Por um manifesto pós-fotográfico [1] studium 36

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Por um manifesto pós-fotográfico [1] studium 36
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Por um manifesto pós-fotográfico [1]
resumo/
abstract
Joan Fontcuberta *
( tradução de Gabriel Pereira )
studium 36
outros artigos desta edição
A
síndrome Hong Kong
Um
dos
principais
jornais
de
Hong
Kong
despediu, faz pouco, os seus oito fotógrafos fixos que
cobriam as notícias locais; em troca, distribuíram câmeras
digitais entre o coletivo de entregadores de pizza. A
decisão empresarial era sensata: é mais fácil ensinar a
fazer fotos aos ágeis e escorregadios entregadores do
que conseguir que os fotógrafos profissionais sejam
capazes de contornar os engarrafamentos infernais de
Hong Kong e consigam chegar a tempo à notícia. Os
porta-vozes do setor, obviamente, ficaram loucos: como
é possível que se renuncie à qualidade que é garantida
pelos profissionais com experiência? Mas há de se convir
que mais vale uma imagem defeituosa tomada por um
amador do que uma imagem talvez magnífica, mas
Capa do suplemento Cultura|s de quartafeira, 11 de maio de 2011
inexistente. Saudemos, pois, o novo cidadão-fotógrafo.
Depreende-se deste recente episódio de darwinismo tecnológico uma mudança de
cânone fotojornalístico: a velocidade prevalece sobre o instante decisivo, a rapidez sobre o
refinamento. Nas épocas heróicas da reportagem fotográfica, os repórteres dispunham de
tempo e recursos. Quando a National Geographic celebrou seu centenário, no editorial de seu
número especial se vangloriavam de poder oferecer a seus privilegiados colaboradores
condições ótimas de trabalho: assistentes, helicópteros, hotéis luxuosos... Na média, em cada
reportagem encomendada disparavam-se 27 mil fotos, das quais se terminava publicando
apenas uma exígua dúzia, a qual era necessariamente o suprassumo. Mas estes anos de
ostentação passaram, empurrados pelos efeitos de um mercado cada vez mais competitivo e
pela imersão em uma nova midiasfera. Tem-se falado muito do impacto da irrupção da
tecnologia digital em todos os âmbitos da comunicação e da vida cotidiana; para a imagem, e
para a fotografia em particular, significou um antes e um depois. Se pode comparar à queda do
meteorito que levou à extinção dos dinossauros e abriu espaço para novas espécies. Durante um
tempo, os dinossauros não foram conscientes da colisão e viveram felizes como testemunhas
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passíveis – e pasmas – das mudanças que se operavam em seu ecossistema: as nuvens de poeira
não deixavam passar os raios de sol com consequências letais para vegetais e animais. Hoje,
empalidece uma fotografia-dinossauro que está dando espaço a novas adaptações, mais
adaptadas a um novo entorno sociocultural.
Da síndrome de Hong Kong aprendemos que hoje a urgência da imagem por existir
prevalece sobre as qualidades da própria imagem. Esta pulsão garante uma massificação sem
precedentes, uma poluição icônica que por um lado vem sendo implementada pelo
desenvolvimento de novos dispositivos de captação visual e por outro lado, pela enorme
proliferação de câmeras – seja como aparelhos autônomos ou incorporadas a telefones móveis,
webcams e dispositivos de vigilância. Isto nos imerge num mundo saturado de imagens: vivemos
na imagem e a imagem nos vive e nos faz viver. Já nos anos sessenta, Marshall McLuhan
profetizou o papel preponderante dos mass media e propôs a iconosfera como modelo de aldeia
global. A diferença é que na atualidade culminamos num processo de secularização da
experiência visual: a imagem deixa de ser domínio de magos, artistas, especialistas ou
profissionais a serviço de poderes centralizados. Hoje, todos nós produzimos imagens
espontaneamente, como uma forma natural de relacionar-nos com os demais, a pós-fotografia
se erige numa nova linguagem universal.
Periferias da imagem
Ao tentar analisar o atual estatuto da imagem há de se pensar, em primeiro lugar, nos
horizontes das investigações científicas avançadas, que já exploram os mecanismos perceptivos
que se situam na fronteira ciência-ficção. Para nossos pais, um simples transplante de córnea
pareceria pura fantasia. Hoje, a nanotecnologia permite o implante de diminutos telescópios
oculares que reduzem os superpoderes de Clark Kent a um simples complemento fashion da
Srta. Pepis[2] (www.visioncareinc.net/technology). Ou possibilita também que um artista
iraquiano e professor de fotografia pela New York University, chamado Wafaa Bilal, tenha
cirurgicamente inserido uma microcâmera na parte posterior de seu crânio para fotografar a
torto e a direito (não é brincadeira, embora pareça, pode-se comprovar em <wafaabilal.com/).
Não satisfeitas em patrocinar a camiseta do Barça, algumas instituições governamentais do
Catar também comissionaram o projeto para sua première, no novo museu de Doha, o MathafMuseu Árabe de Arte Moderna. A ideia é que a encéfalocâmera de Bilal dispare a intervalos
regulares de um minuto e as imagens possam ser vistas em tempo real por streaming a partir dos
monitores do museu: não lhes soa um pouco como a história que viveram Romy Schneider e
Harvey Keitel no filme La Mort en Direct (1980) de Bertrand Tavernier?
Mas, sem dúvida, para os leigos, as experiências mais alucinantes são as de centros high-
tech como o CNS (Computational Neuroscience Laboratories) de Kyoto (www.cns.atr.jp/en/),
cujos departamentos de Computational Brain Imaging y Dynamic Brain Imaging buscam
monitorar a atividade mental a fim de extrair imagens simples diretamente do cérebro e projetálas sobre uma tela. Abra bem os olhos, pois isto abriria um leque de capacidade que somente
vimos no cinema fantástico: filmar com nossos olhos, gravar nossos sonhos e vê-los na manhã
seguinte pelo televisor, codificar as emoções a fim de traduzi-las em imagens ou acessar
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simultaneamente a percepção visual de outra pessoa. A revista especializada Neuron (Vol. 60, nº
5, 11/12/2008), publicou uma monografia sobre o tema, com título de Visual Image
Reconstruction from Human Brain Activity. Filmes como Minority Report (2002), de Steven
Spielberg, ou Inception (2010), de Christopher Nolan, logo parecerão brincadeira de criança.
O desafio nos aguarda na esquina, pois uma consideração holística da imagem não pode
se contentar com a transferência ontológica que produz a substituição da prata pelo silício e dos
grãos de haleto de prata por pixels. Borrados completamente os confins e as categorias, a
questão da imagem pósfotográfica ultrapassa uma análise circunscrita a um mosaico de pixels
que nos remete a uma representação gráfica de caráter escritural. Ampliemos o enfoque a uma
perspectiva sociólogica e observemos com que facilidade a pósfotografia habita a internet e
seus portais, isto é, as interfaces que hoje nos conectam ao mundo e veiculam boa parte de
nossa atividade. O crucial não é que a fotografia se desmaterialize convertida em bits de
informação, mas sim como estes bits de informação propiciam sua transmissão e circulação
vertiginosa. Google, Yahoo, Wikipedia, YouTube, Flickr, Facebook, MySpace, Second Life, eBay,
PayPal, Skype, etc mudaram nossas vidas e a vida da fotografia. Efetivamente, a pósfotografia
não é mais que a fotografia adaptada à nossa vida on-line. Um contexto no qual, como no ancien
régime da imagem, cabem novos usos vernaculares e funcionais frente a outros artísticos e
críticos. Falemos destes últimos.
Decálogo posfotográfico
Como opera a criação radical posfotográfica? Esta seria uma proposta plausível
expressada de forma tão sumária como clara:
1.
Sobre o papel do artista: já não se trata de produzir obras, mas sim de prescrever
sentidos.
2.
Sobre a atuação do artista: o artista se confunde com o curador, com o colecionista, o
docente, o historiador da arte, o teórico... (qualquer faceta na arte é camaleonicamente
autoral).
3.
Na responsabilidade do artista: se impõe uma ecologia do visual que penalizará a
saturação e alentará a reciclagem.
4.
Na função das imagens: prevalece a circulação e gestão da imagem sobre o conteúdo da
imagem.
5.
Na filosofia da arte: se deslegitimam os discursos de originalidade e se normalizam as
práticas apropriacionistas.
6.
Na dialética do sujeito: o autor se camufla ou está nas nuvens (para reformular os
modelos de autoria: coautoria, criação colaborativa, interatividade, anonimatos
estratégicos e obras órfãs).
7.
Na dialética do social: superação das tensões entre privado e público.
8.
No horizonte da arte: se dará mais força aos aspectos lúdicos em detrimento de uma
arte hegemônica que fez da anedonia (o solene + o chato) sua bandeira.
9.
Na experiência da arte: se privilegiam práticas de criação que nos habituarão à
desapropriação: compartilhar é melhor do que possuir.
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10.
Na política da arte: não render-se ao glamour e ao consumo para inscrever-se na ação de
agitar consciências. Em um momento em que predomina uma arte convertida em mero
gênero de cultura, obcecada na produção de mercadorias artísticas e que se rege pelas leis
de mercado e pela indústria do entretenimento pode ser bom retirá-la de debaixo dos
holofotes e tapetes vermelhos para devolvê-la às trincheiras.
Os pontos fortes deste decálogo (nova consciência autoral, equivalência da criação com
a prescrição, estratégias apropriacionistas de acumulação e reciclagem), desembocam no que
poderíamos chamar de estética do acesso. A ruptura fundamental a que assistimos se manifesta
na medida em que a caudal extraordinária de imagens se encontra acessível a todo mundo. Hoje,
as imagens estão disponíveis a todos. O crítico Clément Chéroux escreve: “De um ponto de vista
de seus usos, se trata de uma revolução comparável à instalação de água corrente nos lares no
século XIX. Hoje, dispomos, em domicílio, de uma torneira de imagens que implica numa nova
higiene da visão.”. Exemplifica magistralmente esta estética a obra de Penelope Umbrico. No
processo
de
realização
de
Suns
from
Flickr,
2006
(<www.penelopeumbrico.net/Suns/Suns_Index.html), uma de suas peças mais populares, explica
que um dia sentiu o impulso de tirar uma foto de um romântico pôr-do-sol. Ocorreu-lhe
consultar quantas fotos correspondiam à tag sunset no Flickr e descobriu que dispunha de
541.795 apetitosos pores do sol; em setembro de 2007 eram 2.303.057 e em março de 2008,
3.221.717 (olho em 12/2/2011 e são 8.700.317). Somente no Flickr e somente em um idioma de
busca, o termo proporciona um magma multimilionário de pores do sol. Faz sentido esforçar-me
para tomar uma foto adicional? Contribuirá em algo que façamos o que já existe? Vale a pena
enriquecer a contaminação gráfica reinante? Umbrico responde que não, não e não. E então, se
lança a sua particular cruzada ecologista: baixará do Flickr 10.000 pores do sol, que reciclará num
mural com o qual forrará a parede de um museu. Obviamente que isto revoltou a ingenuidade
dos usuários do Flickr, que se põem em pé de guerra: “Vovózinha, que motores de busca afiados
que tens!” “São para prescrever-te melhor!”. O posfotograficamente cômico é que se hoje
buscamos sunset no Flickr, aparecem as composições de Umbrico ou as fotos que os visitantes
tomaram em suas exposições. Seu gesto simbólico se revela inútil: a contaminação zero não
pode ser, além de ser impossível[3].
O autor nas nuvens
Uma das modas mais tipicamente pósfotográficas é a fotografia realizada por animais
(irracionais, se me entende). Historicamente, o primeiro ensaio foi realizado por um
fotojornalista alemão, Hilmar Pabel, que trabalhava como freelancer para a Berliner Illustrierte
Zeitung. Em 1935 propôs emprestar Leicas aos chimpanzés do zoológico de Berlim e pedir aos
seus cuidadores que lhes adestrassem a apertar o obturador mimetizando o gesto dos visitantes,
adultos e crianças, que não paravam de captar com suas próprias câmeras as macaquices dos
macacos. O modelo se convertia em fotógrafo. Os editores se encantaram e publicaram os
resultados da performance. Só que quando Pabel apresentou a conta, disseram-lhe que não era
por aí: Com que direito pretendia cobrar por fotos que não tinha feito? Os verdadeiros autores
eram os chimpanzés. Não adiantou falar que era ele quem tinha orquestrado a situação e que
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tanto fazia quem disparava a câmera: o que era realmente importante era como o projeto se
carregava de sentido. Pabel perdeu a batalha, mas não a guerra: renegociou a reportagem com a
LIFE, que o publicou em 05/09/1938 e reconheceu sua autoria. Anedota a parte, este caso nos
ilustra sobre a localização da condição autoral; não tanto no fazer quanto no prescrever (ou seja,
na atribuição de valor e sentido, na conceitualização), o que adquire uma relevância tutelar no
contexto da internet. Em 1888, George Eastman cunhou aquele slogan popular que levou a
Kodak para o topo da indústria fotográfica (“Você aperta o botão, nós fazemos o resto!”); hoje
nos damos conta de que o importante não é quem aperta o botão e sim quem faz todo o resto:
quem põe o conceito e gere a vida da imagem.
Seguindo a corrente, mas seguramente desconhecendo o precedente histórico, o casal
de artistas moscovitas Vitaly Komar e Alex Melamid, que já haviam apresentado em 1995 seu
projeto de Renee, o elefante pintor, consagraram, em 1999, o pavilhão russo da Bienal de
Veneza a Mikki, o chimpanzé fotógrafo. Desde então, os portões se abriram e por toda a internet
se amontoam toda classe de mascotes capazes de tirar fotos, seja por si próprios ou com
discretos sistemas de apoio. Seguramente os cracks deste bestiário fotográfico – embora a
verdade seja que existe muita competência – são os cachorro Rufus e a gata Nancy Beans, que
nos oferecem pitorescos documentos de um ponto de vista canino e felino da comunidade
urbana de seus proprietários (Reiji Kanemoto e Christian Allen, respectivamente). Cabras, touros
e cavalos também subiram na arca de Daguerre. Sem pretender em absoluto me aproximar do
cinismo, uma apropriação parecida ocorreu com fotos tiradas por crianças, doentes mentais,
cegos, fotógrafos domingueiros, amadores avançados, retratistas comerciais, cientistas,
policiais, bombeiros, fotojornalistas, profissionais, artistas, satélites, câmeras de tráfego, Google
Street View, cabines fotográficas... A perversão consistiu sempre em outorgar significado a
obras órfãs, ou em mudar o significado original por outro, à maneira do ready-made
duchampiano. Como é óbvio, este gesto de transgressão choca com a legitimidade de um certo
status quo da propriedade intelectual, legitimidade em suspeita, que introduz questões éticas e
legais: seguramente, só a competência dos resultados poderá dar um veredito definitivo no
momento em que o direito de autor está nos ares, porque o próprio autor está nas nuvens. Em
paralelo à tendência irrefreável do cloud computing (manejar terminais que através da internet
se sirvam de programas e bancos de dados que são comuns), se privilegia em definitivo uma
cultura que socializa a autoria ou que simplesmente a pulveriza para as nuvens para colocá-la a
serviço de quem a necessite. Bem-vindos pois, ao mundo da fotografia 2.0!
Atlas e serindipidades
Provavelmente, hoje, Alonso Quijano não enlouqueceria nas bibliotecas devorando
romances de cavalaria, mas sim absorto frente à tela caleidoscópica de um computador, uma
janela que se abre para um mundo duplo e simétrico, como o que Alice descobriu ao atravessar o
espelho, um mundo paralelo em que podemos viver e nos aventurar, e no qual a realidade pode
dobrar-se em grande medida a nossos desejos. No cenário virtual podemos ser aquarelistas de
fim de semana ou artistas conceituais, podemos fazer fotografia documental tradicional ou
praticar o antifotojornalismo. Um exemplo: Txema Salvans realiza, há anos, um metódico
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trabalho documental – magnífico – sobre a prostituição de rua na rodovia C-31 de Barcelona a
Castelldefels. Disfarçado de inócuo topógrafo, Txema leva escondida uma volumosa câmera que
usa para espreitar a solidão das vendedoras de sexo abandonadas ao barulho do tráfego. Por sua
vez, Jon Rafman, sem distanciar-se da tela de seu computador, em Montreal, faz uma série
similar rastreando situações de rua registradas pelo Google Street View e acessíveis a qualquer
usuário. Qualidade gráfica à parte, o resultado coincide em intenção e profundidade. A partir de
agora o olhar documental pode bifurcar-se em duas metodologias complementares que nos
confrontam com as essências profundas do meio. Pistas do debate que está por chegar afloram
no caso protagonizado por Michael Wolf, fotógrafo da velha escola, aluno legendário de Otto
Steinerty, com uma larga carreira em fotografia documental e de ilustração editorial. Como
Rafman, Wolf se sentiu seduzido pelas possibilidades do Google Street View e empreendeu
projetos em seu seio; um deles, A Series of Unfortunate Events, recompila insólitos incidentes
captados fortuitamente. O gracioso é que este projeto já recebeu uma menção de honra na
última convocatória do canônico World Press Photo, provocando a previsível consternação da
concorrência. Obviamente, é um prêmio que deve-se ler como incipientes indicações de benção:
os papas da foto documental começam a render-se à evidência pósfotográfica.
Saber que há câmeras de vigilância e satélites que fotografam tudo, 24 horas por dia,
nos leva a especular quanto de acidental e imprevisto existe neste tudo. Uma comunidade de
fanáticos pelo Google Earth tem detectadas 3.300 coordenadas, onde aparecem aviões em vôo:
se milhares de aviões se encontram nos ares durante a atividade incessante de seus registros
fotocartográficos, é lógico e estatisticamente muito provável que muitos destes resultem-se
caçados pelas retinas mecânicas de nosso novo grande irmão. Isto faz as delícias de um
novíssimo freakismo da internet: os safáris em busca da serendipidade, da surpresa, do bizarro...
O fantasma de Lautréamont renasce para convidar os internautas às suas particulares buscas de
máquinas de costura e guarda-chuvas sobre mesa de dissecação. E um dos temas interessantes,
será pensar que valores separam estas novas obsessões vernaculares orientadas a um lazer
freaki da descoberta do uso do acaso como motor criativo de artistas como Joachim Schmid ou
Mishka Henner. Qualificados, ambos, de necrófagos da imagem por aqueles que ainda tiram
fotos e se crêem autores, Schmid e Henner vasculham nos resíduos da lata de lixo fotográfica e
se deparam com descobertas elegantemente desconcertantes, enquanto se somam à fascinação
por acumular e ordenar: depósitos, listas, inventários, catalogações e atlas das descobertas
fortuitas mais variadas. Schmid, por exemplo, se diverte buscando campos de futebol em
paisagens de terceiro mundo. Por sua vez, Henner também escruta a epiderme do planeta com
os visores do Google Earth, à caça de parcelas censuradas e vedadas à curiosidade do público, e,
portanto, mais interessantes e misteriosas. Na Holanda, as zonas militares são camufladas por
uma malha de polígonos irregulares cuja sofisticada geometria e cromatismo deixaria em
polvorosa os neoplasticistas. Parece que há muito Mondrian e Van Doesburg escondido nos
serviços de inteligência militar da Otan.
Identidades à la carte
Outro dos grandes trunfos do mundo paralelo da internet é a plasticidade maleável da
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identidade. Em tempos imemoriais, a identidade estava sujeita à palavra, o nome caracterizava o
indivíduo. A aparição da fotografia deslocou o registro da identidade à imagem, no rosto
refletido e inscrito. A arte do disfarce, da maquiagem, não fez nada além de agudizar as técnicas
de autenticação biométrica, e para conseguir maior confiabilidade, começam a consolidar-se
sistemas de medição de padrões da íris ou provas forenses de DNA. Mas, ao nível do usuário
médio, com a pósfotografia, chega a vez de um baile de máscaras especulativo onde todos nós
podemos inventar como queremos ser. Pela primeira vez na história, somos donos da nossa
aparência e estamos em condições de geri-la como nos convenha. Os retratos, e, sobretudo, os
autorretratos, se multiplicam e se colocam na rede, expressando um duplo impulso narcisista e
exibicionista que também tende a dissolver a membrana entre o privado e o público.
Nestas fotos (reflectogramas), a vontade lúdica e autoexploratória prevalece sobre a
memória. Tomar fotos e mostrá-las nas redes sociais forma parte dos jogos de sedução e dos
rituais de comunicação das novas subculturas urbanas posfotográficas, as quais, embora
capitaneadas por jovens e adolescentes, deixam poucos à margem. As fotos já não tomam
recordações para guardar, mas mensagens para enviar e trocar: se convertem em puros gestos
de comunicação, cuja dimensão pandêmica obedece a um amplo espectro de motivações.
Vejamos: a atriz Demi Moore se fotografa periodicamente em roupas íntimas frente a um
espelho do seu banheiro e posta suas sugestivas instantâneas no Twitter, para o prazer de seus
admiradores. Apegando-se a um esteriótipo sexy poderá talvez negar o envelhecimento? Na
antípoda, o ex-presidente Pasqual Maragall se autorretrata com seu celular a torto a direito,
quase por prescrição médica. Em uma das sequências mais emotivas do documentário de Carles
Bosch “Bicicleta, cullera, poma”, Maragall relata que cada dia, ao levantar-se, costuma
fotografar-se frente ao espelho. As mudanças que está sofrendo devido ao Alzheimer produzem
nele um desassossego recorrente: olhar para si e não reconhecer-se através do reflexo. As fotos
contribuem para sustentar a sua aparência, o ajudam a conhecer-se e reconhecer-se. Da tragédia
pessoal à metáfora sobre a sociedade pósfotográfica, entre Demi Moore e Maragall, crianças,
adolescentes, adultos... milhões de pessoas empunham a câmera e se enfrentam com seu duplo
no espelho: olhar-se e reinventar-se, olhar-se e não reconhecer-se. Embora paradoxalmente seja
ocultando-nos que nos revelamos, o mero feito de posar implica ao mesmo tempo criar uma
encenação e colocar à mostra uma máscara: o autorretrato portanto, necessariamente,
questiona a hipotética sinceridade da câmera. Soltando amarras de seus valores fundacionais,
abandonando alguns mandatos históricos de verdade e de memória, a fotografia acabou
jogando a toalha: a pósfotografia é o que resta da fotografia.
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Notas:
* Joan Fontcuberta (Barcelona, 1955) é fotógrafo e atua também como crítico, professor e ensaísta. Recebeu o
último Prêmio Nacional de Artes Visuais “por seu papel determinante na cultura fotográfica contemporânea
através de suas múltiplas atividades” ao largo de mais de trinta anos. Em seus trabalhos de criação e reflexão
analisou, dentre outros, os conflitos entre imagem fotográfica e verdade.
[1] Texto original de Joan Fontcuberta. Por un manifiesto posfotográfico. Publicado originalmente no Jornal La
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Vanguardia, 11/05/2011, Barcelona, Espanha.
[2] N.T.: Famosa especialmente nos anos 60 e 70, esta marca de bonecas espanhola tinha o diferencial de
permitir à criança brincar com a personalização de sua boneca através de maquiagens, cortes de cabelo e outros
acessórios.
[3] N.T.: “No puede ser y además es imposible” é um aforismo cuja autoria é atribuída ao mítico toureiro Rafael
Guerra.
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