Genocídio - Professor Luiz Regis Prado
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Genocídio - Professor Luiz Regis Prado
Lei 2.889/1956 Embora sempre tenha existido, na História, atos de barbárie adequados ao que se considera atualmente crime de genocídio, a preocupação internacional de estabelecer mecanismos jurídicos para sua prevenção e repressão só surgiu ao fim da 2ª Guerra Mundial, como reação aos atos de extermínio levados a cabo pelos nazistas no período de 1941 a 1945, notadamente contra os judeus, poloneses e ciganos. O próprio termo genocídio é um neologismo criado nessa época (1944) pelo polonês Rafael Lemkin, sobrevivente das perseguições raciais dos nazistas, professor de Direito Internacional da Universidade de Yale, obtido, para alguns, da junção do vocábulo grego genos (gente, grupo humano) e do sufixo latino cidio (matar), e para outros, dos lexemas latinos genus (raça, povo) e excidium (destruição, exterminação). Esta última concepção, tendo em conta que o genocídio, como conceituado na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio da ONU, de 09.12.1948, não se restringe à ação de matar, delineia-se mais adequada. A doutrina, na esteira dos conceitos adotados pela Convenção de 1948, concebe o genocídio como a prática de determinados atos, definidos em lei, finalisticamente dirigidos à destruição, total ou parcial, de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso enquanto tal. Há posições divergentes sobre a questão do bem jurídico tutelado nos tipos de genocídio. Podem-se identificar três correntes de opinião: ◦ As que defendem a proteção de um bem jurídico coletivo, cujo substrato ideológico é o reconhecimento da diversidade humana e a inadmissibilidade de nela radicar qualquer critério de inferioridade ou superioridade racial, étnica, nacional ou religiosa; ◦ As que vêem no crime de genocídio a tutela de bens jurídicos individuais, de que são titulares cada qual dos membros do grupo atingido; ◦ e, enfim, os que preconizam tratar-se de delito pluriofensivo, que tem como objetividade jurídica imediata o bem individual (vida, integridade física, liberdade, etc) e, de forma reflexa, o bem jurídico coletivo consistente no direito do grupo à existência na diversidade. Perfilha-se o entendimento de que o crime tem por objeto bem jurídico de caráter supraindividual, consubstanciado na idéia de diversidade e pluralidade como direitos inerentes à própria dignidade humana. O bem jurídico protegido nos tipos da Lei 2889/56 é o direito à existência de grupos humanos, independentemente de raça, etnia, nacionalidade ou religião já que o genocídio se consubstancia na própria negação desse direito. Trata-se, portanto, de bem jurídico supraindividual. Nessa esteira, o STF, no julgamento do R.E. n° 351487-RR, que tinha por objeto delito de genocídio contra a tribo Yanomami da Comunidade Haximu, em Roraima, pronunciou-se no sentido de que a objetividade jurídica nesse crime é a “tutela penal da existência do grupo racial, étnico, nacional ou religioso, a que pertence a pessoa ou pessoas imediatamente lesionadas”, cuidando-se de delito de “caráter coletivo ou transindividual. Crime contra a diversidade humana”. Sujeito ativo de qualquer das condutas descritas nos tipos incriminadores da Lei 2.889/56 é qualquer pessoa. Delito unissubjetivo, pode ser cometido por um só indivíduo; sem olvidar, contudo, que no genocídio é marcante a pluralidade de agentes, os quais geralmente estão ligados às forças de repressão de determinado grupo detentor do poder político e/ou militar. De se ressaltar que só a pessoa física, não a jurídica, poderá figurar como agente do crime, tanto em razão do que estabelecem os artigos IV e V da Convenção de 1948, que mencionam pessoas culpáveis, como porque, “do ponto de vista penal, a capacidade de ação, de culpabilidade e de pena exige a presença de uma vontade, entendida esta como faculdade psíquica da pessoa individual, que não existe na pessoa jurídica”. Não pode ser agente o próprio membro do grupo cuja extinção se pretende, porquanto, o extermínio em massa de pessoas da mesma nacionalidade poderá consubstanciar crime contra a humanidade, mas não genocídio, quando a intenção não seja acabar com esse grupo, e sim com aqueles integrantes dele que se apresentem como dissidentes, de modo que o grupo vitimado já não o é em razão de sua nacionalidade, etnia ou religião, mas por sua oposição ideológica ao agente. De se observar que no crime do artigo 2° da Lei 2889/1956, modalidade especial de crime de quadrilha ou bando, delito de concurso necessário, só se perfaz o tipo com a convergência de mais de três pessoas, isto é, exigem-se ao menos quatro integrantes na associação. Em quaisquer dos crimes definidos nos artigos 1°, 2° e 3°, da Lei 2889/1956, incide uma majorante de 1/3 (um terço) da pena se o agente for governante ou funcionário público, por força do disposto no artigo 4°; o que se justifica em razão da maior magnitude do delito em tais casos. Sujeito passivo direto e imediato do crime – que se confunde também com seu objeto material – é a pessoa, o membro da coletividade que se busca extinguir e sobre o qual recaia a conduta do agente, e sujeito passivo mediato é o gênero humano e, especificamente, os grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos cuja existência na diversidade se busca proteger. A Convenção de 1948, em seu artigo II, relacionou – o que é repetido no artigo 1° da Lei 2.889/1956 – como destinatários da proteção jurídica os grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos, como tais, excluindo deliberadamente os grupos políticos, cuja inclusão fora inicialmente aventada. Nem a Convenção nem a Lei brasileira definem o que seja grupo nacional, grupo étnico, grupo racial ou grupo religioso, de modo que tais expressões revelam-se elementos normativos extrajurídicos e o propósito teleológico da lei permite afirmar que o que é relevante é a existência de uma coletividade como objeto do crime, “es decir, de una colectividad humana dotada de cierta estabilidad y señas comunes de identidad”. Tem-se como grupo nacional aquele constituído de pessoas, ocupantes ou não de um mesmo Estado, vinculadas por unidade de origem, de território, idioma, costumes, cultura e aspirações coletivas; em síntese, “um grupo de pessoas unidas por laços naturais e portanto eternos – ou pelo menos existentes ab immemorabli – e que, por causa destes laços, se torna a base necessária para a organização do poder sob a forma do Estado nacional...”. Entretanto, tal definição não é completa nem fechada, havendo grupos nacionais com certas diversidades culturais e até de línguas – vejam-se os diversos dialetos italianos – assim como composto de membros esparsos por vários territórios, como era o caso dos judeus antes da criação do Estado de Israel, etc. Pode-se, entretanto, afirmar que o vínculo que integra o grupo nacional é preponderantemente de ordem sócio-cultural, e não biológica ou antropológica. Grupo étnico, por sua vez, “é um conjunto relativamente estável de indivíduos que mantém continuidade histórica porque se reproduz biologicamente e seus membros estabelecem entre si vínculos de identidade social distinta, a partir do que se assumem como uma unidade política (real ou virtual, presente ou passada), que tem direito exclusivo e controle de um universo de elementos culturais que consideram próprios”. Grupo étnico e grupo racial são conceitos que se entrelaçam, porque seu ponto de convergência são homogêneas características biológicas, como laços de sangue, genéticos, de anatomia, cores da pele e dos olhos, traços físicos, etc. Por isso, é muito difícil uma precisa distinção entre raça e etnia, sendo comum que os léxicos os tratem como sinônimos, devendo-se destacar, ademais, que “la pureza racial es algo inexistente em la práctica, por lo que toda unidad racial a su vez será la integración de varias otras razas que se han integrado más o menos en la misma”. Grupo religioso é o integrado por adeptos da mesma fé religiosa, seguidores de um determinado esoterismo ou prática de culto comum. No artigo 1°, tipo misto alternativo, diversas são as ações incriminadas, todas como expressão de um específico propósito, referido no caput: a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal. Nele se podem identificar condutas constitutivas do denominado genocídio físico. A primeira conduta incriminada (art. 1°, alínea a) é a de matar membros do grupo. A conduta objetiva é a mesma do tipo do homicídio, descrito no artigo 121 do Código Penal. É a eliminação da vida humana, por qualquer meio, direto ou indireto, físico, químico, térmico, etc. É a morte de um ou mais membros do grupo com o propósito de extirpação do grupo. De se ressaltar que, embora o tipo empregue o termo membros do grupo no plural, basta a morte de um único integrante do grupo para que se configure o crime de genocídio, desde que haja nexo lógico entre esse fato e a pretensão de destruição do grupo a que pertence a vítima. Melhor redação tem o artigo 607 do Código Penal espanhol, que se refere à morte de “algum de seus membros”. Consigne-se que a ocisão de vários membros do grupo visado, num mesmo contexto, configura um único crime de genocídio; isto é, não há um delito de genocídio para cada morte, mas um só crime de genocídio em concurso formal com os homicídios, um só ataque contra o bem jurídico supra-individual em concurso com as agressões individuais, cada qual em relação de concurso ideal com o crime de genocídio. A hipótese é de concurso formal impróprio, implicando a aplicação cumulativa da pena do genocídio, em razão dos desígnios autônomos do agente. É o entendimento expressado pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 351487-RR, proferido em 03.08.2006, de que foi relator o Min. Cezar Peluso. A consumação se dá no momento da morte do integrante da coletividade visada, coincidindo com a consumação do homicídio. A tentativa é possível, quando o agente não consegue a morte do membro do grupo por causas alheias à sua vontade. A segunda ação prevista (art. 1°, alínea b) é a de causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo. É, como a conduta anterior, tipo de forma livre, podendo o agente empregar quaisquer meios capazes de produzir lesão à integridade física ou mental de membro do grupo. E, do mesmo modo, para que se configure o crime basta que um único membro do grupo seja lesionado, se o móvel da conduta do agente é o intuito de extermínio, total ou parcial, do grupo nacional, racial, étnico ou religioso a que pertence o ofendido. Lesão grave é elemento normativo jurídico do tipo, remetendo ao artigo 129, parágrafos 1° e 2°, do Código Penal, mas para que consubstancie crime de genocídio deve ter magnitude ou gravidade suficiente para refletir na perenidade do grupo (ex: a mutilação de uma parte do corpo característica de determinada etnia). Não é suficiente à caracterização do crime a prática de lesão de natureza leve contra membros do grupo, ainda que o agente esteja imbuído do propósito genocida. Consuma-se o crime com a efetiva produção da lesão de natureza grave, seja à integridade física ou mental do ofendido. A tentativa, em que pese certa divergência doutrinária, é admissível, eis que o agente pode iniciar a execução de ato plenamente eficaz à produção de lesão grave, sem lograr sua consumação, v. g., atirar de cima de um prédio pesado objeto sobre a vítima que, num átimo antes de ser atingida, dá um passo adiante, esquivando-se do projétil. A terceira conduta incriminada (art. 1°, alínea c) é a de submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial. Trata-se de tipo excessivamente vago e indeterminado, que não se coaduna com o princípio da taxatividade ou determinação da lei penal. Submeter é sujeitar, subordinar. Pune-se a sujeição do grupo a situação de vida que, por sua precariedade ou circunstâncias hostis, possa implicar sua extinção. A conduta do agente, aqui, não é dirigida a um ou outro membro, mas ao grupo. Obviamente, não é preciso que todo o grupo, em sua integralidade, seja posto sob condições de perecimento, mas é necessário que a submissão seja de um número tal de componentes que se evidencie a ofensa coletiva. Dá-se o crime quando o agente sujeita uma pluralidade de integrantes do grupo a uma situação de existência degradante ou desumana, capazes de acarretar a própria morte de tais pessoas, como na hipótese em que o grupo seja isolado num gueto, privado de alimentação, água potável, remédios, assistência médica, sanitária e outros recursos básicos indispensáveis à sobrevivência humana. Trata-se de delito permanente, protraindo-se no tempo sua consumação por vontade do agente; circunstância que não obsta a possibilidade de tentativa. A quarta ação incriminada (art. 1°, alínea d), é adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo. Também um tanto vago o tipo, porque não especifica quais medidas são punidas, o que estende seu alcance sobre quaisquer providências que tenham a tendência de obstar os nascimentos no grupo. Trata-se de hipótese que a doutrina denomina genocídio biológico, em que, embora não haja a eliminação física direta de componentes dos grupos visados, o agente prepara a sua destruição a longo prazo, adotando medidas com o propósito de impedir a reprodução dentro do grupo, obstando o nascimento de infantes. Basta, pois, que a providência tomada pelo agente seja voltada à cessação da procriação dos componentes da etnia, raça, nacionalidade ou seita. Estão incluídos os métodos contraceptivos, dentre os quais a esterilização, cirúrgica ou não, de homens e/ou mulheres do grupo, assim como as diligências abortivas, já que tanto umas quanto as outras visam obstar a reprodução da espécie. No caso de adoção de providências abortivas, os eventuais abortamentos ocorridos serão punidos em concurso formal com o crime de genocídio; entretanto, na hipótese de esterilização, três são as possibilidades: se o agente realiza concretamente as medidas de esterilização, incide no tipo em comento; se induz ou instiga terceiros à prática de atos de esterilização contra os membros do grupo, incide no artigo 3° da Lei 2889/1956; e, enfim, se induz ou instiga um ou mais membros do grupo visado, com o intuito de extermínio do grupo, à prática de esterilização cirúrgica – exclusivamente cirúrgica – incidirá no artigo 17, parágrafo único, da Lei 9.263, de 12.01.1996, norma especial. Consuma-se o crime com a adoção, isto é, aplicação ou implementação, de qualquer medida apta a obstar a procriação, independendo a consumação de qualquer resultado naturalístico decorrente da adoção das medidas. A tentativa é possível, v. g., no caso em que o agente distribui uma droga esterilizadora às mulheres do grupo que, no entanto, por uma razão ou outra não a utilizam. A quinta conduta tipificada (art. 1°, e) constitui-se na transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. É a ação de retirar, à força, isto é, de modo compulsório, mediante coação física ou moral, crianças integrantes de uma coletividade nacional, étnica, racial ou religiosa, para incluí-las em outra. Essa conduta determina, a médio ou longo prazo, a extinção do grupo pelo natural envelhecimento e desaparecimento de seus componentes, aliada à inserção de suas crianças a outros grupos, de forma a diluir ou extinguir os traços característicos ou distintivos de seu grupo originário. Crianças é expressão que deve ser lida consoante a definição do artigo 2° da Lei 8.069/1990, referindose, pois, aos menores de 12 (doze) anos. Consumase o delito no momento do efetivo deslocamento da criança de um grupo para outro. Delito plurissubsistente, admite a tentativa, quando o agente, iniciando os atos de remoção compulsória da criança, tem obstada sua atividade por circunstâncias divorciadas de sua vontade. O crime tipificado no artigo 2° da Lei 2889/1956 é o de formação de quadrilha ou bando destinado à prática de quaisquer dos crimes definidos no artigo 1° da mesma Lei. A ação incriminada é, como no artigo 288 do Código Penal, associarem-se os agentes, isto é, agruparem-se em caráter estável, com ânimo de perenidade. O ponto distintivo entre este delito e o de quadrilha ou bando do Código Penal é o especial fim da sociedade, qual seja, o propósito de cometer delito de genocídio. Ressalte-se que só se configura o tipo se o fim visado pela quadrilha for o de praticar crimes de genocídio tipificados no artigo 1°, configurando-se o delito do artigo 288 do Código Penal se o propósito é a prática de outros delitos, inclusive o do artigo 3°, da Lei 2889/1956, que incrimina a incitação ao genocídio. Delito de mera atividade, consuma-se no momento da formação efetiva da associação criminosa, ainda que nenhum outro crime tenha ainda sido levado a efeito. É crime de perigo abstrato contra o bem jurídico tutelado, o direito de existência do grupo nacional, étnico, racial ou religioso. É inadmissível a tentativa, pela impossibilidade de fracionamento do iter criminis. No art. 3º pune-se a incitação ao crime de genocídio. É delito similar ao do artigo 286 do Código Penal, distinguindo-se deste em razão da espécie de crime a cuja prática o agente incita: o genocídio. A ação nuclear do tipo é incitar, que no texto tem o significado de instigar, açular, estumar; isto é, o agente estimula, instiga, seja por palavras, gestos ou escritos, à prática de uma ou mais das condutas tipificadas no artigo 1° da Lei. A incitação deve ser pública isto é, realizada em local, ocasião e outras circunstâncias que a tornem perceptível por número indeterminado de pessoas, além de direta, ou seja, inequívoca, clara, ostensiva. Se o agente dá publicidade à incitação por meio da imprensa, aí compreendidos os jornais, revistas, emissoras de rádio, televisões, sítios de acesso público da Internet, etc, incide uma causa de aumento de terça parte da pena (art. 3°, § 2°), o que se justifica pela maior potencialidade de divulgação e alcance da incitação que daí decorrem. Também é delito de mera atividade, cuja consumação se dá com a só incitação, independente de qualquer outro evento. Na hipótese de o crime incitado vir a ser realizado, e demonstrado o vínculo entre a ação precedente do incitador e a conduta do agente do delito subseqüente, a pena da incitação será a mesma do crime incitado (art. 3°, § 1°, da Lei 2.889/56). A tentativa é, em tese, admissível, notadamente na forma escrita. Nas figuras do artigo 1° da Lei, a tipicidade subjetiva é representada pelo dolo, representado pela vontade livre e consciente de realizar a conduta tipificada, mais o elemento subjetivo do injusto, consistente na intenção de destruir, no todo ou em parte, o grupo alvo. No tipo do artigo 2°, é o dolo de se associar de forma estável, mais o propósito de cometimento de crimes de genocídio, elemento subjetivo do injusto. Por fim, a figura incriminada no artigo 3° é tipo congruente, que se satisfaz com o dolo, constituído da consciência e vontade de incitar, publicamente, a prática de condutas definidas no artigo 1° como crimes de genocídio. É admissível, em quaisquer dos crimes da Lei 2.889/1956 tanto na modalidade de co-autoria como participação. Mesmo na figura do artigo 2°, que define crime de quadrilha ou bando genocida, consistente de tipo plurissubjetivo ou de concurso necessário, admite-se o concurso eventual, que se dá pela cooperação consciente de terceiro, não integrante da quadrilha. No crime do art. 1° da Lei, tipo misto alternativo, a consumação dar-se-á consoante a realização de cada conduta incriminada. Assim, na hipótese da alínea a o crime tem o mesmo momento consumativo do homicídio, ou seja, com a morte do membro do grupo vitimado, bastando a morte de um só indivíduo, em que pese o emprego do termo membros, no plural. A tentativa é possível, como no homicídio, porquanto se cuida de crime plurissubsistente. A segunda ação incriminada no art. 1° (alínea b) tem seu momento consumativo quando o indivíduo alvejado sofre, efetivamente, a lesão corporal ou psíquica de natureza grave. Também aqui se admite a tentativa, que ocorre quando o agente, animado do propósito de produção do evento lesivo – e motivado pela intenção de destruir, integral ou parcialmente, o grupo a que pertence o indivíduo visado –, realiza ato de execução tendente a ofender a incolumidade física ou psíquica da vítima, mas não atinge o fim anelado por intercorrência de evento alheio à sua vontade. Entretanto, como é elemento normativo jurídico do tipo a lesão grave (cuja definição encontra-se nos §§ 1° e 2°, do art. 129 do CP), para se reconhecer a tentativa é necessário que o meio empregado seja apto, nas circunstâncias, a produzir lesão grave. A terceira conduta prevista no art. 1° (alínea c), tipo mal construído, excessivamente vago, pode levar a incertezas quanto ao momento consumativo. De todo modo, o crime não estará consumado antes da efetiva sujeição de uma pluralidade de integrantes da nacionalidade, etnia, raça ou religião a condições de perecimento.Cuida-se de delito permanente. A tentativa é possível. A quarta conduta prevista no art. 1° (alínea d), também descrita de forma demasiado genérica, tem seu momento consumativo quando o agente adota, isto é, realiza, põe em prática, qualquer medida apta a obstar a procriação dentro do grupo. Não é preciso que a medida adotada cause, efetivamente, o efeito naturalístico almejado, basta que tenha aptidão para tanto. Possível a tentativa, v.g., no caso em que o agente distribui uma droga esterilizadora às mulheres do grupo que, no entanto, por alguma razão não a utilizam. Na hipótese da alínea e do art. 1°, a consumação se dá com o efetivo deslocamento da criança de seu grupo nacional, étnico ou religioso para um outro, diverso. Possível a tentativa, que se dá quando, tendo o agente iniciado os atos executórios necessários à compulsória transferência da criança, animado do propósito de fazer perimir o grupo, vê malograda a consumação por fato alheio à sua vontade. O tipo do art. 2° da Lei 2889/56, crime de mera atividade, permanente e de perigo, tem sua consumação no momento em que, imbuídos do propósito de futura prática de quaisquer dos crimes relacionados no art. 1°, agregam-se ao menos quatro pessoas, aí computados eventuais inimputáveis. A tentativa não é admissível, eis que o iter criminis não é passível de fracionamento. A figura do art. 3°, que pune a incitação ao crime de genocídio. Delito de perigo, instantâneo e de mera atividade, tem seu momento consumativo no ato de açular publicamente à prática de qualquer uma das condutas tipificadas no art. 1° da Lei, independente da ocorrência de qualquer outro evento subseqüente. Se a incitação é pela imprensa (art. 3°, § 2°), a consumação ocorre no momento da publicação ou transmissão incitativa. tipo do artigo 1° é delito internacional, comum, comissivo (podendo se realizar também, eventualmente, por omissão), de ação múltipla, de dano, plurissubsistente, de forma livre, doloso e instantâneo, salvo na modalidade da alínea c, que configura crime permanente. O artigo 2° é delito internacional, comum, plurissubjetivo, comissivo, unissubsistente, de ação única, de perigo abstrato, doloso e permanente. A figura do artigo 3° constitui delito internacional, comum quanto ao agente, comissivo, de ação única, plurissubsistente, unissubjetivo, de perigo abstrato, doloso e instantâneo. Nenhum dos crimes descritos na Lei 2.889/1956 é crime político, em vista da norma explicativa do seu artigo 6°. Por fim, em razão do disposto no artigo 1°, parágrafo único, da Lei 8.072/1990, são crimes hediondos todas as modalidades definidas nos artigos 1°, 2° e 3° da Lei n° 2.889/1956. Não comina a Lei penas próprias para as condutas que tipifica, tendo o legislador adotado o expediente de remeter às penas de delitos descritos no Código Penal, alguns deles sem relação alguma com as condutas tipificadas como genocídio (nenhuma relação há, v. g., entre a conduta descrita no art. 1°, c, da Lei, com o crime de envenenamento de água potável do art. 270 do CP), dificultando a inteligibilidade da Lei e criando situações de perplexidade: para se saber, v. g., qual a pena para o crime de associação, descrito no artigo 2°, ou para o de incitação, definido no seu artigo 3°, é preciso definir exatamente qual espécie de conduta, dentre as diversas do tipo misto alternativo do artigo 1° da Lei, tinha a quadrilha o propósito de praticar ou cuja prática o incitador estimulou. Merece nota a adoção de um critério rígido para a punição da tentativa: dois terços da pena cominada ao crime consumado (art. 5°), sem dar ao juiz qualquer margem de discricionariedade, diversamente do critério adotado no Código Penal. No artigo 1° da Lei 2.889/1956, comina-se a pena do homicídio qualificado (doze a trinta anos de reclusão) à primeira modalidade (alínea a); a do artigo 129, § 2°, do CP (dois a oito anos de reclusão) à segunda modalidade (alínea b); a pena do artigo 270 do CP (dez a quinze anos de reclusão) à terceira modalidade (aliena c); a pena do artigo 125 do CP (três a dez anos de reclusão) à quarta modalidade (alínea d); e a do artigo 148 do CP (dois a oito anos de reclusão) à quinta modalidade de conduta (aliena e). Se o agente for governante ou funcionário público a reprimenda será acrescida de um terço. No artigo 2°, a pena cominada pela associação é de metade da pena prevista no artigo 1°. Assim, v. g., será de seis a quinze anos de reclusão, se a quadrilha formar-se para o fim de matar membros de uma certa nacionalidade ou raça, ou de um a quatro anos de reclusão se o objetivo da associação criminosa for a transferência forçada de crianças de um grupo para outro. No artigo 3°, comina-se, igualmente, à prática de incitação, a metade da pena cominada ao crime definido no artigo 1°. Pública incondicionada. A competência, no caso específico da modalidade prevista na alínea a do artigo 1°, é do Tribunal do Júri. Não porque se trate de crime contra a vida, mas em razão do concurso formal com o homicídio, este sujeito à competência do Tribunal do Júri por disposição do artigo 5°, XXXVIII, d, da Constituição da República, e da aplicação das regras de competência por conexão e continência (art. 78, inc. I, do CPP.)