente para aguentar a fractura e consolidála durante x tempo. Ao fim desses meses começa
a desaparecer, dissolve-se, não precisa de haver
nova operação.
O que conseguem fazer crescer no
laboratório para aplicação humana?
Em termos de biomiméticos somos capazes
de fazer crescer num goblet ou num tubinho
de ensaio, a temperatura e pH fisiológicos, um
fosfato de cálcio que é exactamente igual ao
que nós temos no osso humano. Cresce com
uma composição quase exactamente igual ao
que as células são capazes de formar no interior
do corpo, chamamos a isso um revestimento
biomimético, um fosfato de cálcio que cresce
numa determinada superfície. Mas conseguimos
fazer isso fora do corpo, conseguindo
exactamente as mesmas características com que
o material se formaria numa situação em vivo.
E os biomiméticos?
São materiais que mimetizam, copiam uma
determinada função que só acontece no sistema
biológico. Conseguimos que esse material faça
qualquer coisa que tipicamente só um sistema
biológico consegue fazer.
Já fazem tudo isso em laboratório?
Em termos laboratoriais já fazemos estas coisas
e muitas mais. Muito do que fazemos está a
É um processo rápido?
Depende das situações. Há casos rápidos mas
o mais importante é que sejam, como são,
processos controláveis e reprodutíveis. Podemos
produzir esse revestimento numa determinada
superfície e implantar essa superfície no corpo.
Sem nós fazermos este procedimento muitos
materiais de implante não seriam capazes de
criar por eles mesmos esses revestimentos, não
27
seriam bioactivos e gerariam uma reacção de
rejeição, de corpo estranho.
Em vez de tomar um medicamento temos
qualquer sistema que é suficientemente
inteligente para funcionar em determinadas
condições. Por exemplo, quando tenho uma
inflamação o pH baixa e o sistema liberta o
anti-inflamatório, quando estamos ao pH
fisiológico, esse sistema nada faz.
28
Algo para ser implantado no interior do
corpo?
A ideia é, de um modo muito simples, que
em vez de se ir ao médico e tomar o medicamento de determinado em determinado
tempo é o próprio corpo e a patologia que vão
controlar a necessidade de libertação ou não
do medicamento. Um exemplo o sistema a 39
graus liberta, a 37 não liberta.
O que se introduz dentro do corpo?
Temos muitos sistemas, podem ser
membranas, partículas, nano partículas que são
injectáveis, mesmo na corrente sanguínea,
depende muito. Podemos ter sistemas que só
respondem a uma dada enzima que só existe
num determinado órgão ou local ou que está
ligada a uma da patologia. Eles podem passar
por tudo o resto e só actuam quando chegam
a esse órgão, vão responder àquela necessidade,
são os tais materiais inteligentes.
E a engenharia de tecidos humanos?
É outra área extremamente importante, talvez
aquela em que somos mais reconhecidos
internacionalmente. Tem a ver com usar, de
uma maneira muito simples, suportes
poliméricos, os tais plásticos. No nosso caso
são sempre plásticos de origem natural à base
de amido de milho, de proteína de soja, etc.
Somos os únicos no mundo que usamos
proteínas de soja e usamos plásticos que existem
nos caranguejos, nos camarões, nas lagostas. A
partir daí fazemos uma espécie de suporte, uma
estrutura tridimensional, porosa. Em alguns
casos a estrutura é definida em computador
com base em imagens de tomografia e impressa
numa impressora, tipo de jacto de tinta mas a
3 dimensões, a que chamamos bioplotter. É
nessas estruturas que vamos cultivar as célebres
células estaminais, no nosso caso tipicamente
células adultas indiferenciadas, que de um modo
simplista ainda não são células de nada. Usamos
células adultas que obtemos da medula óssea.
Semeamos essas células no tal suporte poroso,
vamos cultivá-las em determinadas condições,
muitas vezes usamos o que se chama um
bioreactor, um recipiente com determinado
fluxo que nos vai induzir a diferenciação dessas
células, que ainda não células de nada, nas
células que nós queremos. E podemos também
induzir essa diferenciação, colocando
determinados agentes activos no meio de
cultura, no material poroso (de novo libertação
controlada), ou mudando a superfície do
material poroso, para dizer àquela célula
estaminal tu agora vais ser uma célula de osso
ou vais ser uma célula de cartilagem. Claro que
estou a explicar isto de uma maneira muito
simples. Na nossa abordagem as células da
própria pessoa começam a formar osso, ou
cartilagem, no exterior do corpo. São cultivadas
durante determinado tempo e quando temos
um início de formação de osso implantamos
no paciente. Ao longo do tempo, esse plástico
que é degradável vai desaparecer e as células
vão continuar a formar osso até que vão
regenerar o defeito existente.
Só trabalham com células estaminais da
medula óssea?
Temos outras fontes de células. Por exemplo
em alguns projectos trabalhamos com células
de gordura. Conseguimos a partir da lipossucção
isolar determinadas células e transformar essas
células de gordura em células do que nós
queremos, osso, cartilagem, pele.
Podemos ter sistemas que
só respondem a uma
dada enzima que só existe
num determinado órgão
ou local ou que está
ligada a uma da
patologia.
Na nossa abordagem as
células da própria pessoa
começam a formar osso,
ou cartilagem, no exterior
do corpo.
Explique-me, podem fazer ossos inteiros
para aplicar num paciente?
É preciso perceber que ainda não podemos,
nem nós nem ninguém no mundo, fazer um
osso inteiro ou coisas desse género. Um dia
isso pode e deve vir a ser possível. Mas o que
conseguimos fazer pode ser clinicamente muito
relevante. Hoje em dia a situação normal é ter
um acidente, fico com um defeito ósseo e o
que me vão fazer é retirar um pedaço por
exemplo do meu osso ilíaco e vão-me colocar
esse enxerto onde preciso. Obviamente fico
com um defeito no local onde retirei esse
pedaço de osso e há muitos outros problemas.
Outra alternativa é ir buscar ossos a cadáveres
ou a bancos de ossos, mas podem trazer doenças,
há incompatibilidades, falta de disponibilidade.
E material sintético propriamente dito não
existe nenhum que realmente ajude a resolver
este tipo de situações. O que nós queremos é
criar alternativas que funcionem e gerem novas
terapias.
O que me fala já é aplicado clinicamente?
Temos muitas tecnologias aqui no laboratório
que estão já a funcionar, embora existam muitas
mais coisas que têm de ser testadas, melhoradas.
Na ciência cada passo é um passo…
29
30
Mas já testaram em animais?
Temos algumas tecnologias que funcionam
bem e está tudo testado em animais. O que
não posso é chegar, pegar em células e implantar
num paciente, mesmo que haja consentimento
informado e que tudo funcione. Trabalhamos
com protocolos éticos muito rígidos. Qualquer
estudo clínico sério custa milhões de euros.
Não há nenhuma universidade do mundo, não
é problema de Portugal, que tenha peso
suficiente para passar estas coisas para a clínica
por si mesma. Tem de haver grandes empresas
envolvidas. E, neste momento, conseguimos
trabalhar com grandes empresas internacionais,
temos muitos contactos, muitos projectos
comuns com empresas europeias, americanas,
japonesas.
Mas no estrangeiro já aplicam os vossos
conhecimentos em termos práticos?
Vamos imaginar que tínhamos todo o
financiamento necessário, tudo estivesse a
funcionar. É necessário que possa replicar tudo
o que faço em laboratório em condições
completamente diferentes, e isso são questões
infraestruturais. O que tenho aqui é um
laboratório no qual trabalhamos que não tem
as condições necessárias para depois usar os
materiais que produzimos na clínica. Não estou
a trabalhar em salas limpas, não estamos vestidos
daquela maneira que as pessoas conhecem, não
estamos a usar boas práticas de fabrico nem
boas práticas de laboratório (embora tenhamos
um sistema quase único de qualidade na
investigação) nem temos todas as condições
necessárias em termos de certificação para passar
isto para a clínica.
Então?
Isto parece uma coisa fácil de resolver, mas
num País como o nosso é extremamente difícil,
mesmo muito difícil. Temos falta de espaços
e condições. Estas coisas que funcionam aqui,
neste laboratório, não as podemos transladar
para a prática por questões infraestruturais. Por
É preciso perceber que ainda
não podemos, nem nós nem
ninguém no mundo, fazer
um osso inteiro ou coisas
desse género. Um dia isso
pode e deve vir a ser possível.
outro lado, em termos médicos, em média,
qualquer tecnologia ou material que se
desenvolve hoje, que seja apresentado nos
congressos, nas publicações científicas, demora
6 a 8 anos até aparecer de facto na prática
clínica. É assim com os medicamentos, é assim
com próteses, é assim com este tipo de situações,
particularmente este tipo de soluções que
envolvem simultaneamente materiais e células,
os chamados produtos combinatórios.
E já há legislação?
Nos Estados Unidos já há alguma legislação
nesta matéria, na União Europeia está a nascer
uma directiva. Os produtos de engenharia de
tecidos não são um medicamento, não são um
material, não são um produto biológico e não
há uma envolvente legal que me diga como é
que posso pegar em células de uma pessoa,
misturo ali, cultivo, crio um produto e depois
implanto. Temos de perceber que o que
desenvolvemos hoje se calhar vai aparecer na
clínica daqui a 6/8 anos, que é a média normal
de qualquer uma destas tecnologias.
Não devia ser um processo mais rápido?
Isto demora tempo, há procedimentos que
têm de ser optimizados e tudo tem que ser
feito com cautela. Aparece aqui gente, médicos,
dentistas, a quererem usar isto nos hospitais
amanhã. Digo sempre: nem pensar. Não estamos
nessa fase porque temos que avançar com a
certeza não só das tecnologias, mas da esterilidade, da pureza, de um conjunto de coisas
que num laboratório de investigação não se
replicam da mesma forma.
Conseguem a expansão e multiplicação
das células estaminais?
São situações perfeitamente possíveis. Há
grupos, mesmo aqui em Portugal, que trabalham
na expansão de células estaminais. Há muitas
metodologias que no laboratório já funcionam
muito bem. Sabemos que será algo crítico para
o futuro desta área, disso ninguém tem dúvidas.
A engenharia de tecidos e as terapias celulares
com células estaminais podem ser muitíssimo
importantes, podem revolucionar totalmente
a medicina, mas podem, também, somente vir
a resolver um pequeno conjunto de coisas
embora extremamente importantes. Depende
de como tudo evoluir. Há muitas experiências
que se fazem nos laboratórios a nível mundial
que ainda não se podem usar directamente na
clínica porque há muitos pontos a resolver.
Para haver um maior reconhecimento
social as vossas investigações têm de ter
uma realidade prática.
Há uma grande necessidade dos investigadores
que trabalham nestas áreas mais médicas de ver,
de facto, o seu trabalho aplicado no bem-estar
das pessoas, em salvar vidas. Um grande
objectivo, de tudo o que fazemos, é passar o
nosso trabalho à prática. Há coisas que nunca
vão passar à prática clínica, serão apenas mais
um degrauzinho para outra pessoa qualquer
pegar nisso e transformar aquilo em qualquer
tecnologia, mas esperamos que também sejamos
nós, em parceria com empresas, a levar uma
ou duas coisas para aplicação médica.
Em termos futuros o que poderá ser
criado?
Quando começamos a trabalhar queríamos
fazer materiais para substituir tecidos. Com as
células estaminais estamos cada vez mais, já
estamos nisto há diversos anos, numa prática
de regeneração de tecidos. O material é uma
ajuda para qualquer coisa de biológico que me
vai fazer o meu próprio tecido e resolver
determinado problema. É nessa linha que
acreditamos. Acreditamos que seremos capazes
de regenerar tecidos e queremos resolver por
exemplo problemas osteocondrais: quando
tenho um problema de cartilagem que penetra
até à parte do osso, como os joelhos, temos
dois tecidos diferentes em termos biológicos e
mecânicos. Se calhar tenho de ter dois suportes
diferentes, com dois materiais diferentes, ligados
um ao outro, tenho que cultivar células, mas
diferenciá-las num caso para cartilagem e noutra
para osso. Tenho aqui uma situação muito
complicada. Este é um projecto que estamos
a desenvolver com empresas belgas, alemãs,
com a cruz vermelha austríaca. Chama-se
HIPPOCRATES e se os resultados que estamos
a obter neste projecto de facto forem tão bons
como parecem ser, daqui a 6 anos devemos ter
qualquer coisa a funcionar na prática.
Onde apresentam tipicamente os vossos
trabalhos de investigação mais fortes?
Tipicamente nos Estados Unidos e foi aí que
começamos a ser reconhecidos. Dos EUA
passamos a ser reconhecidos na Europa e da
Europa, espero, o sejamos realmente um dia
em Portugal. Temos de acreditar muito e quase
de abdicar de ter vida própria. Mas no final eu
acho sempre que vale a pena e que vamos
ganhar muito mais vezes batalhas muito mais
difíceis. O que está feito já não conta só interessa
o que vamos ser capazes de fazer.
Temos de perceber que o que desenvolvemos
hoje se calhar vai aparecer na clínica daqui a
6/8 anos, que é a média normal de qualquer
uma destas tecnologias.
31
32
Procurando vencer o cancro:
a hora dos tratamentos
biológicos.
Rui Mota Cardoso
Introdução
O IPATIMUP desenvolve desde 1996
uma extensa actividade na promoção
do pensamento e cultura científica.
O Instituto de Patologia e Imunologia
Molecular da Universidade do Porto
(IPATIMUP) é um instituto de investigação
fundado em 1989 sob a égide da Universidade
do Porto e que possui desde 2000 o estatuto
de Laboratório Associado ao Ministério da
Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.
O IPATIMUP desenvolve actualmente
actividades nas áreas de: a) Investigação em
Oncologia, Genética Populacional e Forense;
b) Formação de Recursos Humanos
especializados em Oncologia e Oncobiologia;
c) Prestação de Serviços de Diagnóstico e
Consultadoria; d) Promoção e Divulgação da
Ciência para a Sociedade Civil. A actividade
do IPATIMUP tem por objectivo optimizar
a interface entre a investigação básica e a aplicada,
desenvolvendo a formação de recursos humanos
especializados e promovendo interacções entre
diversos domínios científicos (Medicina,
Biologia, Genética, Farmácia, Bioquímica).
Através da sua Unidade de Educação
Contínua e Difusão Científica (UECDC), o
Realizaram-se na Fundação Calouste Gulbenkian e no auditório do
museu de Serralves, no Porto, dois colóquios subordinados ao tema
Medicina e Cancro, no sentido de divulgar e promover os últimos
avanços científicos levados a cabo por alguns dos maiores
investigadores do país nesta área.
Numa altura em que a terapêutica convencional apresenta ainda
resultados muito modestos e, por vezes, efeitos indesejáveis na
prevenção e tratamento das doenças cancerosas, a nova vaga de
tratamentos biológicos constitui uma auspiciosa tentativa de
progresso e esperança.
Apesar de terem sido directamente extraídos da conferência, todos
os textos foram criteriosamente revistos pelos seus autores.
IPATIMUP desenvolve desde 1996 uma
extensa actividade na promoção do pensamento
e cultura científica. A necessidade de divulgar
a Ciência, de forma qualificada e civicamente
eficaz, hoje e no próximo futuro, tornou
fundamental a existência de um conjunto
planificado e contínuo de iniciativas dirigidas
à sociedade civil, com particular destaque para
a população escolar. Um exemplo destas mesmas
iniciativas é o conjunto de colóquios sobre
Cancro realizado nos últimos dois anos, em
conjunto com a Fundação Calouste Gulbenkian
e a Fundação de Serralves. Esta iniciativa, na
lógica da transmissão dos conhecimentos actuais
sobre a génese, o desenvolvimento e a potencial
prevenção das doenças cancerosas, contou com
a colaboração de médicos e cientistas das
Faculdades de Medicina e de Ciências da
Nutrição e Alimentação das Universidades do
Porto, Coimbra e Lisboa, assim como dos
Centros do Instituto Português de Oncologia
do Porto e Lisboa e dos Hospitais Universitários
de Coimbra, Lisboa e Porto.
Foi com satisfação que no IPATIMUP
registamos grande adesão dos professores de
todo o país a estas iniciativas, o que julgamos
traduzir a associação feliz entre um corpo
docente ainda motivado e um Laboratório
Associado que conscientemente devolve à
comunidade o saber que essa comunidade lhe
permite investigar.
33
Introdução ao
Tratamento Biológico
do Cancro
Manuel Sobrinho Simões
34
Não vamos falar de prevenção do cancro,
vamos utilizar os conhecimentos que adquirimos
o ano passado e outros que vamos tentar
explorar, para falar em tratamento. Não no
tratamento que tem sido utilizado classicamente,
mas num tratamento que começa a ser
inteligente, que começa a ser baseado nos
conhecimentos da moderna biologia molecular
Um dos aspectos mais importantes da ciência
é a repetição. No IPATIMUP, no colóquio
conferência do equinócio, sobre poesia e ciência,
falou-se da Poiesis (Poesia) e da Hematopoiesis,
que quer dizer criar sangue. A discussão
estabeleceu-se entre quem faz ciência e quem
faz poesia. Todas as pessoas gostam de ouvir
Bach, acham-no extraordinário. E uma das
justificações para isso é a repetição. Ou a
redundância da música de Bach. O mais
interessante na aprendizagem é a pessoa perceber
o que se está a repetir. Perceber, antes de mais
nada, o padrão, a organização, até se for preciso
a monotonia. Só depois se aprenderá a pensar
a diferença, a excepção.
Vem tudo isto a propósito da célula cancerosa.
O que distingue a célula normal da célula
patológica? A célula normal tem ADN, o ADN
faz ARN, o ARN faz uma proteína e essa
proteína pode ficar no citoplasma, pode ser
exportada, ou pode ser um receptor de
membrana. A primeira noção a reter é que as
células neoplásicas fazem exactamente isto. Do
ponto de vista bioquímico as células neoplásicas
são praticamente iguais às nossas, a não ser em
condições excepcionais. Depois, a célula normal
agarra-se às células vizinhas e, assim, constitui
um tecido. Esta constituição de um tecido é
também muito parecida nos tumores. Os
tumores não são um conjunto de células
dispersas, mas sim um conjunto de células
organizadas na forma de tecido.
O cancro é um tecido novo, é uma neoplasia
(neo/novo e plasia/tecido). É um tecido novo
que invade, que não respeita as fronteiras.
Numa cicatriz fazemos um tecido novo. Mas
a nossa cicatriz pára no sítio certo. Se a cicatriz
epitelial (por exemplo da pele ou, melhor, da
epiderme) começar a crescer para além do seu
lugar próprio e invadir o tecido conjuntivo
subjacente, passamos a ter uma espécie de
cancro epitelial (um carcinoma). As cicatrizes
hipertróficas e invasoras são uma espécie de
tumor, pois perderam a capacidade de parar na
fronteira. Esta alteração de comportamento,
característica do tecido neoplásico, resulta de
variadíssimas alterações celulares. Por exemplo,
de modificações, por excesso, da interacção
entre as proteínas que estão à superfície das
células e os estímulos que elas recebem das
células vizinhas, ou que vêm através do sangue.
Em alguns cancros há alterações genéticas que
levam ao aumento do número de receptores
35
da membrana, tornando as células mais móveis
e mais invasoras.
Para tratarmos infecções damos drogas, os
antibióticos. Os antibióticos são drogas que
matam as bactérias, os vírus ou os fungos: são
Há truques para impedir que a célula faça citocídas. Há drogas que não matam as células,
este percurso, isto é, que a célula utilize o mas impedem que elas proliferem, ficando à
excesso de proteínas e/ou que essas proteínas disposição das defesas do organismo: são drogas
sigam para a membrana. Estes receptores de citostáticas. Assim, vamos administrar umas
membrana são fundamentais para receber drogas cuja acção é matar as células cancerosas
estímulos de fora. Às vezes há tumores, como e, outras, cuja acção é impedir que elas prolio tumor da mama, onde existe um destes ferem, ficando quiescentes e podendo ser
receptores que recebe estímulos do factor de destruídas pelas nossas defesas. A quimioterapia
crescimento epidérmico.
e a radioterapia funcionam assim, embora
geralmente com pouca especificidade. Há drogas
Se tivermos uma
que se dão em quimiocélula cancerosa que Do ponto de vista bioquímico as células terapia e que matam as
em vez do número neoplásicas são praticamente iguais às células neoplásicas, isto é,
normal de recepsão drogas citocídas ou citonossas, a não ser em condições
tores tiver uma amtóxicas (alguns medicaexcepcionais.
plificação génica e
mentos em vez de “matar”
forem codificados
as células neoplásicas
muitos mais receptores, mesmo tendo uma convencem-nas a suicidar-se). Há, por outro
quantidade normal de factor de crescimento, lado, outras drogas que são sobretudo ou
este mecanismo está activado. Então, qual é o exclusivamente citostáticas. O mesmo se passa
tratamento biológico neste caso? Um bom com os chamados tratamentos biológicos
tratamento biológico é fazer um anticorpo “inteligentes”, isto é, eles não se distinguem
contra este receptor. Um outro tratamento da quimioterapia por serem mais citocidas ou
seria fazer uma droga que bloqueasse a sinalização mais citostáticos, mas sim por interferirem espedo receptor para o interior da célula. Vamos cificamente em alterações nas vias moleculares
discutir os truques, os tratamentos para fazer e/ou bioquímicas das células neoplásicas.
com que este e outros sistemas deixem de
funcionar.
Bloquear os
receptores das células
tumorais sem
prejudicar as células
normais
Leonor David
36
Vou usar o exemplo de um medicamento uma renovação celular muito limitada.
que está em utilização clínica. O nosso alvo
vai ser um receptor de membrana, uma proteína
Quando temos uma diarreia hemorrágica,
que, como todas as proteínas, são codificadas porque temos uma infecção digestiva, temos
por um gene que é transcrito para um uma enorme destruição do nosso tecido epitelial.
mensageiro. No caso que vamos mencionar a É este mecanismo que vai permitir que haja
proteína fica ancorada à membrana celular onde reconstituição do tecido normal.
desempenha uma função fundamental para a
sobrevivência das células normais, que depende
Na situação patológica tumoral este sistema
da ligação de factores de crescimento. Ao de hiper-sinalização vai fazer com que exista
ligarem e activarem o receptor, os factores de um crescimento anormal das células,
crescimento fazem com que se desencadeiem desorganizado, desordenado, mesmo na ausência
cascatas de sinalização intracelular que levam de estímulos exagerados do meio externo. A
a célula a dividir-se.
célula tumoral difere
Neste modelo a célula Um cancro onde este mecanismo de a p e n a s q u a n t i tumoral tem, nalguns amplificação génica (neste caso do gene tativamente da célula
cancros, sobretudo no
normal. Não estamos a
cancro da mama, uma ERBB2) é muito frequente é o cancro procurar algo novo na
da mama.
alteração genética que
célula tumoral. A célula
consiste numa amplitumoral raramente faz
ficação do gene. O que é que acontece numa uma coisa muito diferente da normal e é aí que
amplificação génica: em vez de uma cópia há reside parte da dificuldade em encontrar novos
muitas (10 ou 20) cópias do gene. Há uma tratamentos.
quantidade muito grande de DNA (ADN)
codificante para aquele gene, logo há muitos
Um cancro onde o mecanismo de
mensageiros que são produzidos, há muita amplificação génica (neste caso do gene ERBB2)
proteína e há imensos receptores que aparecem é muito frequente é o cancro da mama. Quando
na membrana. Isto vai desencadear uma cascata esta alteração existe, a enorme quantidade de
de hiper-sinalização que tem consequências na receptores produzidos é a causa do cancro.
fisiologia das células. A célula normal usa este Identificamos as neoplasias mamárias que têm
mecanismo para reconstituir um tecido como esta alteração genética usando anti-corpos que
acontece todos os dias na nossa pele e no nosso reconhecem a grande quantidade de proteína
tubo digestivo, mas que já não acontece em que está presente na superfície das células.
órgãos como o cérebro ou o coração, onde há
Enganar os receptores
que mantém as
células tumorais a
crescer
Raquel Seruca
Foi tentado, depois, criar uma droga que
interferisse neste sistema. E a droga é um anticorpo que agirá “contra” este receptor e que
consiste, portanto, num tratamento que decorre
directamente do conhecimento da biologia das
células tumorais.
Os primeiros resultados da aplicação clínica
do medicamento, adicionado ao tratamento
quimioterápico clássico, indicavam que o tempo
de sobrevida (sem progressão da doença) nos
indivíduos aumentava. São resultados muito
relevantes, porque modificaram significativamente o percurso da doença. O tratamento
“contém” o tumor no estado em que ele está
naquele momento. Se considerarmos um cancro
da mama com 2 cm, introduzido este tratamento, vai haver um bloqueio dos receptores
e do seu crescimento adicional.
A quimioterapia clássica é uma medicação
que se dirige a células que têm capacidade de
divisão celular. Pode ser, quando eficaz,
destrutiva das células normais, ao passo que as
terapias de que estamos a falar são terapias que
limitam o crescimento e que são específicas das
células tumorais com determinadas alterações
genéticas. É por isso que normalmente se faz
uma terapia combinada.
Saliento os dois actores principais na minha
apresentação: o EGFR, um receptor de
membrana para o factor de crescimento
epidérmico, e o cancro de pulmão.
Há uma série de proteínas que têm um papel
activo na renovação celular. Neste processo
participam receptores de membrana, como é
o caso do EGFR, e factores de crescimento
externos à célula, que regulam e controlam a
activação destes receptores de membrana. Após
activação destes receptores são activadas proteínas
intracelulares que fazem a transmissão de sinal
a proteínas nucleares que regulam directamente
a divisão ou a morte celular.
Toda esta dinâmica que passa pela ligação do
factor de crescimento externo ao receptor de
membrana, sua activação e posterior transmissão
de sinal que levam ao controle de processos de
regulação nuclear, é um processo bem
organizado e controlado na célula normal.
O EGFR é uma proteína transmenbranar
com três domínios: o domínio extra-celular da
proteína, o domínio transmembranar (atravessa
a membrana celular) e o domínio citoplasmático
que se liga às proteínas intracelulares de
transmissão de sinal. O domínio extracelular
tem uma zona de ligação ao factor de
crescimento e o domínio citoplasmático tem
uma zona de activação da proteína. No
momento em que o EGFR se liga a um factor
de crescimento extra-celular fica activado, a
37
zona de fosforilação da proteína fica activa, e
passa a accionar uma cascata de sinalização
intracelular.
De início pensou-se que todos os
doentes que tinham expressão
aumentada do EGFR respondessem de
uma forma ampla, mas não foi isso
que aconteceu.
38
Os EGFR quando activado modifica o estado
celular levando a um aumento da divisão celular
e, em alguns casos, a um aumento da sobrevida
celular. Ambos os processos condicionam o
crescimento celular. Em muitos casos esta activação é crucial numa situação absolutamente
normal como é o caso de uma lesão de um
determinado tecido onde é necessário fazer
uma renovação celular.
E o que se passa com o EGFR no cancro?
Muitas vezes há um aumento dos factores de
crescimento que se ligam ao domínio extracelular do receptor e assim a uma maior
estimulação do EGFR; noutros casos, o próprio
receptor fica permanentemente activo independentemente da existência ou de estimulação
pelo factor de crescimento, sendo capaz de
induzir permanente sinalização intracelular.
Esta situação acontece nos casos de mutação
do EGFR, por exemplo.
No cancro do pulmão o papel do EGFR já
foi demonstrado.
O cancro do pulmão ocupa o primeiro lugar
em termos de incidência e mortalidade no
homem, e é o quarto cancro em termos de
incidência e o segundo em termos de mortalidade na mulher. No cancro do pulmão as
células tumorais exprimem mais EGFR do que
as chamadas células normais de suporte do
tumor. A expressão aumentada de EGFR ocorre
entre 40% a 80% dos casos de cancro do pulmão
(a percentagem depende do tipo de cancro do
pulmão). Sendo esta expressão específica das
células tumorais e muito frequente, levantou
a hipótese do bloqueio do EGFR por uma
pequena molécula poder constituir uma nova
abordagem terapêutica no tratamento de doentes
com cancro do pulmão. E assim desenvolveramse anticorpos e pequenos péptidos que
bloqueavam a actividade do EGFR.
Este bloqueio da actividade do EGFR pode
ser realizado ao nível da ligação entre o factor
de crescimento e o receptor (anticorpos), ou
ao nível da zona de activação intra-celular da
proteína (pequenos péptidos). Foi exactamente
a estratégia de bloquear a zona de activação da
proteína que foi seguida para desenvolver drogas
que interrompem o mecanismo de ligação do
domínio citoplasmático de activação do receptor
às proteínas que são importantes para transmissão
de sinal. Criou-se então um inibidor de EGFR
que ocupa a zona activa da proteína (zona de
fosforilação) e que impede a transmissão de
sinal mediado pelo EGFR. E os doentes com
cancro do pulmão resistentes a quimioterapia
passaram a ser tratados este péptido anti-EGFR.
De início pensou-se que todos os doentes
que tinham expressão aumentada do EGFR
respondessem de uma forma ampla, mas não
foi isso que aconteceu. Apenas 28% dos doentes
com cancro no pulmão responderam
positivamente.
O que há em comum nestes indivíduos que
responderam? Os doentes que responderam
aos inibidores do EGFR têm uma proteína
mutada.
E porque é que estes doentes com o EGFR
mutado foram os únicos a ter uma boa resposta
a este péptido anti-EGFR?
Porque nestes doentes o cancro depende
totalmente do EGFR para crescer ou sobreviver.
Com o EGFR mutado a célula torna-se
independente da existência do factor de
crescimento extra-celular e passa a activar de
uma forma permanente e independente do
ambiente extra-celular uma série de proteínas
intracelulares que leva ao aumento da divisão
celular ou aumento na capacidade da sobrevida
celular, levando ao crescimento tumoral.
E a resposta dá-se nos doentes porquê?
Porque a transmissão de sinal é bloqueada
entre o receptor e as proteínas de sinal intracelulares levando à perda de sobrevida celular
com consequente regressão tumoral.
Esta resposta positiva ao tratamento só ocorre
nos doentes com EGFR mutado porque nos
outros casos de cancro do pulmão existem
provavelmente outras proteínas que sinalizam
para vias independentes do EGFR para a
manutenção do crescimento tumoral.
Vários outros estudos demonstraram a
vantagem desta nova terapia anti-EGFR em
cancro do pulmão, sobretudo em termos de
sobrevida.
Nos doentes que apresentavam mutação do
EGFR e que eram tratados com péptidos antiEGFR, a taxa de sobrevida era significativamente melhor do que a dos doentes não
tratados. Até aqui só existiam boas notícias; no
entanto existem casos de resistência à droga
por diversos mecanismos, mesmo nos doentes
com mutação do EGFR. Ou porque as células
adquirem outras mutações que activam a
proteína mesmo estando bloqueadas com o
péptido, ou por mecanismos que fazem com
que a célula seja capaz de bombear a droga
para o meio extra-celular. Nestes casos devemos
procurar novas formas de vencer a resistência
e encontrar drogas que actuem nas proteínas
imediatamente abaixo do EGFR. Em casos de
resistência ao EGFR, não devemos actuar no
próprio receptor, mas nas proteínas que estão
na via de sinalização ou no próprio núcleo, ou
seja nas proteínas intracelulares sob o controlo
do EGFR. O futuro está nas mãos daqueles
que investigam o EGFR e o cancro.
39
Inibir enzimas cruciais
para a sobrevida das
células tumorais
José Manuel Lopes
40
Existem drogas que actuam especificamente
em CML (Chronic Myeloid Leukemia), um
tumor “líquido” com origem na medula óssea,
e em GIST (Gastro-Intestinal Stromal Tumour),
um tumor “sólido” com origem no tecido
conjuntivo do tubo digestivo. Este tipo de
estratégia terapêutica, que utiliza alvos
moleculares como um princípio básico, abriu
uma nova era pioneira no tratamento da
Leucemia Mielóide Crónica e do GIST, e está
na origem de novas terapêuticas do cancro.
Estas drogas actuam em receptores de membrana
e em proteínas citoplasmáticas. A droga (o
mesilato de imatinib) é um inibidor de cínases
das tirosinas, e inibe de forma específica estas
duas proteínas que são receptores ou proteínas
com actividade tirosina cinásica implicadas
nestes tumores.
A Leucemia Mielóide Crónica é uma
neoplasia maligna que tem origem em células
precursoras da medula óssea. Nestas situações
o que se verifica é que em vez de células
normais o que observamos são células
(leucócitos) a mais e anormais. Estas células em
grande número podem afectar órgãos, como
por exemplo o baço, que pode atingir dimensões
muito grandes, tornando-se palpável.
Na Leucemia Mielóide Crónica existe uma
alteração genética estrutural, que foi baptizada
com o nome de cromossoma de Filadélfia e
que resulta de uma translocação balanceada e
recíproca entre uma parte do gene ABL, que
existe no cromossoma 9, e outra parte do gene
BCR, que existe no cromossoma 22, dando
origem a um novo cromossoma que é anormal,
que tem um gene de fusão, que depois de
traduzido dá origem a uma proteína que está
permanentemente activada.
Esta alteração genética foi muito apetitosa
para se perceber se era possível desenvolver
uma droga, porque é esta alteração genética
que explica a Leucemia Mielóide Crónica.
Quero deixar bem claro que esta terapêutica
não é curativa. Estamos a falar de terapêutica
de controlo. A cura de uma Leucemia é possível
com transplante de medula óssea. Estamos
portanto a tentar criar períodos de sobrevida
mais alongados e com melhor qualidade aos
doentes usando este tipo de droga.
Em situações normais o ATP liga-se ao
domínio cinásico e permite a fosforilação de
substratos que estão numa cadeia e que vão dar
origem à sinalização intracelular. Do ponto de
vista molecular, a translocação desse tal
cromossoma de Filadélfia não é mais do que
a aposição de uma parte do BCR, que tem
uma zona de controlo da expressão do seu
próprio gene e vai fazer com que o gene ABL
seja desregulado e activado permanentemente
(Ver figura).
O que é que faz a droga? A droga é
um péptido que não vai deixar que o
ATP encaixe.
utilização só é aceite como uma alternativa. Os
efeitos esperados muitas vezes não são tão
fantásticos porque as lesões já progrediram de
tal forma que a massa de células que é necessário
destruir ou fazer parar já é muito grande. Depois
da falência de um esquema de terapêutica
biológica é muito significativo o aumento da
sobrevida (superior a 36 meses) nos doentes
que foram submetidos à terapêutica com esta
droga.
Tumores aparentemente muito distintos
(Leucemia Mielóide Crónica e GIST) partilham
mecanismos celulares muito idênticos e podem
ter alternativas terapêuticas semelhantes. Há
muitos mecanismos redundantes, isto é, que
de formas diferentes regulam processos
biológicos semelhantes, seja a morte ou a
proliferação celular.
O que é que faz a droga? A droga é um péptido
que não vai deixar que o ATP encaixe. Não havendo
sinalização numa célula que está anormal o que se
espera é que deixe de haver estímulos de proliferação
e estímulos que mantêm as células sobrevivas (Ver
figura).
Este conceito provou-se realmente muito
eficaz. O problema destas drogas é que a sua
As toxicidades deste tipo de tratamento (que
é um tratamento oral, tipo comprimido)
existem, embora não sendo muito intensas,
têm de ser consideradas. Sabe-se que este tipo
de tratamento não é eficaz em todos os tipos
de tumores e também se sabe que há tumores
que respondem inicialmente e, de um momento
para o outro, têm um surto de explosão, as
chamadas resistências adquiridas. Há portanto
que esclarecer quais os mecanismos de fuga ao
efeito da droga.
41
Paula Soares
42
Deter os mensageiros intracelulares
determinantes do crescimento tumoral
Há um gene denominado BRAF que está
associado a neoplasias da pele, tiróide e intestino.
O gene que está alterado neste tipo de patologias
é também chamado de mensageiro secundário,
um mensageiro intra-celular. Temos o factor
de crescimento que se liga ao seu receptor de
membrana, esse receptor vai sofrer mudanças
de configuração (vai ser fosforilado, vai receber
resíduos de fosfato), entra em contacto com
outras proteínas no interior do citoplasma, vai
passar pelo BRAF (e o BRAF por sua vez
transmite o sinal mais abaixo) até que o sinal
entra no núcleo levando à activação de proteínas
nucleares.
O BRAF é o gene que deve estar no lugar
certo na hora certa, ou seja, é imprescindível
que a proteína esteja no local onde o sinal está
a ser transmitido, senão ocorre uma desregulação.
É ainda uma proteína que se encontra no
citoplasma de uma forma inactiva. A sua
activação dá-se pela troca de resíduos de fosfato.
Uma vez activada, a proteína vai mudar a sua
forma e vai permitir que outras proteínas do
citoplasma se liguem a ela e transmitam o sinal
para a proteína seguinte. É importante que logo
que este sinal seja transmitido a proteína volte
rapidamente à forma inactiva e não transmita
mais sinal. Tem de ser um processo altamente
controlado.
Os melanomas não sendo as formas mais
frequentes dos tumores da pele, são os mais
agressivos, porque têm maior capacidade para
invadir e transferir-se para órgãos distantes. A
alteração genética do BRAF é responsável por
grande parte dos melanomas, 10% dos cancros
do cólon e uma percentagem considerável dos
cancros da tiróide.
Verificou-se que a alteração da proteína nessas
várias patologias era sempre no mesmo local,
portanto uma alteração muito específica. O
que se passa nestes casos é que a alteração dáse num sítio onde normalmente se dá a adição
dos resíduos de fosfato, e esta mutação
comporta-se como se a molécula estivesse
continuamente activada, ou seja, sem que haja
uma activação do receptor, a molécula vai estar
sempre de uma forma activa, sem capacidade
de voltar à sua posição inactiva.
Depois da identificação desta alteração genética
estava em causa saber o que é que a mesma
provoca nas células. Nestas circunstâncias,
colocam-se células normais que estão a crescer
em tubos de ensaio, inserimos lá o gene alterado
e vemos qual o efeito desta alteração no
comportamento daquelas células. Quando isto
Esta alteração genética é responsável por grande
parte dos melanomas, 10% dos cancros do cólon
e uma percentagem considerável dos cancros da
tiróide.
43
foi feito verificou-se que as células que passavam
a ter o gene BRAF alterado, passaram a dividirse mais, aumentando o número de células.
Verificou-se também que essas células se mexiam
muito mais do que as outras. Para além disso,
quando estas células eram postas sobre matrizes
artificiais, verificou-se que elas eram capazes,
ao contrário das células sem o gene mutado,
de invadir estas matrizes. Verificou-se ainda
que nas lesões induzidas por estas células com
BRAF mutado se encontravam muito mais
vasos do que nos outros tumores. Isto é lógico,
porque um tumor precisa de crescer e para isso
precisa de uma grande quantidade de oxigénio,
nutrientes, como qualquer outra célula.
O desafio era criar uma molécula que
encaixasse perfeitamente no local muito
específico da proteína que estava alterado, o
local activo onde o BRAF está mutado,
impedindo com isso a ligação às outras proteínas
e a transmissão do sinal. Essa molécula foi obtida
e está agora a ser testada. Em 2002 foi descoberta
a mutação nestes tumores, em 2003 realizaramse os primeiros testes in vitro e ainda hoje se
continuam a testar os efeitos desta droga.
Na experimentação com ratinhos, verificouse que os que eram tratados com esta droga
havia menor formação de tumores e quando
eles apareciam eram menos irrigados, possuíam
menor número de vasos.
Em doentes terminais com melanoma tratados
com a droga não se verificou a cura, mas um
controlo da doença. No subgrupo de doentes
com carcinoma do cólon, houve uma paragem
do crescimento do tumor e relativamente aos
carcinomas da tiróide ainda não existem
resultados visíveis.
Resta falar das esperanças para o futuro. É
importante aumentar a especificidade do
fármaco, é preciso esperar pela comprovação
dos ensaios clínicos relativamente à utilização
destas moléculas, e está-se a tentar já ensaios
clínicos em conjunto com outras terapias.
Paula Ravasco1
1Unidade
Isabel Monteiro-Grillo1,2
2Serviço de Radioterapia do Hospital de Santa Maria, Avenida Prof. Egas Moniz 1649-035,
Lisboa
[email protected]
[email protected]
de Nutrição e Metabolismo - Instituto de Medicina Molecular da Faculdade de
Medicina da Universidade de Lisboa, Avenida Prof. Egas Moniz 1649-028 Lisboa
Pedro Marques Vidal1
[email protected]
Maria E. Camilo1
[email protected]
44
Cancro:
Introdução
É possível que a malnutrição em oncologia
seja multifactorial, embora a localização do
tumor e os sintomas, i.e. anorexia, alterações
de paladar, disfagia, náuseas, vómitos, diarreia,
possam comprometer ainda mais a capacidade
funcional e nutricional dos doentes. A interacção
entre o estado nutricional e a ingestão dietética,
os sintomas e/ou doença/factores relacionados
com o tratamento, é uma combinação complexa
que pode determinar a Qualidade de Vida
(QV) dos doentes.
A Qualidade de Vida é uma dimensão
multifactorial subjectiva, que reflecte o estado
funcional, a percepção da saúde, da doença/tra-
tamento(s) e sintomas. Apesar da associação
sugerida entre o agravamento do bem-estar
geral/morbilidade e a deterioração nutricional,
a interacção entre nutrição e QV permanece
subestimada. Embora os cuidados nutricionais
em doentes com cancro sejam apontados como
auspiciosos, até à data são escassas as demonstrações que suportem a interacção entre a
nutrição e a QV.
Neste contexto, este estudo transversal
efectuado em doentes de cancro da cabeça e
pescoço, esófago, estômago e colo-rectal foi
desenhado para explorar as potenciais interacções
entre vários factores relacionados com a doença
e relacionados com a alimentação, factores que
45
doença e nutrição são
determinantes chave da
Qualidade de Vida dos doentes*
é possível que estejam implicados na Qualidade
de Vida destes doentes. Os nossos objectivos
foram 1) avaliar a Qualidade de Vida, estado
nutricional e ingestão dietética tendo em conta
o estadio da doença e intervenções terapêuticas,
2) determinar potenciais interrelações, e 3)
quantificar o impacto relativo do cancro/tratamentos e/ou factores relacionados com a
nutrição, na QV dos doentes.
*O presente artigo é uma tradução integral do artigo original
publicado em inglês, com a referência bibliográfica:
Ravasco P, Monteiro-Grillo I, Marques-Vidal P, Camilo ME.
"Cancer: disease and nutrition are key determinants of
patients' Quality of Life". Supportive Care in Cancer 2004;
12: 246-252.
O impacto da Nutrição
nos doentes oncológicos.
Paula Ravasco, 2005
Unidade de Nutrição e Metabolismo – Instituto de Medicina Molecular,
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
46
Doentes e métodos
Desenho do Estudo e População de Doentes
O presente estudo, aprovado pela Comissão
de Ética do Hospital e conduzido de acordo
com a Declaração de Helsínquia de 1975,
versão revista em 1983, foi estruturado para
investigar as interrelações entre cancro/tratamento e factores relacionados com a nutrição,
e a QV dos doentes. Entre Julho de 2000 e
Setembro de 2002, todos os doentes ambulatórios com cancro de cabeça e pescoço (CP),
esófago (ESO), estômago (EST) e colo-rectal
(CR) referenciados para Radioterapia, foram
considerados elegíveis; apenas os doentes com
outras doenças crónicas foram excluídos. Todos
os participantes deram o seu Consentimento
Informado para participarem do estudo. Antes
do planeamento da radioterapia, para cada
doente, o pessoal médico registou os seguintes
dados: variáveis clínicas, duração da doença,
localização do tumor, presença de metástases
à distância, e estadio do tumor através da
classificação TNM. A duração da doença, esta
última confirmada por histologia, foi definida
como sendo o intervalo de tempo (em meses)
entre as manifestações sintomáticas e a entrada
no estudo. Para avaliar as diferenças entre os
estadios do tumor, os doentes foram clínica e
fisiologicamente agrupados em duas classes:
estadios I+II (in situ ou doença local) e estadio
III+IV (doença localmente avançada com ou
sem invasão ganglionar e/ou metástases à dis-
Iniciei a investigação na área da Nutrição e
Oncologia há 5 anos atrás, mais concretamente
em Junho de 2000. O porquê desta área de
investigação: é uma área com imenso por fazer
e imenso por saber. A Nutrição é uma área de
saber em franca expansão, pedra basilar para a
nossa vida. A Oncologia desde sempre foi uma
área que me fascinou, pelo desafio que representa
em termos científicos, técnicos, profissionais e
pessoais. Verifiquei que, independentemente de
muito difícil, consegui fazer a diferença e ter
um impacto muito positivo na vida de imensos
doentes e isso, para mim, é por si só uma vitória.
Não é, contudo, fácil conviver diariamente com
esta terrível doença. Não é nada fácil gerir a
doença, tratamentos, minimizar o sofrimento,
a angústia e o stress psicológico de doentes e
familiares. Como em tudo, há casos que nos
marcam mais que outros, e muitas vezes a
distância não se consegue manter, principalmente
para alguém como eu, que luto com os doentes.
Nos diversos estudo que realizei, os doentes
eram ambulatórios, em que a alimentação era
adequada ao doente e doença, como
recomendado pela Resolução do Conselho da
Europa, aprovada em Conselho de Ministros
em Novembro de 2003. A minha investigação
concluiu que, com aconselhamento e acompa-
Os nossos objectivos foram 1) avaliar a Qualidade de Vida, estado
nutricional e ingestão dietética tendo em conta o estadio da doença
e intervenções terapêuticas, 2) determinar potenciais interrelações,
e 3) quantificar o impacto relativo do cancro/tratamentos e/ou
factores relacionados com a nutrição, na QV dos doentes.
tância). Os dados foram registados em folhas
individuais pré-construídas para análise estatística.
Parâmetros do Estudo
Avaliação Nutricional. O peso foi determinado com uma balança de chão Jofre. O estado
nutricional foi avaliado através do cálculo da
percentagem de perda de peso comparativamente ao peso habitual do doente, e classificada como grave quando >10% nos últimos
6 meses.
doentes com idade ≤60 anos foram estimadas
utilizando as fórmulas da Organização Mundial
de Saúde, ou pelas fórmula de Owen et al em
doentes com idade >60 anos, devido à sua
melhor capacidade de prever os gastos
energéticos basais. Para estimar as necessidades
energéticas diárias (NED) dos doentes, as
necessidades basais foram multiplicadas por um
factor de actividade de 1.5 ; as necessidades
proteicas diárias foram estimadas por comparação
com os valores referência estandardizados por
idade e sexo, que variam entre 0.8 e 1.0 g/kg
por dia.
Necessidades Nutricionais e Avaliação Dietética. As necessidades energéticas basais em
A ingestão nutricional habitual (antes do
diagnóstico) foi determinada pelo método da
nhamento nutricionais personalizados, houve
uma redução significativa dos sintomas
decorrentes dos tratamentos, logo menor
sofrimento, melhor Qualidade de Vida, aumento
de peso, melhoria da ingestão alimentar, aumento
da capacidade funcional e motivação para
enfrentar todas as etapas da sua doença. Estes
resultados nunca tinham sido demonstrados,
sendo por isso estudos pioneiros.
rebro. E de facto a receptividade dos doentes às
consultas de nutrição não poderia ter sido melhor!
A nutrição e a forma como os doentes devem
e podem comer são dos aspectos que mais
preocupam doentes e familiares. Todos sabemos
que para viver temos de comer, por isso os
doentes implicitamente sabem que têm de comer
bem para passar melhor os tratamentos e para
não perderem peso. De resto, não é por acaso
que já Hipócrates defendia a nutrição como
essencial: "May thy food be thy medicine, and
thy medicine be thy food" – "que a comida seja
o teu remédio, e que o teu remédio seja a tua
comida". Todos estes factos científicos são hoje
internacionalmente considerados Evidência,
Desde o início da minha investigação avaliei
perto de 1000 doentes. A maioria tinham tumores
da cabeça e pescoço, esófago, estômago e
cólon/recto, mas também acompanhei doentes
com tumores da mama, próstata, pulmão ou cé-
47
Em oncologia, ingestão nutricional deficitária e de longa duração
não haviam sido anteriormente investigados ou ajustados ao estadio
do tumor. Os nossos resultados demonstraram défices marcados
de ingestão nutricional nos estadios avançados da doença.
48
história dietética e a ingestão actual foi avaliada
pelo questionário alimentar das 24 horas
anteriores. O software DIETPLAN na versão
5 para o Windows (Forestfield software Ltd
2003, Horsham, UK) foi utilizado para analisar
a composição nutricional dos alimentos e
refeições.
Método de Avaliação da QV. A versão 3.0
do Questionário de QV da European
Organisation for Research and Treatment of
Cancer (EORTC-QLQ C30), foi utilizado
para avaliar a QV. Este método é específico
para doentes oncológicos e que consiste em
30 itens, incluindo 6 escalas de capacidade
estando documentados e publicados em revistas
científicas de elevado prestígio, como resultado
de 5 anos de intensa investigação clínica, tendo
como clara demonstração científica a nossa mais
recente publicação na revista científica mais
importante na área da Oncologia: The Journal
of Clinical Oncology.
Acresce que a relevância científica e clínica
destes trabalhos foi considerada de tal forma
importante, que me foi atribuída o prémio
internacional Eminent Scientist of the Year 2004
& Millenium Golden International Award. Este
prémio teve um impacto muito importante em
variadas dimensões pessoais, emocionais e
funcional (física, emocional, cognitiva, social,
desempenho, estado de saúde global e QV
global), 3 escalas de sintomas (fadiga, dor,
náuseas/vómitos), e 6 itens individuais que
avaliam outros sintomas e o impacto financeiro
da doença. Valores mais elevados nas escalas
funcionais indicam melhor capacidade funcional,
enquanto que valores mais elevados nas escalas
de sintomas e itens individuais denotam
aumento da sintomatologia ou pior degradação
financeira. Os dados numéricos originais
colhidos pelo questionário, foram transformados
matematicamente por regressão linear de forma
a obter valores quantificados no intervalo de
0 a 100; adicionalmente, para uma melhor
profissionais. A nível pessoal, a honra e entusiasmo
de ser seleccionada, a nível mundial para receber
tal prémio, dada a relevância científica do meu
trabalho de investigação para a Ciência e para
os doentes, são indubitavelmente únicos. Ver o
resultado de 5 anos do meu trabalho premiado
a tão elevado nível, e ser designada e reconhecida
como Cientista de Excelência representa uma
enorme alegria e recompensa. Para os doentes
a atribuição deste prémio, em tudo o que ele
significa, mostra um claro reconhecimento da
importância da Nutrição em Oncologia, e do
seu papel chave na promoção e manutenção do
bem-estar, Qualidade de Vida e melhoria da
tolerância aos tratamentos, numa doença tão
Tabela 1
Doentes e estadio da doença
n
Estadio (número de doentes)
Base da língua
11
II (3); III (4); IV (4)
Glândula salivar
6
II (1); III (5)
Amígdala
4
II (4)
Nasofaringe
11
II (2); III (9)
Orofaringe
22
II (5); IV (17)
Laringe
33
I (4); II (3); III (10); IV(16)
Localização
Cabeça e Pescoço
Tracto Gastrintestinal
Esófago
14
II (3); III (6); IV (5)
Estômago
26
I (2); II (4); III (11); IV(9)
Colo-rectal
144
I (15); II (19); III (76);IV (34)
n= número de doentes
validação em contexto clínico, os valores totais
obtidos nas escalas de funções, escalas de sintomas
e itens individuais foram calculados com base
nas correlações inter-escalas, que têm elevada
significância estatística, de acordo com as
directivas da EORTC (20).
agressiva que a esmagadora maioria das vezes se
transforma num “pesado fardo” que os doentes
têm de carregar, ao qual têm de se adaptar e
com o qual têm de viver. Para os doentes e para
o seu tratamento, é sem sombra de dúvida um
grande avanço, que poderá impulsionar o reconhecimento do seu direito de receber cuidados
nutricionais adequados. O que desejo e espero
é que os resultados da minha investigação
cheguem até eles.
Com este reconhecimento do meu trabalho
posso esperar que, para a Ciência, represente o
reconhecimento necessário da Investigação
Clínica como único meio de aplicar a ciência
Análise Estatística
A análise estatística foi feita com os softwares
SPSS 10.0 (SPSS Inc, Chicago, USA) e o
EPI–Info 2000 (CDC, Atalanta, USA). Os
dados qualitativos, localização e estadio do
tumor foram expressos em números e
percentagens; a idade, duração da doença, perda
de peso, ingestão nutricional e QV foram
expressos como medianas ou médias e desvios
padrão. As comparações entre grupos foram
feitas por análise de variância (ANOVA) para
variáveis contínuas, com ajustamentos de
Bonferroni ou Dunn nos casos de múltiplas
comparações; as comparações emparelhadas
foram feitas com o método de t de Student;
as variáveis categóricas foram comparadas pelo
teste do Qui-Quadrado. As correlações foram
valorizadas pelo método não-paramétrico de
Spearman. O modelo multivariado geral
linearizado foi utilizado para identificar variáveis
com relações significativas com a QV dos
doentes. Para todas os resultados, a significância
foi estabelecida a um nível de probabilidade
de 5%.
RESULTADOS
Amostra de Doentes. Este estudo incluiu 271
doentes (173H: 98M), com idade média de
5412 (32-87) anos, referenciados para
radioterapia (primaria, adjuvante à cirurgia,
aos doentes, tornando-a mandatória para a melhoria dos cuidados de saúde prestados aos doentes.
Por outro lado, defende a integração da Nutrição
na abordagem multidisciplinar do tratamento
oncológico. Para mim, tal como para outros
profissionais de saúde dedicados ao estudo e
prática da Nutrição, é uma esperança de que
possa ser um alerta sobre a importância e
necessidade de boa nutrição como terapêutica.
É sem dúvida mandatória a integração da
Nutrição na abordagem multidisciplinar do
tratamento do doente oncológico. E repito, para
mim, tal como para outros profissionais de saúde
dedicados ao estudo e prática da Nutrição, é
uma esperança de que possa ser um alerta sobre
49
combinada com quimioterapia ou com intenção
paliativa). A Tabela 1 mostra a localização e
estadio dos tumores: 65 de estadios I/II e 206
de estadios III/IV.
50
corrente como a habitual foram respectivamente
comparadas com as NED e com os valores
referência medianos de proteína, tendo em
conta a localização da doença, Figura 1. Nos
doentes de estadios III/IV, a ingestão proteica
A duração da doença era mais longa nos doentes corrente foi significativamente mais baixa que
de estadios III/IV (613 meses) vs doentes de o valor de referência (p=0.001) enquanto que
estadios I/II (3.65 meses) (p=0.002).
a ingestão calórica se manteve dentro das NED;
contrariamente, nos doentes de estadios I/II,
Ingestão Nutricional. Relativamente a ambas, a ingestão corrente de calorias/proteína era
a ingestão calórica e proteica, tanto a ingestão significativamente mais alta do que o valor de
referência, p=0.005. Adicionalmente, a ingestão
corrente calórica e a proteica foram mais baixas
Tabela 2
nos estadios III/IV (p=0.0002 e p=0.001,
respectivamente). A Tabela 2 resume a redução
Ingestão de energia e proteínas: redução
mediana relativamente à ingestão hatitual mediana das ingestões para cada diagnóstico e
estadio da doença e mostra que decréscimos
na ingestão de energia e proteína seguiram
Diagnóstico Energia (kcal/dia) Proteínas (g/dia)
padrões similares e tenderam a ser proporcionais
(p=0.05). Os maiores decréscimos, tanto na
Estadio
Estadio
ingestão calórica como proteica, registaram-se
I / II III / IV
I / II
III / IV nos doentes com tumores da CP e ESO de
estadio III/IV (p=0.02). A análise estratificada
n=65
n=206
n=65
n=206
realça ainda mais as diferenças: doentes de
estadios III/IV registaram um decréscimo
Cabeça-pescoço - 50
- 910
- 0.8
- 89
(n=87)
significativo da sua ingestão habitual usual de
Esófago
- 64
- 1095
-1
- 94
calorias (p=0.001) e proteínas (p=0.0002) ao
(n=14)
contrário dos doentes de estadio I/II.
Estômago
(n=26)
- 25
- 491
- 0,2
- 64
Colo-rectal
(n=144)
- 20
- 652
- 0,2
- 68
n= número de doentes
a importância e necessidade de boa nutrição
como terapêutica.
Para além do prémio científico internacional
que este trabalho mereceu, também a sociedade
portuguesa me seleccionou para receber o Globo
de Ouro “Revelação do Ano em Ciência”.
Depois da distinção mundial que me foi atribuída
para Cientista Eminente do Ano, o Globo de
Ouro foi sem dúvida a maior e melhor surpresa
que tive este ano. Mas numa ocasião como esta,
as palavras são sempre curtas ou insuficientes.
Ter o mérito e privilégio de ver o nosso trabalho
reconhecido a tão elevado nível, tanto científico
como social é de facto único.
Estado Nutricional. A mediana da percentagem
de perda de peso dos doentes para cada
diagnóstico é mostrada na Figura 2; doentes
Como qualquer Investigador que trabalhe
numa equipa de investigação multiprofissional,
esta não foi a única investigação em que estive
envolvida. A equipa de investigação da Unidade
de Nutrição e Metabolismo do Instituto de
Medicina Molecular da Faculdade de Medicina
de Lisboa na qual trabalho, tem diversos projectos
a decorrer, e eu trabalho em quase todos eles:
desde a epidemiologia, doença cardio e
cerebrovascular, investigação de alguns
mecanismos celulares que podem levar ao
desenvolvimento de tumores,...
Perante os óptimos resultados da minha
investigação em oncologia, a investigação nesta
Tabela 3
Dimensões da QV de acordo com a localização e estadio do tumor
Parâmetros
ESO (n=14)
EST (n=26)
CR (n=144)
I/II
CP (n=87)
III/IV
I/II
III/IV
I/II III/IV
I/II III/IV
QV Global
73
50
69
52
70
56
75
68
Física
80
50
65
42
55
40
74
69
Actividade
77
55
68
53
62
42
78
62
Emocional
64
51
63
51
45
36
65
65
Social
86
56
74
48
58
55
69
69
Cognitiva
72
53
65
54
55
41
58
38
Escalas de Funções
51
Escalas de Sintomas
Fadiga
52
67
51
64
19
68
26
46
Dor
13
60
22
58
29
52
25
49
Náuseas e vómitos
18
43
25
45
24
78
48
58
Dispneia
18
25
38
56
2
2
5
5
Insónia
23
53
25
45
25
35
19
39
Anorexia
19
73
41
55
19
79
28
68
Prisão de Ventre
2
2
2
2
1
1
4
15
Diarreia
2
2
2
2
0
0
44
79
Impacto Financeiro
38
38
4
4
1
1
8
8
Sintomas e itens individuais
Os resultados são expressos como valores medianos; CP: cabeça e pescoço, ESO: esófago, EST: estômago, CR: colo-rectal; valores
mais elevados nas escalas de funções indicam melhor capacidade funcional, valores mais elevados nas escalas de sintomas e itens
individuais indicam sintomatologia mais acentuada.
área vai sem dúvida continuar, na área de
intervenção, e também noutras áreas mais
aprofundadas de ciência básica, genómica, etc...
Quanto ao futuro, no que diz respeito aos
doentes e qualidade de cuidados prestados, os
resultados existem, a evidência é mais que
suficiente, os profissionais estão sensibilizados e
interessados, mas essa mudança tem de ser feita
a nível político, a nível das administrações
hospitalares e das instituições prestadoras de
cuidados de saúde.
com tumores do ESO e EST apresentaram uma
maior percentagem de perda de peso,
comparados com doentes com cancros da CP
e CR, p=0.04. De uma forma geral, a perda
de peso foi significativamente maior nos estadios
III/IV, relativamente aos doentes dos estadios
I/II, p=0.001. Destes últimos, apenas 7/65
(10%) tinham perdido mais de 10% do seu peso
habitual, enquanto que 175/206 (85%) dos
doentes de estadios III/IV registaram perdas de
peso superiores a 10%.
Qualidade de Vida. A mediana dos resultados
das dimensões da QV está sumarizada na Tabela
3. Houve um padrão distinto entre diagnósticos
Tabela 4
Inter relações e cálculo dos estimates of effect size (pesos relativos) de parâmetros nutricionais e variáveis relativas ao
tumor/tratamento(s) e QV: resultados da análise com o modelo geral linearizado
Escalas globais
funcionais
52
Escalas globais
desintomas‡
Variáveis
F-test
Estimates of
effect size*
p
F-test
Estimates of
effect size*
Estádio
1.6
1%
0.18
56.5
Localização
111.2
30%
0.0001
Ingestão calórica
27.2
10%
Ingestão proteica
27.2
Perda de peso
Escalas globais deitens
individuais‡
p
F-test Estimates of
effect size*
p
22%
0.001
103.7
30%
0.0001
77.2
41%
0.0001
49.2
20%
0.001
0.01
1.0
3%
0.35
3.9
4%
0.07
10%
0.01
1.0
4%
0.25
4.2
5%
0.07
133.7
30%
0.0001
0.05
1%
0.82
1.2
3%
0.10
Duração da doença
1.5
3%
0.14
10.0
7%
0.06
1.2
3%
0.30
Quimioterapia
35.3
10%
0.001
2.1
4%
0.22
1.3
1%
0.25
Cirurgia
6.1
6%
0.01
1.4
1%
0.86
3.0
4%
0.09
Nas colunas indicam-se as variáveis dependentes, e nas linhas as variáveis independentes; todas as escalas foram transformados linearmente
e agrupadas para obter resultados globais antes da inclusão no modelo analítico; *a soma das percentagens pode não ser igual a 100%
devido ao efeito do erro corrigido; ‡devido a potenciais associações entre sintomas e diagnósticos, as associações foram ajustadas por
localização do tumor.
3000
2500
2000
1500
1000
500
0
CP
ESO
EST
CR
CP
ESO
EST
CR
150
Figura 1 O Painel A mostra a
ingestão de energia e o Painel B a
ingestão de proteínas; necessidades
medianas estimadas , ingestão
habitual medianam
e ingestão
actual mediana ; CP: cabeçapescoço, ESO: esófago, EST:
estômago, CR: colo-rectal.
100
50
0
% perda de peso
20
18
Figura 2 Percentagem de perda
de peso nos últimos 6 meses
(mediana) nos estadios I/II , e
estadios III/IV
, de acordo
com a localização do tumor; CP:
cabeça e pescoço, ESO: esófago,
EST: estômago, CR: colo-rectal.
16
14
12
10
8
6
4
2
0
CP
ESO
EST
CR
O presente estudo mostra claramente que a QV dos doentes com
cancro é multifactorial e que é distintamente influenciada pela
doença, intervenções terapêuticas e vários parâmetros nutricionais.
(p<0.03) em relação às escalas de função da
QV, que eram piores nos doentes com tumores
da CP, ESO e EST (p≤0.008). De uma forma
geral, as escalas de sintomas foram piores nos
estadios III/IV vs estadios I/II, p<0.003;
contudo, a fadiga era significativamente mais
acentuada em doentes com tumores da CP e
ESO de estadio I/II do que em EST ou CR
de estadio I/II (p=0.02), enquanto que as
náuseas/vómitos foram piores em tumores CR
de estadio I/II (p=0.03) e a dor não tinha
alterações significativas entre diagnósticos. Em
todos os diagnósticos, a dispneia, insónia e
anorexia foram piores nos estadios III/IV vs
I/II, p=0.002. A diarreia foi mais prevalente
no cancro CR, p=0.001 e mais grave nos
estadios III/IV, p=0.03. Limitações financeiras
associadas a condições sociais /económicas
foram prevalentes nos doentes com tumores
da CP, p=0.002.
A análise dos factores relacionados com a
nutrição e a sua associação com a QV, mostrou
que a ingestão calórica e de proteínas estavam
correlacionados com as escalas de funções: QV
global (r=0.53, p=0.001), física (r=0.26, p=0.02)
e emocional (r=0.29, p=0.01), bem como com
alguns sintomas: anorexia (r=0.52, p=0.001),
fadiga (r=0.60, p=0.001), dor (r=0.55,
p=0.003), náuseas/vómitos (r=0.51, p=0.003)
e diarreia (r=0.60, p=0.001). A malnutrição
nestes doentes foi associada a escalas de funções
mais pobres: QV global (p=0.05), física
(p=0.01), desempenho (p=0.02), cognitiva
(p=0.02), emocional (p=0.01) e social (p=0.01)
bem como com alguns sintomas: anorexia
(p=0.001), aumento da fadiga (p=0.03),
dispneia, insónia e diarreia (p=0.04).
Dada a forte interacção entre a QV (variável
dependente), e o estadio do tumor e nutrição
(variáveis independentes), foi efectuada uma
análise não-paramétrica de correlação
estratificada por diagnóstico. Esta análise mostrou
um padrão distinto de QV entre diagnósticos,
e identificou quais as variáveis significativamente
associadas aos valores globais da QV individual
(Figuras 3a, 3b, 3c, 3d, nas quais o eixo
vertical indica os valores globais de escalas de
funções, sintomas e de itens individuais, obtidos
de valores medianos). As Figuras 3a e 3b
mostram que a capacidade funcional para todos
os diagnósticos foi significativamente
influenciada pelo deficit de ingestão nutricional
actual e perda de peso recente, mas não foi
afectado pelo estadio do tumor; em ambos os
casos, os tumores do ESO e EST mostraram
piores resultados globais de funções relativamente
aos cancros da CP e CR, p=0.02. A Figura
3c mostra que os resultados globais das escalas
de sintomas estavam fortemente associados ao
estadio do tumor e não foram significativamente
diferentes entre diagnósticos ou influenciados
por parâmetros nutricionais. A Figura 3d
mostra que, tal como no caso dos resultados
globais das escalas de sintomas, piores resultados
globais de itens individuais estavam apenas
associados com os estadios III/IV; embora não
53
houvesse diferenças significativas entre os
tumores da CP, CR e ESO, este último mostrou
piores resultados de itens isolados por contraste
com tumores do EST, p=0.03.
54
A Tabela 4 mostra os resultados de um
modelo geral linearizado que inclui resultados
globais de QV, parâmetros nutricionais e
variáveis relacionadas com o tumor/tratamento(s) de forma a calcular os pesos relativos
de cada, e as respectivas estatísticas. A localização
do tumor, quimioterapia e cirurgia foram
significativamente associados a todos os resultados
da QV enquanto que o estadio estava apenas
associado com os resultados das escalas de
sintomas e resultados de itens individuais. A
ingestão nutricional e a perda de peso foram
associados apenas com os resultados de funções,
embora existisse uma tendência para a associação
com resultados de sintomas e itens individuais
(p=0.06).
De modo a avaliar qual o diagnóstico que
estava mais fortemente associado com pior QV,
dimensões individuais foram agrupadas e
valorizadas de acordo com os seus pesos relativos.
Os doentes com tumores do EST tinham a
pior QV, embora sem diferenças significativas
relativamente ao tumor do ESO; doentes com
tumores da CP e CR tinham uma QV global
sensivelmente superior (p=0.02), CR>HN
(NS). De uma forma geral, o estadio da doença
foi identificado como o maior determinante
da QV dos doentes (p=0.002), seguido de perto
pela deterioração no estado nutricional
(p=0.005) e pela ingestão dietética (p=0.007).
Discussão
Para ser significativa, a avaliação da QV deve
incluir o impacto da doença juntamente com
as intervenções terapêuticas, expectativas e
satisfação pessoais, daí ter sido utilizado no
presente estudo o questionário de QV da
EORTC como o método mais preciso (20).
O presente estudo mostra claramente que a
QV dos doentes com cancro é multifactorial
e que é distintamente influenciada pela doença,
intervenções terapêuticas e vários parâmetros
nutricionais.
A deterioração nutricional relacionada com
o cancro tem sido tradicionalmente atribuída
à anorexia e alterações metabólicas (3, 21, 22).
Apesar do facto de a deterioração nutricional
se associar a alterações funcionais (6), a interacção
entre nutrição e QV está ainda por explorar
(7). A nutrição artificial em certos doentes com
cancro tem sido sugerida como um factor que
contribui para melhorar o estado nutricional e
a QV (23, 24). Na verdade, a fadiga, anorexia
e stress emocional, comuns em doentes
oncológicos, podem ser agravados mas também
reduzidos por uma deficiente ingestão
nutricional e QV (25, 26).
Este estudo tem como enfoque a avaliação
de parâmetros nutricionais e de variados
parâmetros clínicos como potenciais determinantes da QV. Em oncologia, ingestão
nutricional deficitária e de longa duração não
haviam sido anteriormente investigados ou
ajustados ao estadio do tumor. Os nossos resultados demonstraram défices marcados de
ingestão nutricional nos estadios avançados da
doença. Houve não só um decréscimo
significativo da ingestão habitual de energia e
proteínas nos estadios III/IV, mas também a
ingestão actual de ambos, foi marcadamente
inferior do que nos estadios I/II. Verificou-se
ainda que os estadios III/IV de tumores da CP
e do ESO apresentavam os défices mais marcados
de energia e proteínas.
Um estadio avançado da doença foi o
denominador comum da deterioração
nutricional dos doentes. A perda de peso e a
ingestão reduzida de energia/proteínas estavam
associadas (p=0.06) apesar de não se ter
encontrado um padrão consistente. Os nossos
resultados corrobam e expandem observações
prévias de que o défice progressivo na ingestão
nutricional pode estar associado à localização
do tumor (3, 4, 27, 28) e pode, eventualmente,
ser proporcional à extensão da doença (29).
No que diz respeito às dimensões de QV, o
Este estudo de 271 doentes com tumores da cabeça e pescoço,
esófago, estômago e colo-rectal mostra que o cancro, défices
dietéticos, deterioração nutricional e intervenções terapêuticas são
determinantes para a QV dos doentes, mas têm pesos relativos
diferentes.
55
estadio do tumor influenciou a gravidade das
escalas de sintomas e itens individuais, enquanto
que os deficits de ingestão de energia/proteínas
e a perda de peso influenciaram de forma
negativa as escalas de funções da QV. De uma
forma geral, a capacidade funcional dos doentes
foi afectada pela localização do tumor e factores
nutricionais com um contributo relativo similar
de 40% cada um, e apenas em 1% pelo estadio
da doença; a contribuição relativa atribuída à
quimioterapia, cirurgia e duração da doença
foi de 10%, 6% e 3%, respectivamente, como
já foi previamente sugerido em diferentes grupos
de doentes (30-32). As escalas de sintomas
tiveram um padrão inverso por comparação
com as escalas de funções: 41% foram atribuídos
à localização do tumor, 22% ao estadio, 7% à
ingestão nutricional, 7% à duração da doença,
4% à cirurgia, 1% à perda de peso e 0.01% à
quimioterapia. Da mesma forma, o estadio do
tumor e a localização foram os maiores
determinantes dos itens individuais de QV, que
foram piores nos estadios III/IV. Apesar de o
estadio da doença ser o principal determinante
da QV dos doentes, em alguns diagnósticos o
impacto da deterioração nutricional combinado
com ingestão nutricional deficiente pode ser
clinicamente mais importante.
Este estudo de 271 doentes com tumores da
cabeça e pescoço, esófago, estômago e colorectal mostra que o cancro, défices dietéticos,
deterioração nutricional e intervenções
terapêuticas são determinantes para a QV dos
doentes, mas têm pesos relativos diferentes.
Enquanto que a quimioterapia/cirurgia eram
encaradas pelos doentes como factores de
relevância menor, os nossos dados são
consistentes com a hipotética relação entre
deterioração nutricional e doença progressiva
(29). Embora os défices nutricionais e/ou
deterioração fossem intrínsecos à localização e
estadio da doença, a ingestão reduzida de
energia/proteínas e a perda de peso foram
determinantes independentes da QV.
Os nossos resultados coincidem com o estudo
de Keys et al, que mostrou que o semi-jejum
afecta negativamente capacidades funcionais e
psicológicas (33). É de grande relevância clínica
que o aconselhamento e educação nutricionais
individualizados, possam contribuir para
manter/melhor a ingestão e o estado
nutricionais, bem como para melhorar
significativamente a QV global dos doentes
(34, 35).
FIGURA 3a
56
FIGURA 3b
90
90
85
85
80
80
75
75
70
70
65
65
60
60
55
55
50
50
45
45
40
40
35
35
30
30
25
25
% requirements
0 - 24%
% weight loss
51 - 75%
25 - 50%
76 - 100%
Figura 3a Escalas globais funcionais de acordo com diagnósticos
e estratificadas por quartil de ingestão de energia e proteínas; CP:
cabeça-pescoço, ESO: esófago, EST: estômago, CR: colo-rectal.
0-24%, p=0.003; 25-50%, p=0.01; 51-75%, p=0.04;
76-100%, p=0.05.
>
5 - 10 %
Figura 3b Escalas globais funcionais de acordo com diagnósticos
e estratificadas por categorias de % significativa de perda de peso;
CP: cabeça-pescoço, ESO: esófago, EST: estômago, CR: colorectal.
>10%, p=0.001;
5-10%, p=0.06.
FIGURA 3c
90
FIGURA 3d
45
85
80
40
75
70
35
65
30
60
55
25
50
45
20
40
35
15
30
25
10
20
15
5
Staning
IV
Staning
III
II
I
Figura 3c Escalas globais de sintomas de acordo com diagnósticos
e estratificadas por estadiosdo tumor; CP: cabeça-pescoço, ESO:
esófago, EST: estômago, CR: colo-rectal. IV, p=0.001;
III, p=0.002;
II, p=0.04;
I, p=0.04.
IV
III
II
I
Figura 3d Escalas globais de itens individuais de acordo com
diagnósticos estratificadas por estadios do tumor; CP: cabeçapescoço, ESO: esófago, EST: estômago, CR: colo-rectal;
IV+ III, p=0.001;
II+
I, p=0.05.
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AGRADECIMENTOS
O nosso profundo agradecimento às equipes
médica, de enfermagem e técnica do Serviço
de Radioterapia do Hospital de Santa Maria.
Estamos gratos à Prof. Pat Howard pela revisão
do texto. Este estudo foi suportado por um
subsídio da Fundação para a Ciência e
Tecnologia (RUN 437).
DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE
INTERESSES
Todos os autores declaram que não têm
qualquer relação financeira ou profissional com
outras pessoas ou organizações que possam
influenciar inapropriadamente o nosso trabalho.
57
Sandra Macedo-Ribeiro Bioquímica, Universidade do Porto
Grupo de Cristalografia Macromolecular
Centro de Neurociências e Biologia Celular, Coimbra
Intermediários de agregação da proteína ataxina-3:
58
Novos alvos na terapêutica da doença de
Machado-Joseph
Objectivos
A repetição excessiva de três “letras” (CAG)
no gene que contém o código para a síntese
da proteína ataxina-3 determina o aparecimento
da doença de Machado-Joseph. A alteração do
gene por repetição do codão CAG, traduz-se
numa repetição do aminoácido glutamina na
proteína por ele codificada. A actividade
biológica de uma proteína é determinada pela
sua forma tridimensional, isto é, pela forma
como as cadeias de aminoácidos que a
constituem se organizam no espaço. A alteração
da sequência de aminoácidos da ataxina-3, por
expansão do número de glutaminas, induz
alterações na sua estrutura tridimensional,
modificando consequentemente a forma como
esta interage consigo própria e com outras
moléculas no interior das células – diz-se então
que a proteína adquire uma conformação tóxica.
Um dos principais marcadores patológicos da
doença é a presença de depósitos insolúveis
contendo ataxina-3 nos neurónios selectivamente afectados nesta doença neurodegenerativa. No entanto, os seus gravíssimos
sintomas começam a manifestar-se muito antes,
durante um período muito prolongado em que
os neurónios continuam vivos mas não
funcionam devidamente e ainda não são visíveis
os depósitos de ataxina-3. Por esse motivo, é
fundamental identificar e caracterizar as várias
etapas que levam à deposição da proteína de
forma a estabelecer estratégias terapêuticas
capazes de combater a doença numa fase
precoce.
A doença de Machado-Joseph
A doença de Machado-Joseph, também
designada ataxia espinocerebelosa tipo 3, é uma
doença neurodegenerativa rara (1.6 casos por
milhão), descrita pela primeira vez nos anos 70
em descendentes de açorianos e para a qual
não existe ainda nenhum tratamento eficaz.
Esta doença hereditária progressiva, que surge
associada a sintomas de ataxia (ausência de
controlo muscular e falta de coordenação nos
movimentos do corpo), encontra-se distribuída
por todo o mundo mas tem uma especial
prevalência no arquipélago do Açores, em
particular nas ilhas de S. Miguel e das Flores.
A doença afecta também famílias do continente,
A doença de Machado-Joseph, também designada ataxia
espinocerebelosa tipo 3, é uma doença neurodegenerativa rara (1.6
casos por milhão), descrita pela primeira vez nos anos 70 em
descendentes de açorianos e para a qual não existe ainda nenhum
tratamento eficaz.
tendo-se descoberto um concelho do distrito
de Santarém, onde a prevalência é de 1:1000
habitantes. A doença de Machado-Joseph
transmite-se de pais para filhos, bastando a
presença de um só gene mutado (em apenas
um dos ), em qualquer dos progenitores, para
a doença se manifestar, o que faz dela uma
doença genética autosómica dominante.
Sendo uma doença hereditária, a doença de
Machado-Joseph resulta de uma alteração num
gene, localizado no braço longo do cromossoma
14. Os genes constituem os moldes que
determinam a construção do corpo humano,
armazenando a informação para a síntese das
proteínas. No gene alterado na doença de
Machado-Joseph, identificou-se uma região
com uma repetição do tripleto CAG (citosina,
adenina e guanina), que resulta na repetição
do aminoácido glutamina na proteína (ataxina3) codificada por este gene. Em indivíduos
normais, este aminoácido repete-se entre 12 e
40 vezes. A doença ocorre como resultado
duma expansão dessa repetição para além das
55 vezes (Figura 1). Assim, esta doença inserese no grupo das doenças resultantes de expansão
de poliglutaminas, das quais a doença de
Huntington é a mais conhecida.
Figura 1 – O gene alterado na doença de Machado-Joseph
contém uma região onde naturalmente se encontra repetido o
codão CAG, que resulta numa repetição de glutaminas na sequência
de aminoácidos da proteína ataxina-3. A doença surge quando o
número de glutaminas repetidas ultrapassa 55.
Nas doenças de poliglutaminas, quanto maior
é a expansão da repetição de glutaminas, menor
59
Esta doença hereditária progressiva, que surge associada a sintomas
de ataxia (ausência de controlo muscular e falta de coordenação
nos movimentos do corpo), encontra-se distribuída por todo o
mundo mas tem uma especial prevalência no arquipélago do Açores,
em particular nas ilhas de S. Miguel e das Flores. A doença afecta
também famílias do continente, tendo-se descoberto um concelho
do distrito de Santarém, onde a prevalência é de 1:1000 habitantes.
60
é a idade em que se manifesta e mais graves
são os sintomas da doença. São também doenças
progressivas, o que significa que as células são
capazes de criar mecanismos de protecção contra
a toxicidade induzida pela expansão de
poliglutaminas e adiar o aparecimento dos
primeiros sintomas. No entanto, dependendo
do número de glutaminas repetidas, o efeito
tóxico cumulativo acaba por se sobrepor aos
mecanismos de defesa das células e aparecem
os primeiros sintomas que rapidamente se
agravam. No caso da doença de MachadoJoseph, os primeiros sintomas surgem por volta
dos 40 anos, ocorrendo a morte 10-20 anos
depois.
Como as proteínas envolvidas nas doenças
de poliglutaminas não apresentam qualquer
tipo de semelhança estrutural ou funcional,
com excepção da região contendo a repetição
de glutaminas, tudo indica que os mecanismos
de toxicidade são dominados pela alteração
estrutural provocada pela expansão desta região.
No entanto, os sintomas são distintos em cada
uma destas doenças neurodegenerativas, pelo
que o conjunto de neurónios afectado em cada
doença é diferente. Isto indica claramente que
as proteínas que são afectadas individualmente
pela expansão de poliglutaminas têm também
um papel determinante na modulação da
especificidade da morte neuronal e nos
mecanismos de progressão da doença.
Poliglutaminas e Amilóide: Aspectos
estruturais
Em 1991, quando se descobriu que um
conjunto de doenças neurodegenerativas era
causado pela expansão de uma sequência de
glutaminas, um dos maiores focos de
investigação incidiu imediatamente na
identificação de características moleculares e
estruturais das sequências de poliglutaminas
responsáveis pela patologia. Em 1994, Max
Perutz propôs que as expansões de glutaminas,
nas proteínas mutadas neste grupo de desordens
neurológicas, resultariam em: a) interacções
anómalas com factores de transcrição contendo
domínios de poliglutaminas que resultariam
em anomalias na transcrição, ou b) na formação
de agregados mediados por interacções directas
entre os domínios de poliglutaminas expandidos.
Só dois anos depois as inclusões nucleares e/ou
citoplasmáticas (IN) formadas pelas proteínas
mutadas foram descobertas nos neurónios
selectivamente afectados neste grupo de doenças
neurodegenerativas, constituindo hoje em dia
um dos principais marcadores patológicos da
doença. Estas inclusões insolúveis têm natureza
fibrilar e propriedades tintoriais características
do material amiloidogénico, colocando as
doenças de poliglutaminas no grupo mais vasto
das doenças caracterizadas pela deposição intrae extracelular de proteínas sob a forma de fibras
de amilóide; como é o caso das mais conhecidas
doenças de Alzheimer e de Parkinson bem
como da Polineuropatia Amiloidótica Familiar.
Neste grupo de patologias, alterações na
estrutura tridimensional das proteínas
intervenientes na doença, quer sejam induzidas
por mutações, stress ambiental ou
envelhecimento celular, resultam na agregação
das proteínas alteradas e na formação de depósitos
insolúveis, facilmente detectados por
microscopia óptica. A toxicidade destes
novas informações sobre os mecanismos
patogénicos neste grupo de doenças. O
objectivo principal deste trabalho consiste na
identificação e caracterização das propriedades
amiloidogénicas de alguns intermediários de
agregação da ataxina-3, que poderão vir a
constituir novos alvos terapêuticos na doença
de Machado-Joseph (Fig. 2).
61
agregados proteicos insolúveis e o seu efeito
nos processos patológicos tem sido alvo de
acesa controvérsia. Apesar das evidências serem
ainda indirectas, a formação de depósitos
proteicos insolúveis parece constituir a etapa
final de um processo de agregação multi-etapas,
constituindo uma estratégia das células para
impedir que proteínas com estruturas
tridimensionais alteradas estabeleçam interacções
anómalas com outras proteínas ou outros
componentes celulares. Nesta perspectiva, serão
os intermediários formados no início da via de
agregação das proteínas os principais causadores
da toxicidade celular. Esses intermediários
tóxicos poderão ser simplesmente formas
alteradas das proteínas envolvidas na doença,
ou espécies solúveis parcialmente agregadas
(oligómeros esféricos ou protofibras). A
compreensão dos mecanismos de alteração
conformacional e agregação, a nível molecular
e estrutural, é crucial para o desenvolvimento
de terapias eficazes utilizáveis numa fase inicial
da doença, adiando o aparecimento dos
sintomas.
A caracterização do processo de agregação
das proteínas que sofrem expansão de
poliglutaminas é por isso crucial para obter
Figura 2- A proteína alterada deposita-se nas células (A), sob a
forma de fibras (B). Se elucidarmos quais as características estruturais
da proteína (C) que determinam a agregação, poderemos evitála e assim tratar a doença.
Metodologia
Para melhor compreender as propriedades
químicas e estruturais da ataxina-3, o gene da
proteína humana foi clonado e inserido num
vector que permite a sua produção em grandes
quantidades num sistema bacteriano (Escherichia
coli). A ataxina-3 recombinante, contendo
apenas 14 glutaminas, foi seguidamente
purificada por cromatografia líquida. Verificouse então que a proteína purificada, isolada do
seu ambiente celular, adquiria propriedades
auto-adesivas e tinha a capacidade para formar
estruturas oligoméricas e fibrilares. Estas
estruturas foram caracterizadas por microscopia
electrónica e por análise das suas propriedades
de ligação a Vermelho de Congo e Tioflavina
T, dois compostos utilizados normalmente na
detecção de depósitos de amilóide. Utilizando
técnicas de dicroísmo circular testaram-se as
alterações da estrutura secundária da proteína,
induzidas por oligomerização. Finalmente,
utilizou-se um anticorpo específico com
capacidade para detectar “conformações tóxicas”
em proteínas envolvidas na formação de fibras
de amilóide, para caracterizar as alterações
conformacionais induzidas pela agregação da
ataxina-3.
Intermediários de agregação da Ataxina-3
não expandida: Modelos para o estudo da
agregação na doença de Machado-Joseph
62
Demonstrou-se com este trabalho que a
ataxina-3 contendo um número moderado de
glutaminas, quando produzida em bactérias e
isolada do meio celular, adquire
espontaneamente propriedades auto-adesivas,
depositando-se sob a forma de fibras de amilóide
(Fig. 2B), em condições próximas das condições
fisiológicas. Colocou-se como hipótese de
trabalho que a proteína ataxina-3 teria uma
propensão intrínseca para agregar,
independentemente da expansão de glutaminas,
provavelmente evitada no meio celular por
interacções com outras macromoléculas, ou
por modificações pós-tradução (fosforilação,
etc.), que não podem ser reproduzidas na
proteína produzida em bactérias. A expansão
do número de glutaminas “in vivo”
provavelmente desencadeia uma série de
alterações estruturais inicialmente subtis, que
cumulativamente interferem com as interacções
macromoleculares, acabando por induzir a
exposição dos domínios responsáveis pela
oligomerização e posterior deposição da proteína
na doença de Machado-Joseph. Considerouse então que as alterações na conformação da
proteína induzidas pela repetição de glutaminas
para além das 55 no meio celular, poderiam
ser mimetizadas pela proteína não expandida
isolada do seu ambiente celular. Assim, a proteína
não expandida poderá constituir um modelo
“in vitro” para o estudo da agregação da proteína
expandida na doença de Machado-Joseph.
Utilizando técnicas de microscopia electrónica
visualizaram-se alguns dos intermediários na
via de agregação da ataxina-3 (Fig.3). A
comparação dos espectros de dicroísmo circular
indicou que a transição da forma monomérica
da ataxina-3 para as formas oligoméricas é
acompanhada de um aumento de estrutura
beta, uma característica que normalmente
acompanha a formação de fibras de amilóide.
Apenas as formas oligoméricas da ataxina-3
reagiram com um anticorpo, capaz de
reconhecer “conformações tóxicas”, aparentemente comuns a formas oligoméricas de
várias proteínas que formam amilóide. Isto
indica que estas assumem uma conformação
nova, ausente na forma monomérica da proteína.
Os estudos de agregação “in vitro” para a
ataxina-3 não expandida, sugerem um
mecanismo multi-etapas, passando por
intermediários oligoméricos tóxicos e resultando
na formação de estruturas fibrilares com
propriedades biofísicas caracteristícas do material
amiloidogénico. O facto de trabalharmos com
uma proteína com um número reduzido de
glutaminas, permite-nos capturar intermediários
A caracterização do processo de agregação das proteínas que
sofrem expansão de poliglutaminas é por isso crucial para obter
novas informações sobre os mecanismos patogénicos neste grupo
de doenças. O objectivo principal deste trabalho consiste na
identificação e caracterização das propriedades amiloidogénicas de
alguns intermediários de agregação da ataxina-3, que poderão vir
a constituir novos alvos terapêuticos na doença de Machado-Joseph.
Sendo uma doença hereditária, a doença de Machado-Joseph
resulta de uma alteração num gene, localizado no braço longo do
cromossoma 14.
63
de oligomerização que não poderíamos
visualizar se trabalhássemos com a proteína
expandida, a qual quando isolada agrega muito
rapidamente. A caracterização destes
intermediários tóxicos e do seu mecanismo de
nos permite a conversão da forma monomérica
da ataxina-3 a formas oligoméricas tóxicas,
permitindo-nos com facilidade testar toda uma
série de compostos com capacidade para inibir
esta transição estrutural.
toxicidade tem implicações práticas, pois são
estes intermediários que poderão constituir
importantes alvos terapêuticos na prevenção
da sintomatologia desta doença. Desenvolvemos
ainda, com este trabalho, um protocolo que
Figura 3 – Via de agregação da ataxina-3. Os monómeros e
intermediários de agregação da ataxina-3 foram visualizados por
microscopia electrónica. A presença de uma “conformação
tóxica” foi detectada por interacção com um anticorpo específico,
que reagiu apenas com os intermediários oligoméricos e
protofibrilares.
A conversão da proteína ataxina-3 em formas oligoméricas é
acompanhada por uma alteração na sua estrutura tridimensional,
conforme determinado pela análise de dicroísmo circular e pela
ligação específica das formas oligoméricas a um anticorpo que
reconhece um epítope conformacional. Esta alteração estrutural da
proteína parece ser um dos primeiros mecanismos na formação das
espécies tóxicas, sendo portanto o principal alvo da acção de terapias
preventivas na sintomatologia desta doença.
64
Perspectivas futuras
A conversão da proteína ataxina-3 em formas oligoméricas é acompanhada por uma alteração
na sua estrutura tridimensional, conforme determinado pela análise de dicroísmo circular e pela
ligação específica das formas oligoméricas a um anticorpo que reconhece um epítope conformacional.
Esta alteração estrutural da proteína parece ser um dos primeiros mecanismos na formação das
espécies tóxicas, sendo portanto o principal alvo da acção de terapias preventivas na sintomatologia
desta doença. No entanto, a concepção de “drogas” especificamente desenhadas para intervir
nesta fase do processo de agregação, implica o conhecimento da estrutura da ataxina-3 com um
detalhe atómico. Identificar as alterações conformacionais induzidas pela expansão de glutaminas
por comparação das estruturas da proteína normal e expandida utilizando por exemplo técnicas
de cristalografia de raios-X vai ser fundamental para este processo.
Glossário
Amilóide | Agregado fibrilar insolúvel composto por material
proteico, que pode ser observado por microscopia electrónica ou por
detecção da sua birrefringência após coloração com Vermelho de
Congo.
Biologia Estrutural | Uma área de estudo dedicada à determinação
da estrutura tridimensional das moléculas biológicas, para melhor
compreender as suas funções nos seres vivos.
Código Genético | A informação para a ordenação dos aminoácidos
(unidades de construção das proteínas) está contida no ADN (ácido
desoxirribonucleico), sob a forma de um código determinado pela
sequência de nucleótidos ATGC (adenina, timina, citosina e guanina).
Cada aminoácido é o resultado da descodificação de três nucleótidos
(tripleto) do ADN.
Cristalografia de Raios-X | Um dos métodos utilizados para
determinar a estrutura tridimensional detalhada das moléculas biológicas.
A técnica consiste na exposição de cristais da molécula a estudar a um
feixe de raios-X, que interage com os electrões dos átomos que formam
as moléculas.
Dicroísmo circular | O dicroismo circular (CD) é a diferença
de absorção da luz circularmente polarizada à esquerda e à direita por
uma amostra opticamente activa. Esta técnica permite determinar
alterações de estrutura secundária das proteínas.
Fibra amilóide | Agregado filamentoso de proteína, insolúvel
e estruturado. Este filamento é composto por unidades repetitivas de
folhas beta, alinhadas perpendicularmente ao eixo da fibra
Gene | Aegmento de ADN que contém a informação para a
síntese de uma determinada proteína.
Microscopia Electrónica | É o tipo de microscopia mais utilizado
nos laboratórios modernos, devido à capacidade de tornar visíveis os
vírus e as estruturas diminutas. Permite ampliar milhões de vezes um
objecto.
Proteína | Molécula biológica composta por aminoácidos ordenados
numa sequência específica determinada pelo código genético. A
sequência de aminoácidos determina a forma tridimensional das
proteínas, fundamental para o desempenho das suas funções celulares.
Agradecimentos
Ao doutor Pedro Pereira pela revisão cuidadosa do manuscrito. À
doutora Patrícia Maciel pelo desafio de iniciar a caracterização estrutural
desta proteína. À doutora Ana Margarida Damas e ao doutor Luís
Gales pela colaboração na caracterização estrutural dos agregados de
ataxina-3. À Fundação para a Ciência e Tecnologia pelo financiamento
concedido sob a forma dos projectos POCTI/MGI/47550/2002 e
POCI/SAU-MMO/60156/2004.
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65
Armando Almeida1
Hugo
Leite-Almeida2
1Professor
Auxiliar de Histologia e Embriologia
Área Curricular “Sistemas Orgânicos e Funcionais”
Líder de uma Equipa de Investigação em Neurobiologia da Dor
Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde (ICVS)
Escola de Ciências da Saúde
Universidade do Minho
Campus de Gualtar – Braga
2Bolseiro
de Investigação (BI)
Equipa de Investigação em Neurobiologia da Dor
Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde (ICVS)
Universidade do Minho
Campus de Gualtar – Braga
66
Patrick Wall, um dos fundadores da moderna
investigação básica dos mecanismos anátomofisiológicos da dor e da aplicação destes à clínica
do tratamento da dor afirmava, no seu último
livro publicado pouco antes de falecer (Wall,
2000), que “a dor é ainda um dos grandes mistérios
da Medicina”. Esta afirmação, proferida por
quem mais nos últimos 50 anos contribuiu para
o desbravar dos enigmas sobre o processamento
doloroso, aguça ainda mais a curiosidade sobre
esta experiência, desde sempre associada ao
sofrimento humano e à sua representação plástica
em diversas formas de expressão artística. De
facto, a diferença entre a ideia que existe do
que é a dor no dia a dia e a dor crónica que
perturba o quotidiano de milhões de pessoas,
os mecanismos que estão na base da
transformação de dor aguda prolongada ou
inflamatória em dor crónica, o desafio
terapêutico que constitui para o médico um
conjunto alargado de síndromes de dor crónica
constituem um desafio que, por si só, estimula
a investigação científica ao mais alto nível.
Outra área que tem despertado uma atenção
especial é o facto de perante um determinado
estímulo doloroso a dor que sentimos ser
expressa de maneira diferente por cada um de
nós e, mesmo para cada pessoa, a dor e reacção
comportamental associada poder variar ao longo
do dia ou em diferentes pontos temporais,
dependendo de diversos factores que serão
explorados mais à frente neste artigo.
Porque é que as emoções controlam a
Dor?
A Dor é importante para o organismo?
Imagine como ficaria o seu corpo se o
organismo não tivesse um sistema de alerta que
o avisasse de que se estava a espetar num prego,
a morder a língua, a tomar banho com água a
ferver ou que tinha fracturado uma perna ao
saltar de uma janela? Ou, perguntando de modo
mais dramático, acha que conseguiria sobreviver
sem Dor?
A resposta é não. A evolução biológica dos
organismos apurou a percepção de dor aguda
como um dos principais mecanismos de defesa
contra agressões nocivas com origem externa
ou interna ao corpo. A dor aguda é aquela
que nos permite reagir reflexamente com
movimentos de fuga de modo a preservar a
integridade do organismo ou a proteger
determinada parte magoada do corpo do toque
ou do movimento. Esta defesa depende do
sistema nociceptivo, um conjunto de células
nervosas (neurónios) que, da periferia do corpo
até ao encéfalo, é responsável desde a detecção
do estímulo agressor e potencialmente doloroso
até à resposta comportamental de fuga gerada
pelo encéfalo. Se a percepção da dor resultasse
apenas da activação deste sistema nociceptivo,
então a dor seria proporcional ao estímulo, já
que dependeria da intensidade com que o
sistema fosse activado. E, de facto, em condições
“normais” do dia-a-dia uma lesão pequena
como uma alfinetada num dedo dói menos e
67
68
durante menos tempo do que uma forte
martelada nesse mesmo dedo. Daqui resulta
que o dedo é retirado de modo mais vincado
no segundo exemplo e a maior dor sentida
obriga a pessoa a parar e a concentrar a sua
atenção na protecção da mão aleijada, deixando
de fazer qualquer outra actividade que estivesse
a fazer, situação que seria rapidamente
ultrapassada após uma pequena alfinetada. Outro
exemplo em que a dor tem uma função
biológica protectora apesar de ser muito
incómoda para as pessoas é aquela que resulta
nas dores musculares associadas a diversos estados
febris e que são referidas como “dói-me o
corpo todo, nem me consigo mexer”. Esses
estados dolorosos são controlados em parte pelo
encéfalo e obrigam as pessoas a irem deitar-se
e a repousar, com o objectivo de promover a
recuperação do organismo.
E se o sistema nociceptivo estiver bloqueado
ou for defeituoso? E se o organismo não
conseguisse detectar que a martelada é dolorosa
e esta não doesse? Ou que estávamos a tomar
banho com água muito quente e o corpo não
fosse capaz de reagir em defesa para fugir e
evitar uma queimadura extensa? As lesões
resultantes da não detecção consciente das
mesmas (ausência de dor) acarretaria graves
consequências para a saúde, eventualmente
fatais se a pessoa não estiver sobre um permanente controlo da sua interacção com o meio
ambiente que a rodeia. Por exemplo, um dos
casos mais conhecidos prende-se com uma
paciente canadiana que nasceu com uma
insensibilidade dolorosa. Desde pequena que
sofreu frequentemente lesões de alguma
gravidade que necessitavam mesmo de cuidados
médicos devido a mastigar a língua, ter lesões
musculares por exagerar o levantamento de
certos pesos ou queimar-se diversas vezes.
Acabou por morrer aos 29 anos devido a uma
infecção generalizada das articulações devido
à ausência de protecção das mesmas por falta
de uma postura corporal variável capaz de
modificar constantemente a sustentação do
corpo entre diferentes partes da estrutura óssea.
Uma pessoa normal está constantemente a
mudar de posição, em pé, deitada ou sentada
devido à percepção corporal de que muitas
vezes nem temos percepção consciente mas
que nos protege de uma postura rígida e
permanente numa mesma posição (imagine
estar em pé durante uma hora seguida sem se
mexer – de facto, seria incapaz de o fazer devido
às dores progressivamente mais intensas que
iria sentir!).
Surge agora uma nova dúvida. A importância
da dor aguda e a sua função fulcral de defesa
do organismo foi demonstrada acima com
exemplos simples, mas e quanto àquela dor
que se prolonga por vezes durante anos e que
ultrapassou à muito a importância biológica de
alerta e fuga? A dor crónica que associamos a
estadios terminais de doenças prolongadas ou
a perturbações graves do nosso aparelho
locomotor (músculos e esqueleto), que papel
representa para a vida do Homem?
A evolução biológica dos organismos apurou a percepção de dor
aguda como um dos principais mecanismos de defesa contra
agressões nocivas com origem externa ou interna ao corpo.
69
A Dor pode ser uma doença?
“A dor crónica, aquela que permanece após realizar
a sua necessária função de protecção do organismo,
não deve ser considerada como uma simples ferida ou
doença. É mesmo um síndrome – um problema
médico que, por si só, necessita de atenção e tratamento
específico” (Wall e Melzack, 1982). De facto,
desde sempre a dor foi considerada como a
expressão de uma doença subjacente. Elucidativo
desta ideia foi o facto de, ainda recentemente,
um profissional da área do tratamento de
perturbações músculo-esqueléticas questionar
a ideia consagrada pela Organização Mundial
de Saúde de que “o tratamento de todas as formas
de dor deverá ser um direito humano Universal”,
argumentando que esse direito deveria incidir
sobre o tratamento da doença causadora da dor
e não sobre o tratamento da dor propriamente
dita. Esta afirmação espelha concerteza uma
visão redutora resultante de “defeito”
profissional, pois a dor crónica músculoesquelética está muitas vezes associada a processos
inflamatórios crónicos perfeitamente identificados como causadores da dor. No entanto,
esse profissional esqueceu-se que, por exemplo
na dor associada a neoplasias terminais, deixa
de fazer qualquer sentido a eliminação da dor
por tratamento da situação que a origina,
tornando-se premente o alívio da dor para
permitir a melhor qualidade de vida possível
ao doente.
“Reacção de defesa? Aviso de sobrevivência? A
verdade é que a maior parte das doenças, mesmo as
mais perigosas, atacam-nos sem aviso. Quando surge
a dor… é tarde de mais… A Dor torna apenas
ainda mais difícil e triste a nossa situação já de si
muito grave… de facto a dor é sempre um presente
sinistro e macabro que enfraquece o Homem, que fica
ainda pior do que estava apenas com a doença
terminal” (Lerich, 1939). Dor crónica é aquela
que se prolonga para além do próprio processo
cicatricial inflamatório de uma dor aguda ou
sustentada de curta duração, geralmente com
duração superior a 6 meses e que, ao fim desse
tempo, já não tem sequer qualquer relação
aparente com o evento que resultou na dor
aguda inicial. De facto, não é fácil encontrar
qualquer valor biológico nas dores intensas e
de difícil controlo que estão associadas à fase
terminal da esmagadora maioria de doenças
prolongadas como o cancro. Já não possuem
aquela função de alerta ou aviso para uma
agressão aguda. As Unidades de Dor, especificamente devotadas para o tratamento da dor
crónica nociceptiva (resultante da activação
prolongada e excessiva do sistema nociceptivo)
ou neuropática (resultante da lesão do sistema
nervoso central ou periférico), constituídas por
equipas multidisciplinares que procuram
controlar as diversas dimensões da dor crónica,
são já uma realidade em crescimento exponencial
no nosso país. Os profissionais de saúde
implicados no controlo da dor são os primeiros
70
Outro exemplo em que a dor tem
uma função biológica protectora
apesar de ser muito incómoda
para as pessoas é aquela que
resulta nas dores musculares
associadas a diversos estados febris
e que são referidas como “dóime o corpo todo, nem me consigo
mexer”. Esses estados dolorosos
são controlados em parte pelo
encéfalo e obrigam as pessoas a
irem deitar-se e a repousar, com
o objectivo de promover a
recuperação do organismo.
a concordar que não
existe qualquer significado biológico
importante, fundamental para o organismo como mecanismo de defesa, que
possa ser atribuído à
maioria dos síndromes de dor crónica. Esta é por si só
uma doença resultante de perturbações
do funcionamento
normal do sistema
nociceptivo e dos mecanismos que controlam
a percepção dolorosa. Além da dor oncológica,
um exemplo especialmente marcante, até em
termos psicológicos, desta dor sem objectivo
definido que massacra os doentes já de si em
situação fragilizada, é a dor do membro fantasma,
em que são descritas situações de dor intensa
em partes de um membro amputado, que já
não existe e que deste modo até nem permite
que o doente possa manipular ou proteger a
pretensa área dolorosa. Esta dor, que surge
muitas vezes meses ou anos depois da
amputação, resulta de alterações do sistema
nervoso periférico decorrentes do seccionamento dos nervos pelo processo mecânico
de corte do membro.
Afinal, o que é a
Dor?
Em 1982 Melzack e
Wall afirmavam que
“apesar da sua extraordinária importância na
Biologia e na Medicina, a
palavra Dor nunca foi
definida de modo satisfatório”. Apesar de
termos a ideia de senso
comum que a dor que
sentimos é proporcional
à extensão da lesão ou
agressão que lhe deu
origem, isso não é sempre verdade. De facto,
a dor aguda, aquela que tem a função
fundamental de alertar o organismo para uma
agressão potencialmente ameaçadora da sua
integridade, é normalmente proporcional à
extensão da lesão. Então, como o objectivo
primordial do organismo é preservar a sua
sobrevivência, a evolução de milhões de anos
desenvolveu o mecanismo de a atenção do
organismo se concentrar na agressão dolorosa
e diminuir o espaço dedicado às outras sensações
provenientes do meio ambiente. Agora imagine
que está num safari e cai de um elefante e
fractura uma perna. Concerteza que nos minutos
seguintes toda a sua atenção se concentrará na
dor sentida e na sua protecção, quer requerendo
a atenção e cuidados dos acompanhantes, quer
71
movendo o menos possível o membro afectado.
Mas de repente surge um leão a umas dezenas
de metros e toda a gente começa a fugir. Acha
que vai continuar concentrado na sua dor,
encolhido a um canto e muito quieto para não
ter dor? Não, claro que não… vai-se levantar
e, dentro de certos limites, correr quase tanto
como os seus companheiros de aventura – o
que é mais importante para a “sobrevivência”
do seu organismo agora? A perna fracturada
ou a aproximação do carnívoro? Para onde está
concentrado o seu sistema nervoso agora? Para
a fuga, estando todos os outros elementos
sensoriais que o rodeiam “deprimidos” no seu
subconsciente, com o objectivo de se concentrar
no seu salvamento! Claro que depois de estar
a salvo no interior de um veículo a sua dor vai
voltar… e provavelmente muito pior devido
a ter corrido sobre uma perna partida! Mas está
vivo!
Os parágrafos anteriores permitem
compreender que dor não é apenas uma
“experiência sensorial induzida por um estímulo que
lesou o tecido corporal ou ameaçou a sua destruição
e que é introspectivamente definido por cada pessoa
como algo que dói”, conforme definido por
Mountcastle já em 1980. Como já vimos, dor
não possui apenas uma dimensão sensorial,
responsável pela determinação da intensidade,
duração, localização e tipo de dor, “é uma
experiência sensorial, afectiva e cognitiva desagradável
associada a uma lesão do corpo real ou virtual, ou
descrita com termos usados numa lesão desse tipo”
(Merskey et al, 1979), conforme definição
actualmente aceite pela Associação Internacional
para o Estudo da Dor (IASP). O estado
emocional em que nos encontramos influencia
claramente a percepção dolorosa final, inibindo
a dor em relação ao “normal” em situações de
grande stress, por exemplo quando, no exemplo
acima, o leão aparece e induz um medo tal
que constitui por si só uma situação fortemente
“analgésica”. Por outro lado, estados emocionais
depressivos graves podem hiperbolizar a
percepção dolorosa. A componente cognitiva
da dor refere-se à influência que a cultura, as
experiências “dolorosas “ passadas, as crenças
religiosas ou a falta delas, o espírito de sacrifício
e outras características pessoais têm em modular
a dor que sentimos. Assim, a dimensão afectivacognitiva da dor refere-se aos complexos
comportamentos de reacção e fuga desencadeados pelas qualidades do estímulo referidas
como desagradáveis ou aversivas.
Como é que sentimos Dor?
O sistema nociceptivo, que permite que um
estímulo nóxico (potencialmente lesivo)
mecânico (alfinetada), térmico (queimadura)
ou químico (ácido) seja transformado num sinal
eléctrico à periferia do sistema nervoso periférico
72
(nervos) e transmitido ao sistema nervoso central
(encéfalo e medula espinhal) onde é experienciado como dor, é constituído por vias
anatómicas constituídas principalmente por 4
neurónios em cadeia (Figura 1):
Figura 1. Representação esquemática do Sistema Nociceptivo.
Notar a sequência dos 4 neurónios principais implicados na
transdução de um estímulo nóxico (potencialmente doloroso)
num sinal eléctrico, no envio da mensagem nociceptiva até à
medula espinhal e tálamo e na geração final das várias dimensõesl
da experiência dolorosa no córtex.
A pele, as articulações, os músculos, os vasos
sanguíneos e as vísceras são enervadas por fibras
(prolongamentos de neurónios) que neles
terminam livremente (terminações nervosas
livres) ou rodeados por tecido conjuntivo
especializado (receptores capsulados). Na pele,
as fibras que terminam em receptores capsulados
são responsáveis pela detecção de estímulos
inócuos, não dolorosos e chamam-se fibras A
(A-beta). As fibras que terminam livremente
são responsáveis pela transdução de estímulos
nóxicos (“dolorosos”), são de dois tipos, fibras
A (A-delta) e fibras C, constituem o primeiro
componente do sistema nociceptivo e
denominam-se nociceptores (Figura 1). As
fibras nociceptoras não são mais do que o
prolongamento axonal periférico do 1º neurónio
da cadeia nociceptiva (neurónio = célula
nervosa), denominado aferente primário
(núcleo localizado no gânglio raquidiano, junto
à coluna vertebral), enquanto o prolongamento
axonal central termina no corno dorsal da
medula espinhal. Aqui o aferente primário
forma uma sinapse com os neurónios
espinhais nociceptivos, de 2ª ordem, e o sinal
eléctrico é transmitido por libertação de neurotransmissores excitatórios na fenda sináptica,
entre o neurónio pré-sináptico (o aferente
primário) e o neurónio pós-sináptico (o neurónio espinhal) (Figura 1). Os neurónios espinhais
são responsáveis por transmitir a informação
nociceptiva até ao encéfalo através de axónios
73
longos que terminam principalmente no tálamo,
onde fazem sinapses com os neurónios
talâmicos de 3ª ordem (Figura 1). Esta projecção
espinhotalâmica é constituída por 2
componentes anatómico e funcionalmente
diferentes: a projecção espinhotalâmica lateral
(ETL; a vermelho na Figura 1) e espinhotalâmica
medial (ETM; a azul na Figura 1). A ETL
activa neurónios no tálamo lateral (a vermelho
na Figura 2), os quais enviam axónios que vão
activar especificamente neurónios do córtex
somatosensitivo, os neurónios de 4ª ordem
(Figura 1) responsáveis pela detecção de
componentes sensitivos da nocicepção e pelo
processamento da dimensão sensitiva-discriminativa da dor (expressões a vermelho na
Figura 2). A ETM activa neurónios do tálamo
medial (a azul na Figura 2), os quais enviam
axónios para grandes áreas do córtex e áreas
subcorticais implicadas no processamento
emocional e cognitivo (sistema límbico),
nomeadamente o córtex cingulado anterior,
a amígdala e o hipocampo (Figura 1)
implicados no processamento da dimensão
afectiva-cognitiva da dor (expressões a azul na
Figura 2). Do resultado do processamento da
informação nociceptiva nos centros sensitivodiscriminativos e afectivo-volitivos é gerada a
experiência dolorosa com todas as reações
motoras e psicológicas que compõem a dor.
Figura 2. Diagrama elucidativo da geração de sinais ligados
ao processamento das componente sensitiva-discriminativa
(tálamo lateral, a vermelho) e afectivo-volitiva (tálamo medial,
a azul) da experiência dolorosa. A informação nociceptiva
gerada à periferia pelo estímulo doloroso (martelada no pé) é
transportada da periferia para a medula espinhal pelas fibras
nociceptoras (A e C) dos neurónios aferentes primários e da
medula para o tálamo pelos neurónios espinhais com projecções
axonais longas ascendentes (neurónios espinhotalâmicos).
Será sempre importante biologicamente
sentir Dor?
Já foi focado atrás que, tendo em conta que
a prioridade do organismo é “preservar a sua
integridade”, a dor aguda é um mecanismo de
74
alerta fundamental estando por isso as vias
anatómicas que constituem o sistema
nociceptivo “ligadas” e em alerta contínuo
em relação aos estímulos provenientes do meio
ambiente, exterior ou interior ao corpo. Por
outro lado, numa situação de perigo eminente,
causadora de grande stress ou medo intenso, a
prioridade do organismo continua ser a mesma
(sobrevivência) e por isso a activação de
mecanismos de fuga induzidos pela activação
do eixo hipotálamo-pituitária-glândula suprarrenal e consequente libertação de adrenalina
passam a ser o mecanismo fundamental de
defesa, passando a percepção dolorosa claramente
para 2º plano. No caso da história do safari,
para que interessa sentir dor se o leão nos
devorar? Neste caso torna-se imperioso “desligar” fisiologicamente o sistema nociceptivo
e assim interromper a transmissão de informação
potencialmente dolorosa da periferia até aos
centros superiores que processam a dor. Deste
modo, a atenção do sistema nervoso em manter
as capacidades físicas preparadas para a fuga não
é prejudicada pelo irromper de informação
dolorosa, a qual iria perturbar ou impedir o
processo imediato de procura de protecção. É
preciso então um mecanismo endógeno, isto
é, activado fisiologicamente pelo próprio
organismo, que seja capaz de “desligar” o
sistema nociceptivo.
Sistema endógeno de controlo da dor
Em 1969 um cirurgião de nome Reynolds
fazia experiências em ratos que consistiam na
introdução de eléctrodos em certas partes do
encéfalo e passagem de corrente eléctrica que
induzia a activação das células nervosas dessa
área cerebral por excitação eléctrica. Este tipo
de experiência mimetiza a passagem de
informação ao longo das células nervosas, já
que esta é ela própria um sinal eléctrico.
Reynolds procurava activar uma área do
hipotálamo mas enganou-se nas coordenadas
do aparelho onde a cabeça do animal estava
presa e injectou uma área mais caudal do
encéfalo, denominada substância cinzenta
periaqueductal (PAG – do inglês “periaqueductal
gray”), localizada em volta do espaço
interventricular entre o 3º e 4º ventrículos
cerebrais, o Aqueducto de Sylvius (ver
localização da PAG na Figura 3). Verificou que
a estimulação da PAG induzia uma analgesia
(ausência de dor) tão profunda e intensa que
permitia a realização de cirurgia abdominal sem
a administração de qualquer analgésico ou
anestésico. Trabalhos posteriores mostraram
que a PAG era na realidade o centro cerebral
de um circuito com a capacidade de “desligar”
o circuito nociceptivo (Figura 3). Para isso os
neurónios da PAG enviam axónios para uma
área localizada mais caudalmente no cérebro,
o bolbo raquidiano rostral ventromedial (RVM
– do inglês “rostral ventromedial medulla”) que
Como já vimos, dor não possui apenas uma dimensão sensorial,
responsável pela determinação da intensidade, duração, localização
e tipo de dor, “é uma experiência sensorial, afectiva e cognitiva
desagradável associada a uma lesão do corpo real ou virtual, ou
descrita com termos usados numa lesão desse tipo” (Merskey et
al, 1979), conforme definição actualmente aceite pela Associação
Internacional para o Estudo da Dor (IASP).
formam sinapses com neurónios do RVM e
os activam. Os neurónios do RVM activados
enviam por sua vez axónios descendentes de
longo alcance que terminam no corno dorsal
da medula espinhal, exactamente nas áreas da
medula que contêm os neurónios nociceptivos
de 2ª ordem que são activados pelas fibras
nociceptoras dos neurónios aferentes primários
de 1ª ordem (Figura 3). As terminações dos
axónios que descendem do RVM vão aí formar
sinapses com os neurónios espinhais e / ou
com as terminações das fibras nociceptoras
libertando neurotransmissores inibitórios que
bloqueiam a passagem do sinal eléctrico do 1º
para o 2º neurónio (Figuras 1 e 3). Outra forma
de bloquear a nocicepção é excitando interneurónios inibitórios do próprio corno dorsal
da medula espinhal que, ao libertarem por sua
vez neurotransmissores inibitórios vão impedir
a transmissão nociceptiva normal. Deste modo,
a informação nociceptiva gerada por um
estímulo nóxico lesivo aplicado à periferia,
apesar de activar normalmente as fibras A e C
nociceptoras, não passa para o sistema nervoso
central, não atinge os centros superiores de
processamento da experiência dolorosa, o organismo não sente dor e pode concentrar-se
noutros factores momentaneamente mais importantes para a sua sobrevivência, como fugir
com a máxima velocidade possível. O circuito
PAG-RVM-medula constitui a base do mecanismo mais estudado nos últimos 40 anos englobado no Sistema Endógeno de Controlo
da Dor, o qual pode ser activado fisiologicamente por neurotransmissores libertados
pelo próprio organismo ou aplicados externamente para controlar a dor.
A PAG é uma das áreas cerebrais cujos
neurónios apresentam maior densidade de
receptores opióides, isto é, proteínas localizadas
nas membranas celulares que são os locais onde
os neurotransmissores opióides (endorfinas) se
ligam e desencadeiam o sinal eléctrico que
constitui a informação que percorre as vias
nervosas. Sabendo que o agente externo morfina
75
76
Assim, após a activação da AMI por uma mensagem sensorial
proveniente do tálamo ou córtex, esta pode imediatamente ir
regulando as áreas corticais que para ela projectam e dessa forma
controlar os tipos de mensagens sensoriais que recebe do córtex,
filtrando positivamente aquelas que podem constituir especial
ameaça para o organismo.
Figura 3. Sistema Endógeno de Controlo da Dor (SECD). A
informação nociceptiva proveniente da periferia e transmitida ao
neurónio espinhal de 2ª ordem é sujeita, ao nível sináptico, ao
controlo de passagem por parte de axónios longos descendentes
provenientes do bolbo raquidiano rostral ventromedial (RVM)
e de áreas noradrenérgicas do tronco cerebral (DLPT).
Interneurónios inibitórios de axónio de ramificação curta e local,
com opióides ou com GABA, podem também localmente controlar
a passagem de informação “dolorosa” para o encéfalo. A origem
do SECD está na substância cinzenta periaqueductal (PAG), a
qual controla a influência descendente do encéfalo sobre a
transmissão nociceptiva espinhal ao projectar axónios que controlam
a actividade dos neurónios do RVM. A analgesia mediada pela
activação do circuito PAG-RVM-corno dorsal da medula espinhal
pode ser activado exteriormente com a administração de fármacos
opióides (como a morfina), devido à riqueza em receptores opióides
nos neurónios da PAG e RVM. As emoções e aspectos cognitivos
passados podem activar a “analgesia endógena” mediada por este
circuito já que a amígdala (AMI) e o córtex límbico (cingulados/préfrontal), implicados fortemente no processamento das dimensões
afectivo-cognitivas da dor, não só projectam para a PAG e podem
activar directamente o circuito como podem libertar do hipocampo
(HIP) opióides endógenos que, ao serem libertados na PAG por
projecções axonais, vão também activar o circuito analgésico.
se liga fortemente aos mesmos receptores da
PAG que são activados pela ligação das
endorfinas endógenas responsáveis pela activação
do sistema endógeno de controlo da dor que
bloqueia a transmissão nociceptiva, percebe-se
porquê que a morfina e seus derivados continuam a ser os mais potentes analgésicos
disponíveis farmacologicamente para o controlo
da grande maioria dos síndromes dolorosos.
Como é que as emoções controlam a
Dor?
Se reparar na Figura 3, foi discutida apenas
a conexão PAG-RVM-medula como um dos
principais circuitos activados para controlo da
dor. Mas, e que áreas cerebrais superiores são
responsáveis por activar os neurónios da PAG
tal como foi mimetizado por Reynolds ao
estimular electricamente a PAG? Que alterações
ambientais poderão desencadear a activação do
sistema endógeno de controlo da dor?
A amígdala (AMI) é uma área telencefálica
fundamental para o desencadear de reacções
emocionais, principalmente em situações que
induzem medo (Figura 3). A AMY recebe
informação de regiões corticais que processam
todas as modalidades sensoriais e envia axónios
de volta a essas mesmas regiões corticais. As
conexões do córtex sensorial para a AMY
permitem a esta detectar situações de perigo
eminente. As conexões da AMY para o córtex
permitem à própria AMY influenciar o
processamento sensorial que ocorre no cortex.
Muito importante é o facto de a informação
que sai da AMI ocorrer antes da modulação
que o córtex exerce sobre ela – este facto explica
os “sustos” – reacções de medo desencadeadas
pela AMI antes da consciencialização da situação
(inofensiva) que lhes deu origem. Assim, após
a activação da AMI por uma menssagem
sensorial proveniente do tálamo ou córtex, esta
pode imediatamente ir regulando as áreas
corticais que para ela projectam e dessa forma
controlar os tipos de mensagens sensoriais que
recebe do córtex, filtrando positivamente aquelas
que podem constituir especial ameaça para o
organismo. É de notar ainda que a AMI pode
influenciar os processos sensoriais que ocorrem
no córtex de modo indirecto, activando os
sistemas de “alerta / vigília” através de conexões
para áreas do encéfalo as quais por sua vez
possuem elevado número de projecções para
grandes áreas do córtex. Assim, quando a AMI
detecta o perigo pode activar estes sistemas de
alerta espalhados pelo encéfalo, os quais podem
influenciar e direccionar o processamento da
informação sensorial que rodeia o organismo.
Finalmente, as respostas corporais iniciadas pela
AMI em resposta ao medo podem também
influenciar a actividade cortical através de
mecanismos de retroinfluência (“feedback”)
resultantes de sinais provenientes das vísceras
ou dos níveis de hormonas em circulação no
sangue.
77
78
Um estímulo auditivo que, por aprendizagem,
esteja associado ao medo (medo condicionado)
envolve projecções do sistema auditivo para a
AMY, enquanto a colocação do animal num
ambiente experimental que evoque medo
envolve a representação do contexto pelo
hipocampo (sistema cognitivo) e a comunicação deste com a AMY (sistema emocional).
A resposta da amígdala faz-se através de
projecções axonais de curto e longo alcance
para o hipotálamo, telencéfalo, tronco cerebral
e mesmo a medula espinhal, as quais vão desencadear a resposta fisiológica e comportamental
ao medo. Em termos de processamento
doloroso, é natural que um estímulo doloroso
agudo inesperado resulte na activação imediata
da AMI, enquanto que dor associada a um ambiente físico, contextual ou ambiental implique
o recrutamento do hipocampo e de factores
cognitivos como alguma experiência passada
num ambiente semelhante à nova situação.
Este é um exemplo de interação entre emoções
e cognição no processamento doloroso.
No homem, a lesão da AMY interfere com
as memórias emocionais implícitas (inatas
a cada pessoa) mas não afecta as memórias
explícitas (resultantes de algum processo de
aprendizagem) sobre emoções, enquanto que
lesões de áreas cognitivas do lobo cortical
temporal médio (hipocampo) interferem com
as memórias explícitas sobre emoções mas não
afectam as memórias emocionais implícitas.
Como o sistema de memória do hipocampo
projecta para a AMI, esta conexão pode justificar
que memórias de eventos traumáticos passados
possam desencadear reacções de medo, aparentemente injustificadas, em determinados
contextos ambientais.
As experiências conscientes (sentimentos)
são muitas vezes referidas como reflectindo o
conteúdo da memória de trabalho (a que se
encontra em processamento, tal como a
memória RAM de um computador – do inglês
“working memory”). Neste sentido, uma emoção
consciente não deverá ser assim tão diferente
de qualquer outro tipo de experiência
consciente. A diferença estará mais nos sistemas
que fornecem informação à memória de
trabalho do que nos mecanismos de consciência
propriamente ditos. No caso de experiências
de medo, ou sentimentos de medo, a emoção
consciente pode resultar do facto do estímulo
desencadear inconscientemente memórias
explícitas de longo termo (memórias de eventos
passados mas marcantes) e activação da AMI.
Outros sentimentos poderão surgir de modo
semelhante mas sem envolverem o recrutamento da AMI.
De que maneira é que a AMI, quando
activada pelo medo, vai activar o sistema
endógeno que inibe a percepção dolorosa
através do bloqueio da transmissão da
informação nociceptiva ao nível da medula
79
A Dor é um caso especial de processamento sensorial devido à
grande relevância do seu significado sendo, por isso, extremamente
recrutadora da atenção do organismo (daí a necessidade de ser
inibida em situações de perigo real). Mesmo assim, a dor pode ser
modulada pela carga cognitiva associada: observou-se um aumento
dos níveis de dor quando pacientes submetidos a cirurgia foram
instruídos a concentrarem-se na dor, enquanto a distracção diminui
a dor e aumenta a tolerância do organismo.
espinhal? Sabendo que o medo activa a AMI
e é fortemente “analgésico” (inibe a percepção
dolorosa), pensou-se inicialmente que as próprias
projecções axonais da AMI para a medula
espinhal estivessem directamente implicadas
no bloqueio da transmissão da informação
nociceptiva espinhal. De facto, a estimulação
eléctrica da AMI induz analgesia associada a
uma inibição da actividade de neurónios
espinhais nociceptivos. No entanto, verificou-
se que a destruição selectiva da PAG resultava
numa diminuição drástica do efeito analgésico
mediado pela activação da AMI. Estes dados
mostram que, de facto, a activação da AMI
induzida por factores emocionais como aqueles
induzidos pelo medo activam o sistema
endógeno de controlo da dor, nomeadamente
o circuito PAG-RVM-medula espinhal, através
de projecções axonais da AMI para a PAG
(Figura 3). Por outro lado, a regulação da
80
libertação de opióides endógenos a partir do
núcleo arqueado do hipotálamo (HIP; Figura
3), através de projecções axonais directas para
a PAG (Figura 3), é um dos meios utilizados
pelos centros encefálicos superiores (como a
AMI) para induzir analgesia mediada por
opióides endógenos.
Quanto à dimensão cognitiva do processamento doloroso, a participação do
hipocampo na inserção de memórias passadas
na avaliação de uma situação dolorosa já foi
referida atrás, podendo estar associado a
alterações na dor induzidas por memórias
passadas e processos de aprendizagem. Além
do hipocampo, também o córtex cingulado
anterior (CIN; Figura 3) tem sido
particularmente ligado ao processamento
cognitivo em geral (atenção, novidade,
interferência e resposta competitiva), mas
também ao processamento da dor. A Dor é
um caso especial de processamento sensorial
devido à grande relevância do seu significado
sendo, por isso, extremamente recrutadora da
atenção do organismo (daí a necessidade de ser
inibida em situações de perigo real). Mesmo
assim, a dor pode ser modulada pela carga
cognitiva associada: observou-se um aumento
dos níveis de dor quando pacientes submetidos
a cirurgia foram instruídos a concentrarem-se
na dor, enquanto a distracção diminui a dor e
aumenta a tolerância do organismo. Redes
neuroniais que associadas quer à dor quer à
atenção estão na base destes efeitos comportamentais: o ACC e o córtex préfrontal
dorsolateral são 2 dos principais pontos comuns
a estes processamentos. A actividade do CIN
é modulada de modo diferente durante testes
de atenção ou dor e a dor aguda em participantes
saudáveis e em participantes com dor crónica
resulta em diferentes padrões de activação do
CIN. A actividade no CIN está assim fortemente
ligada ao processamento cognitivo da
experiência subjectiva que constitui a reacção
desagradável à dor e, através das conexões com
a AMY e a PAG, deverá regular os mecanismos
endógenos de controlo da dor (Figura 3).
Bibliografia de Consulta:
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como centro de facilitação da dor. Dor, 8:23-40 (2000).
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Lima D, Almeida A. The medullary dorsal reticular nucleus as a
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Wall P. Pain: the science of suffering. Columbia University Press,
New York (2000).
Maria Arminda Mendes Doutoramento em Ciências da Educação (Especialização em Formação de Adultos).
Costa
Professora Coordenadora com Agregação.
Investigadora da UNIFAI (ICBAS/UP).
82
O estudo, cujo resumo se apresenta, é o culminar de alguns anos de investigação
Problematizamos a formação dos enfermeiros,
imergimos no contexto de produção de cuidados a idosos, para problematizar
distanciamo-nos do mesmo num esforço teórico de análise e compreensão e
Enfermagem geriátrica:
a “arte” de aprender cuidando.
83
na área dos cuidados aos idosos.
para perceber as práticas que constroem nos cuidados que produzem;
a dinâmica interactiva e formativa que aos mesmos estará inerente;
reimergimos na indefinível realidade dos cuidados de enfermagem,
onde se fundem o intelectual e o afectivo, o cognitivo e o experiencial,
certos de que entre o que é e o que deve ser não há uma lógica directa.
A- Enfermagem: Percursos e processos.
“A nossa vida só tem sentido face à memória”.
Moita Flores.
A enfermagem escreve a sua história na
história da humanidade. Delinear este percurso
não é o objectivo, mas apenas recordá-lo.
Oriunda do desejo eterno do homem em
promover a vida, em recuperá-la, em vivê-la
melhor, em prolongá-la, o homem encontra
nos cuidados (e em quem cuida) o alibi da
existência: nascemos e morremos, apelando e
solicitando cuidados.
Enfermagem e velhice assumem-se nesta
investigação como os dois pólos de um fio
condutor, que interliga enfermeiros e idosos /
cuidados e formação: as sinergias de um
movimento que, inscrito na sociedade, tem
raízes educativas, porque articulado entre uma
trajectória biográfica e um contexto de trabalho
específico.
A dúvida - A pesquisa centra-se num
contexto de trabalho de enfermeiros, cuja
população alvo de cuidados são predominantemente idosos (pessoas com mais de 65
anos e doentes internados) – um Serviço de
Medicina de um hospital central da cidade do
Porto em torno de algumas questões essenciais:
Como atravessam os idosos a problemática
formativa dos enfermeiros e seus percursos
biográficos? Como a determinam? Como
constroem os enfermeiros o saber geriátrico?
Com que interacções e em que contextos?
84
A finalidade centralizadora do estudo
– Compreender o processo de construção do
saber geriátrico dos enfermeiros, em contexto
de trabalho, tendo como base as premissas:
- O Serviço de Medicina, como unidade
prestadora de cuidados a idosos, constitui-se
num ecossistema, interpelado por uma
população utilizadora específica (os idosos);
- Os cuidados dos enfermeiros, no Serviço
de Medicina, são atravessados pelas dimensões
sócio-técnicas do trabalho em cuidados
geriátricos, num ecossistema específico; os
modos e condições de produção de cuidados
mobilizam um conjunto heterogéneo de
profissionais com saberes diversos e que
interagem na produção de cuidados;
- Na construção de competências geriátricas
dos enfermeiros, atravessam-se dinâmicas
inerentes aos actores dos cuidados, aos
utilizadores e ao contexto organizacional, em
interacções mais ou menos deliberadas.
O modo desta investigação – estudo
etnográfico – privilegiando-se o contacto directo
do investigador com a situação de cuidados e
o contexto sócio-profissional, em que interagem
os actores; o dispositivo metodológico (baseado
na observação participante, entrevistas a
enfermeiros e idosos, documentos vários do
hospital, do serviço...) foi sendo construído ao
longo da investigação (fluidez e abertura)
procurando-se elucidar a lógica do trabalho
geriátrico na equipa de enfermagem, interpretar
as parcerias de cuidados desenhadas entre os
profissionais e com os doentes, e a interacção
com outros profissionais do terreno, designadamente os médicos, na construção dos
cuidados geriátricos.
O carácter fenomenológico do estudo feznos imergir no contexto do mesmo concentrando-nos na experiência dos actores –
enfermeiros e idosos, partilhando-a, para
compreender como cada actor constrói uma
realidade que, sendo individual, também é
colectiva, mediante um sistema de interacções
e realidades plurireferenciadas, que atravessam
o contexto de cuidados aos idosos.
B - Percursos de cuidados com idosos:
Que significados para os enfermeiros?
“Embora tivesse lido, vezes sem conta, o que
escrevera, só agora percebi que todos os textos,
de uma forma ou de outra, contêm algo de
biográfico...”
João Lobo Antunes
A dúvida perseguia-nos e fora-se instalando
ao longo do estudo: como se relaciona a
problemática equacionada com a trajectória
biográfica dos actores? Como atravessam os
idosos a problemática da formatividade das
práticas geriátricas?
A explicitação dos fenómenos sociais e
humanos, que ocorrem no universo dos
cuidados aos idosos, surge como indiciadora
de ligações entre os acontecimentos do percurso
de vida dos enfermeiros, designadamente os de
natureza familiar, e os modos de acção e
interacção com os utilizadores idosos dos
cuidados. Os resultados desta investigação situam
a problemática da experiência de vida do
enfermeiro no continuum da sua convivência
com pessoa idosas, exercendo estas um papel
activo na facilitação e/ou disponibilização dos
profissionais para o cuidado.
Ao longo do estudo, expressões como:
A explicitação dos fenómenos sociais e humanos, que ocorrem no
universo dos cuidados aos idosos, surge como indiciadora de ligações
entre os acontecimentos do percurso de vida dos enfermeiros,
designadamente os de natureza familiar, e os modos de acção e interacção
com os utilizadores idosos dos cuidados.
“…lembrava-me da minha mãe...”, “...eu via ali
a minha avó a sofrer...”, “...pensei no meu avô que
tinha reacções semelhantes...”, “…são como meus
avós…” convergem para um modelo afectivo,
cuja tendência, por vezes, é bidireccional, pois,
embora com menos frequência, também alguns
idosos se referiam aos enfermeiros: “...são como
minhas filhas...”. Resultado diferente é o
apresentado por Trabor, ao constatar que os
serviços geriátricos são fontes de stress e de
burn out dos enfermeiros, chegando a
recomendar remunerações adicionais como
modo de resolver a questão...
O cuidado de enfermagem geriátrico desliza,
assim, num sistema de interacções, que se
apresenta como positivo, porque influenciado
por representações da infância, potenciado por
experiências estruturantes, vividas na formação
inicial de enfermagem, em contextos que se
apresentam simultaneamente seguros e agressivos
para os utilizadores, mas que se estruturam,
tendo como vector principal de orientação a
especificidade de cuidados aos idosos.
C - Cuidados geriátricos: construção de
lógicas de cuidados?
“Bem-fazer e fazer bem – uma forma simples
de dizer competência.”
Idália Sá-Chaves.
O desconforto evidente dos profissionais de
saúde, incluindo os enfermeiros para intervir
junto dos idosos, segundo Nuno Grande, oscila
entre a sua incapacidade em compreender a
velhice e a de ter as respostas adequadas para
os seus problemas. Como se constroem os
cuidados para responder aos problemas dos
idosos? Que lógicas os determinam? Como são
construídas? A questão que se coloca é a da
inter-relação que é possível estabelecer entre
competências, formação e conhecimento
profissional em cuidados geriátricos.
O cuidado geriátrico - como objecto de
conhecimento em enfermagem - é estudado
nesta investigação numa perspectiva
simultaneamente individual e colectiva,
decorrente do modo de investigação utilizado
– estudo etnográfico. Diversos investigadores
advogam uma nova gestão dos interfaces entre
os indivíduos e as instituições, responsabilizando
os primeiros pela eficácia dos segundos, numa
lógica redistribuidora de papéis, responsabilidades
e forças entre os actores e os sistemas.
A articulação equacionada entre formação,
competências e conhecimento profissional
radica-se no pressuposto de que a lógica
interactiva, evidencidada em estudos anteriores
(Costa, 1994 COSTA, M. A. (1994) – Os
idosos nos caminhos e descaminhos da
formação dos Enfermeiros da formação
dos Enfermeiros. In: Geriatria, ano VII, nº
85
86
66, Junho, p. 17-19., 1998 COSTA, M. A.
(1998) – Enfermeiros: dos percursos de
formação à produção de cuidados. Lisboa.
Edições Fim de Século. 159 p., 2002 COSTA,
M. A. – Cuidar Idosos. Formação, Práticas
e Competências dos Enfermeiros. Coimbra.
Ed. Formasau e Educa. 327 p.), permitiria o
acesso a racionalidades inerentes a constructos
profissionais para uma mais lúcida compreensão
epistemológica, quer do desenho das
competências geriátricas dos actores, quer dos
modos de produção do conhecimento que as
sustentam.
Estudos recentes sobre as competências dos
enfermeiros junto da população idosa (Melo,
1996 MELO, A. (1996) – Competência do
Enfermeiro no cuidar do idoso. Opinião
dos idosos e dos enfermeiros. Dissertação
de Mestrado em Ciências de Enfermagem.
Faculdade de Ciências Humanas. Universidade
Católica Portuguesa, Lisboa.) evidenciam a
elevada complexidade do cuidado geriátrico,
sustentando que factores extrínsecos aos
enfermeiros são inibidores da sua competência.
A dicotomia entre aquilo em que os enfermeiros
acreditam (os cuidados globais) e aquilo que
efectivamente praticam (cuidados técnicos) é
suportado pela experiência desagradável de
trabalho que os idosos proporcionam aos
enfermeiros, o que está de acordo com a
afirmação de Nuno Grande, já referida e com
a investigação de Personne PERSONNE, M.
(1991) - Soigner les personnes âgées à
l’hôpital. Tolouse, Ed. Privat. (1991).
O processo de investigação permitiu
sistematizar que a construção de cuidados
geriátricos de enfermagem assenta em dois
eixos estruturantes dos cuidados geriátricos e
com os quais se identificam as lógicas da acção.
a) Área explicativa dos cuidados
geriátricos, organizada em torno dos cuidados
aos doentes idosos, do grupo de pares e para
o exterior da profissão, objectiva-se em cuidados
geriátricos visíveis, designadamente:
- As funções profissionais que, ao longo dos
tempos, têm sido designadas como integradoras
do paradigma do cuidar e do tratar (Ribeiro,
1995 RIBEIRO, F. (1995) - Cuidar e tratar:
Formação em Enfermagem e desenvolvimento
sócio-moral. Lisboa, Educa.) ou os cuidados
de manutenção da vida e de reparação;
- As funções que permitem a reorganização
ambiental do idoso (cuidados ecológicos e
familiares) em ambiente terapêutico de saúde
e de bem-estar.
b) Área intrínseca ao enfermeiro, que
cuida idosos, enraíza-se na sua personalidade
e é inerente ao seu modo de ser pessoa, gerando,
a partir do que é e mediante a sua implicação
na actividade, novas formas de cuidar, criando
cuidados mediante um processo formativo auto
e hetero - estruturante e, simultaneamente,
revitalizador do contexto pela construção
partilhada. A relação entre o que se é e o que
se faz exterioriza no cuidado de enfermagem
o compromisso social com os doentes idosos
– respeitando as suas crenças e valores, e
potenciando a sua participação nos cuidados e
com a profissão – no compromisso com a autoactualização de conhecimentos e a habilitação
permanente para cuidar.
A simultaneidade, que entre ambos se
estabelece, permitiu sistematizar um conjunto
de princípios e convicções, que baseiam a
actuação dos enfermeiros e suas lógicas de
desenvolvimento:
- Especificidade dos cuidados geriátricos: doentes
com necessidades especificas, que decorrem da
sua estrutura biológica, psicológica, espiritual
e cultural, assim como do tecido social e
comunitário a que pertencem.
- Contexto de cuidados e processo de cuidados: os
enfermeiros identificam-se com uma visão
humanista de cuidados, na qual cuidar surge
como uma acção humana mais de natureza
antropológica do que técnica. Em condições
logísticas e organizacionais de produção de
cuidados, por vezes adversas (assim percebidas
pelos actores e utilizadores dos cuidados), o
conceito de AJUDA orienta uma prática na
qual o doente idoso assume o papel de
participante.
- Construção do conhecimento na acção e pela
acção de cuidados: os enfermeiros tornam-se coconstituintes do conhecimento na acção de
cuidados aos idosos, reconstruindo o sentido
da formação: “...É um conhecimento global que
só ali a gente aprende, mas que se calhar não é
suficiente para tratar os doentes geriátricos...”. Nele
se evidencia a necessidade de um processo
continuado de (auto)formação, perante a
desactualização permanente dos saberes no
contexto social de trabalho (Alarcão, 1997
ALARCÃO, I. (1997) – Prefácio. In: SÁCHAVES, I. (org) – Percursos de formação e
desenvolvimento profissional. Porto, Porto
Editora.).
O processo de construção de competências
em cuidados geriátricos tem, no utilizador dos
cuidados, o núcleo polarizador da dinâmica
que as gera em contexto. A especificidade das
necessidade dos idosos e a singularidade do
cuidado geriátrico proporcionam e enquadram
uma experiência de formação que, para além
de ser mobilizada, é construída em situação
(Le Boterf, 1995 LE BOTERF, G. (1995) De la Competénce. Paris, Éditions
d’Organization.). É também revelador da
natureza da prática de enfermagem.
Cabe, aqui, uma palavra relativamente à
87
O cuidado de enfermagem geriátrico desliza, assim,
porque influenciado por representações da infância,
vividas na formação inicial de enfermagem,
seguros e agressivos para os utilizadores, mas que se estruturam,
88
construção de competências pelo colectivo dos
actores de cuidados. A sua identificação apresenta
contornos frágeis no contexto de trabalho: ora
surge diluída na controvérsia do percurso das
identidades profissionais, ora se submerge na
lógica burocrática da formação em serviço,
cujos caminhos trilham sendas de um
tradicionalismo identificado pelos enfermeiros
e marcado por determinismos estruturalmente
definidos na instituição e na carreira profissional:
concursos, acesso a cursos, avaliação do
desempenho. A sua identificação não parece
evidenciar-se nos modos de pensar a acção
colectiva e no modo como os percursos
individuais se articulam entre si (Friedberg,
1993 FRIEDBERG, E. (1993)- Le Pouvoir
et la Règle. Paris, Ed. Seuil.; Canário, 1999
CANÁRIO, R. (1999) – Educação de
adultos. Um campo e uma problemática.
Lisboa, Educa – Formação.).
Posição semelhante é a partilhada pelos
doentes idosos do serviço, que identificam o
trabalho dos enfermeiros como subalternizado
ao dos médicos (burocracia medicalizante),
numa lógica social de desvalorização dos
cuidados (enfatizando a sua visibilidade primária:
a cura) e de revalorização dos cuidados
comunicacionais e de relação (visibilidade
secundária: o conforto e bem-estar).
As dimensões identificadas nos cuidados
sistematizam, globalmente, a construção de
competências num percurso profissional que,
inscrito na problemática global do cuidado e
da formação em enfermagem geriátrica, atravessa
o contexto de cuidados geriátricos de
enfermagem, interligando o que se faz ACÇÃO - “de nós eles esperam tudo...”, o que
no decurso da acção decorre – RELAÇÃO –
“é muito importante o carinho com que o fazem...”
(testemunho de uma idosa) e é preenchido pela
capacidade reflexiva e implicativa do que se é
– SER – “se eu fosse idosa, gostava de ser cuidada
por ela, porque ela tem o resto, tem capacidade de
olhar...” (testemunho de uma enfermeira).
D - Cuidados geriátricos: traços e sentidos
de (des)continuidade.
“O homem tem necessidade de amor, é
verdade; tem ainda mais necessidade de justiça;
mas tem, sobretudo, necessidade de sentido”.
Paul Ricoeur
A natureza da prática dos cuidados de
enfermagem geriátricos e os eixos estruturantes,
em que os mesmos se organizam, permitem
identificar, no contexto de cuidados, sentidos
e traços de (des)continuidade, que interligam
cuidados / saber / formação, em cuidados de
enfermagem geriátricos. O enfermeiro produz
e produz-se nos cuidados que dispensa aos
doentes idosos. O percurso da reflexão na e
sobre a acção, tanto individualmente como no
num sistema de interacções, que se apresenta como positivo,
potenciado por experiências estruturantes,
em contextos que se apresentam simultaneamente
tendo como vector principal de orientação a especificidade de cuidados aos idosos.
grupo de pares, potencializa o continuum do
SER profissional em situação de cuidados:
compreensão – transformação – compreensão,
o que determina que os enfermeiros se
apresentem simultaneamente, como utilizadores
e produtores de saberes geriátricos: “A experiência
é como um copo de água: vai-se enchendo e vai-se
bebendo, de maneira que caiba sempre mais. Eu
acho que nunca se chega a ser perfeito; gostava de
ser, mas também aprendemos no dia a dia e, depois,
vamos melhorando a maneira de ser e de fazer...”
(testemunho de um enfermeiro). A natureza
da prática de enfermagem toma visibilidade na
diversidade de actuações, constelando, pela
formação, novas competências.
A formação e construção dos cuidados de
enfermagem geriátricos surgem, também, como
um processo contingente e contingencial, nos
seus modos de operacionalização em contexto;
estes fragilizam o processo global e dificultam
a desocultação do agir profissional (Schön, 1996
SCHÖN, D. (1998) – El professional
reflexivo. Como piensan los professionales
cuando actúan. Barcelona, Paidós). O processo
de fragilização a que aludimos identifica-se, no
contexto de cuidados geriátricos, no elevado
risco suscitado pelas “zonas cinzentas” da
actuação profissional com os decorrentes efeitos
de instabilidade funcional, de desigual valor
estratégico da negociação, identificados pelos
enfermeiros.
E- Enfermagem geriátrica: uma prática
de dimensão humana.
“...and you will be like God!”
Genesis, 3:5.
“Eu fico angustiada; tenho que decidir coisas sobre
a vida das pessoas...”; “Na enfermagem não pode
haver atrasos, porque um atraso pode significar a
morte...” (testemunho de enfermeiros). A
experiência de prestar cuidados a idosos exige
interpretação e deliberação – uma lógica
distintiva da formação em enfermagem. Inscrito
nesta lógica está o vivido do enfermeiro, que
dá sentido aos cuidados e à formação. O saber
geriátrico, em que se inscrevem as competências
dos enfermeiros, diferencia-se e diferencia-os:
“Há os que olham pra a gente e seguem caminho;
há os que olham para a gente e eu acho que vêem
ali um filho de Deus, e tomam conta de nós”
(testemunho de um idoso). O saber geriátrico
dos enfermeiros pode ser assim caracterizado:
- Enraizado no percurso de vida e de
socialização que realizaram, é um saber prático,
simples, genuíno (porque lido também pelo
utilizador), centrado no outro e construído na
acção, efectivando-se numa forma particular
de relação entre pessoas (a ajuda), que
mutuamente se influenciam, e que atribuem
sentido à acção de cuidar, procurando, pela
aprendizagem activa, informal e ecológica,
estimular dinâmicas revitalizadoras do saber e
da saúde.
89
- Na experiência de cuidados geriátricos
contextualizada a este Serviço de Medicina,
gravitam uma infinidade de crenças periféricas
que, desafiando a tradicional causalidade
científica, corroboram o percurso da implicação
pessoal na construção de si, dos outros,
particularmente dos idosos e da profissão. As
crenças identificadas (sentido, vivido, gosto,
empenhamento, compromisso...) “fluidificam”
a acção de cuidar e “adoçam a relação...” entre
cuidar e tratar. São sua parte integrante, porque
específica e caracterizadora do quê de ser
enfermeiro geriatra.
90
A prática profissional em cuidados geriátricos
apresenta, assim, um agir integrador, no qual:
- O contexto do sujeito – enfermeiro geriatra,
com o seu sistema de disposições, no qual
incluímos o percurso biográfico experienciado
com idosos, os processos de socialização e os
processos de formação profissional;
- O contexto do doente com as trajectória
biográfica e de transição entre processos de
saúde e doença da pessoa idosa, da(s) sua(s)
doença(s), as suas crenças e o seu sistema de
disposições para os cuidados e para os
profissionais;
- O contexto da profissão e sua organização,
com os modelos profissionais de cuidados a
influenciarem o exercício do trabalho geriátrico,
com as interacções que nos cuidados se
estabelecem e com os seus significados a darem
sentido aos percursos formativos dos actores,
na reconceptualização e recursividade entre
formar-se e agir;
- O contexto da acção com o seu modelo
organizacional e as estratégias de acção locais
e processos de negociação estratégica geram as
dinâmicas contextuais das competências dos
enfermeiros geriatras.
A dinâmica da construção de competências
em enfermagem geriátrica constitui-se numa
acção integradora, na qual: trajectórias biográficas
e socialização (contexto do sujeito), o exercício
do trabalho (contexto da profissão), os percursos
biográficos do doente e seu processo de
socialização em meio hospitalar (contexto do
doente) e as estratégias de acção locais e suas
(in)variantes organizacionais (contexto da acção),
adquirem e dão significado à formação. A acção
de cuidar idosos tem sentido nos contextos em
que ocorre e gera novas formas de cuidar,
consubstanciando a ideia de que aprendem
cuidando.
A dinâmica formativa, que se estabelece nos
contextos de cuidados geriátricos, tem sido
“assaltada” por um conjunto de designações
intervencionistas de visão tecnológica
(diagnósticos de enfermagem, prescrição de
actos, processos de informatização), cujo questionamento se impõe, neste momento, à luz
das conclusões anteriores: Procura de visibilidade
social para os cuidados de enfermagem?
Aproximação ao modelo médico, como
estratégia de revalorização profissional? Fuga
para a frente? Procura de uma imagem positiva
de si?
O conjunto de práticas de cuidados geriátricos
(práticas repetidas), com propensão para se
incluírem no conjunto de actos da razão técnica
(“resvalo” para a razão técnica), distinguem-se
do cuidado profissional, com dimensão global:
“Há coisas que a gente diz que são tarefas rotineiras,
como o dar banhos, injecções; mas não são rotineiras,
pois eu faço sempre de forma diferente, porque faço
a cada doente e cada doente é diferente do outro que
está ao lado...”; “...É uma questão de sentimento
interior e de saber. A gente intui, mas pensa no que
intui; não é rotina...pois a intuição anda muito ali,
aliada às nossas decisões” (testemunho da
enfermeiros). São as experiências singulares e
apopriativas das acções e seus significados que
sustentam a reconceptualização do cuidado e
saber profissional: “Há um desafio muito grande
em termos relacionais, que quebra a rotina dos
cuidados: é a idade dos doentes...”.
Nota final
As estratégias accionadas pelos enfermeiros
na construção das competências geriátricas do
cuidado profissional assumem diferentes
significados. São as razões do SER, a procura
da “arte” nos significados que atribuem aos
cuidados e em que espelham a sua vida: Uma
lógica de percurso de vida: “Gosto de pensar
neles, como meus avós”; Um modo de ser
profissional: “Há enfermeiros muito diferentes uns
dos outros”; Um conteúdo explicativo dos
cuidados geriátricos: “Aos idosos é preciso dar
muita atenção para que participem nos cuidados”;
Uma interacção profissional “inter pares”:
“Falamos uns com os outros, para evoluirmos. Não
viu na passagem de turno?”; Uma frágil e
penalizante interacção interprofissional: “estamos
um bocadinho de costas voltadas...”, mas baseada
na interacção multiprofissional: “É importante
a gente falar sobre os assuntos...”. Uma reflexão
sobre a acção e a profissão: “Gosto de parar para
fazer um balanço”; “aprendo muito no dia a dia,
com os doentes, colegas, os médico, com o que leio,
com o que penso”.
91
“Fui-me embora do serviço. Eram 9.00 horas da manhã. Levava a sensação
de um enorme peso nas pernas, fruto de um cansaço a que já não estou
habituada; mas cresceu a minha admiração por estes homens e mulheres –
enfermeiros que, no dia a dia, acompanham o lento evoluir de um sol, cuja
lentidão, ao nascer, traz a serenidade indomável da crença de que o caminho
se faz caminhando e de que a vida se cuida, cuidando...”
(transcrição das notas de campo 1999).
BIBLIOGRAFIA
COSTA, M. A. (1994) – Os idosos nos caminhos e
descaminhos da formação dos Enfermeiros da formação dos
Enfermeiros. In: Geriatria, ano VII, nº 66, Junho, p. 17-19.
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formação à produção de cuidados. Lisboa. Edições Fim de Século.
159 p.
COSTA, M. A. – Cuidar Idosos. Formação, Práticas e
Competências dos Enfermeiros. Coimbra. Ed. Formasau e Educa.
327 p.
MELO, A. (1996) – Competência do Enfermeiro no cuidar
do idoso. Opinião dos idosos e dos enfermeiros. Dissertação
de Mestrado em Ciências de Enfermagem. Faculdade de Ciências
Humanas. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa.
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l’hôpital. Tolouse, Ed. Privat.
RIBEIRO, F. (1995) - Cuidar e tratar: Formação em
Enfermagem e desenvolvimento sócio-moral. Lisboa, Educa.
ALARCÃO, I. (1997) – Prefácio. In: SÁ-CHAVES, I. (org) –
Percursos de formação e desenvolvimento profissional. Porto,
Porto Editora.
LE BOTERF, G. (1995) - De la Competénce. Paris, Éditions
d’Organization.
FRIEDBERG, E. (1993)- Le Pouvoir et la Règle. Paris, Ed.
Seuil.
CANÁRIO, R. (1999) – Educação de adultos. Um campo
e uma problemática. Lisboa, Educa – Formação.
SCHÖN, D. (1998) – El professional reflexivo. Como piensan
los professionales cuando actúan. Barcelona, Paidós.
Paula Espírito Santo
Coordenadora do Curso de Análises Clínicas e Saúde Pública
do Instituto Superior de Saude do Alto Ave– ISAVE
92
Introdução
O PSA (Prostatic Specific Antigen) é uma
glicoproteína de cadeia simples da família das
calicreinas (proteases do soro). O gene KLK3 (cromossoma 19) codifica a protease PSA,
também chamada hK3-calicreína glandular
humana 3 (Yousef; Diamandis, 2003). Possui
peso molecular de aproximadamente 33 Kda
e é secretada em altos níveis pelo epitélio da
próstata humana (WANG, 1979), sob o
controlo de androgenios e progestinas
(Diamandis, 1994).
O nome PSA (Antigénio Específico da
Próstata) reflecte a ideia inicial de que a proteína
A determinação da presença e
concentração de PSA em materiais
provenientes de amostras de
manchas de cenários de crimes
sexuais, onde o corpo de delito é
o esperma, é de extremo valor.
A quantificação dos níveis séricos de PSA é utilizada desde algum tempo e em larga escala
como marcador tumoral e doseando o PSA total e a sua fracção livre, como diagnóstico
diferencial entre carcinoma e hipertrofia benigna da próstata. O PSA no esperma
encontra-se em concentrações milhares de vezes superiores à sua concentração no soro,
sendo este o seu principal valor na análise forense, para identificação do líquido seminal,
principalmente de indivíduos vasectomizados, azoospermicos ou oligozoospermicos.
A determinação da presença e concentração de PSA em materiais provenientes de amostras
de manchas de cenários de crimes sexuais, onde o corpo de delito é o esperma, é de
extremo valor.
é exclusiva da próstata e até há bem pouco
tempo pensava-se que apenas era produzido
pelas células epiteliais prostáticas. Mais
recentemente, com o avanço tecnológico e
com o aumento da sensibilidade e especificidade
dos testes de detecção e de quantificação,
verificou-se que esta proteína também estava
expressa numa variedade de outros tecidos e
fluidos biológicos, tanto masculinos como
femininos, sugerindo funcionalidade extraprostática. Talvez a principal função do PSA
seja liquefazer o produto seminal após a
ejaculação, por fragmentação e solubilização
das proteínas seminogelina e fibronectina (Lilja
et al, 1987).
A quantificação dos níveis séricos de PSA é
utilizada desde algum tempo e em larga escala
como marcadores tumorais e doseando o PSA
total e a sua fracção livre, como diagnóstico
diferencial entre carcinoma e hipertrofia benigna
da próstata. Estas determinações também
possuem alto valor na monitorização de tratamento (quimio e/ou radioterapia) e evolução
pós-cirúrgica – progressão da doença e resposta
terapêutica (Vihko et al, 1990; Oesterling,
1991; Armbruster, 1993).
O PSA no esperma encontra-se em
concentrações milhares de vezes superiores à
sua concentração no soro, sendo este o seu
93
Tabela 1
FLUIDO
Grupos de estudo
PSA (ng/ml)
0 – 1.25
0.43 – 0.88
Autor do estudo
Lawson et al (1998)
Macaluso et al (1999)
Doenças neurológicas
até 0.382
Melegos et al (1997)
0.01 – 3.50
0 - 111
0.01 – 2.00
0.008 – 1.22
0.007 – 0.029
0 – 0.066
0.8 - 153
<0.06
0.007 – 0.035
0.002 – 0.004
0 – 0.019
0 – 0.679
Até 0.5
Até 2.768
0.287
0.2 – 2.00
0.2 – 12.00
0.02 – 0.15
0.09 – 1.239
0.001 – 0.046
0.001 – 0.029
0.12 – 1.06
Yu et al (1995)
Magklara et al (1999)
Magklara et al (1999)
Wolf et al (1999)
Aksoy et al (2002)
Secreções vaginais
Líquido
cefalorraquidiano
Leite materno
Líquido amniótico
94
Saliva
Soro de mulheres
Soro de crianças até
12 anos
Urina de mulheres
Durante o ciclo menstrual
Controlos
Com cancro da mama
Uso de contraceptivos orais
Durante o ciclo menstrual
Durante o ciclo menstrual
Controlos
Com hirsutismo
Sexo masculino
Sexo feminino
Controlos
Medicado com testosterona
Controlos
Uso de contraceptivos orais
Controlos
Síndr. de ovário policístico
Balck et al (2000)
Manelo et al (1998)
Aksoy et al (2002)
Zarghami et al (1997)
Melegos et al (1997)
Filella et al (1996)
Antoniou et al (2004)
Breul et al (1997)
Manello et al (1998)
Obiezu et al (2001)
Shmidt (2001)
Tabela 2
Nº pacientes estudados
PSA (ng/ml)
Autor do estudo
18
118
48
22
(0.7 ± 0.39) x 106
(0.4 ± 0.3) x 106
(1.29 ± 0.15) x 106
(1.29 ± 0.68) x 106
Senku et al (2004)
Shieferstein (1999)
Lynne et al (1999)
Wang et al (1998)
Concluise finalmente que os
níveis de PSA noutros líquidos
biológicos que não o líquido
seminal, não interferem na
investigação de esperma em perícias
criminais, sendo portanto um teste
de grande valor neste tipo
de investigação
principal valor na análise forense, para identificação do líquido seminal, principalmente de
indivíduos vasectomizados, azoospermicos ou
oligozoospermicos (Sensabagh, 1978; Baechter,
1993; Martin, 1984; Kotowski, 1993;
Hochmeister et al, 1999).
O método tradicional de identificação positiva
da presença de esperma em cenário de crime
de natureza sexual é a prova de presença de
espermatozóides por observação microscópica
de amostras. A identificação de evidência de
sémen é um teste de rotina nos laboratórios
forenses dado que este está sempre presente
em cenas de crimes que envolvem violação
sexual. O sémen seco mantém a actividade da
fosfatase ácida durante um certo período de
tempo, logo um procedimento de rastreio é a
demonstração de zonas de actividade de fosfatase
ácida. Para confirmação do resultado efectuase a pesquisa de espermatozóides nestas zonas.
Se estes não forem detectados, é necessário
outro teste de confirmação, onde a quantificação
de PSA tem demonstrado o seu valor.
PSA em fluidos biológicos
Devido ao desenvolvimento das técnicas de
detecção e doseamento do PSA foi possível
começar a dosear este antigénio noutros fluidos
e tecidos biológicos que não líquido seminal
ou soro.
Inicialmente, a sensibilidade dos métodos era
muito baixa, mas o desenvolvimento dos
métodos imunológicos automatizados superou
este problema, sendo que actualmente a
sensibilidade é de cerca de 0.001 ng/ml, o que
possibilitou a detecção de PSA em vários fluidos
extra-prostáticos (tabela 1). Alguns autores pesquisaram a presença de PSA no líquido seminal, obtendo os valores descritos na tabela 2.
Discussão
Da análise cuidada dos resultados obtidos por
vários pesquisadores em diversos estudos, resulta
que a determinação da presença e concentração
de PSA em materiais provenientes de amostras
de manchas de cenários de crimes sexuais, onde
o corpo de delito é o esperma, é de extremo
valor.
Não podemos descartar a possibilidade do
envolvimento de indivíduos oligozoospérmicos,
azoospérmicos e vasectomizados, e que o tempo
útil de actividade da fosfatase ácida pode não
ser suficiente para a sua detecção.
Assim, considerando a alta concentração de
PSA no líquido seminal relativamente a outros
fluidos biológicos, a sua determinação tornase uma ferramenta extremamente precisa nestes
casos, já que a pesquisa directa de espermatozóides e de fosfatase ácida pode resultar negativa.
95
96
Em caso de crime sexual, o líquido seminal
pode ser depositado directamente na vítima ou
noutro tipo de suportes. Em qualquer dos casos,
a colheita deve ser efectuada por zaragatoa,
sofrendo depois uma extracção. Relativamente
a este passo de extracção, devemos ter em conta
a diluição do fluido no líquido de extracção e
a eficiência desta extracção, pois estes factores
são de extrema importância na análise dos níveis
de PSA nas diversas amostras. Estima-se que a
eficiência da extracção é de cerca de 1%
(Gartside et al, 2003; Custis, 2003). Assim,
sabendo que apenas 1% do PSA é possível ser
extraído de uma amostra, devemos ajustar o
factor de diluição tendo em conta o volume
de amostra necessário para a realização dos
testes.
diferentes do líquido seminal, são bastante mais
baixos (sempre inferiores a 4 ng/ml) do que
neste último (na ordem de grandeza dos 10.000),
permitindo portanto uma identificação positiva
do líquido seminal.
Os métodos imunológicos quantitativos
automatizados utilizados nos estudos descritos
já foram validados para testes forenses (Simich,
1999).
Conclui-se finalmente que os níveis de PSA
noutros líquidos biológicos que não o líquido
seminal, não interferem na investigação de
esperma em perícias criminais, sendo portanto
um teste de grande valor neste tipo de investigação.
Analisando as tabelas 1 e 2, verificamos que
os níveis de PSA noutros fluidos biológicos
Bibliografia
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97
Margareta I. Correia
e Fernando A. Arosa
98
Lymphocyte Biology Group, Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC)
Rua do Campo Alegre, 823, 4150-180 Porto
A importância do
microambiente hepático para
o desenvolvimento dos
linfócitos T
Os linfócitos T inserem-se num sistema
extremamente complexo que envolve inúmeras
interacções celulares e moleculares com células
do microambiente onde se encontram.
O fígado, apesar de ter sido, até recentemente,
considerado um órgão relativamente inerte do
ponto de vista imunológico, possui propriedades
únicas nesse âmbito. A sua estrutura sinusoidal
característica e particular com células endoteliais
fenestradas e com intervalos entre si, permite-
hepatócito
célula
sinusoidal
Fig. 1 – Esquema representativo da estrutura sinusoidal hepática.
É possível denotar as fenestrações e espaçamentos entre as
células endoteliais, que facilitam as interacções entre os
hepatócitos e os linfócitos T.
lhe possuir uma elevada permeabilidade. Este
facto, para além de facilitar o contacto com
células T activadas circulantes, possibilita ainda
a entrada de células T naive, propriedade única
entre os órgãos sólidos (Figura 1). Deste modo,
o fígado parece possuir características que o
tornam um órgão extremamente favorável ao
estabelecimento de interacções entre os linfócitos
e as células hepáticas.
Imunologicamente, o fígado é também
apontado como um local preferencial de
apoptose de células T, tendo sido postulado
por alguns autores como um “cemitério” de
linfócitos T CD8+ activados, para onde estas
células se deslocam para serem eliminadas por
apoptose. Existem contudo evidências de que
este órgão seja, muito para além disso, um
possível local de activação primária de linfócitos
T naive. De facto, dados sugerem que células
hepáticas são capazes de funcionar como células
apresentadoras de antigénio ou APC (do inglês
Antigen Presenting Cell). Contudo, a activação
resultante, apesar de ser tão eficiente como a
levada a cabo por células dendríticas, é ineficiente
por ocorrer na ausência de co-estimulação,
acabando por resultar na morte duma parte dos
linfócitos activados. Essa activação defectiva
parece contribuir para a manutenção da
tolerância imunológica deste órgão, extremamente necessária, uma vez que as células
hepáticas estão constantemente a produzir neo-antigénios e a ser expostas a antigénios do
tracto gastrointestinal.
Para além das características referidas, que
tornam o fígado extremamente interessante do
ponto de vista da interacção com linfócitos T
circulantes, este órgão possui ainda numerosos
tipos de linfócitos intrahepáticos (IHL) que
fazem parte da sua constituição celular. Essa
população residente é caracterizada por possuir
subtipos de linfócitos pouco comuns e com
fracções distintas das existentes no sangue
periférico, donde se destacam elevado número
de células NK, NKT e células T γδ (Figura 2).
Existem essencialmente duas teorias para a
Sangue
Fígado
Células T αß
Células T NK/NKT
Células T γδ
Células T
Inatas
Fig. 2 - Comparação gráfica das proporções entre os diferentes
tipos de células T de um fígado normal e do sangue periférico.
Uma proporção significativamente maior de células T hepáticas
possuem um fenótipo inato quando comparado com as existentes
no sangue periférico (Adaptado de Doherty e O´Farrelly et
al., 2000).
origem desses linfócitos intrahepáticos. A
primeira, hipótese da origem local dos IHL,
postula que a génese e maturação destes linfócitos
ocorre no fígado, a partir das células totipotentes
hematopoiéticas ou estaminais aí existentes. A
segunda, hipótese do recrutamento específico,
postula que a origem destes está no recrutamento
preferencial de determinados tipos de linfócitos
T circulantes. Essas duas hipóteses não são,
contudo, mutuamente exclusivas, uma vez que
parte da população de IHL pode ter
efectivamente origem local e a outra parte
derivar de recrutamento particular de determinados tipos de linfócitos. De qualquer modo,
independentemente da sua origem, os linfócitos
intrahepáticos podem sofrer activação e diferenciação “in situ”, o que contribuirá igualmente
para a existência de uma maior fracção de
determinados tipos de células em detrimento
de outros, contribuindo para a composição
característica e única dessa população.
Deste modo, o microambiente existente no
fígado, ou seja, todo o tipo de estímulos directos
ou indirectos promovidos pelas células hepáticas
é essencial, quer para a compreensão da
composição da tão singular população IHL,
quer para o estabelecimento do papel desempenhado pelo fígado na interacção com os
linfócitos T circulantes. Um dos componentes
importantes do microambiente hepático,
substancial para a compreensão das interacções
entre as células do fígado e os linfócitos, são as
citocinas. A presença de determinadas citocinas
pode (i) direccionar o tipo de células produzidas
durante a hematopoiése, a partir das células
99
estaminais; (ii) promover a activação e
diferenciação de tipos de linfócitos específicos,
levando ao aumento da sua fracção no fígado;
(iii) levar ao recrutamento de linfócitos T pelas
suas capacidades quimioatractivas.
100
Estudos recentes mostram que entre as
citocinas produzidas pelo fígado parece
encontrar-se a interleucina 15 (IL-15). Esta
citocina desempenha um importante papel na
interacção com os linfócitos T CD8+, quer na
activação de células naive, quer na manutenção
de células de memória, assim como uma função
única no desenvolvimento, activação e
manutenção das células NK, NKT e intraepiteliais do intestino. A IL-15 é extremamente
pleiotrópica, possuindo um papel muito mais
abrangente do que a maioria das citocinas,
encontrando-se amplamente distribuída por
vários tipos de tecidos. Os efeitos biológicos
da IL-15 são mediados através da sua interacção
com as cadeias IL-2Rß e γc, que é partilhada
pela IL-2 e IL-15. Adicionalmente, uma unidade
privada do receptor da IL-15, o IL-15Rα, é
requerida para uma ligação de elevada afinidade.
Esta unidade do receptor possui, tal como a
IL-15 uma vasta distribuição celular e pode ser
expressa sem as outras subunidades do receptor.
Essa capacidade de ser produzida por numerosos
tipos de células não imunes, sugere que esta
citocina possa constituir um importante meio
de comunicação entre estas e células do sistema
imune.
O objectivo principal do nosso trabalho
consistiu no estudo das interacções entre os
hepatócitos e os linfócitos T no contexto da
proliferação e sobrevivência linfocitária. Ou
seja, em estudar se os hepatócitos possuem
Rα IL-15
Fig. 3 - Apresentação em trans da IL-15. Modelo esquemático
ilustrando a possível “transapresentação” da IL-15, no contexto
do IL-15Ra presente na superfície celular de um hepatócito,
a um linfócito T vizinho expressando as outras subunidades
do receptor IL-15Rßgc.
propriedades estimuladoras para os linfócitos
T, desempenhando assim um papel importante
no processo de diferenciação das células T e
na sua homeostasia. Ao mesmo tempo, procurou
determinar-se qual o papel da IL-15 nessa
interacção celular.
Com base nos dados obtidos parece ser
possível indicar que os hepatócitos produzem
um microambiente favorável à sobrevivência,
activação e proliferação dos linfócitos T,
verificando-se um aumento na proliferação e
uma diminuição na morte celular dos linfócitos
T como resultado da interacção com os hepatócitos. Essa activação e aumento proliferativo
ocorrem particularmente nas células T CD8+,
e parece resultar essencialmente de um contacto
directo célula-célula. Para além disso, aquando
da adição de IL-15 a esse sistema de interacção,
é possível por vezes detectar um efeito
sinergístico entre a citocina e os hepatócitos
no aumento da activação e proliferação celular.
Isto poderá contribuir para a explicação da composição única da
população linfocitária intrahepática e servir para colocar o fígado
na posição de um órgão importante para a manutenção periférica
de linfócitos T circulantes.
101
Paralelamente, dados de citometria evidenciaram
a capacidade de produção de IL-15 pelos
hepatócitos, quer intracelularmente, quer à
superfície, assim como a expressão do receptor
de elevada afinidade IL-15Rα. Sendo ainda
que, dados preliminares parecem indicar que
a IL-15 expressa à superfície se encontre
ancorada à membrana ligada ao receptor IL15Rα.
Tomados em conjunto, estes resultados
apontam para que o efeito produzido pela
interacção dos hepatócitos com os linfócitos T
possa ser resultado de uma apresentação em
trans da IL-15 produzida pelos hepatócitos,
constituindo um modelo de estudo para o
futuro (Figura 3).
15, no contexto IL-15/IL-15Rα parece
constituir uma importante ponte de comunicação entre as células epiteliais do fígado e
os linfócitos T. Isto poderá contribuir para a
explicação da composição única da população
linfocitária intrahepática e servir para colocar
o fígado na posição de um órgão importante
para a manutenção periférica de linfócitos T
circulantes.
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Esta capacidade de trans-apresentação da IL15 encontra-se descrita para outras células,
como monócitos e fibroblastos, e consiste na
apresentação da IL-15 à superfície, possivelmente
ligada ao receptor de elevada afinidade, IL15Rα, de uma célula produtora de IL-15, a
uma célula vizinha que possua as outras duas
unidades do receptor da citocina. Esta curiosa
propriedade parece ser única entre as citocinas
e, para além de intensificar, parece também
prolongar o efeito da IL-15 por mais tempo.
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Neurónios dopaminérgicos do
mesencéfalo ventral são um dos
principais tipos celulares afectados na
doença de Parkinson. Ensaios clínicos
indicam que terapia por substituição
celular pode ser efectuada com sucesso
em pacientes de Parkinson. A aplicação
desta metodologia terapêutica em
larga escala é, no entanto, condicionada pela falta de fontes abundantes de neurónios dopaminérgicos.
Células estaminais constituem uma
dessas possíveis fontes. No entanto, é
necessário o desenvolvimento de
protocolos eficientes promovendo a
sua diferenciação específica num
fenótipo dopaminérgico. Nesta tese,
são apresentados estudos que indicam
uma contribuição fundamental da
família de lipoproteínas Wnt no
desenvolvimento de neurónios
dopaminérgicos do mesencéfalo
ventral. Estas lipoproteínas poderão
no futuro contribuir para a optimização
de terapias celulares com células
estaminais para a doença de Parkinson.
103
Sinalização por
lipoproteínas Wnt no
desenvolvimento de
neurónios
dopaminérgicos
do mesencéfalo ventral
Wnt signalling in the development of ventral
midbrain dopaminergic neurons
Gonçalo Castelo-Branco
Gonçalo Castelo-Branco Licenciado em Bioquímica pela Universidade de Coimbra e doutorado em Filosofia (Bioquímica
Médica) pelo Instituto Karolinska, Estocolmo, Suécia. Investigador no Laboratório de
Neurodesenvolvimento Molecular, Centro de Excelência em Biologia do Desenvolvimento,
Departamento de Neurociências do Instituto Karolinska
Tese de doutoramento publicada em Dezembro de 2004 (ISBN 91-7140-176-8) e defendida
no Instituto Karolinska, Estocolmo, Suécia, a 14 de Janeiro de 2005, tendo como oponente
o Professor Doutor Lukas Sommer, do Instituto Federal Suíço, Zurique, Suiça e como júri de
doutoramento os professores doutores Jonas Frisén (Instituto Karolinska, Estocolmo, Suécia),
Ted Ebendal (Universidade de Uppsala, Suécia) e Karin Forsberg-Nilsson (Universidade de
Uppsala, Suécia).
O autor desta tese foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Ministério da
Ciência e Tecnologia, Portugal), Fundo Social Europeu, Instituto Karolinska e Fundação Calouste
Gulbenkian (Portugal).
104
Doença de Parkinson
A doença de Parkinson é uma patologia
neurodegenerativa crónica que envolve a perda
e atrofia de neurónios em áreas específicas do
cérebro, nomeadamente na via nigroestriatal e
na área tegmental ventral (neurónios dopaminérgicos), e no locus coeruleus (neurónios
noradrenérgicos). Os neurónios dopaminérgicos
da via nigroestriatal têm os seus corpos celulares
no mesencéfalo ventral, nomeadamente na
substantia nigra, projectando os seus axónios
para os núcleos caudate e putamen do estriado
dorsal (Figura 1). A degeneração dos neurónios
dopaminérgicos conduz a um decréscimo da
actividade motora e a sintomas como aquinésia
(incapacidade de iniciar movimentos), bradiquinésia (inabilidade de completar movimentos,
o que os torna lentos), perda de expressão facial
(associada a rigidez muscular) ou tremores .
Figura 1 - Inervação de neurónios dopaminérgicos da substantia
nigra (SN) e área tegmental ventral (VTA) no cérebro adulto de
um roedor (ratinho ou rato).
Os principais tratamentos para a doença de
Parkinson têm como base a estimulação da
função dopaminérgica nas áreas afectadas, através
de moléculas precursoras da dopamina (como
levodopa e derivados) ou intervenções cirúrgicas
(como a estimulação cerebral profunda). A administração de levodopa leva a melhorias sintomáticas significativas. No entanto, com o decorrer dos anos, a degeneração celular evolui,
perdendo este composto a sua eficiência e
podendo levar a excessiva actividade motora
e disquinésias.
Terapia Celular com células estaminais
para a doença de Parkinson
A terapia por substituição celular constitui
uma aproximação terapêutica alternativa para
a doença de Parkinson, consistindo na
transplantação de células funcionais para a área
do cérebro afectada, de modo a que as novas
células possam substituir os neurónios em
degenerescência. Após estudos exaustivos em
modelos animais da doença de Parkinson,
investigadores em Lund, Suécia, demonstraram
que o transplante de células dopaminérgicas
derivadas de fetos humanos para o estriado de
pacientes de Parkinson conduz a melhorias
sintomáticas significativas . Os neurónios
implantados adquirem propriedades de
neurónios dopaminérgicos da via nigroestriatal,
nomeadamente a formação de contactos
sinápticos com os neurónios do estriado e
libertação de dopamina. Além disso, as células
implantadas não são afectadas com o evoluir
da doença . Desde 1987, mais de 350 transplantes
com células dopaminérgicas fetais humanas
foram efectuadas em doentes de Parkinson. No
entanto, são necessários de 6 a 8 fetos humanos
para o transplante de um só doente de Parkinson,
o que levanta problemas logísticos e éticos que
têm impedido a optimização desta tecnologia
e a sua implantação em larga escala.
podendo originar células da sua linhagem
embrionária mas não de outra linhagens
(multipotencialidade). No organismo adulto,
as CE tem essencialmente uma função
regeneradora e não de desenvolvimento, diferenciando-se em células do mesmo tipo do
órgão de onde derivam (multipotencialidade).
A diferenciação de uma CE (com potencial
abrangente) num tipo celular tão específico
com o de neurónio dopaminérgico não é um
Neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral são um dos
principais tipos celulares afectados na doença de Parkinson. Alguns
ensaios clínicos indicam que terapia por substituição celular pode
ser efectuada com sucesso em pacientes de Parkinson.
Uma fonte alternativa para quantidades
elevadas de células dopaminérgicas para
transplante na doença de Parkinson são as células
estaminais (CE). Estas células imaturas podem
diferenciar-se em diversos tipos celulares, tendo
igualmente a capacidade de se autorenovar e
dividir indefinidamente. A célula estaminal
com potencial mais abrangente é a CE embrionária, derivada da massa interior do blastócisto
(embrião com 5-6 dias). Esta célula pode dar
origem a todos os tipos celulares do indivíduo
adulto, mas não ao organismo inteiro (daí ser
pluripotente). Numa fase fetal, à medida que
o desenvolvimento do organismo avança, o
potencial das CE passa a ser mais restrito,
processo linear e espontâneo, requerendo por
conseguinte a manipulação in vitro da CE, quer
por via de engenharia genética (sobreexpressão
ou repressão de certos genes), quer por
tratamento com factores determinados, em
estratégias que procurem mimetizar o
desenvolvimento in vivo. Este tipo de abordagem
tem sido aplicada com êxito em diversos tipos
de CE de roedores e humanas. No entanto, a
eficácia da diferenciação não é elevada e o grau
de funcionalidade dos neurónios dopaminérgicos
gerados a partir de CE não é completa. Deste
modo, a análise ao pormenor das fases iniciais
do desenvolvimento de neurónios dopaminérgicos no mesencéfalo ventral é essencial para
105
A terapia por substituição celular constitui uma aproximação terapêutica
células funcionais para a área do cérebro afectada, de modo a que
106
a definição de novas estratégias de manipulação
in vitro de CE, com taxas de indução
dopaminérgicas ainda mais significativas do que
as obtidas até hoje.
Wnts no desenvolvimento de neurónios
dopaminérgicos do mesencéfalo ventral
Factores de transcrição nucleares como HNF3b, Nurr-1, Pitx-3, En-1, Lmx-1b e Otx-2
têm sido identificados como moduladoreschave no desenvolvimento de neurónios
dopaminérgicos do mesencéfalo ventral (Figura
2) . No entanto, papéis semelhantes foram
atribuídos apenas a três factores extracelulares,
FGF-8 (fibroblast growth factor 8), Shh (sonic
hedgehog) e Wnt-1. Estas proteínas actuam
aparentemente numa fase inicial do
desenvolvimento dopaminérgico, induzindo
proliferação dos progenitores neuronais e
contribuindo para a coordenação do desenvolvimento antero-posterior e dorso-ventral
da região mesencefálica. Dado que as
lipoproteínas Wnt estão envolvidas em diversos
processos durante o desenvolvimento neuronal
e vários membros desta família são expressos
no mesencéfalo ventral durante o desenvolvimento , o nosso grupo de investigação
decidiu verificar se estas proteínas desempenham
um papel relevante no desenvolvimento dos
neurónios dopaminérgicos.
Objectivos da tese de doutoramento
1. Determinar a função de proteínas da família
Wnt e dos seus receptores no desenvolvimento
de neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo
ventral.
Figura 2 – Linha temporal da especificação de neurónios
dopaminérgicos no mesencéfalo ventral.
(A) Células progenitoras neuronais, positivas para os marcadores
ADH-2 (aldehyde dehydrogenase) e Otx-2, estão presentes na
área média da zona ventricular. (B) Estas células progenitoras
migram através dos processos das células da glia radial e começam
a expressar o marcador AADC (L-aromatic amino acid
decarboxylase). Com o ínicio da expressão do factor de transcrição
Nurr-1, estes progenitores saem do ciclo celular. (C) As células
progenitoras pós-mitóticas chegam à superfície pial do mesencéfalo
ventral e começam a expressar marcadores dopaminérgicos, como
hidroxilase de tirosina (TH) e os factores de transcrição Pitx-3
e Lmx-1b. Todos as proteínas aqui mencionadas mantêm a sua
expressão em neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral
em fases subsequentes do desenvolvimento.
alternativa para a doença de Parkinson, consistindo na transplantação de
as novas células possam substituir os neurónios em degenerescência.
2. Investigar os mecanismos intracelulares
que modelam a diferenciação de células
precursoras neuronais do mesencéfalo ventral
em neurónios dopaminérgicos.
3. Investigar como a modulação da sinalização
celular por proteínas Wnt ou relacionadas pode
ser utilizada para a diferenciação de células progenitoras ou estaminais neuronais em neurónios dopaminérgicos.
Resumo dos artigos ou manuscritos
científicos incluídos na tese de
doutoramento
1) Differential regulation of midbrain
dopaminergic neuron development by
Wnt-1, Wnt-3a, and Wnt-5a (Regulação
diferencial do desenvolvimento dos neurónios
dopaminérgicos do mesencéfalo ventral por
Wnt-1, Wnt-3a e Wnt-5a); Gonçalo CasteloBranco, Joseph Wagner, Francisco J.
Rodriguez, Julianna Kele, Kyle Sousa, Nina
Rawal, Hilda Amalia Pasolli, Elaine Fuchs, Jan
Kitajewski e Ernest Arenas. Publicado no jornal
científico Proceedings of the National
Academy of Sciences of the United States
of America; 100 (22):12747-52 (2003).
Neste estudo, descobrimos que Wnt-1 e
Wnt-5a aumentam o número de neurónios
dopaminérgicos (identificados pela imu-
noreactividade para a enzima hidroxilase de
tirosina (TH)) em culturas de células precursoras
neuronais, enquanto Wnt-3a tem o efeito
oposto. O tratamento destas culturas de células
precursoras neuronais com Fz8-CRD, um
inibidor extracelular de sinalização Wnt, reduz
igualmente o número basal de neurónios
dopaminérgicos, confirmando a especificidade
dos efeitos das proteínas Wnt no desenvolvimento nos neurónios dopaminérgicos do
mesencéfalo ventral. Investigámos igualmente
os mecanismos pelos quais as proteínas Wnt
modelam o número de neurónios dopaminérgicos. Descobrimos que Wnt-1 aumenta
o número de neurónios no nosso sistema
experimental essencialmente através de indução
de proliferação dos precursores neuronais. Wnt5a, por sua vez, actua principalmente na regulação da maturação e diferenciação dos
precursores neuronais dopaminérgicos.
Verificámos igualmente que Wnt-3a tem a
capacidade de reduzir o número de neurónios
dopaminérgicos nas nossas culturas, ao promover
a proliferação das células precursoras
dopaminérgicas, impedindo simultaneamente
a sua diferenciação em neurónios dopaminérgicos. Colectivamente, estes resultados
indicam que Wnts são importantes reguladores
da neurogénese dopaminérgica no mesencéfalo
ventral.
2) Ventral midbrain glia express regionspecific transcription factors and modulate
107
dopaminergic neurogenesis through Wnt5a secretion (Glia do mesencéfalo ventral
expressa factores de transcrição específicos e
modela a neurogénese dopaminérgica através
de secreção de Wnt-5a); Gonçalo CasteloBranco, Kyle Sousa, Vitezslav Bryja, Luísa
Pinto, Joseph Wagner e Ernest Arenas.
Manuscrito da tese, entretanto publicado no
jornal científico Molecular and Cellular
Neuroscience, 2006 Feb;31(2):251-62
O nosso grupo relatou previamente que
células estaminais neuronais de ratinho podem
ser diferenciadas em neurónios dopaminérgicos
do mesencéfalo ventral por sobreexpressão do
factor de transcrição Nurr-1 e co-cultura com
células gliais (astrócitos) derivadas do
mesencéfalo ventral de rato . Como as proteínas
Wnt têm algumas características semelhantes
a factores secretados por estes astrócitos,
incluindo pouca solubilidade em meios aquosos
, perguntámos se poderiam ser responsáveis
pelos efeitos das células da glia derivadas do
mesencéfalo ventral. Os nossos resultados
indicaram que células da glia do mesencéfalo
ventral são capazes de induzir um fenótipo
dopaminérgico não só em células estaminais
neuronais, mas também em células precursoras
neuronais positivas para o factor de transcrição
Nurr-1, isoladas de diferentes partes do cérebro,
108
Figura 3 –Sinalização Wnt canónica.
Num estado de repouso, as proteínas Wnt canónicas não ligam aos receptores Frizzled and LRP-5/6, devido à sua ausência no meio
extracelular, antagonismo por sFRPs (WIF ou Cerberus) ou internalização dos receptores LRPs, desencadeado pelas proteínas Dkks
and Kremens. ß-catenina é então degradada pelo complexo proteossómico, após fosforilação pela enzima GSK-3ß no complexo de
destruição (constituído igualmente pelas proteínas Axin/APC). Por ligação de Wnts aos receptores Frizzled/LRP, as proteínas Axin e
Dishevelled são recrutadas para a membrana celular. LRPs medeiam a destabilização da proteina Axin, contribuindo para o desmantelamento
do complexo de destruição. Como GSK-3ß é igualmente inibido, b-catenina não é fosforilada e os seus níveis intracelulares são
estabilizados. (1) ß-catenina é então transportada para o núcleo, onde pode converter repressores transcripcionais da família de proteínas
TCF/LEF e Pitx-2 em activadores transcripcionais. Como consequência, genes alvo como ciclinas são activados. (2) b-catenin estabilizada
pode igualmente interagir como o complexo de caderinas, regulando adesão celular e dendritogenese. (3) A inibição de GSK-3ß pode
igualmente induzir remodelação axonal e sinaptogenese.
Em suma, factores que modelem a sinalização Wnt em células
estaminais ou precursoras neuronais poderão ser utilizados
futuramente para a indução de diferenciação dopaminérgica, tendo
em vista a sua aplicação em terapia de substituição celular para a
doença de Parkinson.
incluindo o córtex cerebral. Estes efeitos são
específicos para o nicho neurogénico
dopaminérgico, dado que astrócitos derivados
do córtex cerebral não reproduzem os efeitos
de astrócitos do mesencéfalo ventral. Para além
disso, os nossos resultados indicaram que este
efeitos são, em parte, devidos à secreção de
Wnt-5a. Em suma, neste estudo descobrimos
que células da glia isoladas do mesencéfalo
ventral podem contribuir para a diferenciação
de células estaminais e precursoras neuronais
em neurónios dopaminérgicos através da
secreção de factores solúveis como Wnt-5a.
desenvolvimento de neurónios dopaminérgicos.
Os nossos resultados indicam que o nicho
dopaminérgico do mesencéfalo ventral está
dependente da expressão de LRP-6 e da
regulação por Dkk-2. Tratamento de células
precursoras dopaminérgicas com Dkk-2
aumenta o número de neurónios dopaminérgicos, tal como Wnt-5a. Para além disso,
ratinhos com uma mutação no gene de LRP6 têm igualmente um atraso na neurogénese
dopaminérgica, realçando o importante papel
do sistema Wnt-Dkk-LRP no desenvolvimento
dos neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo
ventral.
3) Dkk-2 and LRP-6 promote the
differentiation of ventral midbrain
dopaminergic neurons (Dkk-2 e LRP-6
promovem a diferenciação dos neurónios
dopaminérgicos da região do mesencéfalo
ventral); Gonçalo Castelo-Branco, Kyle
Sousa, Vitezslav Bryja e Ernest Arenas.
Manuscrito da tese, submetido para publicação
em Novembro de 2005 (em colaboração com
o grupo de investigação do Professor Wolfgang
Wurst, em Munique, Alemanha).
4) GSK3b inhibition/ß-catenin
stabilization in ventral midbrain precursors
increases differentiation into dopamine
neurons (Inibição de GSK-3ß/ estabilização
de ß-catenina em células precursoras do
mesencéfalo ventral aumenta a sua diferenciação
em neurónios dopaminérgicos); Gonçalo
Castelo-Branco, Nina Rawal e Ernest Arenas.
Publicado no jornal científico The Journal of
Cell Science, 117: 5731-5737 (2004).
Dkks (dickkopfs) são proteínas que têm a
capacidade de se ligar a LRPs (low density
lipoprotein receptor related proteins), uma
família de co-receptores das lipoproteínas Wnt.
Deste modo, Dkks podem modelar sinalização
via Wnts (Figura 3). Neste estudo, investigámos
o papel de diferentes Dkks e LRPs no
Wnts podem transduzir o seu sinal
intracelularmente por diversas vias. Neste estudo,
investigámos se GSK-3ß, um dos principais
componentes da via de sinalização Wnt canónica
(Figura 3) está envolvido na diferenciação
dopaminérgica de células precursoras do
mesencéfalo ventral. Descobrimos que a inibição
109
farmacológica de GSK-3ß, por tratamento com
dois compostos químicos (kenpaullone e
indirubin-3-monoxime), induzem a
diferenciação de células precursoras em
neurónios dopaminérgicos positivos para TH.
Este efeito coincide com a estabilização da
proteína ß-catenina no seguimento do
tratamento com os inibidores. Para mais, sobreexpressão de ß-catenina nas células precursoras
neuronais leva igualmente a um aumento do
número de neurónios dopaminérgicos. Dado
que Wnts são moléculas pouco solúveis, os
compostos farmacológicos utilizados no estudo
poderão ser usados no futuro para o melhoramento de preparações celulares antes da
transplantação para doentes de Parkinson. Estas
moléculas poderão mimetizar a sinalização Wnt
em células precursoras ou estaminais neuronais,
e assim aumentar o número de neurónios
dopaminérgicos disponíveis para transplante.
110
Figura 4 – Wnts no desenvolvimento de neurónios dopaminérgicos do mesencéfalo ventral.
Os resultados apresentados nesta teses indicam que moduladores de sinalização Wnt poderão ser usados para o desenvolvimento de
neurónios dopaminérgicos a partir de células estaminais. Durante o desenvolvimento do mesencéfalo ventral e antes da génese dos
neurónios dopaminérgicos, Wnt-1 e Wnt-5a (em menor extensão) induzem a proliferação de células precursoras neuronais. O aumento
da expressão de Nurr-1 nestas células leva à sua saída do ciclo celular. Nesta fase , Wnt-5a (e também Wnt-1, em menor extensão) é
capaz de induzir diferenciação dopaminérgica. Wnt-3a não é expresso no mesencéfalo ventral, dado que poderia inibir a diferenciação
dopaminérgica, quer promovendo proliferação ou induzindo diferenciação num tipo celular alternativo. Kenpaullone (KP) and
Indirubin-3-monoxyme (I3M) são agentes farmacológicos que podem mimetizar a sinalização Wnt e igualmente induzir diferenciação
dopaminérgica, e que poderão ser utilizados no futuro para o melhoramento de preparações celulares para terapia de substituição celular
na doença de Parkinson.
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Zigmond, M.J. (1999) Fundamental neuroscience. Academic Press,
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Conclusões
No trabalho apresentado nesta tese,
identificámos Wnts e Dkks como importantes
reguladores do desenvolvimento dos neurónios
dopaminérgicos do mesencéfalo ventral.
Enquanto Wnt-1, Wnt-5a e Dkk-2 aumentam
o número de células positivas para TH em
culturas de células precursoras neuronais do
mesencéfalo ventral, Wnt-3a mantem e diminui
estes números. Os mecanismos pelos quais
Wnts induzem estes efeitos são diversos.
Enquanto Wnt-1 actua principalmente como
um agente indutor de proliferação para células
precursoras dopaminérgicas, Wnt-5a e Dkk2 induzem diferenciação. Já Wnt-3a pode
manter os precursores neuronais num estado
proliferativo ou induzir diferenciação em outros
subtipos neuronais. Todos estes factores são
secretados em diferentes estádios no mesencéfalo
ventral por células precursoras neuronais ou
glia, e regulam, por sinalização autócrina e/ou
paracrina, o adequado desenvolvimento dos
neurónios dopaminérgicos (Figura 4). Para
além disso, algumas destas moléculas transduzem
o seu sinal através do receptor LRP-6, que é
importante para o desenvolvimento de
neurónios dopaminérgicos no mesencéfalo
ventral, como estabelecido pela análise de
animais com mutações no seu gene.
Identificámos igualmente compostos inibidores
de GSK-3ß e indutores de estabilização de ßcatenina como indutores da diferenciação de
neurónios dopaminérgicos. Em suma, factores
que modelem a sinalização Wnt em células
estaminais ou precursoras neuronais poderão
ser utilizados futuramente para a indução de
diferenciação dopaminérgica, tendo em vista
a sua aplicação em terapia de substituição celular
para a doença de Parkinson (Figura 4).
111
Gustavo Afonso1
Lara Costa2
Marta Miranda3
1enfermeiro graduado. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá.
Responsável pelo apoio domiciliário de enfermagem
2enfermeira
graduada. Centro de Saúde de Braga – Unidade de Saúde do Carandá
3enfermeira
graduada, pós-graduação em Enfermagem de Emergência. Centro de Saúde
de Braga – Unidade de Saúde do Carandá
112
Abordagem
da ferida crónica:
tratamento local
É inquestionável que as feridas crónicas representam
um grave problema de saúde dado as suas
repercussões aos mais variados níveis: pessoal,
familiar e sócio-económico.
Uma ferida crónica pode ser definida como uma
ferida que “permanece sem cicatrizar, por um período
de tempo superior a 6 semanas” (Collins, Hampton
e White, 2002).
113
114
Actualmente coexistem ainda duas distintas
abordagens da ferida crónica: os métodos de
cura seca e a cura húmida. O primeiro baseiase na utilização de material destinado única e
exclusivamente a tapar a ferida, sem qualquer
tipo de acção, “produtos passivos” (exemplo:
gases de algodão, pomadas, etc.), enquanto que
no segundo, o tratamento em meio húmido,
são empregues apósitos resultantes da
investigação científica, capazes de criar condições
de ambiente húmido e de interagir com o leito
da ferida.
O conceito de tratamento em meio húmido,
traduzido do inglês “moist wound healing”, é
conhecido no seio da comunidade científica
desde 1962 através dos estudos de Winter.
terapêuticas e preventivas consoante a etiologia
da ferida, atinge-se a sua cicatrização, o
restabelecimento da saúde e uma melhoria na
qualidade de vida da pessoa doente.
Limpeza da ferida
A limpeza é a primeira fase na abordagem
terapêutica das feridas crónicas, com repercussões
em todo o processo de cicatrização, uma vez
que é através de uma correcta limpeza que se
consegue diminuir o risco de infecção devido
à remoção de microorganismos, tecido
necrosado e possíveis detritos provenientes de
anteriores apósitos, presentes no leito da ferida.A
Ao efectuar o tratamento local da ferida crónica baseado no conceito de
tratamento em meio húmido, atinge-se um elevado nível de eficácia e eficiência
relativamente aos recursos materiais e humanos, visto que se consegue diminuir
o número de intervenções curativas e, assim, diminuir o tempo de cicatrização.
Segundo este método, podem ser consideradas
diferentes etapas no tratamento local da ferida
crónica: limpeza da ferida, desbridamento,
controlo do exsudado, abordagem da carga
bacteriana e infecção e cicatrização em meio
húmido.
AHCPR (Agency for Health Care Policy and
Research) elaborou um Guia para Tratamento
de Úlceras de Pressão do qual resultam
recomendações adaptáveis a outras lesões
cutâneas crónicas. Destas e relativamente à
limpeza da ferida, destacamos as seguintes:
Ao efectuar o tratamento local da ferida
crónica baseado no conceito de tratamento em
meio húmido, atinge-se um elevado nível de
eficácia e eficiência relativamente aos recursos
materiais e humanos, visto que se consegue
diminuir o número de intervenções curativas
e, assim, diminuir o tempo de cicatrização.
- Usar a mínima força mecânica possível
quando para isso se utilizam compressas;
A par desta abordagem, ao considerar a pessoa
portadora de ferida crónica segundo uma
perspectiva holística, associando medidas
- Não utilizar antisépticos como por exemplo
iodopovidona, hipoclorito de sódio e peróxido
de hidrogénio (com conhecida toxicidade e
agressividade para os tecidos e processo de
cicatrização);
- Utilizar solução salina isotónica;
- Aplicar a solução de limpeza com pressão
adequada de modo a efectuar uma acção
mecânica (de remoção de microorganismos e
outros detritos) e sem danificar o tecido viável
(segundo a GNEAUPP – Grupo Nacional para
el Estúdio y Asesoramiento en Úlceras por
Pression y Heridas Crónicas – as pressões eficazes
e seguras situam-se entre 1 a 4 Kg/ cm2; com
uma seringa de 35 ml com cateter de 0,9 mm
atinge-se uma pressão de 2 Kg7 cm2).
Desbridamento
A presença de tecido necrosado (seco ou
húmido, de cor preta ou amarela) no leito da
ferida pode retardar o processo de cicatrização
visto que actua como uma barreira mecânica
ao tecido de granulação e ainda se constitui
como um meio ideal para a proliferação de
microorganismos, dificultando ainda a correcta
avaliação da extensão e profundidade da ferida.
O método de desbridamento é determinado
não só pelo tipo de tecido necrosado mas
também pelo estado geral do doente, como é
o caso de doentes com perturbações da
coagulação ou doentes em fase terminal, casos
em que o desbridamento poderá estar contraindicado.
O desbridamento é um processo natural que
ocorre em todos os processos de regeneração
e cicatrização tecidular. Contudo, nas feridas
crónicas ocorrem fenómenos fisiopatológicos
que impedem o desenvolvimento deste
processo, tornando-se necessário um desbridamento externo.
Na prática, os métodos de desbridamento
podem ser classificados em: cirúrgico; cortante;
enzimático; autolítico; osmótico; larval;
mecânico; químico.
Limpeza com soro fisiológico exercendo a mínima força
mecânica.
Cirúrgico: efectuado em bloco operatório
para remoção de grandes áreas de tecido
necrosado.
115
Cortante: pode ser efectuado no domicílio
ou em ambulatório através da utilização de
tesouras ou bisturis. É um método rápido e
selectivo mas que exige perícia e conhecimentos
específicos. Pode ser utilizado em associação
com outros métodos (autolítico e enzimático).
É susceptível de causar alguma dor, pelo que
pode ser recomendado a aplicação prévia de
anestésicos locais (por exemplo: gel de lidocaína
a 2%). Pode estar ainda associada a hemorragia
como complicação frequente, controlável através
de compressão manual directa e/ ou aplicação
de apósitos com propriedades hemostáticas com
vigilância durante as 24 horas seguintes.
116
Enzimático: feito através da aplicação tópica
de enzimas exógenas (como por exemplo a
colagenase ou a estreptoquinase) que funcionam
de forma sinérgica com as enzimas endógenas,
degradando a fibrina, o colagénio desnaturalizado e a elastina. É recomendável proteger a
pele peri – lesional dado o risco de maceração,
e ainda se recomenda a utilização de um apósito
secundário.
Autolítico: potencia o desbridamento natural
das feridas, permitindo que o tecido desvitalizado
se auto-elimine, através da aplicação de apósitos
constituídos maioritariamente por água (70% a
90%), como por exemplo os hidrogéis. É o
método mais selectivo, não traumático e não
doloroso, sendo por isso bem tolerado pelo próprio doente. É aconselhável a utilização de um
apósito secundário.
Osmótico: feito através de trocas de fluidos
de diferentes osmolaridades, como por exemplo
apósitos de poliacrilato activados com soluções
hiperosmolares. É também um método selectivo,
exigindo a troca de apósito de 12 em 12 ou de
24 em 24 horas.
Larval: surge como uma alternativa não
cirúrgica para o desbridamento de lesões de
diferentes etiologias, especialmente indicado em
feridas vasculares isquémicas. São utilizadas larvas
estéreis da mosca Lucilia sericata criadas
laboratorialmente. Estas larvas produzem enzimas
que liquefazem o tecido desvitalizado para
posterior ingestão e eliminação, sem danificar
o tecido viável.
Mecânico: é um método pouco recomendado
e em desuso, por ser traumático, doloroso e não
selectivo, razões pelas quais foi estipulada a sua
não utilização pelas Guidelines do National
Institute for Clinical Excelence (NICE).
Químico: também de utilização não
preconizada pela aplicação de agentes (exemplo:
hipoclorito de sódio) cuja capacidade de
desbridamento é ineficaz e não selectiva
tornando-se ainda danosa para os tecidos viáveis
e pele peri-lesional.
Desbridamento autolítico: hidrogel em estrutura amorfa.
Controlo do exsudado
O excesso de exsudado tem consequências
negativas para o processo de cicatrização uma
vez que foi demonstrado que feridas
extremamente exsudativas cicatrizam mais
lentamente que as não exsudativas (o excesso
de exsudado induz a decomposição das proteínas
da matriz extracelular e dos factores de
crescimento e a inibição da proliferação celular).
Além disso, o excesso de exsudado pode
provocar maceração da pele peri-lesional,
devendo esta ser protegida com: cremes
hidratantes, óxido de zinco ou, preferencialmente, produtos barreira.
Para controlo directo do exsudado devem
ser utilizados apósitos com grande capacidade
de absorção (alginatos ou hidrofibras de
hidrocolóide ou ainda espumas poliméricas),
ou sistemas mecânicos à base de vácuo. Devem
ainda ser tratadas causas subjacentes causadoras
do excesso de exsudado como é o exemplo do
edema no caso de úlceras venosas e o aumento
da carga bacteriana frequentemente responsável
pelo aumento da produção do exsudado.
Maceração peri-lesional.
Abordagem da carga bacteriana e
infecção
Todas as feridas crónicas estão contaminadas
e a sua colonização é evitada através de uma
limpeza e desbridamento eficazes.
O diagnóstico de infecção é essencialmente
clínico, feito através da constatação de sinais e
sintomas clássicos: inflamação (eritema, edema,
tumor, calor), dor, odor e alterações nas
características do exsudado. Laboratorialmente,
a infecção é idealmente diagnosticada através
de biopsia quando a contagem de bactérias por
grama de tecido é superior a 105.
Perante uma ferida infectada, a primeira
atitude será intensificar a limpeza e desbridamento durante um período de 2 a 4 semanas.
Se houver persistência dos sinais infecciosos,
devem ser utilizados apósitos com iodo de
libertação lenta ou apósitos com prata. Se não
houver evolução favorável, o ideal é a realização
de culturas bacterianas e a implementação de
antibioterapia sistémica adequada aos microorganismos identificados.
Não está recomendada a utilização de
antibióticos tópicos nas feridas visto esta ter
riscos associados como o desenvolvimento de
resistências, sensibilização, alergias e reacções
cruzadas. Assim como não está recomendada
a aplicação de antisépticos locais por não estar
demonstrada a sua acção na diminuição do
nível bacteriano e, pelo contrário, estar provado
terem efeitos citotóxicos.
Ferida infectada, leito da ferida de tonalidade esverdeada.
117
A par desta abordagem, ao considerar a pessoa portadora de ferida crónica
segundo uma perspectiva holística, associando medidas terapêuticas e preventivas
consoante a etiologia da ferida, atinge-se a sua cicatrização, o restabelecimento
da saúde e uma melhoria na qualidade de vida da pessoa doente.
118
Cicatrização em meio húmido
Para estimular a cicatrização torna-se
necessário manter um meio húmido no sentido
de favorecer a angiogénese, granulação e
epitelização. Para isso, desenvolveram-se apósitos
geradores de um ambiente húmido na ferida
graças à sua capacidade de interacção com o
exsudado da mesma, controlando a sua
quantidade, absorvendo-o ou retendo-o. Aliado
a isto, estes apósitos têm a capacidade de criar
um ambiente bacteriostático quer por acidificação do meio quer por funcionarem como
uma barreira mecânica à invasão por agentes
infecciosos; mantêm uma temperatura adequada
estimulando principalmente a fibrinólise; permite
um aporte de oxigénio e nutrientes via endógena
através da angiogénese; e não provocam dor
tanto na sua aplicação como na sua remoção.
Os apósitos com estas características podem
ser classificados em: espumas poliméricas,
hidrogéis, hidrocolóides, alginatos, apósitos
com prata (sendo todos estes os mais utilizados)
e ainda, poliuretanos, apósitos com silicone e
apósitos de carvão.
Espumas poliméricas: também conhecidos
por hidropolímeros ou hidrocelulares, são
compostos por poliuretano ao qual é associado
uma estrutura hidrofílica. Têm uma elevada
capacidade de absorção estando indicados para
feridas de pouco a extremamente exsudativas,
sem macerar a pele peri-lesional. Estão
especialmente indicados para a fase de granulação, podendo ser utilizados para o desbridamento quando associados a hidrogéis.
Hidrogéis: compostos fundamentalmente
por água (de 70% a 90%) e sistemas
microcristalinos de polissacarídeos e polímeros
sintéticos. Indicados para o desbridamento
autolítico de tecido necrosado húmido ou seco,
podem também ser utilizados em todas as fases
do processo de cicatrização. Requerem um
apósito secundário.
Hidrocolóides: compostos de carboximetilcelulose sódica (CMC). Têm capacidade
autolítica para desbridamento de tecido
necrosado. Em contacto com o exsudado da
ferida, formam um gel de cor e odor
característicos. Podem ser usados em todas as
fases de cicatrização.
Alginatos: polímeros de cadeia larga
procedentes das algas (formados da associação
dos ácidos gulurónico e manurónico, sendo a
base uma fibra de alginato de cálcio). Têm
grande capacidade de absorção (absorvem 15
a 20 vezes o seu peso). Indicados para feridas
moderada a extremamente exsudativas, tendo
também utilidade em feridas infectadas pela
capacidade de retenção de microorganismos
na sua estrutura. Úteis também em feridas
119
cavitárias e têm também propriedades hemostáticas.
Apósitos com prata: produtos bioactivos
que contêm prata em diferentes percentagens,
associada a hidrocolóides, carvão e polietileno.
Indicados para feridas infectadas, uma vez que
há evidências científicas de que a prata actua
sobre um amplo espectro de microorganismos
incluindo alguns multi-resistentes, não tem
efeitos secundários, não interfere com antibióticos sistémicos e produz escassas
resistências.
Referências bibliográficas
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de Feridas. Uma Realidade Inovadora, in Sinais Vitais nº25. Julho de
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TORRA I BOU, Joan-Enric. (1997). Manual de sugerencias sobre
cicatrización y cura en ambiente húmedo. Madrid: Jarpyo.
Fernando Duarte
Médico Dentista. Mestre em Cirurgia Oral e Maxilofacial pelo Eastman Dental
Institute – Universidade de Londres. Estudante de Doutoramento – Universidade
de Londres. Docente do Instituto Superior de Saúde do Alto Ave.
Carina Ramos
Médica Dentista. Estudante de Mestrado em Oncologia Médica no Instituto de
Ciências Biomédicas Abel Salazar / Instituto Português de Oncologia – Universidade
do Porto. Docente do Instituto Politécnico de Saúde do Norte.
120
Planeamento Cirúrgico
na Reabilitação de
Resumo
O conceito de planeamento cirúrgico e protético virtual
permite replicar o tratamento planeado em realidade clínica na
reabilitação de pacientes parcial ou totalmente desdentados.
O conceito consiste num método de planeamento (baseado
em modelos ou em software informático) denominado
NobelGuide®, da Nobel Biocare, capaz de criar uma férula
cirúrgica personalizada, de acordo com o planeamento. Baseado
no desenho da férula cirúrgica poderemos produzir uma prótese
provisória ou definitiva, que pode ser colocada no mesmo
tempo cirúrgico dos implantes. As indicações deste conceito
são: maxilares total ou parcialmente desdentados; assim como,
casos unitários. O principal benefício é permitir a colocação de
um implante dentário e respectivo componente protético de
uma forma fácil, rápida, minimamente invasiva e previsível, de
acordo com o planeamento efectuado antecipadamente.
121
e Protético Virtual
Pacientes Desdentados Totais
Introdução
Com o advento dos implantes dentários,
novas alternativas de reabilitação oral têm
surgido para pacientes edentulados, promovendo
grandes avanços para a Medicina Dentária. Por
outro lado, os conceitos de vida actual exigem
maior rapidez, previsibilidade e conforto nos
tratamentos.
A reabilitação protética imediata após a
colocação de implantes aparece como opção
para suprir estas necessidades, promovendo a
diminuição do tempo de tratamento, além de
evitar uma segunda intervenção cirúrgica e o
uso de uma prótese removível provisória1,2,3,4.
Através do conceito NobelGuide® é possível
determinar a posição exacta de todos os
implantes antes do procedimento cirúrgico ser
efectuado, identificar as estruturas anatómicas
relevantes e visualizar a quantidade óssea
disponível. Desta forma, e esta é a grande
novidade deste sistema, permite-se ao laboratório
produzir antecipadamente ao acto cirúrgico,
uma solução protética provisória ou definitiva.
O conceito NobelGuide® utiliza um
procedimento cirúrgico sem retalho
minimamente invasivo, que reduz significativamente a dor e o edema pós-operatórios.
Com este procedimento reduz-se o número
de visitas dos pacientes à clínica, assim como
o tempo de cadeira.
122
Protocolo
A – Exame do paciente e avaliação do
tratamento:
O planeamento baseado no software
informático NobelGuide® foi concebido para
maxilares com um ou vários dentes em falta,
em casos em que o paciente: cumpre os
requisitos gerais de saúde para cirurgia oral;
cicatrizou completamente após quaisquer
procedimentos dentários de regeneração óssea;
tem quantidade óssea suficiente a nível maxilar
e/ou mandibular;
B – Preparação da guia radiológica:
Deverão realizar-se impressões aos maxilares
e um registo de mordida horizontal e
equilibrado. Em casos de pacientes desdentados
totais deve efectuar-se o registo de mordida
utilizando as próteses existentes optimizadas
ou, se necessário, novas próteses. A guia
radiológica é utilizada para simular os dentes,
a superfície do tecido mole e o espaço edêntulo
durante a digitalização por tomografia
computorizada. O desenho correcto da guia
radiológica é um pré-requisito para um
planeamento com sucesso, uma vez que, o
resultado final da reabilitação é determinado
por essa guia. A geometria da guia radiológica
é transferida para a férula cirúrgica.
Para facilitar a técnica de digitalização dupla
por tomografia computorizada e a subsequente
correspondência das duas digitalizações, terão
de ser colocados pelo menos seis pontos de
referência radiológica em cada prótese. Estes
orifícios deverão ter 1,5 mm de diâmetro e 1
mm de profundidade, deverão ser colocados
por vestibular e palatino/lingual a diferentes
níveis em relação ao plano oclusal e preenchidos
com gutta-percha.
O conceito de planeamento
cirúrgico e protético virtual permite
replicar o tratamento planeado em
realidade clínica na reabilitação de
pacientes parcial ou totalmente
desdentados
C – Tomografia Computorizada:
Nos casos de NobelGuide® baseados em
software informático, os dados de digitalização
por tomografia computorizada são utilizados
para o planeamento cirúrgico e para a produção
de uma férula que orienta a cirurgia durante a
colocação dos implantes. É importante que os
dados de digitalização sejam uma representação
exacta da anatomia do paciente.
Baseado no desenho da férula
cirúrgica poderemos produzir
uma prótese provisória ou
definitiva, que pode ser
colocada no mesmo tempo
cirúrgico dos implantes
Para realizar planeamento com NobelGuide®
é necessária uma digitalização dupla: na primeira
tomografia é digitalizado o paciente com a guia
radiológica posicionada na boca juntamente
com o registo de mordida previamente
estabelecido; na segunda digitalização é
digitalizada apenas a guia radiológica. Deverá
certificar-se de que o paciente está numa posição
em que o plano oclusal e o indicador laser
horizontal estão paralelos e coincidem (se a
digitalização por tomografia computorizada
possuir um indicador laser vertical, deve colocarse entre os incisivos centrais). Não é permitida
a utilização de uma inclinação de suporte, deve
pedir-se ao paciente para não se mexer durante
todo o processo de digitalização e evitar engolir.
A distância correcta entre as partes axiais deverá
ser no máximo de 0.5mm. Quando a «imagem
de reconhecimento» aparecer no monitor, deve
corrigir a posição do paciente para uma posição
horizontal do palato duro. Em seguida, pode
atribuir a área de interesse das partes axiais, em
paralelo com o palato duro horizontal. O registo
radiológico deverá ser introduzido na posição
correcta entre a guia radiológica e a arcada
oponente. É importante que o paciente morda
firmemente o registo e a guia radiológica
durante a digitalização (sem no entanto correr
o risco de deformar a guia radiológica), para
alinhar a guia com o tecido mole do paciente
eliminando quaisquer espaços de ar.
Na segunda digitalização a guia radiológica
deve ser digitalizada numa posição semelhante
à da digitalização do paciente. Para tal a guia
deve ser fixa a um objecto adequado de material
radiolucente e colocado no scanner
aproximadamente na mesma posição em que
estava colocado na boca do paciente durante
a primeira digitalização.
O material utilizado para colocar
adequadamente a guia radiológica deve ser o
mais radiolucente possível, suportes de
polietileno ou espuma de poliuretano são
adequados. A segunda digitalização deverá ser
realizada com as mesmas definições aplicadas
na primeira, incluindo a mesma distância entre
as partes axiais.
Como as unidades de Hounsfield geradas
para a guia radiológica se assemelham demasiado
às do tecido mole, a digitalização dupla é
utilizada para resolver o problema de extracção
da guia a partir de uma única degitalização por
tomografia computorizada.
Os marcadores guta-percha na guia
radiológica são essenciais como pontos de
referência para efectuar uma fusão exacta das
duas digitalizações.
Quando a digitalização dupla estiver concluída
deverá realizar-se a transferência dos dados de
digitalização em formato DICOM 3
descomprimido para pré-processamento.
123
D – Planeamento:
O software está disponível em duas versões:
o Clinical Design Pro e o Clinical Design
Premium. O Clinical Design Premium inclui
a aplicação de conversão de ficheiros de
digitalização por tomografia computorizada
para modelos de planeamento em 3D, enquanto
que na versão Pro os ficheiros de digitalização
terão de ser enviados para o website da Nobel
Biocare onde estes serão convertidos em
ficheiros de planeamento tridimensionais e
enviados de volta ao clínico.
124
O software Procera® é utilizado para orientar
no processo NobelGuide®. Cada processo de
planeamento é único e completamente baseado
nas considerações específicas e pré-requisitos
apresentados por cada paciente. Os locais de
colocação dos implantes com uma distância
mínima entre centros conforme a(s) plataforma(s)
que forem utilizadas. A zona amarela em volta
dos implantes indica uma distância de 1.5 mm.
Três parafusos estabilizadores (anchor pins)
(Ø 1.5 mm) são planeados na arcada entre os
implantes num plano axial, para permitir a
estabilização adequada da férula cirúrgica durante
a cirurgia. Quando o planeamento terminar
deverá ser verificado e aprovado, devendo a
férula cirúrgica ser encomendada através do
software Procera®.
Cada processo de
planeamento é único e
completamente baseado nas
considerações específicas e prérequisitos apresentados por
cada paciente.
Fig. 1 – Aspecto inicial da paciente
Fig. 2 – Ortopantomografia inicial
Fig. 3 – Guias radiológicas superior e
inferior
Fig. 4 – Planeamento cirúrgico
NobelGuide® maxilar
Fig. 5 – Planemaento cirúrgico
NobelGuide® mandibular
E – Produção do molde em gesso e
guia cirúrgica:
Fig. 6 – Aspecto das férulas cirúrgicas
Fig. 7 – Próteses totalmente em acrílico
confeccionadas antes da intervenção
cirúrgica
Fig. 8 – Colocação e estabilização
da férula cirúrgica mandibular
Fig. 9 – Colocação dos implantes
anteriores
Fig. 10 – Imagem intra-operatória da
mucosa mandibular
A guia cirúrgica é utilizada durante a cirurgia
para colocar a férula cirúrgica no maxilar antes
de estabilizá-la com os parafusos estabilizadores.
A férula cirúrgica foi desenvolvida em ambiente
CAD e contém todas as informações necessárias
para efectuar o molde em gesso, no qual pode
ser produzida uma prótese provisória ou
definitiva.
A férula cirúrgica é feita de um material
sensível à humidade e à radiação UV, devendo
ser guardada juntamente com um material
absorvente no saco de plástico protector
anti-UV no qual foi fornecida e guardada num
local seco e escuro.
As réplicas do implante deverão ser colocadas
em cada um dos orifícios na férula cirúrgica
utilizando os cilindros guia com parafuso, a
seguir são inseridos os parafusos estabilizadores
e os suportes para os parafusos estabilizadores.
Coloca-se silicone de gengiva para mimetizar
o tecido mole. Vazar o molde a gesso e com
um instrumento cortante remover as extremidades que se destacam em redor dos orifícios.
Prende-se a prótese optimizada do paciente no
molde em gesso e coloca-se em articulador
juntamente com o modelo do maxilar oposto;
deverá ser utilizado o registo oclusal radiológico
para verificar a correcta oclusão. Substituir a
guia radiológica pela férula cirúrgica e prendela com os parafusos estabilizadores, acrescentase material de registo nomeadamente silicone
para obter um registo de qualidade.
125
F – Solução Protética:
O conceito NobelGuide® fornece total
liberdade na escolha da opção protética mais
adequada, de forma a satisfazer os requisitos do
paciente bem como da situação clínica.
126
Ao efectuar um procedimento protético de
cirurgia guiada, é possível utilizar uma grande
variedade de pilares Nobel Biocare, tais como:
Immediate Temporary Abutment (pilar
provisório para função imediata – casos
unitários), Pilar Guided Abutment (para
reabilitações parciais e totais), Pilar Procera®
Abutment – Pilar Snappy AbutmentTM e Pilar
Esthetic Abutment – Pilar Multi-Unit
Abutment.
Os casos clínicos baseados em modelos e em
software informático, depois da produção do
molde em gesso, a maioria dos procedimentos
protéticos é similar aos procedimentos do
tratamento convencional.
Fig. 11 – Colocação e estabilização da
férula cirúrgica maxilar
Fig. 12 – Imagem intra-operatória da
mucosa maxilar
Fig. 13 – Aspecto final das próteses
A reabilitação protética
imediata após a colocação de
implantes aparece como
opção para suprir estas
necessidades, promovendo a
diminuição do tempo de
tratamento, além de evitar
uma segunda intervenção
cirúrgica e o uso de uma
prótese removível provisória
Fig. 14 – Aspecto final da paciente
Fig. 15 – Ortopantomografia final
Vantagens
Para o paciente:
- O tratamento cirúrgico baseia-se em cirurgia
guiada e sem retalho, que é minimamente
invasiva. Este processo reduz consideravelmente
a dor e o edema pós-operatório, assim como
o número de consultas e tempo de cadeira2,4.
- A combinação de Immediate Function®
com próteses provisórias ou Teeth-in-anHour® com próteses definitivas reduz
consideravelmente a duração do tratamento.
Para o médico dentista:
Conclusão
O sistema NobelGuide® apresenta uma
grande fiabilidade cirúrgica e protética
assente numa total imobilidade da férula
guia durante a cirurgia e no duplo sistema
de ancoragem. Este sistema permite a
utilização de implantes Brånemark System
e Nobel Replace.
O sistema NobelGuide® permite realizar
próteses cimentadas ou aparafusadas
previamente ao acto cirúrgico, podendo
a sua colocação ser feita imediatamente
após em função imediata1,2,3,4.
127
- Maior segurança e previsibilidade, uma vez
que ao planear o tratamento num software 3D
e transformá-lo numa férula cirúrgica existe
uma escolha óssea criteriosa para a colocação
ideal dos implantes1.
- Pré-produção de próteses: o planeamento
permite a pré-produção de próteses definitivas
ou provisórias de acordo com o plano de
tratamento estabelecido2,3,4.
Bibliografia
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Part I - The concept. J Prosthodont 2006; 15:51-58.
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Schutyser F, Pettersson A, Wendelhag I: A computed tomographic
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flapless surgery and immediate loading of implants in fully edentulous
maxillae: A prospective multicenter study. Clin Implant Dent Relat
Res 2005; 7(1):111-120.
Próxima edição
Daniel Serrão
A Pessoa Humana e o Direito
a Cuidados de Saúde
Nuno Penacho
Terapia Génica:
Um medicamento chamado
gene...
128
Como se pode imaginar, os vírus são extremamente
eficientes na entrega de material genético às células. Estas
pequenas partículas possuem, como objectivo único da
sua existência, a entrega do seu material genético às células
e promovem a sua própria replicação de modo a iniciar
um novo ciclo
Fábio Pereira, José Carlos Machado, Maria Daniel Vaz de
Almeida
Nutrigenética e Nutrigenómica:
em direcção à nutrição
personalizada
Adelaide Serra, Fernando Domingos
Avaliação Nefrológica de uma
população com Litíase Cálcica
Idiopática Recorrente
Experiência de 7 anos da Consulta de
Nefrolitíase do Serviço de Nefrologia do
Hospital de Santa Maria
Prémio Bial de Medicina Clínica 2004
A litíase cálcica idiopática recorrente é a forma mais
frequente de nefrolitíase encontrada na actualidade,
verificando-se um aumento progressivo da sua incidência
nas últimas décadas, sobretudo nos países industrializados
Benedita Aguiar
Psicologia da Saúde e Promoção
da Saúde
Não caindo em reducionismos, a Psicologia da Saúde
procura desencadear mudanças de comportamentos,
designadamente ao nível individual, enquanto que a
promoção da saúde visa provocar mudanças do
comportamento organizacional, crenças em saúde e
oportunidades de aprendizagem
prox. edição
Numa era onde a medicina é cada vez mais preventiva,
espera-se que a terapia nutricional seja a pedra angular
dos futuros cuidados de saúde, transformando-se numa
importante ferramenta terapêutica para a maximização
da saúde e minimização do risco de doença em indivíduos
susceptíveis
Paula Gago, Veloso Gomes
Via verde coronária – um
projecto para a vida no
Sotavento algarvio
A mortalidade por doença coronária continua a ser
elevada nos países desenvolvidos, ocupando, na maioria,
o primeiro lugar como causa de morte… Em média, um
terço de todos os casos de enfarte agudo do miocárdio
eram fatais antes da hospitalização, a maioria deles na
primeira hora após início dos sintomas
Benzodiazepinas: aspectos
farmacológicos e utilização clínica
Sérgio Aires Gonçalves
As benzodiazepinas pertencem ao grupo dos sedativoshipnóticos sendo os medicamentos globalmente mais
prescritos. A sua utilização deve-se à sua acção calmante e
sedativa-hipnótica. As benzodiazepinas são geralmente
administradas por via oral sendo a rapidez da sua absorção
e distribuição determinada por factores como a
lipossolubilidade
Paulo Teixeira
Síndrome de Asperger
A Síndrome de Asperger é o nome dado a um grupo de
problemas que algumas crianças (e adultos) têm quando
tentam comunicar com outras pessoas
Hugo Leite-Almeida, Armando Almeida
Como é que o cérebro aumenta
a dor?
Codigo de barras

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