A Filosofia no Consultório

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A Filosofia no Consultório
A Filosofia no Consultório
Eu sou normal?1
Monica Aiub2
“Na minha casa ninguém estuda e eu quero estudar. Meu pai diz que eu sou louca por
causa disso, será que eu sou normal?”
“As meninas querem ‘ficar’, me tratam como um objeto, e isso eu não quero. Eu quero
alguém com quem eu possa dividir a vida, o meu corpo e minhas idéias. Meus irmãos
dizem que eu sou louco por causa disso, que um cara normal não pensa nessas coisas,
será que eu sou normal?”
“Eu sou muito emotiva, eu choro por tudo, isso é normal?”
“Desde criança que eu sou uma menina, eu penso como menina, eu vivo como uma
menina. Acontece que para o mundo, eu nasci homem. O difícil é as pessoas
entenderem isso, será que eu sou normal?”
“Às vezes eu me sinto como um ET, todo mundo pensa de um jeito e eu de outro, será
que eu sou louca?”
“Todo mundo gosta de futebol e eu não, todo mundo vê novela e eu não, todo mundo
gosta de balada e eu não, acho que eu não sou normal.”
“Ninguém se importa com o que está acontecendo no país, é uma loucura, parece que
todos estão cegos. Será que só eu enxergo ou estou completamente maluca?”
“Às vezes me sinto como se eu não pertencesse a esse mundo, acho que sou meio
‘xarope’, eu faço umas coisas que todo mundo diz que é coisa de maluco”.
Muitos partilhantes procuram os consultórios de filosofia clínica com essa dúvida: será
que eu sou normal? Sou anormal? Fiquei maluco? Estou enlouquecendo? São questões
comuns. Mas o que significa ser “normal”?
Segundo Abbagnano, em seu Dicionário de Filosofia (2003), normal é “aquilo que está
em conformidade com a norma”; “aquilo que está em conformidade com um hábito ou
com um costume ou com uma média aproximada ou matemática ou com o equilíbrio
físico ou psíquico”. Cabe-nos perguntar: com qual norma? O que é norma?
Abbagnano define norma como “uma regra ou critério de juízo”. Apresentando-a como
um conceito recente, nascido do neocriticismo alemão, ele aponta sua formação como
advinda da distinção e da contraposição entre o domínio empírico do fato (natural ou
real) e o domínio racional do dever (ideal). A norma é apresentada como “critério
1
Artigo publicado na Revista Filosofia, Ciência & Vida.
Monica Aiub. Filósofa Clínica, mestre em Filosofia pela UFSCAR-SP, professora do curso de Filosofia
do Centro Universitário São Camilo, professora titular do curso de Especialização em Filosofia Clínica do
Instituto Packter. E-mail: [email protected]
2
infalível para o reconhecimento ou realização de valores absolutos” ou como
“procedimento que garante o desenvolvimento eficaz de uma determinada atividade”.
Compreendendo norma como “procedimento que garante o desenvolvimento eficaz de
uma determinada atividade”, necessitaremos considerar que cada atividade possui suas
especificidades e circunstâncias e, por esse motivo, a norma variará tanto quanto as
variações de atividades, circunstâncias ou especificidades. Desta forma, se normal é o
que está em conformidade com a norma, e se a norma varia, o critério de normalidade
também varia, sendo dependente de tais variações.
Contudo, se compreendermos norma como “critério infalível para o reconhecimento ou
realização de valores absolutos”, e normal aquilo que está em conformidade com a
norma, que critérios devemos utilizar para distinguir entre o que é, e o que não é
normal? Voltamos ao ponto de partida.
Examinemos novamente o conceito de normal, proposto por Abbagnano: “aquilo que
está em conformidade com um hábito ou com um costume ou com uma média
aproximada ou matemática ou com o equilíbrio físico ou psíquico”.
Hábitos ou costumes
Como podemos discernir entre hábitos normais e anormais? Se normal é o costume da
maioria, então para a pessoa cujos hábitos da família não incluem o estudo, estudar é
anormal? Mas se, para a maioria de uma sociedade, normal for equivalente a estudar,
então os anormais são os familiares da mesma pessoa? Para quem os costumes sociais
implicam em “ficar” com as garotas, “não ficar”, por desejar um outro tipo de
relacionamento, é anormal?
Se você não reproduzir os hábitos ou costumes de sua sociedade, você é anormal?
Quantas vezes hábitos, costumes, regras, leis de uma sociedade foram modificados?
Basta observar nossa história e teremos inúmeros exemplos de modificações nos
hábitos, como o papel da mulher na sociedade, as relações de trabalho, as formas de
organização das cidades. Numa mesma cultura são verificadas modificações no tempo,
e num mesmo tempo é possível perceber claramente diferenças culturais regionais.
Assim sendo, se você viajar para um outro país, ou mesmo para outras regiões de nosso
país, perceberá costumes diferentes. Isso lhe permitirá concluir que aquelas pessoas, por
possuírem hábitos diferentes dos seus, são anormais? Ou você é anormal? Qual a norma
à qual deveremos estar em conformidade?
Numa mesma região, num mesmo tempo, grupos criam suas regras, constituem seus
hábitos. Se você discordar dos hábitos de seu grupo e desejar construir uma forma
diferente de organizar sua vida, você é anormal? Se você questionar os costumes de sua
sociedade, você é anormal? Concluir isso implicaria em constante reprodução dos
costumes vigentes, em estagnação, imobilidade, ausência de construção, e talvez até de
avaliação. As normas seriam consideradas e reconhecidas como absolutas e invariáveis.
Contudo, se elas surgem da “contraposição entre o natural e o ideal”, entre o que se
apresenta e como deveria ser, então elas supõem um movimento e não podem ser
reconhecidas como absolutas.
As normas surgem para que possamos garantir alguns princípios fundamentais à nossa
existência, para que preservemos nossos valores. Nossa existência implica na
construção de um mundo e de nós mesmos e, por esse motivo, implica também em
constante avaliação dos modos de ser que construímos, do que valorizamos, do que
consideramos como fundamental. Por isso, a norma estabelecida para garantir os
princípios e valores do ser humano no século passado pode não ser adequada para
garantir os princípios e valores do ser humano do século XXI. Isso porque esse ser
humano pode ter se modificado, porque pode ter percebido que o que considerava como
um valor fundamental era apenas um equívoco, ou simplesmente o antigo valor deixou
de ser significativo. Por tudo isso, o chamado normal, ditado pelos hábitos ou costumes,
trata-se apenas de uma medida que varia de tempos em tempos, de cultura para cultura.
“...a palavra ‘normal’ é muito usada, em vários contextos, inclusive na Medicina, mas
nem sempre com significado precisamente delimitado ou sugerido. Exame de obras de
muitas áreas leva a crer que ‘normalidade’ seja termo de emprego ditado por consenso.”
(HEGENBERG, Leônidas. Doença: um estudo filosófico. Rio de Janeiro: Fiocruz,
1998).
Medida: Média aproximada ou matemática
Sobre o segundo ponto da definição: o normal em conformidade com “uma média
aproximada ou matemática”, como estabelecemos uma média? Em Doença: um estudo
filosófico, Hegenberg explana acerca da “normalidade” em medicina, mostrando-nos os
limites de aplicação de uma “normalidade estatística”. Como em medicina as doenças
são consideradas anormais, enquanto as condições saudáveis são tidas como normais,
instituiu-se que o normal é o “comum”, a medida padrão. E, novamente, o que é o
comum? Qual a medida padrão? Se estabelecermos a média do que é o comum, ou seja,
distribuirmos dados sobre uma “curva de Gauss” a partir de experimentos com pessoas
“comuns”, isto é, saudáveis, e de experimentos com pessoas doentes, ou seja, com sua
normalidade afetada, teremos a medida do “normal”?
Após observar vários aspectos, Hegenberg conclui que “Diante disso, não se pode
escapar da irônica afirmação, hoje mais ou menos freqüentemente repetida: normal é
apenas a pessoa que não foi suficientemente examinada...”. Além de estabelecer como
proposta a substituição da dicotomia saúde/doença por uma espécie de continuum, ele
destaca que “a normalidade estatística não é necessária para caracterizar ‘saúde’, porque
são muitas as condições inusitadas, insólitas, que se apresentam em pessoas
perfeitamente sadias (...) há condições não-saudáveis que se mostram típicas”.
Muitas vezes o não-saudável é a média ou o estar fora da média é muito saudável. Se
observarmos os índices de violência, corrupção, miséria, abusos de todas as naturezas
tidos como a “média” em nossa sociedade, podemos afirmar que tudo isso é normal?
Talvez todas essas práticas possam ser incluídas nas regras vigentes, talvez algumas
delas até sejam defensáveis pela Lei, mas constituem um modo de ser saudável?
Devemos aceitá-las como “normais” e manter a “norma”?
Ainda sobre a norma estatística, Hegenberg nos lembra dos diferentes contextos em que
a palavra norma é empregada: “meios que conduzem a um fim”, como as normas
técnicas; “regras que determinam o jogo”, o proibido e o permitido; “regulamentos,
prescrições, condutas que devem ser adotadas”, como as Leis. Assim sendo, o normal
seria aquele que se ajusta às normas, que se direciona à aquisição de seus objetivos
seguindo as regras, que obedece às regras do jogo, que acompanha os regulamentos.
Se normal é quem se submete à pressão das normas, quem age como se espera;
“anormal” é quem foge às regras, quem busca saídas criativas? E quando um
comportamento, tido como normal, não é aceitável para a pessoa? E quando
construímos socialmente uma norma de comportamento que traz malefícios? E quando
seguir a regra implica em abandonar as crenças mais preciosas ou os sonhos que dão
sentido à existência? O que fazer?
“Nos meados do século XVII, brusca mudança; o mundo da loucura vai tornar-se o
mundo da exclusão. Criam-se (e isso em toda a Europa) estabelecimentos para
internação que não são simplesmente destinados a receber os loucos, mas toda uma
espécie de indivíduos bastante diferentes uns dos outros, pelo menos segundo nossos
critérios de percepção: encerram-se os inválidos pobres, os velhos na miséria, os
mendigos, os desempregados opiniáticos, os portadores de doenças venéreas, os
libertinos de toda espécie, pessoas a quem a família ou o poder real querem evitar um
castigo público, pais de família dissipadores, eclesiásticos em infração, em resumo,
todos aqueles que, em relação à ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras
de ‘alteração’.” (FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2000).
Equilíbrio físico ou psíquico
O terceiro ponto da definição: normal como o que está em conformidade com “o
equilíbrio físico ou psíquico” supõe o esclarecimento da definição de equilíbrio.
O Dr. Simão Bacamarte, personagem de O Alienista, de Machado de Assis, busca um
critério científico de loucura, a fim de estudá-la profundamente e descobrir sua causa e
seu remédio. Em sua busca, internava para pesquisa todos os casos em que “o equilíbrio
das faculdades da razão não fosse perfeito e absoluto”. Os que “não se submetiam à
norma”, mesmo que momentaneamente, eram internados na Casa Verde – instituição
criada por ele para sua pesquisa. Ao perceber que quatro quintos da população estava
internada, decidiu reavaliar seus critérios, passando a considerar como “normal e
exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em
que aquele equilíbrio fosse ininterrupto”, passando, então, a internar os que
mantivessem a regra, que não fugissem à norma. Contudo, o número de internos era
bem menor e, com pouco tempo de internação, seus pacientes, por motivos vários,
quebravam a norma, curando-se. Diante disso, Bacamarte conclui que “os cérebros bem
organizados que ele acabava de curar, eram desequilibrados como os outros”. A partir
de suas pesquisas, observou que não havia loucos na cidade, o que lhe provocou a
dúvida: “Itaguaí não possuiria um único cérebro concertado?”. Bacamarte terminou por
internar-se, pois na busca de um critério científico para o conceito de “alienação”,
descobriu-se como o exemplar do “alienado”, dado o seu “equilíbrio ininterrupto”.
Se propusermos como conceito de equilíbrio uma medida absoluta, encontraremos a
mesma dificuldade de Bacamarte: a impossibilidade de estabelecimento de um padrão
de normalidade. A medida aqui é interna, subjetiva. Desta forma, novamente nos
deparamos com uma média, uma medida que não pode ser estabelecida absolutamente.
Seus batimentos cardíacos podem estar diminuídos e esta ser a sua medida, os meus
podem estar diminuídos, mas esta não ser a minha medida. O que faz a diferença, em
medicina, são os sintomas. Mas há um limiar, mesmo para essa desaceleração de
batimentos cardíacos, pois se eles diminuírem a ponto de comprometer o funcionamento
do organismo, fazem-se necessários procedimentos médicos para regularizar.
Regularizar não significa atingir um número determinado de batimentos por minuto,
mas atingir um número que permita o bom funcionamento do organismo.
Suas idéias e seu comportamento podem estar fora da medida convencionada
socialmente e essa ser a sua medida. Minhas idéias e meu comportamento podem estar
fora da medida convencionada e isso ser impedimento para minha vida. O que faz a
diferença, em filosofia clínica, é a forma como essas idéias e esse comportamento
afetam a vida do partilhante e seu contexto. A filosofia clínica atua de modo a auxiliá-lo
a encontrar a própria medida de equilíbrio. Esta medida não é absoluta, varia de pessoa
para pessoa, de contexto para contexto, de tempos em tempos, ou seja, acompanha o
movimento da existência.
Erasmo de Rotterdam, em Elogio da Loucura, conta-nos a história de um grego, a fim
de demonstrar uma espécie de loucura que nos afasta das preocupações, tornando-as
mais suaves.
Esse homem era louco de todas as formas: desde manhã muito cedo, até tarde da noite,
ficava sentado sozinho no teatro e, imaginando que assistia a uma magnífica
representação, embora na realidade nada se representasse, ria, aplaudia e divertia-se à
grande. Fora dessa loucura, ele era, em tudo o mais, uma ótima pessoa: complacente e
fiel com os amigos; terno, cortês e condescendente com a mulher; indulgente com os
escravos, não se enfurecendo quando via quebrar-se uma garrafa. Seus parentes deramse ao incômodo de curá-lo com o heléboro; mal, porém, ele voltou ao estado que
impropriamente se chama de bom senso, dirigiu-lhes esta bela e sensata apóstrofe:
“Meus caros amigos, que fizeram vocês? Pretendem ter-me curado e, no entanto
mataram-me: para mim acabaram-se os prazeres: vocês me tiraram uma ilusão que
constituía toda a minha felicidade”. Tinha sobras de razão esse convalescente, e os que,
por meio da arte médica, julgaram curá-lo, como de um mal, de tão feliz e agradável
loucura, mostraram precisar mais do que ele de uma boa dose de heléboro.
(ROTTERDAM, E. Elogio da Loucura. São Paulo: Abril Cultural, 1973.).
Quantas vezes nossa “loucura” é nossa forma de sobrevivência? É a maneira que
encontramos para manter nosso “equilíbrio”? Em vários momentos não nos
enquadramos em padrões de normalidade e sofremos discriminação por isso. O que faz
o filósofo clínico? Busca formas para adaptar o partilhante? Ou procura maneiras de
auxiliá-lo a encontrar meios para modificar seu contexto? Orienta-o a procurar um outro
contexto para viver? Ou o apóia a afrontar o padrão, auxiliando-o a encontrar maneiras
de conviver com as conseqüências de sua escolha?
Considerando os conceitos e padrões de normalidade como construções de uma época,
de uma sociedade, de uma cultura com o objetivo de preservar os valores e poderes
vigentes, nem sempre condizentes com as reais necessidades, o filósofo clínico não
impõe uma aceitação a tais padrões sem antes questionar sua validade e seu significado
na história do partilhante.
O “anormal” de uma sociedade pode ser apenas alguém distanciado de sua cultura de
origem, ou uma voz dissidente do poder instituído. O que em tempos passados era
considerado loucura, hoje pode ser padrão de normalidade. O que era considerado um
absurdo nos padrões da “norma”, poderia ser uma grande descoberta, algo capaz de
revolucionar a sociedade.
Por isso, se o partilhante estiver subjetivamente bem com sua “loucura” – entendendo
aqui loucura como atitude em desacordo com a norma – se isso não colocar em risco sua
vida, nem a de outros, que motivos há para interferir? Porém, se tal “loucura” for
motivo de sofrimento, incômodo, e ele desejar modificar isso, então poderemos auxiliálo na construção da mudança. A modificação dar-se-á na medida da escolha do
partilhante, considerando-se as condições existentes no contexto onde ele está inserido e
as possíveis conseqüências de tal mudança.
Porém, aqui também há limites. Uma situação é trabalhar com um partilhante cujo
comportamento foge completamente à norma por opção, com as devidas justificativas
encontradas no histórico de suas vivências. Outra situação é trabalhar com alguém que
foge ao padrão sem justificativas, sem saber o que o leva a isso, sentindo-se “obrigado”
a agir, sem escolhas. Nesses casos, a pesquisa sobre possíveis distúrbios químicoorgânicos é imprescindível. Tendo estudado, em sua formação, os sintomas de
distúrbios que necessitam de tratamento médico, o filósofo clínico, ao identificar
indícios, deve encaminhar o partilhante a um médico para diagnóstico e possível
tratamento. Trabalhar a singularidade, mas preservar a integridade e conhecer os limites
de atuação é essencial ao filósofo clínico. Não consideramos patologias, mas há
situações em que medicamentos são necessários e não é habilitação do filósofo clínico
avaliar.
Quando afirmamos que em filosofia clínica não há padrões, tipologias, normalidade,
patologias, nos referimos à não aceitação da norma como um absoluto e definitivo
modo de ser. O filósofo clínico não é detentor da “verdade”, não é o “sábio” que vai
orientar o partilhante sobre as melhores maneiras de agir, de ser ou de viver. É apenas
um bom ouvinte, que não vai julgar ou avaliar o partilhante, nem interná-lo na “Casa
Verde”.
Seu papel é, após coletar os dados e compreender o que se passa no histórico do
partilhante, provocar o pensar, a reflexão sobre esse modo de ser e suas implicações,
sobre as escolhas e os caminhos a serem delineados. É também seu papel contextualizar
as questões do partilhante, permitindo-lhe observar seu entorno e as possibilidades
existentes nele. Por fim, é tarefa do filósofo clínico auxiliar o partilhante a escolher
caminhos para efetivar suas escolhas terapêuticas e, em alguns casos, direcionarem-se
para elas, como por exemplo, pesquisar possibilidades de mudanças no contexto e
efetivá-las, ou pensar sobre possíveis reações de pessoas ou grupos significativos ao
partilhante, ou ainda investigar formas de convivência com situações pré-estabelecidas,
entre outros possíveis encaminhamentos para a clínica.
A pergunta inicial “eu sou normal?” acaba por perder o sentido, por ter seu significado
esvaziado, pois, afinal, o que é normalidade? Em grande parte das vezes o partilhante
descobre que simplesmente é diferente da norma estabelecida, e por não ser concordante
com ela, é rotulado como “anormal”. Contudo, o rótulo é atribuído de acordo com a
norma estabelecida e, muitas vezes, o caso não é se tornar normal, mas manter-se fora
da norma, romper com ela, quebrá-la, modificá-la, transmutá-la.
Em outros casos, o partilhante descobre que o problema consiste em pertencer ou estar
inserido em um grupo cujos valores não são compartilhados com ele e, submeter-se às
normas deste grupo seria não apenas uma afronta a si mesmo, mas uma mutilação
existencial. Nesses casos, a avaliação sobre as possibilidades de mudança de grupo ou
mudança no grupo apresenta-se como caminho. Há casos de partilhantes que “ se
encontraram” através do afastamento dos grupos nos quais estavam inseridos e da
construção de outros tipos de relações. Há também casos de partilhantes que, cientes da
situação, provocaram todo um grupo a pensar, a modificar suas regras e a construir
novos modos de ser.
Em algumas situações, o partilhante não apenas está inserido em um grupo, mas em
todo um contexto cujas normas lhe afrontam, lhe fazem sentir-se deslocado, como se
não pertencesse a esse mundo. Há casos, nessas situações, em que a mudança de
contexto permite o exercício de sua singularidade. Em outros casos, não existe a
possibilidade de uma mudança capaz de situá-lo, ou não há um contexto conhecido que
atenda às necessidades de seu modo de ser. Há partilhantes que diante de situações
como essas decidem por modificações internas, por adaptações, por posturas radicais. O
que fazer, em cada um dos casos, não é uma definição dada pelo filósofo clínico. As
possibilidades são pesquisadas em conjunto e definidas pelo partilhante, após a
avaliação das especificidades do caso. Os caminhos são tão variados quanto às situações
e características de cada partilhante.
Entre as situações curiosas em clínica, encontramos a cobrança de pessoas que
convivem com o partilhante e não se conformam com o fato da filosofia clínica não o
adaptar, não o tornar normal. Mais curioso ainda é quando alguns desses amigos ou
familiares do partilhante observam como ele está mudado, quando na verdade ele
simplesmente encontrou uma maneira de se expressar, ou de controlar seus impulsos.
Em outros casos, é curioso observar o medo de ser rotulado como “louco” ou de perder
sua identidade através do trabalho terapêutico, abandonando sua legitimidade e se
tornando aquilo que “os outros esperam dele”.
Conviver com o que se é e com as expectativas alheias, ser, tornar-se ou manter-se são
algumas possibilidades da clínica filosófica. Nada é esperado, nada é imposto. É
permitida a construção, a desconstrução, a reconstrução. É possível manter uma idéia,
mudar de idéia, retornar à idéia; assumir uma posição, rever a posição, desistir da
posição. É possível ser legítimo, sendo o que se é. É possível perceber-se diferente e
exercer o direito à diferença, sem rótulos, sem tipos pré-determinados, sendo,
exclusivamente, único. Num trabalho terapêutico onde o respeito à singularidade é
primeiro princípio, não é possível avaliar, definir, decidir sobre a medida da
normalidade.
Referências bibliográficas:
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
AIUB, M. Para Entender Filosofia Clínica: o apaixonante exercício do filosofar. Rio de
Janeiro: WAK, 2004.
ASSIS, M. O Alienista. São Paulo: FTD, 1994.
FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
HEGENBERG, L. Doença: um estudo filosófico. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.
PACKTER, L. Filosofia Clínica: propedêutica. Porto Alegre: AGE, 1997.
ROTTERDAM, E. Elogio da Loucura. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1973.

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