cadernos 23 - Grupo de Estudos Espinosanos

Transcrição

cadernos 23 - Grupo de Estudos Espinosanos
XXIII
ISSN 1413-6651
São Paulo - 2010
Editora Responsável Institucional
Marilena de Souza Chaui
Editora Responsável
Tessa Moura Lacerda
N. XXIII, JUL-DEZ DE 2010 – ISSN 1413-6651
Comissão Editorial
Celi Hirata, Daniel Santos, Eva Turim e Valéria Loturco da Silva.
Conselho Editorial
Atilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo PiresAurélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes),
Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini (Scuola
Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de Lyon).
Pareceristas
Pareceristas: André Menezes Rocha, Cíntia Vieira da Silva, David Calderoni, Douglas Ferreira Barros, Eduardo de Carvalho Martins, Eduino José de Macedo Orione, Fernando Dias Andrade, Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Luciana Zaterka, Luís César Oliva, Marcos Ferreira de
Paula, Mônica Loyola Stival, Roberto Bolzani Filho, Sérgio Xavier Gomes de Araújo.
Ficha Catalográfica
Cadernos Espinosanos / Estudos Sobre o século XVII
São Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996-2010.
Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651
Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII
Universidade de São Paulo
Reitor: Prof. Dr. João Grandino Rodas
Vice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira de Cruz
FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Diretora: Profa. Dra. Sandra Nitrini
Vice-Diretor: Prof. Dr. Modesto Florenzano
Departamento de Filosofia
Chefe: Roberto Bolzani Filho
Vice-Chefe: Márcio Suzuki
Coord. do Programa de Pós-Graduação: Marco Antônio
de Ávila Zingano e Carlos Alberto Ribeiro de Moura
Imagem da Capa:
Belvedere (Litogravura)
M. C. Escher
1958
Endereço para correspondência:
Profa. Marilena de Souza Chaui
A/C Grupo de Estudos Espinosanos
Departamento de Filosofia – USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315
05508-900 – São Paulo-SP – Brasil
Telefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431
e-mail: [email protected]
site: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos
Projeto Gráfico: Taynam Bueno /// [email protected] /// Tiragem: 500 exemplares
A Comissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças.
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APRESENTAÇÃO
O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da
Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longo deste período,
diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para,
como diz Espinosa, tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da
memória dos homens”. Os Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.
Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos
estão dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na
verdade, expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários
outros filósofos do período sempre estiveram presentes a cada edição.
O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente
trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos
estudantes e pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país.
Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o
Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para
a elaboração de outros projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão,
regularmente, ensaios de autores brasileiros e traduções de textos estrangeiros,
contribuindo com o acervo sobre o assunto.
Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos
daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar
ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses
temas, incentivando, inclusive, outros departamentos de Filosofia a colaborar
conosco no desenvolvimento deste trabalho.
Franklin Leopoldo e Silva
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SOBRE ESTE NÚMERO
Este número traz uma diversidade de autores do século XVII: dois
artigos sobre Leibniz (em sua complexa relação com a filosofia espinosana e
na diferença entre o possível e o existente); dois artigos sobre Hobbes (sobre
sua noção de causalidade e sobre o direito natural); dois artigos sobre Espinosa
(sobre a política nesse autor); um artigo sobre a noção de liberdade para
Descartes; e finalmente um artigo sobre um autor contemporâneo: MerleauPonty e sua crítica ao chamado “paradigma cartesiano de pensamento”.
Este número conta ainda com a tradução das anotações de Leibniz
sobre o primeiro livro da Ética de Espinosa. Boa leitura!
Os Editores
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SUMÁRIO
LEIBNIZ, 1678: ANOTAÇÕES DE LEITURA DA ÉTICA DE ESPINOSA
Ulysses Pinheiro.....................................................................................11
A CAUSALIDADE EM HOBBES: NECESSIDADE E INTELIGIBILIDADE
Celi Hirata...............................................................................................33
Possíveis e Existentes em Leibniz
Wilson Alves Sparvoli.............................................................................59
A concepção cartesiana da liberdade
nos Princípios da Filosofia
Mariana de Almeida Campos.................................................................73
Imagens e analogias do corpo
e da mente na política de Spinoza
Alexandre Arbex Valadares.....................................................................95
Imaginação: entre o medo e a liberdade
Daniel C. Avila.......................................................................................135
O DIREITO À VIDA NOS ELEMENTOS
DA LEI NATURAL E POLÍTICA DE HOBBES
Rogério Silva de Magalhães..................................................................159
9
Para além do corpo-objeto e da representação
intelectual: como Merleau-Ponty redescobre o corpo
como veículo da existência
José Marcelo Siviero.............................................................................187
SOBRE A ÉTICA DE BENTO ESPINOSA
G. W. Leibniz............. .........................................................................................215
Notícias.....................................................................................................254
INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES...........................................................257
CONTENTS...................................................................................................258
LEIBNIZ, 1678: ANOTAÇÕES DE LEITURA
DA ÉTICA DE ESPINOSA*
Ulysses Pinheiro**
Resumo: Este artigo analisa as anotações que Leibniz escreveu, em 1678, sobre a
então recém-publicada Ética de Espinosa, mostrando como elas prefiguram alguns
desenvolvimentos posteriores de sua teoria metafísica. Partindo de uma análise das
críticas de Leibniz à Proposição 2 da Parte I da Ética, o artigo mostrará como as
discussões sobre a compatibilização entre liberdade e determinismo, que ocuparam
o centro de suas preocupações metafísicas nas décadas seguintes, retomam, ainda
que com modificações, temas e problemas tratados nessas notas. Particularmente,
será mostrado que a relação entre autonomia e poder de escolha pode ser melhor
compreendida como um desenvolvimento de teses exploradas nessa leitura inicial da
obra de Espinosa.
Palavras-chave: Leibniz, Espinosa, monismo, determinismo, liberdade.
Na data de seu encontro pessoal com Espinosa, em 1676, Leibniz
já havia lido seu Tratado Teológico-Político, e provavelmente também os
Princípios da Filosofia de Descartes1, além de ter tomado conhecimento
das teses centrais de sua obra principal (e à época inédita), a Ética, mas
teve de esperar até 1678 para finalmente ter o livro entre as mãos. O exame
atento de como Leibniz recebeu, criticou e eventualmente assimilou as
proposições da Ética pode ser usado como um princípio hermenêutico
para compreender a elaboração, então ainda em curso, de seu próprio
sistema. A partir da exposição de trechos das anotações nas quais as teses
* Este texto foi escrito graças ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
(FAPERJ), através do Programa de Apoio a Humanidades 2008 e do Pronex Predicação e existência. O
autor também conta com a bolsa de Produtividade em Pesquisa concedida pelo CNPq.
** Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
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em questão foram formuladas, explicar as divergências assinaladas por
se formava então na Europa. Ainda em busca de Espinosa, Leibniz faz um
Leibniz em sua leitura será um dos índices que permitirá avaliar um co-
longo desvio de sua viagem de Paris até Hanover, onde ocuparia o cargo
pertencimento e uma distância entre essas figuras centrais da modernidade.
de bibliotecário da Corte, passando por Haia para conversar pessoalmente
Não se trata de elucidar a relação entre eles a partir da difícil noção de
com o autor do livro tão ansiosamente aguardado.
“influência”, nem da idéia reguladora de um “diálogo” que tivesse como
A curiosidade de Leibniz explica-se por um conjunto de motivos
resultado o estabelecimento de um julgamento final sobre a verdade e a
– ou, pelo menos, podemos inferir algumas dessas razões a partir de outros
falsidade contidas na teoria de um ou de outro . Ao invés disso, o método
escritos da mesma época. Primeiramente, já então envolvido no projeto de
de contraposição aqui adotado é buscar, na figura que Espinosa assume
formular uma “linguagem universal” para a ciência, mas tendo em vista,
no contexto da teoria de Leibniz, a manifestação de traços essenciais do
sobretudo, o objetivo político maior de pensar os fundamentos da sociedade
pensamento desse último.
européia na unidade da Igreja através da reunificação da cristandade,
2
No inicio dos Novos ensaios, é traçado um conflito dramático
Leibniz via, na anunciada filosofia esotérica de Espinosa, escrita, segundo
constitutivo da obra, o qual não opõe, como se poderia supor, as teorias de
se dizia no círculo restrito dos que conheciam versões ou trechos da
Leibniz e Locke, mas antes as de Leibniz e Espinosa: o primeiro, travestido
obra, “à maneira dos geômetras”, uma possível contribuição a (ou talvez
sob a figura de Teófilo, parece confessar, numa espécie de autobiografia
mesmo a realização acabada de) seu próprio projeto de elaboração de uma
intelectual, ter, em certa época, quase se “convertido” ao espinosismo. A
língua perfeita que exprimisse a estrutura lógica do pensamento, livre das
resistência a essa conversão é suficientemente importante para justificar
contingências históricas que contaminam as línguas naturais. A decepção
o batismo de ninguém menos do que do protagonista do diálogo; Leibniz
de Leibniz, ao ler a obra póstuma no começo de 1678, manifesta-se nas
descreve aí a tentação de aderir à filosofia de Espinosa, para acrescentar
inúmeras críticas, escritas à margem do texto ou em suas anotações privadas,
logo em seguida: “mas essas novas luzes me curaram, e desde essa época
algumas vezes expressas em tom áspero, contra as demonstrações propostas
adoto às vezes o nome de Teófilo”3. Não discutiremos aqui se a tentação
por Espinosa. Em segundo lugar, Leibniz aparentemente também buscava,
narrada por Leibniz nesse trecho foi real ou apenas um recurso literário,
na filosofia espinosana, uma contribuição para suas tentativas de elaborar
mas é inegável que ela corresponde a um fato marcante em sua vida: mesmo
uma prova para a existência do Ser necessário que explicasse, ao mesmo
antes de seu “período parisiense”, que transcorreu entre os anos de 1672
tempo, o estatuto ontológico dos seres contingentes e unisse, em uma única
e 1676, Leibniz já tinha conhecimento da filosofia de Espinosa, da qual
explicação coerente, essas duas modalidades do ser. A decepção aqui talvez
se aproximou, primeiramente, com reservas . Em Paris, fez contatos com
tenha sido ainda maior: o necessitarismo implicado pela noção espinosana
membros do “círculo espinosista” – principalmente o jovem matemático e
de substância será, no fim da década de 1670, duramente criticado, e depois
cientista Tschirnhaus, cuja indiscrição hesitante lhe permitiu os primeiros
incorporado, como uma espécie de slogan filosófico, a todas as suas críticas
contatos com a expressão máxima da obra de Espinosa, o manuscrito da
aos “novos filósofos” (i.e., os cartesianos e os hobbesianos). A partir da
Ética, que circulava entre poucos no movimento “radical” subterrâneo que
década de 16805, o espinosismo será caracterizado como a realização mais
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Ulysses Pinheiro
bem acabada do cartesianismo, mas não merecerá mais nenhum exame
O argumento de Leibniz é labiríntico: em primeiro lugar, concede
detalhado como os que ele lhe consagrou no conjunto de anotações sobre
que, se atributos forem entendidos como predicados concebidos por si
a Ética, datadas de 1678 . A crítica a Espinosa ocupa, assim, uma função
mesmos, então duas substâncias com atributos diferentes não têm nada
peculiar no desenvolvimento intelectual de Leibniz: formulada de uma vez
em comum entre si; em seguida, formula uma objeção contra a Proposição
por todas nesse primeiro contato, permanecerá como um axioma negativo
2, negando que seja absurdo que duas substâncias distintas possam ter
pelo resto de sua obra. Mostraremos adiante que esse axioma oculto é
alguma coisa em comum (precisamente, atributos que são concebidos por
compatível com alguns desenvolvimentos posteriores do pensamento
si mesmos); finalmente, diz que sua própria objeção poderia ser respondida
leibniziano, especialmente com os conceitos de noção completa e com sua
por Espinosa, mas não explicita em que consistiria essa resposta; ao invés
concepção acerca da liberdade e da contingência; antes disso, porém, é
disso, recusa o argumento e a própria questão que ele tenta responder
preciso entender sua formulação nesse momento inaugural.
porque nega que possa haver dois atributos exprimindo a mesma essência.
6
O cerne da crítica que Leibniz elaborou em 1678 à Ética de Espinosa
encontra-se em seu comentário sobre a Proposição 2 da Parte I; diz ele:
Entretanto, com esse último movimento, parece ter sido retirada a base
de sua crítica inicial, pois o que ele implica diretamente é que, dada a
definição de substância a partir de uma de suas propriedades (a de “ser
Proposição 2. Duas substâncias com atributos diferentes não
têm nada em comum. Se por atributos ele entende predicados
que são concebidos por si mesmos, concedo a proposição [....]
Mas o caso é diferente se essas duas substâncias têm alguns
atributos diferentes e alguns em comum, como quando c e d são
atributos de A, e d e f, atributos de B. [....] Talvez ele pudesse
demonstrar a proposição contra essa objeção, como se segue.
Uma vez que d e c ambos expressam a mesma essência (sendo
atributos da mesma substância A, por hipótese), e d e f também
expressam a mesma essência, pela mesma razão (sendo por
hipótese atributos da mesma substância B), c e f também devem
[exprimir a mesma essência]. Portanto, segue-se que A e B
são a mesma substância, o que é contrário à hipótese, sendo,
pois, absurdo que duas substâncias distintas possam ter alguma
coisa em comum. Retruco que não concedo que possa haver
dois atributos que são concebidos por si mesmos e ainda assim
possam expressar a mesma substância. Pois quando quer que
isso ocorra, esses dois atributos expressando a mesma coisa
de diferentes modos podem ser analisados, ou pelo menos um
deles. Isso posso facilmente provar. (Leibniz 11, GP 1, p.141)
14
em si”), segue-se imediatamente outra propriedade, a de “ser concebida
por si”. Ora, é essa assimilação que, nos comentários sobre a Ética, é
enunciada precisamente como o principal ponto de discórdia com relação
à teoria de Espinosa7, sendo incessantemente repetido ao longo das notas
de leitura redigidas nesse período – por exemplo, ao comentar a Definição
3 da Parte I, diz Leibniz:
Definição 3. Substância é aquilo que é em si e é concebido
por si. [....] Então podemos perguntar: [....] a substância é
ao mesmo tempo em si e concebida por si? Mas então seria
necessário para ele provar que o que quer que tenha uma
propriedade também tem a outra, embora o contrário pareça
antes ser verdadeiro [....]. E esse [isto é, a tese contrária à de
Espinosa] é o modo como os homens usualmente concebem
as substâncias. (Leibniz 11, GP 1, p.139)
A importância que Leibniz concedeu à Proposição 2 fica clara à
luz desse último trecho: ela é o ponto de partida do qual todo o sistema
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espinosano é derivado, já que a Proposição 1 é, aos seus olhos, supérflua8,
partir das propriedades de “ser em si” e “ser concebida por si”, pois, como
e nessa demonstração inicial encontram-se em germe as polêmicas teses
veremos adiante, se a recusa da conexão entre elas garante uma explicação
do monismo e do determinismo absoluto, contra as quais Leibniz volta
para a contingência requerida pelo poder de escolha, a afirmação dessa
todo seu arsenal argumentativo ao longo da polêmica de uma vida inteira
mesma conexão é o que fundamenta a autonomia das ações. De fato, a teoria
contra o “espinosismo”. Dada a tese espinosana segundo a qual duas
leibniziana da noção completa, elaborada em sua forma acabada na década
substâncias numericamente distintas não podem ter nenhum atributo
seguinte9, segundo a qual todas as substâncias são individuadas por meios
comum entre si, segue-se que cada substância é um princípio único de
puramente conceituais, parece assimilar as propriedades de “ser em si” e
autodeterminação, o qual, não sendo influenciado por nada de externo,
“ser concebido por si”, o que permitiria explicar a autonomia das substâncias
só pode ser explicado, internamente, por sua própria essência – o que
através de sua completa independência conceitual, mesmo com relação a
implica diretamente, segundo o autor da Ética, o determinismo absoluto,
Deus: esse último encontra prontas em seu intelecto as idéias das substâncias
já que todas as propriedades de uma substância (inclusive sua existência)
possíveis. Por outro lado, a contingência do mundo atual e, por transitividade,
seriam derivadas logicamente de sua essência.
de todos os acontecimentos que nele ocorrem, só é possível se a criação
A ambigüidade presente no argumento de Leibniz é explicada em
do mundo por Deus for explicada a partir de uma relação entre o criador
parte pelo fato de, em um certo sentido, ele ter de recusar a conexão entre as
e as criaturas, concebidas como substâncias, que inclua uma comunidade
duas propriedades da substância discriminadas acima, e, em outro sentido,
de atributos (ainda que sob a forma de limitação e de negação10), o único
ter de aceitar essa mesma conexão, tendo em vista a inteligibilidade das
modo de exprimir de forma inteligível uma relação causal que preserve o
substâncias criadas e, no caso dos indivíduos dotados de razão, sua autonomia
poder de escolha dos seres finitos. A questão inicial com a qual temos de
como agentes livres. Inteligibilidade e autonomia que ele sempre se recusou
nos defrontar diz respeito, pois, ao modo de conciliar essas duas posições
a separar: se um agente é livre, ele o é tanto mais sua liberdade enraíza-
aparentemente antagônicas. Para explorar o modo como Leibniz viu essa
se em uma compreensão (e, veremos adiante, em uma autocompreensão)
conciliação, voltemos a seu comentário da Proposição 2 da Parte I da Ética,
racional de sua essência. Se é verdade, como dirá Leibniz mais tarde, que
pois desde esse primeiro contato com o texto tão ansiosamente aguardado
o passado está impregnado de futuro, então talvez fosse legítimo supor que
por um ano11, a recusa do “fatalismo” necessitarista que ele reconheceu nas
a consciência, ainda que implícita, dos desenvolvimentos posteriores de
páginas recém folheadas guiou suas críticas.
seu próprio sistema guia as anotações feitas à margem da Ética – ou, seria
A leitura atenta das anotações de Leibniz revela não só uma
melhor dizer, parece ser parte de seu processo constitutivo. Um indício disso
crítica ao uso ambíguo que Espinosa faz da palavra “atributo”, mas uma
é a constatação de que os paradoxos envolvidos na proposta compatibilista
contaminação do próprio Leibniz por essa ambigüidade12: essa palavra
entre liberdade e determinismo, proposta por Leibniz após 1685, e dos quais
é usada tanto por ele quanto pelo autor que critica ora para significar a
muitos duvidam que ele tenha conseguido se livrar, manifestam-se desde
totalidade da essência da substância (o equivalente do “atributo principal”
essa raiz metafísica que é a caracterização do conceito de substância a
cartesiano), ora para significar uma das formas ou propriedades que
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Cadernos Espinosanos XXIII
Ulysses Pinheiro
constituem a essência da substância. Podemos desfazer essa ambigüidade
complexo se resolve porque a essência é uma lei (ou noção) individual.
reservando ao primeiro sentido a palavra “essência” e ao segundo, a palavra
Nesse sentido, Deus é o sujeito de predicação de todas as formas simples,
“atributo” . O que Leibniz pretende mostrar é que, em certo sentido, uma
mas a essência de Deus não é o mero agregado dessas formas, nem cada
substância, que é “em si”, não é “concebida por si”, na medida em que ela tem
uma delas tomada separadamente16. Porque as formas são simples17,
em comum com as outras substâncias (Deus e as demais substâncias criadas)
nenhuma proposição afirmativa verdadeira poderia ser dita da relação que
muitos atributos; em outro sentido, porém, cada substância é “concebida por
elas estabelecem entre si se elas não estivessem unidas a um sujeito (por
si”, pois a essência de cada uma delas é qualitativamente diferente da de
exemplo: o pensamento não é a duração, mas o sujeito que pensa dura).
todas as demais. É só ao manter, simultaneamente, que a cada substância
Mas isso mostra precisamente a diferença entre as formas e a substância.
individual corresponde uma única essência, e que essa essência é composta
Ora, é a substância que tem uma essência. As formas simples são todas elas
por atributos compartilhados com outras substâncias (e, em sua forma
e apenas elas atributos de Deus, elementos primeiros de sua possibilidade,
absoluta, com Deus) que Leibniz poderá explicar a criação de substâncias
ainda que Deus as preceda todas em ato: “as formas são concebidas por si,
que formam um subconjunto do conjunto de substâncias possíveis.
os sujeitos o são pelas formas e pelo fato de que são sujeitos”18. A relação
13
Feita essa distinção entre “essência” e “atributo”, fica claro por
entre os atributos e as substâncias (Deus ou as criaturas) é a relação entre
que o comentário de Leibniz sobre a Proposição 2 é compatível não só com
abstratos (expressos em predicados) e o concreto (uma coisa substancial,
a doutrina da noção completa, enunciada de forma clara a partir de 1685,
plenamente inteligível) – os primeiros encontram-se em um ser concreto
e da qual essa distinção é ao mesmo tempo um signo e uma causa, mas
que é a condição de sua existência, mas que encontra neles, por sua vez,
também com o argumento para provar a existência de Deus, elaborado em
a condição de sua essência. A substância não é definida pela lista de seus
1676 durante suas discussões com Espinosa em Haia, e retomado ao longo
atributos, como se as variações dos atributos fossem suficientes para
dos anos seguintes . De fato, esse último argumento afirma que Deus é
singularizar o sujeito19: ela é a razão ou o fundamento que permite deduzir
um ser dotado de infinitas perfeições ou infinitos atributos, enquanto o
todos os atributos do sujeito que ela designa, o que faz que a relação de
argumento de 1678 contra a Proposição 2 afirma que, se mais de uma
inerência seja também uma relação de fundamento explicativo.
14
propriedade exprime a essência de uma substância, então uma delas não é
Poderíamos tentar discernir nessa última afirmação a “resposta de
simples, e pode ser analisada até se chegar a algo simples. A divergência
Espinosa” aludida por Leibniz em sua crítica à Proposição 2. Como vimos,
com Espinosa15 poderia ser interpretada da seguinte maneira: a propriedade
essa resposta permaneceu inarticulada no comentário leibniziano, o qual,
de “exprimir uma essência” só pode ser aplicada a algo simples, de tal
lembremos, é formulado nos seguintes termos:
modo que vários atributos simples não podem ser predicados de uma
mesma coisa se a predicação for entendida como “expressão da essência”.
Toda substância tem apenas uma essência simples, embora ela seja, em
certo sentido, complexa e completa: essa conjunção do simples e do
18
Talvez ele pudesse demonstrar a proposição contra essa
objeção, como se segue. Uma vez que d e c ambos expressam
a mesma essência (sendo atributos da mesma substância
A, por hipótese), e d e f também expressam a mesma
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essência, pela mesma razão (sendo por hipótese atributos
da mesma substância B), c e f também devem [exprimir a
mesma essência]. Portanto, segue-se que A e B são a mesma
substância, o que é contrário à hipótese, sendo, pois, absurdo
que duas substâncias distintas possam ter alguma coisa em
comum. (Leibniz 11, GP 1, p.141)
Ulysses Pinheiro
(o que equivale à tese provada na Proposição 5). Essa análise de Bennett
poderia servir como base para completar o argumento da Proposição 2, da
seguinte maneira: se uma substância A fosse d e c e apenas d e c e se uma
substância B fosse d e f e apenas d e f, algo teria de explicar esse fato; ora,
o que explicaria esse fato só poderia ser o atributo d (já que nada mais,
por hipótese, é dado na realidade de A e de B). Mas isso significaria que d
20
Não fica claro, nesse trecho, o conteúdo completo do argumento,
explica ao mesmo tempo fatos diferentes, o que é incompreensível (ainda
aqui apenas esboçado, que Leibniz sugeriu ao se colocar no lugar de
mais se levarmos em conta que, sendo uma forma simples, d não implica
Espinosa e imaginar sua resposta à objeção formulada logo antes. Podemos
nem c nem f). Logo, a situação descrita na hipótese inicial é impossível
ensaiar uma hipótese sobre seu significado, desde que reconheçamos desde
porque é inexplicável. Contra essa conclusão, poder-se-ia formular a
o início que ela permanecerá sempre uma especulação não comprovável
seguinte objeção: se o atributo d não pode explicar a diferença entre A e B,
textualmente, como indica o próprio preâmbulo da leitura leibniziana do
então ele não pode explicar tampouco por que, no caso em que A tivesse
texto espinosano, enunciado justamente como uma marca de prudência: “...
os atributos d e c e B tivesse os atributos f e g, A teria o atributo c – mas
forte demonstrabit hoc modo”. Essa especulação teria a seguinte forma: um
só o atributo d parece poder explicar esse fato. Contra essa objeção, seria
exame atento da Proposição 2 deve admitir, inicialmente, que ela pode ser
possível imaginar a seguinte resposta: o que explica a presença de c em
lida de duas maneiras: ou bem como afirmando que, se duas substâncias
A é apenas a compossibilidade entre d e c, a qual é a razão explicativa de
diferem com relação a todos os seus atributos, então elas não têm nada em
sua atribuição a A; se, em seguida a essa resposta, for perguntado por que
comum entre si, ou bem como afirmando que, se duas substâncias têm um
existem algumas compossibilidades e não outras, a resposta seria: todas as
atributo distinto de algum atributo da outra, então elas não têm nenhum
compossibilidades existem (porque tudo o que é possível necessariamente
atributo em comum entre si. É apenas a segunda leitura que permitiria a
existe); só existe uma única substância (Proposição 14).
“resposta de Espinosa” obscuramente sugerida por Leibniz20. Bennett (1,
Mas basta por ora de especulações sobre o que Leibniz teria podido
§17) sugere que, dada a tese do racionalismo explicativo (isto é, a tese que
querer dizer; o que quer que ele tenha pensado sobre esse ponto, o que é
afirma a validade irrestrita do Princípio de Razão Suficiente), se houvesse
importante notar, tomando como base o que ele efetivamente escreveu, é que
n substâncias com o atributo d, algo teria de explicar esse fato; ora, essa
a mera distinção conceitual entre “essência” e “atributo” não resolve todas
explicação teria de derivar de d, isto é, do que d é, isto é, da definição de
as dificuldades relacionadas à caracterização da natureza das substâncias
d. Mas nenhuma definição exprime um número determinado de indivíduos
individuais a partir das propriedades de “ser em si” e “ser concebido por
(pela Proposição 8), uma vez que ela se limita a exprimir a natureza da
si”. Em particular, a atribuição de liberdade às substâncias individuais
coisa definida. Logo, dizer que há um número n de substâncias com o
proposta por Leibniz deve explicar sua autonomia levando em conta sua
atributo d seria uma afirmação para a qual nenhuma razão poderia ser dada
versão peculiar da atribuição a elas da propriedade de “ser concebidas por
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Cadernos Espinosanos XXIII
Ulysses Pinheiro
si”: enquanto os indivíduos espinosanos (os modos finitos da substância
partir da maneira como as discussões sobre a ontologia fundamental das
única) podem ser ditos autônomos na medida em que suas ações não são
substâncias desembocam em uma teoria do juízo que pretende explicar a
explicadas por causas externas, os indivíduos leibnizianos aparentemente
liberdade das substâncias individuais.
só podem ser, tanto quanto a substância única de Espinosa, inteiramente
Em muitos textos, Leibniz definirá a autonomia envolvida na
ativos, já que nada de externo age sobre eles (a não ser Deus, na medida
escolha livre pelo simples exercício da capacidade de julgar, através da
em que os cria). Paradoxalmente, esse excesso de independência traz
qual representamos possibilidades alternativas que exercem a função de
problemas não só, como era de se esperar, para a atribuição da contingência
causas finais sobre as quais incidem diversos desejos. Os desejos, por sua
envolvida no poder de escolha, uma vez que tudo o que acontece a uma
vez, estão submetidos a uma lei natural instaurada por Deus23, a Lei da
substância é uma ação que se segue de seu conceito, mas também para a
Vontade, formulada como instância do Princípio da Perfeição, segundo a
própria noção de autonomia, uma vez que a passividade deve ser explicada
qual os homens farão sempre o que lhes parece ser o melhor. Dessa forma,
a partir de determinações intrínsecas à substância – todas as suas ações,
as duas proposições seguintes não são, ao contrário do que aparentam à
tanto as ditas “livres” quanto as “involuntárias”, seriam o resultado
primeira vista, contraditórias: I- “a mente não escolhe nunca o que no
causal de sua essência, a qual é “concebida por si” (no sentido relevante
momento [impræsentiarum] lhe parece ser o pior” e II- “a mente não
discriminado acima21). Como se sabe, Leibniz terá uma saída elegante para
escolhe sempre o que no momento lhe parece ser o melhor” (Leibniz 14,
esse problema, ainda que ela só seja elaborada em textos muito posteriores
C 21)24. Ora, se fossem dados a um sujeito S dois objetos de escolha, A
ao fim da década de 1670 (saída essa que manifestaria uma influência
e B, e se A lhe parecesse ser melhor do que B, por que seria impossível,
inequívoca de Espinosa (Cf. Friedmann 7, p.292-293)): ele distinguirá
como afirma Leibniz, para alguém que tivesse acesso aos estados mentais
ações e paixões a partir de características internas das almas (i.e., de suas
de S anteriores e contemporâneos à deliberação, prever que S escolherá
percepções: idéias claras e distintas e idéias obscuras e confusas). Esse
A naquele momento? Ou ainda: se for certo, por uma lei natural, que S
tipo de explicação será especialmente adequado ao sistema leibniziano,
não escolherá B, e supondo-se que ele fará uma escolha, por que não é
no qual, ao contrário do espinosano, não se admite haver influência real
imediatamente certo que ele escolherá A? Leibniz explica: a mente “pode
entre indivíduos22. Mas então Leibniz deverá explicar em que consiste essa
adiar e suspender o juízo até uma deliberação ulterior, desviando a alma
determinação interna a partir de idéias claras e distintas. É exatamente isso
[animum] em direção a outros pensamentos” (Leibniz 14, C 21-22)25; qual
o que ele fará, a partir de uma análise do conceito de juízo. Vejamos, pois,
pensamento finalmente lhe ocorrerá não pode ser o objeto de nenhuma
como a filosofia madura de Leibniz, partindo da aceitação desse “axioma
lei pré-definida, pois é pela pura espontaneidade de sua mente26, causa de
negativo” formulado às margens das páginas da Ética, tentará resolver tal
suas representações, que, no momento seguinte, S (sua alma) pensará em,
impasse. Fazer esse movimento anacrônico nos permitirá discernir mais
digamos, C, que aparecerá como melhor do que A (e, a fortiori, do que B),
claramente a forma como a recepção da filosofia de Espinosa moldou
e que será objeto do desejo mais forte. Cumprindo assim a Lei da Vontade
as reflexões de Leibniz sobre o problema da liberdade, especialmente a
(que é válida sem exceções), S escolherá C.
23
Cadernos Espinosanos XXIII
Ulysses Pinheiro
Novamente aqui, a solução de Leibniz é extremamente engenhosa
um gabinete em Hanover. Mas, uma vez acertadas essas contas teóricas,
e original. Enquanto que, para Descartes, a liberdade da vontade se definia
a luta política e religiosa contra o “espinosismo” poderá desde então ser
por duas características independentes , a saber, a espontaneidade (ou
travada publicamente, em um combate incessante em prol de uma Europa
“facilidade na determinação”) e o poder de escolha entre contrários (a
a ser libertada de seu principal inimigo. O fracasso desse combate, agora
“indiferença positiva”), e que, para Espinosa, a liberdade se definia apenas
constatado retrospectivamente, tendo em vista os resultados do projeto
pela espontaneidade (o livre arbítrio sendo denunciado como uma ilusão),
iluminista em parte inspirado por Leibniz, não pode ser usado para medir
para Leibniz a espontaneidade é equivalente ao poder de escolha. Escolher
o talento do desafiante.
27
não significa nada além do que ser a causa autônoma de nossas representações:
porque podemos suspender nossos juízos e introduzir autonomamente uma
nova representação no curso da deliberação, podemos nos subtrair à ordem
das causas eficientes e escolher algo diferente daquilo que indicava a Lei
da Vontade (que, ainda assim, será efetiva quando a escolha for feita). A
única condição para sermos livres é sermos racionais e dotados de um poder
criativo de nos afigurarmos possibilidades alternativas. O único pecado é não
nos determos suficientemente na deliberação e na reflexão dessas alternativas
e, precipitadamente, escolhermos uma aparência de Bem que esconde o Mal;
inversamente, nossa principal virtude é a atenção e a paciência28.
Essa “solução” para o problema da compatibilização entre liberdade
e necessidade está longe de ser inteiramente satisfatória – e as infindáveis
retomadas do problema por parte do próprio Leibniz poderiam nos levar a
suspeitar de que nem mesmo para ele sua solução encontrou uma formulação
definitiva29. Mas esse breve resumo de uma de suas etapas iniciais (ou, talvez
fosse melhor dizer, de uma de suas discussões preparatórias) nos permitiu,
pelo menos, ver de que forma as críticas a Espinosa, escritas no limiar da
década decisiva de maturação do pensamento leibniziano, prefiguraram
e condicionaram seus desenvolvimentos posteriores. A partir de então, o
nome “Espinosa” e o adjetivo “espinosista” serão os signos abreviados de
uma divergência teórica que os opôs nesse momento inaugural, em parte
pessoalmente, em Haia, e, depois da morte do filósofo, privadamente, em
24
Leibniz, 1678: lecture notes on Spinoza’s Ethics
Abstract: This paper analyses the notes Leibniz wrote in 1678 on the then recently
published Spinoza’s Ethics, showing how they foreshadow some ulterior developments
of his metaphysical theory. Taking as the point of departure of this analysis Leibniz’s
critics to Proposition 2 of the Part I of the Ethics, the paper will show how the
discussions on the compatibility between freedom and determinism, that occupy the
center of his metaphysical concerns in the following decades, resume themes and
problems considered in these notes, even if they are somehow different from the
original context. It will be showed, in particular, that the relation between autonomy
and the power of choice can be better understood as a development of theses explored
in this first reading of Spinoza’s work.
Keywords: Leibniz, Spinoza, monism, determinism, freedom.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. BENNETT, Jonathan – A Study of Spinoza’s Ethics. Cambridge: Cambridge
University Press, 1984.
2. BEYSSADE, Jean-Marie – La Philosophie Première de Descartes. Paris:
Flammarion, 1979.
3. CHAUI, Marilena – A nervura do real. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
4. DELEUZE, Gilles – Le pli. Leibniz et le barroque. Paris: Les Éditions de Minuit,
1988.
25
Cadernos Espinosanos XXIII
Ulysses Pinheiro
5. DONEY, Willis – “Gueroult on Spinoza’s Proof of God’s Existence”. In: Spinoza –
Issues and Directions. Leiden; New York: E.J. Brill, 1990, pp. 32-38.
15. ______ – [Rauzy] Recherches générales sur l’analyse des notions et des vérités.
24 thèses métaphysiques et autres textes logiques et métaphysiques. Org.
por Jean-Baptiste Rauzy. Paris: Presses Universitaires de France, 1998.
6. FICHANT, Michel – “L’origine de la négation”. In: Science et métaphysique
dans Descartes et Leibniz. Paris: Presses Universitaires de France,
1998, pp. 85-120.
7. FRIEDMANN, Georges – Leibniz et Spinoza. Paris: Gallimard, 1962.
8. GOLDENBAUM, Ursula – “Why Shouldn’t Leibniz Have Studied Spinoza?
The Rise of the Claim of Continuity in Leibniz’s Philosophy out of the
Ideological Rejection of Spinoza’s Impact on Leibniz”. In: The Leibniz
Review, Vol. 17, 2007, pp. 107-138.
9. LACERDA, Tessa Moura – “Leituras leibnizianas de Espinosa”. In: Cadernos
Espinosanos, VI, 2000, pp. 47-74.
10. ______ – “Simplicidade e variedade: um diálogo entre Leibniz e Espinosa”. In: O
que nos faz pensar, 26, dezembro de 2009, pp. 217-241.
11. LEIBNIZ, G. W. – [GP] Die philosophischen Schriften von G.W. Leibniz, ed.
por C.J. Gerhardt, 7 vols., Berlin, 1875-1890, reedição Georg Olms,
Hildesheim, 1978.
12. ______ – [NE] Nouveaux essais sur l’entendement humain. Paris: Flammarion,
1990.
13. ______ – [Grua] Textes inédits (d’après les manuscrits de la bibliothèque
provinciale de Hanovre). 2 volumes. Ed. por Gaston Grua. Paris: PUF,
1998.
14. ______ – [C] Opuscules et fragments inédits de Leibniz. Extraits des manuscrit
de la Bibliothèque royale de Hanovre. Ed. por Louis Couturat. Paris: Felix
Alcan, 1903.
26
16. ______ – [A] Sämtliche Schriften und Briefe. Ed. Deutsche Akademie der
Wissenschaften zu Berlin. Darmstad; Berlin: Akademie Verlag, 1923-.
NOTAS:
1. Sobre a provável data em que Leibniz leu os Princípios, cf. Friedmann 7, pp. 86-87.
Segundo Friedmann, as anotações de Leibniz à margem do primeiro livro publicado
por Espinosa são posteriores a sua leitura da Ética, em 1678.
2. Ainda assim, para uma bem informada discussão recente sobre as possíveis
influências de Espinosa sobre Leibniz, cf. o artigo de Goldenbaum 8, que trata
da disputa que contrapôs, no final do século XIX, Erdmann e Stein a Guhrauer,
Trendelenbourg, Foucher de Careil e Gerhardt.
3. Cf. Leibniz 12, I, 1. Como se sabe, a primeira redação dos Novos ensaios ocorreu em
1703, um ano antes que a morte de Locke interrompesse seu projeto de publicação.
4. Leibniz menciona Espinosa pela primeira vez em 1669, em carta de 30 de abril a
Jacob Thomasius: ele comenta, não muito favoravelmente, Os princípios da filosofia
de Descartes (cf. Friedmann 7, p. 86). Nessa carta, o nome de Espinosa aparece
enumerado em uma lista de cartesianos, dentre os quais, segundo Leibniz, “não há
quase nenhum que tenha acrescentado o que quer que seja às descobertas do mestre”
(apud Friedmann, id. ibid.). É curioso notar que esse juízo preliminar será de certa
forma mantido mesmo após ele estudar a obra de Espinosa, na medida em que
considerará essa última como o desenvolvimento lógico do cartesianismo. Em 1670,
com a publicação do Tratado teológico-político, Leibniz envolve-se em uma intensa
troca de cartas, principalmente com correspondentes que, como ele, viam no livro um
ataque à religião. No ano, seguinte, porém, escreve a Espinosa uma carta cordial (a
única que restou da correspondência entre os dois filósofos, publicada, a contragosto
de Leibniz, na edição da Opera Posthuma do filósofo herético).
5. Como nota Lacerda 9, p. 54, as objeções de Leibniz a Espinosa formuladas em
1678 se, por um lado, prefiguram o sistema maduro do primeiro, ainda são tributárias
27
28
Cadernos Espinosanos XXIII
Ulysses Pinheiro
de uma concepção escolástica de substância que não inclui a noção de força entre suas
notas características (nem tampouco, portanto, sua concepção posterior dos atributos,
entendidos como eventos): “A crítica a Espinosa é redigida [....] em um universo preso
à linguagem escolástica e o seu pressuposto, mesmo que Leibniz já imaginasse incluir
nas notas características do conceito de substância individual as reflexões trazidas
da dinâmica e da matemática infinitesimal, não deixa de ser uma definição lógica de
substância como sujeito, cujos atributos seriam predicados”. É curioso notar que o
silêncio progressivo de Leibniz a respeito de Espinosa se dá no mesmo movimento
de introdução dessa noção dinâmica de substância em seu próprio sistema – o que,
entretanto, o aproximaria da concepção espinosana de substância. Essa discussão é
retomada em Lacerda 10, p. 229.
6. Leibniz GP 1: 139-152. Há um segundo manuscrito de Leibniz sobre a Ética,
reproduzido em Grua I: 277-286. Uma exceção notável ao silêncio que se segue a
esses comentários mais extensos é seu exame das teses da Ética a partir de suas notas
de leitura do livro Elucidarius cabalisticus, escrito pelo teólogo J.-G. Watcher em
1706. Apesar de ter sido editada por Foucher de Careil na França, no século XIX,
sob o titulo um tanto equivocado de Uma refutação inédita de Espinosa, o texto trata
principalmente das relações entre a cabala e a filosofia de Espinosa tal como Watcher
as figurava. Para uma análise desse texto, cf. Lacerda 10, pp. 237-240.
7. Cf. sobre esse ponto Lacerda 10, p. 230, citando Marilena Chauí 3, pp.786-792.
8. Cf. seu comentário à Proposição 5 dessa mesma Parte I: “Observo além disso que
a Proposição 1 é inútil a não ser para provar esta proposição. Ela poderia ter sido
omitida, pois basta que a substância possa ser concebida sem suas afecções, seja ela
anterior a elas por natureza ou não”. Com relação a essa crítica de Leibniz, é curioso
notar que no Apêndice do Curto tratado, uma espécie de proto-Ética que só será
descoberta e publicada no século XIX, os equivalentes das Proposições 1 a 4 da Ética
aparecem como axiomas.
9. De forma paradigmática, no Discurso de metafísica e na correspondência com
Arnauld.
10. Os atributos das substâncias finitas (complexos, relativos, em parte negativos) são
limitações dos atributos divinos (simples, absolutos, positivos).
11. Como atesta sua correspondência com Schüller, um dos responsáveis pelo trabalho
secreto e perigoso envolvido na publicação da obra póstuma de Espinosa.
12. Desde o inicio de suas anotações críticas sobre a Ética, Leibniz manifestou suas
críticas às dificuldades presentes na definição espinosana de atributo (sintoma, a seus
olhos, da deficiência da linguagem lógica do livro); comentando a Definição 4 da
Parte I, ele se pergunta “se ele entende por atributo todo predicado recíproco, ou
todo predicado essencial, seja ele recíproco ou não, ou, finalmente, todo predicado
essencial primário ou indemonstrável da substância”. A crítica de Leibniz deriva, em
suma, da constatação da ausência de uma definição lógica de atributo.
13. Um dos fragmentos de novembro de 1676 (A VI iii 574) formula precisamente
dessa maneira a relação entre essência e atributos: “Um atributo é um predicado
necessário que é concebido por si, isto é, que não pode ser reduzido a muitos outros”;
“A essência é tudo aquilo que numa coisa é concebido por si, isto é, o agregado de
todos os atributos”.
14. A nota que Leibniz redigiu durante os dias em que permaneceu em Haia, em
novembro de 1676, é conhecida sob o título de Que o ser sumamente perfeito existe
(A VI iii 578; G VII 261-263).
15. Embora possamos suspeitar se se trata de uma divergência real, pois a doutrina
da Ética sobre as relações entre essência e atributos poderia ser interpretada como
afirmando precisamente essa distinção.
16. O texto Sobre as formas ou atributos de Deus, de abril de 1676 (A VI iii 513515) elucida essa relação entre “atributos” e “essências”: “Os atributos de Deus são
infinitos, mas nenhum envolve a essência total de Deus. Pois a essência de Deus
consiste nisto: em que ele é o sujeito de todos os atributos compatíveis”.
17. Uma das características do pensamento maduro de Leibniz será um certo
ceticismo quanto a nossa possibilidade de apreender essas formas simples –
embora ele nunca tenha abandonado a tese acerca da necessidade de pressupô-las
em uma explicação metafísica.
18. A VI iii 513-516, abril de 1676. Como vimos acima (nota 18), essa solução é em
certo sentido similar à de Espinosa: esse último afirma que muitos (infinitos) atributos
podem exprimir a mesma essência e que a essência da substância única é o agregado
de todos os atributos logicamente possíveis.
19. Fichant, 6, pp. 107-108; Deleuze 4, pp. 60-67 (deve-se notar, porém, que ambos
se referem primariamente à noção de substância da filosofia madura de Leibniz).
Aqui se prenuncia a noção dinâmica de substância, formulada de modo claro nos
anos seguintes.
20. Sobre essa dupla leitura da Proposição 2, cf. Bennett 1, § 17; Doney 5, pp. 3536. Como nota Doney, a primeira leitura da Proposição 2 implica a falsidade da
Proposição 14, na medida em que essa última tem como premissa que não pode haver
29
30
Cadernos Espinosanos XXIII
Ulysses Pinheiro
mais de uma substância com o mesmo atributo: se houvesse outra substância além de
Deus, ela teria de compartilhar algum atributo com Deus – o que apenas a segunda
leitura da Proposição 2 refuta.
21. Isto é, usando a distinção entre “atributo” e “essência”, tomando tal distinção no
sentido em que, para cada substância, há uma e apenas uma essência correspondente,
e não no sentido em que não há nenhum atributo comum entre as várias substâncias.
22. Os indivíduos espinosanos são, como se sabe, coisas finitas que modificam os
atributos infinitos de Deus; para esses modos, não há nenhum problema em admitir
que eles têm coisas em comum entre si (justamente o atributo do qual eles são
modificações). Ao caracterizar os indivíduos como substâncias que são, em um
certo sentido, “concebidas por si”, Leibniz deve recusar uma influência real entre
elas precisamente porque são essências diferentes. Essa solução, no entanto, traz
consigo um novo problema: se o que permite a relação causal (de criação) entre
Deus e as criaturas não é uma comunidade de essências (pois a essência de Deus
é qualitativamente distinta da essência das criaturas), mas apenas uma comunidade
de atributos (no caso da relação das substâncias criadas com Deus, há uma medida
comum porque os atributos das primeiras são limitações dos atributos divinos), então
por que a comunidade de atributos entre as substâncias criadas não seria suficiente
para permitir relações causais entre elas? Esse problema seria provavelmente evitado
por Leibniz graças a sua teoria acerca das noções completas: duas coisas finitas com
essências distintas não têm nenhuma relação real entre si porque a essência de cada
uma delas exprime-se em uma noção completa. No caso da relação entre Deus e as
criaturas, a relação causal de criação não interfere nas noções completas das coisas,
mas limita-se a acrescentar o predicado de existência a elas – ou seja, a existência não
faz parte do conceito completo de nenhuma coisa.
23. Cf. Discurso de metafísica, Art. 13 (Leibniz 11, vol. 4, pp. 436-439): há dois
decretos primitivos de Deus, o primeiro pelo qual Ele decide fazer sempre o mais
perfeito e o segundo pelo qual Ele decide que o homem fará sempre (ainda que
livremente) o que lhe parecerá ser o melhor.
24. C 21, sem título e sem data. Para a datação desse texto, cf. Rauzy (in: Leibniz 15,
p. 325) (segundo Rauzy, a data mais provável é o começo dos anos 1690; segundo
Parkinson, trata-se provavelmente de um texto escrito na metade da década anterior).
25. Deve-se notar aqui a oposição entre “mente” [mentem] e “alma” [animum], que
talvez indique dois níveis mentais distintos, um mais ativo e outro passivo. Um
resultado adicional interessante desse exame seria mostrar que Leibniz tem uma teoria
original para explicar o fenômeno da acrasia ou incontinência, assimilando-o a uma
espécie de omissão intencional.
26. Cf. Ensaios de Teodicéia, 323 (Leibniz 11, vol. 6, p. 308): “a forma ou a alma”
(notar aqui uma certa hesitação) “é a fonte da ação, tendo em si o princípio do
movimento e da mudança; em uma palavra, τό αύτοχίνητον, como Platão a chama”.
27. Pode ser dubitável, porém, que as duas características definitórias da liberdade
sejam logicamente independentes para Descartes: mesmo quando a vontade é
exercida em uma situação de indiferença negativa, na qual o poder de escolha se
sobrepõe à espontaneidade, é requerido que haja autonomia (ausência de coerção) e,
portanto, uma certa “facilidade” na autodeterminação. Da mesma forma, nas escolhas
“fáceis” do Bem e do Verdadeiro, quando há uma forte inclinação em assentir ao
que se apresenta de modo claro e distinto para a mente, deve haver a presença
necessária da indiferença positiva (pelo menos se levarmos em conta a famosa carta
a Mesland de 9 de fevereiro de 1645). Cf. sobre esse ponto Jean-Marie Beyssade
2, Cap. IV (“Le libre arbitre et le moment de l’élection”). A dimensão temporal do
ato de escolha, constantemente assinalada por Beyssade em sua interpretação de
Descartes, também encontra um lugar de destaque no texto de Leibniz que estamos
examinando. Para uma espécie de antecipação cartesiana da resposta de Leibniz, cf.
Carta a Mesland de 2 de maio de 1644.
28. A deliberação virtuosa deve ter seu término atentamente considerado, tendo como
critério de seu fim a “vontade presumida de Deus, tanto quanto possamos julgá-la” –
Discurso de metafísica, Art. 4 Leibniz 11, vol. 4, pp. 429-430). Sobre a ação indireta
da vontade sobre as ações, será interessante comparar a teoria de Leibniz com a teoria
de Descartes, tal como ela é exposta no Tratado das paixões da alma, Art. 27 e 50.
O próprio Leibniz realiza essa comparação nos Ensaios de Teodicéia, Primeira Parte,
§§ 60-65 (Leibniz 11, vol. 6, pp. 135-138). Sobre o poder de escolha explicado pelo
adiamento de uma decisão, cf. Ensaios de Teodicéia, Terceira Parte, §§ 326-327
(Leibniz 11, vol. 6, pp. 309-310).
29. Em particular, não basta afirmar que a autonomia é equivalente ao poder
de escolha; é preciso dar a esse último um sentido que recupere ao menos
parte de nossa compreensão corrente do ato de escolher como um evento que
envolve a contingência.
31
A CAUSALIDADE EM HOBBES:
NECESSIDADE E INTELIGIBILIDADE
Celi Hirata*
Resumo: O escopo do artigo é examinar a tese hobbesiana de que todo efeito possui
uma causa necessária, indicando como o filósofo a demonstra de modos diferentes,
mas complementares: em primeiro lugar, tanto por meio da identificação entre causa
integral, causa suficiente e causa necessária, como pela redefinição dos conceitos de
potência e ato; em segundo, através da subordinação do princípio de bivalência à
determinação necessária dos eventos; e, por fim, pela defesa de que só por meio de
uma causa necessária, causa que opera mecanicamente por meio de contato, é possível
dar a razão pela qual os eventos possuem tais determinações espaciotemporais ao
invés de outras, de modo que a causalidade mecânica necessária se estabelece como
o único tipo legítimo de explicação dos fenômenos em Hobbes, transformando-se,
então, na forma geral da inteligibilidade.
Palavras-chave: causalidade, necessidade, requisito, mecanicismo, lei de inércia.
1. Causalidade e necessidade
Na sua doutrina da causalidade, Hobbes reformula conceitos
provenientes da tradição aristotélico-escolástica de maneira a substituir uma
concepção qualitativa da natureza por uma física estritamente mecanicista
(cf. Leijenhorst 18, p. 426 - 447). Trata-se de uma doutrina absolutamente
central em seu sistema, sendo decisiva não apenas no campo da filosofia
propriamente natural, mas também no campo da moral e da política, já
que ela vale para todo tipo de evento, seja natural ou humano, de forma
que tanto a concepção que Hobbes possui das paixões humanas como a
que ele tem de liberdade decorrem diretamente do modo como ele pensa
a relação entre causa e efeito. Mais do que isso, a doutrina da causalidade
* Doutoranda do Departamento de Filosofia da USP.
33
Cadernos Espinosanos XXIII
é determinante para a própria circunscrição da atividade filosófica ou
Nesta primeira definição de causa apresentada no De Corpore,
científica, uma vez que a filosofia em geral se define em Hobbes como
Hobbes, além de determinar que a relação causal se dá entre acidentes (e
investigação racional das conexões causais (Hobbes 7, I, §2, p. 2). Por ser
não entre corpos ou substâncias) e envolve um agente e um acidente (isto
uma teoria que está contida na própria definição de filosofia, ela começa
é, dois termos, dos quais um gera ou destrói algum acidente e o outro sofre
a ser constituída antes mesmo que a parte efetivamente doutrinária do De
alguma alteração), realiza duas distinções que serão centrais na defesa da
Corpore, a filosofia primeira, que deve fornecer as primeiras definições,
tese de que todo evento tem a sua causa necessária. A saber: a discriminação
seja iniciada. Uma vez que a investigação das relações causais se identifica
entre o que é requisito e o que não é, por um lado, e entre causa integral e
com a própria filosofia, o estabelecimento do que é causa e efeito torna-
parcial, por outro.
se central na instituição do método, que consiste justamente no caminho
Em primeiro lugar, Hobbes salienta que a causa é constituída
mais breve possível de investigação dos efeitos pelas causas conhecidas e,
dos acidentes do agente e do paciente que estritamente concorrem para
inversamente, das possíveis causas a partir de efeitos conhecidos (idem, VI,
a produção do efeito. Quando o evento se dá, é preciso examinar as
§1, p. 58 e 59). Assim, Hobbes apresenta no capítulo relativo ao método,
circunstâncias que o antecedem para, por meio da análise ou da resolução,
parte da Computatio sive logica, a definição de causa:
isolar os diversos acidentes tanto no agente como no paciente que estavam
Causa é a soma ou agregado de todos os acidentes, tanto no
agente quanto no paciente, que concorrem para a produção
do efeito proposto, de um tal modo que não se pode entender
que todos existem sem que o efeito exista, ou que, estando
qualquer deles ausente, que o efeito exista.
Uma vez conhecendo-se o que é a causa, cabe examinar,
um a um, cada um dos acidentes que acompanham ou
precedem o efeito e que pareçam de algum modo contribuir
para ele, e ver se, algum deles não existindo, pode-se ou não
entender que o efeito proposto exista. Separam-se, desse
modo, aqueles que concorrem para a produção do efeito
daqueles que não concorrem. Feito isto, reúnem-se aqueles
que concorrem e considera-se se é possível entender que,
existindo todos simultaneamente, o efeito proposto não
exista. Se não podemos conceber isso, aquele agregado é a
causa integral do efeito, caso contrário, não, e, nesse caso,
outros acidentes devem ainda ser buscados e acrescentados
(Hobbes 13, VI, §10, p. 151).
34
Celi Hirata
presentes na realização do evento. Feito isto, deve-se a seguir eliminar
dentre estes quais não contribuem para o efeito, o que se faz por meio da
hipótese da privação: caso se possa conceber que, na ausência do acidente
examinado, o efeito se produza, então não se tratava de um fator ou
requisito para a produção do efeito, mas de um acidente que, embora seja
antecedente ao efeito, não faz parte de sua causa. É a estes acidentes que
se aplica a denominação de contingentes, termo que denota a relação de
independência causal de um acidente ou evento em relação a outro (Hobbes
7, IX, § 10, p. 112) ─ sem significar de modo algum a ausência de causa
ou de necessidade dos eventos, como se mostrará. Ao contrário, se não se
pode conceber a remoção do acidente examinado sem a remoção da própria
causa, trata-se de um acidente que concorre para a produção do efeito,
sendo ele, então, parte da causa. Fala-se, neste caso, de uma causa sine qua
non, isto é, causa necessária por hipótese ou requisito para a produção do
efeito, como Hobbes precisará no capítulo concernente à causa e ao efeito
(idem, IX, §3, p. 107). Deste modo, só é parte da causa o que efetivamente
35
Cadernos Espinosanos XXIII
Celi Hirata
contribui para a sua produção, sendo que todos os outros acidentes do
Isto é, se a concepção da reunião de todos estes acidentes não pode ser
agente e do paciente com os quais o efeito não possui uma relação de
separada da concepção da produção do efeito em questão, trata-se da
dependência são excluídos da explicação causal. Ora, é por meio desta
causa integral. Ao contrário, caso a separação da concepção da soma dos
eliminação dos acidentes que não constituem requisitos para a produção
fatores até então delimitados daquela do efeito produzido não resulte num
do efeito da relação causal que se evitam as superstições, que se originam
absurdo, numa impossibilidade de concepção, então não se trata da causa
justamente devido à ignorância do que é a causalidade: como Hobbes diz
integral, pois, “supondo-se estar todos [os acidentes tanto do agente quanto
no Leviatã, a maioria dos homens, rememorando aquilo que eles viram
do paciente, sem os quais o efeito não pode ser produzido] presentes, não
anteceder determinados efeitos, sem examinar pelo raciocínio o que há
se pode entender que o efeito não se produza no mesmo instante” (Hobbes
no antecedente e no consequente que possui uma relação de dependência
7, IX, §3, p. 108). Se a conexão necessária entre a totalidade dos requisitos
ou conexão, esperam supersticiosamente determinados eventos a partir de
ou causa integral e o efeito se rompesse, ocorreria algo ininteligível. A
fatos semelhantes, que não possuem parte na sua produção (Hobbes 8, XII,
relação em questão é, assim, de natureza lógica: uma vez suposto o
p. 97). Fica claro assim que a relação causal não consiste numa relação
antecedente, é incompreensível que o consequente não se siga. Por isso, a
de antecedência e sucessão simplesmente temporal, mas lógica, de forma
ausência da produção do efeito sinaliza diretamente a ausência de um ou
que a imaginação e a memória são, sem o recurso da razão e das suas
mais requisitos necessários para a produção do efeito, devendo, então, o
operações de análise e síntese, insuficientes para o estabelecimento correto
agregado dos acidentes em questão ser incrementado com outros acidentes
das conexões causais.
indispensáveis para o engendramento do evento esperado até que a não-
Em segundo lugar, na definição de causa supracitada, Hobbes
produção deste seja inconcebível. Assim sendo, a totalidade exaustiva de
determina o que é causa integral. Após a discriminação dos acidentes que
todas as condições sine quibus non, isto é, das condições necessárias, para
constituem fatores para a produção do efeito daqueles que não o são, o
a produção do efeito, que constitui a sua causa integral, será, na filosofia
que é realizado em parte pela análise ou resolução (distinção dos diversos
de Hobbes, identificada com a condição suficiente desta produção, que, por
acidentes que antecedem o efeito) e em parte por síntese (verificação de
sua vez, será identificada com a sua causa necessária, transformando-se
se o acidente em questão entra ou não na composição da causa), deve-se
causa integral, causa suficiente e causa necessária em termos sinônimos.
novamente pela síntese reunir todos os acidentes que constituem requisitos
Eis a sinonímia que constitui o cerne da tese de que todo efeito possui uma
para a produção do efeito e examinar se este agregado é suficiente ou não
causa necessária:
para a produção do efeito, exame que se faz por uma prova indireta, uma
espécie de redução ao absurdo: caso não seja possível conceber que, estando
todos aqueles acidentes reunidos, o efeito não se produza, fica patente que
aquele conjunto de requisitos constitui a soma de todos os requisitos para a
produção do efeito, soma que só pode ter como resultado o efeito proposto.
36
A causa integral é sempre suficiente para produzir o seu
efeito, sempre que esse efeito seja de todo possível, porque
qualquer efeito que se proponha para ser produzido, caso
se produza, torna manifesto que a causa que o produziu era
suficiente; mas se ele não for produzido e ele for, no entanto,
37
Cadernos Espinosanos XXIII
possível, é evidente que algo estava faltando ou no agente
ou no paciente sem o qual o efeito não pode ser produzido,
isto é, estava faltando algum acidente que era requisito
para a sua produção. A causa não era, portanto, integral,
ao contrário do que era suposto. Daí se segue também que,
no instante em que a causa se torna integral, neste mesmo
instante o efeito se produz; porque se não se produzisse
faltaria algo requerido para a produção e não se trataria de
uma causa integral como se supunha.
Ao definir como causa necessária aquela que, uma vez
suposta, o efeito não pode deixar de se seguir, concluir-se-á
também que qualquer efeito que se produza o será por uma
causa necessária. Porque o produzido, pelo mero fato de sêlo, teve uma causa integral, isto é, tudo aquilo que, uma vez
suposto, não se pode conceber que o efeito não se siga; e essa
causa é necessária. E, pela mesma razão, torna-se manifesto
que quaisquer que sejam os efeitos que se produzirão no
futuro, eles possuem uma causa necessária e que, deste modo,
tudo o que tenha sido produzido ou que há de sê-lo, terá sua
necessidade em coisas antecedentes (idem, IX, §5, p. 108 e
109; os itálicos do segundo parágrafo são meus).
Deste modo, causa integral, causa suficiente e causa necessária se
tornam conceitos intercambiáveis, pois só é suficiente a causa que é integral,
isto é, a causa que dispõe da totalidade dos requisitos ou condições sine
quibus non. E uma causa integral ou suficiente não pode, por definição,
ser deficiente, sendo necessária a produção do efeito uma vez que a causa
é dada. Como Cees Leijenhorst indica, esta identificação entre a causa
suficiente e a causa necessária realiza-se por meio de uma reinterpretação
destes dois conceitos, que podem ser encontrados em manuais escolásticos.
Enquanto os escolásticos distinguiam a causa suficiente da causa necessária
por meio da distinção entre condições internas e circunstâncias externas
─ mesmo havendo uma causa suficiente, o efeito pode não se produzir
38
Celi Hirata
devido à interferência de uma circunstância externa, como, por exemplo,
no caso de um fogo, que possui todas as condições requisitadas para
queimar um pedaço de madeira, mas não o efetiva por causa de uma chuva
ou vento repentinos, sendo que a causa necessária não se identifica com a
causa suficiente porque aquela é a composição desta mais a ausência de
impedimentos externos ─, para Hobbes, uma se iguala à outra na medida
em que ele extermina a distinção entre condições internas e externas,
tomando ambas como requisitos para a produção do efeito (Leijenhorst
18, p. 432). Afinal, requisito denota, como já foi dito, todos os fatores
que possuem uma relação de causalidade ou dependência com o efeito,
independentemente se estes estão no agente ou no paciente.
Ora, na medida em que a totalidade dos requisitos para a produção
do efeito equivale a esta produção mesma, o efeito torna-se a ratio
congnoscendi de sua causa, de maneira que do efeito é forçoso deduzir
que ele foi produzido por uma causa suficiente: como Hobbes diz, sua
produção “torna manifesto que a causa que o produziu era suficiente”.
Inversamente, a ausência do efeito proposto constitui um índice de que
a causa não era integral, já que, neste caso, “é evidente que algo estava
faltando ou no agente ou no paciente sem o qual o efeito não pode ser
produzido”. Assim, de todo efeito produzido, na medida em que é índice
de uma causa suficiente ou necessária, conclui-se que ele possui a sua
causa necessária, o que vale não só para os efeitos produzidos no passado
ou os que estão se produzindo no presente, mas também para os eventos
futuros. Em oposição à noção de futuros contingentes, Hobbes atribui,
então, necessidade a todos os eventos, independentemente destes serem
passados, presentes ou futuros. Afinal, deve vigorar a mesma conexão
lógica de antecedência e consequência em todas as relações de causa e
efeito, independentemente da posição temporal dos homens em relação ao
fenômeno examinado, de forma que “tudo o que tenha sido produzido ou
39
Cadernos Espinosanos XXIII
que há de sê-lo, terá sua necessidade em coisas antecedentes”.
Esta expansão da necessidade da relação da causa e do efeito para
toda a extensão do tempo, independentemente se os eventos em questão
são passados, presentes ou futuros, é tornada ainda mais explícita pelo
tratamento que Hobbes dá ao par conceitual potência e ato. Atribuindo um
significado novo a estes conceitos tradicionais, Hobbes reconduz a distinção
entre potência e ato àquela entre causa e efeito, dizendo que ambas são
a mesma coisa, ainda que a partir de diferentes considerações: quando o
agente e o paciente possuem todos os requisitos necessários para a produção
do efeito, dizemos que eles podem produzi-lo, isto é, que eles possuem a
Celi Hirata
É impossível um ato para cuja produção não há uma potência
plena. Na medida em que potência plena é aquela na qual
todas as coisas que são requisitos para a produção do ato
concorrem, se a potência nunca for plena, sempre faltará uma
destas coisas sem as quais o ato não pode ser produzido; donde
aquele ato nunca poderá ser produzido, isto é, é impossível:
e todo ato que não é impossível é possível. Todo ato que é,
portanto, possível deve ser produzido em algum momento;
pois se ele nunca for produzido, então aquelas coisas que
constituem requisitos para a sua produção nunca deverão
concorrer; donde ser aquele ato impossível por definição, o
que é contrário ao que era suposto (idem, X, § 4, p. 115).
potência (potentia, power) para esta produção, sendo que a potência do
40
agente equivale à causa eficiente e a potência do paciente à causa material.
Neste parágrafo, Hobbes reproduz em certa medida aquele
A única diferença é que o termo causa diz respeito ao efeito já produzido e o
argumento supracitado de que todo efeito possui uma causa necessária,
termo potência é relativo a este mesmo efeito a ser produzido no futuro, de
argumento que recorre à dupla implicação, seja entre causa e efeito, seja
modo que “causa” se refere ao passado e “potência” ao futuro. Da mesma
entre potência e ato: a potência plena não pode, consistindo na totalidade
maneira, o acidente produzido é, em relação à causa, efeito, e, em relação à
dos requisitos para a produção do ato, deixar de produzir o ato, que, por sua
potência, ato (Hobbes 7, X, §1, p. 113). Ora, assim como causa e efeito são
vez, só pode ser produzido por uma potência plena, pois, caso contrário,
termos relativos, só havendo causa onde há efeito e, inversamente, efeito
faltaria um ou mais dos acidentes que são condição sine quibus non para
apenas na medida em que há uma causa integral ou suficiente, potência e ato
a sua produção. Já naquele parágrafo do capítulo concernente à causa e
são termos correspondentes, de maneira que “um ato só pode ser produzido
ao efeito, Hobbes afirmava que a necessidade desta relação vigora tanto
por uma potência suficiente ou por aquela potência a partir da qual ele não
no passado, como no futuro. Nesta passagem, entretanto, ao abstrair a
poderia deixar de ser produzido” (idem, X, §2, p. 114). Isto é: só pode haver
perspectiva temporal por meio do conceito de potência, ele estende esta
ato onde há uma potência plena e, reciprocamente, só se pode falar de uma
necessidade a qualquer momento que se queira, eliminando, assim, a
potência plena na medida em que há ato, já que “todo ato é produzido no
noção de possibilidade enquanto modalidade lógica que não só se opõe à
mesmo instante que a potência é plena” (idem, X, §2, p.114). Ao identificar
impossibilidade, mas também se distingue da necessidade: na filosofia de
a relação de ato e potência com a de causa e efeito, potência equivalendo à
Hobbes, aquilo que é possível é necessário, pois um ato só é possível na
produção do ato, tal como a causa integral com a produção do efeito, Hobbes
medida em que a potência de produzi-lo é plena, o que significa que ela
assimilará, a partir do conceito de potência, a possibilidade à necessidade e
o produzirá necessariamente. Logo, o ato que não se produz em algum
a ausência de potência com a impossibilidade.
momento do tempo não é possível, já que sempre falta para esta produção
41
Cadernos Espinosanos XXIII
Celi Hirata
algum requisito que impede a potência de ser plena; em outras palavras, ele
que possui valor de verdade e das quais todo o conhecimento filosófico é
é impossível. Ou seja, não há nada entre o possível e o impossível, já que
composto, não poderiam ser nem verdadeiras e nem falsas, o que tornaria
o possível se identifica com o necessário. Deste modo, Hobbes elimina a
o princípio de bivalência inválido e, consequentemente, toda pretensão de
contingência, ou melhor, a redefine: ao invés de se aplicar aos eventos que
ciência caduca. Como Hobbes diz no seu comentário crítico ao discurso
podem ou não ocorrer, ela exprime tanto a maneira pela qual explicitamos a
sobre a liberdade e a necessidade do bispo de Bramhall, a necessidade
ausência de conexão causal entre dois eventos, que, embora concomitantes
de todo evento não é apenas provada pela dupla implicação já examinada
ou sucessivos, são independentes entre si, como, mais frequentemente, a
entre causa suficiente ou necessária e a produção do efeito, como também
nossa ignorância das causas necessárias (idem X, §5, p. 115 e 116) ─ a
pela natureza da proposição:
contingência não denota a ausência de causas, mas caracteriza apenas a
relação do nosso conhecimento com o evento (Hobbes 9, p. 259). Como
Luc Foisneau comenta, o tempo não é, em Hobbes, abertura ao possível,
mas a limitação do conhecimento em função de nossa consideração, de
modo que o possível passa a ser apenas uma modalidade temporal do
necessário: um evento possível é um evento necessário que sabemos que
se produzirá, sem, no entanto, saber quando (cf. Foisneau 5, p. 88). A
oposição a Aristóteles não poderia, então, ser mais clara. Se por meio do
par conceitual potência e ato, Aristóteles distinguia dois modos distintos do
ser, diferenciando a potência como mera possibilidade do ato, que denota o
real e que é, por isso, ontologicamente superior à potência (cf. Metafísica,
livro IX, 1045 b 25 – 1052 a 12 - Aristóteles 2, p. 428 - 473), Hobbes, em
contraste, eliminará justamente por meio destes dois conceitos a distinção
da possibilidade e da atualidade: a potência completa se identifica ao
próprio ato, isto é, a possibilidade de um ato já significa a sua efetividade,
de modo que todo ato possível deve ocorrer em algum ponto do tempo.1
2. Causalidade e inteligibilidade
Na filosofia de Hobbes, a necessidade estabelecida pela relação
causal vai de par com a racionalidade. Se os eventos não fossem
necessários, as proposições, que constituem a única espécie de discurso
42
É necessário que amanhã chova ou não chova. Se, portanto,
não for necessário que chova, é necessário que não chova, caso
contrário, não há necessidade de que a proposição choverá ou
não choverá seja verdadeira. Sei que há alguns que dizem
que é necessariamente verdadeiro que um dos dois venha
a ocorrer, mas não separadamente que choverá ou que não
choverá, o que equivale a dizer que uma delas é necessária e
que, no entanto, nenhuma delas é necessária; para evitar este
absurdo, eles fazem a seguinte distinção, de que nenhuma
delas é verdadeiramente determinada, mas indeterminada, o
que significa apenas que uma delas é verdadeira, mas nós não
sabemos qual e a necessidade, então, permanece, ainda que
nós não a saibamos (Hobbes 9, p. 277).
Da mesma forma que uma proposição é ou verdadeira ou falsa, não
havendo meio-termo entre a verdade e a falsidade (que é o que o princípio
de bivalência estabelece), um evento, como, por exemplo, a chuva futura,
é ou necessário (de forma que a proposição que o enuncia é verdadeira) ou
não-necessário, o que, como já se disse, equivale, na filosofia de Hobbes
ao impossível, já que não há nada entre o necessário e o impossível, sendo
a proposição que a enuncia, então, falsa. A indeterminação cabe ao fato e à
proposição correspondente apenas do ponto de vista do nosso conhecimento:
objetivamente, toda proposição é ou verdadeira ou falsa e todo evento
43
Cadernos Espinosanos XXIII
Celi Hirata
é ou necessário ou impossível. Em uma passagem muito semelhante à
no tempo, já que, neste caso, não se poderia imaginar nem o início e nem o
supracitada, na qual Hobbes igualmente defende a necessidade de todos
término de qualquer fenômeno. Numa palavra, não se poderia representar
os eventos por meio do princípio de bivalência, o filósofo acrescenta que a
ou conceber qualquer alteração na natureza:
verdade de uma proposição “não depende de nosso conhecimento, mas da
anterioridade de suas causas” (Hobbes 7, X, §5, p. 116). Assim, esta prova
da necessidade pelas proposições subordina-se àquela prova já discutida
da necessidade pelas causas (cf. Foisneau 6, p. 109). De fato, numa outra
passagem do Anti-White, o filósofo inglês afirma que a “necessidade
das proposições, em função da qual dizemos que um tal evento ocorrerá,
segue-se da necessidade que exige que os eventos procedam de causas”
(Hobbes 11, XXXV, 13, p. 393; apud Foisneau 6, p. 110). Ora, essa mesma
dependência do valor de verdade das proposições em relação à determinação
necessária dos eventos por meio de suas causas aparece de maneira explícita
Que um homem não pode imaginar nada começando sem
uma causa não pode ser conhecido de outra forma senão
tentando conceber como ele pode imaginá-lo. Mas, se ele
empreender esta tentativa, ele encontrará, se não houver
causa para a coisa, tanta razão para conceber que esta poderia
começar tanto em um tempo como noutro, de forma que ele
teria razões iguais para pensar que a coisa deveria começar
em todos os tempos, o que é impossível, e, portanto, ele
deveria pensar que houve uma causa especial pela qual ela
começou então ao invés de mais cedo ou mais tarde; ou
então que ela nunca começou, mas é eterna (idem, p. 276).
na justificação da necessidade na presciência divina, que seria destruída se
houvesse livre-arbítrio ou contingência no sentido tradicional do termo:
A relação necessária entre a causa e seu efeito não só é provada
“essas coisas que são chamadas de futuros contingentes, se elas não ocorrem
pela imbricação entre o conceito de causa suficiente e de seu efeito e
de maneira certa, isto é, a partir de causas necessárias, não podem ser
pela dependência que o princípio de bivalência possui em relação a ela,
conhecidas de antemão” (Hobbes 10, p. 18). Pois não é o conhecimento que
mas também pela imprescindibilidade desta relação na representação dos
determina os eventos, mas sim o contrário: “que a presciência divina deva
eventos no tempo, pois é impossível conceber um evento sem uma causa,
ser a causa de alguma coisa, não pode ser verdadeiramente dito, vendo que
causa que só pode ser, aliás, necessária.
presciência é ciência, e ciência depende da existência das coisas conhecidas
e não estas daquela” (Hobbes 9, p. 246).
44
Como Hobbes diz, a representação do evento no espaço e no tempo
é necessariamente acompanhada da representação de sua causa. Sem a
Mais ainda, a relação entre a necessidade posta pela causalidade e
intervenção do conceito de causa, haveria tanta razão para conceber que
a inteligibilidade que ela torna possível se estabelece num nível ainda mais
um evento poderia começar tanto num tempo como no outro, de forma que
fundamental, a saber, na imaginação, anteriormente ao estabelecimento
seu início seria inimaginável. Uma vez que Hobbes pensa que toda ideia
da filosofia propriamente dita. Sem o recurso à causalidade necessária
ou concepção é uma imagem (Hobbes, 8, III, p. 17), sendo que só podemos
não só a constituição do discurso científico se tornaria impossível, uma
conceber aquilo que podemos imaginar (razão pela qual não há ideia de
vez que o valor de verdade das proposições se fundamenta nas relações
infinito, por exemplo), o evento e o seu início seriam ininteligíveis na
causais, como também se tornaria impossível a representação dos eventos
ausência da representação de uma causa. Dito de outra forma, não haveria
45
Cadernos Espinosanos XXIII
Celi Hirata
razão suficiente para imaginar o evento se iniciando em um momento
razão para se dar em qualquer parte do tempo: “o único modo pelo qual o
determinado ao invés de outro, mas aquele que representa o evento
espírito pode dar razão de uma proposição, assim como de um efeito natural,
“teria razões iguais para pensar que a coisa deveria começar em todos os
consiste em exibir sua causa produtora. A causa produtora aparece então
tempos, o que é impossível”. Sem a representação da causalidade não seria
como a forma mais universal do princípio de razão. Ela se identifica com
possível a representação de nenhum evento, isto é, de nenhuma alteração
a exigência de racionalidade em geral” (Zarka 19, p. 203). A causalidade
na natureza, mas só seria possível a representação das coisas como sendo
necessária aparece, então, como a forma geral da inteligibilidade, pela qual
eternas, o que é contrário à estrutura da representação humana, que só pode
tanto a representação dos eventos como a enunciação das suas proposições
se dar no espaço e no tempo2. Toda representação de um evento envolve,
correspondentes são tornadas possíveis para nós.
pois, a concepção de uma causa especial, causa que dá a razão pela qual
este evento teve início num momento determinado e não anteriormente
3. Causalidade e mecanicismo
ou posteriormente. Assim, na ausência de uma relação causal necessitante
46
não só o valor de verdade das proposições sobre os eventos permaneceria
Resta indicar como esta identificação entre causa necessária
indeterminado, o que feriria o princípio de bivalência, como também a
e razão se estabelece no interior do paradigma mecanicista da filosofia
imaginação ou representação de um evento seria indeterminada, sem uma
moderna, o que tornará ainda mais claro como só uma causa necessária ─
inserção precisa no tempo e no espaço, já que o início de qualquer evento
causa que Hobbes concebe como sendo mecânica ─ pode tornar os eventos
seria ininteligível. Numa palavra, a representação seria impossível. Que
inteligíveis, dando razão de suas determinações espaciotemporais.
todo evento só possa ser representado como possuindo um início prova
O parágrafo citado na seção anterior, no qual Hobbes defende que
que todo evento possui a sua causa necessária, pois o evento só pode ter
um homem não pode imaginar algo começando sem uma causa, já que, na
início se a sua causa é suficiente para produzi-lo, isto é, se não falta nada
ausência desta, não haveria razão para conceber o início do evento num
que constitui requisito para a sua produção, como Hobbes argumenta no
determinado ponto do tempo, constitui a justificativa (alocada na seção
parágrafo seguinte ao supracitado. Afinal, como a causa suficiente e a
“minhas razões” do Da liberdade e da necessidade) do sexto item listado
produção do efeito se equivalem, o efeito é produzido no mesmo instante
em “minha opinião sobre a liberdade e a necessidade”, no qual Hobbes
em que a causa é integral, de modo que “em toda ação o início (principium)
afirma que “nada se inicia por si mesmo, mas a partir da ação de algum
e a causa são tomados pelo mesmo” (Hobbes 7, IX, §6, p. 110).
outro agente imediato” (Hobbes 9, p.274). É derivando as consequências
Assim, é a relação causal que confere inteligibilidade tanto às
desta máxima3 para o campo da moral que Hobbes sustenta que a causa
proposições, na medida em que “a razão das proposições ─ o porquê
de uma volição não pode residir na própria vontade, mas deve provir de
delas serem verdadeiras ou falsas ─ não é outra que a causa dos eventos”
móbiles exteriores, de forma, então, que a acepção da liberdade humana
(Foisneau 6, p..111), como aos próprios eventos, já que a razão de qualquer
como o poder de iniciar uma cadeia causal nova, sem que ela mesma seja
mudança só pode ser encontrada na sua causa, sem a qual o evento teria
causada por nada, revela-se falsa, que é a concepção que Hobbes visa
47
Cadernos Espinosanos XXIII
Celi Hirata
combater neste texto polêmico. Do lado da filosofia natural, esta máxima se
todos os requisitos necessários para se mover ─, ela não poderia deixar
identificará à rejeição do movimento espontâneo e terá como consequência
de se mover; ora, como esta potência ativa é atribuída à própria coisa,
a dupla asserção que constitui o cerne do princípio de inércia, a saber,
ela dispensa o recurso a qualquer outra circunstância exterior, de forma
que um corpo em repouso assim sempre permanecerá a menos que um
que ela deveria ter se movido desde a eternidade e, sem a necessidade da
outro corpo o mova e, simetricamente, que um corpo em movimento
intervenção de outros corpos a ela exteriores, em todas as direções. Mas
permanecerá para sempre em movimento a não ser que um outro corpo o
esta suposição só mostra como a atribuição aos corpos de uma potência de
pare. Eis como Hobbes prova a inexistência do movimento espontâneo na
se mover é absurda: não se pode conceber que a soma de todos os requisitos
décima conclusão extraída a partir dos princípios estabelecidos no Short
para a produção de um efeito não resulte nesta produção mesma, pois, caso
tract on first principles:
contrário, tratar-se-ia de um absurdo matemático, de uma equação desigual,
Nada pode mover a si mesmo.
Suposto (se isso for possível) que A pode mover a si mesmo,
é preciso que ele o faça por uma potência ativa que esteja
nele próprio (de outra forma, ele não move a si mesmo, mas
é movido por outro); e, vendo que ele age sempre em si
mesmo, ele deve [...] mover a si mesmo sempre. Suposto,
então, que A possui a potência (power) de ser movido na
direção de B, então, A deve sempre mover a si mesmo
em direção a B. Do mesmo modo, suposto (como nos é
permitido) que A possui a potência de ser movido em direção
a C, então, A deve sempre mover a si mesmo em direção a
C. Ele deve, então, mover-se sempre em direções contrárias,
o que é impossível. (Hobbes 12, p. 18 e 20).
De acordo com a demonstração hobbesiana da causalidade
necessária de todo evento (demonstração que também se encontra no Short
Tract, ainda que não tão desenvolvida quanto aquela que consta no De
Corpore), o conjunto de todas as condições necessárias para a produção
de um efeito constitui a sua condição suficiente que, como tal, não pode
deixar de produzi-lo, sendo, então, necessária. Do mesmo modo, se algo
possuísse em si mesmo a potência de se mover ─ o que significa, conforme
a definição que Hobbes dá ao termo potência, que esta coisa possuiria
48
de uma conexão que vai contra a razão, concebida por Hobbes precisamente
como a capacidade de calcular, isto é, de somar e de subtrair (Hobbes 7,
I, §2, p. 3). Ora, uma vez que a produção do efeito suposto é inconcebível,
isto é, incompatível com a estrutura da representação humana, que não
pode deixar de imaginar o evento num espaço e num tempo determinados,
mostra-se que a hipótese é falsa. Assim, é a concepção matemática que
Hobbes possui da causalidade que está no fundamento da rejeição do
movimento espontâneo e da cosmologia aristotélica em geral, já que a
concepção aristotélica de evento natural, calcada nas noções de potência
e ato, forma e matéria, é avessa a qualquer tratamento matemático, sendo
aí toda alteração compreendida qualitativamente como um processo. Para
Hobbes, ao contrário, a relação causal, que é pensada segundo o modelo
da geração ou produção, é estritamente quantitativa, sendo que a causa e
a produção do objeto se equivalem, de forma que se conhece a causa de algo
quando se é capaz de reproduzi-lo (idem, I, §5, p. 5 e 6) ─ o que se ajusta
perfeitamente à concepção de ciência típica da modernidade, segundo a qual o
escopo da filosofia reside na utilização dos efeitos previstos para a produção de
eventos conforme a comodidade dos homens (idem, I, §6, p. 6).
Rejeitando, então, a concepção de que as coisas possuam uma
potência ativa pela qual elas movam a si mesmas, Hobbes concebe que
49
Cadernos Espinosanos XXIII
toda mudança ─ que, vale dizer, o filósofo inglês reduz ao movimento local
(idem, IX, §9, p. 111 e 112), que doravante constituirá não só o único tipo
de alteração, mas também a causa mais universal de todas, sendo que um
movimento sempre tem como causa outro movimento (idem, VI, §5, p.
62; Hobbes 8, I, p. 2), o que possibilita o tratamento matemático de todo
evento ou alteração, já que tanto a causa como o efeito são, neste caso,
termos homogêneos, passíveis de composição e de subtração ─ é fruto de
uma causa transitiva, de modo que toda relação de causa e efeito envolve
um agente e um paciente, uma causa eficiente e uma causa material que
compõem a causa integral.4 Uma vez que os corpos são desprovidos de
um princípio interno de ação, de uma forma ou essência que os disponha
a uma alteração qualquer, a causa da mudança só pode estar em algo
exterior. Sem referência a esta causalidade exterior, não só não se poderia
conceber por que a mudança, isto é, a passagem do repouso ao movimento
ou do movimento ao repouso, iniciou-se num tempo determinado, como
também não se poderia explicar por que o movimento se deu numa direção
determinada. Ou seja, sem o recurso a esta causalidade exterior e mecânica,
a um outro corpo contíguo e em movimento (Hobbes 7, IX, §7, p. 110 e
111), que altera o corpo em questão pela transmissão de seu movimento
por meio do contato, não haveria a razão pela qual o evento em questão
possui estas determinações espaciotemporais ao invés de outras:
O que está em repouso permanecerá sempre em repouso, a não
ser que haja algum outro corpo além dele que, esforçando-se
em tomar o seu lugar por meio do movimento, faça com que
este não possa mais permanecer em repouso. Pois suponha-se
que algum corpo finito existe e está em repouso e que todo o
espaço ao seu redor está vazio; se agora este corpo começar a
se mover, ele o fará em alguma direção; vendo, portanto, que
não havia nada no corpo que não o dispusesse ao repouso, a
razão pela qual ele se moveu nesta direção está em algo fora
50
Celi Hirata
dele; e, da mesma maneira, se ele tivesse se movido em outra
direção, a razão do movimento naquela direção teria estado
em algo fora dele; mas, vendo que se supunha que nada havia
fora dele, a razão de seu movimento numa direção seria a
mesma de seu movimento em todas as outras direções, do
que se segue que ele se moveria do mesmo modo em todas as
direções simultaneamente, o que é impossível.
Do mesmo modo, o que está em movimento, sempre estará
em movimento, a não ser que haja algum outro corpo além
dele que o leve ao repouso. Pois se supomos que não há nada
além dele, não haverá razão pela qual ele deveria entrar em
repouso agora ao invés de em algum outro tempo; donde
se segue que seu movimento cessaria de forma similar em
qualquer partícula do tempo, o que não é inteligível (idem,
VIII, § 19, p. 102 e 103, itálicos meus).
O princípio de inércia, que constitui um dos principais pilares da
transformação que a concepção de natureza sofre na passagem da filosofia
aristotélico-escolástica para a moderna, é, nesta passagem do De Corpore,
ainda que apresentado de maneira incompleta, demonstrado, então, por
meio da noção de razão. Com o declínio da cosmologia aristotélica, o
movimento e o repouso passam a ser concebidos não mais como modos
do ser, isto é, como o processo e o seu fim, mas como estados definidos
por uma relação entre espaço e tempo5, em relação aos quais os corpos são
completamente indiferentes, o que introduz a necessidade de se dar uma
razão para explicar por que o corpo passou de um para o outro. Afinal,
opondo-se à concepção aristotélica segundo a qual todo ser natural constitui
um princípio de atividade dotado de uma essência que lhe proporciona uma
finalidade interna, de modo que toda alteração é concebida teleologicamente
como um processo de atualização de uma potência (Física III, I, 201 a 10
– 201 a 11 - Aristóteles 3, p. 195), Hobbes não só estabelece que tanto
a potência como o ato consistem em movimentos atuais que só diferem
51
52
Cadernos Espinosanos XXIII
Celi Hirata
quanto à perspectiva temporal (Hobbes 7, X, §6, p. 116), como também
moveu em uma determinada direção ao invés da outra, pois, sem esta
rejeita tanto a causa formal como a causa final, que, a seu ver, não passam
referência à disposição do outro corpo em relação ao corpo movido, este
de causas eficientes: enquanto a primeira nada mais é do que uma causa
seria indiferente a qualquer direção, sendo determinado a se mover em
eficiente que ocorre entre conteúdos de conhecimento, na qual um é causa
todas as direções, o que é impossível. Do mesmo modo, sem a intervenção
do outro, a segunda só tem lugar nas coisas que possuem sentidos (sensum)
de um outro corpo, não se poderia compreender como um corpo passa
e vontade (idem, X, §7, p. 117; III, §20, p. 38 e 39) e indica apenas a
do movimento ao repouso agora ao invés de antes ou depois, pois não há
relação entre a representação de algo desejado e uma ação, sendo que a
nenhuma tendência natural no corpo ao repouso, mas, ao contrário, assim
primeira constitui a causa eficiente da segunda.6 Ora, uma vez que o corpo
como um corpo em repouso assim permanecerá, a menos que um outro
é destituído de qualquer princípio de atividade interno, na ausência de uma
corpo se choque com este, o que é comumente aceito, pela mesma razão,
razão exterior ao corpo, ele permanecerá no estado em que se encontra, e
a saber, que nada pode alterar-se a si próprio, um corpo em movimento
só poderá passar do repouso ao movimento e do movimento ao repouso
permanecerá eternamente em movimento se um outro corpo não o parar
pela intervenção de outro corpo.
─ o que, ao contrário, não é facilmente admitido devido à autoridade dos
Mas, com o abandono do arsenal aristotélico da teoria do
doutores da Escola, que atribuem às coisas inanimadas um apetite pelo
movimento, não é só a passagem de um estado a outro que requer uma
repouso, o que, por sua vez, tem por base o antropomorfismo (Hobbes 8,
razão exterior ao corpo: também a direção na qual o corpo se move deve
II, p. 3 e 4). Desta forma, a passagem do movimento ao repouso necessita de
ser referida a uma razão que não se encontra nem no corpo e nem no
uma explicação causal tanto quanto a passagem do repouso ao movimento.
espaço, doravante concebido como sendo perfeitamente homogêneo. Em
Se não houvesse a comunicação do movimento por um corpo exterior, haveria
contraste com a concepção de um cosmos qualitativamente organizado e
tanta razão para que o corpo passasse bruscamente ao repouso em qualquer
com a noção de lugar natural que lhe é correspondente, segundo a qual
instante que se queira, e não por graus e num espaço de tempo determinado,
cada coisa tende a um lugar determinado conforme a sua natureza própria
como ocorre pela transmissão do movimento de um corpo ao outro, pelo
(Do Céu, IV, 3 – Aristóteles 1, p. 342 - 351), Hobbes concebe o espaço
qual os acidentes do agente alteram continuamente os acidentes do paciente
como sendo algo que não é real, mas imaginário (já que não existe fora
(Hobbes 7, IX,§ 6, p. 109), tal qual numa função matemática, concepção
da representação, mas é a imagem que o sujeito percipiente possui de
que, no entanto, Hobbes não chega a formular (cf. Fiebig 4, p. 31). Numa
algo exterior e subsistente por si, isto é, o corpo), apresentando-o como
palavra, os estados dos corpos e suas determinações espaciotemporais seriam
aquilo que não é atualmente preenchido, mas como aquilo que pode ser
ininteligíveis sem a referência a um outro corpo, contíguo e em movimento
preenchido (Hobbes 7, VII, §2, p. 82 e 83). Na medida em que o espaço é
(isto é, a uma causa mecânica, que não pode deixar de produzir o seu efeito),
desprovido de determinações atuais, os corpos são indiferentes a um lugar
já que a razão destes não podem ser encontradas nos próprios corpos.
ou outro, de forma que se não houvesse a comunicação do movimento
Assim, é a causalidade necessária, que consiste numa relação
a partir de um corpo exterior, não haveria a razão pela qual o corpo se
matematicamente determinada entre a causa integral e a produção do
53
Cadernos Espinosanos XXIII
Celi Hirata
efeito, e o seu estabelecimento como único tipo legítimo de explicação dos
insuficiente de razão quando se trata de responder a questão mais essencial
fenômenos, tanto naturais como humanos, que fundamenta a rejeição da
de todas, a saber, por que existe alguma coisa e não o nada? (cf. Leibniz 17,
alteração (isto é, movimento) espontânea e, consequentemente, o princípio
§7, p. 158), questão que só poderá ser respondida por meio da introdução da
de inércia. Por isso é que a tese de que nenhum homem pode imaginar algo
ideia de finalidade e do melhor, já que o “nada é mais simples e fácil do que
se iniciando sem uma causa necessária constitui a justificativa ou a razão
alguma coisa” (idem), isto é, o nada não possui requisitos, ao contrário da
pela qual “nada se inicia por si mesmo, mas a partir da ação de algum outro
existência do mundo. Enfim, se, por um lado, Leibniz deve o seu princípio de
agente imediato”, como Hobbes expõe no Da liberdade e da necessidade.
razão suficiente em certa medida a Hobbes, o que ele não deixa de reconhecer,
Dar a razão de um evento significa, doravante, dar conta de sua produção e
como se pode verificar em seu comentário crítico aos Questions concerning
submetê-lo ao cálculo (cf. Zarka 19, p. 205). Só uma causalidade necessária,
liberty, necessity and chance (cf. Leibniz 15, p. 388- 399), por outro, por
causalidade que opera apenas mecanicamente, a partir da transmissão do
meio deste princípio ele se oporá não só ao necessitarismo e materialismo do
movimento, pode, então, tornar os eventos inteligíveis, dando razão de sua
filósofo inglês, como também à sua tese da impossibilidade de se conhecer
inserção determinada no espaço e no tempo. Vê-se, desta forma, que a
Deus pela razão natural, bem como à sua concepção de justiça divina, como
teoria da causalidade constitui o principal pilar na refutação hobbesiana
ele bem expõe neste apêndice da Teodiceia.
da concepção aristotélico-escolástica de natureza em favor da física
Causality in Hobbes: necessity and intelligibility
mecanicista típica de seu tempo.
***
Por fim, é interessante notar que seja justamente por meio de
algumas noções empregadas por Hobbes na demonstração de que todo efeito
possui a sua causa necessária que Leibniz se oporá ao seu materialismo e
necessitarismo, o que ele fará por meio do princípio de razão suficiente.
Como se mostrará num de seus textos de juventude, Leibniz demonstrará
este princípio precisamente a partir da dupla implicação entre a existência
de uma coisa e de sua razão suficiente, argumentando que a totalidade dos
requisitos constitui a razão suficiente da existência de uma coisa, que, por
sua vez, não poderia existir se um dos requisitos estivesse ausente (Leibniz
16, p. 483). Ora, tal como se pode ver no desenvolvimento de sua filosofia,
Leibniz o utilizará para mostrar como a causalidade mecânica é um tipo
54
Abstract: The aim of this paper is to examine the hobbesian thesis that every effect
has a necessary cause, showing how he demonstrates it in different but complementary
ways: firstly, by means of identification between entire, sufficient and necessary cause
and the redefinition of concepts of power and act; secondly, through the subordination
of the principle of bivalence to the necessary determination of events; and lastly,
by affirming that only through a necessary cause, a cause that can operate only
mechanically via contact, is possible to give the reason why the events have these
spatial and temporal features instead of others. Therefore the mechanical and necessary
cause becomes in Hobbes the unique legitimate type of explanation of phenomena and
the general form of intelligibility.
Key-words: causality, necessity, requisite, mechanism, law of inertia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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W. K. C. Guthrie.
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56
Cadernos Espinosanos XXIII
Celi Hirata
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13. _______. Do Corpo – parte I: Cálculo ou lógica. Campinas: Unicamp, 2009.
Tradução: Maria Isabel Limongi e Viviane de Castilho Moreira.
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16. _______. “Demonstratio propositionum primarum”. In: Philosophischen Schriften
herausgegeben von der Leibniz-Forschungsstelle der Universität Münster.
Berlim: Akademie – Verlag, 1966, tombo VI, volume II.
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19. ZARKA, Y. La décision métaphysique de Hobbes. Paris: Vrin, 1999 (2ª edição).
20. _______. “First philosophy and the foundation of knowledge”. In: The Cambridge
Companion to Hobbes, p. 62-85.
NOTAS:
1. Luc Foisneau indica que Hobbes, ao estabelecer uma relação necessária entre
potência e ato, retoma, contra Aristóteles, o necessitarismo dos megáricos, que
justamente não reconhecem a potência como um modo de ser intermediário entre o
ser e o não-ser, mas, como Hobbes, argumentam que não há potência se não há ato e
que não há ato a não ser que haja potência (Foisneau 5, p. 87).
2. Após inaugurar a filosofia primeira no De Corpore com a hipótese do aniquilamento
do mundo, com a qual Hobbes visa esclarecer a estrutura e o conteúdo da representação
humana (Zarka 20, p.66), o filósofo apresenta em primeiro lugar as definições de
espaço e de tempo, que não são coisas que existem fora de nós, mas pertencem apenas
à mente, uma vez que são os fantasmas “de uma coisa existente enquanto existente”
e “de um movimento, na medida em que imaginamos nele um antes e um depois”
(Hobbes 7, p. 83 e 84), respectivamente. Na medida em que constituem as imagens da
exterioridade e da mudança em geral, “espaço e tempo não são fantasmas particulares
entre outros, mas pertencem à forma do nosso conhecimento das coisas que existem e
se alteram” (Zarka 20, p. 67).
3. A tese de que nada pode iniciar o seu próprio movimento constitui a segunda das
cinco máximas que Hobbes lista em “Maximes necessary for those, yt from ye sight
of an Effect shall endeavour to assigne its Natural Cause” (Classified Papers, IV (I),
nº 30, apud Jesseph 14, p. 90). Apesar de constituir uma máxima de sua filosofia, ela
pode ser derivada a partir de sua concepção de causalidade.
4. Causa eficiente e causa material não denominam, como em Aristóteles, dois tipos
distintos de causa, das quais uma seria externa e a outra imanente ao efeito (Metafísica,
livro V, 1018 b 4 – 1018 b 5 – Aristóteles 2, p. 212 e 213), mas indicam apenas dois
modos distintos da consideração da causa que denominaríamos eficiente, já que tanto
numa como na outra se trata dos requisitos (que são sempre acidentes e não a matéria,
isto é, o corpo) que colaboram na produção do efeito.
57
Cadernos Espinosanos XXIII
5. “Diz-se que está em repouso aquilo que, durante qualquer tempo, está num lugar; e
que está em movimento ou foi movido o que, esteja agora em movimento ou em repouso,
estava antes em outro lugar do que está agora” (Hobbes 7, VIII, §11, p. 98).
6. Como Yves Zarka diz, para Hobbes, “a causalidade final nada mais é do que a
aparência subjetiva que a causalidade eficiente adquire na imaginação do homem”
(Zarka 19, P. 202).
Possíveis e Existentes em Leibniz
Wilson Alves Sparvoli*
Resumo: Nesse artigo, pretendemos tratar da distinção entre um ser possível e um ser
existente em Leibniz. Para tanto, vamos nos apoiar nas reflexões dos comentários de
Martine de Gaudemar e de Robert Adams em seus livros. Pretendemos mostrar que
um possível é algo que não possui uma força própria, apesar de todo possível exigir
existir, essa força não passa da própria força da divindade, não existe alteridade antes
da criação. Já um existente possui uma força e uma autonomia própria.
Palavras chaves: Leibniz, Existente, Possível, Força, Mônada.
Nosso objetivo nesse texto é verificar qual é a diferença entre
um ser possível e um ser existente em Leibniz, ou seja, a diferença entre
os vários mundos possíveis e o mundo existente e criado. Para resolver
essa questão vamos partir dos comentários de Martine de Gaudemar
(Gaudemar 1), e complementá-los com algumas idéias tiradas de Robert
M. Adams (Adams 2).
Leibniz, na correspondência com Arnauld, defende que há diversos
possíveis não criados e que esses possíveis se encontram no intelecto
divino, chamado de o “país dos possíveis”. Um dos motivos para afirmar a
existência de possíveis não criados é garantir a contingência tanto da ação
divina como da ação humana.
Leibniz enviou para Arnauld um sumário do Discurso de
Metafísica. O velho teólogo, ao ver a carta de Leibniz, rapidamente se
horroriza com o artigo 13º. No título desse artigo lemos:
* Doutorando do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.
58
59
Cadernos Espinosanos XXIII
“Como a noção individual de cada pessoa encerra duma
vez por todas quanto lhe acontecerá, nela se vêem as provas
a priori da verdade de cada acontecimento ou a razão de ter
ocorrido um de preferência a outro” (Leibniz 3, pág. 127).
Arnauld imediatamente acusa Leibniz de restringir a liberdade
divina no ato de criação, instituindo um regime de “nécessité plus que
fatale” (Leibniz 7, Pág. 83.), pois, se a noção individual de Adão encerra
tudo aquilo que lhe acontecerá, os filhos que terá e a noção desses filhos
também, a liberdade divina parece ficar restrita à decisão de criar ou
não o mundo. Caso decida criar, tudo se seguirá dessa noção individual
necessariamente. A ligação entre Adão e seus predicados pareceu à Arnauld
semelhante à ligação existente entre minha essência e a propriedade de ser
pensante, isto é, intrínseca e necessária.
Leibniz, é claro, não pode aceitar essa conseqüência, assim como
também não vai aceitar nenhuma das outras conseqüências tiradas por
Arnauld, que implicam limitação à liberdade de Deus e do homem. Um dos
argumentos utilizados por Leibniz para se esquivar desse determinismo é a
pluralidade de mundos possíveis.
A contingência da escolha divina e da ação humana se baseia em
certa medida nessa pluralidade de possíveis não criados. No texto do artigo
13º do Discurso de Metafísica, Leibniz vai fazer uma distinção muito sutil
entre o certo e o necessário. Todos os predicados de uma substância podem
ser deduzidos a priori de sua noção individual, já que essa noção é sumamente
individualizada. Contudo, mesmo se alguém tivesse um poder de análise
grande o suficiente para realizar uma análise completa dessa noção (o que
é inviável mesmo para Deus, já que realizar uma análise infinita no tempo
é impossível. Apenas na perspectiva da eternidade seria possível “realizar”
tal feito), não seria capaz de demonstrar que o contrário de tal predicado
implica contradição lógica. Explicando um pouco melhor, segundo o
60
Wilson Alves Sparvoli
famoso exemplo das camisas: está contido em minha noção individual
que, enquanto escrevo esse texto, visto uma velha camisa vermelha. Isso é
certo, entretanto não é necessário, pois não é logicamente impossível (não
implica contradição) que hoje eu estivesse vestindo uma elegante camisa
branca. Mais do que isso, em outros mundos possíveis, eu trajo uma
infinidade de camisas possíveis! A contingência no leibnizianismo é salva
por essa distinção e por esse esquema de possibilidade ou impossibilidade
lógica. É necessário apenas aquilo cuja negação é logicamente impossível.
A necessidade fatal se restringe ao domínio das verdades matemáticas e
lógicas, incriadas e imutáveis; elas não poderiam ser alteradas sequer por
Deus. Sem dúvida nenhuma, esse é um tema muito rico e complexo do
leibnizianismo, entretanto, para nosso objetivo nesse texto, basta frisar que
os possíveis garantem a contingência da ação humana e da ação divina: os
mundos possíveis não criados abrem um leque de opções possíveis (que não
são logicamente contraditórias) para os sujeitos e para Deus. Um problema
adicional seria que, no melhor dos mundos possíveis (o que foi realmente
criado por Deus), é hipoteticamente necessário que eu use a bendita camisa
vermelha... Não posso vestir, ou seja, é certo que eu não vou vestir uma
camisa verde e desequilibrar o delicado conjunto do mundo, diminuindo
sua perfeição; entretanto, apesar de certo, não é necessário. É logicamente
possível vestir essa camisa verde, e essa possibilidade lógica está ligada à
pluralidade de mundos possíveis não criados.
Esses possíveis não criados garantem a contingência da ação
divina: a criação não é necessária, tanto porque Deus poderia não ter
criado nada, quanto porque, ao decidir criar, poderia ter criado um outro
mundo dentre os vários possíveis em seu intelecto. No entanto, mais uma
vez, a necessidade hipotética intervém, pois é certo que Deus vai criar o
melhor dos mundos, embora ele ainda tenha o poder para criar um mundo
possível menos perfeito. Esses possíveis são chamados por Gaudemar de
61
Cadernos Espinosanos XXIII
Wilson Alves Sparvoli
“matéria” lógica da criação (Gaudemar 1, pág. 33). O mundo existente
pode ser um desdobramento necessário da essência divina, porque isso
foi escolhido entre esses possíveis e então criado. Isso evita algumas
também parece aproximar Leibniz de Espinosa. Esse desdobramento é um
indesejadas conseqüências espinosistas, como o fim da contingência ou
desdobramento possível (Deus poderia não criar ou criar outro conjunto),
da possibilidade. Como sabido por todos, no espinosismo não existem
e mais do que desdobramento é uma criação mesmo, pois, diferente de
possíveis. Por outro lado, esse material lógico da criação também evita
Espinosa, em Leibniz existe uma pluralidade de substâncias, a criação
algumas conseqüências indesejáveis do cartesianismo. Cada um desses
institui uma alteridade substancial. Não se trata de modos brotando da
mundos foi criado segundo regras lógicas e de bondade pré-existentes
substância única, isto é, o deus-natureza.
(porém co-eternas a Deus). Não houve nem um voluntarismo despótico
Para entender melhor o ato de criação vamos recorrer a duas metáforas
(caso de Descartes) que cria a partir do nada com uma falsa liberdade
tiradas de Gaudemar. Os mundos possíveis são como as sombras que Ulisses
absoluta, nem houve um necessitarismo sem escolha, onde todos os
encontra no Hades: cada uma delas clama pelo sangue da oferenda imolada
possíveis se tornam existentes. O que houve foi uma criação realmente
(no entanto esse “clamor” não pode ser diferente da potência divina). Já o
livre, onde a vontade inclinada por considerações sobre o bem e a perfeição
mundo criado é como Lázaro ao ser ressuscitado. E o Ato criador nada mais
(regras pré-existentes à criação e co-eternas a Deus) escolheu o melhor
é do que um “Levanta e Anda!”. O que isso quer dizer?
dentre uma infinidade de possíveis não criados (matéria lógica).
Entretanto, essa “matéria” lógica da criação põe seus próprios
melhor dos mundos possíveis. E o ato criador dá ao mundo criado potência
problemas ao leibnizianismo. Por exemplo, Leibniz diz que os possíveis
e força para agir por si mesmo. Como Gaudemar nota, a existência não
exigem existir de acordo com o grau de perfeição que possuem. Isso seria
pode ser um predicado, pois os mundos possíveis são completos, não
um constrangimento para Deus? Um conjunto de possíveis por sua própria
lhes falta nenhuma determinação ou predicado. A Existência então vai
força e mérito forçaria sua passagem para a existência? Deus seria, segundo
ser outra coisa, ela vai ser uma espécie de autonomia, ou seja, concessão
as palavras de Gaudemar, um mero “guarda de fronteira”, e o melhor
de força própria. O mundo criado, assim como Lázaro, vai “levantar e
conjunto de possíveis um “estrangeiro com salvo-conduto”? Parece-me
caminhar” por conta própria. Sua ação não vai ser mais a ação de Deus,
que Gaudemar fornece uma boa resposta para essas questões. Os possíveis
vai ser uma ação própria que é análoga à potência de Deus, entretanto,
não criados não podem ter uma existência separada de Deus (por exemplo,
limitada, ao invés de infinita. Como nos diz Leibniz no Discurso de
no parágrafo 43 da Monadologia), isso anularia a criação: Deus cria a partir
Metafísica em 1686 e nos Princípios da Natureza e da Graça de 1711:
do nada, antes da criação não existe alteridade nenhuma. Não existe um
“A substância é um ser capaz de ação1”
outro ser incriado que possa pôr-se lado a lado com Deus. Ou seja, esses
Para consolidar essa leitura vamos nos dirigir brevemente ao texto
“De Ipsa Natura” publicado em 1698. Nesse texto, Leibniz vai contestar
algumas posturas ocasionalistas de um interlocutor, Christopher Sturm,
e oferecer uma interessante explicação da criação e da natureza.
possíveis não são diferentes do próprio Deus. Se eles têm uma pretensão
à existência, uma “força” para existir, essa força não pode ser diferente
da suma potência divina. Entretanto na criação essa força também não
62
Deus escolhe o clamor da sombra correta. Nesse caso, Tirésias é o
63
Cadernos Espinosanos XXIII
Wilson Alves Sparvoli
O Ocasionalismo foi uma corrente filosófica derivada do
definição de natureza, a outra sobre a aparente falta de potência (força)
cartesianismo, cujo principal expoente foi Malebranche. O próprio
no mundo criado. No entanto, o trecho que nos importa se encontra na
Leibniz chegou a flertar com essa concepção em seus textos de juventude,
resposta à primeira pergunta do texto. O que é a natureza? Ao responder
anteriores a 1686, mas, por fim, acabou se tornando um crítico dela.
essa questão, Leibniz não deixa de afirmar seus principais compromissos
O Ocasionalismo de Malebranche afirmava, entre outras coisas, que
referentes à física. Em primeiro lugar, tudo se faz mecanicamente na
nenhuma causa finita era capaz de produzir algum efeito, somente uma
natureza, o recurso a formas, almas, princípios hilárquicos, naturezas
causa infinita teria esse poder, logo, apenas Deus poderia ser a causa de
plásticas é inútil e supérfluo, a natureza é uma criação divina infinitamente
todo e qualquer efeito no mundo e os seres finitos seriam apenas as causas
complexa e com um funcionamento mecânico independente de auxílios.
ocasionais, daí o nome dessa corrente. Se em sua juventude Leibniz
Entretanto, o mecanicismo tem seus limites: se ele basta para explicar os
parecia aprovar esse recurso à divindade, em sua maturidade dirigiu
fenômenos naturais em suas particularidades, ele não basta para explicar os
algumas críticas a essa postura. Pois considerou um absurdo teológico
seus princípios gerais de funcionamento, daí o recurso a noções metafísicas,
Deus ter que intervir constantemente na criação. Esse fato, na visão de
como a da força (ação/paixão) e do axioma da igualdade entre o efeito
Leibniz, diminui a potência divina, pois Deus não teria sido diligente o
inteiro e a causa plena. A natureza é definida por Leibniz segundo a velha
suficiente para criar uma obra que fosse capaz de funcionar sozinha, sem
definição de Aristóteles: o princípio de movimento e de repouso.
auxílio externo constante. Além disso, nessa hipótese tudo na natureza
Sturm, no texto criticado por Leibniz, não deixa de reconhecer,
se explicaria por um milagre contínuo. Na definição de Leibniz, milagre
como convém a um físico cristão, que os movimentos ocorrem devido à
não é um fato raro e extraordinário, milagre é tudo àquilo que ultrapassa
força da lei eterna dada por Deus na criação e, mais uma vez com acerto,
as forças e capacidades das substâncias criadas:
também afirma que não são necessários novos atos ou mandatos de Deus
para cada ocasião em particular. Ambas as respostas convêm muito a um
“Pois me parece que a noção de milagre não consiste na
raridade, será dito para mim que Deus não age nisto senão
segundo uma lei geral e por conseqüência sem milagre. Mas
eu não concordo com essa conseqüência e eu creio que Deus
pode fazer regras gerais em relação aos milagres mesmos”
(Leibniz 7, pág. 161.)
pensador cristão, mas ambas encontram um pequeno obstáculo: o mandato
divino deu uma denominação puramente extrínseca ou forneceu uma lei
interna para todas as mudanças nas criaturas? (Leibniz 4, pág. 487)
Sturm parece não tomar posição nesse ponto de suma importância.
Na verdade, se Sturm adotar a primeira postura nada mais estará fazendo
do que adotar a postura ocasionalista e recaindo em todos os erros
Daí que a continuidade do milagre, seu caráter habitual, não o
próprios dela. Leibniz vai aprofundar um pouco mais seu pensamento: se
tornaria por isso menos milagre. A natureza nada mais seria que uma criação
o mandato não deixou marca nem denominação intrínseca, não é possível
capenga de um artífice incapaz de dotá-la de suficiente autonomia.
nenhum tipo de explicação razoável e distinta da realidade, pois tudo se
Leibniz criticou duas das posições de Sturm, uma delas acerca da
realizaria segundo um milagre, as coisas passariam a operar por saltos e
sem intermediários (Leibniz 4, pág. 488). Além disso, o próprio Deus se
64
65
Cadernos Espinosanos XXIII
tornaria impotente, pois sua vontade não teria sido capaz de produzir um
efeito perdurável. Muito pelo contrário, o mandato divino dotou o mundo
de eficácia e autonomia para se desenvolver por si próprio, não lhe sendo
Wilson Alves Sparvoli
leibniziana ela pode ser identificada?
Para realizar essa identificação vamos recorrer a dois importantes
opúsculos: O Specimem Dinamicum e o Exame da Física de Descartes.
necessária a constante manutenção de uma máquina defeituosa. Deus
Em ambos os textos citados, Leibniz faz uma catalogação dos
cria o mundo segundo certos desígnios e o conjunto da obra vai seguir
tipos de força existentes: uma primeira divisão é feita entre força ativa
infalivelmente esses desígnios por si mesmo. Por fim vamos citar um
e força passiva, e uma segunda divisão é feita entre força primitiva e
importante trecho do De Ipsa Natura:
força derivativa. Leibniz define todos esses conceitos com o objetivo de
superar muitos daqueles que considera erros cometidos por outras escolas
“Mas se a lei dada por Deus deixou algum expresso
vestígio seu nas coisas, se as coisas foram formadas deste
modo mediante um mandato de modo a tornarem-se aptas
a cumprir a vontade do mandatário, então deve concederse que as coisas encerram uma eficácia, forma ou força que
chegou a nós tradicionalmente com o nome de natureza”
(Leibniz 4, pág. 488).
Assim sendo, para evitar o que considerava erros ocasionalistas,
cartesianos e espinosanos, Leibniz definiu a natureza como essa forma ou
força capaz de cumprir por seu desenvolvimento no tempo a vontade do
mandatário. O decreto divino tornou as substâncias eficazes e ativas, ou
seja, segundo os textos citados do Discurso de Metafísica (parágrafo 8)
e dos Princípios da Natureza e da Graça (parágrafo 1), fez dos possíveis
substâncias, isso é, aquilo que é capaz de atividade.
Agora vamos explorar um pouco mais a fundo a ontologia
leibniziana. Já sabemos que a diferença entre um possível e um existente se
encontra na força: o possível não tem nenhuma ação independente da ação
divina (não é algo diferente de Deus, não existe alteridade antes da criação),
já o existente possui uma força própria (uma determinação intrínseca) pela
qual é capaz de seguir a vontade do criador, contudo com liberdade. Mas o
filosóficas. A extensão, definida por Descartes como o atributo essencial
da substância e, portanto, de onde se derivariam todos os seus modos, não
é capaz de explicar e derivar muitas das características que empiricamente
podemos verificar no mundo. Se em determinado momento de sua vida
Leibniz aderiu totalmente ao programa mecanicista vulgar, entretanto,
depois de constatar os limites desse programa, reformulou-o de maneira a
reabilitar alguns conceitos da antiga escolástica:
“Encantou-me a bela maneira destes de explicar
mecanicamente a natureza e reprovei com razão o método
daqueles que nada empregavam além das formas ou das
faculdades das quais nada se aprende. Mas depois, havendo
tentado aprofundar os princípios mesmos da mecânica para
fornecer uma explicação das leis da natureza conhecidas
por meio da experiência, apercebi-me que a consideração
da massa extensa não seria por si mesma suficiente e que
seria preciso empregar ainda a noção de força, a qual é
plenamente inteligível, ainda que pertença ao domínio da
metafísica.” (Leibniz 8, pág. 16)
“Descobri, então, que a natureza das formas substanciais
consiste na força” (Idem).
que precisamente é essa força, ou melhor, com que aspecto(s) da ontologia
66
67
Cadernos Espinosanos XXIII
Os princípios mesmos do mecanicismo não podem ser derivados
da mera massa extensa. Isso parece significar que algumas das leis da
natureza conhecidas empiricamente não podem ser explicadas a partir
da extensão, como, por exemplo, a conservação da quantidade de força
(mv2), mas, além disso, muitas das características dos corpos não podem
ser derivadas da extensão. Por exemplo, a inércia e a impenetrabilidade
dos corpos, ambas envolvem certa resistência que a extensão cartesiana,
indiferente, não pode fornecer. O próprio movimento também não poderia
ser derivado da extensão, daí os excessos ocasionalistas... Para explicar
todas essas noções, que envolvem certa atividade ou passividade, é
necessário recorrer a algum substrato dinâmico e não mais meramente
geométrico (como a extensão cartesiana), daí o recurso às forças. A ação e
a paixão das substâncias vão ser a base primitiva de onde essas noções vão
ser derivadas e explicadas, elas vão ser uma espécie de substrato ontológico
para as características dinâmicas renegadas pelo cartesianismo. São a força
passiva e a força ativa primitivas.
Mais do que simplesmente substrato, a ação e a paixão vão ser a
própria substância. Lembremos o primeiro parágrafo dos Princípios da
Natureza e da Graça: a substância é um ser capaz de ação. Elas nada mais
vão ser do que a forma e a matéria constitutivas da substância leibniziana:
“E a (força ativa) primitiva sem dúvida (que não é outra coisa
que a enteléquia primeira) corresponde à alma ou forma
substancial” (Leibniz 6, pág. 59).
“E sem dúvida a força primitiva de suportar ou resistir constitui
o mesmo que, se se interpretou corretamente, se denomina
nas escolas matéria primeira” (Leibniz 6, pág. 60).
Essas duas instâncias metafísicas vão constituir a substância
leibniziana: a famosa mônada:
68
Wilson Alves Sparvoli
“E este mesmo princípio substancial se chama alma nos
viventes, nos demais seres forma substancial e, enquanto
constitui com a matéria uma substância realmente única,
ou seja, uma unidade por si, forma o que chamo mônada”.
(Leibniz 4, pág. 493).
Pode parecer muito estranho que um ser, dito realmente uno, seja
composto por matéria e forma, mas nesse ponto sigo a interpretação de
Adams. Não se trata de dois componentes, mas antes de dois aspectos
que apenas por uma abstração podem ser separados. A substância criada
tem uma parcela de ser (ação), mas também por seu caráter de criatura
necessariamente tem sua parcela de nada (limitação constitutiva das
substâncias), a força ativa (ação) nunca se encontra separada da força
passiva (paixão). São como um ser e sua sombra, os dois lados de uma
mesma moeda absolutamente inseparáveis, apesar de poder haver, se é
licito recorrer ao vocabulário cartesiano, uma distinção de razão.
Assim sendo, podemos enfim verificar que as forças concedidas
por Deus ao melhor conjunto de possíveis nada mais são do que a própria
mônada leibniziana. Pode parecer um tanto óbvio dizer isso, mas a criação
transforma os possíveis em substâncias no sentido leibniziano, isto é, em
mônadas. Esse é o lugar ocupado pelas forças na ontologia leibniziana,
elas são a matéria e a forma das substâncias criadas.
Um último desafio poderia ser colocado: como conciliar matéria
e forma com a mônada que tem como apanágio perceber, ou antes, como
conceder matéria à mônada não extensa? Mais uma vez vou recorrer ao
livro de Adams. A matéria de que se trata aqui é uma matéria metafísica:
“As substâncias tem matéria metafísica ou potência, a
qual é passiva enquanto as substâncias expressam algo
confusamente, ativa enquanto expressam algo de maneira
distinta” (Leibniz 4, pág. 313)
69
Cadernos Espinosanos XXIII
Assim como a positividade das mônadas criadas pode ser
identificada com sua percepção clara do universo, a paixão/imperfeição
pode ser identificada com a percepção obscura. Por isso a matéria em questão
(paixão, limitação da substância) no limite vai poder ser entendida como
uma característica relacionada com a percepção confusa da substância, daí
seu caráter metafísico. Não se trata de reabilitar pela porta dos fundos a
extensão cartesiana escorraçada com alarde pela porta da frente.
Enfim, para concluir, gostaria apenas de dizer que a diferença entre
um possível e um existente é ao mesmo tempo muito simples e envolve
muitas mediações. Um possível existente nada mais é que uma substância,
ou seja, um conjunto de força ativa e passiva, matéria e forma, ao mesmo
tempo em que as articulações entre os diversos aspectos da substância
surgem como um complicador: a substância é força ativa e passiva, é
matéria e forma, e também percepção clara e confusa. Como conciliar e
articular todos esses aspectos? Sem dúvida nenhuma esse seria um assunto
para um outro trabalho um pouco mais longo que esse. Já o puramente
possível é uma essência em Deus que apesar de ter uma força para a
Wilson Alves Sparvoli
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. ADAMS, R. M. Leibniz. Determinist, Theist, Idealist. New York. Oxford University
Press. 1994.
2. GAUDEMAR, M. Leibniz, De la Puissance au Sujet. Paris. Vrin. 1994.
3. LEIBNIZ, G. W. Discurso de Metafísica in os Pensadores vol. Leibniz. São Paulo.
Abril Cultural. 1979.
4. LEIBNIZ, G. W. Escritos Filosóficos. Buenos Aires. Editorial Charcas. 1982.
5. LEIBNIZ, G. W. La Monadologie. Paris. 1990.
6. LEIBNIZ, G. W. Escritos de Dinamica. Madrid. Tecnos. 1991.
7. LEIBNIZ, G. W. Discours de Métaphysique et Correspondance avec Arnauld.
Paris. Vrin. 2000.
8. LEIBNIZ, G. W. Sistema Novo da Natureza e da Comunicação das Substâncias.
Belo Horizonte. UFMG. 2002.
NOTAS:
1. “Ora visto que as ações e paixões pertencem propriamente às substâncias
individuais” in Discurso de Metafísica, parágrafo 8. “A substância é um ser capaz de
Ação” (Leibniz 4, Pág. 597).
existência, não tem força própria, essa tendência para existir não é algo
diverso da potência divina, pois antes da criação não existe alteridade.
Possibles and existents in Leibniz
Abstract: In this article, we intend to discuss the distinction between a possible
being and an existing being, in Leibniz. In order to this, we will use as support
reflections on the comments of Gaudemar Martine and Robert Adams, in their
books. We intend to show that a possible is something that doesn’t have its own
force. Although every possible demands existing, this force is nothing but the
divinity’s force itself; there is no otherness before creation. Differently, an existing
has its own strength and autonomy.
Keywords: Keywords: Leibniz, Existing, Possible, Force, Monad.
70
71
A concepção cartesiana da liberdade
nos Princípios da Filosofia
Mariana de Almeida Campos*
Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar uma resposta a dois problemas presentes
na teoria cartesiana da liberdade tal como é desenvolvida nos Princípios da Filosofia.
O primeiro refere-se às diferenças entre a versão latina e a tradução francesa dos
Princípios no que concerne à definição de liberdade. O segundo refere-se à controvérsia,
existente no contexto da literatura secundária, sobre se a teoria cartesiana da liberdade
desenvolvida nos Princípios seria distinta daquela desenvolvida nas Meditações
Metafísicas. Como pano de fundo desta discussão encontra-se um problema clássico,
a saber, o problema da relação entre o que parecem ser duas concepções de liberdade:
liberdade como livre-arbítrio e liberdade como espontaneidade. Tendo em vista
esse problema, é nossa pretensão também responder, sobre como, precisamente,
deveríamos compreender a relação entre essas duas concepções na teoria da liberdade
desenvolvida por Descartes nos Princípios.
Palavras-chave: Descartes, liberdade, livre-arbítrio, espontaneidade, vontade.
Introdução
Descartes começou a trabalhar nos Princípios da Filosofia no início
de 1641, logo após a publicação de suas Meditações Metafísicas. Nesse
livro, ele pretendia publicar o resultado de suas investigações sob a forma de
um manual, destinado a substituir os que existiam à época. Originalmente
concebido como uma exposição sistemática de sua filosofia, cujo objetivo
era retomar as teses que haviam sido expostas nas Meditações, Descartes
não chegou a concluir suas últimas seções, referentes aos seres vivos e
ao homem, permanecendo, assim, inacabado. Trataremos aqui somente da
Parte I, intitulada “Dos princípios do conhecimento humano”, que, junto
* Doutoranda do PPGFIL – UERJ e bolsista CAPES.
73
Cadernos Espinosanos XXIII
Mariana de Almeida Campos
com o começo da Parte II, contém a parte propriamente filosófica do livro,
defensores de uma evolução na doutrina cartesiana da liberdade. Por outro
e é onde podemos encontrar a teoria da liberdade. Conforme a uma ordem
lado, há autores que negam que tenha havido entre as Meditações e os
constante nos escritos de Descartes, os artigos sobre a liberdade aparecem
Princípios tal evolução. Dentre esses autores, analisaremos a posição
após os artigos sobre a dúvida (Parte I, artigo I a III e VI), sobre o cogito
de Jean Laporte, em seu artigo La liberté selon Descartes, e de Anthony
(Parte I, artigo VII a XIII) e sobre as provas da existência de Deus (Parte
Kenny, em seu artigo Descartes on the will.
I, artigo XIV e seguintes). Assim, os artigos sobre a teoria do erro e sobre
a teoria da liberdade são os seguintes: XXXI a XLIV.
O original latino dos Princípios foi publicado em 1644; já a tradução
Parte 1 - Diferenças entre a versão latina e a versão francesa
dos Princípios da Filosofia
francesa consta de 1647. Embora a versão francesa tenha sido revista pelo
próprio Descartes, ela contém omissões e, sobretudo, acréscimos ao texto
Segundo Michelle Beyssade, em seu artigo Des Principia
original. Michelle Beyssade, em seu artigo Des Principia aux Principes:
aux Principes: variations sur la liberté, a relação entre os Principia
variations sur la liberté, de 1994, apresenta uma detalhada classificação
Philosophiae de 1644 e os Principes de la Philosophie de 1647 não é a
das diferenças existentes entre essas duas versões. Dentre elas, há uma em
de uma pura e simples tradução. Segundo ela, a versão francesa contém
particular que na sua visão parece revelar uma mudança de pensamento a
inúmeras diferenças em relação ao texto original. Neste artigo não nos
respeito da liberdade. Assim, a hipótese de uma mudança de pensamento
propomos a analisar todas essas diferenças, mas apenas uma, em particular,
é levantada a partir da comparação entre o que é dito na versão latina e
que na visão da autora é mais importante do que as demais pelo fato de que
na versão francesa do artigo XXXVII da primeira parte dos Princípios.
parece representar dois pensamentos diferentes a respeito da liberdade. A
Segundo Michelle Beyssade, a diferença entre as duas versões desse artigo
diferença em questão se encontra no artigo XXXVII da Primeira Parte dos
traz à tona o problema da relação entre o que parecem ser duas diferentes
Princípios. Vejamos o que diz a versão latina:
concepções de liberdade: liberdade como “poder dos contrários” e
liberdade como poder de sermos determinados em nossos juízos por idéias
claras e distintas. Na primeira parte deste artigo, pretendemos investigar se
a hipótese de uma mudança conceitual entre os Principia e os Principes a
respeito da liberdade é coerente dentro do sistema cartesiano. Na segunda
parte, mostraremos que há ainda uma outra controvérsia, no contexto da
literatura secundária, sobre se os Princípios marcam uma mudança em
relação às Meditações; essa é a tese defendida por Etienne Gilson em seu
livro La liberté chez Descartes et la théologie, e por Ferdinand Alquié
em seu livro La découverte métaphysique de l’homme chez Descartes,
74
“Mas que a vontade se estenda o mais amplamente possível,
isso também convém à sua natureza; e é, em certo sentido,
uma suma perfeição no homem que ele aja pela vontade,
isto é, livremente, sendo assim de um certo modo peculiar
o autor de suas ações e por elas merecendo louvor. Pois
não se louvam os autômatos por exibirem com precisão
todos os movimentos para os quais foram construídos,
porque necessariamente os exibem assim; mas se louva o
seu artífice por havê-los fabricado tão precisos, porque não
os fabricou necessária, mas, sim, livremente. Pela mesma
razão, deve-se de certo pôr mais em nosso crédito abraçar
75
Cadernos Espinosanos XXIII
a verdade, quando a abraçamos, porque é voluntariamente
que o fazemos, do que se não pudéssemos deixar de abraçála” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXVII, 53)1.
Michelle Beyssade observa que a versão latina deste artigo é um
dos textos em que, para caracterizar a liberdade, Descartes afirma mais
fortemente o “poder dos contrários”. Esse poder é reconhecido como
um aspecto de perfeição no homem, como uma suma perfeição, e como
condição do seu mérito, por intermédio da idéia de responsabilidade
presente no termo “autor”. Além disso, ele é considerado como oposto à
necessidade do movimento dos autômatos. Segundo a autora, essa oposição
está em harmonia com o que é dito no artigo XXXIX, onde a liberdade
também é caracterizada como um “poder dos contrários”: “Mas para que
haja liberdade em nossa vontade, e [que], a nosso arbítrio, possamos
assentir ou não assentir” (Descartes 4, VIII, 19, Descartes 6, XXXIX, 55);
e com a associação entre “liberdade” e “indiferença” no artigo XLI: “[...]
estamos de tal modo cônscios da liberdade e da indiferença que está em
nós” (Descartes 4, VIII, 29; Descartes 6, LXI, 57). Assim, a caracterização
da liberdade na versão latina do artigo XXXVII como um “poder dos
contrários” está em harmonia com o que é dito na versão latina dos artigos
XXXIX e XLI.
Porém, a versão francesa do artigo XXXVII é muito diferente
do original latino. Como observa Michelle Beyssade, o trecho em que
a hipótese de uma mudança de pensamento pode ser mais fortemente
levantada é o seguinte:
“Igualmente devemos nos atribuir algo mais pelo fato de
escolhermos o que é verdadeiro, quando o distinguimos
do falso, graças a uma determinação da nossa vontade do
que se fossemos determinados e coagidos por um princípio
externo” (Descartes 4, IX, 41. Descartes 5, III, 112-113)2.
76
Mariana de Almeida Campos
Como vimos na versão latina do artigo XXXVII, a
liberdade é caracterizada como um “poder dos contrários”. Mas na versão
francesa, de acordo com o trecho citado acima, a liberdade é considerada
como uma determinação interior não constrangida. Face a essa diferença
entre as duas versões do artigo XXXVII, Michelle Beyssade se pergunta
se não haveria aí o indício de uma mudança no pensamento de Descartes
sobre a liberdade. Segundo ela, essa diferença corresponde à diferença
entre as duas caracterizações da liberdade que se encontram na Quarta
Meditação separadas pela expressão “ou antes”: liberdade como poder
dos contrários e liberdade como determinação interna. Assim como
há diferenças entre as duas versões dos Princípios, também é possível
observar uma variação entre o que Descartes escreve na versão latina das
Meditações sobre a liberdade e o que ele escreve na versão francesa. Na
versão latina, a liberdade se caracteriza por uma determinação interna;
neste caso a expressão “ou antes” tem como função excluir da definição
essencial de liberdade a caracterização da liberdade como um “poder
dos contrários”. Mas, na versão francesa, esse poder parece não ser mais
explicitamente excluído da definição essencial de liberdade. Na verdade,
Descartes não se pronuncia sobre essa questão, pois o que de fato ele exclui
da definição essencial de liberdade é o estado de indiferença negativa
resultante de uma carência de conhecimento. Na versão francesa da Quarta
Meditação, a liberdade em seu mais alto grau também se caracteriza por
uma adesão irresistível às idéias claras e distintas, mas, diferentemente
da versão latina, o “poder dos contrários” não é explicitamente excluído
da definição essencial de liberdade. É uma tese defendida por Michelle
Beyssade em seu famoso artigo sobre a Quarta Meditação, Descartes’s
Doctrine of Freedom: Differences between the French and Latin Texts of
the Fourth Meditation, que, após a publicação das Meditationes, há nos
77
Cadernos Espinosanos XXIII
Mariana de Almeida Campos
escritos de Descartes um maior reconhecimento do “poder dos contrários”
essa visão, não há dois pensamentos diferentes sobre a liberdade, mas duas
(Beyssade 2, p. 205). Segundo ela, esse maior reconhecimento pode ser
maneiras diferentes de expressar um mesmo pensamento: “A divergência
observado pelo que é dito sobre a liberdade na carta a Mesland de 1645 e
das variações se opõe à idéia de uma mudança de doutrina” (Beyssade
na versão francesa das Meditações de 1647. Porém a explicação sugerida
3, p.46). Para sustentar essa tese, a autora mostra que na versão francesa
pela autora para resolver o problema da diferença entre as duas versões
dos Princípios podemos encontrar afirmações em artigos posteriores ao
das Meditações, a saber, de que há um maior reconhecimento do “poder
artigo XXXVII que não revelam uma negação do “poder dos contrários”,
dos contrários” na caracterização da liberdade após 1641, não serve para
afirmado na versão latina desse artigo, e que, além disso, atenuam a
resolver o problema da diferença entre as duas versões dos Princípios, e
diferença que destacamos anteriormente entre as duas versões do artigo
mais especificamente a diferença entre as duas versões do artigo XXXVII
XXXVII. Vejamos o que diz Descartes no artigo XXXIX dos Principes:
da Primeira Parte, que acabamos de apresentar. Pois, se nos Principia a
liberdade é caracterizada como envolvendo um “poder dos contrários”,
nos Principes ela é caracterizada como uma determinação interna. É
compreensível, como argumenta Michelle Beyssade, que em 1644, data
da versão latina dos Princípios, Descartes considere a liberdade como um
“poder dos contrários”. No período de redação dos Principia Descartes
apresenta formulações diferentes daquelas que encontramos em 1641, pois
ele tenta evitar as objeções endereçadas às Meditationes (BEYSSADE,
M., 1996, p. 44). Mas como compreender essa nova acentuação do
caráter interno da determinação na versão francesa dos Princípios? Como
explicar ainda o fato de que essa versão é publicada no mesmo ano da
versão francesa das Meditações, mas apresenta uma caracterização da
liberdade que se aproxima do ponto de vista das Meditationes de que as
Méditations se distinguem? Há ou não aí o indício de uma mudança na
doutrina cartesiana da liberdade?
Michelle Beyssade defende a tese de que não há uma mudança no
pensamento cartesiano sobre a liberdade no período que se estende entre
as duas versões dos Princípios (Beyssade 3, p. 49). A autora afirma que,
embora a versão francesa dos Princípios seja diferente da versão latina,
essas diferenças não negam o que o texto latino afirmava. De acordo com
78
“Quanto ao mais, é tão evidente que possuímos uma vontade
livre, que pode ou não dar o seu consentimento quando bem
lhe aprouver, que isso pode ser considerado uma das nossas
noções mais comuns. Tivemos anteriormente uma prova
bem clara: pois, ao mesmo tempo em que duvidávamos
de tudo, e que supúnhamos até que aquele que nos criou
empregava o seu poder para nos enganar de todas as
maneiras, apercebíamos em nós uma liberdade tão grande
que podíamos evitar crer naquilo que não conhecíamos
ainda perfeitamente bem. Ora, aquilo que apercebíamos
distintamente e de que não podíamos duvidar durante
uma suspensão tão geral é tão certo quanto qualquer outra
coisa que possamos jamais conhecer” (Descartes 4, IX, 40.
Descartes 5, III, 112).
Como vimos na versão francesa do artigo XXXVII, Descartes
caracteriza a liberdade como uma determinação interna. Porém, no artigo
XXXIX dessa mesma versão, ele afirma explicitamente o “poder dos
contrários”, como mostra o trecho que acabamos de citar. Embora esse
poder seja afirmado, a seqüência do artigo nos mostra que seu exercício
não é absoluto, mas se limita aos casos em que não somos plenamente
esclarecidos por razões, isto é, aos casos em que experimentamos algum
79
Cadernos Espinosanos XXIII
grau de dúvida. Desta forma, a versão francesa do artigo XXXIX atenua,
sem negar, a afirmação que é feita na versão francesa do artigo XXXVII,
a saber, de que a liberdade consiste numa determinação interna. De
acordo com o que foi dito, podemos pensar que a versão francesa dos
Princípios admite, por um lado, a caracterização da liberdade como
uma determinação interna, nos casos em que estamos esclarecidos por
razões, como mostra o artigo XXXVII; e, por outro lado, a caracterização
da liberdade como um “poder dos contrários”, nos casos em que
experimentamos algum estado negativo de indiferença, ou seja, algum
grau de dúvida, como mostra o artigo XXXIX. Assim, numa mesma
versão é possível compatibilizar as noções de determinação interna e de
“poder dos contrários” na caracterização da liberdade.
De modo correlato, como observa Michelle Beyssade, o artigo
XLIII também é um texto que atenua a diferença entre as duas versões
do artigo XXXVII. Vejamos respectivamente o que diz a versão latina e
a versão francesa desse artigo:
“É certo, porém, que jamais viremos a tomar o falso pelo
verdadeiro se dermos assentimento somente àquilo que
percebermos clara e distintamente. Digo que é certo porque,
como Deus não é enganador, a faculdade de perceber que nos
deu não pode tender ao falso, nem tampouco a faculdade de
assentir, quando se estende somente àquilo que é percebido
claramente. E, ainda que de maneira alguma o provássemos,
isso está de tal sorte impresso pela natureza dos ânimos de todos
[nós] que, todas as vezes que percebemos algo claramente, lhe
damos espontaneamente o nosso assentimento e de nenhum
modo podemos duvidar que não seja verdadeiro” (Descartes
4, VIII, 21; Descartes 6, XLIII, p. 59).
“Mas é certo que nunca tomaremos o falso pelo verdadeiro
enquanto julgarmos apenas o que percebemos clara e
80
Mariana de Almeida Campos
distintamente, porque, não sendo Deus enganador, a
faculdade de conhecer que nos deu não poderia falhar,
nem mesmo a faculdade de querer, quando não estendemos
para além do que conhecemos. E mesmo que tal verdade
não tivesse sido demonstrada, somos tão naturalmente
inclinados a dar o nosso consentimento às coisas que
apercebemos manifestamente que não poderíamos duvidar
delas enquanto as percebemos dessa maneira” (Descartes 4,
IX, 43; Descartes 5, III, 116).
Como argumenta Michelle Beyssade, se na versão latina do artigo
XXXVII Descartes caracteriza a liberdade como um poder dos contrários,
no artigo XLIII dessa mesma versão ele considera a dúvida sobre uma
percepção clara e distinta como absolutamente impossível. Isso significa
que, embora esse poder seja afirmado no artigo XXXVII, mais adiante no
artigo XLIII Descartes afirma que seu exercício não é absoluto, pois diante
de uma percepção clara e distinta não temos o “poder dos contrários”. Se na
versão francesa do artigo XXXVII Descartes caracteriza a liberdade como
uma determinação interna, no artigo XLIII dessa mesma versão ele omite a
expressão latina “nullo modo”, que tornava a dúvida sobre uma percepção
clara e distinta impossível, e acrescenta uma frase que não havia no texto
latino. Essa adição da versão francesa atenua a tese da impossibilidade
de duvidarmos das percepções claras e distintas, na medida em que ela
restringe essa impossibilidade ao momento da presença da percepção
manifesta e admite ser possível duvidarmos dessas percepções quando
a atualidade se esvai. Assim, a versão francesa desse artigo, sem entrar
em contradição com a versão latina, que afirma que a dúvida sobre uma
percepção clara e distinta é impossível, indica como se exerce o “poder
dos contrários” submetendo-o às condições de desatenção características
do pensamento humano.
Esses dois artigos que acabamos de analisar atenuam a diferença
81
Cadernos Espinosanos XXIII
Mariana de Almeida Campos
entre as duas versões do artigo XXXVII, que poderia ser considerada
do pensamento tomista, representa uma crítica à doutrina molinista. Nos
como um indício de uma mudança na doutrina cartesiana da liberdade.
Princípios, ao negar a crítica da liberdade de indiferença e afirmar que
As modificações observadas nesses artigos posteriores, com base no
“indiferença” e “liberdade” são sinônimos – “estamos de tal modo cônscios
estudo de Michelle Beyssade, nos mostram que a versão francesa do artigo
da liberdade e da indiferença que está em nós” (Descartes 4, VIII, 20;
XXXVII não nega o que Descartes afirma na versão latina desse texto, mas
Descartes 6, XLI, 57) – Descartes estaria, na visão de Gilson, claramente se
apresenta uma formulação diferente sobre a liberdade. Essa diferença de
afastando de sua posição anterior e aderindo à doutrina molinista. Segundo
formulação a respeito da liberdade entre as duas versões dos Princípios
o comentador, essa mudança no pensamento cartesiano sobre a liberdade
pode ser explicada, como sugere Michelle Beyssade, pelo fato de que
pode ser explicada pela mudança que então havia tomado a controvérsia
ao reler o artigo XXXVII, na ocasião de sua tradução, Descartes estava
sobre a graça, e pela preocupação de Descartes em assegurar o sucesso de
mais preocupado em mostrar como se manifesta a perfeição da liberdade
sua filosofia mediante a aprovação dos jesuítas (Gilson 7, p.319).
na adesão da verdade do que em afirmar o “poder dos contrários”, que
Gilson argumenta que, no momento da redação dos Princípios,
ele afirma nos artigos posteriores dessa mesma versão (Beyssade 3, p.
Descartes se encontrava decepcionado pelo fato de não haverem recebido
39-41). De acordo com essa interpretação, Descartes teria preferido, na
seus Meteoros com bastante consideração e por não terem introduzido
versão francesa, ressaltar um outro aspecto da liberdade, a saber, a adesão
esse texto no ensino, e começa então a redigir os Princípios, esperando
da vontade às idéias claras e distintas. Assim, acreditamos com Michelle
a aprovação da Sorbonne de sua obra anterior, as Meditações. Sem uma
Beyssade que não há uma mudança na teoria cartesiana da liberdade entre
aprovação oficial dos doutores da Sorbonne, diz Gilson, Descartes sabia
os Principia e os Principes, mas duas ênfases distintas de uma mesma
que seria imprudente entrar em guerra aberta com a Companhia de
concepção geral (Beyssade 3, p. 49).
Jesus, mas totalmente diferente seria a sua posição na luta se ele pudesse
demonstrar aos seus adversários que a física que eles haviam recusado
Parte 2 - Interpretações contra e a favor da tese de que os Princípios
da Filosofia marcam uma mudança em relação à doutrina da
liberdade exposta nas Meditações Metafísicas
decorria necessariamente dos princípios metafísicos que a Sorbonne havia
aprovado. No entanto, as Meditações são recusadas pelos doutores da
Sorbonne. Diante desse fato, Descartes renuncia ao desejo que ele tinha
de refutar o curso de filosofia difundido nos colégios jesuítas. Para que a
2.1. A posição de E. Gilson
filosofia cartesiana triunfasse e substituísse a de Aristóteles, era preciso
que Descartes colocasse a Companhia de Jesus a seu favor; pois somente
82
Gilson defende a tese de que os Princípios representam uma mudança
os jesuítas com seus colégios potentes e suas numerosas ligações nas
na doutrina cartesiana da liberdade em relação às Meditações (Gilson 7, p.
universidades poderiam garantir o triunfo rápido da filosofia cartesiana.
318). Ele considera que a doutrina da liberdade que é desenvolvida nas
Segundo Gilson, Descartes estava consciente disso e, ao escrever os
Meditações, apoiada na crítica da liberdade de indiferença sob a influência
Princípios, tentava conciliar o seu pensamento com o pensamento dos
83
Cadernos Espinosanos XXIII
Mariana de Almeida Campos
jesuítas: “a história dos Princípios é dominada inteiramente pela preocupação
redação das Meditações, Descartes ainda está ligado ao livro de Gibieuf,
de Descartes com os jesuítas” (Gilson 7, p. 332). Na visão de Gilson, é em
livro pelo qual ele confessa uma profunda estima. Gilson chama a atenção
função da não aprovação dos Meteoros e das Meditações que Descartes
para o fato de que entre 1641 e 1644, isto é, no intervalo que separa as
evita introduzir nos Princípios tudo o que pudesse ser considerado como
Meditações dos Princípios, um fato novo se produz: por via de evolução
uma crítica das doutrinas teológicas em destaque na Companhia. Assim,
o tomismo acabava por culminar no jansenismo. O ano de 1640 é o ano
Descartes exclui dos Princípios a crítica da liberdade de indiferença,
em que aparece o Augustinus de Jansenius, em que ele acusa os jesuítas
pois essa crítica atingiria a Companhia de Jesus inteira, que estava muito
de pelagianismo e de semipelagianismo. Diante dessa acusação os jesuítas
engajada na querela da graça e muito sensível sobre essa questão.
não tardam em combater o jansenismo.
A escamoteação da crítica da liberdade de indiferença nos
Como observa Gilson, entre 1641 e 1644 a mudança que toma
Princípios ocorre, além disso, segundo Gilson, em função das circunstâncias
a controvérsia da graça é cada vez mais desfavorável para o jansenismo.
particulares em que Descartes se encontrava, circunstâncias essas que se
Os tomistas e oratorianos também manifestavam alguma inquietude. Eles
ligavam à publicação do livro de Gibieuf, De libertate, em 1630 (Gilson
temiam que os jesuítas, vendo a ocasião propícia para comprometer todos
7, p.321). Nesse mesmo ano, Descartes, tendo exposto a Mersenne suas
os seus adversários, tomassem uns pelos outros – jansenistas, tomistas e
reflexões sobre a liberdade divina, toma conhecimento da aparição do livro
oratorianos. Assim, em sua análise Gilson mostra que, depois da publicação
de Gibieuf que acabara de ser publicado. Em outubro de 1631 Descartes
das Meditações, o sentido e a orientação de certas doutrinas haviam mudado,
lê esse livro e demonstra prazer nessa leitura; as idéias de Gibieuf o
os jesuítas triunfavam no momento da redação dos Princípios, e a doutrina
satisfazem. Naquele ano, a querela que esse livro iria provocar ainda
de Molina, durante muito tempo suspeita, era agora a única que não era
não havia começado; é o momento em que os jesuítas vão a Roma para
evidentemente jansenista. O tomismo não tinha mais como se defender de
tentar condená-lo, mas o livro ainda não é conhecido pelo grande público.
Molina, mas ele se esforçava para não ser confundido com o jansenismo.
Descartes deixa de se corresponder com Mersenne sobre a questão da
Gibieuf era um dos mais seriamente comprometidos. Gilson defende a tese
liberdade e, de uma maneira geral, parece espaçar suas correspondências
de que nos Princípios Descartes abandona a posição da Quarta Meditação
a tal ponto que, durante o período que vai do fim de 1631 a janeiro de
ao tomar conhecimento da controvérsia jansenista e verificar que a sua
1637, encontramos apenas quatorze cartas a Mersenne, cartas essas
doutrina coincidia com a daquela escola, o que o tornaria suspeito aos
consagradas às discussões científicas ou à condenação de Galileu em
jesuítas (Gilson 7, p. 373).
1634, que preocupava Descartes. O ano de 1637 marca uma retomada de
Descartes da sua correspondência com Mersenne, mas chegamos em 1640,
2.2. A posição de F. Alquié
data da redação definitiva das Meditações, sem que ele tenha escrito nada
84
sobre a liberdade humana. O Discurso do Método apenas toca na questão
Essa mesma posição de uma evolução entre as Meditações e os
da liberdade sem que Descartes tome algum partido. Em 1640, data da
Princípios na teoria cartesiana da liberdade será mais tarde defendida
85
Cadernos Espinosanos XXIII
Mariana de Almeida Campos
por Alquié, embora sob um ponto de vista diferente. Enquanto Gilson
“Ora, para julgar requer-se certamente o entendimento,
porquanto nada podemos julgar de uma coisa que de nenhum
modo percebemos. Mas, também se requer a vontade, para
que o assentimento seja concedido à coisa de algum modo
percebida” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXIV, 51).
considera que a razão da mudança na teoria cartesiana da liberdade diz
respeito a uma atitude oportunista de Descartes em tentar ganhar o apoio
dos jesuítas para poder difundir a sua filosofia nas escolas jesuíticas, Alquié
considera que essa mudança diz respeito a um maior reconhecimento de
Descartes do problema moral. Segundo ele, nos Princípios a reflexão
sobre a liberdade se torna moral, o problema da responsabilidade aparece
e a indiferença entendida como poder de escolha aparece como sinônimo
Porém, a vontade é mais extensa do que o entendimento:
de liberdade. De acordo com Alquié, nesse texto, haveria uma insistência
“E certamente a percepção do entendimento não se estende
senão às poucas coisas que lhe são oferecidas e é sempre
muito limitada. A vontade, porém, pode de algum modo ser
dita infinita” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXV, 52).
por parte de Descartes da noção de mérito e a introdução da possibilidade
de escolhermos o mal e o falso mesmo em presença do bem e da verdade
(Alquié 1, p. 287).
Temos assim ao menos dois grandes comentadores e estudiosos
da filosofia cartesiana que defendem a tese de uma evolução entre as
A vontade é infinita na medida em que só depende dela querer:
Meditações e os Princípios. Vejamos agora o que dizem aqueles que
“Mas que a vontade se estenda o mais amplamente possível,
isso também convém à sua natureza; e é em certo sentido,
uma suma perfeição no homem que ele aja pela vontade,
isto é, livremente, sendo assim de um certo modo peculiar o
autor de suas ações e por elas merecendo louvor” (Descartes
4, VIII, 18; Descartes 6, XXXVII, 53).
defendem a tese de uma não-evolução. Dentre os defensores de uma nãoevolução podemos citar alguns autores tais como J.-M. Beyssade e M.
Gueroult entre outros, mas neste artigo analisaremos somente as posições
de J. Laporte e A. Kenny, que nos parecem mais esclarecedoras para o
problema que nos propomos analisar.
2.3 A posição de J. Laporte
Segundo Laporte, o problema da liberdade nos Princípios é
introduzido da mesma maneira que na Quarta Meditação, em relação ao erro
e para mostrar que Deus não pode ser a causa dos nossos erros. Segundo
ele, a argumentação segue a mesma ordem das Meditações. Descartes
mostra que o erro reside no juízo e que o juízo depende do concurso de
duas faculdades: o entendimento que percebe e a vontade que consente.
86
Há, portanto, desproporção entre o entendimento e a vontade. E o
erro ocorre porque não é necessário para darmos o nosso consentimento,
isto é, para fazermos um juízo, que tenhamos um conhecimento inteiro
e perfeito, mas basta termos algum conhecimento, mesmo que ele seja
obscuro e confuso:
“Não se requer, porém (ao menos para julgar de um modo
qualquer), uma íntegra e omnímoda percepção da coisa,
pois podemos assentir a muitas coisas que não conhecemos
87
Cadernos Espinosanos XXIII
senão de maneira muito obscura e confusa” (Descartes 4,
VIII, 18; Descartes 6, XXXIV, 51).
Erramos quando não temos um conhecimento certo sobre aquilo
que julgamos:
Descartes Descartes6, XLIII, 59). Para Laporte, a liberdade é antes de
tudo aquilo que nos torna dignos de louvor ou vitupério, e temos ou não
temos mérito em agir porque somos mestres ou autores de nossas ações
e porque não somos nem determinados nem constrangidos por nenhum
princípio externo (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXVII, 53).
“Quando, porém, percebemos algo, é manifesto que não
nos enganamos, desde que absolutamente nada afirmemos
ou neguemos dele. Do mesmo modo, tampouco nos
enganamos, quando afirmamos ou negamos só aquilo que
clara e distintamente percebemos dever ser assim afirmado
ou negado. Mas só [nos enganamos] quando (como sói
acontecer), ainda que não percebamos algo corretamente,
não obstante julgamos sobre isso” (Descartes 4, VIII, 17;
Descartes 6, XXXIII, 51).
Se a percepção obscura e confusa determinasse por ela mesma
o assentimento, o erro seria inevitável e Deus, autor de nossa natureza,
não poderia ser justificado. É preciso então que diante de uma percepção
obscura e confusa possamos dar nosso consentimento, mas que possamos
também refutá-lo. Isso é justamente o que ocorre na experiência da
dúvida: “experimentávamos, com efeito, existir em nós essa liberdade
[que é tal] que podíamos nos abster de crer naquelas coisas que não eram
inteiramente certas e averiguadas” (Descartes 4, VIII, 19; Descartes 6,
XXXIX, 55). Mas, com a experiência da dúvida, aprendemos também
que há coisas de que não podemos duvidar, a saber, aquelas – das quais
a primeira é o cogito – que percebemos clara e distintamente. Diante
da evidência atual somos levados a crer em virtude de uma inclinação
que é irresistível: “Todas as vezes que percebemos algo claramente
lhe damos espontaneamente o nosso assentimento e de nenhum modo
podemos duvidar que não seja verdadeiro” (Descartes 4, 21, VIII;
88
Mariana de Almeida Campos
Segundo o autor, a liberdade nos Princípios, tal como nas Meditações,
é essencialmente a faculdade de se decidir por si mesmo, mas,
acidentalmente, ela se acompanha de indiferença ou de indeterminação
em relação a tudo o que não é claramente conhecido (Laporte 9, p. 128).
Quanto à caracterização da indiferença negativa como o mais baixo grau
de liberdade que não se encontra explicitamente nos Princípios, Laporte
argumenta que podemos encontrar expressões, equivalentes ao que diz
Descartes na Quarta Meditação, que mostram que a indiferença é a fonte
do erro e que o erro é um defeito no uso da nossa liberdade (ver artigos
XXXIII, XXXIV e XXXIX citados anteriormente). Assim, para Laporte
não há uma mudança conceitual entre os Princípios e as Meditações.
2.4. A posição de A. Kenny
Para Kenny os Princípios confirmam a doutrina encontrada nas
Meditações (Kenny 8, p.132-159). Mas ele chama a atenção para o fato
de que, se lermos o artigo XXXVII dos Princípios sem atenção, podemos
ter a impressão de que Descartes mudou de idéia sobre a liberdade. Pois
na última frase desse artigo a liberdade caracterizada como poder dos
contrários parece permanecer no assentimento às idéias claras e distintas:
“Pela mesma razão, deve-se de certo pôr mais em nosso crédito abraçar a
verdade, quando a abraçamos, porque é voluntariamente que o fazemos,
do que se não pudéssemos deixar de abraçá-la” (Descartes 4, VIII, 18;
Descartes 6, XXXVII, 53). Contudo, Kenny afirma que essa leitura é apenas
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Cadernos Espinosanos XXIII
Mariana de Almeida Campos
aparente e superficial, uma vez que a impossibilidade de se suspender o
evidência presente nas Meditações se mantém intacta nos Princípios,
juízo diante de uma idéia clara e distinta é explicitamente afirmada no
como podemos conferir no artigo LXIII – “todas as vezes que percebemos
artigo LXIII: “todas as vezes que percebemos algo claramente, lhe damos
algo claramente, lhe damos espontaneamente o nosso assentimento e de
espontaneamente o nosso assentimento e de nenhum modo podemos
nenhum modo podemos duvidar que não seja verdadeiro” (Descartes 4,
duvidar que não seja verdadeiro” (Descartes 4, VIII, 21; Descartes 6,
IX, II, 25. Descartes 5, III, 116) –, o que vai contra a posição de Alquié.
XLIII, 59). Desta forma, Kenny, tal como Laporte, defende a tese de que
Não há a nosso ver nenhuma mudança conceitual da parte de Descartes em
a doutrina das Meditações a respeito do problema da liberdade se mantém
relação à teoria da liberdade humana entre as Meditações e os Princípios,
intacta nos Princípios.
como defendem Gilson e Alquié. A interpretação de Laporte, que segue
passo a passo os artigos concernentes à teoria da liberdade nos Princípios,
Considerações finais
de modo a mostrar que eles estão em coerência com o que é dito na Quarta
Meditação, é extremamente enriquecedora e mostra que em ambos os textos
Na segunda parte deste artigo, apresentamos duas linhas
Descartes diz a mesma coisa sobre a liberdade. A interpretação de Kenny
interpretativas sobre a teoria cartesiana da liberdade: a primeira concernente
segue a mesma linha da interpretação de Laporte e, embora reconheça
aos defensores da tese de uma evolução entre as Meditações e os Princípios,
que uma leitura apressada do artigo XXXVII possa nos levar a pensar
tais como Gilson e Alquié, a segunda concernente aos defensores de uma
numa mudança no pensamento cartesiano, não afirma que há de fato uma
não-evolução, tais como Laporte e Kenny. Em relação à interpretação
mudança, mas, ao contrário, acaba por reconhecer que uma tal leitura seria
proposta por Gilson, acreditamos que os elementos externos ao sistema
aparente e superficial, uma vez que ele afirma que a teoria cartesiana, tal
cartesiano, que ele utiliza para defender a tese de uma evolução, tais
como é desenvolvida nas Meditações, se mantém intacta nos Princípios.
como o interesse de Descartes em ver aprovada a sua filosofia nos meios
De acordo com o que foi dito, temos os seguintes resultados:
teológicos e a mudança de direção tomada pela controvérsia da graça, são
- Em 1644, na versão latina dos Princípios, o “poder dos contrários”
inconsistentes com o texto; assim como a afirmação de Alquié, de que
é reconhecido como um aspecto de perfeição no homem e como condição
a tese da irresistibilidade diante da evidência, afirmada nas Meditações,
de seu mérito, e, sem negar o que havia sido dito em 1641, na versão latina
passaria a ser excluída dos Princípios, o que nos legitimaria a falar de uma
das Meditações Metafísicas, a respeito da definição essencial de liberdade,
evolução. Pois, se por um lado, a crítica da liberdade de indiferença (no
Descartes acrescenta que seu exercício permanece excluído dos casos em
sentido negativo) é mantida nos Princípios tal como nas Meditações, como
que a evidência é presente.
demonstra o artigo XXXIX – “experimentávamos, com efeito, existir em
- Em 1647, na versão francesa dos Princípios, Descartes retoma
nós essa liberdade [que é tal] que podíamos nos abster de crer naquelas
a terminologia de 1641 e afirma que a essência da liberdade não inclui o
coisas que não eram inteiramente certas e averiguadas” –, o que vai contra
exercício do poder de escolha entre contrários.
a posição de Gilson; por outro lado, a tese da irresistibilidade diante da
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91
Cadernos Espinosanos XXIII
Mariana de Almeida Campos
The Cartesian concept of freedom
in Philosophical Principles
8. KENNY, Anthony. “Descartes on the will”. In: COTTINGHAM, John (Org.).
Descartes. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 132-159.
Abstract: The aim of this article is offering a solution to two different problems in
the Cartesian theory of freedom, both of which are developed in the Philosophical
Principles. The first of them deals with the contrast between the Latin and the French
version of the Principles regarding the concept of Freedom. The second refers to
the controversy in the secondary literature in which the Cartesian theory of freedom
developed in the Principles would be different from that exposed in the Metaphysical
Meditations. Behind this question is the classic problem of correlating what seem to
be two distinct concepts of freedom: freedom as freewill and freedom as spontaneity.
With this in mind, we will also try to respond precisely how the relationship between
these two concepts of freedom exposed in the Principles should be understood.
Keywords: Descartes, Freedom, Freewill, Spontaneity, Will.
Referências bibliográficas:
9. LAPORTE, Jean. “La liberté selon Descartes”. Revue de Métaphysique et Morale,
Paris, v. 44, p. 101-164, 1937.
NOTAS:
1. Para citação da versão latina dos Princípios da Filosofia utilizaremos a tradução
brasileira de Guido Antônio de Almeida, Raul Landim Filho, Ethel M. Rocha, Marcos
André Gleizer e Ulysses Pinheiro, que se encontra em DESCARTES. Princípios da
Filosofia. Tradução coordenada por Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: UFRJ,
2002. As notas bibliográficas remetem sempre para duas edições, a edição padrão de
Adam e Tannery e a edição brasileira.
2. Para citação da versão francesa dos Princípios da Filosofia faremos uma tradução
livre da edição em língua francesa DESCARTES, René. Oeuvres Philosophiques. Ed.
par F. Alquié. Paris: Garnier, 1997. 3 v. Neste caso, as notas bibliográficas remetem
sempre para duas edições, a edição padrão de Adam e Tannery e a edição de Alquié.
1. ALQUIÉ, Ferdinand. “La liberté humaine”. In : ______. La découverte métaphysique
de l’homme chez Descartes. Paris: PUF, 1991. cap. 14, p. 280-299.
2. BEYSSADE, Michelle. “Descartes’s Doctrine of Freedom: Differences between the
French and Latin Texts of the Fourth Meditation”. In: COTTINGHAM, John
(Org.). Reason, Will, and Sensations: Studies in Descartes’s Metaphysics.
Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 191-206.
3. ______. “Des Principia aux Principes: Variations Sur la Liberté”. In:
PRINCIPIA PHILOSOPHIAE (1644-1994), CONVEGNO PER IL 350
ANNIVERSARIO DELLA PUBLICAZIONE DELL’OPERA, 1994,
Parigi. Atti... Napoli: Instituto Italiano Per Gli Studi Filosofici, 1996. p.
37-51.
4. DESCARTES, René. Oeuvres de Descartes. Ed. par C. Adam et P. Tannery. Paris:
Vrin, 1982. 12 v.
5. ______. Oeuvres Philosophiques. Ed. par F. Alquié. Paris: Garnier, 1997. 3 v.
6. ______. Princípios da Filosofia. Tradução coordenada por Guido Antonio de
Almeida. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.
7. GILSON, Étienne. La Liberté chez Descartes et la théologie. Paris: Alcan, 1913.
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93
Imagens e analogias do corpo
e da mente na política de Spinoza
Alexandre Arbex Valadares*
Resumo: O presente artigo propõe estudar algumas possibilidades interpretativas
suscitadas pela analogia com que Spinoza busca ilustrar, a partir da imagem do
corpo humano, a estrutura de composição do corpo político. Começando por discutir
a dinâmica de produção de corpos na Natureza, o texto desenvolve uma análise da
contradição entre duas teses, presentes na obra de Spinoza – uma, na sua ontologia, e
outra, na política –, que se formulam nos termos da analogia do corpo humano com
o corpo político; em seguida, essa analogia desdobra-se em uma comparação entre a
mente humana e o que se poderia denominar uma “mente” do corpo político, a partir
da distinção entre os dois níveis de constituição do político – a cidade (civitas) e o
Estado (imperio); por fim, propõe-se uma interpretação do processo de produção de
ideias e representações na vida política à luz da teoria althusseriana da ideologia.
Palavras-chave: Spinoza, política, corpo, imaginação, ideologia.
1.
A analogia entre corpo humano e corpo político é um lugar-comum
da teoria política moderna, e denota a influência, nesta última, das concepções
organicistas ou atomistas de mundo. Mais que mero recurso retórico, que,
aludindo a uma imagem-síntese, permite atalhar as dificuldades inerentes
a uma explicação rigorosa do processo de constituição e funcionamento da
vida social, a comparação confere evidência a dois princípios importantes
do pensamento político pós-Maquiavel. O primeiro diz respeito à unidade
do Estado, à sua integralidade ou ao seu caráter absoluto; o segundo
concerne a algo que se poderia chamar identidade entre o todo e suas
*Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
95
96
Cadernos Espinosanos XXIII
Alexandre Arbex Valadares
partes. Tal princípio permeia a tese contratualista do Estado fundado
inepto e mesmo a opressão empreendida por um tirano contra os cidadãos
por homens, do Estado-instituição, que, reproduzindo em maior escala a
são males igualmente nocivos à saúde do organismo político. No TP,
concepção ideal do homem livre e racional, vincula o poder do soberano à
Spinoza evoca a ideia de unidade ou integridade desse organismo, tanto
sua vontade. A mesma ideia de identidade subjaz às interpretações relativas
para designar, como união de corpos, o processo de composição da potência
às condições de legitimidade do poder político, tanto nas teorias do pacto
coletiva que constitui a cidade (II, 15), quanto para descrever, como união
social, que consideram legítimo o poder absoluto emanado da vontade das
de mentes, o direito da cidade fundado na razão (III, 7). Esse “corpo”, a
partes, quanto nas teorias em que a legitimidade assume sentido realista,
cuja imagem Spinoza assimila a política, é, pois, dotado de uma “mente”,
como em Maquiavel e Spinoza, e não se distingue do conjunto de relações
mas, em contradição com a concepção de natureza humana descrita na
de poder, ou de potência, que sustentam, no presente, certa autoridade ou
Ética (E), em especial com o princípio da independência dos atributos
instituição. Nesse caso, é dito legítimo o poder cuja constituição está de
pensamento e extensão, essa mente parece exercer, pela vontade, algum
acordo com a natureza humana, não tal como a representam os moralistas,
poder sobre o corpo: o parágrafo 5 do capítulo III di-lo expressamente,
mas tal como ela se dá a conhecer na história e na experiência, isto é,
e a definição, ainda que metafórica, do rei como “mente do Estado” no
marcada pelas paixões, pela imaginação e pelo conflito. Desse ponto de
parágrafo 19 do capítulo VI reforça essa correspondência.
vista, a legitimidade não decorre propriamente do grau de adequação do
Essas passagens, claro está, têm sentido meramente ilustrativo:
poder político ao modo de ser dos homens, mas é, antes, por conformar-se
seus argumentos apelam à imaginação, e estão longe de sugerir um recuo
à natureza destes que esse poder tem condições de se conservar; um poder
de Spinoza em relação à sua crítica ao livre-arbítrio, abordada na Ética.
político é legítimo na medida em que existe.
Mas as aparentes incongruências entre sua política e sua ontologia não
Que Spinoza se inspire em Maquiavel ao lançar mão da analogia
se restringem a esse tópico: o enunciado da proposição 4 da parte III da
entre corpo humano e Estado, o texto mesmo do seu Tratado político (TP,
Ética, segundo o qual nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma
X, 1) nos autoriza a afirmar. Ele se refere, nessa passagem, ao trecho dos
causa exterior, contradiz formalmente a tese, presente no TTP e no TP, que
Discursos sobre a década de Tito Lívio em que Maquiavel compara um
situa no interior do corpo político a principal fonte dos males que podem
Estado sob risco de dissolução a um corpo doente, cuja situação tende
erodir a estabilidade do Estado. Tais contradições são irrespondíveis?
a agravar-se caso não lhe seja aplicado o remédio ou tratamento clínico
Elas atestam, de fato, certo grau de autonomia da política de Spinoza em
necessário. A imagem chama a atenção para um fato político essencial:
relação à sua ontologia, esta a desdobrar-se no conhecimento de segundo
nada ameaça mais a estabilidade de um Estado que seus inimigos internos.
gênero, das noções comuns ou das ideias verdadeiras, enquanto aquela
O Tratado teológico-político (TTP) faz advertência semelhante ao assinalar
se vai instalar plenamente, ao lado da religião, no domínio das paixões
os riscos que uma guerra de religião pode acarretar ao Estado, mas esse
e da imaginação, da experiência e da história? Seria desaconselhável,
perigo endógeno não é representado apenas pelos conflitos civis ou pelas
como tarefa filosófica, buscar a todo custo uma norma de conciliação que
conspirações nascidas no seio da aristocracia; a atuação de um legislador
harmonizasse na coerência do sistema essas disparidades. Mas a correlação
97
Cadernos Espinosanos XXIII
Alexandre Arbex Valadares
entre a imagem do corpo político como corpo humano, evocada nos dois
partes do corpo são determinadas, pela ação dos corpos exteriores, a entrar
Tratados, e a ideia de corpo, apresentada na Ética, permite propor uma
em outras relações diversas daquela que caracteriza o modo próprio de
interpretação da filosofia spinozista que, em consonância o parecer de
composição do corpo afetado e o distingue como um indivíduo singular.
Negri (4), identifica na ontologia de Spinoza a sua verdadeira política. É
este o objetivo do presente estudo.
característica sob a qual outros corpos ou partes, mantendo-se unidos entre
si, distinguem-no como corpo complexo existente, então nada que decorra
2.
A definição de “corpo humano”, para Spinoza, não se distingue
da definição de “corpo” em geral. Ela abrange dois aspectos principais: a
individualidade complexa e a tendência à autoconservação. Um corpo é um
indivíduo composto de outros corpos – ou de outros indivíduos – que se
mantêm unidos entre si segundo uma relação determinada; essa relação, ou
esse regime de composição, singulariza o corpo como um modo de existir,
e ele existe na medida em que conserva ou reproduz essa relação. Noutros
termos, essa relação é expressão da essência singular desse indivíduo, e
singulariza-o, não como somatório de partes, mas como um regime ou uma
lei determinada de composição que lhe é própria. A individualidade de um
corpo não é definida pelas partes que o compõem: estas podem modificarse em cada atualidade em virtude da interação com outros corpos. O que
distingue um corpo como indivíduo é o modo ou a relação segundo a
qual as partes – ou outros corpos – entram na sua composição. A rigor, a
tendência mesma de autoconservação do corpo envolve a regeneração de
suas partes e o intercâmbio permanente com o exterior, isto é, com outros
corpos que o afetam. Um alimento, por exemplo, agrega partes a um corpo,
sem entretanto modificar sua relação essencial: essas partes compõemse com essa relação, ou, o que vem a ser o mesmo, conservam-na. Pode
ocorrer, porém, que a afecção provocada por um corpo sobre outro não seja
favorável à conservação deste; nesse caso, não há agregação de partes nem
composição, mas, ao contrário, um processo de decomposição pelo qual as
98
Ora, se a essência de um indivíduo é a lei de composição ou a relação
dessa essência pode destruir o indivíduo. A essência de uma coisa existente
não se diferencia da sua tendência de autoconservação. É este o sentido da
afirmação de Spinoza segundo a qual nenhuma coisa pode ser destruída,
senão em virtude de uma causa exterior (E, III, 4). A noção de “exterior”, a
que Spinoza alude nesse caso, não diz propriamente respeito ao que é externo
ao corpo, ao que está “fora”: os choques dos corpos exteriores, percebidos
sob a forma de afecções ou modificações em nosso corpo, podem, de acordo
com as condições em que se dão esses choques, decompor as nossas relações
características, ou seja, as relações em que nossa essência se expressa como
um modo de existir ou como um modo da extensão, mas, ao mesmo tempo,
a conservação desse corpo depende da regeneração constante de suas partes
constitutivas, de um intercâmbio ininterrupto com os outros corpos. Dizer
que uma coisa favorece a conservação das relações de movimento de um
corpo (E, IV, 39) é o mesmo que dizer que ela aumenta a capacidade desse
corpo de ser afetado por outros corpos (E, IV, 38), isto é, de abranger um
maior número de partes (ou de corpos menos complexos) sob sua relação
característica, ou, dito de outra maneira, de estender a sua lei de composição
própria sobre outros corpos. Por essa razão, um corpo é tanto mais apto a
conservar-se quanto mais é capaz de ser afetado por outros corpos, e não na
medida em que é capaz de se defender deles ou evitá-los. Do exterior, do
mundo da extensão, vem todo bem e todo mal: a conservação e a destruição
de um corpo explicam-se pelas condições em que ele se encontra ou se
choca com outros corpos.
99
Cadernos Espinosanos XXIII
100
Alexandre Arbex Valadares
Um corpo está em comunicação permanente com os corpos
A extensão, como o pensamento, é um dos infinitos atributos de
exteriores, ou, mais exatamente, as partes ditas internas de um corpo
Deus, isto é, Deus pode ser concebido como coisa pensante e como coisa
estão em contato contínuo com partes externas a esse corpo, integradas às
extensa. O atributo tem um sentido adjetivo em relação à Substância, que
relações características de outros corpos. A rigor, como observa Deleuze
é Deus ou a Natureza. O modo infinito mediato da extensão – a facies
(2002), a distinção entre “exterior” e “interior” não é real: o exterior é um
totius universi – concerne ao mundo material infinito, designa o que
interior projetado, e o interior é um exterior introjetado. Supor semelhante
se poderia chamar o “corpo” de Deus. Quanto ao atributo pensamento,
separação significaria considerar a extensão um continente de corpos,
também constitutivo da natureza divina infinita, pode-se supor, além de
isolados uns dos outros por espaços vazios. Mas a extensão, para Spinoza,
um modo infinito imediato – o intelecto infinito de Deus –, um modo
é um atributo infinito de Deus, ou da Natureza, que se apresenta sempre
infinito mediato – a ideia infinita de Deus, que, por analogia, se assimilaria
e já na forma de uma modificação infinita e imediata – o movimento, ou
à “mente” de Deus. A mente divina seria, portanto, a ideia infinita que
as relações de movimento e repouso –, e, a partir desta, na forma de uma
abrange todas as ideias das modificações da natureza de Deus. Contudo,
modificação infinita e mediata – a figura do universo em sua totalidade
se as relações de movimento e repouso no atributo extensão dão existência
(facies totius universi) (Carta 64 a Schuller). Essa figura total do universo
aos corpos singulares ou a suprimem, mas segundo a dinâmica de produção
é, por assim dizer, a imagem da permanência, da eternidade, do universo
da existência eterna e infinita de Deus como coisa material, as ideias se
como totalidade material; ela se refere ao que, a despeito das ilimitadas
afirmam todas simultaneamente na ideia infinita de Deus; a rigor, quer
variações que os corpos sofrem, dos desdobramentos sucessivos das
um modo singular exista ou não exista, é possível formar uma ideia a seu
relações de movimento e repouso, segue sendo constante no universo: o
respeito: ele é pensável, sua ideia compõe-se com as outras ideias no atributo
fato de ele se apresentar como existência material infinita. Os corpos são
pensamento, assim como as essências de todas as coisas se compõem na
modos finitos da extensão, efeitos materiais das relações de movimento
essência eterna e infinita de Deus. Se, na extensão, a dinâmica de produção
e repouso, que exprimem as infinitas variações singulares, e de duração
e destruição dos corpos singulares inspira a imagem da finitude, isto se
limitada, da facies totius universi. É o jogo das relações de movimento
deve a que os homens são determinados a perceber seus próprios corpos
e repouso que determina a duração do corpo: sua conservação ou seu
como entes materiais distintos, separados dos outros corpos, ante os quais
aniquilamento advém das relações com os outros copos, das relações através
exerce sua potência de existir e de agir, cujos limites são assinalados pela
das quais suas partes entram em contato com as partes de outros corpos, ora
potência de existir e de agir de todos esses outros corpos.
compondo-se com elas segundo a sua relação característica – que define o
Essa dinâmica concorrencial que, do ponto de vista dos modos
modo como sua essência se exprime na extensão –, ora compondo-se com
singulares da extensão – dos homens –, parece presidir aos choques e
elas segundo outras relações que não a que o caracteriza, de sorte que sua
encontros dos corpos, não explica o processo de produção da existência
essência deixa de ter expressão na extensão, ou seja, de sorte que tal corpo
eterna e infinita de Deus. Do ponto de vista da totalidade – de Deus ou da
decompõe-se, deixa de existir.
Natureza –, não há decomposição: dos choques e encontros dos corpos
101
Cadernos Espinosanos XXIII
Alexandre Arbex Valadares
resulta sempre a afirmação de uma coisa como existente, isto é, um modo de
sua aniquilação, isto é, embora a essência siga sendo concebível sob outros
ser que exprime, em grau limitado, finito, o ser ou essência eterna e infinita
atributos, ela não se concebe mais sob o atributo extensão, não se exprime
de Deus, concebido pelo atributo extensão. Os choques ou encontros entre
mais sob a forma de um modo desse atributo. A identidade entre a ordem de
os corpos, decorrentes das relações de movimento e repouso, constituem
produção das ideias e a ordem de produção das coisas, tal como enunciada
o modo infinito imediato pelo qual a existência de Deus ou da Natureza é
na proposição 7 da parte II da Ética, não justifica a suposição, demasiado
produzida eterna e infinitamente. O processo de constituição da realidade
citada entre comentadores, de um paralelismo entre o atributo pensamento
é um processo de produção de existências singulares por composição de
e o atributo extensão: por “coisas”, deve-se entender “essências”, e não
corpos, determinado pela ordem das relações de movimento e repouso. A
“corpos”. A ordem de produção destes, conquanto não possa ser distinta
infinita variedade dos modos de ser ou essências singulares que ganham
da ordem de produção das ideias – uma vez que exprime sempre a mesma
atualidade ou passam à existência a partir dessas relações explica a
essência de Deus –, não a espelha nem a reproduz em ato: a duração
heterogeneidade do real; por outro lado, uma vez que cada corpo exprime,
indefinida da existência dos corpos não se confunde com a eternidade das
em certo grau, a essência ou o ser de Deus concebido pelo atributo extensão,
ideias adequadas ou das ideias das essências, que podem referir-se a coisas
isto é, uma vez que cada corpo, ao mesmo tempo que afirma sua essência
existentes ou não existentes na extensão.
como existente, afirma a materialidade do real, este se apresenta sempre
sob a unidade homogênea e permanente da facies totius universi.
102
Como é preciso compreender, à luz das considerações precedentes,
a proposição segundo a qual uma coisa não pode ser destruída senão por
No entanto, as leis de produção dos modos no atributo extensão,
uma causa exterior? Que um corpo seja destruído, que as suas partes sejam
ou, para dizer o mesmo, as leis de movimento que determinam que as partes
determinadas a entrar em outras relações em virtude da ação de outros
extensas se agreguem ou se desagreguem sob a forma deste ou daquele
corpos, é algo que a simples experiência permite perceber: um corpo
conjunto corporal, podem, em seus efeitos, ser destrutivas para um corpo
dotado de uma propriedade corrosiva, por exemplo, pode extinguir outro
em particular. Da perspectiva da totalidade, de Deus, não há decomposição:
cuja natureza não seja capaz de assimilar seus efeitos; um corpo, que nos
todos os efeitos que se desdobram na extensão afirmam a essência de Deus
convém sob uma dada relação (combinado a outros corpos ou em certas
sob este atributo, exprimem-na em grau determinado, e integram a facies
quantidades, como o remédio), pode tornar-se-nos letal sob uma relação
totius universi; quando um corpo em particular é destruído, isto significa
diferente (o veneno). Mas não é disso que trata a proposição. As coisas
que, na ordem de produção da existência de Deus ou da Natureza, se deram
são destruídas pelo que é exterior, não propriamente ao seu corpo – porque
causas que excluem a existência singular desse corpo, ou que os demais
sua conservação depende do intercâmbio com corpos externos –, mas à
corpos que, nesse processo causal, entraram em contato com ele infligiram-
essência delas. A afirmação da essência de uma coisa entra em contradição
lhe modificações que alteraram o regime de composição de suas partes, e
com a afirmação da essência de outra coisa: suas definições se limitam ou se
estas passaram a agregar-se sob outras relações estranhas à essência desse
excluem na mente. Mas, se uma ideia limita outra ideia, e um corpo limita
corpo; noutros termos, embora a essência desse corpo não se perca com a
outro corpo (E, I, def.2), a contradição lógica no pensamento se exprime
103
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Cadernos Espinosanos XXIII
Alexandre Arbex Valadares
como conflito físico na extensão (MATHERON, 3); e, da mesma maneira
existir – corpo – e como modo de pensar – mente –, são definidos por uma
que, por um lado, a afirmação de uma essência, no pensamento, dá-se
dinâmica interna de resistência.
como ideia verdadeira ou adequada, como modo de pensar que persevera
A mente é uma ideia do corpo, um modo de perceber o corpo.
no seu ser, na sua verdade intrínseca, a afirmação dessa essência como
Mas mente e corpo não produzem efeitos um sobre o outro; os efeitos que
coisa existente na extensão, como corpo, toma a forma de uma tendência
limitam a maneira pela qual uma essência singular se afirma, ou seja, que
de autoconservação.
definem a potência com que tal essência se expressa como realidade, se
Um corpo individual é sempre complexo: ele é um composto de
encadeiam de maneira independente e distinta em cada atributo. Cumpre
corpos, unidos, como suas partes constitutivas, por uma relação característica
assinalar que essa correlação não presume uma duplicidade de efeitos;
segundo a qual elas comunicam entre si certa quantidade de movimento,
pensamento e extensão são atributos de uma substância única, assim
ou seja, certa potência; o que torna singular um indivíduo corporal é, não o
como a mente e o corpo são apenas modos através dos quais se exprime
número de suas partes – que é sempre infinito –, mas a relação específica que
uma mesma essência singular, modos de a conceber em relação a outras
as agrupa e que, exprimindo a essência desse corpo, exprime a potência que
realidades, outras essências singulares. Quanto ao atributo pensamento, o
afirma essa essência como coisa existente na extensão, na materialidade. A
efeito de uma ideia dada sobre nossa mente (ela própria uma ideia) pode
potência do corpo é uma potência causal, cujos efeitos concordam com sua
ou determiná-la a produzir uma ideia adequada ou verdadeira, caso em
essência, e, nessa medida, favorecem a tendência de autoconservação do
que a ideia dada favorece a potência de pensar da mente e lhe permite
corpo; noutras palavras, os efeitos que se seguem da potência de um corpo,
afirmar a existência do nosso corpo como expressão de nossa essência
de sua ação, ainda que possam diferenciar-se quanto aos objetos sobre os
adequadamente concebida; ou pode, por outro lado, determiná-la a gerar
quais se aplicam, têm em comum o fato de concorrerem para a conservação
uma ideia inadequada ou falsa, caso em que a ideia dada limita a potência
desse corpo, não porque a dinâmica interna deste seja animada por uma
de pensar da mente e a coage a afirmar, não a existência de nosso corpo,
teleologia, por um finalismo, mas porque esses efeitos se explicam sempre
mas a de um corpo externo, cuja imagem é ligada à ideia dada. Quanto
pela essência singular desse corpo e afirmam, na extensão, a relação
à extensão, o efeito de outro corpo sobre nosso corpo pode ou favorecer
característica ou a identidade dominante que exprime essa essência. Quer
nossa tendência de autoconservação e a potência que a realiza, caso em
isto dizer que o corpo reproduz indefinidamente as condições de sua própria
que suas partes compõem-se com as partes que nos constituem, sob a
atividade, isto é, a relação característica, estrutural, que o singulariza como
relação característica que as mantêm unidas e na qual se exprime nossa
um composto de corpos, investido, por assim dizer, de certo quantum de
essência singular; ou pode limitar essa tendência de autoconservação,
movimento, de uma potência que afirma, em face de outros corpos, a
caso em que suas partes não se compõem com as nossas e, assim, tornam
tendência de autoconservação desse corpo singular. Bove (2) encontrará aí
instável a relação característica sob a qual elas se mantêm unidas, a ponto
o fundamento da ideia segundo a qual os homens, na condição de modos
de desfigurá-la de forma que tal relação perde em alguma medida sua
finitos de ser cuja essência se exprime simultaneamente como modo de
identidade com nossa essência, e esta já não pode afirmar-se, com a mesma
105
Cadernos Espinosanos XXIII
potência, como coisa existente na extensão.
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Alexandre Arbex Valadares
que se lhe opõem, isto é, não realiza a sua autoconservação pela destruição
Mas, se está claro que, na extensão, a contradição ou o efeito de
de tudo quanto não se submeta à lei de sua essência singular. A exposição
afecções contrárias à nossa essência (que se exprime na extensão, vale
constante do indivíduo a afecções contrárias traduz uma condição própria
repetir, como tendência de autoconservação) se apresenta como ameaça à
dos modos finitos: sua passividade. E tal condição não engendra um poder
integridade do corpo, é possível todavia afirmar que o corpo é sujeito de
de resistência. Os indivíduos, de fato, afirmam sua potência sempre no
contrários, um “lugar de guerra”, de conflito? Como observa Bove (2, p.13),
âmbito das relações sob as quais entram em contato uns com os outros,
os corpos podem ser sujeitos de contrários, ou seja, podem sofrer afecções
e sua potência é limitada pela estrutura mesma dessas relações, mas a
ou modificações que se opõem à sua tendência de autoconservação, desde
expressão dela não é uma forma de reação pela qual ela responderia a uma
que essa contradição não atinja a “a identidade dominante do corpo na
causa externa: ela é sempre expressão da essência singular do indivíduo,
relação de suas partes”. A dinâmica interna do corpo caracterizar-se-
e se explica, não pela sua “pessoalidade”, pela sua existência, mas, antes,
ia, então, como um esforço de resistência, que buscaria expulsar de si a
pela participação do indivíduo no processo de produção da Natureza,
contradição, deslocando-a indefinidamente, e empregando, nesse esforço,
pelo grau determinado com que a potência de Deus ou da Natureza
sua potência, determinada pelas condições atuais em que o problema da
produz, a partir dessa essência singular, os efeitos que dela se seguem
autoconservação se lhe apresenta. O corpo não é, entretanto, um substrato
necessariamente. Isto significa que a potência de agir dos indivíduos não
onde se desenrola o conflito; tal conflito constitui a determinação atual
atende ao objetivo de conservar seu corpo, como se ele pudesse captar a
desse corpo, e prescreve, na extensão, o espaço e a duração da expressão de
potência de Deus ou da Natureza para fazê-la servir a essa finalidade; a
sua potência. Um corpo é um complexo de relações de força, de potências
conservação do corpo é um efeito da afirmação de uma essência singular,
que se afirmam umas sobre as outras, ao mesmo tempo que se conjugam
que se exprime como modo da extensão, mas essa essência não envolve
em uma potência mais complexa, que afirma a existência desse corpo como
a existência do corpo. Se, por certo, não há distinção real entre uma coisa
uma indivíduo singular (composto).
e sua tendência a perseverar no ser, é porque sua essência concorda com
O princípio de resistência identificado por Bove na tendência
sua potência, e ambas são apenas expressões ou modos de ser da essência
de autoconservação do corpo faz supor, entretanto, que a perseverança
de Deus e da potência de Deus. A potência singular individual é antes uma
indefinida do indivíduo na existência tem, no conflito, a sua dinâmica
potência causal que uma potência de autoconservação: a conservação de
fundamental. Pode-se, decerto, afirmar que o corpo é sujeito de contrários,
um indivíduo explica-se, pois, menos por sua capacidade de resistência
na medida em que é sujeito a afecções que limitam sua tendência de
que pela sua capacidade de produção de efeitos necessários do ponto de
autoconservação, isto é, na medida em que sofre modificações cujas causas
vista da essência de Deus, não em termos absolutos, mas na medida em
não se explicam pela sua essência e cujos efeitos, por essa razão, não
que ela se exprime na forma de sua essência singular.
favorecem a potência que afirma essa essência como existente. Contudo, o
Ora, dizer que o indivíduo é uma potência causal não é senão
indivíduo corporal não persevera na existência em reação a outros corpos
afirmar que sua potência se integra à ordem de produção do ser, à ordem
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Cadernos Espinosanos XXIII
Alexandre Arbex Valadares
de produção das coisas, como consta na proposição 7 da parte II da Ética.
como um indivíduo extraordinariamente complexo, definido por uma
Essa produção, no atributo extensão, se realiza por composição de corpos,
tendência de conservação, de reprodução do modo de ser desse indivíduo,
segundo relações de movimento e repouso. Por isso, a tendência de
ou de reprodução das relações constitutivas que o caracterizam, e por uma
autoconservação dos corpos ou a dinâmica interna dos indivíduos corporais
imagem ou representação mental, igualmente complexa, dessas relações e
encontra sua razão fundamental, não em um princípio de resistência,
das práticas que delas decorrem.
mas em um princípio de composição, de união; essa diferença pode ser
As relações constitutivas de um corpo político, como as relações
entendida, do ponto de vista dos homens, como uma regra de prevalência
dos corpos em geral, são relações de potências ou de forças que se afirmam
do indivíduo, complexo de corpos em constante modificação e definido por
umas em face das outras, mas das quais resulta, ao mesmo tempo, certo
uma relação característica, sobre o sujeito, “lugar” de contrários, em cujo
regime de composição, que as agrega em uma potência tão complexa quanto
interior uma potência de permanência, de afirmação do “mesmo”, reage
a união das partes que se conjugam na sua constituição e que responde
em face do “outro”, das afecções ou modificações que a limitam.
pela conservação do corpo político em sua totalidade. Está visto que uma
coisa só pode ser destruída por uma causa exterior, e que, se é possível
3.
A concepção spinozista de indivíduo envolve três elementos
essenciais: a) a complexidade, isto é, sua natureza composta; b) a relação
característica que conserva essa composição, ainda que suas partes
constitutivas se modifiquem de momento a momento; e c) a tendência
à autoconservação, que não se distingue do grau de potência que a
realiza, ou seja, da força pela qual o indivíduo persevera no seu ser. Nos
indivíduos humanos, na medida em que são constituídos de um corpo e
uma mente, essa tendência à autoconservação exprime-se, por um lado,
por meio de uma prática material, da busca pelas coisas úteis e necessárias
à existência, ou das coisas que se compõem com a natureza do indivíduo
e cujas partes se integram, preservando-a, à sua relação característica, e,
por outro lado, por uma reflexão ou imagem consciente através da qual o
indivíduo percebe essa prática e afirma, à luz dela, a continuação de sua
existência. Esse conceito de indivíduo, abrangendo corpo e mente, deve
repercutir sobre a analogia traçada por Spinoza entre o ser do homem
e o ser da política. Noutros termos, a sociedade pode ser compreendida
108
afirmar que o corpo é sujeito de contrários ou lugar de modificações que
se opõem à conservação de sua existência, é apenas na medida em que
elas não pertencem à sua essência ou não se encadeiam, nele, segundo
a relação característica em que a essência desse corpo se exprime. Esta
dicotomia entre o conflito de potências das partes constitutivas de um
corpo e a unidade de afirmação da potência através da qual esse corpo,
como indivíduo complexo, se conserva é, do ponto de vista da política, o
fundamento da ideia segundo a qual o maior perigo à estabilidade de um
Estado reside em seu interior: é a guerra civil. Hobbes, a propósito, sustenta
que o medo à guerra generalizada é o que compele os homens a aderir ao
pacto e a obedecer à vontade do soberano, renunciando ao direito natural
de se conduzir segundo a sua própria vontade. Isto significa, em primeiro
lugar, que o estado civil seria um estado de trégua, não propriamente
de suspensão do conflito que está na sua gênese, mas, ao contrário, de
reprodução das condições de determinação desse mesmo conflito e, com
elas, da necessidade de reiterar, eventualmente com mais rigor, a adesão
dos cidadãos ao pacto. A guerra civil, assimilada ao estado de natureza,
109
Cadernos Espinosanos XXIII
Alexandre Arbex Valadares
corresponderia, por assim dizer, à ideia latente da qual o estado civil seria
perfeitamente com a existência atual desse indivíduo. Cada indivíduo
o conteúdo manifesto. Além disso, o pacto hobbesiano supõe que esse
existe tanto quanto está em sua potência afirmar-se como existente. A
conflito fundamental só pode reduzir-se a uma unidade a partir de uma
potência singular é sempre em ato; o direito natural não é uma faculdade
extrema polarização: a transferência de todos os direitos naturais a uma
de agir, mas uma ação necessariamente determinada, uma necessidade
autoridade cujo mandato é fazer cumprir o pacto social, isto é, a trégua, e
em ação. Potência singular e direito natural são apenas a expressão de
que, para tanto, é investida de um poder absoluto.
uma essência singular que persevera no seu ser, ou, do ponto de vista do
Para Spinoza, o poder constituinte da vida civil não se dissocia
corpo, a expressão da tendência de autoconservação da existência. Todos
da própria potência coletiva resultante da composição das potências
os homens buscam conservar-se, e recorrem a todos os meios que estão em
singulares de seus cidadãos. A multidão, nome que Spinoza dá a essa
sua potência para tanto. Spinoza (E, III, 9) afirma que todos os homens
composição, não subentende, está claro, uma conciliação perfeita em uma
são conscientes disso, o que não quer dizer senão que eles percebem uma
unidade formada por simples agregação de partes: ela engloba, na sua
conexão imaginária ou real entre, de um lado, seu modo de agir ou operar
individualidade complexa, os conflitos existentes nas relações entre suas
no mundo, e, de outro, o desejo de permanecer em vida.
partes, isto é, nas relações entre os cidadãos. Mas, se a constituição da vida
civil envolve algum grau de contradição, ou, noutros termos, se também a
110
Essa tendência pela qual os homens são determinados a perseverar
no ser opera neles em dois níveis diferentes.
multidão pode ser “sujeito de contrários”, por outro lado somente ela atua
Em um primeiro nível, o da imaginação, essa tendência toma
como poder constituinte precisamente porque tal contradição não pertence
a forma específica de um desejo, que se dirige a um objeto específico,
à sua essência nem se exprime nas relações que a caracterizam – a multidão
representado por este mesmo desejo como algo bom ou útil porque causa
é, com efeito, segundo observa Bove (2, p.12), atravessada de conflitos e
um acréscimo de potência, sentido sob a forma de uma paixão, um afeto
contradições, e, contudo, ela afirma, com a potência coletiva que a define,
passivo porque se prende à imagem do objeto externo, representado como
uma unidade política. A questão está, pois, em explicar o processo de
sua causa. Assim, um homem imagina que deseja uma coisa não porque
constituição dessa potência ou, mais pontualmente, em compreender por
ela lhe é boa ou útil sob dada relação, mas porque ela é boa ou útil em si
que os homens se tornam cidadãos, por que eles constituem uma cidade.
mesma, ou melhor, porque ela é um Bem, uma vez que a alegria passiva que
A teoria spinozista do direito natural permite-nos lançar uma
ele sente ao imaginá-la sob sua posse parece depender da natureza própria
primeira luz sobre essa indagação. Spinoza não faz distinção entre o direito
dessa coisa. Essa percepção invertida constitui, com um só movimento,
natural e a potência singular de um indivíduo: o direito deste sobre a
a forma da consciência, ou seja, a demarcação entre um sujeito e um
natureza vai até onde vai sua potência de agir, e tudo quanto um indivíduo
objeto, e o conteúdo moral desta consciência, que representa as imagens das
faz em virtude de sua potência singular pertence ao seu direito natural.
coisas como valores. Mas essa percepção imaginária ou inadequada não é
Isto significa que o direito natural de um indivíduo não atende a nenhum
rigorosamente falsa: embora os homens ignorem as causas verdadeiras em
outro critério de legitimidade senão à sua própria potência, e esta coincide
virtude das quais tendem a buscar tais coisas, eles percebem, simplesmente
111
Cadernos Espinosanos XXIII
112
Alexandre Arbex Valadares
porque são determinados a desejá-las e se alegram com sua posse, que elas
Uma noção comum se produz quando é dado ao homem apreender
favorecem a sua potência de perseverar no ser. Na ignorância das causas, o
as causas verdadeiras de uma afecção ou de uma modificação percebida
desejo e os afetos alegres são guias seguros na busca das coisas que lhes são
no seu corpo. Spinoza (E, I, 3) afirma que apenas as coisas que têm
úteis, e a imaginação que os induz a considerar tais coisas como causas do
propriedades em comum com nossa natureza podem causar modificações
desejo ou da alegria representa essa busca como uma teleologia ou como um
em nós. Isto significa que os efeitos produzidos em nós pela ação de outros
finalismo da ação, orientado por ideias valorativas ou juízos morais.
corpos envolvem sempre as propriedades comuns existentes entre nossa
Mas, em um segundo nível, o da razão, essa tendência de perseverar
natureza e a desses corpos, e, por conseguinte, as ideias dessas modificações
no ser envolve uma ideia verdadeira da utilidade recíproca dos homens,
ou afecções, pelas quais elas são percebidas, envolvem essa relação. Esse
ou, o que vem a ser o mesmo, uma noção comum da utilidade. Essa noção
conteúdo verdadeiro, porém, não se nos apresenta, por assim dizer, em
comum não tem outro ponto de partida que os afetos passivos e as ideias
estado puro, como uma ideia verdadeira dada. Ele reveste, quase sempre,
inadequadas da imaginação; contudo, nesse segundo nível, já não se trata de
uma forma falsa ou inadequada: ao percebermos uma afecção, somos
ideias de objetos externos, de ideias de imagens, e sim de ideias de relações.
determinados a considerar a imagem do corpo externo que nos afeta, uma
Um homem não considera como intrinsecamente boas ou úteis as coisas para
imagem parcial, na medida em que é delimitada pela parte do nosso corpo
as quais tende; elas lhe parecem boas ou úteis na medida em que ele entretêm
que é afetada; e, assim, acabamos por confundir essa imagem parcial com a
com elas uma relação favorável à sua potência, isto é, na medida em que
natureza do corpo externo, julgando-a boa ou má segundo essa afecção nos
compreende essa relação como uma composição entre a sua natureza singular
cause alegria ou tristeza, favoreça ou diminua a nossa potência singular.
e a natureza das coisas. Ora, essa composição favorável só pode ocorrer se as
Podemos formar noções comuns apenas quando nos é possível encadear
relações que um homem estabelece com as coisas que o afetam se realizam
essas ideias de imagens ou ideias de afecções, não na ordem acidental
por meio das propriedades comuns de seus corpos. É certo que, no nível da
em que as percebemos na sucessão dos choques e encontros de corpos na
imaginação, ainda que um homem suponha que sua alegria derive do fato
natureza, mas na ordem necessária de sua produção, isto é, quando nos é
de ele – sujeito – ter entrado na posse do objeto desejado, o que ocorre não
possível relacionar uma ideia de afecção e outra ideia de afecção a partir
é senão uma relação de composição entre a sua e a natureza desse objeto, a
das propriedades comuns que nelas se afirmam e por meio das quais o
partir de suas respectivas propriedades comuns. Mesmo que, na imaginação,
intelecto pode transigir de uma à outra. Uma vez que a noção comum é a
a causa dessa alegria seja percebida por uma ideia inadequada, no plano das
ideia da relação entre as propriedades comuns de nosso corpo e do corpo
essências, do real, o que a explica é uma composição de naturezas; noutros
que nos afeta, propriedades estas que explicam por que esse corpo pode ser
termos, os homens podem estabelecer composições favoráveis à sua potência
causa de modificações em nós, é apenas em presença de uma afecção que
– e são determinados a isso pelo desejo –, pondo-se em relação com outros
favoreça nossa potência de agir, ou seja, de uma relação de composição,
corpos a partir de suas propriedades comuns, sem necessariamente terem
que temos condições – necessárias, mas não suficientes – de apreender a
uma ideia dessa relação, isto é, uma noção comum.
noção comum; do ponto de vista dos afetos, apenas em estado de alegria
113
Cadernos Espinosanos XXIII
podemos efetuar essa passagem.
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Alexandre Arbex Valadares
de efeitos que favoreçam a afirmação de sua potência ou a conservação
O processo de constituição da sociedade política – ou da cidade
de seu ser, esses efeitos são igualmente úteis ou bons a todos os corpos
– sintetiza esses elementos conceituais, e permite reintroduzir a questão
de natureza semelhante à sua, ou seja, a todos os homens; por isso, na
do direito natural. Spinoza, como foi visto, considera esse direito idêntico
Natureza, nada é mais útil ao homem que outro homem (E, IV, 35).
à potência singular dos indivíduos, a potência pela qual eles agem, com
Este enunciado traduz a ideia de utilidade recíproca dos homens,
todos os meios de que dispõem, para conservar sua existência. No entanto,
descrita no quinto capítulo do TTP como um processo de divisão social do
tomada em si mesma, e em oposição à potência de todas as coisas exteriores,
trabalho, que se explica, por um lado, pela tendência em virtude da qual
essa potência singular em que consiste o direito natural individual tem
os homens são determinados a buscar as coisas necessárias à conservação
uma existência puramente hipotética; Spinoza chamá-la-á no TP (II, 15)
de sua existência, e, por outro, pela impossibilidade de empreenderem
de simples abstração. A potência singular de um homem é infinitamente
essa busca contando somente com sua própria potência singular. Os
ultrapassada pela potência que sobre ele exercem os corpos externos.
homens, diz Spinoza, precisam alimentar-se, vestir-se, proteger-se contra
Os homens são partes da Natureza ou modos de ser de Deus que
as intempéries, alegrar o espírito e muitas outras coisas cujas exigências
não existem por si mesmos, isto é, modos de ser cuja essência não envolve
excedem os limites de sua potência. Eles não podem ser suficientemente
a existência; em outros termos, nenhum homem é de constituição corporal
hábeis em todas as tarefas, não dispõem de tempo para executá-las, e,
ou mental tão complexa que possa, contando apenas com sua potência,
ademais, em boa parte de suas vidas, na infância, na doença ou na velhice
produzir todas as coisas de que necessita para seguir vivendo. Por isso,
– que nada mais são que afecções ou modificações impostas ao seu corpo
a tendência mesma que determina os homens a buscar na Natureza as
pela ação dos outros corpos existentes na Natureza –, têm reduzida a sua
coisas que são boas ou úteis à conservação de sua existência determina-os
capacidade de agir, a ponto de dependerem, com frequência, da potência
a compor sua potência singular com outras potências singulares, a formar,
de outros homens para obter as coisas de que necessitam. Ao mesmo
pois, uma potência mais complexa, por meio da qual possam produzir
tempo, porém, como as naturezas singulares dos homens têm numerosas
coletivamente as coisas de que têm individualmente necessidade. Quanto
propriedades comuns entre si, o alimento que um homem cultiva e o nutre,
mais propriedades comuns houver entre a natureza de um homem e a
o agasalho que fabrica e o protege, a casa que constrói e o abriga, ou a
natureza de outros corpos, tanto mais lhe é possível estabelecer com eles
música que ele compõe e o enternece, são coisas úteis à conservação da
relações de composição que favoreçam a sua potência singular; assim, uma
existência de todos os indivíduos cujas naturezas são-lhe semelhantes.
coisa é tanto mais útil ou boa para um homem quanto mais propriedades
Essa utilidade recíproca explica por que o modo pelo qual os homens
comuns houver entre suas naturezas singulares, quanto mais essas forem
tendem a conservar sua existência determina-os a estabelecer relações uns
semelhantes entre si. Ora, na Natureza, a coisa que mais tem propriedades
com os outros, a compor entre si suas respectivas potências singulares,
comuns com a natureza singular de um homem é a natureza singular de outro
de maneira que, através da potência coletiva assim constituída, possam
homem; isto quer dizer que, quando um homem se empenha na produção
produzir as coisas necessárias às suas existências individuais. As relações
115
Cadernos Espinosanos XXIII
Alexandre Arbex Valadares
de composição de potências singulares são, pois, relações de produção, e a
que um o possui e o outro o perde. Então, imaginando cada qual que a
potência coletiva que se forma a partir destas – a potência da multidão – é
alegria de um é causa da tristeza do outro, ou seja, que a apropriação por
o próprio fundamento constituinte da vida política, da cidade. É apenas
um deles desse bem desejável exclui o outro de sua posse, tais homens
na vida política, na constituição de relações de composição de potências
odiar-se-ão, e desejarão destruir-se (E, IV, 34 esc.).
em um processo de produção comum das coisas necessárias à existência,
Contudo, essa ideia de utilidade recíproca não é auto-evidente. Em
que os homens podem realizar o seu direito natural de autoconservação; a
suas relações, os homens não se governam orientados pela noção comum de
natureza dos homens é, pois, política (TP, II, 15).
que dependem uns dos outros, e não é raro, como a história e a experiência
atestam, que grandes rivalidades, nascidas das paixões, se enraízem entre
4.
Ao afirmar que nada é mais útil ao homem que outro homem,
Spinoza promove a desalienação da idéia de Bem: ele a desloca de um objeto,
representado pela imaginação como bom em si mesmo, como portador
intrínseco de um valor, para situá-la em uma relação. Mas esta diferença
indica também por que uma mesma coisa pode ser-nos útil ou nociva (E,
IV, 30): sua utilidade é acidental, ou seja, não decorre de uma propriedade
inerente à natureza da coisa, mas se explica pela relação sob a qual ela nos
afeta e pelo modo sob o qual essa relação é percebida por nós. Spinoza
afirma que os homens, quando dominados pelas paixões, são inconstantes
e variáveis, a ponto de não ser possível dizer que suas naturezas concordam
entre si: eles podem, com efeito, opor-se uns aos outros (Et., IV, 32) e
perceber suas relações mútuas, não sob a ideia verdadeira de sua utilidade
recíproca, mas sob a imagem de um antagonismo que os representa uns para
os outros como causas de afecções que limitam sua potência de agir e os
afetam de tristeza. Se, por exemplo, os homens aspiram a um mesmo bem,
representando-o como causa de alegria, é certo que suas naturezas estão
de acordo, e o desejo que cada um sente de possuir esse bem é alimentado
pelo desejo similar do outro. Eles passam a diferir em natureza, no entanto,
se, imaginando que esse bem só pode ser apropriado por um deles em
detrimento do outro, são afetados de paixões divergentes, na medida em
116
eles. O conflito marca a vida política precisamente porque a imaginação e
as paixões constituem a forma imediata e universal pela qual os homens
percebem o mundo em que vivem e se relacionam uns com os outros. Tal
percepção não é unívoca nem invariável: ela é atualizada constantemente,
em cada indivíduo, a partir das modificações ou afecções de seu corpo.
As afecções do corpo são percebidas, na mente, sob a forma de ideias
de afecções. As ideias de afecções são ideias das imagens das partes do
corpo afetadas e, portanto, representam, na mente, o estado atual do corpo,
sua existência em ato. Mas as ideias de afecções não são causadas pelas
afecções: como a natureza de um homem, sua essência singular ou seu
modo de ser, exprime-se, simultaneamente, como um modo de existir na
extensão – o corpo – e um modo de pensar – a mente –, cada modificação
ocorrida na natureza desse homem exprime-se como uma modificação
do corpo e uma modificação correspondente da mente. Noutros termos,
seguindo-se uma afecção no corpo, é impossível que não se siga uma
ideia dessa afecção na mente, através das qual essa afecção é percebida ou
representada. Essa afecção pode convir ou não à essência singular de um
homem, compor-se ou não com ela, favorecer ou limitar a sua potência:
em caso positivo, ele perceberá essa variação sob a forma de um afeto de
alegria; em caso negativo, sob a forma de um afeto de tristeza.
Os afetos são sintomas da variação da potência singular, e esta
117
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aumenta ou diminui segundo as afecções sofridas pelo corpo concordem
um empreendimento de apropriação de um objeto visto como um bem em
ou não com sua natureza, isto é, componham-se ou não com ela a partir
si mesmo, e individualista, porque é governado por julgamentos parciais,
de suas propriedades comuns. Um afeto, entretanto, é dirigido ao objeto
por ideias que não põem em evidência as propriedades comuns das coisas,
externo que é causa da afecção e cuja imagem é representada na ideia
as relações, mas apenas os critérios de valor derivados das paixões que
dessa afecção. Nesse nível de percepção – o da imaginação e das paixões
particularizam, na forma de uma consciência subjetiva, a percepção que os
– duas ilusões se infiltram: em primeiro lugar, a afecção, que é sempre
homens têm acerca de seu modo de operar no mundo.
parcial, circunscrita à forma da relação sob a qual um corpo nos afeta, é
É porque todos os homens buscam conservar sua existência singular
inadequadamente apreendida como uma expressão da natureza ou essência
e têm consciência disso, e, por outro lado, porque essa busca é, no mais
desse corpo, e a ideia dessa afecção é interpretada como a representação
das vezes, presidida pela imaginação e pelas paixões, que a composição
dessa essência; em segundo lugar, o afeto de alegria ou de tristeza que
de potências na produção coletiva das existências individuais, ou seja, a
nos advém com essa afecção, e que não indica senão a variação de nossa
divisão social do trabalho, que define, para Spinoza, a cidade, acaba por ser
potência, é pensado como um signo de uma característica intrínseca do
dissimulada sob a aparência de um individualismo competitivo, que evoca
corpo que nos afeta, um signo a partir do qual julgamo-lo bom, se nos
a imagem hobbesiana da guerra de todos contra todos. A vida política
causa alegria, ou mau, se nos causa tristeza. Ora, todos os homens tendem a
transcorre no elemento da imaginação e das paixões, e por isso é lugar
perseverar no seu ser, a conservar a sua existência, e têm consciência disso
de conflito, ainda que seu fundamento – o fundamento da cidade – seja a
(Et., III, 9), porque percebem e afirmam o seu corpo como seu. Eles não têm
potência coletiva dos homens que a compõem e que se constitui a partir das
da natureza das coisas um conhecimento prévio que os permita identificar
suas relações recíprocas. Esta é, a rigor, a razão de ser da política, mas as
quais entre elas favorecem sua potência singular; no entanto, por meio dos
rivalidades nascidas entre homens por efeito do desacordo de suas paixões
afetos de alegria e tristeza, têm um conhecimento espontâneo e imediato
pode comprometer o funcionamento essencial da cidade: uma guerra civil
das coisas que lhes convêm ou não, e é à luz das paixões e da imaginação,
interrompe os processos sociais de produção que geram a oferta dos bens
ou seja, da imagem de tais coisas, que eles se orientam no seu esforço
de que os homens precisam para subsistir, e põe fim à segurança em nome
de autoconservação. Afirmar, como Spinoza, que eles têm consciência
da qual a vida política se organiza. Como, então, conferir estabilidade à
disso significa apenas dizer que esse esforço toma, na prática, uma direção
convivência comum dos homens ante a instabilidade das paixões?
específica, fá-los voltar-se a um ou outro objeto que, na sucessão das relações,
É impossível suprimir as paixões nos homens: eles são passionais
dão conteúdo aos seus desejos, isto é, são representados, na imaginação,
em virtude da constituição de sua natureza. No primeiro capítulo do TP,
como coisas boas, como bens cuja posse causa alegria. Eles julgam boas
Spinoza rejeitará a perspectiva moral da teoria política, que identifica nas
as coisas porque as desejam, e não o contrário, e esse julgamento substitui
paixões uma imperfeição da natureza dos homens, e adota, para remediar
neles conhecimento das causas. Com isso, seu modo de conduzir-se no
esse mal, um viés normativo, centrado no controle do corpo. Em lugar
mundo torna-se essencialmente finalista, na medida em que se resume a
disso, ele afirmará que as paixões são modos de ser que pertencem à
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Cadernos Espinosanos XXIII
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Alexandre Arbex Valadares
natureza dos homens e se explicam por causas determinadas. A história
Spinoza afirma que, se os homens se conduzissem antes pela razão
e a experiência demonstram que, em todas as épocas, os homens viveram
que pelas paixões, se a natureza que faz deles seres passionais permitisse-
em sociedade e sob a influência das paixões, e que essas duas dimensões
lhes igualmente ter uma compreensão adequada de suas paixões, seriam
só podem harmonizar-se se eles são capazes de estatuir um regime ou
dispensáveis os meios que, no Estado, os constrangem ou os persuadem
regra de vida comum que, em vez de confiar ao arbítrio de cada um,
a obedecer às leis. A figura mesma da autoridade seria prescindível. Os
invariavelmente suscetível à força dos afetos, o dever de conduzir-se em
homens comporiam uns com os outros suas potências, engajando-se nas
paz nas suas relações com outros homens, ganhasse uma institucionalidade
relações de produção que constituem a cidade, determinados pela noção
tal que os determinasse, contra ou a favor de sua vontade, a agir sempre
comum de sua utilidade recíproca, sem se deixarem inimizar por efeito
em conformidade com o bem comum. A estrutura das relações comuns
das paixões. Nesse caso, dispostos livremente a viver sob essa regra
de produção, isto é, o campo da composição de potências singulares em
comum de vida, eles não precisariam submeter suas relações recíprocas
uma potência coletiva, é, pois, complementada por uma superestrutura
ao mecanismo institucional e normativo de um Estado. Contudo, como
de instituições, que diz respeito às leis, aos costumes, aos aparelhos de
observa Bove (2, p.12), a multidão é atravessada de conflitos e contradições,
poder, em suma, à forma de governo segundo a qual a potência coletiva
e a unidade de sua afirmação sempre está em questão. O projeto político do
dos cidadãos – a soberania – se distribui na dinâmica das relações que eles
TP, com efeito, não é pôr em discussão as formas de governo, elegendo a
são determinados a estabelecer entre si.
melhor entre elas, mas, antes, oferecer um conjunto de princípios práticos
No TP, Spinoza designa essas duas dimensões por dois conceitos
que permitam organizar, sob um regime monárquico, aristocrático ou
distintos. A cidade (civitas) concerne ao nível das relações e é o próprio
democrático, uma sociedade de cidadãos livres. Com efeito, trata-se de
fundamento constituinte da vida política; sobre esta base, constitui-
constituir um regime comum de vida que permita aos homens exercer
se o nível das instituições, o Estado (imperio). É nesse segundo nível
sua potência singular com máxima intensidade, o que significa promover
que se coloca o problema das formas de governo como o problema da
entre eles o máximo possível de relações comuns, de modo a fazer-lhes
conciliação das paixões e dos desejos dos homens em um regime ou
presente a ideia de sua utilidade recíproca. Noutras palavras, um Estado
regra de vida comum que os torne tão livres quanto possível, ou seja, que
onde os cidadãos são livres é aquele onde a distribuição da soberania
favoreça o máximo possível seu direito natural, a potência singular pela
favorece o mais possível a expressão dos direitos naturais individuais,
qual afirmam a singularidade de sua essência. A afirmação da essência
e, nessa medida, expressa o mais possível o seu fundamento constituinte
singular, que caracteriza essa liberdade, não se dá senão na política, e
imanente: a potência coletiva da multidão.
abrange os dois modos sob os quais essa essência se exprime: o corpo –
É à luz dessa concepção que Spinoza considerará a democracia
e, portanto, o acesso às coisas necessárias à conservação da existência, a
o mais natural dos regimes. O paradoxo da obra política de Spinoza
autonomia de deslocamento, de associação etc. – e a mente – a liberdade
consiste em que a democracia, forma de governo para a qual ele não
de pensamento, de expressão etc.
indicará um receituário específico, é precisamente a única sobre a qual o
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Cadernos Espinosanos XXIII
Alexandre Arbex Valadares
TP verdadeiramente fala: seu objetivo aí não é outro senão dotar as formas
pode ser assimilado à mente da cidade. Ele consubstancia o modo pelo qual
monárquica e aristocrática de um conteúdo radicalmente democrático.
a cidade – ou o conjunto de relações que a constitui – se percebe. O Estado
A vida política é então pensada a partir de seu fundamento constituinte,
é, por assim dizer, a consciência da cidade, uma ideia de sua imagem, sua
isto é, a cidade, a dinâmica produtiva das relações que compõem o corpo
representação inadequada, que, em lugar de exprimir a essência da cidade
político; e as formas de governo, conjunto das instituições que formam o
– a soberania da potência coletiva da multidão –, confunde-a com seus
Estado, são interpretadas, não como determinantes da vida política, mas,
símbolos – como, por exemplo, a pessoa do soberano e sua autoridade, a
antes, como imagens dela.
letra da lei, a tradição etc. –, reconhecendo nestes, e nas formas de governo
Essa distinção permite trazer novamente à baila a comparação entre
que com eles se identificam, o fundamento constituinte da vida política. A
o homem-indivíduo e a sociedade-indivíduo. A cidade corresponderia,
inversão operada por esse reconhecimento é similar à que a imaginação
nos termos dessa analogia, ao corpo político, abrangendo o conjunto das
individual engendra com respeito à mente e ao corpo, supondo residir
relações comuns de produção em que se compõem umas com as outras
naquela, e não neste, a razão de ser dos estados da individualidade. O Estado
as potências singulares dos cidadãos. A conhecida sentença de Marx,
é, como a mente, um modo de afirmar o corpo político como existente, e
segundo a qual uma sociedade não é uma soma de indivíduos, sintetiza
de afirmá-lo tal como ele é percebido. Os “órgãos” dessa percepção são
essa formulação: com efeito, a sociedade não se define pelos homens
as instituições sociais, os seus “aparelhos ideológicos”, segundo a célebre
que fazem parte dela, mas pelas relações sob as quais essas partes, os
conceituação de Althusser (1). Pode-se dizer, com esse mesmo autor, que
homens, se mantêm unidas entre si. Essas relações estruturam a cidade
as ideias produzidas por essas instituições são ideias materiais, isto é, são
como um corpo e exprimem a essência desse corpo político; isto significa
ideias que correspondem a uma prática material determinada e através das
que a conservação desse corpo político depende da reprodução de suas
quais essa prática material é percebida e afirmada.
relações constitutivas. A dinâmica de produção dessas relações é, pois,
A relação entre a imagem ou representação da figura do Estado,
uma dinâmica de reprodução das condições em que essas relações se dão,
afirmada no plano das instituições, e a imagem ou representação sob a qual
uma dinâmica de conservação de seu equilíbrio interno. Se, de acordo com
os homens consideram a si mesmos, pode ser ilustrada pela demarcação
Spinoza, uma coisa só pode ser verdadeiramente conhecida pela sua causa,
que Althusser traça entre as noções de indivíduo e sujeito e pela forma
então o que define uma sociedade-indivíduo, um corpo político, é seu
através da qual este prevalece sobre aquele no processo político. Como
modo de produção social, o modo através do qual essa sociedade conserva
os homens, indivíduos, são convertidos em sujeitos? Althusser propõe
sua existência, reproduzindo a forma de suas relações características – as
que essa passagem se realiza pela via da ideologia: a ideologia interpela
relações sociais –, ao mesmo tempo que, por meio delas, produz as coisas
os indivíduos como sujeitos. A ideologia é produzida e reproduzida por
ou os bens de que têm necessidade para “regenerar continuamente”(E, II,
“aparelhos” do Estado, por instituições – a família, a escola, a igreja, a
post. 4), como o corpo humano, as suas partes constitutivas.
fábrica etc. – cuja função política é reafirmar um determinado modo de
De outra parte, o Estado, entendido como o conjunto das instituições,
122
perceber as relações entre os homens, ou, antes, tornar reiteradamente
123
Cadernos Espinosanos XXIII
Alexandre Arbex Valadares
presente uma determinada percepção que os homens têm de sua prática.
individuais, em oposição aos “choques” aleatórios e imprevisíveis com
Tais aparelhos não funcionam à maneira de máquinas de propaganda ou de
que, na solidão hipotética do estado de natureza, um homem se defrontaria
manipulação: as ideias que se produzem a partir deles são, efetivamente,
a todo instante. Na cidade, as relações dos homens se subordinam a um
as ideias que correspondem à prática social, são representações que fazem
regime de regularidade: a sua produção é também reprodução das condições
sentido com a materialidade dessa prática. A ideologia, compreendida
sob as quais produzem, e sua dinâmica interna de autoconservação é, ao
como conjunto de ideias ou representações sob as quais os homens
mesmo tempo, um elemento constitutivo e dependente da dinâmica social
percebem suas relações, nasce com essas mesmas relações, não como
de conservação do corpo político. Assim, uma vez que sua existência
efeito delas, mas como o modo pelo qual os homens tomam consciência
individual envolve, como sua causa, a existência da cidade, a tendência
delas, isto é, as reconhecem e se reconhecem nelas. É esse reconhecimento
que determina os homens a produzir sua existência também os determina
que transforma os indivíduos, cujas relações constituem a cidade, em
a reiterar as relações por meio das quais se engajam nessa produção – as
sujeitos de um Estado.
próprias relações sociais.
Essas relações realizam-se, pois, sob a determinação da “essência”
5.
Mas como essa transformação pode ser descrita a partir da teoria
política spinozista?
A vida política, segundo Spinoza, é um processo de organização
das relações entre os indivíduos, de composição de suas potências
singulares ou direitos naturais em um processo de produção comum. Como
visto, a tendência pela qual um homem é determinado a perseverar no
ser, buscando o que convém à sua natureza ou essência singular, somente
se pode efetivar na cidade, na vida política, através das relações que ele
estabelece com outros indivíduos de natureza semelhante à sua e que, por
isso, podem compor com ele uma potência coletiva mais eficaz na busca
ou produção das coisas de que cada um, em particular, tem necessidade.
A vida política é, pois, o lugar onde os homens podem entreter uns com
os outros relações favoráveis às suas respectivas potências singulares
e, portanto, ao seu esforço de autoconservação. Dessa perspectiva, a
vida política apresenta-se, então, como um modo de organização dos
“encontros” entre os indivíduos, dos encontros dos corpos e das mentes
124
do corpo político que constituem, isto é, a forma característica das relações
sociais em uma cidade exprime seu modo de ser, seu modo de produção.
Isto significa que, na vida política, as relações comuns que os homens são
determinados a estabelecer revestem determinada forma de acordo com
o modo pelo qual essa sociedade existe e se reproduz, conservando essas
mesmas relações constitutivas. Por isso, os homens, na vida política, pensam
e operam dentro da lógica de conservação do corpo político: eles estão
submetidos a certos tipos, e não outros, de afecções, e estas são percebidas
por certos tipos, e não outros, de ideias de afecções na imaginação. Em
virtude da contínua reiteração das relações através das quais o indivíduo
pensa e opera, e das condições sob as quais essas relações se dão, o regime
de reprodução social em que ele está inserido como “parte” tende a fazê-lo
imaginar sua prática como uma sucessão estável. Os objetos – as afecções
– apresentam-se-lhe constantemente sob as mesmas relações e seguem
freqüentemente uma mesma ordem, de tal sorte que, por mais complexa que
seja a dinâmica social, um indivíduo é capaz de reconhecer as coisas que
o afetam e os efeitos que pode esperar delas. Essa previsibilidade permite125
Cadernos Espinosanos XXIII
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Alexandre Arbex Valadares
lhe supor que as coisas atendem a fins próprios, e, assim, ele pode colocar-
A imaginação, segundo Spinoza, é, em todos os homens, a percepção
se, em relação a elas, como sujeito, confundindo as afecções, derivadas de
comum e espontânea das modificações produzidas por causas externas
causas externas que determinam sua percepção dos outros corpos e do seu
sobre seu modo de vida. Se, no estado de natureza, um homem viveria ao
próprio corpo, com “objetos” acerca dos quais ele é capaz de formar uma
acaso de encontros, que fariam variar indefinidamente suas representações
percepção autodeterminada.
imaginárias de mundo, ele é, na vida política, submetido a um tal regime de
A percepção espontânea que os homens fazem acerca das coisas,
previsibilidade que sua imaginação é determinada a revestir a forma de uma
cujas imagens lhes são recorrentemente presentes em virtude da regularidade
composição estável de representações, de idéias de afecções constantemente
das afecções, produz neles uma ideia reflexiva, isto é, uma ideia que tem
concertadas nas mesmas associações, cujos conteúdos informam sua visão
por objeto a ideia de uma afecção, a ideia de uma imagem: assim, um
de mundo. Desse modo, a imaginação individual tende a estabilizar-se na
corpo exterior modifica o corpo de um homem por meio de uma afecção,
forma determinada de uma consciência subjetiva. As idéias de imaginação
de uma imagem material; tal homem percebe a existência desse corpo
– idéias dos efeitos ou das imagens materiais das coisas que nos afetam –
exterior por uma ideia de sua imagem ou afecção, e, em um nível reflexivo,
são o elemento constitutivo da consciência, e é precisamente neste teatro
percebe como seu o corpo afetado e como sua a mente que forma dessa
de formas que são plasmados, com aparência de criações espontâneas do
afecção uma ideia. A mente é uma ideia do corpo, uma ideia do conjunto
espírito, os juízos e opiniões, os valores e, por conseguinte, as disposições
de afecções que modificam o corpo em dada atualidade. Ela afirma, pela
de obediência e de reconhecimento de autoridade.
percepção dessas afecções, a existência do corpo, mas, no nível reflexivo,
A consciência é a imaginação socialmente estruturada, modificada
converte-se ela mesma em objeto de outra ideia, pela qual se percebe a
pela interpelação ideológica. O repertório estável das representações dos
si própria. A mente tem, pois, uma ideia de si mesma, uma consciência;
homens corresponde ao regime regular de suas práticas sociais, exprime a
na medida em que a mente é uma ideia do corpo e este é percebido por
percepção dominante ou universal que eles têm acerca de tais práticas, e
suas afecções, a mente existe como um conjunto de ideias de afecções que
estas exprimem a forma dominante ou universal das relações sociais que
corresponde ao conjunto das partes afetadas do corpo. Como as ideias de
eles estabelecem uns com os outros, cuja reprodução é efeito e condição da
afecções envolvem, sempre, uma imagem do corpo afetante e uma imagem
dinâmica de conservação do corpo político. Noutros termos, a consciência
do corpo afetado, o substrato comum a todas as ideias de afecções é a
é a imaginação estruturada segundo a ideologia dominante (ou universal)
imagem desse corpo, e por isso a mente percebe-o como seu. O que reduz
correspondente à forma dominante (ou universal) das relações sociais
a variedade das ideias de afecções à unidade da consciência é a ideia que
que caracterizam o corpo político, que definem sua dinâmica imanente de
a mente é determinada a formar de si mesma, a capacidade da mente de
conservação ou seu modo de produção.
vincular as representações das coisas percebidas a uma representação de
A diferença entre “imaginação” e “consciência”, no plano
si mesma, na medida em que as percebe. Essa percepção espontânea toma
individual, é análoga à diferença entre “multidão” e “povo”, no plano
nela a forma de uma consciência subjetiva.
político, e remete à distinção conceitual, cunhada por Althusser (1), entre
127
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Alexandre Arbex Valadares
“indivíduo” e “sujeito”. A noção de “povo” designa sempre um sujeito
ocupar essa posição, quer a ocupe em virtude de um direito hereditário,
político, que se define em relação a um Estado, tanto no sentido de
divino ou de guerra, o fato é que, dada a maneira pela qual a potência
“sujeição” – sujeito ao direito, isto é, à lei, à autoridade do Estado – quanto
da multidão se distribui, como graus de poder, entre os cidadãos, aqueles
no sentido de “autonomia” – sujeito de direito, ou seja, sujeito coletivo
que se apropriam de uma parcela maior dessa potência são aqueles que
cuja vontade faz o direito e legitima a autoridade do Estado. A multidão,
governam o Estado. O fundamento do poder político no Estado é a potência
conforme foi visto, é anterior, por definição, ao povo, assim como a cidade
da multidão, e a legitimação desse poder reflete apenas o modo através do
é anterior ao Estado. Ela não constitui um sujeito, segundo a acepção dada
qual essa potência se distribui entre os cidadãos.
há pouco: ela é um indivíduo, definido por suas relações de produção,
Esta distribuição de poder não resulta de um contrato social. Ela
de composição de potências, e consiste, como potência coletiva assim
é, por assim dizer, conjuntural, uma vez que exprime a institucionalidade
constituída, no corpo político, no corpo da cidade. O Estado é, por assim
atual dada às relações que os cidadãos estabelecem entre si. Se, por um
dizer, uma superestrutura mental em relação a essa estrutura corporal: o
lado, a cidade, o corpo político, é o fundamento constituinte que atravessa
conjunto de suas instituições diz respeito ao modo pelo qual as relações
todas as formas de organização da existência dos homens – porque os
constitutivas desse corpo são percebidas, e abrange, na sua unidade, uma
homens, conforme a história o demonstra, sempre viveram em sociedade,
visão de mundo determinada pelos efeitos dessa percepção. É no nível do
e, conforme sua natureza determina, não podem efetivar seu direito natural
Estado – na esfera das instituições – que a multidão, indivíduo composto de
senão nas relações comuns com outros homens –, por outro lado a forma
indivíduos, se concebe como povo, sujeito composto de sujeitos; e é nesse
de governo sob a qual tais relações se institucionalizam não é perene, e a
mesmo nível que as imaginações individuais – e os juízos particulares
sua estabilidade no tempo depende da conservação da estrutura de relações
acerca do bom e do útil – convergem em uma mesma forma de consciência
a partir da qual ela se erigiu. Noutras palavras, para que uma forma de
subjetiva –, em um conjunto de valores morais universais.
Estado siga existindo, é preciso que os homens que dele participam, ao
A multidão, pois, é sempre sujeito no Estado? Sim, se considerarmos
mesmo tempo que se empenham na produção de efeitos bons ou úteis à
que ela se representa como povo, na medida em que sua potência coletiva
conservação de suas existências singulares, sejam determinados a produzir
– a soberania – é, no Estado, no âmbito de uma forma de governo definida,
efeitos bons ou úteis à conservação do Estado. No entanto, quando essa
exercida como poder por uma autoridade. A multidão, está visto, engloba
correspondência deixa de existir, isto é, quando os homens deixam
dominantes e dominados: todos são partes do corpo político. A separação
de perceber, em uma dada forma de Estado, um elemento útil ou bom
ocorre no nível do Estado, isto é, no nível das instituições, segundo o lugar
à conservação de suas existências singulares, eles podem buscar outras
ou a função que cada cidadão desempenha nelas, e às quais corresponde
formas de estabelecer relações, de conjugar suas potências, dando ao corpo
um grau determinado de poder, uma parcela da potência da multidão.
político uma outra composição. Nesse caso, pode-se dizer que a multidão
Spinoza não se ocupa de distinguir os variados mecanismos de legitimação
se reapropria de sua potência coletiva, da soberania, e, a partir disso,
dessa autoridade: quer tenha ela obtido anuência dos demais cidadãos para
refunda o Estado. Ela deixa de operar como sujeito, e passa a atuar como
129
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Alexandre Arbex Valadares
indivíduo. É essa inflexão que caracteriza o processo revolucionário, tal
é, a percepção espontânea de sua prática social, que informam o conteúdo
como Spinoza sugere no TP (III, 9).
da imaginação e das paixões dos homens. Por essa razão, se assegurar a
Da mesma forma que o corpo humano, sob ação de afecções, pode
estabilidade do Estado implica conter a multidão dentro de certos limites
ser “sujeito de contrários”, a unidade da multidão não exclui o conflito do
– afetivos, imaginativos –, as instituições que caracterizam essa forma
corpo político. Em um, como em outro, a conservação da existência não diz
de Estado tendem a incitar as paixões ou fazer circular as imagens que
respeito à ausência de modificações, à imobilidade – o equilíbrio dinâmico
concorrem para a manutenção de sua estrutura de poder por meio da qual
dos corpos depende da regeneração de suas partes constitutivas, assim
a potência da multidão se distribui entre os cidadãos.
como a estabilidade dos Estados pode requerer a realização de reformas
Seria controverso sustentar que Spinoza defende, no TP, a saída
em suas instituições –, mas concerne, antes, à preservação da estrutura
revolucionária, visto que, em variadas passagens, ele define, como razão
característica das relações em que suas partes constitutivas se compõem.
de ser do Estado, a garantia da paz e da segurança. Por outro lado, as
No corpo político, essas relações são as relações sociais de produção, e é
diretrizes práticas de organização que Spinoza recomenda, no TP, aos
da reprodução da estrutura característica das relações sociais que depende
Estados monárquico e aristocrático – a divisão de poderes, a criação
a conservação do Estado, entendido como forma de governo ou regime de
de assembleias e conselhos de composição multitudinária e rotativa, a
distribuição, entre os cidadãos, da potência coletiva da multidão.
propriedade comum do solo etc. – não têm outro fim que, preservando
Dentro do Estado, a parcela de poder – político, econômico,
os símbolos e aparências de cada uma, dotar essas formas de governo
simbólico – de cada cidadão é determinada por sua posição nessa
de uma institucionalidade democrática. A democracia, como Spinoza a
distribuição, e não por sua potência singular isoladamente considerada.
concebe, é o mais natural dos regimes porque favorece em maior grau a
Por outro lado, uma vez que os homens tendem, por natureza, a buscar
realização do direito natural dos homens, na medida em que produz uma
modos de composição de relações melhores e mais úteis à sua conservação,
estrutura mais dinâmica e equânime de distribuição da potência coletiva
o Estado, ao dar institucionalidade às relações, estabiliza-as e as faz
da multidão. Permitindo aos cidadãos tomar parte nas deliberações
convergir para a reprodução da estrutura de relações que caracteriza a sua
políticas e assegurando-lhes a liberdade de pensamento e o acesso aos bens
forma. Como os homens empreendem essa busca, guiados pelas paixões e
necessários à vida, ela favorece a busca de cada um deles por estratégias de
pela imaginação, a conservação do Estado como conjunto de instituições
composição de relações melhores e mais úteis. Embora, por essas mesmas
passa pelos mesmos mecanismos imaginativos e passionais pelos quais
razões, o regime democrático pareça mais suscetível à instabilidade, a
os homens operam. Por isso, as instituições, que definem o espaço da
liberdade de constituir relações, de conjugar suas potências em uma
prática social ao delinear o circuito através do qual se dão as relações,
prática comum tende a tornar mais presente aos homens a ideia de sua
funcionam como grandes “corpos” dentro do corpo político, “corpos” que
utilidade recíproca. Se o corpo humano é tanto mais potente quanto maior
determinam por assim dizer o tipo de afecções a que os homens desse
sua capacidade de ser afetado e assimilar modificações (E, IV, 38), e se
corpo político são sujeitos. São as ideias dessas “afecções políticas”, isto
a mente se torna, por isso, tanto mais apta a perceber um grande número
131
Cadernos Espinosanos XXIII
Alexandre Arbex Valadares
de coisas e formar uma ideia mais perfeita de seu estado, pode-se dizer
5.. SPINOZA, Baruch. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica,
2008.
que a potência coletiva do corpo político é tanto maior quanto mais as
suas relações constitutivas favorecerem a afirmação dos direitos naturais
individuais. Assim também, o Estado será tanto mais conforme à natureza
dos homens (e por isso mais estável) na medida em que suas instituições
favorecerem as paixões ou afetos que disponham os homens a perceber
6.. SPINOZA, Baruch. Tratado da reforma da inteligência. São Paulo: Martins Fontes,
2004.
7.. SPINOZA, Baruch. Tratado teológico-político. Tradução e prefácio de Diogo Pires
Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
8.. SPINOZA, Baruch. Tratado político. Lisboa: Editorial Estampa. 1977.
como coisa boa ou útil as suas próprias relações comuns.
Images and analogies of the body and
the mind in Spinoza’s politics
Abstract: This article proposes to study some interpretative possibilities raised
by analogy of the image of the human body and the structure of the political body.
Beginning by discussing the dynamics of production of bodies in nature, the text
provides an analysis of the contradiction between two thesis presented in the work of
Spinoza - one in his ontology, and another in politics -, which are formulated in terms
of the analogy of human body with the political body . Then this analogy spreads in
a comparison between the human mind and what might be called a “mind” of the
political body, by discussing the two levels of politics - the city (civitas) and the State
(imperio). Finally it is proposed an interpretation of the production process of ideas in
political life in the light of Althusserian theory of ideology.
Keywords: Spinoza, politics, body, imagination, ideology.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. ALTHUSSER, Louis. Idéologie et appareils idéologiques d’État (Notes pour une
recherche).Positions. Paris: Les Éditions Sociales, 1976.
2. BOVE, Laurent. Introduction. In: SPINOZA, B. Traité Politique. Paris: LGF,
2002.
3. MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Minuit,
1988
4. NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem. São Paulo: Ed. 34, 1993.
132
133
Imaginação: entre o medo e a liberdade
Daniel C. Avila*
Resumo: Medo e esperança aparecem na história da filosofia como problemas situados
na dimensão temporal da existência. Espinosa acompanha essa tradição, bem como o
uso da filosofia como uma medicina animi, porém reserva para si algumas diferenças.
Ressaltando o papel da imagem na constituição de medo e esperança, demarca a via pela
qual estes dois afetos são necessariamente produzidos pela limitação da imaginação
à duração dos corpos. No entanto, quando livre dos impedimentos à sua potência, a
mente é capaz de ordenar e concatenar as afecções do corpo, considerando a si mesma
sem relação ao corpo, sob uma nova perspectiva. O tratamento do problema do medo,
portanto, não se localiza no tempo presente, mas sim na eternidade.
Palavras-Chave: Benedictus de Espinosa, esperança, medo, imaginação, liberdade.
Mostre-me um homem que não é um escravo; um é escravo
do sexo, outro do dinheiro, outro da ambição; todos são
escravos da esperança ou do medo (Sêneca 4, Ep. 47, p. 95)
Em uma imagem poética que Sêneca emprega na carta V da
correspondência mantida com Lucílio, esperança e medo marcham “juntas,
como um prisioneiro e a escolta à qual se prendem suas algemas” (Sêneca
4, Ep. 5, p. 38). Mas ainda que a afinidade íntima entre esses afetos possa
ser considerada fonte de temor a um aprendizado ético, o estóico prescreve
* Mestrando em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano - Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo.
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Cadernos Espinosanos XXIII
Daniel C. Avila
uma solução, tomando emprestado um escrito de Hecato: “’Deixe de ter
uso, o homem se depara com uma situação completamente desfavorável,
esperança’, ele diz, ‘e você deixará de ter medo’” (idem).
até mesmo se comparado com os animais, sem encontrar em tempo algum
Para o estóico romano, medo e esperança, assim como as outras
qualquer paz. Por outro lado, a constituição de um modo de vida correto,
paixões, seriam doenças das quais o homem deve ser curado. Mas como
curado das paixões nocivas, é possível a partir de um aprendizado ético
a medicina, enquanto técnica do bom funcionamento do corpo, não
que, por uma educação da imaginação, combatendo sua ignorância, retorne
alcançasse em seu ofício tal empresa, à filosofia é feita a convocação a agir
ao tempo atual. No diagnóstico final de Sêneca, apenas encontrando no
sob a forma de uma terapia, sob as vestes de uma medicina animi. O exame
presente sua força de agir e existir é que o homem pode exercer um bom
filosófico que apresenta Sêneca é que medo e esperança
uso de suas faculdades projetivas, em prol de uma vida plena e feliz.
Aquestão do medo e da esperança na filosofia de Espinosa estabelece-
pertencem a uma mente em suspense, a uma mente em
estado de ansiedade por mirar sempre o futuro. Ambos são
devidos principalmente à projeção de nossos pensamentos
além de nós mesmos em lugar de nos adaptarmos ao
presente. É assim que a previsão, a maior benção que foi
dada à humanidade, é transformada em maldição. Animais
selvagens fogem dos perigos que realmente vêem e, uma
vez que tenham escapado, não mais se preocupam. Nós,
entretanto, somos atormentados de maneira idêntica pelo que
já aconteceu e o que irá acontecer. Um número de bênçãos
fazem-nos mal, pois a memória traz de volta a agonia do
medo enquanto a previsão a traz prematuramente. Ninguém
confina sua tristeza ao presente (idem).
se, em uma primeira aproximação, sobre as mesmas considerações que são
abordadas por Sêneca. Assim por exemplo, Espinosa afirma que o “medo
é uma tristeza e, já que a esperança não existe sem o medo, ela também
não tem nada em si que a faça útil ao homem” (Spinoza 5, E V, P47 dem,
p. 324). Isso não significa que, para Espinosa, medo e esperança sejam
necessariamente maus ao homem, dado que o medo pode ser utilmente
empregado na supressão de uma alegria excessiva, assim como a esperança
pode evitar o desespero quando se imagina algo que exclui a idéia de algo
que certamente causaria mal no futuro. A utilidade de ambos afetos, no
entanto, é indireta e não depende deles em si. Não obstante, o medo e,
sobretudo a esperança, adquirem um papel fundamental na constituição
da melhor forma que pode adotar um regime qualquer, tema exposto no
Sêneca demarca, portanto, o problema do medo e da esperança na
dimensão temporal da existência. São paixões que afetam o homem em
um descompasso cognitivo envolvido em conflitos com presente, que o
assolam de tal maneira que ele pode apenas recorrer ao deslocamento dos
seus mecanismos imaginários a instantes transcendentes, refugiando-se
em outro tempo. Tal atividade patológica da imaginação torna possível que
um medo futuro seja tão ameaçador quanto um já passado, e por isso ela
deve ser o centro do tratamento. Pois, reduzida a potência de prever a esse
136
Tratado Político, porém que escapa do escopo do atual trabalho.
Da mesma maneira que Sêneca, Espinosa também acredita que
medo e esperança são afetos que se originam a partir de uma disposição
inadequada da imaginação, atrelada a uma temporalidade transcendente
isto é, uma temporalidade dada na imaginação e que está para além do
presente atual, indo em direção ao passado ou ao futuro: “a esperança nada
mais é do que uma alegria instável, surgida da imagem de uma coisa futura
ou passada de cuja realização temos dúvida. O medo, por outro lado, é uma
137
Cadernos Espinosanos XXIII
Daniel C. Avila
tristeza instável, surgida igualmente da imagem de uma coisa duvidosa”
lhe está presente, até que o corpo seja afetado de um afeto que exclua a
(Spinoza 5, E III P18 esc 2, p. 187). Espinosa também afirma que o
existência ou a presença desse corpo” (Spinoza 5, E II, P17, p. 111). Ainda
problema da esperança e do medo deve ser resolvido em uma dimensão
que a idéia de uma coisa presente e existente seja diferente da idéia de
cognitiva, pois são afetos que indicam uma carência de conhecimento
uma coisa não presente, isto é, sobre a qual não se pode ter certeza sobre
e uma impotência da mente. Conseqüentemente, quanto mais o homem
a sua existência, a força com que a imaginação pode fornecer explicações
se esforça em viver sob a condução da razão, tanto menos depende da
à mente sobre a realidade atual é a mesma com a qual ela torna presentes
esperança e se livra do medo.
as imagens das coisas que já não estão à sua percepção. Assim, no escólio
Apesar dos pontos comuns, a chave para compreender a solução
dessa proposição, Espinosa afirma que a diferença da idéia de Pedro, que
proposta por Espinosa como tratamento está localizada em uma outra
constitui a mente do próprio Pedro, e a idéia desse mesmo Pedro que existe
dimensão temporal. Para Sêneca, como vimos, o homem livre do medo e
em outro homem (Paulo) é que a primeira explica a essência do corpo de
da esperança vive voltado para o presente, enquanto que para Espinosa, a
Pedro e não envolve a existência senão enquanto Pedro existe, e a segunda
estratégia para esse combate é “dominar, o quanto pudermos, o acaso; e por
indica mais o estado do corpo de Paulo (ou seja, a afecção cuja causa
dirigir nossas ações de acordo com o conselho seguro da razão” (Spinoza
é o corpo de Pedro), que a natureza de Pedro. Assim, enquanto durar o
5, E IV, P47 esc, p. 321). Trata-se, na visão espinosana, não apenas de
estado do corpo de Paulo, sua mente considerará Pedro como lhe estando
viver o presente, mas de confrontar a ordem comum da natureza, com seus
presente, mesmo que Pedro já não mais exista.
encontros fortuitos que produzem um conhecimento confuso e mutilado,
Após essa passagem, Espinosa define a noção de imagem:
e submetê-la ao império da razão, do conhecimento claro e distinto. Mais
“as afecções do corpo humano, cujas idéias nos representam os corpos
ainda, trata-se de operar um esforço para que a mente seja internamente
exteriores como estando presentes, embora elas não restituam as figuras
determinada e possa compreender a si mesma, a Deus e às coisas, sob um
das coisas” (Spinoza 5, E II, P17 esc, p. 111), o que anuncia uma verdadeira
aspecto de eternidade, em sua maior parte com relação à parte sua cuja
liberdade da mente quando esta despreza o erro da faculdade de imaginar
determinação é externa e acompanhada da impotência cognitiva, efeito da
e a supera como fonte única de conhecimento. De fato,
imaginação orientada à transcendência.
Essa incrível potência da imaginação em representar, no tempo
presente, afetos ligados ao passado e ao futuro, tem as suas causas necessárias
explicadas na segunda parte da Ética, onde Espinosa dedica parte de seu
texto à demonstração do modo de funcionamento da imaginação. De acordo
com a proposição 17 dessa parte: “Se o corpo humano é afetado de uma
maneira que envolve a natureza de algum corpo exterior, a mente humana
considerará esse corpo exterior como existente em ato ou como algo que
138
a mente não erra por imaginar, mas apenas enquanto é
considerada como privada da idéia que exclui a existência
das coisas inexistentes como se lhe estando presentes. Pois,
se a mente, quando imagina coisas inexistentes como se lhe
estivessem presentes, soubesse, ao mesmo tempo, que essas
coisas realmente não existem, ela certamente atribuiria essa
potência de imaginar não a um defeito de sua natureza, mas
a uma virtude, sobretudo se essa faculdade de imaginar
dependesse exclusivamente de sua natureza, isto é, se ela
fosse livre (idem).
139
Cadernos Espinosanos XXIII
A causa necessária, portanto, que determina que a mente seja
que todas as coisas particulares são experimentadas como contingentes e
afetada de maneira idêntica pelas imagens de uma coisa presente e de
corruptíveis, deduz que não se pode ter delas, em sua duração, qualquer
outra não presente é a servidão da imaginação à duração. Ora, sendo
conhecimento adequado. E, como complementa o escólio da proposição
determinada pela ordem comum da natureza e pela presença e ausência
33, não há “nenhuma outra razão para se dizer que uma coisa é contingente,
das coisas, a mente despreparada pode apenas imaginar a sua existência,
a não ser a deficiência de nosso conhecimento” (Spinoza 5, E I, P33 esc, p.
afastando de seu julgamento suas respectivas durações. Espinosa alerta o
57). É o conhecimento inadequado, engendrado pelo binômio imaginação-
leitor da Ética para o perigo que emana de tal propriedade da imaginação,
duração, que explica, portanto, a potência da imaginação em persistir na
afirmando nas proposições 30 e 31 que da duração do nosso corpo e
representação de idéias transcendentes ao presente e, por esse mesmo
das coisas singulares que nos são exteriores não se pode ter senão um
caminho, a servidão ao medo e à esperança. Espinosa demonstra, assim, a
conhecimento extremamente inadequado. Isso se dá, como ele demonstra,
via cognitiva pela qual estes dois afetos são necessariamente produzidos
porque a duração de um corpo não depende de sua essência (pelo axioma
por uma imaginação limitada à duração. De maneira paradoxal, é como
1 dessa parte) nem da natureza absoluta de Deus (pela proposição 21 da
se o sujeito esperançoso ou medroso estivesse, como na definição de
primeira parte). A duração do corpo e das coisas singulares depende apenas
Sêneca, alienado de seu presente; contudo, ao mesmo tempo, esse
da ordem comum da natureza e do estado das coisas, de modo que a idéia
apelo à transcendência deve ser compreendido como causado por uma
imaginativa a respeito da duração desses corpos é inadequada por não
“intoxicação” do presente, limitada à duração dos corpos.
se referir à sua essência nem à natureza de Deus e, assim, não permite
considerar as idéias que não têm como objeto este corpo.
140
Daniel C. Avila
É de se notar que o próprio Espinosa já se dava conta dos riscos
que corria com tais afirmações, o que se verifica na digressão ao final de
Em contraposição à força com a qual a idéia referida à duração
um escólio da segunda parte da Ética, no qual solicita que elas somente
exprime a extrema inadequação da imaginação, Espinosa apresenta a idéia
sejam julgadas quando o leitor tenha “lido tudo até o fim” (Spinoza, E II, P11
clara e distinta do conhecimento adequado, necessariamente existente
esc, p. 95). A razão de tal cautela se explica pela severidade com que esse
em Deus visto que ele, em seu intelecto divino, possui as idéias do corpo
pensamento, implicando a afirmação de uma ontologia do necessário, choca-
humano e de todas as outras coisas. A forma adequada de conhecer a
se com a tradição teológico-metafísica do possível (Chaui 1 e Chaui 3).
realidade é, portanto, aquela que parte da idéia que “a mente humana é
A corrente teológico-metafísica à qual Espinosa se contrapõe é
uma parte do intelecto infinito de Deus” (Spinoza 5, E II, P11, p. 95) para
aquela fundada sobre a oposição entre os binômios liberdade-vontade e
apreender o conhecimento da duração do corpo em Deus, isto é, para além
necessidade-natureza, com a conseqüente localização de Deus no primeiro
da ordem comum da natureza e dos estados de corpo, referindo-o à sua
termo, associando-o à imagem de um agente que opera por vontade própria
essência e à natureza de Deus.
tendo um fim em vista. Tendo Deus criado o mundo porque quis - assim
O arremate de tal denúncia é apresentado no corolário da
como poderia não tê-lo criado se assim o quisesse -, os seres singulares da
proposição 31 dessa parte, quando Espinosa, por meio da afirmação de
Natureza são considerados como frutos de uma ação voluntária e, por isso,
141
Cadernos Espinosanos XXIII
142
Daniel C. Avila
condenados a realizar aquilo que lhes é necessário e involuntário. Nessa
Essa vinculação é possível na medida em que a mente age, isto é,
oposição entre o reino da liberdade e o da necessidade, qualquer objeto
em que se converte em causa total dos afetos. Pois a mente interiormente
de escolha é contingente, pois as leis da natureza só são necessárias na
disposta torna-se a causa adequada do conhecimento de si, de Deus e das
medida em que Deus teve essa vontade. E, assim, a tradição teológico-
coisas, constituindo a via cognitiva (isto é, por meio do conhecimento) à
metafísica conjuga liberdade e necessidade em uma seqüência causal, de
liberdade. E, nessa nova perspectiva, a mente funda uma nova relação com
modo que da vontade de Deus surge a necessidade da Natureza.
a eternidade ontológica.
Contudo, quando esse pensamento se aplica no interior do
O conhecimento em estado de servidão à duração do corpo e das
campo político, a transcendência teológico-política transfere o direito de
coisas singulares é um conhecimento inadequado por não se referir à sua
governar do monarca celeste ao monarca terrestre sob a égide da Teoria da
essência nem à natureza de Deus. Por outro lado, como Espinosa afirma
Monarquia Absoluta. Trata-se da base da teocracia: o rei é soberano pela
na proposição 38 da parte II: “Aqueles elementos que são comuns a todas
vontade de Deus - ou pela graça divina -, de quem recebe não só o poder,
as coisas, e que existem igualmente na parte e no todo, não podem ser
mas também as marcas que o tornam semelhantes ao monarca celeste. Este
concebidos senão adequadamente” (Spinoza E II, P38, p. 129). Essa é uma
é uma pessoa transcendente ao universo, dotado de inteligência onisciente
proposição importante à epistemologia espinosana na medida em que é
e vontade onipotente, criador do mundo a partir do nada, simplesmente por
nela, e mais ainda na exposição de seu corolário, que Espinosa afirma a
um ato contingente de sua vontade que assim o quis. Da mesma maneira,
existência de idéias ou noções comuns a todos os homens, dado que todos
o monarca terrestre, escolhido de forma contingente pela vontade divina,
os corpos estão em concordância quanto a certos elementos presentes no
inaugura o espaço social que está fora e acima da sociedade, depositando
todo e nas partes, os quais devem ser percebidos por todos adequadamente,
em sua vontade a força da lei (Chaui 1).
ou seja, clara e distintamente.
Desse modo, a metafísica se constitui enquanto ciência do possível
O critério que define tal adequação é apresentado posteriormente,
na medida em que “seu objeto são os transcendentais segundo os quais
na proposição 40: “Todas as idéias que, na mente, se seguem de idéias
se definem os universais como essências possíveis aptas à existência, que
que nela são adequadas, são igualmente adequadas” (Spinoza E II, P40,
passam a existir por um ato da vontade divina criadora“ (Chaui 1, p. 2). E a
p. 133). Assim, as idéias que são causadas pela essência da mente, e não
vinculação do desejo ao futuro, à falta, à ausência, isto é, a tudo aquilo que
mais originárias da imagem corporal das afecções, são idéias adequadas,
é considerado como possível, determina a servidão voluntária do homem.
e causa das noções comuns que constituem os fundamentos da capacidade
Inversamente, portanto, a filosofia espinosana trata de fundar uma ciência do
humana de raciocínio. Espinosa agrega a essa afirmação, no segundo
necessário por meio de um conhecimento dos universais (isto é, as noções
escólio da proposição, uma discussão sobre a formação dos conceitos
comuns) e das essências singulares que existem devido à necessidade
universais transcendentais. A elaboração de seu argumento é a explicação,
absoluta de Deus. E, por fim, de exercer um vínculo do desejo à necessidade
já apresentada no escólio da proposição 17, de tal formação por sua causa
de uma potência plena, determinando-o por uma livre necessidade.
necessária, a saber, a limitação do corpo humano em formar em si próprio,
143
Cadernos Espinosanos XXIII
Daniel C. Avila
distinta e simultaneamente, apenas um número preciso de imagens, sendo
Dada a multiplicidade de disposições dos corpos que formam imagens de
incapaz de apreender a imagem de muitas coisas singulares. E a própria
homens, tais corpos entram em descordo sobre qual é o conceito possível
dedução do universal transcendental é efeito de tal limitação, pois no
e certo. Como Espinosa completa, não se deve surpreender-se pelo fato
“momento em que as imagens se confundem inteiramente no corpo, a
de “que dentre os filósofos que pretenderam explicar as coisas naturais
mente imaginará todos os corpos também confusamente e sem qualquer
exclusivamente pelas imagens dessas coisas, tenham surgido tantas
distinção, agrupando-os, como se de um único atributo se tratasse, a saber,
controvérsias” (idem). A invenção de Espinosa está, portanto, na fundação
o atributo de ente, coisa, etc” (Spinoza E II, P17 esc, p. 109).
de uma nova forma de conhecimento, baseada nos universais imanentes
O exemplo dado por Espinosa para demonstrar a constituição
formados pela mente a partir de elementos reais e concretos, presentes
dos universais transcendentais é o da formação do conceito de homem.
ao mesmo tempo nas partes e no todo, assim como nas relações entre as
Assim, por se formarem, simultaneamente no corpo humano, um número
partes e das partes com o todo. As noções comuns, justamente por isso, são
de imagens de homens que supera a capacidade de imaginar, a mente se
igualmente compartilhadas por todos os homens, independentemente do
torna incapaz de imaginar as pequenas diferenças singulares como, por
estado de seus corpos e dos corpos exteriores.
exemplo, a cor, o tamanho etc., de cada um. Desse estado, a mente é capaz
No mesmo escólio, são apresentadas três maneiras de formar
apenas de imaginar aquilo que, em todos os homens – conquanto o corpo
noções universais. A primeira maneira se dá a partir de coisas singulares,
é por eles afetado –, está em concordância. Essa afecção mais comum no
representadas mutilada e confusamente pelos sentidos do corpo, sem a
conjunto das imagens dos homens que se formaram no corpo é exatamente
ordem própria do intelecto. Como demonstra a proposição 29 da segunda
aquela que, por intermédio de cada indivíduo, mais afetou esse corpo. E
parte, a idéia de uma afecção do corpo humano não envolve o conhecimento
é esse algo, em que todos os homens estão em concordância, que a mente
adequado do próprio corpo e, por não exprimir sua natureza está em
exprime pelo nome de homem, formando o conceito que designa uma
discordância com a mente, isto é, consiste em uma idéia inadequada. A tais
multiplicidade de coisas singulares.
percepções, Espinosa dá o nome de conhecimento originado da experiência
Espinosa alerta, entretanto, que essas noções não são formadas
errática, pois sempre que a mente humana percebe as coisas segundo a
por todos os homens da mesma maneira. Tudo depende da razão da coisa
ordem comum da natureza e por meio das idéias das afecções, ela não tem, de
pela qual o corpo foi mais vezes afetado, e a razão pela qual a mente
si própria, nem de seu corpo, nem dos corpos exteriores, um conhecimento
imagina ou lembra mais facilmente. Assim, os que admiram a estatura do
adequado, mas apenas um conhecimento confuso e mutilado.
homem associarão à palavra homem um animal de estatura ereta, outros,
acostumados a outro aspecto, formarão dos homens uma outra imagem
comum: um animal que ri, um bípede sem penas, um animal racional etc.
“E, assim, cada um, de acordo com a disposição do seu corpo, formará
imagens universais das outras coisas” (Spinoza, E II, P40 esc 2, p. 133).
144
Afirmo expressamente que a mente não tem, de si
própria, nem de seu corpo, nem dos corpos exteriores, um
conhecimento adequado, mas apenas um conhecimento
confuso, sempre que percebe as coisas segundo a ordem
comum da natureza, isto é, sempre que está exteriormente
determinada, pelo encontro fortuito com as coisas, a
145
Cadernos Espinosanos XXIII
146
Daniel C. Avila
Certamente, no caso de uma série de números simples, o cálculo
considerar isto ou aquilo. E não quando está interiormente
determinada, por considerar muitas coisas ao mesmo tempo,
a compreender suas concordâncias, diferenças e oposições
(Spinoza, E II, P29 esc, p. 123)
do comerciante e o do geômetra têm como efeito o mesmo resultado.
Além do conhecimento originado da experiência errática, Espinosa
relação entre os dois primeiros números, na medida em que o comerciante
agrega também a esse gênero o conhecimento a partir de signos: “por
apenas emprega operações com as quais já está se acostumou por meio do
exemplo, por ter ouvido ou lido certas palavras, nós nos recordamos das
hábito. Para o primeiro existe uma idéia clara que envolve as idéias dos
coisas e delas formamos idéias semelhantes àquelas por meio das quais
elementos singulares, enquanto que o segundo a ignora. Ainda que, no
imaginamos as coisas” (Spinoza, E II, P40 esc 2, p. 135). De uma maneira
caso dos números simples, o conhecimento de primeiro e segundo gênero
geral, esse primeiro gênero de conhecimento tem como característica a
cheguem ao mesmo resultado, o mesmo não é valido para uma série de
determinação externa da mente por meio da idéia imaginativa inadequada.
números complexos. Por outro lado, apesar da diferença entre os dois
Em contraposição, quando a mente se encontra interiormente arranjada, as
gêneros, quando aplicados a números simples, um não contradiz o outro,
coisas são consideradas de forma clara e distinta de acordo com o segundo
isto é, não há hierarquia entre os gêneros de conhecimento, no sentido de
e o terceiro gênero de conhecimento.
que um suprime, anula ou elimina o conhecimento obtido pela via de um
A diferença é que a explicação geométrica faz uso de uma propriedade
comum à série numérica, isto é, a proporção ou razão, deduzida a partir da
O segundo gênero de conhecimento se caracteriza pelas
outro. O que existe é uma diferença de potência, dado que um gênero pode
noções comuns e as idéias adequadas das propriedades das coisas. Para
mais ou menos que outro, em uma construção ativa da mente na qual os
demonstrar o modo de funcionamento desse gênero, Espinosa compara
conhecimentos de distintos gêneros ocupam partes maiores ou menores da
a resolução de um mesmo problema, efetuada por comerciantes e por
mente em uma situação de colaboração conjunta.
um geômetra: “Sejam dados três números, com base nos quais quer se
Uma das propriedades do conhecimento de segundo gênero é a de
obter um quarto que esteja para o terceiro como o segundo está para o
produzir as condições sob as quais a mente pode concatenar as afecções
primeiro” (Spinoza, E II, P40 esc 2, p. 135). Os comerciantes, limitados
corporais em uma ordem própria à sua essência e, assim, determinar-se
ao primeiro gênero, não hesitam em multiplicar o segundo pelo terceiro
a si mesma. Isto ocorre porque, como mostra a proposição 10 da parte
e dividir o produto pelo primeiro, “ou porque não esqueceram ainda o
final da Ética: “Durante o tempo em que não estamos tomados por afetos
que ouviram seu professor afirmá-lo, sem qualquer demonstração, ou
que são contrários à nossa natureza, nós temos o poder de ordenar e
porque experimentam-no, freqüentemente, com números mais simples”
concatenar as afecções do corpo segundo a ordem própria do intelecto”
(idem). Já o geômetra resolve o problema por meio da demonstração da
(Spinoza, E V, P10, p. 379). Justifica-se, assim, a necessidade humana
proposição 19 do livro 7 dos Elementos de Euclides, isto é, por causa
por regras de vida que afastem da mente quaisquer afetos que sejam
da propriedade comum dos números proporcionais, empregando um
contrários à sua natureza (idéias inadequadas e afetos passivos), pois
conhecimento de segundo gênero.
durante esse afastamento toda a sua potência pela qual se esforça em
147
Cadernos Espinosanos XXIII
compreender a natureza das coisas não está impedida.
148
Daniel C. Avila
às coisas singulares que são consideradas como ausentes, exigindo-se,
A idéia de potência da mente é explicada na proposição 26 da
para refrear os afetos ordenados e concatenados segundo a ordem própria
quarta parte da Ética: “Tudo aquilo pelo qual, em virtude da razão, nós
do intelecto, uma força maior do que a requerida para refrear os afetos
nos esforçamos, não é senão compreender; e a mente, à medida que utiliza
imprecisos e erráticos.
a razão, não julga ser-lhe útil senão aquilo que a conduz ao compreender”
Um aprendizado ético, enquanto não atinge um conhecimento
(Spinoza 5, E IV, P26, p. 293). De fato, a razão é o modo finito que
adequado dos afetos, exige um princípio correto de viver, orientado
compartilha absolutamente a essência da mente, pois a essência da razão
por noções comuns. Essas regras seguras de vida, quando confiadas à
não é senão a mente, à medida que compreende clara e distintamente
memória e aplicadas continuamente aos casos particulares podem afetar
(Spinoza 5, E IV, P26 dem, p. 293 - 295). De maneira inversa, em
continuamente a imaginação e, estando sempre à disposição na experiência
virtude da razão significa uma ação da mente em compreender clara e
cotidiana, tornam a mente, tanto quanto possível, afastada dos afetos que
distintamente. Assim, não apenas a razão está em conformidade com a
compõem um impedimento à sua potência.
constituição ontológica da mente, mas também com o seu conatus, pois o
Seguindo essa orientação, Espinosa deduz, no escólio da
“esforço por se conservar nada mais é do que a essência da própria coisa,
proposição 10 da quinta parte, o principio de que ódio deve ser combatido
a qual, à medida que existe como tal, é concebida como tendo força para
com amor em vez de ódio recíproco. Essa noção comum convém para
perseverar no existir e para fazer aquilo que se segue, necessariamente,
que a razão esteja sempre à disposição dos homens, todas as vezes que se
de sua dada natureza” (Spinoza, E IV, P26 dem, p. 293).
depararem com um encontro carregado de ódio. Ora, se um conhecimento
Da mesma maneira, um impedimento à potência da mente é
inadequado poderia conduzir a uma reação de ódio igual ou mais forte
uma idéia que, sem o ordenamento próprio da razão, apresenta-se como
nesse tipo de situação, com essa noção o homem passa a pensar e a refletir
conhecimento inadequado e, assim, contradiz a natureza da mente. Tal
sobre as ofensas habituais dos outros e de si mesmo, bem como a maneira
contradição tem como efeito a diminuição da potência da mente em
e a via pelas quais elas podem ser mais efetivamente rebatidas por meio da
fazer aquilo que se segue de sua natureza, isto é, compreender clara e
generosidade. Nesse caso ocorre que, no interior da imaginação, a imagem
distintamente. Segue-se daí o critério que define se algo é bom ou mau,
da ofensa está unida à imaginação dessa regra e, por isso, está sempre à
isto é, se algo nos leva efetivamente a compreender ou pode impedir que
sua disposição. Espinosa invoca, aqui, a proposição 18 da segunda parte
compreendamos. Porém, de que maneira pode-se fazer com que não sejamos
da Ética, afirmando que se o corpo humano foi simultaneamente afetado
facilmente mobilizados por estes afetos? Como chegamos a alcançar este
por dois ou mais corpos, sempre que a mente imaginar um desses corpos,
ordenamento e concatenação racionais das afecções do corpo? Com efeito,
imediatamente se recordará também dos outros. A associação imaginativa
dado que, como afirma a proposição 7 da quinta parte, quando se leva o
pode ser, portanto, um mecanismo complementar à razão no que concerne
tempo em consideração, isto é, a duração, os afetos que provêm da razão
à presença da noção comum ainda que no interior de uma experiência
ou que ela suscita são mais potentes do que aqueles que estão referidos
da contingência. Em seguida, Espinosa fornece um segundo exemplo e
149
Cadernos Espinosanos XXIII
Daniel C. Avila
apresenta, sob o princípio da verdadeira utilidade, o bem que se segue
como maneiras pelas quais ajuda os outros e se une a eles, porém nem
da amizade mútua e da sociedade comum, e que a suprema satisfação do
todas elas são de fato reguladas pela razão. O exclusivo ditame da razão
ânimo provém do princípio correto de viver, pois a satisfação consigo
garante que a proposição 10 se encontre no âmbito do segundo gênero
mesmo pode surgir apenas da razão e essa satisfação consigo mesmo é,
de conhecimento. A divisão da fortaleza em firmeza e generosidade se dá
na realidade, a maior coisa que se pode esperar (Spinoza 5, E IV P52 e
pelo contraste entre as ações que têm por objetivo a exclusiva vantagem
seu esc, p. 325).
do agente e aquelas que têm por objetivo também a vantagem de um outro,
Um outro exemplo refere-se ao modo pelo qual “para acabar com
respectivamente. E, da mesma maneira, como completa este escólio, “a
o medo, é preciso pensar com firmeza, quer dizer, é preciso enumerar
temperança, a sobriedade e a coragem diante do perigo, etc., são espécies
e imaginar, com freqüência, os perigos da vida e a melhor maneira de
de firmeza” (Spinoza 5, E III, P59 esc, p. 259).
evitá-los e superá-los por meio da coragem e da fortaleza” (Spinoza 5, E
A razão liberta o homem do medo e da esperança por meio do
V, P10, p. 380). Espinosa identifica o pensar com firmeza com a ação de
império sobre a fortuna. Ainda que a experiência da acaso, e a conseqüente
imaginar perigos e a melhor maneira de evitá-los e superá-los. Para isso
paixão pelo possível, tenham causas absolutamente necessárias, trata-se
contribuem a coragem (animi praesentia), isto é, a presença ou força de
de exercer, tanto quanto se pode, o domínio sobre a contingência. Não se
ânimo, e a fortaleza (fortitudine). As definições de presença de ânimo e
trata, obviamente, de afirmar que a razão possa exercer um império sobre
de fortaleza se encontram na terceira parte da Ética, quando Espinosa
a ordem da natureza, mas sim de exercê-lo sobre si mesma, engendrando a
remete “todas as ações que se seguem dos afetos que estão relacionados à
determinação interna da mente. E Espinosa finaliza o escólio da proposição
mente à medida que ela compreende, à fortaleza, que divido em firmeza e
10 concluindo a verdadeira importância do segundo gênero:
generosidade” (Spinoza 5, E III, P59 esc, p. 259). Assim, quando a mente
age sob a fortaleza ela é a causa adequada de seus afetos. A fortaleza,
assim como a razão, se encontra firmemente apoiada na afirmação do
conatus, pois é definida pelo “desejo pelo qual cada um se esforça por
conservar seu ser, pelo exclusivo ditame da razão” (Spinoza 5, E III, P59
esc, p. 259). A generosidade, por sua vez, é compreendida como o desejo
pelo qual cada ser se esforça, pelo exclusivo ditame da razão, por ajudar
os outros e para unir-se a eles por amizade. Chama a atenção o fato de
Espinosa empregar de maneira reiterativa a expressão “pelo exclusivo
ditame da razão” (ex solo rationis dictamine), como uma modalidade
afetiva. De fato, existem diversas maneiras pelas quais o homem se
esforça por conservar seu ser, todas elas agrupadas sob o conatus, assim
150
Assim, quem tenta regular seus afetos e apetites
exclusivamente por amor à liberdade, se esforçará, tanto
quanto puder, por conhecer as virtudes e as suas causas,
e por encher o ânimo do gáudio que nasce do verdadeiro
conhecimento delas e não, absolutamente, por considerar
os defeitos dos homens, nem por humilhá-los, nem por
se alegrar com uma falsa aparência de liberdade. Quem
observar com cuidado essas coisas (na verdade, elas não
são difíceis) e praticá-las poderá, em pouco tempo, dirigir
a maioria de suas ações sob o comando da razão (Spinoza
5, E V, P10 esc, p, 381)
Sendo essas regras seguras de vida pertencentes ao segundo
gênero, tem-se que a moderação do medo e da esperança se dá por uma
151
Cadernos Espinosanos XXIII
Daniel C. Avila
via cognitiva, isto é, pelo uso da razão. Pela disposição freqüente dessas
a mesma flutuação da imaginação, e tais coisas seriam consideradas
normas comuns, a mente pode se encontrar internamente disposta a
contingentes. Espinosa já antecipa no segundo corolário dessa proposição,
refletir sobre os medos singulares que se apresentam na vida cotidiana.
uma idéia que só encontrará seu pleno desenvolvimento na quinta parte:
De fato, como enuncia a proposição 28 dessa parte, o esforço ou o desejo
“É da natureza da razão perceber as coisas sob uma certa perspectiva de
por conhecer as coisas por meio do terceiro gênero de conhecimento não
eternidade” (Spinoza 5, E II, P44 esc, p. 141).
pode provir do primeiro, mas, sim, do segundo gênero de conhecimento,
É importante notar que o sujeito da cena proposta por Espinosa
pois das idéias mutiladas e confusas do primeiro gênero, não se seguem
não é um homem, mas uma criança, agente que será retomado mais
idéias claras e distintas.
tarde como aquele que não tem conhecimento adequado de si mesmo,
O conhecimento de segundo gênero demonstra-se, de fato,
necessário para que se alcance um terceiro gênero de conhecimento, ao
qual Espinosa dá o nome de ciência intuitiva. Trata-se do conhecimento
obtido a partir da idéia adequada da essência formal de certos atributos de
Deus para chegar ao conhecimento adequado da essência das coisas. Com
relação ao tempo, a razão consiste no melhor remédio para moderar os
afetos de medo e esperança, pois, segundo o escólio da proposição 44 da
segunda parte da Ética, é da natureza da razão considerar as coisas como
necessárias, não como contingentes e deve-se exclusivamente à imaginação
que as coisas possam ser consideradas, quer com respeito ao passado, quer
com respeito ao futuro, como contingentes.
Para demonstrar como se processa o mecanismo de associação
imaginária, Espinosa propõe a seguinte cena: uma criança que avista
Pedro de manhã, Paulo, ao meio-dia, e depois Simão à tarde, se no dia
seguinte visse Pedro novamente de manhã, esperaria que Paulo aparecesse
novamente ao meio-dia, e Simão à tarde. E, se visse Simão, à tarde,
imaginaria que Pedro e Paulo haviam passado durante o dia. Porém, se
em lugar de Simão, a mesma criança visse no dia seguinte Jacó passando
à tarde, sua imaginação flutuaria entre as idéias dos dois, e consideraria
ambos como dois futuros contingentes. E para todas as outras coisas
em relação com um tempo passado ou com um tempo presente, haveria
152
de Deus e das coisas.
Como os corpos humanos são capazes de muitas coisas, não
há dúvida de que podem ser de uma natureza tal que estejam
referidos a mentes que tenham um grande conhecimento de
si mesmas e de Deus, e cuja maior parte, ou seja, cuja parte
principal é eterna, e que, por isso, dificilmente temem a morte
(...) E, de fato, aquele que, tal como um bebê ou uma criança,
tem um corpo capaz de pouquíssimas coisas e é extremamente
dependente das causas exteriores, tem uma mente que,
considerada em si mesma, quase não possui consciência
de si, nem de Deus, nem das coisas. Em troca, aquele que
tem um corpo capaz de muitas coisas, tem uma mente que,
considerada em si mesma, possui uma grande consciência de
si, de Deus e das coisas (Spinoza 5, E V, P39 esc, p. 407)
O esforço do homem no sentido de sua liberdade é o de relacionarse de uma maneira plena com o tempo, isto é, encontrar a eternidade
divina a partir da experiência da duração das coisas singulares. Trata-se
de um exercício para que o corpo da infância se transforme, tanto quanto
o permite a sua natureza e tanto quanto lhe seja conveniente, em um
outro corpo, capaz de muitas coisas e referido a uma mente que tenha
extrema consciência de si mesma, de Deus e das coisas “de tal maneira
que tudo aquilo que esteja referido à sua memória ou à imaginação não
153
Cadernos Espinosanos XXIII
tenha, em comparação com o seu intelecto, quase nenhuma importância”
(Spinoza 5, E V, P39 esc, p. 407). Mas qual seria esta nova relação com
o tempo, pela via da eternidade?
Até a quarta parte da Ética, Espinosa define o primeiro e único
fundamento da virtude ou do princípio correto de viver como sendo a
busca daquilo que é útil para si, segundo o corolário da proposição 22 e a
proposição 24 da quarta parte. Porém, na proposição 41 da última parte,
ele afirma que mesmo ignorando a eternidade da mente, o homem que se
orienta pelo exclusivo ditame da razão chega à mesma conclusão e considera
como primordiais todos os afetos referidos à firmeza e à generosidade.
O tema da duração da mente, ou a mente considerada sem relação
ao corpo, aparece sob a forma de um enigma no texto da Ética ao final do
largo escólio da proposição 20 da quinta parte. A explicação do enigma
aparece somente na proposição 40, que afirma que a mente tanto mais é
perfeita quanto age. Deste modo, a parte da mente que permanece, isto é,
que é eterna, é o intelecto, pelo qual o homem exclusivamente age. Por
outro lado, a parte da mente que Espinosa demonstra perecer é a própria
imaginação, por meio da qual exclusivamente o homem padece. Pois
embora a mente não possa imaginar nem se recordar das coisas passadas,
senão enquanto dura o corpo, conforme a proposição 21, há uma parte
154
Daniel C. Avila
Essa idéia que exprime a essência do corpo sob a perspectiva
da eternidade é, como dissemos, um modo definido do pensar,
que pertence à essência da mente e que é necessariamente
eterno. Não é possível, entretanto, que nos recordemos de ter
existido antes do corpo, uma vez que não pode haver, nele,
nenhum vestígio dessa existência, e que a eternidade não
pode ser definida pelo tempo, nem ter, com este, qualquer
relação. Apesar disso sentimos e experimentamos que
somos eternos. Com efeito, a mente não sente menos aquelas
coisas que ela concebe pela compreensão do que as que ela
tem na memória. Pois, aos olhos da mente, com os quais
ela vê e observa as coisas, são as próprias demonstrações.
Assim, embora não nos recordemos de ter existido antes do
corpo, sentimos, entretanto, que a nossa mente, enquanto
envolve a essência do corpo sob a perspectiva da eternidade,
é eterna, e que esta existência da nossa mente não pode ser
definida pelo tempo, ou seja, não pode ser explicada pela
duração. Portanto, pode-se dizer que a nossa mente dura e
que a sua existência pode ser definida por um tempo preciso
apenas à medida que envolve a existência atual do corpo; e,
apenas sob essa condição, ela tem o poder de determinar a
existência das coisas pelo tempo e de concebê-las segundo a
duração (Spinoza 5, E V, P23 esc, p. 391)
sua que não é destruída quando o corpo perece e, segundo o escólio da
A permanência de uma parte da alma resolve o aparente
preposição 40, “fica evidente que a nossa mente, à medida que compreende,
problema de um modo finito ser eterno. Mais ainda, lança as bases de
é um modo eterno do pensar” (Spinoza 5, E V, P40 esc, p. 407).
um aprendizado ético contra o medo, por meio de uma educação da
Espinosa não atribui à mente humana, portanto, nenhuma
imaginação. A compreensão verdadeira e livre do tempo na filosofia de
duração possível de ser definida pelo tempo senão enquanto exprime a
Espinosa não está, como vimos, no presente, mas no seio da eternidade.
idéia atual do corpo, isto é, enquanto dura o corpo. Porém, dado que
Contudo, para alcançar essa relação plena com a dimensão temporal, a
a expressão da essência do corpo na mente é concebida pelo próprio
mente necessita tornar-se, tanto quanto possível, internamente disposta.
intelecto de Deus, essa expressão é algo que pertence à essência da mente
A condição de existência desse movimento afetivo e cognitivo, contudo,
e é necessariamente eterno.
não se limita ao seguimento de regras e princípios de vida que estimulem
155
Cadernos Espinosanos XXIII
Daniel C. Avila
a razão como um exercício do desejo para além da duração, do medo
Imagination: between fear and freedom
e da esperança. É o próprio exercício da potência de pensar, livre dos
impedimentos que lhe constituem as idéias inadequadas e os afetos
passivos, que permite à mente conceber o corpo, Deus e as coisas sob a
perspectiva da eternidade. Pois, quando internamente disposta, a mente
considera os demais modos como estritamente necessários, ao passo que
quando é afetada pelo medo e pela esperança vincula-se à imaginação da
contingência temporal do passado e do futuro.
Restaria agora perguntar-nos qual seria a relação mantida pelo
homem, plenamente orientado pela razão, com o medo e a esperança.
Abstract: Fear and hope appear in the history of Philosophy as problems located in
temporal dimension of existence. Espinosa follows this tradition, as well as the use
Philosophy as a medicina animi, but sets apart for himself some differences. Giving
prominence to the role of image in fear and hope constitution, he delimits the way by
which these affects are necessarily produced by the limitation of imagination to body
duration. However, when freed of the impediments to its potency, the mind is able to
ordinate and concatenate body affections, considering itself without relation to the
body, under a new perspective. Fear problem treatment, therefore, is not in present
time, but in eternity.
Keywords: Benedictus de Espinosa, hope, fear, imagination, freedom.
Ora, sabemos que o medo é e sempre será uma paixão, isto é, tem e terá
causas externas necessárias. Além disso, tendo uma origem externa, o
medo não nasce da ignorância nem é suprimido pelo saber da verdade,
o que poderíamos também dizer da esperança. Suas causas necessárias
decorrem da própria constituição finita do homem, desde sempre rodeado
e envolvido por outras partes da natureza, cuja potência de longe supera
a do seu conatus e, assim, constantemente o amedrontam e conduzem
a imaginar formas de evitar a sua própria aniquilação. O certo é que um
aprendizado ético de forma alguma se dirige à anulação desses afetos,
assim como a ciência intuitiva não elimina o conhecimento de outros
gêneros. Trata-se de um esforço para que a mente mantenha uma maior
parte internamente determinada e guiada à eternidade comparada àquela
cuja determinação é externa e acompanhada da impotência cognitiva,
efeito da imaginação orientada à transcendência. Afinal, o que podemos
esperar de uma compreensão livre e verdadeira do tempo, senão a fortaleza
para enfrentar e conhecer nossos verdadeiros medos e esperanças?
156
Referências bibliográficas:
1. CHAUI, M. Espinosa: poder e liberdade. Filosofia política moderna. De Hobbes
a Marx Boron, Atilio A. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales; DCP-FFLCH, Departamento de Ciencias Politicas, Faculdade
de Filosofia Letras e Ciencias Humanas, USP, Universidade de Sao Paulo.
2006. Disponível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/
filopolmpt/06_chaui.pdf
2. . Imperium ou moderatio? Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 12,
n. 1-2, p. 9-43, jan.-dez. 2002.
3. . O fim da metafísica do possível: Espinosa e a ontologia do necessário.
Anotações para aula de Pós-Graduação em Filosofia. Universidade de São
Paulo, 2009
4. SÊNECA, L. A. Letters from a Stoic: Epistulae morales ad Lucilium. Penguin
Classics: Londres, 1969.
5. SPINOZA, B. Ética: demonstrada à maneira dos geômetras. Autêntica: Belo
Horizonte, 2008.
157
O DIREITO À VIDA NOS ELEMENTOS
DA LEI NATURAL E POLÍTICA DE HOBBES
Rogério Silva de Magalhães*
Resumo: Este artigo visa examinar os limites da liberdade de ação do homem,
isto é, de seu direito natural, levando-se em consideração a finalidade última desse
direito nos Elementos da lei natural e política de Hobbes. Essa finalidade seria a
auto-preservação do homem. Entretanto, para que esse direito seja efetivamente
respeitado, Hobbes alega ser necessário a constituição de um poder soberano. Não
basta assim uma simples convenção entre os homens para garantir a paz. Ou seja,
se faz necessário a existência de uma ordem política regida por um poder soberano
absoluto para que a preservação da vida tenha efeito jurídico. Hobbes entende que
somente o estado civil é o único capaz de estabelecer as condições efetivas para que
esse objetivo seja atingido.
Palavras-chave: poder soberano, auto-preservação, direito natural, estado civil,
liberdade.
1. Introdução
Ao longo da história da filosofia, o pensamento filosófico-político
e jurídico de Hobbes foi alvo das críticas mais vorazes possíveis, talvez
perdendo somente para Maquiavel. Em seu Ao leitor sem medo: Hobbes
escrevendo contra o seu tempo, Ribeiro afirma que, após Maquiavel,
Hobbes teria assumido o posto de pensador maldito da modernidade.
O hobbista sucedeu ao maquiavélico – na galeria que
mais tarde incluiria o niilista – num imaginário corrente
que associa uma filosofia à perversão, mostrando a que
vilanias leva a razão desassistida da autoridade religiosa,
o pensamento sem a Igreja; designando-se como ateu um
* Mestrando em filosofia na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e bolsista CAPES.
159
Cadernos Espinosanos XXIII
pensamento que é leigo não por rejeitar Deus, mas por
libertar-se da instituição eclesiástica (Ribeiro 7, p. 50).
Ora sob a injusta alcunha de pensador ateu1, ora rotulado como
defensor desprezível do despotismo2, o fato é que, uma análise sóbria e,
portanto, menos superficial, nos mostra que o pensamento hobbesiano está
comprometido com a produção de uma reflexão sólida e científica baseada
na experiência política e jurídica de sua época, a qual pode ser atestada
nas duas partes que compõem Os elementos da lei natural e política. Isso
significa que o pensamento de Hobbes pode ser considerado um retrato
qualitativo dos conflitos e medos da modernidade, mas, trata-se, sobretudo,
da construção de uma ciência da arte política. De fato, Hobbes deduz sua
teoria política de suas observações científicas acerca da natureza humana.
Mas o que realmente parece ter atraído a ira de seus detratores
foi a proposta de gerenciamento da sensualidade e da ambição de bens e
prestígio sugerida por Hobbes quando da instituição do poder soberano.
O filósofo inglês estava completamente ciente da impossibilidade de se
extinguir a natureza desejante do homem. Não era essa, portanto, a sua
intenção ao escrever Os elementos da lei natural e política. Pelo contrário,
essa natureza é necessária para a nossa existência porque o desejo é o que
concede movimento à vida. Para Hobbes, não há assim homens no mundo
que não sejam dotados de natureza desejante, pois, esta é a força motriz
que impele o homem em direção a um determinado objeto que pode lhe
proporcionar prazer. Isso pode ser atestado pela seguinte passagem:
Existem duas espécies de prazer, dos quais um parece
afetar o órgão corpóreo da sensação, e que eu chamo de
sensual (sensual). O seu papel principal é fazer com que
através dele sejamos incitados a perpetuar nossa espécie,
e o secundário é aquele pelo qual o homem é incitado à
160
Rogério Silva de Magalhães
carne, para a preservação da sua pessoa individual. A outra
espécie de deleite não é particular a nenhuma parte do
corpo, e recebe o nome de deleite da mente, aquele deleite
a que denominamos alegria (joy) (Hobbes 3, p. 50).
Ou seja, é natural que o homem aspire obter glória porque esta lhe
proporciona prazer, porém, desde que esta seja fundada em uma imagem
adequada de si. Caso contrário, ela é vã glória e, como veremos mais adiante
em profundidade, pode desencadear um estado beligerante. Diz Hobbes:
Além disso, a ficção (que também é imaginação) das
ações realizadas por nós, mas que nunca realizamos,
é glorificação; mas porque ela não gera apetite nem
ímpeto para qualquer tentativa futura, ela é meramente
vã e inútil; como quando um homem imagina a si mesmo
realizando as ações que leu em algum romance, ou sendo
como algum outro homem cujos atos ele admira. [...]. Os
sinais da vã glória nos gestos são a imitação de outrem, o
falsearem seu interesse por coisas que não compreendem,
a afetação do vestuário, a busca da honra a partir dos seus
sonhos e outras historietas sobre si mesmos, sua terra
natal, seus nomes e coisas afins (Ibid., p. 58).
É absolutamente natural que o homem busque a satisfação de seus
interesses. Hobbes não nega ou sugere, portanto, que o homem iniba, ou
melhor dizendo, extingua sua natureza desejante. Em seu estado natural,
Hobbes alega que o homem tem direito a tudo que lhe apraz, mas, sobretudo,
tem direito a tudo aquilo que julgar necessário para a sua conservação.
“Todo homem tem por natureza direito a todas as coisas, ou seja, a fazer
qualquer coisa que lhe apraz e a quem lhe apraz, a possuir, a utilizar e
usufruir todas as coisas que quiser e puder” (Ibid., p. 95). Vemos assim que
o desejo é a medida do movimento humano em direção a algo.
161
Cadernos Espinosanos XXIII
Se compararmos a vida do homem com uma corrida –
na qual, embora ele não possa ocupar todas as posições,
pode porém manter-se nela à caça dos seus propósitos -,
poderemos tanto constatar quanto recordar quase todas
as paixões mencionadas anteriormente. Mas devemos
entender que essa corrida não tem nenhum outro objetivo
ou outro prêmio além de nos mantermos em primeiro
lugar, [...] (Ibid., p. 67).
2. Estado de natureza e o conflito entre os homens
Rogério Silva de Magalhães
O estado dos homens em sua liberdade natural é o estado
de guerra (Ibid., p. 96).
Embora todos os homens sejam iguais por natureza3, segue que
tomados pelas paixões, tais como, o medo, a competição e a glória, os
homens entram freqüentemente em atrito uns com os outros. Sem saber o
que se passa na mente do outro e com o intuito de preservar a si mesmo
e seus direitos, o homem concebe uma imagem ameaçadora do outro. O
homem vive assim em constante pavor de ser atacado por outros, isto
é, vive em função de um medo expectado, o qual não é, desse modo,
presente. “Mas com respeito ao desprazer expectado, chama-se medo
É justamente esse o ponto nevrálgico da filosofia hobbesiana,
(fear)” (Hobbes 3, p. 48). Ocorre que, por intermédio da sensação de
isto é, o estado de natureza. Se, em um primeiro momento, por natureza,
medo, o homem conjectura uma imagem futura desagradável de sua
Hobbes concebe que todos possuem direito a tudo que julgam necessário
própria condição em relação ao outro.
para a sua preservação, em um outro, diante desse cenário de conflito
em potência, Hobbes procura entender como o homem pode atingir sua
finalidade última de auto-preservação.
Na medida em que o direito a tudo está distribuído entre todos,
os homens tendem a entrar em conflito no momento da satisfação de seus
desejos. Todos são uma ameaça constante aos outros. O direito natural
A concepção do futuro nada mais é que uma suposição
do mesmo, proveniente da recordação do que é passado;
e nós somos capazes de conceber que alguma coisa
irá acontecer daqui por diante somente à medida que
sabemos que existe algo no presente que tem a potência
de produzi-la (Ibid., p. 53).
não nos impede de realizar nada que almejamos, a não ser aquilo que não
podemos realizar por conta da nossa impotência. Todo o resto é legítimo.
O ponto fundamental está na produção de uma imagem distorcida
Esse seria o retrato do célebre estado de guerra hobbesiano onde um tenta
da potência de si e daquilo que o outro faz ou irá fazer que possa, de
dominar o outro. Esse estado é assim por ele apresentado:
alguma forma, afetar a honra do homem, sem base alguma no real. O
Considerando então a ofensividade da natureza dos
homens uns com os outros, deve-se acrescentar um direito
de todos os homens a todas as coisas, segundo o qual um
homem invade com direito, e outro homem com direito
resiste, e os homens vivem assim em perpétua difidência,
e estudam como devem se preocupar uns com os outros.
162
conflito surge assim como resultado das distintas crenças (beliefs) sobre a
própria potência e, por conseqüência, a respeito dos meios que podem ser
empregados para a auto-preservação. O apego a essa imagem inadequada
da própria potência constitui um perigo para a preservação do homem4.
163
Cadernos Espinosanos XXIII
Ele imagina ter um poder, imagina ser respeitado – ou
ofendido – pelos semelhantes, imagina o que o outro
vai fazer. [...]. O estado de natureza é uma condição de
guerra, porque cada um se imagina (com razão ou sem)
poderoso, perseguido, traído (Ribeiro 8, p. 59).
Antes de prosseguirmos, a essa altura, talvez não seja nenhum
exagero dizer que o pensamento filosófico de Hobbes esteja engajado não
só em uma reflexão consistente sobre o choque de interesses individuais,
mas, também uma reflexão a respeito do choque de crenças envolvendo a
efetiva extensão da própria potência.
Diante desse cenário, resulta que os homens concebem que é
mais razoável atacar o outro preventivamente a fim de garantir que as suas
naturezas desejantes não sejam tolhidas na busca da satisfação de seus
interesses. Nas palavras de Ribeiro:
Todo homem é opaco aos olhos de seu semelhante – eu
não sei o que o outro deseja, e por isso tenho que fazer
uma suposição de qual será a sua atitude mais prudente,
mais razoável. Como ele também não sabe o que quero,
também é forçado a supor o que farei. Dessas suposições
recíprocas, decorre que geralmente o mais razoável
para cada um é atacar o outro, ou para vencê-lo, ou
simplesmente para evitar um ataque possível: assim a
guerra se generaliza entre os homens (Ibid., p. 55).
Desse modo, a princípio, poderia parecer que o homem hobbesiano
possui uma propensão natural para fazer o mal ao outro sem causa aparente
ou somente pelo desejo de provar que a potência de um é superior à do
outro. Contudo, como podemos perceber até o dado momento, não é tão
simples assim. A idéia que subjaz o pensamento hobbesiano é a de garantir a
164
Rogério Silva de Magalhães
auto-preservação porque o outro representa uma ameaça à minha potência.
“Os homens, segundo o relato de Hobbes, não desejam prejudicar outros
homens pelo prazer de prejudicá-los; eles desejam ter poder sobre eles,
é verdade, mas poder somente para assegurar a sua própria preservação”
(Tuck 11, p. 65 - nossa tradução).5
É importante deixar claro que esse estado conflituoso retratado na
filosofia de Hobbes não é necessariamente histórico e, por conseqüência,
datado, isto é, preso a um determinado tempo e espaço. Esse estado de
natureza poderia ser considerado hipotético e, dessa forma, pode-se dizer
que seria utilizado por Hobbes como um mero recurso metodológico para
explicar o constante estado de atrito entre os homens, mas é um pouco mais
do que isso porque esse estado não é irreal, isto é, pura ficção da mente.6
3. A origem do corpo político e a constituição do poder soberano
Baseado na experiência7, Hobbes nota que esse estado não é
extinto quando da constituição do estado civil. Isso significa que o estado
de natureza hobbesiano se encontra, de certo modo, presente no estado
civil. O homem do estado de natureza é o mesmo do da sociedade. “[...]: o
homem natural de Hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem que vive
em sociedade. Melhor dizendo, a natureza do homem não muda conforme
o tempo, ou a história, ou a vida social” (Ribeiro 8, p. 54).
A natureza apetitosa do homem, a qual se encontra em constante
busca de prazer, não se extingue assim no estado civil. Ela é somente
ordenada, pois o homem abdica da liberdade de subjugar e matar o outro
para se preservar. “[...] para Hobbes o conceito de natureza se divide em
direito e lei – por ela pode cada homem lutar pela vida, contra todos,
mas também deve procurar a paz, renunciando à plena liberdade de
guerrear e matar” (Ribeiro 7, p. 25). Se o estado de natureza é composto
165
Cadernos Espinosanos XXIII
Rogério Silva de Magalhães
de instabilidade, de conflito, em suma, se sua característica principal é a
Sendo assim, em busca da paz que permitiria a realização da
insegurança, e, embora o homem possua liberdade de potência para agir
felicidade de cada um, os homens concorrem racionalmente para a
como lhe aprouver para garantir seus direitos, ocorre que ele pode não
submissão às leis de natureza.8 Trata-se de regras engendradas pela razão.
conseguir resistir às investidas do outro. Nesse ponto, surge uma questão:
O homem se vê obrigado a obedecê-las por conta de seus elementos
como sair desse estado lastimável de total insegurança?
racionais se realmente desejar a sua conservação. É pela lei, isto é, por
Para Hobbes, não é racional que o homem deseje viver
um ordenamento racional da ação que o homem se aproxima da paz. Eis
permanentemente nesse caos. Nenhum homem pode racionalmente aspirar
a importância da paz no pensamento político-jurídico de Hobbes. A lei
viver nesse constante estado de incerteza em relação à própria existência,
natural fundamental, prescrita pela razão, diz que o homem deve buscar a
pois “o direito de natureza é tão pleno que não comporta infração” (Ibid.,
paz. Vale lembrar que essa lei não é fruto simplesmente de uma naturalis
p. 87). Nesse estado natural, é lícito ao homem empregar os meios que
ratio, mas, de um raciocínio. E a paz serve para atender a um fim último:
julgar necessário para se preservar, incluindo, a prática de crimes, pois
a vida. “O objetivo da paz, para Hobbes, é extraído do estudo positivo da
não há transgressão a lei alguma. Ora, viver no estado de natureza porque
natureza humana, o qual mostra que o homem, dominado pelo instinto
acredita-se aí ter liberdade para exercer plenamente todos os seus direitos
de conservação, considera a vida como o valor supremo” (Bobbio 1, p.
em vista de seu próprio bem constitui um atentado contra si na medida
106). A razão deve orientar o homem para que este alcance aquilo que
em que os homens se tornam adversários na tentativa de consumação de
lhe causa prazer. Porém, esse prazer só pode ser atingido se o homem não
seus desejos. Por isso, para o filósofo inglês, o estado de natureza não é o
correr risco algum de morte. Para Hobbes, a felicidade do homem pode ser
mais apropriado para se adquirir todos os bens almejados para a própria
obtida, então, pelo cálculo.
conservação. Antes, notamos a visão que Hobbes nos apresenta do homem
no estado de natureza. É ainda importante ressaltar que o estado de natureza
é o homem sem a lei civil, mas não sem desejos. E contra o desejo de se
viver nesse estado, Hobbes escreve:
[...], aquele portanto que deseja viver num estado tal
como é o estado de liberdade e direitos de todos sobre
tudo (all to all), contradiz a si mesmo. Pois todo homem,
pela necessidade natural, deseja o seu próprio bem, ao
qual aquele estado é contrário, no qual supomos haver
disputa entre os homens que por natureza são iguais e
aptos a se destruírem uns aos outros (Hobbes 3, p. 96).
A razão não é menos da natureza humana do que a paixão,
e ela é a mesma em todos os homens, porque todos os
homens concordam na vontade de serem dirigidos e
governados no caminho para aquilo que eles desejam
alcançar, a saber, o seu próprio bem, o qual é obra da razão.
Não pode haver, portanto, outra lei de natureza além da
razão, nem outros preceitos da lei natural (natural law)
do que aqueles que declaram para nós os caminhos para
a paz onde esta pode ser obtida, e os caminhos para a
defesa onde não se puder obtê-la (Hobbes 3, p. 100).
Esse é o primeiro passo para que os homens possam gozar das
benesses da paz. Reconhecer racionalmente que viver em um estado onde
166
167
Cadernos Espinosanos XXIII
Rogério Silva de Magalhães
impera a ausência de lei e, por conseguinte, onde a felicidade é algo incerto
A convenção em si não é, então, suficiente para garantir a paz, isto
é o primeiro passo jurídico em direção à constituição de um corpo político
é, não é suficiente para evitar a desconfiança mútua entre os homens. Para
ou comunidade (Commonwealth).
impedir efetivamente que haja risco do surgimento de um estado de guerra
novamente, Hobbes concebe a instituição de um poder comum capaz de
Assim se constitui um corpo político, ou comunidade
(ou Commonwealth), definido pela presença dessa força
de um novo tipo, incomparavelmente mais poderosa
do que qualquer outra força individual, orientada no
sentido do bem público, towards a more contented life, e
inteiramente submetida à autoridade de um homem ou de
uma assembléia, o soberano (Polin 6, p. 115).
Nesse estágio, os homens em conjunto estabelecem uma
convenção onde se obrigam a respeitar essas leis. “[...] a concórdia entre
os homens é artificial, e se dá pelo caminho da convenção” (Hobbes 3,
p. 130). Entretanto, Hobbes está ciente de que essa convenção pode não
ser duradoura porque um homem ou um grupo de homens pode voltar
a infringir qualquer uma das leis conduzindo todos ao temido estado de
guerra de uns contra os outros (bellum omnium contra omnes). Conforme
manter as partes unidas que constituem um corpo político. É esse poder
que Hobbes sublinha ao dizer:
Portanto, mantém-se ainda que o consenso, pelo qual eu
entendo a concorrência da vontade de muitos homens
para uma ação, não é segurança suficiente para a sua paz
comum, sem que se levante algum poder comum, por
cujo temor eles possam ser compelidos tanto a manter a
paz entre eles quanto a reunir suas forças conjuntamente
contra um inimigo comum. E que isso pode ser feito, não
existe maneira imaginável senão unicamente pela união,
que é definida – no capítulo XII, seção 8 – como sendo
o envolvimento ou a inclusão das vontades de muitos na
vontade de um homem, ou na vontade da maioria numa
quantidade de homens, ou seja, na vontade de um homem,
ou de um conselho (council) (Hobbes 3, p. 130-131).
vimos nas páginas anteriores, a competição, o medo e a glória são as
fontes de conflito entre os homens. É importante ter essa idéia em mente
Por intermédio de um acordo de vontades, os homens transferem
porque ela é o fundamento central da construção do edifício político no
seus direitos individuais de se protegerem a um homem ou a uma
pensamento hobbesiano. Essas causas fornecem a justificativa racional
assembléia. Pelo pacto, o soberano passa assim a ter a obrigação de proteger
para a constituição de um corpo político.
seus súditos. Com efeito, no ato da transferência, é justamente isso que os
súditos esperam do soberano. A esse respeito, Hobbes nos diz o seguinte:
A pressão combinada de competição, medo e glória leva
à guerra de todos contra todos, e a uma vida de pobreza,
solidão, desagradável, bruta e curta. Para escapar dessa
condição, os homens devem erigir instituições que
façam cumprir as normas de conduta que garantam a
paz (Ryan 9, p. 222).
168
O fim pelo qual um homem outorga ou transfere para outro, ou
outros, o direito de proteger e defender a si mesmo por intermédio
de sua própria capacidade, é a proteção que ele, através dessa
transferência, espera para ser protegido e defendido daqueles a
quem ele transferiu o direito (Ibid., p. 136).
169
Cadernos Espinosanos XXIII
Desse modo, o poder soberano passa a ter poder político e
jurídico, pois não só conta com o respaldo da vontade geral, mas com o
direito de estabelecer leis que possam garantir a segurança dos súditos
na república. Uma socialização administrada por um poder comum
pavimenta o caminho para a paz. Esta última torna-se pré-condição para
a realização do desejo de cada homem.
[...], pertence também ao julgamento do mesmo poder
soberano publicar e tornar conhecida a medida comum
pela qual todo homem deve saber o que é seu e o que
é de outrem, o que é bom e o que é mau, o que ele
está obrigado a fazer e o que não está, e ordenar que
o mesmo seja observado. Estas medidas das ações dos
súditos são aquelas que os homens chamam de leis
políticas ou civis (laws politic, or civil). A elaboração
destas deve, de direito, caber àquele que tem o poder
da espada, pelo qual os homens são compelidos a
observá-las, pois, de outra forma, elas teriam sido
elaboradas em vão (Ibid., p. 138).
Todavia, para que esse poder seja eficiente, Hobbes estabelece
que ele seja absoluto. Como vimos anteriormente, ao longo da história
da filosofia, Hobbes foi taxado de defensor do despotismo por defender
a teoria do poder absoluto. Contudo, a soberania absoluta hobbesiana
não significa necessariamente dizer que o filósofo exija que o poder
soberano seja déspota.
O pensamento hobbesiano não é assim do despotismo
(à Montesquieu) nem só do absolutismo (à Luís XIV),
é da soberania: reconhecer, no interior do corpo político,
um poder soberano perante o qual nenhum privilégio
localizado, nenhum direito adquirido subsista; fundar tal
170
Rogério Silva de Magalhães
poder na representação, fazendo este foco central haurir
dos súditos a sua força (Ribeiro 7, p. 53).
Há um motivo para que o poder soberano seja supremo na
república. De modo a garantir a realização do fim último para o qual
ele foi constituído, o poder soberano não pode ser divisível. “[...] - a
soberania é indivisível” (Hobbes 3, p. 141). E esse poder soberano
absoluto também não pode estar subordinado a uma outra autoridade,
seja ela civil ou não. Caso contrário, não só não seria soberano como
também poderia ser constantemente coagido a não realizar a sua função
primordial: garantir a segurança dos súditos e manter, por conseqüência,
a paz na república. “E assim em nenhum caso pode o poder soberano de
uma república estar sujeito a uma autoridade eclesiástica, além daquela
do próprio Cristo” (Ibid., p. 194).
4. O poder absoluto do soberano e o direito dos súditos
O percurso realizado até o momento permite-nos compreender
como surge a figura do soberano no pensamento hobbesiano. Apesar de
absoluto, sua função não é de se preocupar somente consigo mesmo. Pelo
contrário, o soberano deve prioritariamente se preocupar e fazer, portanto,
de tudo pelos súditos e, conseqüentemente, isso se reverterá em um
bem para ele também. “[...] há para os soberanos esta lei geral, que eles
obtenham, para o máximo do seu empenho, o bem do povo” (Ibid., p. 206).
Nos Elementos da lei, haveria, então, uma lei que regeria o poder pleno
do soberano. A esse respeito, Ribeiro nos diz o seguinte: “O soberano
representante age em nome dos súditos, não por amor a eles; por isso não é
um estrato a mais na sociedade, mas o soberano; [...]” (Ribeiro 7, p. 46).9
Sendo assim, contrariamente ao que se possa pensar, o homem
171
Cadernos Espinosanos XXIII
Rogério Silva de Magalhães
não tem menos direito no estado civil do que no estado de natureza. Nos
Elementos da lei, Hobbes insiste nesse ponto, pois a escolha de um
soberano, ou seja, de um poder supremo que vigie o curso de nossas
Mais adiante, no mesmo capítulo dos Elementos, Hobbes
acrescenta o seguinte:
ações em uma república, não implica no fim dos direitos dos súditos, tais
como, o direito à vida.
Ao propor o poder soberano absoluto, Hobbes não visa estabelecer
a paz às custas do sacrifício dos direitos naturais dos homens. É importante
ter em mente que não é pela força que o poder soberano surge, mas pelo
consentimento. Em outras palavras, é a vontade de ter segurança que
propicia o surgimento do poder soberano. Ao abdicar de sua liberdade de
exercer a sua potência de agir como desejar para se preservar e obter assim
o que desejar para atingir esse objetivo, Hobbes nega que o súdito esteja
abdicando do seu direito à vida, da possibilidade de acumular riquezas e do
direito à propriedade. Pelo contrário, a instituição do poder soberano teria
como meta viabilizar a realização desses direitos com o mínimo de atrito
possível entre os homens. De fato, escreve ele:
A comodidade da vida consiste em liberdade e riqueza.
Por liberdade eu quero dizer que não existe proibição sem
necessidade de alguma coisa para um homem, que seria
legítimo para ele na lei de natureza; ou seja, que não
existe restrição da liberdade natural, senão naquilo que é
necessário para o bem da república, e que os homens bem
intencionados possam não cair no perigo das leis, como em
armadilhas, antes que sejam alertados. Diz respeito também
a esta liberdade que um homem possa ter uma passagem
cômoda de um lugar a outro, e não ser aprisionado ou
confinado com a dificuldade de caminhos e falta de meios
para transporte de coisas necessárias. Quanto à riqueza
do povo, ela consiste em três coisas, a boa ordenação do
tráfico, a obtenção de trabalho, e a proibição de consumo
supérfluo (Hobbes 3, p. 207).
172
[...] é necessário estipular para cada súdito a sua propriedade
e terras e bens distintos, sobre os quais ele pode exercer e
receber os benefícios da sua própria indústria, e sem os quais
os homens discutiriam entre si, como fizeram os pastores de
Abraão e Ló, cada um deles se aproveitando e usurpando
tanto quanto podiam do benefício comum, tendendo assim à
disputa e à sedição (Ibid., p. 207-208).
Nota-se assim que quando da criação do poder soberano, o súdito
não perde o seu direito à alimentação, à propriedade, ao trabalho, em suma,
à vida. O súdito não fica assim à completa mercê do soberano no sentido
de que ele possa sem justa causa impedi-lo de obter o necessário para a sua
subsistência. Embora possa teoricamente fazê-lo, essa atitude seria insana
porque o direito à vida é um valor inalienável e, por essa razão, o estado de
guerra poderia ressurgir a qualquer momento na medida em que o súdito
buscar reaver sua liberdade com o intuito de lutar por sua conservação.
“A vida é valor supremo e incondicionado: [...]” (Ribeiro 7, p. 93). Esse
poder soberano não é, portanto, pura força bruta. O soberano deve agir
pautado por princípios razoáveis com a finalidade de garantir a segurança,
principalmente, a dos súditos. Em qualquer situação, é preciso respeitar
o direito à vida. “É do apetite de cada corpo a preservar-se que decorre
o direito de todo homem a manter sua vida” (Ibid., p. 114). Portanto,
dentre todos os bens, o mais importante que o soberano pode oferecer
aos súditos é a segurança. “A causa em geral que move um homem a se
tornar súdito de outro é (como eu já disse) o medo de não preservar a si
mesmo por outros meios” (Hobbes 3, p. 132). Em seu Hobbes: a very
short introduction, Tuck aponta:
173
Cadernos Espinosanos XXIII
Rogério Silva de Magalhães
O nosso único direito que o soberano possui, ou que ele
exerce em nosso nome, é o direito de considerar quais
os meios necessários para a nossa sobrevivência, e o de
introduzir qualquer programa que vá além das necessidades
de sobrevivência física (Tuck 11, p. 83 – nossa tradução).10
5. Controvérsias em torno da figura do poder absoluto do soberano
e a liberdade dos súditos
Não só porque os súditos carecem desse bem no estado de
possui direito real à propriedade, pois, esta é delegada pelo poder soberano.
natureza, isto é, de tranqüilidade por viverem em constante ameaça de
Dentre as críticas que poderiam ser feitas à teoria política do
poder soberano de Hobbes, poderia objetar-se que o súdito hobbesiano não
Todavia, como vimos no capítulo IX da segunda parte dos Elementos da lei
extermínio, mas também porque, a partir da segurança do estado civil, é
natural e política, Hobbes não deixa de reconhecer o direito à propriedade,
criada condições básicas para que o súdito possa satisfazer o seu desejo de
mas, para evitar controvérsias entre os súditos, ele sugere a intervenção do
glória desde que este não constitua nenhuma ameaça ao poder soberano.
poder soberano na partilha de terras. Por outro lado, se alargarmos a nossa
Sendo assim, o homem possui a liberdade para agir desde que seja nos
compreensão do conceito de propriedade para além do campo dos bens
limites da sujeição política e jurídica ao poder soberano. O estado civil
materiais e vinculá-lo ao sentimento de pertença daquilo que é mais íntimo
garante uma disputa mais civilizada para a fruição dos bens que os homens
e vital ao homem, propriedade seria aquilo que é permitido ao homem
almejam para serem felizes.
fazer, isto é, definiria a linha limítrofe de seu agir.
Os homens não querem apenas viver – mas viver bem. Não
os levou à sociedade só o medo da morte, mas também
a esperança de conforto; e, afastados o homicídio e a
fome, expande-se o seu desejo, almejando mais e mais.
Sendo incondicionado o direito à vida, deve o soberano
respeitar a natureza insaciável dessa matéria humana: por
mais que os artífices de uma república cuidem de instruir
os cidadãos em seus deveres, de prevenir as seduções,
resta que cada homem é movido por um apetite infinito.
[...]. A questão não é condenar o conatus sem fim, mas
agenciá-lo mecanicamente (as imagens da máquina e do
autômato), de modo que os apetites inesgotáveis não mais
se destruam (Ribeiro 7, p. 117-118).
A propriedade se conceitua, no século XVII, de maneiras
diferentes da nossa. [...]. No Seiscentos, porém, o conceito
é mais abrangente: para Locke também inclui vida,
liberdade e estates de um homem. Hobbes, que tampouco
limita a propriedade aos bens, vincula-a à Justiça, e
portanto a todas as ações que são próprias de um homem,
àquelas que é direito seu (e, talvez, exclusivamente seu)
praticar: designa assim o agir do homem, a dimensão em
que é lícito o seu fazer (Ibid., p. 81).
É também equivocada a idéia de que a sujeição ao poder soberano
constitui uma escravidão. Hobbes rejeita essa idéia porque ela é fruto da
imaginação. Os homens que assim pensam acreditam que um poder misto
é melhor do que um indivisível. “A divisão, portanto, da soberania não
realiza efeito algum na supressão da simples sujeição ou introduz a guerra,
na qual a espada particular outra vez tem lugar” (Hobbes 3, p. 140-141).
174
175
Cadernos Espinosanos XXIII
Rogério Silva de Magalhães
Para Hobbes, essa divisão de poderes independente do poder soberano (uma
186). Admitindo a ineficácia das leis contra o que se passa na mente dos
assembléia para elaborar leis, uma para a judicatura e uma para administrá-
súditos, Hobbes propõe um controle sobre as ações dos homens porque
las) leva os homens à sedição. Assim, a instituição de um poder soberano
as ações são regidas pelas opiniões. “Quanto às ações dos homens que
não constitui inconveniente algum para o súdito, a não ser em sua mente.
procedem de suas consciências, a regulação de tais ações é o único
“Os inconvenientes do governo em geral para um súdito não existem, se
instrumento para a paz, [...]” (Ibid., p. 175). Porém, por outro lado, desde
bem considerados, senão em aparência” (Ibid., p. 167).
que as opiniões e ações não venham a colidir com as determinações do
Além desses dois expostos acima, há outros motivos pelos quais
poder soberano, inclusive as religiosas, o homem possui uma margem
alguns súditos podem crer que haja uma coibição de seus direitos e liberdade
de liberdade para a especulação. “As consciências especulem, desde que
com a instauração de um poder soberano. O primeiro reside na religião. A
sábias – isto é, que não queiram interferir na soberania” (Ribeiro 7, p.
discórdia entre súdito e soberano oriunda da religião surge normalmente
46). Não se trata, portanto, de um controle arbitrário para evitar somente
entre aqueles que exigem liberdade de consciência.
injúrias contra o soberano, mas também para evitar as dissenções entre
Essa dificuldade, portanto, permanece em meio àqueles
cristãos (e perturba apenas a eles), a quem é permitido
tomar como o sentido da Escritura aquilo que eles fazem
a partir dela, seja por sua própria interpretação particular,
seja por uma interpretação tal como as que podem ser
colocadas pela autoridade pública. Aqueles que seguem
continuamente a sua própria interpretação pedem pela
liberdade de consciência; [...] (Ibid., p. 174-175).
Hobbes defende o argumento de que o súdito não tem motivo
para se rebelar contra o poder soberano por causa de religião. Os
preceitos fundamentais da religião não constituem empecilho algum para
os homens. Lembremos que o que Hobbes deseja evitar é o estado de
guerra entre os homens, isto é, um estado onde a autoridade política seria
inexistente e onde não haveria a necessidade de se cumprir a lei. Nesse
sentido, para Hobbes, não há nada que possa justificar a sedição no corpo
político.11 Contra essas ameaças, Polin argumenta:
A sedição é a doença ou o vício do corpo social. Não há
justificativa possível: não há rebelião legítima nem em
nome da religião, nem em nome da consciência, nem em
nome da justiça. A ameaça de revolta, a presença virtual
de forças rebeldes não devem então contar no cálculo do
equilíbrio político (Polin 6, p. 124).
que o súdito respeite e se submeta ao poder soberano. Pela experiência,
Hobbes sabe que aqueles que contestam o poder soberano alegando a
necessidade de liberdade de pensamento dificilmente se contentam em
somente utilizar a mente como desejarem no âmbito privado. Ademais,
a atividade da mente não se restringe ao campo mental. “Mas a verdade
é evidente, pela experiência contínua, de que os homens buscam não
apenas a liberdade de consciência, mas de suas ações; [...]” (Ibid., p.
176
6. Considerações finais
Para completar a nossa exposição, é preciso ainda dizer que o limite
da liberdade da potência de agir do homem em prol do seu bem-estar esbarra
no respeito ao poder soberano e às leis estabelecidas. A individualidade do
súdito se realiza assim a partir do poder soberano. Ao assegurar o direito à
177
Cadernos Espinosanos XXIII
segurança e bem-estar na república, o súdito passa a gozar de liberdade para
atingir seus objetivos porque agora se encontra livre dos perigos eminentes
do estado de guerra. Ou seja, na esfera privada, o homem tem o direito de
agir livremente, porém, dentro das regras do poder público. O direito natural
máximo de preservação da própria vida é mantido quando da instituição do
poder soberano. É somente como parte componente de um corpo político
que o homem tem, de fato, a sua vida garantida. Vemos assim que Hobbes
tinha sensibilidade para perceber que, para garantir a preservação da vida
dos súditos, é preciso unidade política, pois sem essa unidade, não seria
possível haver paz suficiente que pudesse garantir o direito natural maior do
homem que é a conservação da própria vida.
No entanto, é digno de nota que esse direito deixa de ser natural
para se tornar civil quando da instituição do poder soberano. Desse modo,
o direito à vida ganha força para ser cumprido porque agora há um poder
soberano. De fato, a preservação da vida parece ser o ponto de intersecção
entre direito e lei natural no pensamento filosófico de Hobbes. Vemos que a
lei de natureza é o que a razão mostra como a conduta mais adequada para a
preservação do homem. E o poder soberano nasce para garantir que a vida
esteja em primeiro lugar, pois a experiência mostra que sem obediência
a esse poder não há ordem política e, por conseguinte, o soberano fica
impedido de cumprir sua obrigação que é a garantia do direito à vida.
Com o surgimento do poder soberano, aquilo que era um ditame
para a razão do homem, isto é, preservar-se, assume o status de civil. Nesse
exato momento, aquilo que dependia somente da potência racional do
homem ganha caráter jurídico, isto é, as leis de natureza se tornam civis.
Para Hobbes, o fato de que as leis naturais obrigam apenas
em consciência significa simplesmente que elas nos induzem
a desejar sua realização. A passagem do desejo de realização
para a realização ocorre somente quando estamos seguros
178
Rogério Silva de Magalhães
de poder cumpri-las sem prejuízo para nós. Isto quer dizer
que as leis naturais obrigam condicionalmente, ou seja,
na condição de que, da realização delas, não nos derive
nenhum dano. Como se vê, o princípio utilitarista da moral
hobbesiana entra em jogo também nesse ponto. Se as leis
naturais não prescrevem ações boas em si mesmas, e menos
ainda remetem à sanção divina, mas são simplesmente
meios para atingir um determinado fim vital (a paz), então
seria contraditório que aquele que as executasse retirasse
delas um prejuízo e não uma utilidade. Em outras palavras:
já que as leis de natureza não são absolutas, mas relativas a
um fim, a obrigação que delas deriva não é incondicional,
mas condicionada pela obtenção de um fim. Ora, quando é
que o homem se encontra em melhores condições para agir
de acordo com a lei natural sem sofrer nenhum prejuízo?
Quando está seguro de que o outro fará o mesmo. [...]. Mas
essa segurança só pode ser obtida no estado civil, ou seja,
naquela situação onde as ações dos homens não são mais
impostas condicionalmente, e sim de modo incondicional.
O que significa que sou obrigado a realizar o que as leis
naturais me prescrevem somente quando estas leis naturais
são transformadas em leis civis (Bobbio 1, p. 111-112).
Dessa forma, com a instauração do poder soberano e a submissão
do homem às leis do estado civil, Hobbes consegue garantir o princípio
máximo de sua filosofia que é a vida como valor supremo. Como nos diz
Tuck: “Está claro que ele acreditava que nosso único direito natural é o
direito de apenas nos preservarmos e usar qualquer meio que consideremos
necessário para esse propósito” (Tuck 11, p. 70 – nossa tradução).12 Agora
entendemos porque Hobbes acentua que somente no estado civil e sob a
tutela de um poder soberano o homem pode perseverar em sua existência.
A ética hobbesiana está comprometida com o estabelecimento de uma
179
Cadernos Espinosanos XXIII
Rogério Silva de Magalhães
moral mínima alicerçada no direito à vida. Se nos fosse exigido definir
nos esquecer que seu objetivo maior é pôr fim à instabilidade reinante no
um princípio universal que perpassa o pensamento hobbesiano, este seria
estado de natureza que rege as relações humanas e que não deixa de existir
o melhor candidato, levando-se em consideração, conforme exposto, o
com a fundação da república. “A política é a continuação da ‘guerra de
intrigante fato de que mesmo sendo aceito por todos os homens como um
todos contra todos’ por outros meios” (Comte-Sponville 2, p. 107). Desse
princípio válido universalmente em si, isto é, com o qual todos estariam
modo, pode-se dizer que sua política está comprometida com a segurança
de acordo, ele não seria suficiente para garantir a paz. E Hobbes tinha
dos súditos e, por conseqüência, de seu bem-estar. Seu fim último parece,
plena consciência disso.
então, ser o equilíbrio nas relações humanas para que haja vida – condição
básica para o progresso do homem. Hobbes quer, portanto, um mundo
Argumentos sobre o escopo do direito de conservação estava
no coração da teoria hobbesiana, porque ele reconhecia
que mesmo com a aceitação geral desse princípio moral,
os homens não viveriam em paz: as opiniões difeririam
acerca do que realmente ameaçava a segurança de cada
homem, e os homens agiriam com base nessas opiniões
díspares (Tuck 12, p. 189 – nossa tradução).13
A insistência de Hobbes na periculosidade de uma vida subjugada
aos ditames do estado de natureza e sua defesa incondicional do estado
civil denota que no núcleo central de seu pensamento encontra-se uma
preocupação social com a vida, não só em uma dimensão elementar como
a da integridade física, mas, em todos os desdobramentos posteriores.
Por isso, a transição para o estado civil é, na verdade, a luta para tornar
universal um princípio que Hobbes considera irrenunciável para qualquer
ser humano. A defesa da vida humana deixa de ser assim um privilégio para
mais seguro que sirva de base para que cada um, com mais equilíbrio de
condições, possa lutar por sua felicidade.
The right to life in Hobbes’s Elements
of law natural and politic
Abstract: This article aims to examine the limits of man’s freedom of action, that
is, of his natural right taking into account the final goal of this right in Hobbes’s
Elements of law, natural and politic. This final goal would be man’s self-preservation.
However, in order for this right to be effectively respected, Hobbes claims that it is
necessary the rise of a sovereign power. Thus, a simple pact among men is not enough
to live in peace. In other words, the existence of a political order ruled by an absolute
sovereign power is necessary for the preservation of life to be lawfully effective.
Hobbes understands that the civil state is the only one capable of imposing effective
conditions for this goal to be achieved.
Keywords: sovereign power, self-preservation, natural right, civil state, freedom.
determinados grupos sociais para se tornar um direito de facto. Não mais
particular, mas, para todos os súditos da Commonwealth. Por detrás da
filosofia política-jurídica hobbesiana, o que temos é a defesa do princípio
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Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
Em um primeiro momento, o plano político de Hobbes pode
parecer autoritário, brutal e antipático aos nossos olhos, mas não podemos
180
181
Cadernos Espinosanos XXIII
Rogério Silva de Magalhães
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Cambridge companion to Hobbes. Cambridge: Cambridge University
Press, 1996. p. 175-207.
na proposta de subordinação da Igreja ao poder do Estado. Além disso, Hobbes
também faz uma crítica ao excesso de princípios vinculados à religião e, portanto, ao
dogmatismo religioso. Tudo isso com o intuito de dizer ao leitor cristão que, como
veremos mais adiante, não há contradição alguma entre a fé religiosa e a obediência
ao poder soberano. “Mas, em seu tempo, foi mais complexa e grave a acusação
de ateu dirigida a Hobbes. A teologia hobbesiana conforta: reduz os princípios
do cristianismo à crença mínima em que ‘Jesus é o Cristo’, torna arbitrários os
demais artigos de fé, suprime o Inferno e faz da ‘morte eterna’ prometida aos maus
apenas uma segunda e definitiva morte” (Ribeiro 7, p. 49). Essa interpretação
encontra respaldo na seguinte passagem dos Elementos da lei natural e política:
“Consideradas estas coisas, aparecerá facilmente que sob o poder soberano de uma
república cristã não existe perigo de danação a partir da simples obediência às leis
humanas; pois naquilo que o soberano permite a cristandade nenhum homem está
compelido a renunciar à sua fé, que é suficiente para a sua salvação, isto é, os pontos
fundamentais” (Hobbes 3, p. 184-185).
2. Em sua obra Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo,
Ribeiro nos oferece o exemplo de um famoso filósofo moderno que contribuiu
para denegrir o pensamento político-jurídico de Hobbes, alegando ser este uma
defesa do despotismo. “[...]: escrevendo pelo fim da vida de Hobbes o Segundo
Tratado sobre o Governo, Locke converte o soberano absoluto hobbesiano em
inimigo de todos, em besta merecedora de morte, porque desumanizada, déspota
oriental ou Jaime II” (Ribeiro 7, p. 51).
3. Essa afirmação encontra respaldo no Cap. XIV da primeira parte dos Elementos. “Em
primeiro lugar, se considerarmos quão pouca é a diferença de força ou de sagacidade
existente entre os homens na idade adulta, e com quão grande facilidade aquele que
é o menos potente em força ou em senso, ou em ambas, pode apesar disso destruir o
poder do mais forte, com base nisso não é necessária muita força para que se retire a
vida de um homem, podemos concluir que os homens, considerados na sua simples
natureza, devem admitir igualdade entre elas” (Hobbes 3, p. 94). Pode-se dizer, então,
que, considerando a natureza humana em si, os homens possuem uma certa igualdade
de potência. Em termos de capacidade, não há um desnível absoluto.
4. No Cap. X da primeira parte dos Elementos, Hobbes deixa claro que o homem
não pode se apoiar na imaginação se deseja adquirir conhecimento exato das coisas.
Somente o juízo ou discernimento pode fazer com que a mente do homem tenha
conhecimento verdadeiro. “E essa virtude da mente é aquela pela qual os homens
NOTAS:
1. Em seu Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o tempo, Ribeiro afirma
que a acusação de ateísmo que recaiu sobre Hobbes em sua época se fundava menos
em argumentos teológicos ou pela falta de fé dele na existência de Deus e mais
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atingem o conhecimento exato e perfeito. O prazer, aí, consiste na instrução contínua,
e na distinção de lugares, pessoas e estações, o que recebe comumente o nome de
juízo (judgement). Afinal, julgar nada mais é do que distinguir ou discernir” (Hobbes
3, p. 71). Skinner tece o seguinte comentário acerca desse assunto nos Elementos:
“Decorre daí que, embora as qualidades da fantasia e do discernimento possam
ser ambas descritas como formas de inteligência, elas se mantêm como faculdades
opostas. Nos Elementos, não há lugar para a possibilidade de que a fantasia seja capaz
de cooperar com o juízo na produção do saber e, por conseguinte, na construção de
uma ciência verdadeira” (Skinner 10, p. 481).
5. Reproduzimos, a seguir, o original em inglês: “Men, on Hobbes’s account, do not
want to harm other men for the sake of harming them; they wish for power over them,
it is true, but power only to secure their own preservation”.
6. Em sua obra A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke,
Macpherson alega que a fonte do estado de natureza hobbesiano é as paixões. “O
estado de natureza, de Hobbes, tal como é geralmente reconhecido, é uma hipótese
lógica, não histórica. É uma ‘Dedução oriunda das Paixões’; relata ‘que maneira de
vida haveria se não existisse um Poder comum a temer’” (Macpherson 5, p. 31). Fica
assim patente que não se trata de um estado primitivo, oposto ao social ou civil. Não
é uma condição presente no homem somente em um passado remoto.
7. No Cap. XIII do Leviatã, Hobbes convida o leitor a averiguar a veracidade de
sua reflexão de acordo com a própria experiência do leitor. Na passagem a seguir,
nota-se que Hobbes destrói o paradigma aristotélico de que a convivência humana
não é conflituosa e de que a pólis teria surgido a partir de uma propensão natural
do homem para viver em comunidade. “Poderá parecer estranho a alguém que não
tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens,
tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos outros. E poderá portanto
talvez desejar, não confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma
seja confirmada pela experiência” (Hobbes 4, p. 109). O realismo hobbesiano reside
justamente em tomar a experiência como ponto de partida para o desenvolvimento de
sua filosofia política. Para Hobbes, a experiência nos mostra que é necessário viver em
paz para que os homens possam usufruir dos bens que almejam com menos dificuldade.
E nada melhor do que o estado civil para garantir a possibilidade de acesso a esses
bens. “A filosofia política pode ser deduzida da filosofia natural, da ciência física;
mas também pode ser aferida pela experiência pessoal (do leitor): e então se situa
entre duas confissões. O filósofo refina e cifra, como teoria – ou ‘doutrina’ -, a própria
experiência; o leitor confronta com a sua experiência essa ciência que recebeu, e assim
pode também metamorfosear em ciência a sua prudência” (Ribeiro 7, p. 21).
8. Ver Parte I, Cap. XVI e Cap. XVII dos Elementos da lei natural e política.
9. Em seu texto O mecanismo social no Estado civil, Polin afirma que o governante
hobbesiano tem como lei máxima buscar o bem-estar do povo. Para atingir tal
empresa, Hobbes atribui deveres aos soberanos. E esses deveres estão vinculados às
leis de natureza, isto é, a um princípio racional, pois, como vimos, fazer o bem ao
povo é fazer bem a si mesmo. “E Hobbes, conseqüentemente, atribui ao soberano um
certo número de deveres (duties) como conformes à lei da natureza: o soberano deve
estabelecer a melhor religião, deve deixar aos cidadãos toda a liberdade compatível com
a ordem pública; deve definir a propriedade e repartir os impostos proporcionalmente
à riqueza” (Polin 6, p. 122).
10. Reproduzimos, a seguir, o texto no idioma original: “The only right of ours which
the sovereign possesses, or which he exercises on our behalf, is the right to consider
what means are necessary to our survival, and it would introduce any programme
which went beyond the considerations of physical survival”.
11. No Cap. VIII da segunda parte dos Elementos da lei, Hobbes discorre acerca
das possíveis causas que podem levar os homens a se rebelarem contra o poder
soberano. Elas são baseadas no descontentamento, na pretensão e na expectativa
de êxito. Ele argumenta que nenhuma dessas causas são razoáveis o suficiente
para uma rebelião contra o poder soberano. Todas são imagens falsas que tornam
a mente do súdito confusa.
12. Transcrevemos, a seguir, o texto original: “It is clear that he believed that our only
natural right is the right barely to preserve ourselves, and to use whatever means we
take to be necessary for that purpose”.
13. Reproduzimos, a seguir, a citação no original em inglês: “Argument about the
scope of the right of self-preservation was at the heart of Hobbes’s theory, for he
recognized that even with the common acceptance of this moral principle, men would
not live in peace: opinions would differ about what actually threatened each man’s
security, and men would act on the basis of these disparate opinions”.
185
Para além do corpo-objeto e da representação
intelectual: como Merleau-Ponty redescobre o
corpo como veículo da existência
José Marcelo Siviero*
Resumo: Este ensaio analisa as objeções elaboradas por Merleau-Ponty ao que
ele chama de “paradigma cartesiano de pensamento”, ou seja, a separação entre
alma e corpo. Concentrando-nos nos dois primeiros capítulos da primeira parte da
Fenomenologia da Percepção, trata-se de identificar, nas críticas dirigidas à fisiologia
mecanicista e à psicologia subjetiva, como o filósofo delega ao corpo sensível um
novo estatuto filosófico, colocando-o como principal veículo da existência, ao mesmo
tempo em que redescobre a experiência pré-objetiva.
Palavras-chave: Merleau-Ponty; existência; corpo; subjetividade; fisiologia.
Introdução
A filosofia merleau-pontyana coloca o corpo como pivô
da existência, como o esteio do ser no mundo. Por outro lado, esse corpo
do qual fala o filósofo não é um mero aparato mecânico, um pedaço de
matéria a perceber o seu mundo na simplicidade das relações lineares
entre estímulos e respostas pontuais, como se sua percepção se reduzisse
a um sistema de engrenagens e de mecanismos pré-engatilhados. Nem
mesmo esse corpo é tão-somente invólucro para a alma, mera vestimenta
material para um Cogito privilegiado no circuito da existência. Também
de Merleau-Ponty podemos afirmar que, em sua filosofia da existência,
há a desmontagem do paradigma cartesiano de separação entre alma e
corpo, ou seja, que há enfim a tentativa de uma articulação entre as ordens
do em-si e do para-si, sem que haja a prevalência de uma das dimensões.
* Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
187
Cadernos Espinosanos XXIII
José Marcelo Siviero
Como o filósofo consegue superar essa dicotomia, examinando as
se fossem os centros cerebrais que estivessem prejudicados? Uma resposta
objeções da fisiologia moderna e da psicologia clássica a essa objetivação
mais apressada postularia a perda de certos dados sensoriais pelos danos
do corpo? E, uma vez de posse de tais objeções, como ele trabalha para
no instrumento material responsável pela sua captação. O que não ocorre,
situar o corpo, não mais reduzido a objeto ou a representação, no centro
pois, como aponta Merleau-Ponty, “as lesões dos centros e até mesmo dos
da existência mesma?
condutos não se traduzem pela perda de certas qualidades sensíveis ou de
certos dados sensoriais, mas por uma diferenciação da função.” (Merleau-
1. O corpo-objeto ultrapassado a partir da fisiologia
e a sua ambiguidade essencial
Ponty 1, 112). Não são os dados que são perdidos, mas é a maneira pela
qual a percepção deles se desdobra que é distorcida, é a maneira pela qual
o corpo responde ao mundo que é adulterada.
188
O que seria, pois, a definição estrita do corpo como objeto? Para o
Isso fica mais claro no exemplo citado por Merleau-Ponty, de
autor, um objeto é caracterizado pelo fato de que “existe partes extra partes e
como um doente com lesões centrais percebe as cores (cf. Merleau-Ponty
que, por conseguinte, só admite entre suas partes ou entre si mesmo e os outros
1, 112): não há uma perda efetiva da visão, o que há é uma simplificação
objetos relações exteriores e mecânicas.” (Merleau-Ponty 1, 111). O corpo
do espectro de tonalidades as quais o olho do paciente tem acesso.
humano tomado segundo essa definição seria, pois, um corpo percipiente
Lentamente, os tons vão esmaecendo, para se limitarem ao amarelo,
no qual cada sentido ocuparia um compartimento estanque, como se fossem
verde, azul e púrpura, até que por fim todas as cores se dissolvem em
peças independentes: tato, visão, audição e outros não se relacionariam entre
tons acinzentados. Assim, ao invés de interromperem a captação dos
si, os dados captados por eles seriam qualidades independentes e isoladas,
dados em cada um de seus aparatos sensórios, as lesões levam a uma
e para cada um dos sentidos corresponderia uma superfície ou um órgão
“decomposição da sensibilidade”, a um distúrbio geral do corpo que
pontual de captação. A rigor, não haveria percepção efetiva, pois os sentidos
afeta a organização espacial do campo perceptivo e o desdobramento do
não se desdobrariam no espaço e o corpo, ao elaborar sua resposta aos
percebido. A rigor, observamos aqui pela primeira vez uma espécie de
estímulos do mundo, nada mais emitiria senão uma reação mecânica. Não
integração funcional dos sentidos corporais, o que afasta, num primeiro
haveria propriamente uma relação intrínseca do sujeito com seu mundo,
momento, a hipótese dum corpo organizado partes extra partes.
mas tão-somente o choque entre dois elementos estranhos entre si, entre
Deste modo, o que antes era exterioridade pura entre sentidos e
duas categorias de fenômenos tão discrepantes que a simples ideia de uma
estímulos advindos do ambiente encontra um ponto de articulação, um
articulação por si só recairia em contrassenso e em antinomia.
terreno comum. O exame da percepção alterada das cores leva a crer
Supondo-se esse corpo no qual para cada sentido corresponde
que a percepção do mundo exterior reclama uma participação ativa do
uma região determinada, o que ocorreria caso tais organelas de captação
corpo, e a estrutura deste, por sua vez, é responsável por desdobrar os
fossem lesionadas? Ou mais profundamente, se a lesão se localizasse nos
dados sensoriais numa percepção efetiva e não numa resposta linear a um
condutos neurais responsáveis pela sua comunicação ao cérebro, ou ainda
estímulo qualquer. Consequentemente, “a exteroceptividade exige uma
189
Cadernos Espinosanos XXIII
José Marcelo Siviero
enformação dos estímulos, a consciência do corpo invade o corpo, a alma
delimitam o membro fantasma ao campo somático mostram-se limitadas
se espalha em todas as suas partes, o comportamento extravasa seu setor
e, em algumas vezes, incapazes de chegar a um diagnóstico conclusivo.
central.” (Merleau-Ponty 1, 114) Desaparece a clivagem entre o interior
É a fraqueza do paradigma objetivo do em-si que Merleau-Ponty aqui
subjetivo e o corpo exterior; em-si e para-si se confundem na experiência
quer explicitar, encarnado numa fisiologia mecanicista e fiadora duma
do mundo percebido, a tal ponto em que não há mais distinção entre eles.
causalidade linear, na qual há a prevalência do exterior.
Todo o corpo participa de maneira integral da percepção, e é isso o que as
Contudo, se trasladássemos esse distúrbio ao campo das especulações
teses da fisiologia moderna desvelam, contribuindo para a refutação do
psicológicas, teríamos menos sucesso, logo nos enredaríamos nas mesmas
argumento dum corpo reduzido a objeto.
dificuldades do mecanicismo e da causalidade linear. Não somente um
Merleau-Ponty aprofunda esta problemática ao analisar os casos
ferimento ou uma mutilação, mas Merleau-Ponty coloca que também “uma
de pacientes acometidos pelos sintomas do membro fantasma e da
emoção, uma circunstância que relembre as do ferimento fazem aparecer
anosognose. O autor os escolhe com uma intenção clara: seus distúrbios
um membro fantasma em pacientes que não o tinham.” (Merleau-Ponty
não encontram explicação plausível em nenhuma das categorias
1, 115). Vicissitudes do psiquismo e circunstâncias influem também no
objetivas, a saber, nem do lado do funcionamento orgânico e nem do lado
aparecimento do membro fantasma, a ponto até mesmo de reabsorvê-lo
estritamente psicológico. Em ambos, tais explicações conduzem mais a
no coto e fazê-lo desaparecer sem qualquer sinal orgânico mais claro ou
equívocos do que a soluções.
alguma alteração significativa no estado de saúde do paciente. Relacionar
No caso do membro fantasma, o paciente sente no coto a presença
estritamente o membro fantasma a fenômenos somáticos é portanto
dum braço ausente, captando dados dos sentidos numa estrutura material
enxergar somente uma das faces do fenômeno do corpo, ignorando sua
que não mais existe em seu corpo. Além disso, para o doente o seu braço
amplitude e sua complexidade; porém, a entrada em cena do psiquismo e
mutilado permanece na mesma posição do instante de seu ferimento, e
da subjetividade arrastam a experiência corporal para um plano ambíguo,
ele até mesmo sente a dor dos estilhaços de obus que antes estiveram
no qual a aplicação de categorias é problemática.
incrustados em seu braço real (cf. Merleau-Ponty 1, 115).
190
Tal é o mesmo impasse que se encontra na observação da
Se nos ativéssemos à explicação somática desse caso, limitar-nos-
anosognose, moléstia que curiosamente é a antípoda do membro fantasma:
íamos a localizar o distúrbio nos condutos neurais dos cotos, e a sua secção
nela, o doente aparentemente não possui nenhum defeito físico, mas
anularia tal sintoma. Entretanto, se a manifestação desse braço fantasma
ignora uma das partes de seu corpo, como um braço ou uma perna, que
fosse meramente um efeito orgânico, a anestesia pela cocaína faria sua
nele é parcialmente insensível e a qual o doente até mesmo chega a tratar
sensibilidade desaparecer, como o faz nas outras regiões do corpo, o que
como um anexo inerte, uma “serpente longa e fria” atada ao seu corpo
não ocorre. Além do mais, como nos escreve Merleau-Ponty, o membro
(Merleau-Ponty 1, 116). Tal qual no membro fantasma, há aqui um curioso
fantasma ataca até aqueles pacientes de lesões cerebrais que nunca sofreram
fenômeno de ambivalência: nos mutilados, encontrávamos uma ausência
mutilação alguma (cf. Merleau-Ponty 1, 115). Logo, as explicações que
sentida como presença efetiva, já nos anosognósicos o que se observa é
191
Cadernos Espinosanos XXIII
José Marcelo Siviero
uma presença concreta que é tomada erroneamente como ausência ou falta.
pensamentos elaborados pela vontade do paciente, mero derramamento do
Se adotássemos uma explicação pautada exclusivamente no corpo como
psíquico no terreno do somático. Primeira ou terceira pessoa, a particularidade
objeto material, a anosognose seria um erro grosseiro, pois o braço ignorado
do subjetivo frente ao anonimato generalizante, tal é o impasse que se nos
continua ali, como uma peça perfeitamente encaixada no todo do aparato
apresenta. Como Merleau-Ponty responde a tal impasse?
corporal. Porém, abordá-la como uma espécie de esquecimento ou desvio
O filósofo vai curiosamente buscar suas respostas na observação
deliberado por parte do paciente, como um tipo de “recalque orgânico”, ou
dum experimento comportamental aplicado com insetos. Sua escolha
seja, aplicando-se a categoria diametralmente oposta da psicologia, também
não é por acaso ou por capricho: no comportamento instintivo do inseto
não nos conduz a uma conclusão plausível: de quaisquer perspectivas que
submetido à experiência é impossível operar uma distinção entre categorias,
se abordem os dois problemas, o que se impõe é uma espécie de disjunção
ou seja, ele se encontra de tal maneira engajado em seu ambiente e aberto
exclusiva, ou causalidade objetiva ou cogitationes, o em-si ou o para-si,
aos seus estímulos que é incapaz de separar o que é da ordem do corporal
sem que haja uma articulação entre ambas.
e o que é da ordem do psiquíco.
Não se trata aqui de escolher entre alternativas de paradigmas ou
Ora, poderíamos então facilmente afirmar que o comportamento
de enquadrar o fenômeno numa categoria; o que Merleau-Ponty procura
instintivo do inseto é unicamente uma reação mecânica e pré-programada
é o meio em que se articulam as duas ordens de fenômeno, o domínio
aos estímulos exteriores; contudo, há um inusitado fenômeno de substituição
no qual não haja clivagem entre em-si e para-si, entre a alma e o corpo,
no uso das patas que ocorre quando ele é mutilado ou aprisionado, que é o
entre a causalidade objetiva e a subjetividade. Só uma tal instância seria
que Merleau-Ponty aborda a seguir:
capaz de reunir as duas dimensões e de dar razão de suas ambiguidades
e ambivalências.
“É preciso compreender então como os determinantes
psíquicos e as condições fisiológicas engrenam-se uns aos
outros: não se concebe como o membro fantasma, se depende
de condições fisiológicas e se a este título é o efeito de uma
causalidade em terceira pessoa, pode por outro lado depender
da história pessoal do doente, de suas recordações, de suas
emoções ou de suas vontades.” (Merleau-Ponty 1, 116)
Certamente, o membro fantasma e a anosognose não são apenas
processos em terceira pessoa, visto que não dependem exclusivamente do
corpo e de suas condições fisiológicas; posto que também não se limitam
à primeira pessoa, pois não são, como vimos, desvios deliberados ou
192
“Quando, em um ato instintivo, o inseto substitui a pata
cortada pela pata sã, isso não significa, nós o vimos, que
um dispositivo de auxílio previamente estabelecido se
substitua por desencadeamento automático ao circuito que
acaba de ser posto fora de uso. Mas também não significa
que o animal tenha consciência de um fim a atingir e
use seus membros como diferentes meios, pois então a
substituição deveria produzir-se a cada vez em que o ato
fosse impedido, e sabe-se que ela não se produz se a pata
apenas está presa.” (Merleau-Ponty 1, 117)
Em resumo, quando a pata está presa, o inseto não necessita
fazer a sua substituição, pois ele ainda conta com seus movimentos e
sua disponibilidade; o que não ocorre quando ela é seccionada e o inseto
193
Cadernos Espinosanos XXIII
José Marcelo Siviero
precisa operar uma reorganização de sua estrutura corporal. O que muda
sentido de uma situação, e a percepção, enquanto não põe primeiramente
no inseto é a maneira pela qual ele investe de sentido os seus reflexos e os
um objeto de conhecimento e enquanto é uma intenção de nosso ser total,
encaixa numa situação concreta; em resumo, quando há a necessidade de
são modalidades de uma visão pré-objetiva que é aquilo que chamamos de
substituição da pata o inseto altera a maneira pela qual o seu corpo se abre
ser no mundo.” (Merleau-Ponty 1, 118-119)
e se projeta no mundo que o envolve.
Como já foi exposto, não há mecanismos sensório-motores
paradigmas extremos, o do em-si e do para-si, o exterior ou o interior,
programados e previamente engatilhados para que a substituição ocorra
a causalidade objetiva e as cogitationes, ou, lançando mão do jargão
em determinada situação, como se o corpo do inseto fosse dotado de
cartesiano, a res cogitans e a res extensa, propiciando a sua articulação
instrumentos de emergência; frente à mutilação, ele simplesmente altera
através dum ponto comum no qual inexiste a clivagem do pensamento
o uso que comumente faz de seu corpo, ele adota um comportamento
objetivo. Contudo, não se trata duma síntese ulterior entre as duas
diferenciado. Também não se trata duma decisão planejada e/ou
posições paradigmáticas, mas antes duma experiência prévia, na qual a
presumida, pois não podemos falar de consciência de si num ser vivo de
separação é sempre posterior.
tal proporção sem cair numa hipótese absurda e fantasiosa. O que está
Logo, remontando ao pré-objetivo, as categorias aferradas aos
por trás do fenômeno de substituição das patas, escreve-nos o filósofo,
processos em primeira e terceira pessoa se dissolvem; os dois paradigmas
“é o movimento do ser no mundo” (Merleau-Ponty 1, 117), isto é, é a
antagônicos, diametralmente opostos, rivais ao extremo, agora se
maneira pela qual, através de seu corpo capaz de perceber e de projetar-
confundem entre si, entrelaçados numa mesma dimensão originária,
se no mundo sensível que o rodeia, o inseto se engaja em uma situação
abarcados num esteio comum. Assim sendo,
concreta e a investe de sentido.
Descobrindo-se esse “ser em situação” e esse engajamento
mundano que é proporcionado pela percepção, os reflexos corporais
não podem mais ser reduzidos a uma soma de dados isolados colhidos
pela sensibilidade; ao percebê-los, o corpo os desdobra numa situação,
inserindo-os num contexto global organizado como um campo perceptivo.
Os dados sensíveis não são mais dados isolados, eles se estendem e se
correlacionam com o seu horizonte total. Podemos estender a reflexão até
o domínio da subjetividade: o pensamento deixa de ser assim um projeto
particularíssimo, restrito à primeira pessoa e à interioridade do Cogito,
para se transformar na intenção total do sujeito ao se dirigir ao mundo.
Desta maneira, conclui Merleau-Ponty que “o reflexo, enquanto se abre ao
194
Será esse domínio da experiência pré-objetiva que unirá os dois
É por ser uma visão pré-objetiva que o ser no mundo pode
distinguir-se de todo processo em terceira pessoa, de toda
modalidade da res extensa, assim como de toda cogitatio,
de todo conhecimento em primeira pessoa- e que ele
poderá realizar a junção do ‘psíquico’ e do ‘fisiológico’.
(Merleau-Ponty 1, 119)
Retornemos aos casos do portador do membro fantasma e do
anosognósico, transplantando a eles as conclusões que Merleau-Ponty
tirou do exame do comportamento do inseto e a constatação duma visão
pré-objetiva subjacente a todos os fenômenos perceptivos.
Caso adotássemos uma das explicações díspares que nos são
oferecidas pelo pensamento objetivo, seja do lado da fisiologia e seja do
195
Cadernos Espinosanos XXIII
José Marcelo Siviero
lado da psicologia, os diagnósticos do membro fantasma e da anosognose
de ordem prática, isto é, a obstrução de suas ações sensório-motoras
seriam excludentes, suas justificativas seriam por demais limitadas e,
através da imobilização de seu corpo ou de sua mutilação, faz um uso
obviamente, não conduziriam a quaisquer conclusões mais sólidas. Se nos
diferenciado de suas funções corporais, refletindo o impasse que lhe é
fiássemos no paradigma fisiologista, o membro fantasma nada mais seria
imposto pela situação na qual está mergulhado. O inseto substitui a pata
senão a persistência de estimulações interoceptivas numa região do corpo
quando sofre a mutilação ao perceber que ele não conta mais com os
que não mais existe, e os sintomas do anosognósico, por sua vez, seriam
movimentos e a sensibilidade da pata cortada; por esse motivo é que
a sua supressão ou a perda de sensibilidade num membro aparentemente
ele não a substitui quando ela está somente imobilizada, pois o membro
saudável (cf. Merleau-Ponty 1, 119-120). Nos dois casos, adotando-se os
preso, ao contrário do seccionado, ainda está aberto ao mundo, às suas
juízos emitidos pelo pensamento fisiologista, tratar-se-ia tão-somente dum
solicitações e às suas possibilidades. O problema não está em determinar
funcionamento anômalo da estrutura neural do paciente, um prolongamento
o domínio fisiológico e psicológico, mas em entender tais fenômenos a
e uma interrupção errôneos em cada um dos doentes.
partir do engajamento do sujeito em seu mundo através do corpo integral,
Porém, reportando-nos às explicações da psicologia, não
encontramos ainda um terreno firme. Nela, a fraqueza é tão evidente quanto
Como a experiência do inseto pode nos ajudar a esclarecer os dois
nas conclusões dum exame estritamente fisiológico. A ambiguidade das
fenômenos, que vínhamos discutindo até então? Será possível, de que
duas moléstias é encarada pela psicologia como a permanência de certas
maneira e por quais vias, ligar o experimento comportamental do inseto
representações, matizadas como pensamentos ou juízos do sujeito em
e suas conclusões aos problemas ambíguos diretamente relacionados
relação ao seu corpo e às partes dele. Deste modo, o membro fantasma,
ao membro fantasma e à anosognose? Os dois domínios se aproximam
enquanto presença invisível dum braço ou duma perna já ausentes, é
quando pensamos o corpo como engajado numa situação concreta, aberto
definido como uma recordação, juízo positivo ou uma percepção, e, do outro
a ela pela percepção e profundamente envolvido no ambiente mundano
lado, o membro esquecido do anosognósico é análogo a um esquecimento
segundo as suas respostas sensoriais e motoras. Assim, pois,
ou juízo negativo (cf. Merleau-Ponty 1, 120). Segundo este paradigma,
tais distúrbios na infraestrutura do corpo dependem unicamente das
cogitationes dum sujeito absoluto, residente na sua subjetividade interna,
cujo corpo é apenas um invólucro carnal do qual ele é capaz de decidir
tudo. Tal como nas explicações fisiológicas, o impasse não se resolve, não
alcança um desfecho. A problemática continua em aberto.
Agora desloquemos o problema para o domínio do ser no mundo,
isto é, para a experiência pré-objetiva que a análise do comportamento
do inseto nos trouxe a lume. O pequeno inseto, enfrentando um problema
196
e não de uma ou outra de suas províncias.
Aquilo que em nós recusa a mutilação e a deficiência é um
Eu engajado em um certo mundo físico e inter-humano,
que continua a estender-se para seu mundo a despeito de
deficiências ou de amputações, e que, nessa medida, não as
reconhece de jure. A recusa da deficiência é apenas o avesso
de nossa inerência a um mundo, a negação implícita daquilo
que se opõe ao movimento natural que nos lança a nossas
tarefas, a nossas preocupações, a nossa situação, a nossos
horizontes familiares. (Merleau-Ponty 1, 121)
197
Cadernos Espinosanos XXIII
Dito dessa maneira, encontramos o membro fantasma como
do membro fantasma, utilizando-se do coto como se ali ainda houvesse seu
uma região corporal que, mesmo ausente e desligada de todo o aparato
membro; mesmo o fracasso de suas tentativas não o desencoraja da tarefa.
sensório-motor, ainda persiste em se manter aberta ao seu mundo, retendo
Do interior de sua ambiguidade, o corpo do doente ainda percebe
até mesmo os caracteres sensíveis do momento de sua destruição (no
tais objetos como manejáveis, embora a parte de seu corpo que se abria
caso, como já expusemos, da paralisação de sua posição no momento da
a tal fenômeno não exista mais. Como isso é possível, indaga o autor?
mutilação e da dor ainda presente dos estilhaços do obus que o ferira).
Como a existência pode comportar tal ambiguidade? Será um erro por
Já no anosognósico o que há é o fenômeno oposto, o fechamento ou a
parte da percepção do indivíduo ou um distúrbio nas solicitações do
recusa do mundo localizada num dos membros, que não mais se move
mundo sensível?
e não mais sente o meio circundante, omitindo-se a responder ao que o
mundo lhe solicita.
198
José Marcelo Siviero
Novamente, é preciso ultrapassar as antinomias do em-si e do parasi. Desçamos ao reino da experiência pré-objetiva e pré-pessoal, onde não
Logo, desvelamos, através dessas conclusões parciais, a
existe ainda essa separação em categorias. Nela convivem em harmonia
importância capital do corpo na filosofia de Merleau-Ponty: “O corpo é
tanto a dimensão pessoal quanto a generalidade; assim, a ambiguidade
o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-
deixa de ser um juízo errôneo para se tornar um caractere intrínseco da
se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se
experiência. Assim, sobre as solicitações dirigidas ao membro inexistente
continuamente neles.” (Merleau-Ponty 1, 122). Entretanto, ao colocar o
e à ambivalência de tal experiência perceptiva, adverte-nos Merleau-Ponty
corpo no centro da existência, Merleau-Ponty acaba também por lançar
de que “é preciso que o manejável tenha deixado de ser aquilo que manejo
luz sobre o fenômeno da ambiguidade. Tomemos esse questionamento
atualmente para tornar-se aquilo que se pode manejar, tenha deixado de ser
de outra perspectiva: como o mundo pode ainda solicitar determinados
um manejável para mim e tenha-se tornado como que um manejável em si.”
comportamentos e condutas, certos movimentos e reações sensoriais, de
(Merleau-Ponty 1, 123). O corpo, antes limitado pela dimensão do para-si,
um corpo que é incapaz de engajar-se nelas, como no caso do portador
agora descobre uma região de generalidade que lhe é própria; em resumo,
do membro fantasma?
o uso que se faz atualmente do corpo depende de toda uma sedimentação
Esse é o caso paradoxal do mutilado; embora seu corpo seja o pivô
de seu passado, impressa em hábitos, gestos e cacoetes. É isso o que
de sua existência, o veículo com o qual ele se dirige ao seu mundo, este
permite a Merleau-Ponty caracterizar a ambiguidade do corpo como a sua
ainda o obriga a manejar objetos movimentando o seu braço ausente. De
composição em duas camadas existenciais, a saber, o corpo habitual e o
certa maneira, o paciente retém o uso que no passado ele fazia de seu corpo,
corpo atual (cf. Merleau-Ponty 1, 122), sendo que o primeiro é o “fiador”
do tempo anterior ao seu ferimento de guerra, e tal sedimentação de gestos
deste último. Assim, no mutilado, as intenções motoras solicitadas ao seu
e reações motoras ainda aflora no seu corpo atual e nas situações mundanas
braço fantasma fazem referência a esse corpo habitual, que se faz presente
em que ele atualmente está inserido. O paciente, como cita Merleau-Ponty
na atualidade mesmo quando seu braço está ausente. A ambiguidade aqui
no interior de seu texto, continua a tentar pegar e mover objetos com a mão
não é mais um problema, mas faz parte da estrutura de seu ser no mundo.
199
Cadernos Espinosanos XXIII
José Marcelo Siviero
O corpo, que opera tanto o fechamento quanto a abertura ao seu mundo,
da psicologia, clarifica ainda mais o fenômeno da ambiguidade temporal
comporta harmonicamente essa mescla de generalidade e atualidade.
vivenciada pelo portador do membro fantasma. Num objeto material,
Saímos desse modo da disjunção exclusiva entre as duas alternativas,
regido por leis mecânicas, como queria a fisiologia ao abordar o corpo
o impasse que era suscitado pelos paradigmas do pensamento cartesiano. A
humano, seria impossível falar de uma tal ambiguidade, especialmente se
ordem do em-si e do para-si, representados pelo corpo habitual que mantém
ela levar em conta o passado e a atualidade do objeto. Com isso, retornamos
o passado vivo e no corpo atual que desfecha a existência em situação,
à reflexão com a qual iniciamos esse trajeto, para alcançar enfim o cerne
agora são as duas faces da mesma moeda, duas dimensões constitutivas
das objeções que Merleau-Ponty move em direção ao fisiologismo
dum único fenômeno, advindas duma origem comum encontrada na
mecanicista: num objeto mecânico, cujos movimentos se caracterizam
vivência do pré-objetivo. Entre elas não há separação ou isolamento; tal
pela linearidade e regularidade entre estímulo e reação, cujas reações
clivagem só ocorre num momento posterior, quando da necessidade de
mecânicas estão previamente determinadas e são perfeitamente previsíveis,
elaboração dum discurso e dum pensamento objetivo, como é o caso das
não há espaço para a sedimentação de um passado e a sua consequente
ciências empíricas e seus juízos e asserções. Entretanto, na experiência
atualização. Os objetos mecânicos não conhecem o tempo, não guardam o
que dá sustentação a qualquer objetividade, nessa experiência originária
passado, não constroem hábitos, não acumulam memórias; seu horizonte é
e espontânea do ser no mundo, nessa existência mundana mais direta e
o das determinações imóveis do presente, e, sendo um prisioneiro do puro
autêntica, o que encontramos primeiramente é uma oscilação entre os atos
atual, não há espaço para uma mudança nas suas reações ou para um uso
em primeira e terceira pessoa que, contudo, não os separa, mas reforça a
diferenciado de seus movimentos. Em resumo, para um objeto como esse
sua imbricação, como salienta Ramos:
dos mecanicistas, não há engajamento, não há ser no mundo.
Há assim um movimento integrado da existência normal
que pendula entre os atos em terceira pessoa e os atos
pessoais, sem que isso signifique uma desintegração da
conduta. Quer dizer, neste caso, o corpo próprio retoma
ou mobiliza os hábitos adquiridos (o passado do sujeito),
mas também se abre para novas aquisições (ou seja, ele se
projeta num presente vivo que reativa o passado, e se dirige
a um futuro inédito ao improvisar e, consequentemente,
adquirir novos comportamentos). O doente, por sua vez,
é um ser fragmentado e fadado à repetição de um tempo
perdido. (Ramos 3, 74)
A experiência do recalque, que Merleau-Ponty toma de empréstimo
200
Entretanto, o corpo não é um objeto estritamente material; ele
arrasta consigo todo o seu passado sedimentado, projeta-se no seu presente
com vistas a um futuro ainda em estado virtual e reage de maneiras
diferenciadas ao mundo que o engloba e o inquire, sempre levando em
conta as configurações da situação na qual está inexoravelmente engajado,
com seu corpo ora abrindo-o e ora fechando-o à experiência perceptiva
do mundo. O sujeito está, desde o início, encarnado num corpo que é
ambíguo, amparando uma experiência existencial que é ambígua em seu
âmago. Por isso, não sendo uma mera máquina corpórea, não há mais
sentido em se falar de separação entre corpo e alma, entre sujeito e meio
exterior, entre para-si e em si.
Entretanto, isso é o que descobre Merleau-Ponty ao interrogar de
201
Cadernos Espinosanos XXIII
José Marcelo Siviero
dentro os postulados científicos elaborados pela fisiologia clássica. E quanto
ou da lâmpada porque ele é percebido constantemente, enquanto posso me
ao outro lado, o dos juízos da psicologia, o que o filósofo questiona neles?
afastar daquelas. Portanto, ele é um objeto que não me deixa.” (Merleau-
O que Merleau-Ponty descobre ao perscrutar o domínio da subjetividade
Ponty 1, 133) O primeiro caractere atribuído pela psicologia clássica é a
absoluta, ou seja, quando o corpo é abandonado em detrimento das
permanência, a constância do corpo próprio em todas as suas experiências
representações do intelecto? Como ele resolverá o impasse a partir de seu
sensório-motoras; e, ao denominá-lo como um objeto que nunca o
outro lado, articulando-o com a descoberta das duas camadas existenciais
abandona, faz cair por terra quaisquer interpretações objetivistas, posto
do corpo? Examinemos a seguir as suas objeções quanto aos juízos da
que “o objeto só é objeto se pode distanciar-se e, no limite, desaparecer
psicologia clássica.
de meu campo visual.” (Merleau-Ponty 1, 133). Os objetos que se podem
manejar estão ao alcance do corpo, seja de seus dedos ou, no caso daqueles
2. A experiência do corpo vista pela psicologia
clássica: contribuições e objeções
mais afastados, na linha de seu campo visual. Da mesma maneira que estão
próximos, eles podem também se distanciar, variando o grau de ação que
podem sofrer; podem até mesmo desaparecer do campo da experiência
202
A psicologia clássica, segundo o filósofo, é a primeira a se afastar
sensorial. Desdobram-se em várias perspectivas, podendo ser examinados
das interpretações que tomam o corpo como objeto, introduzindo em seu
de inúmeros ângulos; logo, o objeto pode ser percebido em sua miríade
seio um interior, representado pelo “psiquismo”. Será essa interioridade
de variações. Já o corpo é percebido constantemente, ele não pode ser
do corpo próprio que o moverá por si mesmo e que colocará os objetos
deixado de lado, ele se mostra sempre sob a mesma perspectiva, furtando-
no horizonte de sua experiência, seja na aquisição de hábitos e seja no
se a uma exploração mais detalhada, nem mesmo é possível se afastar dele
manejo e no exame perspectivo dos objetos que chegam à sua percepção,
na experiência perceptiva. E, mais do que isso, é através dele que se pode
afastando-o das reações lineares do paradigma mecanicista.
visar e tocar os objetos exteriores.
Como nos mostra Merleau-Ponty, as contribuições da psicologia
Como emparelhar, dessa maneira, o corpo aos objetos por ele
aprofundam a crítica aos paradigmas mecanicistas e iluminam a experiência
utilizados? Devido à sua permanência, como vimos, o corpo está sempre
do corpo; entretanto, ela falha ao desvelar o engajamento efetivo do corpo
presente no campo visual do sujeito; não podemos, pois, afirmar que ele
nos fenômenos ao recair na dimensão do psíquico e voltar a se confinar
está simplesmente solto na tessitura do mundo, pois isso implicaria na
na perspectiva do para-si. É necessário, pois, analisar essas contribuições
possibilidade de sua dissolução ou de seu ocultamento, como acontece
teóricas legadas pelo exame do psiquismo, para logo depois objetá-las e
aos outros objetos. O corpo, por se mostrar por uma única e constante
continuar no trajeto da articulação das ordens do em-si e do para-si. É esse
perspectiva, não se perfila sobre o horizonte o mundo; já os objetos por ele
o andamento que o filósofo adota para essa seção de seu texto.
visados “só podem aparecer para mim em perspectiva, mas a perspectiva
Primeiramente, o corpo não é um objeto dentre outros, perfilado
particular que a cada momento obtenho deles só resulta de uma necessidade
por entre eles, misturado ao cenário do mundo: ele “se distingue da mesa
física, quer dizer, de uma necessidade da qual posso me servir e que não
203
Cadernos Espinosanos XXIII
José Marcelo Siviero
me aprisiona: de minha janela, só se vê o campanário da igreja, mas esse
tornando-se seu fiador: “a presença e a ausência dos objetos são apenas
constrangimento me promete ao mesmo tempo que de outro lugar se veria
variações no interior de um campo de presença primordial, de um domínio
toda a igreja.” (Merleau-Ponty 1, 134). O exemplo do prisioneiro é ainda
perceptivo sobre os quais meu corpo tem potência [...], como também a
mais assertivo: de sua cela, ele está limitado a um único ângulo, e sua visão
apresentação perspectiva dos objetos só se compreende pela resistência de
do campanário é sempre truncada. Desse modo, o corpo permanece ao
meu corpo a qualquer variação de perspectiva.” (Merleau-Ponty 1, 136).
lado de toda experiência possível do sujeito, e a variação de perspectivas e
Tal constância, ao abrir o campo de experiência do corpo, fornece-nos
inclusive o desaparecimento dos objetos de seu campo visual depende de
também a medida de seu engajamento na existência mundana.
sua posição e de sua movimentação em meio a esse cenário mundano. Ente
sem perspectivas, é o corpo que as fornece.
204
A permanência é, portanto, a descoberta essencial da psicologia,
mas ela não a ultrapassa; o corpo é sempre percebido ao lado de toda
Assim, o corpo não é mais um fragmento de matéria lançado
experiência possível, mas, para a psicologia subjetivista, tal permanência
ao mundo, com o privilégio de ser um objeto especial a ser percebido
continua como avesso da experiência objetiva, e o corpo não sai de
constantemente, invariável; é ele que, tal como as janelas, abre uma
seu status de invólucro material para o pensamento. Após identificar a
perspectiva sobre o mundo. Desprovido de perspectivas, mas capaz de
contribuição, Merleau-Ponty não tarda a confrontá-la com a objeção de que,
desdobrá-las no mundo; percebido permanentemente, mas sem se reduzir
caso a psicologia se debruçasse mais apuradamente sobre a permanência
a objeto; dotado de percepção, mas impossível de ser perscrutado pelas
do corpo próprio, “podia conduzi-la ao corpo não mais como objeto do
potências de seu próprio aparato sensorial: o corpo, sob o argumento
mundo, mas como meio de nossa comunicação com ele, ao mundo não
da permanência proposto pela psicologia clássica, encerra em si tais
mais como soma de objetos determinados, mas como horizonte latente de
contradições: “observo os objetos exteriores com meu corpo, eu os manejo,
nossa experiência.” (Merleau-Ponty 1, 136-137).
os inspeciono, dou a volta em torno deles, mas, quanto ao meu corpo, não o
Esse é o primeiro caractere identificado por Merleau-Ponty, e
observo ele mesmo: para poder fazê-lo, seria preciso dispor de um segundo
também a primeira contribuição da psicologia na ultrapassagem do para-
corpo que não seria ele mesmo observável.” (Merleau-Ponty 1, 135). Em
si; o segundo apontado pelo autor é o fenômeno das “sensações duplas”,
outras palavras, é o corpo que nos abre ao mundo, é o fato de ele mesmo se
quer dizer, de uma ambivalência interna estabelecida entre os dados dos
furtar à nossa percepção que permite que ela se efetive.
sentidos. É a experiência de se apertar a própria mão: nesse contexto, é
Assim, tal presença originária não constitui somente um interior
impossível determinar com distinção qual é a mão que toca e a mão que
para o corpo, a moradia de sua subjetividade, a presença clara e imediata
recebe o toque, a sensação é ambígua e o contato entre as duas mãos é
de si a si; a permanência emana um campo de potencialidades ao redor do
confuso. Diz-nos o filósofo que “quando pressiono minhas mãos uma contra
sujeito, no qual os objetos se perfilam e se oferecem à sua experiência. É
a outra, não se trata então de duas sensações que eu sentiria em conjunto,
por manter essa sua permanência intrínseca que o corpo consegue sentir
como se percebem dois objetos justapostos, mas de uma organização
a presença dos outros entes e, com eles, desdobrar a sua experiência,
ambígua em que as duas mãos podem alternar-se na função de ‘tocante’
205
Cadernos Espinosanos XXIII
José Marcelo Siviero
e ‘tocada’”. (Merleau-Ponty 1, 137). A ambivalência das sensações, que o
das “sensações cinestésicas”, isto é, dos movimentos parciais do corpo
psicólogo constata mas erroneamente classifica como uma duplicação de
em direção a determinado fim e as sensações derivadas diretamente
dados sensoriais, evidencia um viés afetivo do corpo em mão dupla com
daí. Os psicólogos tendem a decompor o movimento total do corpo em
o mundo: ao segurar a própria mão, o corpo toca ao mesmo tempo que é
partes objetivas e, uma vez em posse delas, reconstituir passo a passo tal
tocado, o que é característico do circuito de existência. Ao mesmo tempo
movimentação, até a síntese do movimento global. A rigor, o que há é
em que é paciente, o corpo é agente; ele é afetado pelo exterior no ato
uma antecipação do final desses movimentos, ignorando-se o movimento
mesmo de explorar as suas regiões.
originário desfechado pelo corpo próprio. No manejo de objetos externos,
O caractere afetivo é crucial para se identificar outra fragilidade
é natural que haja tal decomposição de etapas; contudo, o que podemos
das teorias psicológicas no que tange ao corpo próprio. Se nos pautarmos
dizer da movimentação do corpo próprio? Será que podemos decompor
apenas pelo lado da subjetividade, aos elementos do exterior caberiam
sua motricidade em eventos separados, servos de um fim, como intenta
certos tipos de afeto, e a eles, no momento em que influenciariam o corpo,
tal vertente da psicologia?
corresponderia uma representação pontual no intelecto. O que não ocorre:
O corpo, como vimos, está sempre presente; não é necessário,
indica-nos Merleau-Ponty que, no caso de um incômodo acarretado
pois, um movimento de preparação para alcançá-lo a distância, pois “eu o
por um prego a ferir o pé, não se pensará que ele seria a “causa” ou a
movo diretamente, não o encontro em um ponto do espaço objetivo para
“representação” da dor, mas que ele é a região dolorosa mesma, ou seja,
levá-lo a um outro, não preciso procurá-lo, ele já está comigo.” (Merleau-
“a dor indica seu lugar, [...] ela é constitutiva de um ‘espaço doloroso’”
Ponty 1, 138). Sua movimentação é, antes de tudo, espontânea, anterior ao
(Merleau-Ponty 1, 138) que é intrínseco ao corpo. É o resvalar do mundo
surgimento dum espaço compartimentado e quantificável. Há para o corpo
circundante na subjetividade que a experiência de dor evidencia, posto
uma presença inalienável, um atestado de existência própria a qual não
que a dor, mesmo que advinda dum afeto externo, nunca se decompõe em
cabem questionamentos, um campo de presença que o harmoniza com os
“pensamento de dor” ou em mero significado doloroso. objetos que o rodeiam, afetando-se mutuamente e entranhando-os numa
Desta maneira, na experiência afetiva, o corpo nunca é uma
massa inerte e passiva; ele é, não somente pela sua permanência e pela
suma, esse transbordamento da subjetividade.
sua capacidade imediata de reflexão, diferente dos objetos externos pela
Assim, tal como com a fisiologia mecanicista, Merleau-Ponty faz
maneira com a qual projeta diante e ao redor de si um fundo afetivo, no
uso dos argumentos internos de tal paradigma a fim de questioná-lo de
qual esses elementos sensíveis do mundo externo se perfilam e estabelecem
dentro. Porém, todas essas contribuições que lhe permitiram repensar a
relações. É esse fundo afetivo que, a rigor, é o responsável por impulsionar
subjetividade e superar a ordem restritiva do para-si vieram da própria
a consciência para fora de si mesma (cf. Merleau-Ponty 1, 138), e que é
psicologia, que, mesmo avançando em tais conclusões, não conseguiu ir
involuntariamente desvelado pela psicologia clássica.
além da subjetividade confinada ao interior. Por que, afinal, a psicologia
Por fim, o último caractere investigado por Merleau-Ponty é o
206
mesma duração, fazendo-os habitar um mundo comum, que exprime, em
acaba acertando em suas conclusões parciais, mas erra ao tentar dar um
207
Cadernos Espinosanos XXIII
passo além? Por que ela, tal como o mecanicismo, termina por defender
um dos extremos do pensamento objetivista, a saber, a ordem do para-si, a
subjetividade soberana face ao mundo exterior?
Para Merleau-Ponty, trata-se duma orientação teorética dos
psicólogos clássicos que reforçava a separação total entre sujeito e objeto,
desta vez favorecendo o primeiro, ou seja, um reforço do paradigma
cartesiano de pensamento. Em suas palavras, “eles se situavam no lugar
de pensamento impessoal ao qual a ciência se referiu enquanto ela
acreditou poder separar, nas observações, o que diz respeito à situação do
observador e as propriedades do objeto absoluto.” (Merleau-Ponty 1, 139).
José Marcelo Siviero
A incompletude de minha percepção era compreendida
como uma incompletude de fato, que resultava da
organização de meus aparelhos sensoriais; a presença de
meu corpo, como uma presença de fato que resultava de
sua ação perpétua sobre meus receptores nervosos; enfim,
a união entre a alma e o corpo, suposta por essas duas
explicações, era compreendida, segundo o pensamento
de Descartes, como uma união de fato cuja possibilidade
de princípio não precisava ser estabelecida porque o fato,
ponto de partida do conhecimento, eliminava-se de seus
resultados acabados. (Merleau-Ponty 1, 140)
De certa maneira, os paradigmas da psicologia cometem os mesmos erros
Contudo, por se colocar justamente numa perspectiva impessoal
do mecanicismo, mas com sinal trocado; aqui, valorizou-se o sujeito em
e destacada do mundo, a mirá-lo duma distância segura, o psicólogo, na
detrimento de seu mundo. É o outro polo da problemática.
visão do filósofo, ignora que é o seu próprio psiquismo que está sendo
Os psicólogos que se pautam por tal matriz teórica, nas conclusões
analisado, que são as leis universais da vida de sua consciência que estão
do autor, tomam como objeto de seus estudos o “psiquismo”, ou seja, a vida
em evidência. Ao enumerar fatos em seus estudos, o pesquisador também
da consciência devidamente objetivada e, distanciando-se dele, isolando-se
ignora a abertura originária ao mundo que é sua raiz, seu fundamento, o
tal qual na relação entre sujeito e objeto, limitam-se a determinar suas leis e
campo primordial de vivências que lhes confere um significado. É o campo
suas relações através de um pensamento impessoal, uma visão de sobrevoo,
afetivo da consciência do qual já falamos que é necessário retomar.
para utilizarmos um célebre bordão merleau-pontyano. Assim, mesmo que
Deste modo, ser uma consciência não é se fechar no interior
suas conclusões parciais abrissem uma brecha para novas considerações
da subjetividade e, uma vez encastelado nessa dimensão, contemplar
filosóficas, a psicologia clássica enfocada por Merleau-Ponty se esquece do
um mundo representado. Pelo contrário: “ser uma consciência, ou,
fundo existencial fundado pelo subjetivo e, desprezando toda a riqueza da
antes, ser uma experiência, é comunicar interiormente com o mundo,
vida da consciência, limita-se a tomar os fenômenos mentais como simples
com o corpo e com os outros, ser com eles em lugar de estar ao lado
fatos. O corpo, por sua vez, não tarda a recair no plano da representação
deles. Ocupar-se de psicologia é necessariamente encontrar, abaixo do
intelectual; o subjetivismo de cunho cartesiano se fortalece.
pensamento objetivo que se move entre as coisas inteiramente prontas,
Novamente, o problema das relações entre alma e corpo;
novamente, o impasse do pensamento objetivo, agora pendendo para o
lado do intelecto. Desta maneira, alerta-nos Merleau-Ponty de que
uma primeira abertura às coisas sem a qual não haveria conhecimento
objetivo.” (Merleau-Ponty 1, 142). Sendo assim, reencontramos também nas análises da psicologia
clássica a experiência do pré-objetivo, testemunha dessa abertura primeira
208
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Cadernos Espinosanos XXIII
José Marcelo Siviero
do corpo ao mundo, anterior às separações categoriais, meio onde se
da duração e da temporalidade: pelo hábito, o corpo traz consigo, em
encontram unidas, anterior à sua polarização, as ordens do somático e do
perene atualização e retomada, todo o seu passado. Já o campo afetivo da
psíquico. É a pá de cal jogada sobre o corpo reduzido a objeto material
subjetividade que entrevemos pela análise dos argumentos dos psicólogos,
do mundo e sobre a representação nascida do intelecto: por impor uma
especialmente no que toca à permanência do corpo próprio e à sua
perspectiva sobre o mundo, por se situar em seu estofo e não acima ou
capacidade de afetar e ser afetado pelo mundo que o cerca, confere-lhe um
numa dimensão lateral, é o corpo que, pela sua permanência, garante o
horizonte, um campo de possibilidades de experiência, em resumo, abre-o
acesso do sujeito à esfera mundana. Poderíamos dizer mais: que é pela ação
para um devir, para uma dimensão futura. Reforça-se, portanto, a duração
do corpo que o subjetivo ganha o exterior, ou que o para-si da interioridade
que já era entrevista nas análises da fisiologia. Se o corpo tem um passado,
psíquica transborda para além de suas fronteiras. não podemos mais considerá-lo como um objeto estável e regido por leis
mecânicas, como queriam os fisiologistas; já se ele emana ao redor de si
3. Considerações finais
O “paradigma cartesiano de pensamento”, ou seja, a separação entre
a alma e o corpo, uma das mais conhecidas fórmulas filosóficas, é objeto
de críticas constantes por parte de Merleau-Ponty. Nele, as relações entre
ambas as dimensões ontológicas são marcadas por uma forte oposição:
ambas são substâncias separadas, distintas entre si, cada uma com a sua
dimensão própria. Tanto nas críticas à fisiologia mecanicista quanto
na análise dos discursos da psicologia clássica, o filósofo desemboca
inexoravelmente no domínio do pré-objetivo. É essa dimensão que está
antes das categorias, que é subjacente aos discursos categoriais da fisiologia
e da psicologia, que permite dar ao corpo percipiente e às suas capacidades
sensório-motoras um novo estatuto filosófico: o de veículo da existência,
acesso ao ser através da percepção do mundo e, em outras palavras, como
o ser no mundo mesmo. Ser no mundo é, antes de tudo, ter um corpo em
contato permanente com um mundo de caracteres sensíveis.
O paradoxo do corpo habitual e atual, reforçado pelos sintomas
do membro fantasma e da anosognose, além de contestar o argumento do
corpo como um objeto material como os outros, contamina-o com o germe
210
um campo de virtualidades, que nada mais é do que o transbordamento
da subjetividade no exterior, também não mais podemos contar com a
impessoalidade e a atemporalidade dum intelecto soberano.
Portanto, o corpo que emerge das reflexões de Merleau-Ponty é
o pivô da existência primeiramente porque ele a acompanha em todos os
seus passos; é ele que pulsa nessa duração subjacente a todas as vivências
do ser humano, fazendo a junção entre seu passado e seu devir. O corpo
como pivô da existência é, por si só, atualidade mesma. É nele que se
deposita a dimensão temporal, é no corpo pré-objetivo que o somático e o
psíquico não travam conflito algum.
BEYOND THE OBJECT BODY AND THE INTELECTUAL
REPRESENTATION: how Merleau-Ponty rediscovers the
body as the existence’s vehicle.
Abstract: This essay analyses the objections made by Merleau-Ponty to what he calls
“cartesien paradigm of thinking”, the separation between soul and body. Concentrating
in the two first chapters of Phénomenologie de la perception’s first part, it’s an intent to
identificate, in the critics directed to the mechanicist physiology and to the subjective
psychology, how the philosopher gives a new philosophical statute for the sensitive
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Cadernos Espinosanos XXIII
José Marcelo Siviero
body, putting it as the main existence’s vehicle, in the same time that he rediscovers
the pre-objective experience.
Keywords: Merleau-Ponty; existence; body; subjectivity, physiology.
pré-objetiva justamente num ser irracional pelo mesmo motivo que se utiliza de
exemplos de doente para clarificar os meandros da percepção: é nessas situações nas
quais o pensamento objetivo está ausente que se verifica a presença preponderante de
seu fundamento, na qual só se pode encontrar esse engajamento mundano primordial.
Em resumo, nas situações que escolhe para analisar, Merleau-Ponty parte não das
categorias mas da vivência bruta e espontânea, o que seria dificultoso (para não se
dizer problemático) se ele tomasse as categorias objetivas como ponto de partida.
Trata-se, a rigor, duma questão de método que é suscitada pelo próprio pré-objetivo.
2. É interessante notar como Merleau-Ponty busca conceitos em outros ramos do
conhecimento, no caso a psicologia, para iluminar os estudos e reflexões que elabora
ao longo de sua filosofia. No caso do membro fantasma, quando uma determinada
recordação ou contexto emocional o manifestam no doente, a associação com o
recalque do qual fala a psicanálise é inevitável. Escreve-nos o filósofo sobre o recalque
que ele “consiste em que o sujeito se empenha em uma certa via [...], encontra uma
barreira nessa via e, não tendo força nem para transpor o obstáculo nem para renunciar
ao empreendimento, permanece bloqueado nessa tentativa e emprega indefinidamente
suas forças em renová-la em espírito.” (Merleau-Ponty 1, 123) A rigor, o indivíduo
recalcado ou traumatizado tem a existência imobilizada por um episódio ou elemento
de seu passado, que o impede de se projetar ao futuro, condicionando-o a um horizonte
impossível que ele não cessa de alimentar em cada segmento de sua vida. Aqui vemos
o peso do passado que o corpo atual é fadado a carregar: toda recordação, ou qualquer
elemento que faça referência a ela, como no caso dos mutilados que ainda sentem o
membro inexistente na extremidade do coto, reabre esse passado, torna-o presente
a quem o viveu e obriga o indivíduo a retomá-lo a partir de sua atualidade. Por
outro lado, em se considerando o retorno inesperado dessa vivência passada, “todo
recalque é a passagem da existência em primeira pessoa a um tipo de escolástica
dessa existência, que vive para uma experiência antiga ou antes para a recordação de
tê-la tido” (Merleau-Ponty 1, 124). O recalque, tal como a permanência dum braço
fantasma, aprisiona o sujeito numa experiência em terceira pessoa, isto é, dissolve a
experiência do atual no anonimato e na generalidade. Como no exemplo apontado
por Merleau-Ponty nessa altura do texto, o indivíduo continua a se empenhar num
amor adolescente ou numa obra malfadada, mesmo sabendo-os impossíveis, embora
novas experiências e novos fatos vão lhe acontecendo. Porém, essas experiências
são arroladas num domínio geral e vivenciadas pelo sujeito em seu anonimato, tendo
pouca ou nenhuma influência em seus projetos pessoais. Além de reforçar o fenômeno
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Trad. de Carlos
Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
2. FERRAZ, Marcus Sacrini Ayres. O transcendental e o existente em Merleau-Ponty.
São Paulo: Humanitas, 2006.
3. RAMOS, Silvana de Souza. A Prosa de Dora: Uma leitura da articulação entre
natureza e cultura na filosofia de Merleau-Ponty. São Paulo, 2009.
Tese (Doutorado em Filosofia). FFLCH, Departamento de Filosofia,
Universidade de São Paulo.
Notas:
1. Observemos o comentário de Marcus Ferraz: “O território em que o psíquico e
o somático estão integrados é a dimensão em que eles ainda não foram cindidos.
Na vivência encarnada do ser no mundo, no movimento de transcender-se em
um meio significativo, não há separação entre ambos, e sim a experiência de um
‘corpo habitual’, ou seja, de um conjunto de respostas às situações mundanas que se
sedimentam e podem mesmo ganhar autonomia em relação à consciência atual do
corpo.” (Ferraz 2, 88-89). Não falaremos diretamente da contraposição entre corpo
habitual e corpo atual nessa passagem; ela aparecerá em breve em nosso texto. Por ora,
da leitura do comentador e do texto merleau-pontyano, descobrimos o pré-objetivo
como um elemento subjacente ao pensamento objetivo, e não como a sua contraparte.
Deste modo, tanto a objetividade quanto a subjetividade se radicam nesse domínio
originário da experiência, nessa vivência primeira e espontânea do ser no mundo. A
cisão, portanto, é secundária e dependente. Merleau-Ponty identifica a experiência
212
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Cadernos Espinosanos XXIII
de ambiguidade temporal do corpo em sua marcha existencial, o recurso a conceitos
advindos de outros domínios do conhecimento é, mais do que um recurso estilístico
frequentemente empregado por Merleau-Ponty, uma maneira de colocar a filosofia em
diálogo com a experiência integral do ser humano.
TRADUÇÃO
APRESENTAÇÃO À TRADUÇÃO
DE AD ETHICAN B. DE SP. DE LEIBNIZ
Leibniz recebeu a Opera posthuma de Espinosa em 1678,
provavelmente depois de 25 de janeiro* (quando Schuller comunica o
envio dela a Leibniz) e, a partir dessa data, fez uma série de anotações
nas margens de seu exemplar. Sem a preocupação de relacionar os textos
comentados entre si, leu, sugere Belaval**, como um criador, a partir de sua
própria filosofia.
Há dois manuscritos de Leibniz sobre a Ética de Espinosa: um
comentário mais detido sobre a parte I da Ética (publicado por Gerhardt
em 1875: Leibniz – Die philosophischen Schriften. Ed. C. I. Gerhardt, 7
vols., Berlin, Halle: 1949-63; reimpressão Hildesheim, 1962 – vol. I, p.139-
150) e uma releitura dos cinco livros da Ética na qual Leibniz redefine
de maneira muito breve, em notas curtas, alguns conceitos espinosanos
(publicado por Grua: Textes inédits. Ed. G. Grua. Paris: PUF, 1948 – vol.
I, p.277-286). A tradução que agora apresentamos é do primeiro desses
manuscritos, escrito, certamente depois de uma segunda leitura do livro I
* Cf. Morfino, V. – Spinoza contra Leibniz. Documenti di uno scontro intellettuale (1676-1678). Milano:
Edizioni Unicopli, 1994. – p.115.
** Belaval, Y. – “Leibniz lecteur de Spinoza” in Archives de philosophie, 1983, 4.
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da Ética, como sugere V. Carraud* depois de F. de Careil**.
leitura das proposições 17 a 36, razão pela qual Friedmann* chega a
Esse texto, que recebeu de Gerhardt o título Ad Ethican B.
considerar a hipótese de que o comentário à segunda parte do De Deo,
de Sp., apresenta uma crítica cerrada do primeiro livro da Ética de
sobretudo a partir da proposição 20, tenha sido escrito um pouco mais
Espinosa, acompanhando o duplo movimento que define o De Deo***, isto
tarde. De qualquer maneira, o fato é que a acidez das críticas do manuscrito
é, a demonstração da unicidade substancial (nas proposições 1 a 16) e a
leibniziano na segunda parte do livro I da Ética pode ser perfeitamente
demonstração da causalidade eficiente imanente necessária (proposições
compreendida pelo tema a que se dedicam essas proposições de Espinosa,
17-36). Podemos observar uma diferença sutil no comentário de Leibniz
a causalidade eficiente imanente necessária, tema que vai de encontro a
a cada um dos grupos de proposições. É verdade, como observa Morfino****,
teses fundamentais da filosofia leibniziana, como a criação do mundo por
que o adjetivo que domina o manuscrito de Leibniz é “obscuro” (usado para
um Deus bom e sábio, a liberdade divina e a humana etc. Mesmo que
as definições 2, 3, 4, axioma 1, proposições 5, 8, 20, 21, 22, 29). Em outras
possamos admitir que a filosofia leibniziana ainda não estava madura em
palavras, a crítica à forma lógica do texto de Espinosa aparece ao longo
1678 e que alguns temas ainda não estavam perfeitamente definidos**, há
de todo o livro I da Ética, mas quando Leibniz se dedica às proposições
certos pressupostos de que Leibniz jamais poderia se desfazer – a criação
que demonstram a essência do absoluto, seus comentários mostram um
do mundo por um Deus sábio é um deles, a contingência desse mundo
interesse particular em compreender o que está sendo dito e não apenas
criado por uma ação da vontade divina também.
. Nas primeiras proposições, a crítica à
As anotações de Leibniz ao De Deo, traduzidas para o português
forma lógica do texto leva Leibniz inclusive a refazer demonstrações,
por Homero Santiago, constituem um documento importante para a
oferecendo alternativas para o que considera mal demonstrado. Em certo
compreensão das relações entre a filosofia de Leibniz e a filosofia de
sentido, poderíamos dizer que, por mais críticos que sejam os comentários
Espinosa, para a compreensão das possíveis influências de Espinosa no
às proposições 1-16, Leibniz é mais generoso em sua leitura do que na
pensamento leibniziano, para a compreensão, enfim, de determinadas
em criticar as teses espinosanas
*****
* Carraud, V. in Leibniz – “Sur l’Éthique de Spinoza” in Philosophie, n.2, avril 1984. Paris: Les Editions
de Minuit – p.2.
** Foucher de Careil – Ménmoire sur La Philosophie de Leibniz. Paris: 1905 – tomo I, p.166.
*** Cf. Chaui, Marilena – A nervura do real. São Paulo: Cia. das Letras, 1999 – p.750-751, p.816.
**** Morfino, V. – “Il manoscrito leibniziano Ad Ethicam” in Quaderni materialisti volume II, 2003. Milano:
Edizioni Ghibli – p.108.
***** O adjetivo “obscuro” denota, no comentário às primeiras 16 proposições, apenas uma incompreensão
ou uma discordância, ao passo que nas proposições seguintes, as críticas são muito mais ásperas, como,
por exemplo, na proposição 20 “os raciocínios desse gênero são familiares àqueles que não possuem
a arte verdadeira da demonstração.”; na proposição 25 “essa prova não tem nenhuma importância”;
na proposição 29 “A demonstração é obscura e abrupta, conduzida pelas proposições precedentes,
elas também abruptas, obscuras e duvidosas”; na proposição 30, “essa proposição, tão clara de acordo
com as precedentes, (...), nosso autor a demonstra, a sua maneira, por elementos obscuros, duvidosos e
afastados” e, mais adiante ainda na P30, “O espírito do autor, parece, é bastante tortuoso: raramente ele
avança por um caminho claro e natural, mas sempre abruptamente e com desvios. E a maior parte das
demonstrações enganam o espírito mais do que o esclarecem.”.
216
Apresentação: Tessa Moura Lacerda
posições filosóficas de Leibniz.
Tessa Moura Lacerda.
* Friedmann - Leibniz et Spinoza. Paris: Gallimard, 1963.
** Cf., por exemplo, a definição de substância ou a relação entre a essência simples de Deus e seus
atributos. Ver nosso Lacerda, Tessa - “Simplicidade e variedade: um diálogo entre Leibniz e Espinosa”.
In: O que nos faz pensar, 26, dezembro de 2009, pp. 217-241.
217
SOBRE A ÉTICA DE BENTO ESPINOSA
G. W. LEIBNIZ
Ad Ethicam B. d. SP.
(G.W. Leibniz)
(Tradução de Homero Santiago e revisão de Tessa Moura Lacerda*)
Pars prima de Deo.
Definitio 1. Causa sui est id cujus Essentia involvit
existentiam.
DEFINIÇÃO 1. CAUSA DE SI é isso cuja essência envolve
existência**.
DEF. 2. É obscura: que a coisa finita seja a que pode ser delimitada
Definitio 2. obscura est, quod res sit finita, quae alia sui generis
por outra de seu gênero. O que é, com efeito, um pensamento ser delimitado
terminari potest. Quid est enim cogitationem cogitatione terminari? An qua
por um pensamento? Dá-se um maior que outro, tal como se diz que um
datur alia major? uti corpus terminari ait quo aliud majus concipi potest.
Adde infra prop. 8.
corpo é delimitado por se poder conceber outro maior? Acrescente-se a
prop. 8 abaixo.
DEF. 3. SUBSTÂNCIA é isso que é em si e concebido por si.
Definit. 3. Substantia est quod in se est et per se concipitur.
Também esta é obscura. Com efeito, o que é ser em si? Ademais cabe
Etiam haec obscura. Quid enim in se esse? Deinde quaerendum est,
perguntar se ser em si e ser concebido por si conjugam-se entre si cumulativa
cumulative an disjunctive inter se conjungat: in se esse, et per se concipi,
id est an hoc velit: substantiam est id quod in se est, item substantia est id
quod per se concipitur; an vero velit substantiam esse id in quo utrumque
ou disjuntivamente; ou seja, se isto quer dizer que substância é aquilo que
é em si, bem como que a substância é aquilo que é concebido por si; ou
se quer dizer que a substância é isso em que concorrem ambas as coisas,
a saber, que seja em si e por si concebida. Ou será necessário demonstrar
hoc concurrit, ut nempe et in se sit et per se concipiatur. Aut necesse erit
que ter uma coisa é também ter a outra, já que, pelo contrário, mais parece
ut demonstret, qui unum habeat etiam alterum habere, cum contra videatur
haver algumas coisas que são em si, se bem que não sejam concebidas
potius, esse aliqua quae sint in se, etsi non per se concipiantur. Et ita vulgo
homines substantias concipiunt. Subjicit: substantia est cujus conceptus
218
PRIMEIRA PARTE: DE DEUS
por si. e é assim que os homens comumente concebem as substâncias. Ele
* Professores do Departamento de Filosofia da USP.
** Os trechos em itálicos correspondem a passagens do texto de Espinosa, embora freqüentemente nas
transcrições de Leibniz faltem termos presentes no texto de Espinosa. (N.R.)
219
Cadernos Espinosanos XXIII
Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)
non indiget alterius rei conceptu a quo formari* debeat. Sed in hoc quoque
acrescenta: substância é isso cujo conceito não carece do conceito de outra
difficultas, nam in sequenti definitione ait
coisa a partir do qual deva ser formado. Mas nisso igualmente há uma
attributum
ab intellectu de
substantia percipi tanquam ejus essentiam constituens. Ergo attributi
conceptus necessarius est ad formandum conceptum substantiae. Si dicas
intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela. Logo,
o conceito de atributo é necessário para formar o conceito de substância.
attributum non esse rem, te vero requirere saltem ut substantia non indigeat
Se disseres que atributo não é uma coisa, e que tu na verdade requeres ao
conceptu alterius rei, respondeo. explicandum est ergo, quid vocetur res, ut
menos que a substância não precise do conceito de outra coisa, respondo:
intelligamus definitioneni, et quomodo attributum non sit res.**
Definit. 4. etiam obscura est, quod attributum sit id quod intellectus
cabe então explicar, para entendermos a definição, o que é chamado de
coisa e como o atributo não é uma coisa.
DEF. 4. Também é obscura: atributo é isso que o intelecto percebe
de substantia percipit, ut essentiam ejus constituens. Quaeritur enim an per
da substância como constituindo a essência dela. Com efeito, pergunta-se
attributum intelligat omne praedicatum reciprocum, an omne praedicatum
se por atributo ele entende todo predicado recíproco; ou se todo predicado
essentiale sive reciprocum sive non; an denique omne praedicatum
essencial, recíproco ou não; ou se, finalmente, todo predicado essencial ou
essentiale primum seu indemonstrabile de substantia. Vide definit. 5.
Definit. 5. Modus est quod in alio est, et per aliud concipitur.
indemonstrável da substância. Ver a def. 5.
DEF. 5. Modo é isso que é em outro, pelo qual também é concebido.
Portanto parece diferir do atributo nisso: o atributo deveras está na
Videtur ergo in eo differre ab attributo, quod attributum est quidem in
substância, todavia é concebido por si. E aqui, ajuntada esta explicação,
substantia, attamen per se concipitur. Et hic explicatione adjecta cessat
desaparece a obscuridade da definição 4.
obscuritas definitionis 4.
Definit. 6. Deum, inquit, definio Ens absolute infinitum, vel
substamiam constantem infinitis attributis, quorum unumquodque aeterriam
DEF. 6. Defino Deus, diz ele, o ente absolutamente infinito, isto é, a
substância que consiste em infinitos atributos, cada um dos quais exprime
uma essência eterna e [140] infinita. Ele devia mostrar que essas duas
definições são eqüipolentes; de outra forma não pode substituir uma pela
et infinitam essentiam exprimit. Ostendere debebat has duas definitiones
outra. Ora, serão eqüipolentes quando se mostrar que na natureza há vários
esse aequipollentes, alioqui unam in alterius locum substituere non potest.
atributos ou predicados que são concebidos por si, bem como quando se
Erunt autem aequipollentes, ubi ostensum erit plura esse in rerum natura
attributa seu praedicata, quae per se concipiuntur; item ubi ostensum erit
* No original, firmari; corrigimos seguindo Carraud c o próprio texto espinosano; logo a diante se vê: ad
formandum conceptum... A edição italiana ndo procede à correção.
** Segundo Morfino, este parágrafo está à margem do manuscrito; Gerhardt incorpora-o ao texto.
220
dificuldade, pois na definição seguinte, ele diz que ATRIBUTO é o que o
mostrar que vários predicados podem estar juntos. Além disso, é imperfeita
toda definição (ainda que possa ser verdadeira e clara) entendida a qual se
possa duvidar que a coisa definida seja possível. Ora, esta é assim; com
efeito, pode-se ainda duvidar que o ente que tem infinitos atributos não
implique [contradição]; e isso porque se pode duvidar de que a mesma
221
Cadernos Espinosanos XXIII
Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)
plura praedicata posse stare, inter se. Praeterea omnis definitio imperfecta
essência simples possa ser exprimida por vários atributos diferentes. De
est (tametsi vera et clara esse possit) qua intellecta dubitari potest an res
fato, são várias as definições das coisas compostas, mas de uma coisa
definita sit possibilis. Talis autem ista est, dubitari enim adhuc potest an
simples não há senão uma única, e sua essência parece não poder ser
Ens infinita habens attributa non implicet. Vel ideo quia dubitari potest, an
exprimida senão de um único modo.
eadem essentia simplex pluribus diversis attributis exprimi potest. Equidem
DEF.7 COISA LIVRE é a que existe a partir da necessidade de
plures sunt definitiones rerum compositarum, sed rei simplicis non nisi
sua natureza e determina-se por si, COISA COAGIDA aquela que é
unica est, nec ejus essentia nisi unico modo exprimi posse videtur.
determinada por outro a existir e a operar.
Definit. 7. Res libera quae ex suae naturae necessitate existit
et ad agendum determinatur, res coacta quae ab alio determinatur ad
existendum et operandum.
Definit. 8. Per eternitatem intelligo ipsam existentiam
quatenus ex rei essentia sequi concipitur. Has definitiones probo.
Axiom. 1. Omnia quae sunt, vel in se vel in alio sunt.
Ax. 2. 1d quod per aliud non potest concipi, per se concipitur.
Ax. 3. Ex data determinata causa sequitur effectus, si non detur, non sequitur.
Ax. 4. Effectus cognitio ex cognitione causae dependet et eam involvit.
Ax. 5. Quae nihil commune secum invicem habent, etiam per se
invicem intelligi non possunt.
Ax. 6. Idea vera debet cum suo ideato convenire.
Ax. 7. Quicquid ut non existens potest concipi, ejus essentia non
involvit existentiam.
DEF. 8. Por ETERNIDADE entendo a própria existência enquanto
concebida seguir da definição da coisa eterna. Aprovo estas definições*.
Ax. 1. Tudo que é, ou é em si ou em outro.
Ax. 2. Isso que não pode ser concebido por outro é concebido por si.
Ax. 3. De uma causa determinada dada segue um efeito; se não for
dada, não se segue.
Ax. 4. O conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa
e envolve-o.
Ax. 5. Coisas que nada têm em comum uma com a outra também
não podem ser inteligidas uma pela outra.
Ax. 6. A idéia verdadeira deve convir com o seu ideado.
Ax. 7. O que quer que possa ser concebido como não existente, sua
essência não envolve existência.**
Acerca dos AXIOMAS noto: o primeiro é obscuro enquanto não
Circa Axiomata haec noto: Primum tamen obscurum est, quam
constar o que é ser em si. Do segundo e do sétimo não era necessário anotar
diu non constet quid sit esse in se. Secundum et septimum annotari nihil
nada. O sexto parece pouco conforme: com efeito, toda idéia convém com
necesse erat. Sextum parum congruum videtur; omnis enim idea cum suo
seu ideado, e não vejo o que é a idéia falsa. O terceiro, o quarto e o quinto
ideato convenit, nec video quid sit idea falsa. Tertium, quartum, quintum
julgo que podem ser demonstrados.
demonstrari posse arbitror.
* Trata-se, como indica Gehardt, das definições 7 e 8 (N.T.).
** Leibniz transcreve os axiomas à margem do manuscrito-, Gerhardt os dá em nota; nós o incorporamos
ao texto como faz Morfino (.Spinoza contra Leibniz. Documenti di uno scontro intellettuale (1676-1678).
Milano: Edizioni Unicopli, 1994). (N.T.)
222
223
Cadernos Espinosanos XXIII
Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)
Propositio 1. Substantia est natura prior suis affectionibus, id
PROPOSIÇÃO 1. A substância é anterior por natureza a suas
est modis, nam ad defin. 5. dixit se per substantiae affectiones intelligere
afecções, isto é, a seus modos, pois à def. 5 ele disse entender por afecções
modos. Caeterum non explicuit quid sit esse
natura prius,
ideoque nec
potest haec propositio ex praecedentibus demonstrari. Videtur autem per
natureza, e por isso não pode demonstrar esta proposição a partir do que
a precede. Ora, parece que por anterior por natureza a outro ele entende
intelligere id per quod aliud concipitur. Caeterum fateor
aquilo pelo que o outro é concebido. De resto, confesso que também nisso
et in hoc aliquam esse difficultatem; videntur enim non tantum posteriora
há alguma dificuldade; com efeito, parece que se podem conceber não
natura prius alio
per priora, sed et priora per posteriora concipi posse. Licebit tamen natura
prius hoc modo definire, quod concipi potest non concepto alio, ita ut contra
alterum concipi non possit nisi concepto ipso. Verum ut dicam quod res est,
apenas os posteriores pelos anteriores, mas também os anteriores pelos
posteriores. Todavia, seria lícito definir anterior por natureza [141] deste
modo: o que pode ser concebido não concebida outra coisa; assim como, do
contrário, não se possa conceber outro a não ser concebido o próprio. Para
natura prius paulo latius est: nam exempli causa proprietas denarii ut sit 6
dizer a verdade, anterior por natureza é algo um pouco mais amplo, pois,
+ 4 posterior natura est hac ut sit 6 + 3 + 1 (quia ista est propior omnium
por exemplo, a propriedade da dezena de ser 6 + 4 é posterior por natureza
primae: denarius est 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1) et tamen concipi
potest sine priore, imo quod amplius est, potest sine, ea demonstrari. Addo
a de ser 6 + 3 + 1 9 (já que esta é mais próxima da primeira de todas: o
número 10 é 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1), e todavia pode ser
concebida sem uma anterior; e mais, é mais ampla e pode ser demonstrada
aliud exemplum: In Triangulo proprietas illa, quod tres anguli interni sint
sem ela. Acrescento outro exemplo: no triângulo, a propriedade de serem
aequales duobus rectis, posterior natura est hac- quod duo anguli interni
os três ângulos internos iguais a dois retos é posterior por natureza à de
sint aequales externo tertii, et tamen illa sine ista concipi, imo forte (etsi
non aeque commode) sine ipsa demonstrari potest.
Prop. 2. Duae substantiae diversa attributa habentes nihil inter
serem os dois ângulos internos iguais ao externo do terceiro, e todavia
aquela pode ser concebida sem esta, e porventura até pode (embora não
com a mesma comodidade) ser demonstrada sem ela.
PROP. 2 Duas substâncias que têm atributos diversos nada têm em
se commune habent. Si per attributa intelligit praedicata quae per se
comum entre si. Se por atributos ele entende predicados que são concebidos
concipiuntur, concedo propositionem, posito duas esse substantias A
por si, concedo a proposição, posto serem duas substâncias A e B, e o
et B et substantiae A attributum esse c, substantiae B attributum esse d,
vel si substantiae A atribula omnia sint c. e, substantiae vero B attributa
224
da substância os modos. De resto não explicou o que é ser anterior por
atributo da substância A ser c e o atributo da substância B ser d; ou se
todos os atributos da substância A são c, e; todos os atributos da substância
B são d, f. Seria diferente se aquelas duas substâncias tivessem alguns
omnia d. f. Secus est si duae illae substantiae quaedam habeant attributa
atributos diversos e alguns comuns, como se os atributos de A fossem c,
diversa, quaedam coramunia, ut si attributa ipsius A sint c. d. et ipsius B
d, e os atributos de B fossem d, f. Se ele nega que isso possa ocorrer,
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Cadernos Espinosanos XXIII
Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)
sint d. f. Quod si negat hoc fieri posse, demonstranda est impossibilitas.
cabe demonstrar a impossibilidade. No caso de objeção, talvez demonstre
Propositionem ipsam in casu objectionis forte demonstrabit hoc modo:
a proposição deste modo: porque d e igualmente c exprimem a mesma
quia d pariter et c eandem essentiam exprimit (cum ejudem substantiae A
attributa sint ex hypothesi) et ob eandem rationem etiam d et f (cum etiam
ex hypothesi ejusdem substantiae 13 attributa sint); ergo et
essência (como são por hipótese atributos da mesma substância A) e em
vista dessa mesma razão também d e f (como também por hipótese são
atributos da mesma substância B); logo, também c bem como f. Donde
et f. Unde
se segue que A e B são a mesma substância, contra a hipótese; logo é
sequitur, eandem esse substantiam A et B, contra hypothesin, absurdum
absurdo duas substâncias diversas terem algo em comum. Respondo
c
ergo duas substamias diversas aliquid commune habere.* Respondeo,
non concedi a me quod possint dari duo attributa quae per se concipi, et
tamen idem exprimere possint. Nam quandocunque id contigit, tunc duo
illa attributa idem diverso modo exprimentia tandem resolvi possunt, vel
saltem eorum alterutrum. Quod facile possum demonstrare.
Prop. 3. Quae res nihil coramune inter se habent, earum una alterius
causa esse non potest, per axiom. 5. 4.
Prop. 4. Duae aut plures res distinctae vel inter se distinguuntur**
que não é concedido por mim que se possa dar dois atributos que sejam
concebidos por si, e todavia possam exprimir o mesmo. Pois, cada vez que
isso acontece, então aqueles dois atributos, exprimindo o mesmo de modo
diverso, podem finalmente ser resolvidos, ou pelo menos um dos dois. O
que posso demonstrar facilmente.
PROP. 3. De coisas que entre si nada têm em comum uma com a
outra, uma não pode ser causa da outra, pelos axiomas 5 e 4.
PROP. 4. Duas ou várias coisas distintas distinguem-se entre si
ou pela diversidade dos atributos das substâncias, ou pela diversidade
das afecções das mesmas substâncias. Duas ou várias coisas distintas
ex diversitate attributorum substantiarum, vel ex diversitate affectionum.
distinguem-se entre si ou pela diversidade dos atributos das substâncias,
Desmonstrat ita: Omnia quae sunt, vel in se vel In alio sunt per axiom. 1.,
ou pela diversidade das afecções das mesmas substâncias. Ele demonstra
hoc est per defin. 3. et 5. extra intellectum nihil datur praeter substantias,
assim: tudo o que é, ou é em si ou em outro, pelo ax. 1, isto é, pelas def. 3 e
earumque affectiones. [Hic miror eum oblivisci attributorum, nam defin. 5.
5 nada se dá fora do intelecto além da substância e suas afecções. (Admira-
per substantiae affectiones intelligit tantum modos. Sequitur ergo aut eum
ambigue locutum, aut attributa non numerari ab eo inter res extra intellectum
existentes, sed tantum substantias et modos. Caeterum propositionem fácilius
poterat ostendere, modo addidisset, res quae scilicet concipi possunt per
attributa vel affectiones, necessario cognosci adeoque et distingui.]
me aqui que ele tenha esquecido dos atributos, pois a def. 5 entende por
afecções da substância apenas os modos. Logo, segue-se que ou falou de
forma ambígua ou os atributos são enumerados por ele entre as coisas
existentes fora do intelecto, mas apenas substâncias e modos. De resto,
pudera apresentar mais facilmente a proposição, contanto que acrescentasse
que as coisas que podem ser concebidas pelos atributos em afecções
necessariamente são conhecidas e por isso também distinguidas.).
* Richiamento com um asterisco à margem do manuscrito (Morfino).
** Gerhardt, distinguntur; corrigimos seguindo o texto espinosano.
226
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Cadernos Espinosanos XXIII
Prop. 5. In rerum natura non possunt, dari duae aut plures substantiae
ejusdem naturae seu attributi.
[Hic annoto obscurum videri quid sit hoc: in rerum natura. An
intelligat: in universitate rerum existentium, an vero in regione idearum
Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)
PROP. 5. Na natureza das coisas não podem ser dadas duas ou
várias substâncias de mesma natureza, ou seja, de mesmo atributo.
(Noto aqui que parece obscuro o que seja isto: “na natureza das
coisas”. Entende “na universalidade das coisas existentes” ou “na região
das idéias ou essências dos possíveis”? Ademais, é obscuro se quer dizer
vel essentiarum possibilium. Deinde obscurum est an velit dicere, non
que não se dão várias essências de mesmo atributo comum, ou se quer dizer
dari plures Essentias ejusdem attributi communis, vel an velit, non dari
que não se dão vários atributos de mesma essência. Admiro-me também
plura individua ejusdem essentiae. Miror etiam, cur hic vocem naturae et
vocem attributi pro aequipollentibus sumat, nisi per attributum intelliga
quod totam continet naturam. Quo posito non video quomodo possint dari
por que ele toma aqui natureza e o termo atributo como eqüipolentes; a não
ser que entenda por atributo o que contém a natureza inteira. Isto posto, não
vejo de que modo se possam dar vários atributos de mesma substância que
sejam concebidos por si). Demonstração: se se distinguissem, distinguir-
plura attributa ejusdem substantiae quae per se concipianturj Demonstratio:
se-iam ou pelas afecções ou pelos atributos; se pelas afecções, então,
Si distinguerentur, aut affectionibus aut attributis distinguerentur; si
como a substância é por natureza anterior a suas afecções pela prop. 1,
affectionibus, ergo cum substantia sit natura prior suis affectionibus per prop.
1., depositis affectionibus etiam distingui debent, ergo attributis; si attributis,
despojadas das afecções elas devem também distinguir-se, então, pelos
atributos; se pelos atributos, logo não se dão duas substâncias de mesmo
atributo. Respondo que parece que subjaz um paralogismo. Pois duas
ergo non dantur duae substantiae ejusdem attributi. Respondeo subesse videri
substâncias podem distinguir-se e todavia ter algum atributo em comum,
paralogismum. Nam duae substantiae possunt, distingui attributis, et tamen
contanto que tenham alguns próprios. Por exemplo, A (c-d) e B (d-e), em
habere aliquod attributum commune, modo etiam aliqua praeterea habeant
propria. Ex. gr. A c. d et B d. e quorum illius attributum sit c. d, hujus d. e.
Annoto: prop. 1. non. esse utilem nisi ad hanc. Verum ea potuisset
que os atributos daquele são c-d, e o deste d-e.
Noto: a prop. 1 não é útil a não ser para esta demonstração. Poderia,
contudo, abster-se dela, já que basta poder conceber a substância sem
afecções, seja ou não seja ela anterior por natureza.
careri, quia sufficit substantiam concipi posse sine affectionibus, sive sit
natura prior, sive non.
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Cadernos Espinosanos XXIII
Prop. 6. Una substantiam non potest produci ab alia substantia,
nam duae substantiae per prop. 5. non sunt ejusdem attributi, ergo nihil
commune babent per prop. 2, ergo non potest una* esse alterius causa per
axiom. 5. Idem aliter et brevius, quia quod per se concipitur, non potest
Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)
PROP. 6.
Uma substância não pode ser produzida por outra
substância, pois, pela prop. 5, não há duas substâncias de mesmo atributo;
logo, nada têm em comum, pela prop. 2; logo, uma não pode ser causa de
outra, pelo ax. 5. o mesmo, de outra forma e mais brevemente: já que o que
é concebido por si não pode ser concebido por outro como por uma causa,
concipi per aliud velut causam per axiom. 4. Caeterum respondeo, concedi
pelo ax. 4. De resto, respondo que concedo a demonstração desde que se
a me demonstrationem, si substantia sumitur pro re quae per se concipitur,
tome substância como coisa que é concebida por si. Será diferente se se
secus est si sumatur pro re quae in se est, uti vulgo honúnes sumunt, nisi
ostendatur idem esse in se esse et per se concipi.
tomar como uma coisa que é em si, assim como comumente tomam, a não
ser que seja mostrado que é o mesmo ser em si e ser concebido por si.
PROP. 7. À NATUREZA DA SUBSTÂNCIA PERTENCE EXISTIR.
Prop. 7. Ad naturam substantiae pertinet existere.
A substância não pode ser produzida por outro, prop. 6. Logo, é causa de
Substantia non potest produci ab alio prop. 6. Ergo est causa sui, id est
si, isto é, pela def. 1, sua essência envolve existência. Aqui, com justiça,
per definit. 1. ipsius essentia involvit existentiam. Hic non immerito
se o repreende por ora tomar causa de si como algo definido, a que a
reprehenditur, quod causam sui modo ut definitum aliquod sumit, cui
peculiarem significationem definit. 1. ascripsit, modo eo in coramuni ac
def. 1 adscreve uma definição peculiar, ora utilizá-la em seu significado
comum e vulgar. O remédio é fácil, todavia; contanto que se converta
aquela 1ª. definição em axioma e se diga: o que quer que não seja por
vulgari suo significatu. utitur. Remedium tamen facile est, si definitionem
outro, é por si próprio, ou seja, é a partir de sua essência. Porém, restam
illam 1. in axioma convertat et dicat- Quidquid non ab alio est, id est a se
aí outras dificuldades, a saber, o raciocínio só precede se afirmado que
ipso, seu ex sua essentia. Verum aliae hic supersunt difficultates: Nempe
procedit tantum ratiocinatio, posito substantiam existere posse. Necesse
est enim tunc ut, quia ab alio produci non potest, a se ipso existat, adeoque
a substância pode existir. Com efeito, é então necessário que ela, por
não poder ser produzida por outro, exista por si própria e, dessa forma,
exista necessariamente; ora, que a substância é possível, isto é, que possa
ser concebida, é algo a demonstrar. Parece que pode ser demonstrado a
necessario existat- possibilem autem substantiam, id est concipi posse
partir disto: se nada é concebido por si, nada também será concebido por
demonstrandum est. Demonstrari posse videtur ex eo quia si nihil per
outro, e dessa forma absolutamente nada será concebido. A fim de mostrar
se concipitur, nihil etiam per aliud concipietur, adeoque nihil omnino
concipietur. Quod ut distincte ostendatur, considerandura est, si ponatur a
concipi per B, in conceptu ipsius A esse conceptum ipsius b. Et rursus Si
distintamente, cumpre considerar que se se afirma A concebido por B, no
conceito de A está o conceito de B. e de novo, se B é concebido por C, o
conceito de C estará no conceito de A, e assim por diante até o último. Se
alguém responder que não se dá um último, respondo que tampouco se dá
um primeiro, o que mostro assim: como no conceito do que é concebido
* Gerhardt, unum; corrigimos seguindo o texto espinosano e Carraud.
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Cadernos Espinosanos XXIII
Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)
concipitur per c, in conceptu b esse conceptum ipsius c, et ita conceptus
por outro nada há senão o que é alheio, por isso, procedendo por graus,
ipsius c in conceptu ipsius a erit, et ita porro usque ad ultimum. Quid si quis
ou não haverá absolutamente nada nele, ou somente o que é concebido
b
respondeat non dari ultimum, respondeo nec dari primum, quod sic ostendo.
Quia in ejus quod per aliud concipitur conceptu nihil est nisi alienum, ideo
por si. julgo que esta demonstração é completamente nova, mas infalível.
E com ajuda dela pode-se mostrar que o que é concebido por si pode ser
concebido. Mas se pode ainda duvidar, todavia, se isso é possível, do
gradando per plura, aut nihil omnino in eo erit aut nihil nisi quod per se
modo como aqui se toma o possível, seguramente não como aquilo que
concipitur. Quam demonstrationem novam plane, sed infallibilem esse
pode ser concebido, mas como aquilo de que se pode conceber uma causa,
arbitror. Ejusque ope demonstrari potest id quod per se concipitur concipi
posse. Sed adhuc tamen dubitari potest, an ideo sit possibile eo modo quo
hoc loco sumitur possibile, nimirum non pro eo quod concipi potest, sed
resolúvel finalmente na primeira. Pois as coisas que podem ser por nós
concebidas, nem por isso, todavia, podem ser todas produzidas, devido a
outras preferíveis com as quais são incompatíveis. Por isso, deve-se provar
que o ente que é concebido por si existe em ato, com ajuda da experiência,
pro eo cujus aliqua concipi potest causa, resolubilis tandem in primam.
já que existem coisas que são concebidas por outro, logo existe também
Nam quae a nobis concipi possunt, non ideo tamen omnia produci possunt,
aquilo pelo que são concebidas. Vê quão diferente é o raciocínio necessário
ob alia potiora quibus incompatibilia sunt. Ideo Ens quod per se concipitur
actu esse probari debet adhibita experientia, quia existunt quae per aliud
para provar cuidadosamente a coisa existente por si. Todavia, talvez não
haja necessidade dessa última precaução.
concipiuntur, ergo existit etiam id per quod concipiuntur. Vides quam longe
alia sit opus ratiocinatione ad accurate probandam rem per se existentem.
Forte tamen hac ultima cautione non opus.
Prop. 8. Omnis substantia est necessario infinita, quia alioqui
terminaretur ab alia ejusdem naturae per definit. 2. et darentur duae
maneira seria delimitada por outra de mesma natureza, pela def. 2, e
seriam dadas duas substâncias de mesmo atributo, contra a prop. 5. cabe
substantiae ejusdem attributi contra. Prop. 5. Haec propositio ita intelligenda
entender assim esta proposição: a coisa que é concebida por si é infinita
res quae per se concipitur, in suo genere infinita est, et ita admittenda.
em seu gênero, e assim cabe admiti-la. Ora, a demonstração sofre tanto de
Demonstratio autem laborat tum obscuritate quoad illud: terminatur, tum
incertitudine, ratione prop. 5. In Schol. elegantem habet ratiocinationem ad
232
PROP. 8. Toda substância é necessariamente infinita, pois de outra
obscuridade quanto àquele “é delimitado”, como de incerteza, em razão
da prop. 5. No escólio há um elegante raciocínio para provar que a a coisa
que é concebida por si é única, em seu gênero decerto: sendo postos vários
probandara rem quae per se concipitur esse unicam, in suo scilicet genere
indivíduos, deve haver na natureza a razão por que [144] sejam tantos, não
quia ponantur esse plura individua, ideo debet esse ratio in natura, cur sint
mais. A mesma razão, como faz o porquê deles serem tantos, faz o porquê
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Cadernos Espinosanos XXIII
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tot, rion plura. Eadem cum fáciat cur sint tot, fáciat cur sit hoc et hoc. Ergo
disto ou daquilo existir. Logo, também o porquê disto existir. Ora, essa
et cur sit hoc. Ea ratio autem non est in uno horum potius quam in altero.
razão não está em um deles mais que em outro. Logo, está fora de tudo.
Ergo extra oninia. Una objectio feri posset, si dicatur numerum earum esse
interminatuin sive nullum, sive omnem numerum excedere. Verum corrigi
ou nulo ou excede todo número. Pode-se, porém, corrigi-lo se dentre eles
tomamos apenas alguns e perguntamos por que existem; ou se tomamos
potest, si aliqua tantum ex ipsis sumamus et quaeramus cur illa extiterint,
vários que têm algo em comum, por exemplo, existem no mesmo lugar, [e
vel si sumainus plura aliquid cominune: habentia, v. g. in eodem loco
perguntamos] por que existem no mesmo lugar.
existentia, cur illa in hoc loco extiterint.
Prop. 9. Quo plus realitatis aut esse unaquaeque res habet, eo plura
attributa ipsi competunt. [explicandum erat quid intelligatur per realitatem
PROP. 9. Quanto mais realidade ou ser cada coisa tem, tanto mais
atributos lhe competem. (cabia explicar o que é entendido por realidade ou
ser, com efeito, são coisas sujeitas a equívocos). Demonstração: é patente
aut esse, sunt enim haec obnoxia aequivocationibus.] Demonstratio: patet
pela def. 4. Isto, diz o autor. A mim não parece que seja patente a partir
ex defin. 4. Haec autor. Mihi eam inde patere non videtur. Nam potest una
daí. Pois uma coisa pode ter mais realidade que outra, porque ela própria
res plus realitatis habere quam alia, ideo quod ipsa major est in. suo genere
seu majorem attributi alicujus partem habet. V. g. circulus plus extensionis
é maior em seu gênero ou tem uma parte maior de algum atributo. P. ex.,
o círculo tem mais extensão que o quadrado inscrito. E pode-se ainda
duvidar se podem ser dados vários atributos da mesma substância, do
habet quam quadratum inscriptum. Et dubitari adhuc potest an plura dentur
modo como o autor tomou atributos. Reconheço, por ora, que admitido e
attributa ejusdem substantiae, eo modo quo autor attributa sumsit. Fateor
posto que os atributos são compatíveis, a substância é mais perfeita quanto
interim hoc admisso et posito attributa esse compatibilia, eo perfectiorem
esse substantiam, pro: plura habet attributa.
mais atributos tem.
PROP. 10. Cada atributo de uma substância deve ser concebido por
Prop. 10. Unumquodque unius substantiae attributum per se concipi
si, pelas def. 4 e 3. Mas segue-se daí, como objetei por vezes, que não se
debet per definit. 4. et 3. Sed hinc ut aliquoties objeci sequitur rion dari nisi
dá senão um único atributo de uma substância, se deveras ele exprime a
unicum unius substantiae attributum, si quidem totam essentiam exprimit.
essência inteira.
Prop. 11. Deus seu substantia constans infinitis attributis quorum
unumquodque aeternam et infinitam essentiam exprimit, necessario existit.
234
Uma objeção poderia ser feita: se se diz que o número deles é indeterminado
PROP. 11. Deus, ou seja, a substância que consiste em infinitos
atributos, dos quais cada um exprime uma essência eterna e infinita, existe
necessariamente. Ele apresenta três demonstrações. PRIMEIRA, porque
Tres affert: demonstrationes. Prima, quia substantia. Ergo per prop. 7.
é substância. Logo, pela prop.7, existe. Mas isto supõe que a substância
existit. Sed hoc supponit et substantiam necessario existere, quod ad prop. 7.
existe necessariamente, o que não foi suficientemente demonstrado para a
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Cadernos Espinosanos XXIII
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non fuit satis demonstratum, et Deum esse substantiam possibilem, quod nori
prop. 7, e também que Deus é uma substância possível, o que não é tão fácil
aeque facile demonstratu est. IIda. Semper causa esse debet tam cur res sit quam
de demonstrar. SEGUNDA, sempre deve haver causa tanto por que uma
cur non sit. At nulla ratio esse potest cur Deus rion existat, non in ipsius natura,
neque enim implicat contradictionem, nori in altero, nam alterum aliud vel erit
Deus não exista, não em sua própria natureza – e com efeito, não implica
contradição –, não em outro, pois esse outro ou será de mesma natureza e
ejusdem naturae et attributi adeoque jam erit Deus, vel non erit adeoque nihil
atributo, e dessa forma será Deus, ou não será e dessa forma não terá nada
habebit commune cum Deo, adeoque existentiam ejus nec ponere nec impedire
em comum com Deus, e assim não pode nem pôr nem impedir a existência
potest. Respondeo 1. nondum probatum, Dei naturam non implicare, tametsi
id asserere autor sine probatione absurdum esse dicat. 2. Poterit esse ejusdem
naturae cuni Deo in quibusdam, non in oninibus. 3. Entia finita existunt (per
dele. Respondo: 1º. Ainda não foi provado que a existência de Deus não
implica [contradição], mesmo que o autor diga sem prova que é absurdo;
2º. poderá ser de mesma natureza que Deus em certas coisas e não em
todas; 3º. os entes finitos existem (por experiência). Logo, se o infinito não
experientiam). Ergo si infinitum non existit, erunt: ipsa potentiora Ente infinito.
existe, eles serão mais potentes que o Ente infinito. Responde-se, se implica
Respondetur, si implicet, Ens infinitum nullam potentiam habebit. Ut taceam
[contradição], o Ente [145] infinito não terá nenhuma potência. Para calar
improprie dici potentiam de existendi vi.
Prop. 12. 13. Nullum substantiae attributum potest vere concipi, ex
que impropriamente fala-se de potência acerca da força de existir.
PROP. 12, 13. Nenhum atributo da substância pode verdadeiramente
ser concebido do qual siga que a substância possa ser dividida, ou seja,
quo sequatur substantiam posse dividi, seu substantia absolute sunita est
a substância absolutamente tomada é indivisível. Com efeito, ela seria
indivisibilis. Nam destruetur dividendo, partes non erunt infinitae adeoque
destruída se fosse dividida; as partes não seriam infinitas nem, portanto,
nec substantiae. Darentur plures substantiae ejusdem naturae. Concedo de
re per se existente. Corollarium hinc sequitur, nullam substantiam
adeoque nec corpoream esse divisibilem.
as substâncias. Seriam dadas várias substâncias de mesma natureza.
Concedo isso da coisa que existe por si. COROLÁRIO: segue-se daí que
nenhuma substância, dessa forma, é corpórea nem divisível.
PROP. 14. Além de Deus nenhuma substância pode ser dada nem
Prop. 14. Praeter Deum nulla dari neque concipi potest substantia.
concebida, porque todos os atributos competem a Deus e não se dão várias
Quia Deo oninia competunt attributa, nec dantur plures substantiae ejusdein
substâncias de mesmo atributo, por isso não se dá nenhuma substância
attributi, ideo nulla datur substantia praeter Deum. Omnia haec supponunt
além de Deus. Tudo isso supõe a definição de substância, que é o ente
definitionem substantiae, quod sit Ens quod per se concipitur, et alia multa
supra notata non admittenda. [Mihi nondum certum videtur, corpora esse
substantias, Secus de mentibus.1
236
coisa é como por que não é. Mas não pode haver nenhuma razão por que
que é concebido por si, e muitas outras coisas observadas acima como
inadmissíveis. (Ainda não me parece certo que os corpos sejam substâncias.
Diferentemente para as mentes).
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Cadernos Espinosanos XXIII
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Coroll. 1. Deum esse unicum.
COROL. 1. Deus é único.
Coroll. 2. Rem cogitantem vel rem extensam esse vel Dei attributa
COROL. 2. a coisa extensa e a coisa pensante são ou atributos
vel per axiom....* affectiones attributorum Dei. [Hoc est confuse loqui,
praeterea nondum ostendit extensionem et cogitationem esse attributa seu
de Deus ou (pelo ax...*) afecções dos atributos de Deus. (Isto é falar
confusamente; além do que, ainda não mostrou que a extensão e o
pensamento são atributos, ou seja, concebidos por si.)
per se concipi.]
**
Prop. 15. Quicquid est, in Deo est, et nihil sine Deo esse neque
concipi potest. Quia enim nulla praeter Deum substantia prop. 14., ideo
oninia alia erunt affectiones Dei seu modi, quia praeter substantias et
modos nil datur. [rursus omittit attributa.]
Prop. 16. Ex necessitate Divinae naturae infinita infinitis modis, hoc est
omnia quae sub intellectum infinitum cadere possunt, sequi debent, per defin. 6.
Coroll. 1. Hinc sequitur Deum omnium quae sub intellectum
cadunt, esse causam efficientem.
Coroll. 2. Deum esse causam per se, non vero per accidens.
PROP. 15. Tudo que é, é em Deus, e nada sem Deus pode ser nem ser
concebido. Com efeito, porque [não há] nenhuma substância além de Deus,
prop. 14, por isso todas as coisas serão afecções de Deus ou modos, porque
nada é dado além de substâncias e modos. (De novo ele omite os atributos).
PROP. 16. Da necessidade da natureza divina devem seguir infinitas
coisas em infinitos modos (isto é, tudo que pode cair sob o intelecto
infinito), pela def. 6.
COROL. 1. Segue daí Deus ser causa eficiente de todas as coisas
que caem sob o intelecto infinito.
COROL. 2. Segue Deus ser causa por si, e não por acidente.
COROL. 3. Segue-se Deus ser absolutamente causa primeira.
Coroll. 3. Deum esse absolute causam primam.
Prop. 17. Deus ex solis suae naturae legibus et a nemine coactus
agit, quia nihil extra ipsum.
Coroll. 1. Hinc sequitur 1. nullam dari causam quae Deum extrinsece
vel intrisece praeter ipsius naturae perfectionem incitet ad agendum.
Coroll. 2. Solum Deum esse causam liberam.
In Scholiis fusius explicat, Deum omnia quae in. ipsius intellectu
sunt creavisse (cum tamen videatur ea tantum creasse quw voluit). Dei
* Axioma 1, conforme o texto espinosano.
** O trecho entre parênteses está à margem do manuscrito; é chamado ao texto por um asterisco (Cf.
Morfino - Spinoza contra Leibniz. Ed. cit.)
238
PROP. 17. Deus age somente pelas leis de sua natureza e por
ninguém é coagido, pois nada há fora dele.
COROL. 1. Donde segue: 1º não ser dada, exceto a perfeição de sua
própria natureza, nenhuma causa que extrínseca ou intrinsecamente incite
Deus a agir.
COROL. 2. Segue: 2° só Deus ser causa livre. [146]
Nos escólios** ele explica mais longamente que Deus criou tudo o
que está em seu intelecto (porém, como parece, criou apenas o que quis).
Diz que o intelecto de Deus também em essência difere de nosso intelecto,
e a não ser equivocadamente pode-se atribuir a um e outro o nome de
* Trata-se do axioma 1. (N. T.).
** Note-se que a prop. 17 tem um único escólio (N. T.)
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Cadernos Espinosanos XXIII
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intellectum etiam in essentia a nostro intellectu ait differre, nec nisi
intelecto, tal como cão, signo celeste, e cão, animal que ladra. O causado
aequivoce tribui posse utrique nomen intellectus, quemadmodum canis
difere de sua causa pelo fato de ter causa. O homem difere do homem
sigrium caeleste et canis animal latrans. Causatum differt a sua causa in co
quod a causa habet. Homo ab homine quoad existentiam quain ab homine
habet, a Deo quoad essentiam quam a Deo habet.
Prop. 18. Deus est rerum causa iminanens, non vero transiens.
Sequitur ex eo quod supra visus sibi est ostendisse, Deum solum esse
substantiam, caetera ejus modos.
Prop. 19. Deus sive omnia ejus attributa sunt aeterria. Nam essentia ejus
involvit existentiam, et attributa ejus involvunt ejus essentiam. Citat praeterea
autor ac probat modum quo id demonstravit prop. 19. Principiorum Cartesii.
Prop. 20. Dei essentia et ejus existentia unum et idem sunt. Quia omnia
ejus probat ex eo, quia attributa Dei quia aeterna (per prop. 19) existentiam
exprimunt (per definitionem aeternitatis). Eadem autem et essentiani exprimunt
per definitionem attributi. Ergo essentia et existentia sunt idem in. Deo.
Respondeo id non sequi, sed hoc tantum, quod ab eodem exprimantur. Noto
etiam prop. hanc supponere praecedentem, quod si ergo loco praecedentis ipsius
denionstratio in. hujus demonstratione adhibeatur, patebit inepta circuitio. Hoc
modo: Dei essentia et existentia sunt unum et idem, probo: Quia attributa Dei
et existentiam et essentiam exprimunt. Essentiam exprimunt ex definitione
attributi, existentiam exprimunt, quia aeterna; aeterna autem, quia involvunt
existentia, exprimunt enim Dei essentiam quae involvit existentiam. Quid opus
quanto à existência que recebeu do homem e, de Deus, quanto à essência
que recebeu de Deus.
PROP. 18. Deus é causa imanente das coisas, mas não transitiva.
Segue-se de que acima, parece-lhe, ele mostrou que só Deus é substância,
e o restante são seus modos.
PROP. 19. Deus, ou seja, todos os seus atributos são eternos. Pois,
sua essência envolve existência, e seus atributos envolvem sua essência.
Além disso, o autor cita e aprova o modo como demonstrou-o na prop. 19
dos Princípios de Descartes.
PROP. 20. A existência de Deus e sua essência são um só e o
mesmo. Prova-o a partir do fato de os atributos de Deus, porque eternos
(pela prop. 19), exprimirem existência (pela definição de eternidade).
Ora, eles exprimem também essência, pela definição de atributo. Logo,
essência e existência são em Deus o mesmo. Respondo que isso não se
segue, mas apenas isto: são exprimidos pela mesma coisa. Noto também
que esta prop. supõe a precedente, portanto, se em lugar da precedente,
aplicamos a demonstração daquela, nesta, será patente a inutilidade do
desvio. Que a essência e a existência de Deus são uma só e a mesma coisa
provo deste modo: porque os atributos de Deus exprimem existência e
também essência; exprimem essência pela definição de atributo; exprimem
existência porque eternos; ora, são eternos porque envolvem existência;
com efeito, exprimem a essência de Deus, a qual envolve existência.
ergo mentione aeternitatis attributorum et propositione 19., cum res eo tantum
redeat ut probetur Dei existentiam et essentiam esse uriuni et idem, quia Dei
essentia involvit existentiam, eaetera enim adhibita sunt inanis apparatus causa,
ut in speciem demonstrationis tornarentur. Hujusmodi ratiocinationes illis valde
familiares qui veram denionstrandi artem rion tenent.
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Cadernos Espinosanos XXIII
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Coroll. 1. Hinc sequitur Dei existentiam pariter atque essentiam
COROL. 1. Segue-se daí que a existência de Deus, e igualmente
esse aeternam veritatem. Haec propositio non video quomodo ex
sua essência, é uma verdade eterna. Não vejo como esta proposição siga
praecedente sequatur, imo longe praecedente verior et clarior est. Statim
enim patet, posito quod Dei essentia involvat existentia, tametsi non
da precedente; ao contrário, é de longe mais verdadeira e mais clara que
a precedente. Com efeito, é de imediato patente, posto que a essência de
Deus envolve existência, ainda que não se admita que sejam [147] uma só
admittatur esse ununi et idem. Coroll 2. Deus est iminutabilis oraniaque
e a mesma coisa. COROL. 2. Deus é imutável e todos os seus atributos. É
ejus attributa. Ista obscure et conffise proponit probaque autor.
o que o autor propõe e prova de maneira obscura e confusa.
Prop. 21. Quae ex absoluta natura alicujus attributi Dei sequuntur,
semper et infinita existere debuerunt, sive per idem attributum aeterna et
infinita sunt. Demonstrat satis obscure et prolixe, cuni sit facile.
PROP. 21. Tudo que segue da natureza absoluta de algum atributo de
Deus deve ter existido sempre e infinito, ou seja, pelo mesmo atributo é eterno
e infinito. Ele demonstra bem obscura e prolixamente, embora seja fácil.
PROP. 22. Tudo que segue de algum atributo de Deus, enquanto é
Prop. 22. Quicquid ex aliquo Dei attributo quatenus modificatum
modificado por uma modificação tal que, pelo mesmo [atributo], existe
est tali modificatione quae et necessario et infinita per idem existit,
necessariamente bem como infinita, deve também existir necessariamente
sequitur, debet: quoque necessario et infinitum existere. Ait procedere
demonstrationem ut in praecedenti. Ergo etiam obscure. Vellem exemplum
talis modificationis dedisset.
Prop. 23. Omnis modus qui et necessario et infinitus existit,
necessario sequi debuit vel ex absoluta natura alicujus attributi Dei, vel
ex aliquo atributo modificato modificatione quae et necessario et infinita
existit, id est modum talem sequi ex absoluta natura alicujus attributi vel
bem como infinito. Diz que a demonstração procede como na precedente.
Logo, é também obscura. Gostaria que desse um exemplo de tal
modificação.
PROP. 23. Todo modo que existe necessariamente bem como é infinito
deve ter seguido necessariamente ou da natureza absoluta de algum atributo
de Deus, ou de algum atributo modificado por uma modificação que existe
necessariamente bem como infinita, isto é, um tal modo segue da natureza
absoluta de algum atributo, ou imediata ou mediante outro modo como tal.
iminediate vel mediante alio modo tali.
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Cadernos Espinosanos XXIII
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Prop. 24. Rerum a Deo productarum essentia non involvit existentia,
PROP. 24. A essência das coisas produzidas por Deus não envolve
alioqui per defini. 1. causa essent sui, quod est contra Hypothesin. Res
existência, de outra forma, pela def. 1, seriam causa de si, o que é contra
aliunde manifesta. Sed haec demonstraflo est paralogismus. Causa enim sui
per ejus definitionem 1. non cominunem sensuni retinuit, sed peculiarem
nacta est. Non potest ergo conimunem vocis sensuin in locum proprii pro
a hipótese. Com efeito, causa de si, pela def. 1, não reteve seu sentido
comum, mas adquiriu um peculiar. O autor não pode, portanto, substituir o
sentido comum da palavra em lugar do próprio sentido, assumido por ele
arbitrariamente, a não ser que mostre que eles se equivalem.*
arbitrio a se assumti substituere autor, nisi ostendat eos aequivalere. [Ex:
hac propositione sequitur, contra ipsum Spinosam, res non esse necessarias.
Hoc enim necessariuni non est, cujus essentia existentiam non involvit.]*
coisas, mas também da essência. De outra forma, a essência das coisas
sed. etiam essentiae. Alioqui posset rerum essentia sine Deo concipi, per
poderia ser concebida sem Deus, pelo ax. 4. Mas esta prova não tem
Axiom. 4. Sed haec probatio nullius momenti est. Nam ut concedamus
nenhuma importância, pois que concebemos que a essência das coisas não
essentiam rei-um sine Deo concipi non posse ex prop. 15., non ideo
sequitur Deum esse essentiae rerum causam. Axioma enim quartuin non
possa ser concebida sem Deus a partir da prop. 15, nem por isso segue-se
que Deus é causa da essência das coisas. Com efeito, o quarto axioma não
diz: aquilo sem o que algo não pode ser concebido é sua causa (o que seria
hoc dici: sine quo quid non concipi potest, id est ejus causa (quod sane
certamente falso, pois não se pode conceber o círculo / a linha sem centro/
falsum esset, nam circulus linea sine centro puncto concipi non potest:
ponto; e não por isso o centro / ponto é causa do círculo / da linha), mas
non ideo centrum punctum circuli lineae causa) sed. hoc tantum, effectus
cognitionem involvere cognitionem causae, quod longe aliud est. Neque
enim hoc axioma est convertibile. Ut taceani aliud esse involvere, aliud
sine ipso concipi non posse. Parabolae cognitio involvit in se cognitionem
foci, potest tamen sine eo concipi.
Coroll. Res particulares nihil sunt nisi Dei attributorum affectiones
sive modi, quibus attributa Dei certo ac determinato modo exprimuntur. Hoc
ait patere ex defin. 5. et prop. 1 S., sed non apparet quomodo hoc corollar.
* A observação ente paremeses está à margem do manuscrito; Gerhardt dá em nota.
244
PROP. 25. Deus é causa eficiente não apenas da existência das
Prop. 25. Deus non tantuin est causa efficiens reruni existentiae,
apenas isto: o conhecimento do efeito envolve o conhecimento da causa, o
que é de longe outra coisa. E, com efeito, este axioma não é reversível. E
isso para não falar que uma coisa é envolver, outra não poder ser concebido
sem isso. o conhecimento da parábola envolve em si o conhecimento do
foco, mas pode ser concebido sem ele.
COROL. As coisas particulares nada são senão afecções dos
atributos de Deus, ou seja, modos, pelos quais os atributos de Deus se
exprimem de maneira certa e determinada. Diz que isso é patente a partir
da def. 5 e prop. 15, mas não aparece de que modo este corolário conecta* À margem do manuscrito Leibniz observou: “Desta proposição segue-se, contra o próprio Espinosa, que
as coisas não são necessárias. Com efeito, não é necessário aquilo cuja essência não envolve existência”.
(N.R.)
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Cadernos Espinosanos XXIII
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connectatur cum hac prop. 25. Certe Spinosa non est magnus demonstrandi
se com esta prop. 25. Certamente Espinosa não é um grande mestre na arte
artifex. Corollarium hoc ex supra dictis satis patet, sed verum est si sano
de demonstrar. Este corolário é bem patente a partir do que foi dito acima;
sensu intelligatur, non quidem res esse tales modos, sed modos concipiendi
res particulares, esse modos determinatos concipiendi attributa divina.
não são tais modos, mas os modos de conceber as coisas particulares são
os modos determinados de conceber os atributos divinos.
Prop. 28. Quodcunque singulare sive quaevis res quae finita est
PROP. 28. Qualquer singular, ou seja, qualquer coisa que é finita
et determinatam habet existentiam, non potest existere nec ad operandum
e tem existência determinada, não pode existir nem ser determinado a
determinari nisi ad existendum et operandum determinetur ab alia causa,
quae etiam finita est et determinatam habet existentiam, et haec iterum ab
alia, et sic in infinitum. Quia nihil determinatum, finitum et certo tempore
operar, a não ser que seja determinado a existir e operar por outra causa,
que também seja finita e tenha existência determinada, e por sua vez esta
causa por outra, e assim ao infinito. Porque nada determinado, finito e
existente num certo tempo pode seguir da essência absoluta de Deus. Desta
existens ex absoluta Dei essentia sequi potest. Ex hac opinione recte
opinião, se bem pesada, seguem-se muitos absurdos. Porque as coisas
expensa multa absurda sequuntur. Revera enira res ex natura Dei hoc modo
realmente não seguirão da natureza de Deus desse modo. Com efeito, o
non sequentur. Ipsum enim determinans ab alia re iterum determinatur, et
sic in infinitum. Nullo modo ergo res determinantur a Deo. Deus tantum
próprio determinante é de novo determinado por outra coisa, e assim ao
infinito. Logo, de nenhum modo as coisas são determinadas por Deus. De
sua parte, Deus contribuirá apenas com algumas absolutas e gerais. Mais
absoluta quaedam et generalia de suo contribuet. Rectius dicendum, unum
corretamente, é preciso dizer que um particular não é determinado por outro,
particulare non determinari ab alio, progressu in infinitum; alioqui enint
numa progressão ao infinito; pois, diferentemente, sempre permanecem
revera semper manent indeterminata, utcunque progrediaris: sed potius
omnia particularia determinari a Deo. Nec posteriora priorum esse causam
plenam,* sed Deunt potius posteriora creare ita ut connectantur prioribus
realmente coisas indeterminadas, por mais que prossigas; mas, antes, todas
as coisas particulares são determinadas por Deus. E as coisas posteriores
não são a causa plena das anteriores*, mas Deus cria preferivelmente as
posteriores tal como são conectadas com as anteriores segundo as regras da
secundum sapientiae regulas. Si dicimus priora et causas efficientes
sabedoria. Se dizemos que as anteriores são também causas eficientes das
posteriorum, vicissim erunt posteriora quodammodo causae finales
posteriores, inversamente as posteriores serão de certo modo causas finais
priorum, apud eos qui ponunt Deum secundura finem operari.
* Carraud propõe Nec ptiora posteriorum esse causam plenam.
246
mas na verdade, se for entendido no sentido certo, as coisas certamente
das anteriores, entre os que põem que Deus opera segundo fins.
* Certamente se trata de uma inversão involuntária de Leibniz, a frase correta seria “as coisas anteriores
não são a causa plena das coisas posteriores”. (N. R.).
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Prop. 29. In rerum natura nullum datur contingens, sed omnia ex
PROP. 29. Na natureza das coisas nada é dado de contingente, mas
necessitate divinae naturae determinata sunt ad certo modo existendum et
tudo é determinado pela necessidade da natureza divina a existir e operar
operandum. Demonstratio obscura et praerupta est, ducta per propositiones
prwcedentes praeruptas, obscuras et dubias. Res pendet a definitione
de maneira certa. A demonstração é obscura e abrupta, conduzida pelas
proposições precedentes, abruptas, obscuras, duvidosas. A coisa depende
da definição de CONTINGENTE, que ele não deu em parte alguma. Eu,
contingentis quam nuspiam dedit. Ego cum ahis contingens sumo pro
com outros, tomo contingente como aquilo cuja essência não envolve
eo, cujus essentia non involvit existentiam. Hoc sensu res particulares erunt
existência. Nesse sentido, as coisas particulares serão contingentes, segundo
contingentes secundum ipsum Spinosam per prop. 24. Sed si contingens
sumas more quorundara Scholasticorum, Aristoteli et aliis hominibus
usuique vitw incognito, pro eo quod contingit, sic ut ratio reddi non possit:
o próprio Espinosa, pela prop. 24. Mas se tomas contingente à maneira de
certos escolásticos, desconhecido de Aristóteles e do uso da vida de outros
homens, como aquilo que acontece,* sem que de modo algum se possa dar
a razão por que acontece assim e não e outro modo, e cuja causa, estando
ullo modo cur sic potius evenerit quam aliter, et cujus causa positis omnibus
posto tudo que é requerido tanto dentro quanto fora dela mesma, esteve
requisitis tam. intra quam extra ipsam, aeque disposita fuit ad agendum quam
igualmente disposta a agir como a não agir, penso que tal contingência
non agendum, puto tale contingens implicare, omniaque esse sua natura, ex
hypothesi voluntatis divinae statusque rerum, certa ac determinata, tametsi
nobis inexplorata, neque in se ipsis sed. per suppositionem sive hypothesin
implica [contradição], e que todas as coisas, por sua natureza e segundo
[149] a hipótese da vontade divina e do estado de coisas, são certas e
determinadas, embora inexploradas por nós, e têm sua determinação em si
mesmas, mas por suposição, ou seja, por hipótese, das coisas externas.
externorum suam determinationem habentia.
Prop. 30. Intellectus actu finitus et actu. infinitus Dei attributa Deique
affectiones comprehendere debet et nihil aliud. Hanc propositionem satis
claram ex praecedentibus, et sano sensu veram noster autor per alia obscura
compreender os atributos de Deus e as afecções de Deus, e nada outro.
Esta proposição suficientemente clara a partir das precedentes e, em
sentido correto, verdadeira, nosso autor prova-a à sua maneira por coisas
et dubia et remota more suo probat: nempe quod idea vera convenire: debet
obscuras e duvidosas, a saber, que a idéia verdadeira deve convir com o
cum ideato, id est ut per se notum (sic ait, etsi ego quomodo id per se notum,
ideado, isto é, como é por si noto (ele diz isso, embora eu não compreenda
imo verum sit non capiam), id quod in intellectu. objective: continetur, debet
necessario in natura dari; quod non nisi una substantia datur, nempe Deus-
248
PROP. 30. O intelecto, finito em ato ou infinito em ato, deve
de que modo isso seja por si noto e tampouco verdadeiro), aquilo que
está contido objetivamente no intelecto deve necessariamente dar-se na
natureza; que não se dá senão uma única substância, a saber, Deus. Essas
quae tamen propositiones obscurae et dubiae et longe remotae sunt. Videtur
proposições entretanto são obscuras, duvidosas, e muito afastadas. Parece
autoris ingenium fuisse valde detortum: raro praecedit via clara et naturali,
* Como aquilo que acontece traduz pro eo quod contingit. É preciso notar o jogo de palavras no latim: a
origem do adjetivo contingens é o particípio presente do verbo contingeo, acontecer. (N. T.).
249
Cadernos Espinosanos XXIII
Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)
semper incedit per abrupta et circuitus- pleraeque ejus demonstrationes
que o engenho do autor é muito tortuoso: ele raramente procede por uma
magis animum circumveniunt (surprennent) quam filustrant.
via clara e natural, avança sempre por vias abruptas e desvios; a maioria de
Prop. 31. Intellectus actu sive finitus sive infinitus, ut et voluntas,
cupiditas, amor etc. ad naturam naturatam, non ad naturantem referri debet.
PROP. 31. O intelecto, finito em ato ou infinito em ato, assim como
a vontade, o desejo, o amor etc., deve ser referido à natureza naturada,
Intelligit per naturam naturantem Deum ejusque attributa absoluta, per
não à naturante. Entende por natureza naturante Deus e seus atributos
naturatam ejus modos. Esse autem. intellectum nihil aliud quam certum
absolutos, por naturada, seus modos. Ora, o intelecto não é nada mais que
cogitandi modum. Hinc alias dicit Deum proprie non intelligere: nec velle.
Hoc ipsi non assentior.
Prop. 32. Voluntas non potest vocari causa libera, sed tantum
um certo modo de pensar. Daí, aliás, ele dizer que, propriamente, Deus não
entende nem quer. No que não concordo com ele.
PROP. 32. A vontade não pode ser chamada causa livre, mas somente
necessária, a saber, porque é livre o que é determinado apenas por si. Ora,
necessaria, quia scilicet liberum id quod tantum a se determinatur.
a vontade é um modo de pensar e dessa forma é modificada por outro.
Voluntatem autem esse modum cogitandi adeoque ab alio modificari.
PROP. 33. As coisas não puderam ser produzidas por Deus de
nenhuma outra maneira e em nenhuma outra ordem do que aquelas em
que foram produzidas. Segue-se, com efeito, da imutável natureza de Deus.
Esta proposição é verdadeira ou falsa conforme é explicada. Na hipótese
de uma vontade divina que escolhe o melhor, ou seja, que opera de maneira
perfeitíssima, certamente não puderam ser produzidas senão estas coisas;
mas segundo a própria natureza das coisas considerada por si, as coisas não
puderam ser produzidas de outra maneira. Do mesmo modo dizemos que
os anjos confirmados não podem pecar, salva a liberdade deles; poderiam
se quisessem, mas não querem. Absolutamente falando, podem querer,
mas neste estado de coisas existente, não podem querer mais. O autor
reconhece corretamente no escólio que algo torna-se impossível de dois
modos, ou porque em si mesmo implica [contradição], ou porque não se
dá nenhuma causa externa apta para produzir. No segundo escólio, nega
que Deus produza tudo em vista do bem. Não é de admirar, negou-lhe a
vontade e pensa que os dissentâneos submetem Deus ao destino, embora
Prop. 33. Res nullo alio modo neque ordine a Deo produci potuerunt
quam productae sunt. Sequuntur enim ex immutabili natura Dei. Haec
propositio vera falsave, prout explicatur. Ex hypothesi voluntatis divinae
eligentis optima seu perfectissime operantis certe non nisi haec produci
potuerunt, secundum ipsam vero rerum naturam per se spectatam aliter
produci res poterant. Quemadmodum angelos confirmatos dicimus non posse
peccare, salva eorum libertate; possent si vellent; sed non volent. Possent velle
absolute loquendo, sed hoe rerum statu existente amplius non possunt velle.
Recte autor et in Scholio agnoscit, duobus modis aliquid impossibile reddi
vel quia in se implicat, vel quia causa nulla eaeterna datur ad producendum
apta. In Scholio secundo negat Deum omnia sub ratione boni agere. Ninúrum negavit ei voluntatem, et dissentientes putat Deum fato subjicere, cum
tamen ipse fateatur Deum omnia sub ratione perfecti agere.
250
suas demonstrações mais afligem (surprennent*) que ilustram o animo.
também ele confesse que Deus age em vista do perfeito.
* Surpreendem – em francês no texto. (N.T.)
251
Cadernos Espinosanos XXIII
Prop. 34. Dei potentia est ipsa ejus essentia, quia ex natura essentiae
sequitur eum esse causam sui et aliorum.
Prop. 35. Quicquid in Dei potestate existit, id necessario est, id est
ex essentia ejus sequitur.
PROP. 34. A potência de Deus é sua própria essência, porque segue
da natureza da essência, que ele é causa de si e de outras coisas.
PROP. 35. O que quer que concebamos estar no poder de Deus,
necessariamente é, isto é, segue de sua essência.
PROP. 36. Nada existe de cuja natureza não siga algum efeito,
Prop. 36. Nihil existit, ex cujus natura effectus aliquis non sequatur,
porque exprime a natureza de Deus de um modo certo e determinado, isto
quia Dei naturam certo ac deterininato modo exprimit, hoc est per prop.
é, pela prop. 34, a potência de Deus; é verdadeiro, embora não se siga
34. Dei potentiam, (non sequitur satis) verum est tamen.
Subjicit Appendicem contra eos qui Deum propter finem operari
putant, miscens vera falsis. Etsi enim verum sit non omnia hominum causa
fieri, non tamen sequitur sine voluntate sive, boni intellectu agere.
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Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa)
satisfatoriamente.
Segue um Apêndice contra os que pensam que Deus opera por causa de
fins, no qual ele mistura coisas verdadeiras e falsas. Com efeito, embora seja
verdadeiro que nem todas as coisas foram feitas por causa dos homens, todavia
não se segue que Deus age sem vontade, ou seja, sem intelecção do bem.
253
NOTÍCIAS
de resolução dos problemas teóricos da formulação hobbesiana, pode-se
obter um ganho no sentido de melhorar o trato com essas dificuldades.
Palavras-chaves: Hobbes, reciprocidade, antropologia, filosofia política
DEFESAS DE DOUTORADO:
DEFESAS DE MESTRADO:
Marcelo Gross Villanova
Wilson Alves Sparvoli
Hobbes e a reciprocidade. Uma investigação sobre a relevância da regra
Questão das substâncias corporais em Leibniz
de ouro das leis naturais na teoria política hobbesiana
Orientador: Luís César Guimarães Oliva
Orientador: Maria das Graças de Souza
Data: 09.08.2010
Data :06.08.10
Resumo: Nosso objetivo principal foi esclarecer o papel e o
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Resumo: Base da postulação da comunidade política, as leis
estatuto ontológico dos corpos dos seres vivos no leibnizianismo. Para
naturais são resumidas por duas frases, “faça aos outros o que gostaria
tanto, partimos da ontologia cartesiana que transforma os corpos em
que fizessem a si” e a outra “não faça aos outros o que gostaria que não
substâncias cuja essência é a extensão entendida geometricamente.
fizessem a ti”. Hobbes denomina essa síntese das leis naturais de “princípio
Depois disso, analisamos as críticas que Leibniz fez a esta ontologia,
de reciprocidade”. Fora essas duas frases, Hobbes não apresenta maiores
bem como a nova ontologia de forças e mônadas que usa para superar
esclarecimentos quanto ao seu significado. A presente pesquisa pretende
todas as limitações e erros do cartesianismo. Enfim, terminamos
refletir sobre a teoria política hobbesiana a partir da problematização do
considerando que, devido a todas as críticas realizadas contra a extensão
sentido do princípio de reciprocidade, colocando em evidência algo que
cartesiana, não existe, como sustentam alguns comentadores, uma noção
não está bem explicado e que não ocupa um lugar de pouca importância
de substância corporal que reabilite a materialidade ou a extensão;
na sua teoria política. Na literatura crítica é bem conhecida a controvérsia
na verdade, a substância corporal leibniziana tem que ser entendida
a respeito do papel das leis naturais, da relação entre as leis naturais e
segundo uma ontologia idealista. Nesse percurso, também pudemos
leis civis, do direito de resistência, do direito de punir, “silêncio” das leis.
constatar alguns dos desdobramentos científicos que a nova ontologia
Reflete-se sobre essas e outras questões tendo em vista a perspectiva da
leibniziana acarretava, como, por exemplo, o surgimento de uma física
elucidação do princípio de reciprocidade. Ainda que situar adequadamente
dinâmica e a tese da pré-formação dos seres vivos no âmbito da fisiologia.
o locus conceitual das dificuldades não seja uma garantia
Palavras-chave: Descartes, Leibniz, Substância e Corpo.
255
Rafael Augusto de Conti
INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES
Liberdade para além do Estado em Thomas Hobbes: o rei nu em busca
da equidade soberana (ou do homem à máquina e da máquina ao
homem: a liberdade como reino da ética)
Orientador: Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros
Data: 23.09.2010
Resumo: A reconstrução do pensamento hobbesiano acerca do
Estado, com foco no tema da liberdade, é o que foi feito neste trabalho.
Como é possível a compatibilidade entre liberdade e necessidade?; Qual
a relação entre liberdade, guerra e paz?; Como a justiça está relacionada
com a questão da liberdade?; Qual a liberdade dos cidadãos frente
ao Estado?; Qual a liberdade do soberano pelo Estado? - constituem
questionamentos que refletem o caminho percorrido. Sempre possuindo a
liberdade como foco, foi-se do homem à máquina e da máquina ao homem,
por meio da exploração articulada do pensamento hobbesiano acerca dos
campos da Física, da Antropologia/Psicologia, do Direito e da Moral.
Palavras-chave: liberdade, poder, Estado, soberania, justiça, natureza humana
256
:::: Os textos devem ser inéditos e ter de preferência até 40
laudas (30 linhas de 70 toques).
:::: O arquivo, que deve ser enviado por e-mail , deve conter o
nome do autor, a instituição a que está vinculado, o endereço eletrônico ou
o telefone. (E-mail: [email protected]).
:::: Os artigos devem vir acompanhados de um resumo e um
abstract de 80 a 150 palavras cada um, cinco palavras-chave e keywords.
:::: As notas de rodapé devem ser digitadas no final do
artigo, utilizando-se o recurso automático de criação de notas de
rodapé dos programas de edição.
:::: As referências bibliográficas devem ser listadas e numeradas
no final do texto, em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação.
:::: As citações devem ser feitas no correr do texto de acordo com
as normas técnicas da ABNT, seguindo-se a numeração das referências
bibliográficas; por exemplo, (Descartes 1, p.10) ou (Descartes 1, §8, p.10).
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CONTENTS
Leibniz, 1678: lecture notes on Spinoza’s Ethics
Ulysses Pinheiro.....................................................................................11
Causality in Hobbes: necessity and intelligibility
Celi Hirata...............................................................................................33
Possibles and existents in Leibniz
Wilson Alves Sparvoli.............................................................................59
BEYOND THE OBJECT BODY AND
THE INTELECTUAL REPRESENTATION: how Merleau-Ponty
rediscovers the body as the existence’s vehicle.
José Marcelo Siviero.............................................................................187
On Spinoza’s Ethics
G. W. Leibniz........................................................................................................215
Notices.......................................................................................................254
INSTRUCTIONS FOR AUTHORS................................................................257
CONTENTS....................................................................................................258
The Cartesian concept of freedom
in Philosophical Principles
Mariana de Almeida Campos.................................................................73
Images and analogies of the body and
the mind in Spinoza’s politics
Alexandre Arbex Valadares.....................................................................95
Imagination: between fear and freedom
Daniel C. Avila.......................................................................................135
The right to life in Hobbes’s Elements
of law, natural and politic
Rogério Silva de Magalhães..................................................................159
258
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