Relevância, Conteúdo e Metodologia da Investigação Histórica em

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Relevância, Conteúdo e Metodologia da Investigação Histórica em
_______________________REVISTA DE CONTABILIDADE E COMÉRCIO____________________________________
Ana Rita Faria
RELEVÂNCIA, CONTEÚDO E METODOLOGIA DA
INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA EM CONTABILIDADE
Mestre em Ciências Económicas e Empresariais
CESE em Gestão Financeira pelo ESGHT - Universidade do Algarve
Bacharelato em Gestão Hoteleira pelo ESGHT – Universidade do Algarve
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SUMÁRIO
1. Introdução......................................................................................................... 186
2. Justificações para a História da Contabilidade .............................................. 190
3 As fontes da História da Contabilidade ........................................................... 193
4. As fases da investigação histórica ................................................................... 197
5. As áreas de investigação da História da Contabilidade ................................. 199
6. As Novas Tendências da História da Contabilidade ...................................... 204
6.1. As origens da “Nova História da Contabilidade”......................................... 204
6.2. Contabilidade Crítica e História da Contabilidade ..................................... 206
7. Aspectos Distintivos da “Nova História da Contabilidade” face à “História da
Contabilidade Tradicional” .................................................................................. 210
8. Conclusão .......................................................................................................... 216
9. Bibliografia ....................................................................................................... 218
1. Introdução
As últimas décadas testemunharam o florescimento da investigação em
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História da Contabilidade, podendo afirmar-se que esta área do saber
assume, actualmente, uma posição relevante na disciplina de Contabilidade.
A par do considerável aumento do número de trabalhos e de publicações
contemplando uma enorme diversidade de histórias, da criação de
associações para agrupar e coordenar o crescente número de investigadores
interessados em se debruçar sobre os contrafortes genéticos da
Contabilidade e da proliferação de congressos (nacionais e mundiais) de
historiadores de Contabilidade, assistiu-se ao aparecimento de novas
abordagens e metodologias de investigação histórica.
A literatura de História da Contabilidade, que numa fase embrionária
visava o reconhecimento da Contabilidade enquanto profissão e disciplina
académica, passa, num segundo momento, a ser dominada por uma
abordagem de índole “utilitarista”, em que o passado da Contabilidade é
encarado como uma potencial fonte de soluções para os problemas
contemporâneos e, mais recentemente, por uma abordagem denominada
“crítica”, que intenta examinar o passado da Contabilidade através de um
leque variado de perspectivas teóricas e metodológicas (também apelidadas
de “escolas”) inspiradas no pensamento de autores como Marx, Foucault,
Habermas, e tantos outros (Carnegie e Napier, 1996).
A abordagem da dimensão sociológica da Contabilidade, produto das novas
tendências de investigação histórica, pôs em relevo as suas possibilidades
interpretativas e explicativas nos domínios: social, cultural, político e
ideológico, relegando praticamente para segundo plano as leituras de índole
economicista e técnica, que constituíam, até então, o foco principal da
abordagem “tradicional”, “antiga” ou “convencional”. Esta forma de
investigação alternativa, que recorre a esquemas interpretativos que se
apoiam na teoria social crítica, viria a ser denominada de “Nova História da
Contabilidade” .
Tendo a sua génese nos movimentos renovadores e iconoclastas que
atingiram as Ciências Sociais em geral, e a História em particular, a “Nova
História da Contabilidade” não é propriamente uma escola ou um corpo de
doutrina homogéneo, mas sim um conjunto diversificado de abordagens e
formas de perceber e praticar a disciplina - por vezes muito discordantes
entre si - que, na opinião dos seus prosélitos, se distanciam das ideias
tradicionais. Profundamente crítica em relação ao objecto e métodos da
“História Tradicional”, a “Nova História” suscitou uma inevitável apreensão,
introduzindo um aceso debate no seio da comunidade de historiadores. No
decorrer da polémica sobre as estratégias de investigação mais adequadas
para a história da disciplina, estabeleceram-se duas correntes antagónicas:
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uma constituída por aqueles vêm pouco mérito na “História Tradicional” e
que a querem banir da nova ordem e outra por aqueles que nela querem
preservar o seu lugar.
A História da Contabilidade passou assim de um prolongado período em que
os seus estudiosos se sentiam seguros do seu contributo para a compreensão
da mesma, para um período controverso relativo às matrizes possíveis de
investigação neste domínio.
Esta crise de configuração epistémica que assolou a disciplina, sobretudo a
partir da década de 80, teve, no entanto, um inusitado efeito no aumento do
interesse pelas matérias históricas da Contabilidade, envolvendo no seu
estudo não só investigadores de Contabilidade contemporânea, como de
áreas conexas. Além de expandir os horizontes da investigação a um
conjunto mais alargado de períodos, entidades, indústrias, actividades,
indivíduos e a outras questões do passado da Contabilidade - induziu uma
reflexão consciente sobre os fundamentos metodológicos da disciplina e as
aplicações/abordagens metodológicas alternativas, contribuindo para a
sofisticação e validação da investigação nesta área. A ela se deve grande
parte do auge que a História da Contabilidade hoje experimenta e também o
seu reconhecimento como um campo legitimado do saber no seio das
disciplinas históricas em geral.
Os trabalhos animados pelas diferentes metodologias e perspectivas de
História da Contabilidade passaram a constituir-se objecto temático
gravitacional das principais revistas de Contabilidade internacionais, como
a Accounting, Auditing and Accountability Journal (Austrália), a Critical
Perspectives on Accounting (E.U.A.) e a Accounting, Organisations and
Society (Reino Unido). A estas publicações poder-se-iam somar outras mais,
que têm estado atentas à polémica entre as novas tendências e as
tendências tradicionais, comparecendo aí a Accounting Business and
Financial History (Reino Unido), a Accounting History (Austrália) e a
Accounting Historians Journal (a primeira revista exclusivamente dedicada
à História da Contabilidade), da Academy of Accounting Historians (desde
sempre um bastião da História tradicional). Outro importante veículo de
expressão para estes trabalhos, considerado um dos mais importantes
eventos para a disciplina, é o Congresso Mundial de Historiadores de
Contabilidade, que se realiza de quatro em quatro anos1.
1
O último Congresso realizou-se em Melboune (Austrália) em 2002 e contou com
cinco comunicações de autores portugueses. O 10.º Congresso decorrerá em Saint
Louis no Missouri e em Oxford no Mississippi, entre 1 e 5 de Agosto de 2004.
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Em Portugal tem-se vindo a assistir a uma progressiva consciencialização da
necessidade de investigação direccionada ao passado da Contabilidade,
existindo, desde 1996, uma entidade que se dedica exclusivamente ao
estudo, pesquisa e divulgação da História da Contabilidade – o Centro de
Estudos de História da Contabilidade da Associação Portuguesa de Técnicos
de Contabilidade (APOTEC). São também em número significativo os
jornais e revistas de Contabilidade que publicam, com frequência, artigos
que incorporam matérias históricas, sendo de destacar, pela sua antiguidade
e qualidade, a Revista de Contabilidade e Comércio, o Jornal de
Contabilidade e o Jornal do Técnico de Contas e da Empresa. Trata-se de
artigos que versam essencialmente sobre temáticas como a origem e a
edificação da Contabilidade, o desenvolvimento das partidas dobradas, as
instituições de Contabilidade, a História da Contabilidade em relação à
História Económica, as teorias de importantes personalidades que se
pressupõe terem liderado o desenvolvimento do pensamento contabilístico, a
sua vida e obra, o contexto dos procedimentos contabilísticos e a profissão
contabilística. A aplicação de perspectivas teóricas/sociológicas ao estudo da
História da Contabilidade é, no caso português, ainda incipiente.
Estes apontamentos de síntese, ao versarem sobre a historiografia de
Contabilidade, pretendem contribuir, ainda que de forma modesta, para a
caracterização do seu estado, para a consideração dos múltiplos e por vezes
incompatíveis papéis atribuídos à investigação histórica, e para a análise
das suas dimensões metodológicas fundamentais. Visa-se, assim, por um
lado, dar a conhecer as possibilidades de pesquisa nesta área, por outro,
anotar os tópicos de investigação e os estilos de escrita da história. Ao
alertar para os principais traços que emergiram ou se continuam a
desenvolver no terreno historiográfico, este trabalho procura ser um ensejo
para os actuais estudiosos reflectirem sobre a situação da historiografia de
Contabilidade em Portugal. Simultaneamente, pretende-se que funcione
como alavanca motivadora para aqueles que, estando conscientes das
oportunidades nesta área, permanecem relutantes em participar nela, quer
por não dominarem os métodos de investigação histórica, quer por não se
sentirem inteirados dos debates que se têm produzido no seu seio.
Daí que comece por abordar a relevância dos estudos históricos na disciplina
de Contabilidade para, em seguida, identificar as principais fontes de
obtenção de informações relevantes sobre o passado da Contabilidade, as
etapas de percurso no processo de investigação histórica e as áreas em que
esta se poderá desenvolver.
Por último, procura tipificar a recente
abordagem ao estudo da História da Contabilidade, a que acima se aludiu
como “Nova História da Contabilidade”, relacionando-a, nos seus contrastes
argumentativos, com a “História da Contabilidade Tradicional”.
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2. Justificações para a História da Contabilidade
Muito antes da História da Contabilidade ter sido reconhecida como uma
área académica digna de estudo, já a maioria dos antigos autores de
Contabilidade recorria à longa história e às remotas origens da
Contabilidade com o intuito de enaltecer o estatuto do que poderia de outro
modo assemelhar-se a uma prática meramente técnica.
Carnegie e Napier (1996, pp. e 9 ss.) identificam três propósitos que
fundamentaram, ao longo dos tempos, a invocação do passado da
Contabilidade, quer como uma actividade genérica, quer como uma prática
específica tal como a escrituração por partidas dobradas. O primeiro
inscreve-se no facto de, para os autores dos antigos tratados, a
Contabilidade se traduzir numa forma de convencerem o seu público
potencial do valor e da pertinência dos métodos que pretendiam divulgar e
promover. A inclusão de uma breve história da Contabilidade em tais
tratados conferia ao método das partidas dobradas um sabor a “final da
história”. O segundo intuito relaciona-se com o enobrecimento do estatuto
social daqueles que exerciam a actividade contabilística. Para as associações
de profissionais emergentes, a história encarregar-se-ia de funcionar como
contributo justificativo das suas pretensões de reconhecimento profissional.
Um terceiro intento teria a ver com o facto de, para os académicos do
princípio do século XX, permanecer titubeante a legitimidade da
Contabilidade enquanto disciplina universitária. Daí que uma boa parte dos
manuais de Contabilidade daquele período, nomeadamente os que eram
destinados a ser utilizados nos novos cursos superiores de Contabilidade que
surgiam nos EUA, incluísse uma introdução histórica que, apesar de
concisa, tinha por função reivindicar a autoridade secular da prática
contabilística.
Alicerçados naqueles pressupostos foram publicados, nos finais do século
XIX e princípios do século XX, os primeiros trabalhos dedicados à História
da Contabilidade, tais como os de B. Worthington (1895) intitulado
Professional Accountants e o de R. Brown (1905) denominado A History of
Accounting and Accountants.
Por essa altura começaram a ser concebidas as justificações para o estudo e
escrita da História da Contabilidade tendo pontificado aí o paradigma da
utilidade. Escrevendo no princípio de século XX (1904), C. W. Haskins,
professor da Universidade de Nova Iorque, defendia que a História da
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Contabilidade permite-nos «melhor compreender o nosso presente e (...)
prever ou controlar o nosso futuro» (Previts et al., 1990a, p. 1).
Já em 1970, o relatório do Comité de História da Contabilidade da American
Accounting Association (AAA) apresentava como fundamento para a
História da Contabilidade as suas dimensões intelectual e utilitária
(Carnegie e Napier, pp. 12-13):
¯
Intelectual por esclarecer o processo através do qual o pensamento,
as práticas e as instituições de contabilidade se desenvolvem,
identificando no ambiente os factores indutores de mudança e
revelando como tal mudança ocorre de modo substantivo. Também
por visar determinar o efeito no ambiente de modificações no
pensamento, nas práticas e nas instituições de contabilidade.
Finalmente, por contribuir para uma melhor compreensão da
História económica e da História empresarial.
¯
Utilitária por esclarecer as origens dos conceitos, práticas e
instituições da modernidade, produzindo conhecimento para a
solução de problemas contabilísticos contemporâneos. A
compreensão da interacção passada do ambiente e das modificações
nas práticas e instituições de contabilidade facilitará a previsão das
consequências das soluções actualmente propostas.
O mesmo relatório (ibid.) acrescentava ainda que: «a história da
contabilidade é digna de estudo porque coloca a contabilidade actualmente
em perspectiva, e poderá possibilitar a utilização de dados do passado como
solução para problemas do presente. É digna de ensino como parte da
formação cultural geral dos futuros contabilistas, especialmente para
enfatizar que “práticas actualmente aceites” da contabilidade não foram
“imutáveis durante as décadas e séculos de transformações ambientais”».
Convergente, ainda que mais recente, é a opinião de Previts et al. (1990a, p.
3), que ao aflorarem a questão da relevância histórica, argumentam-na como
peça auxiliar da investigação contemporânea na elaboração de normas e de
políticas contabilísticas, indispensável à familiarização dos contabilistas
com os indivíduos, ideias, experiências e lições que constituem a sua
herança, para além de contribuir para uma visão interdisciplinar da
Contabilidade e para a sua contextualização.
Nessa linha, e num outro artigo escrito em conjunto com Bricker (ap.
Fleischman, Mills e Tyson, 1996, p. 60), Previts reconhece que «uma
vantagem de conduzir uma investigação histórica em contabilidade é o
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desenvolvimento de perspectivas sobre problemas actuais; isto é, possuir
informação relativa ao passado como pano de fundo para questões do
presente».
No Simpósio sobre História da Contabilidade, realizado no âmbito do 21.º
Congresso Anual da European Accounting Association, que teve lugar em
Bordéus em Maio de 1999, John Richard Edwards (ap. Hernández Esteve,
1999, p. 7) destacou quatro razões para a prática da História da
Contabilidade, a saber:
1. Recreativas - por simples curiosidade ou prazer;
2. Intelectuais ou explicativas – por favorecer a compreensão do
passado, esclarecendo a génese das práticas e dos problemas actuais;
3. Preditivas –
por permitir estabelecer analogias, dotando de
predicabilidade os acontecimentos futuros;
4. Resolução de problemas.
A estas Hernández Esteve acrescentaria uma quinta, em resposta à recente
incorporação de elementos e aspectos teóricos na investigação em História
da Contabilidade: o uso da História da Contabilidade como verificador de
teorias sociais e institucionais.
A generalidade das justificações apontadas para o estudo da História da
Contabilidade baseia-se numa concepção da Contabilidade que tem tido um
nível de aceitação significativo e que a vê como essencialmente progressiva,
ou, invocando a metáfora de A. C. Littleton (1933, ap. Carnegie e Napier,
1996, p.11), como «um esboço que o tempo está continuamente a aperfeiçoar».
Trata-se de uma noção que encara a Contabilidade como uma actividade em
permanente mutação, em resposta a exigências explícitas ou implícitas num
ambiente em mudança, e onde as alusões à metáfora da sua evolução ou
progresso são uma constante.
Neste sentido, a utilidade da História da Contabilidade reside no contributo
que o conhecimento do modo como foram solucionadas no passado as
incongruências da Contabilidade com a sua envolvente poderá fornecer para
a resolução de questões e problemas idênticos que se colocam no presente.
Como deduzem Miller e O’Leary (1987, p. 236), «a imagem a colher é que a
contabilidade, face a uma mudança ambiental esmagadora, pode
emaranhar-se com o seu contexto em sentidos que são inevitáveis, e que pode
até ser socialmente desejável».
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Embora o argumento utilitarista seja plausível, como justificação para a
investigação histórica em Contabilidade, a verdade é que enfrenta, na actual
era tecnológica e pós moderna, uma ameaça crescente. Com efeito, alegam os
seus críticos (Hamerow, ap. Parker, 1996, p. 19) que, em virtude das
transformações de que o mundo foi alvo, e dos perigos e dilemas globais com
que se debate, as lições do passado já não se adequam às questões do
presente, e que a história é demasiado fragmentada e incoerente para
orientar a definição de políticas e o estabelecimento de normas. Acresce que
a sua capacidade de previsão é limitada pela singularidade de cada evento,
ou sequência de eventos, e pelas circunstâncias que os rodeiam, os quais são,
praticamente, de impossível replicação.
Daí que Parker questione (1999, pp. 20-21) o que poderá a História oferecer.
Numa perspectiva utilitária o seu contributo pode ser encarado num dupla
vertente: por um lado permite uma reflexão consciente sobre o que resultou
ou não no passado e as razões subjacentes a sucessos e fracassos específicos,
por outro fornece precedentes, probabilidades e alternativas, que, no
entanto, continuarão a exigir por parte dos tomadores de decisão
contemporâneos, discernimento, imaginação, sensibilidade e liderança.
Numa perspectiva intelectual – já aflorada – a História fornece informação
sobre os processos de mudança, não se podendo descurar o facto dela
constituir uma apropriação da humanidade, o que por si só dispensa
justificações, porquanto tal saber outorga às sociedades um sentido de
identidade, criando elos de ligação entre tradição e modernidade, qual fio
condutor de crenças e comportamentos que contribuem para a coesão social
e profissional, fomentando a introspecção e o debate.
3 As fontes da História da Contabilidade
Tradicionalmente, o conhecimento do passado da Contabilidade adquire-se
através da análise de fontes que forneçam informação sobre a forma como
este saber foi, ou poderia ter sido, utilizado. Essas fontes podem ser de dois
tipos: primárias ou secundárias. As primeiras compreendem a herança
documental manuscrita, ou seja, registos contabilísticos e empresariais
originais, e as segundas a literatura contabilística, nomeadamente: tratados
de Contabilidade e de escrituração e jornais e revistas técnicas de
Contabilidade.
Fontes primárias
Os livros de contas e os documentos contabilísticos ou comerciais constituem
a principal matéria prima do historiador, sendo decisivos na colheita de
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dados empíricos de suporte à estruturação teórica.
De acordo com Napier (1989, pp. 240 e ss.), entre as informações passíveis
de serem reveladas pela análise dos registos contabilísticos originais incluise a das técnicas de escrituração utilizadas pelas gerações anteriores. Os
seus detalhes mais recônditos poderão testemunhar como se processou a
difusão dos métodos práticos e esclarecer a relação entre os registos
contabilísticos originais e os antigos tratados de contabilidade. Também a
análise do objecto de estudo da Contabilidade, ou seja, aquilo que é alvo de
contabilização, não deve ser negligenciada. O grau de detalhe em certas
contas e o cuidado com que determinados erros são tratados podem fornecer
indícios sobre os interesses daqueles que as prepararam. Por outro lado, a
ausência de certas contas cuja presença parece intuitivamente óbvia pode
sugerir diferentes objectivos para os registos contabilísticos estudados. Não
menos relevantes são as informações relacionadas com as opções
contabilísticas tomadas, mormente os critérios de valorimetria adoptados
(consciente ou implicitamente), os conceitos de acréscimos, os critérios de
reconhecimento dos proveitos, etc.
Para que se possa extrair dos livros de contas o máximo de informação, com
a melhor qualidade, a sua análise deve ser acompanhada da análise dos
registos empresariais, entre os quais se contam documentos como:
memorandos internos, correspondência, actas de reuniões (da administração
ou da direcção) e relatórios. Estes poderão revelar a importância (ou
possivelmente ignorância) atribuída às contas por aqueles que as
preparavam e utilizavam.
A descrição e análise dos aspectos técnicos da escrituração e do sistema
contabilístico utilizado, da lista de contas e da sua movimentação devem,
pois, ser complementadas com a descrição e análise das operações e dos
negócios registados nos livros, do capital fixo e circulante, das fontes de
financiamento utilizadas, das relações com outros comerciantes, enfim, com
qualquer informação que aqueles possam fornecer respeitante ao
comerciante/empresa à qual pertencem e também ao respectivo sector.
Todas estas informações devem ser estudadas à luz das matrizes teóricas
próprias da época analisada, sobre estas matérias, num exercício de História
empresarial, financeira e económica (Hernández Esteve, 1997 e 1998).
Os estudos histórico-contabilísticos baseados em fontes primárias podem
restringir-se ao exame detalhado de uma única organização numa base
longitudinal ou ser mais abrangentes, resultando do cruzamento de dados
de várias empresas durante um período relativamente longo. O tipo de
organização examinada (comercial ou industrial) pode variar consoante as
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problemáticas emergentes. Carnegie e Napier (1996, p. 19) dão como
exemplo o recente interesse na história da Contabilidade industrial, que
levou os investigadores a observar o interior das organizações industriais em
conjunturas decisivas, tais como a revolução industrial, o aparecimento da
produção em massa, a exigência de relato financeiro em sistemas de gestão e
a introdução de novas tecnologias de produção.
Estes estudos podem ainda dirigir-se a períodos de tempo específicos. A
nível internacional, o século XIX é o que maior atenção tem despertado, em
consequência do crescente interesse demonstrado em relação à
Contabilidade industrial, bem como à Contabilidade financeira e à
informação produzida pelas sociedades anónimas do sector privado da
economia.
Entre nós são praticamente insignificantes os estudos apoiados nos registos
contabilísticos de outrora, o que, na opinião de Gonçalves da Silva (1995, p.
119) se explica pela «fraca importância que (...) sempre se atribuiu a esta
espécie de documentos». Este desinteresse é ainda agravado pelo facto de «as
escrituras comerciais do século XIX» terem sido « quase todas destruídas
depois de expirados os prazos que os códigos comerciais fixavam para a sua
conservação. Dos séculos anteriores, raras, raríssimas, são decerto, as
escritas que ainda existem no todo ou em parte».
O tempo, com a sua contínua erosão, pode ser apontado como uma das
principais causas da aniquilação de tão valioso acervo, mas esta é também
fruto da incúria dos homens. Quando constituíam propriedade de
mercadores individuais, os registos contabilísticos eram guardados durante
alguns anos pelos próprios ou pelas suas famílias, mas acabavam quase
sempre por ser eliminados. Se pertencentes, ou sob a protecção de
sociedades vitalícias, de companhias mercantis, de corpos eclesiásticos ou de
grandes herdades, viam as suas probabilidades de sobrevivência aumentar
substancialmente.
Apesar de a entidade responsável pela arrecadação dos registos
contabilísticos determinar sobremaneira as suas hipóteses de sobrevivência,
esta também depende da sua forma. De acordo com Napier (1989, p. 240), os
registos contabilísticos sob a forma de folhas presas (livros encadernados)
têm mais hipóteses de sobrevivência do que as demonstrações em folhas
soltas. Assim, os livros mais formais resistem, enquanto os memorandos,
facturas e correspondência – os documentos base das transacções – e os
balancetes, balanços e outras demonstrações contabilísticas – as peças finais
da contabilidade – se perdem. De igual forma, os documentos financeiros
(num sentido lato) têm tendência para subsistir, enquanto os documentos de
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gestão são destruídos.
Perante as contingências apontadas, os investigadores cujo estudos
dependem basicamente da análise de material depositado em arquivos
históricos – públicos ou privados – devem ser prudentes nas suas ilações.
Poderão confrontar-se apenas com aquela porção do passado que os actores
históricos determinaram que estaria disponível ou que valia a pena
preservar e, desta, apenas com aquela que sobreviveu à acção destruidora do
tempo. Assim sendo, ao fazerem generalizações, devem ter sempre presente
que os registos contabilísticos salvos para a posteridade são susceptíveis de
revelar apenas uma imagem parcial do negócio a que pertencem e da época
em que foi produzidos.
Fontes secundárias
As fontes secundárias, isto é, os livros de texto, as monografias e os artigos
de jornais e revistas, constituem o produto da investigação de outrem.
São diversos os autores que alertam para o perigo da utilização de fontes
secundárias, sobretudo pela probabilidade de conterem erros ou ideias
preconcebidas. Para ultrapassar esta barreira, o historiador que se socorra
de fontes secundárias para idealizar as suas próprias histórias deve
procurar informar-se do nível de conhecimento histórico do período, das
suposições base daquele tempo, da personalidade do autor e das tendências
historiográficas bem como das influências académicas que o levaram a
defender uma determinada tese (Standford, 1987, ap. Fleischman et al.,
1996b, p. 63)
Ainda assim, o valor destas fontes não deve ser ignorado. As fontes
secundárias constituem um precioso auxiliar na contextualização dos
registos estudados, pelo que um conhecimento profundo das mesmas
permitirá ao historiador concentrar-se nos designados “achados surpresa”,
isto é, aqueles que divergem ou acrescentam algo às referidas fontes.
Por último, coloca-se ainda a questão de saber se os materiais de
investigação foram ou não transmitidos de modo consciente. Os materiais
conscientemente transmitidos são itens que foram concebidos para uso por
futuros estudiosos. Incluem-se nesta classificação as memórias pessoais, os
debates dos corpos gerentes nos relatórios anuais publicados e as entrevistas
gravadas. Os materiais inconscientemente transmitidos são provas que, em
princípio, não se destinam a ser apreciadas por gerações futuras.
Compreendem a maioria dos registos contabilísticos e empresariais, que por
não terem sido elaborados com o propósito da publicação, acabam por
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transmitir uma história mais inteligível e, por vezes, dotada de maior
veracidade.
4. As fases da investigação histórica
Uma investigação histórica completa compreende duas etapas (Hernández
Esteve, 2001):
1. Descritiva e analítica – de busca, descrição, análise e exposição
ordenada dos factos e do seu contexto. A objectividade é, nesta fase,
um requisito essencial.
2. Interpretativa ou explicativa – de interpretação ou explicação dos
factos estudados e apresentados na fase anterior. Não requer a
objectividade própria da exposição dos factos mas sim explicações
plausíveis dos mesmos, devendo, para o efeito, ser coerentes e
consistentes entre si.
Em todo o processo reveste extrema importância a adequada separação
entre o facto em si, tal como é conhecido, descrito e analisado e as opiniões e
interpretações que se fazem dele. Isto significa o leitor deve poder separar
claramente o conteúdo de cada fase e não só aferir do seu grau de
fiabilidade, mas também fazer a sua interpretação dos factos, se assim o
entender.
Por outro lado, há que ter em consideração a existência de graves limitações
intrínsecas, isto é, inerentes à própria natureza dos factos históricos, para o
conhecimento dos mesmos. Essas limitações resumem-se a três (Hernández
Esteve, 2001, p. 75):
1. O objecto de estudo do historiador não são os factos em si mas a
representação que ele faz deles, representação que poderá ser
percebida de forma variada por cada observador;
2. o estudo e conhecimento dos factos é dificultado pela distância
temporal, ou seja, a representação que o historiador faz dos factos
não foi percebida por si, mas sim reconstruída através de
testemunhos históricos, não lhe oferecendo garantias de que reflicta
os factos de forma completa, fiável, objectiva e verdadeira;
3. a representação indirecta que lhe chega dos factos está desprovida
de contexto, atitudes e procedimentos do momento, enfim, do
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espírito da época, pelo que há que reconstruir este marco em que se
desenvolvem os factos e que lhes confere a sua natureza, razão de
ser, motivação e circunstância.
Este insigne historiador (ibid., p. 74) alerta para o facto de existirem autores
que consideram as fases assinaladas como formas diferentes de conduzir a
investigação histórica em Contabilidade, ao invés de etapas de um mesmo
processo de investigação. Neste sentido, adverte, há quem entenda que a
sua missão termina com a busca, descrição e exposição dos factos, e há quem
considere que a sua missão se centra na interpretação dos factos,
independentemente de terem sido expostos por eles próprios ou de serem o
produto do labor de outros historiadores.
Previts, Parker e Coffman (1990a, p. 2), por exemplo, concebem duas formas
fundamentais de conduzir a investigação histórica em Contabilidade –
narrativa e interpretativa - e sublinham que aqueles que consideram a
História menos valiosa se incapaz de analisar um fenómeno, mas apenas de
o descrever, demonstram uma preferência pela História interpretativa.
Deixando transparecer uma crítica ao que consideram ser a tendência de
alguns colegas em construir narrativas isentas de poder explicativo,
observam que os estudiosos que possuem alguma consciência histórica
valorizam o contributo de ambas as Histórias para a compreensão de
matérias complexas. Concomitantemente, os autores reconhecem as
vantagens e limitações de cada um destes tipos de pesquisa histórica,
salientando que «a história narrativa representa um esforço académico
legítimo para acrescentar ao corpo de conhecimentos os rudimentos de feitos
humanos passados por forma a dotar as temáticas contemporâneas de uma
perspectiva mais completa. A história interpretativa realça os métodos de
inquérito científico e o rigor a eles associado».
A coexistência de duas formas distintas de abordar o trabalho histórico tem
dado azo, segundo Hernández Esteve (2001, p. 74), a que expressão método
narrativo tenha vindo a ser utilizada como sinónimo da primeira das duas
fases assinaladas, isto é, da fase descritiva, quando este método consiste
num relato por ordem cronológica no qual não só se expõem os factos mas
também se apresenta a sua explicação ou interpretação. Esta forma de
entender a investigação histórica é partilhada por uma boa parte dos “novos
historiadores” que desconfia, em absoluto, da possibilidade de conhecer os
factos tal como ocorreram, e por isso desvaloriza a importância da sua
recolha e exposição. São estes mesmos historiadores que adoptam uma
posição mais crítica em relação à narrativa.
Não obstante, a narrativa é o método normalmente utilizado na exposição
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das investigações históricas, assumindo-se, de há muito, como a pedra
angular deste tipo de escrita. A narrativa é o processo através do qual os
historiadores constróem e comunicam o seu conhecimento do passado. Como
assevera Parker (1999, p. 21), para grande parte desta comunidade a
narrativa constitui «um meio de organizar eventos e de lhes dar coerência.
Procura captar, representar e articular a vida tal como é vivida – uma
sucessão de eventos que têm começos e fins».
5. As áreas de investigação da História da Contabilidade
A classificação da investigação histórico-contabilística em áreas temáticas
constituí um valioso instrumento de orientação não apenas para actuais
investigadores mas para todos os interessados em dar os primeiros passos
na História da Contabilidade.
Num artigo publicado em 1990 na revista ABACUS, Previts, Parker e
Coffman apresentam um interessante guia de classificação das matérias
objecto de estudo histórico, ordenando-as da seguinte forma: Biografia,
História institucional, História do pensamento contabilístico, História geral,
História crítica, Bases de dados, cronologias, taxonomias e bibliografias,
Historiografia.
Para além desta existem outras classificações de interesse, como a proposta
por Carnegie e Napier (1996), que sugerem as seguintes demarcações para
classificar os temas e abordagens de investigação em História da
Contabilidade: Estudos de registos contabilísticos de empresas, Uso de
registos contabilísticos na História Empresarial, Biografia, Prosopografia,
História institucional, Contabilidade do sector público, História da
contabilidade internacional comparativa, Métodos de investigação em
história da contabilidade inovadores.
Os parágrafos seguintes tratarão de cada área, tendo por base a
classificação de Previts, Parker e Coffman.
Biografia
Os esforços empreendidos nesta área têm subjacente a ideia de que «o
crescimento de uma profissão é largamente o reflexo das suas grandes
personalidades» (Peloubet, ap. Previts et al., 1990b, p. 137).
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O método biográfico constitui um precioso instrumento de reconstituição
histórica das elites da Contabilidade e procura determinar a influência de
indivíduos chave na formação dos princípios, das práticas e das instituições
de contabilidade, através da revisão e análise de documentos originais como a sua correspondência pessoal, trabalhos publicados, discursos e outro
material de arquivo - e da identificação dos principais factores influentes no
seu pensamento - como o ambiente familiar, a educação e formação escolar,
as instituições sociais, as ocupações, etc.
É um estudo que se esteia nas singularidades individuais, em que o singular
prevalece sobre o colectivo e o homem sobre a sociedade. A sua autenticidade
apoia-se numa única fonte – o sujeito – podendo tornar-se “frágil”, apesar de
empregar uma grande variedade de materiais primários e secundários.
É no âmbito dos estudos biográficos que surgem os estudos prosopográficos,
envolvendo a análise das características de um grupo, social ou profissional,
de actores históricos através de um estudo colectivo das suas vidas.
Mediante a detecção de propriedades como as origens sociais e familiares,
percurso profissional, ligações políticas e religiosas e acumulação de riqueza
do grupo é possível «definir o tipo social do profissional da Contabilidade
e/ou caracterizar os diferentes tipos que frequentam o “mundo da
contabilidade”» (Sousa, 1999, p. 365).
Exemplos de biografias ou estudos/notas biográficos de contabilistas
portugueses incluem os de Cabral de Mendonça (António Pires Caiado,
1998), Gonçalves da Silva (Rogério Fernandes Ferreira, 1990; Hernâni
Carqueja, 2002), Jaime Lopes Amorim (Guilherme Rosa; Rogério Fernandes
Ferreira, 1993), Martim Noel Monteiro (José Fernandes de Sousa, 1999;
Hernâni Carqueja, 2003), Ricardo José de Sá (Hernâni Carqueja, 2000;
Hernâni Carqueja, 2002), José António Sarmento (Hernâni Carqueja, 2003)
e Afonso Pequito (Hernâni Carqueja, 2002).
História do Pensamento Contabilístico
A investigação na área do desenvolvimento do pensamento, tal como no
campo do pensamento económico, procura identificar, articular e explicar o
papel que os indivíduos, instituições e ideias desempenharam no
desenvolvimento e na disseminação do conhecimento, com o objectivo de
melhorar o entendimento do processo de ensino, da investigação e da prática
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de uma disciplina em resposta a alterações no ambiente (Previts, et al.,
1990b, p. 140).
Numa perspectiva contabilística, o potencial deste tipo de investigação
reside na identificação das inter-relações entre indivíduos, tecnologia,
conceitos e práticas legais e económicas e na demonstração das
metamorfoses nelas provocadas ao longo dos tempos pelo desenvolvimento
do conhecimento.
Os trabalhos realizados na área do desenvolvimento do pensamento podem
ser dirigidos para períodos ou circunstâncias específicos e podem ter como
objecto de estudo conceitos contabilísticos, pretendendo-se neste caso definir
o seu âmbito ou o que os justifica; e explicar a sua justificação e evolução.
São exemplos de realizações nesta área trabalhos como: Doutrinas
Contabilísticas, de Gonçalves da Silva (1959); A Escola do Porto e a Teoria
da Contabilidade, de Hernâni Carqueja (1997); Antecedentes Históricos dos
Princípios Contabilísticos, de António Paiva Martinho (2000); Evolução do
Pensamento Contabilístico nos Séculos XV a XIX, de Maria da Conceição
Marques (2000); Breve Histórico da Doutrina Neopatrimonialista, de
Yumara Vasconcelos (2002); Resenha Histórica da Ciência Contabilística, de
Teixeira da Silva (2001) e A Influência da Teoria Positiva de Dumarchey na
Estruturação do Pensamento Contabilístico Português, de José Marques de
Almeida e de Maria da Conceição Marques (2001).
História Geral
Esta área distingue-se da anterior porquanto adopta uma extensa
perspectiva temporal, incidindo sobre temáticas como a prática num
determinado país, o desenvolvimento da profissão contabilística duma nação
ao longo dos séculos, ou a progressão de um sector da disciplina como a
Contabilidade de custos (Previts et al., 1990b, p. 142).
Como exemplos de trabalhos de autores portugueses, nesta linha, destacamse: Pequena História da Contabilidade, de Martim Noel Monteiro (1979);
Bosquejo duma sucinta história da Contabilidade em Portugal, de Gonçalves
da Silva (1983/4); Um contributo para a história da contabilidade em
Portugal (Séculos XIV a XVII), de Armandino Rocha e Delfina Gomes (2002);
A Contabilidade Pública em Portugal – Origens, de Manuel Benavente
Rodrigues (2002) e Contabilidade, Capitalismo e Democracia, de Hernâni
Carqueja (2003).
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História Institucional
Investiga a experiência pretérita das instituições, entendendo-se por
instituição tanto os organismos ou entidades, como as leis, costumes,
profissão, organização ou outro ente instituído.
A avaliação e análise do ambiente social e político das instituições
constituem importantes dimensões neste tipo de estudos, que requerem a
análise de registos, correspondência, memorandos, relatórios internos,
minutas e audiências de comissões e conselhos (Previts et al., 1990b, p. 139).
As histórias institucionais podem ser desenvolvidas por historiadores
participantes ou não participantes, configurando o primeiro caso um
autêntico exercício de evocação por parte do autor. O cuidado a ter com este
tipo de estudos advém do facto do historiador ser um observador
participante, podendo deixar-se influenciar por grupos dominantes e, assim,
não alcançar o grau de distanciamento necessário relativamente aos
acontecimentos e realizações que está a narrar, o que se materializa em
relatos lisonjeiros e posições menos críticas. Acresce que os trabalhos desta
natureza são geralmente patrocinados pela instituição objecto de estudo, o
que torna mais remota a possibilidade de objectivação.
À referida limitação, acresce a potencial “sobrevivência selectiva” de fontes
de arquivo incompletas ou que não representam fidedignamente os registos
originais. De facto, a insensibilidade e o descuido relativamente a estes
documentos, que constituem a mais importante fonte da história de uma
empresa, conduzem, frequentemente, ao seu incorrecto armazenamento, ao
seu desaparecimento em trânsito ou ainda à sua destruição propositada. Em
última instância, o historiador terá que recorrer aos trabalhadores que têm
por hábito preservar a correspondência bem como qualquer documento e
publicação interna da empresa.
Os trabalhos divulgados em Portugal até ao momento, enquadráveis na
categoria em epígrafe, dão ênfase às primeiras instituições de ensino da
Contabilidade, à organização profissional dos contabilistas e ao
aparecimento de publicações profissionais. São exemplos: A Aula do
Comércio: Primeira Escola de Gestores em Portugal, de Fernando da
Conceição Lopes (1992); Centenário (1902-2002) da Escola Prática
Comercial Raul Dória, de Joaquim da Cunha Guimarães (2002); Aula do
Comércio: Primeiro Estabelecimento de Ensino Técnico Profissional
Oficialmente Criado no Mundo?, de Lúcia Rodrigues, Delfina Gomes e
Russel Craig (2003); Extinção do Erário Régio em 1832, de Manuel
Benavente Rodrigues (2000) e As Associações e as Revistas de Contabilidade,
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de Hernâni Carqueja (2002).
História Crítica
Na “História crítica”, a contabilidade é interpretada como uma actividade
social e política em si mesma, reflectindo e influenciando, simultaneamente,
os seus ambientes económico, institucional, político e social. A dimensão
relacional sob a qual a contabilidade é perspectivada - como fenómeno
reflectivo e como promotora de relações organizacionais e sociais – supõem o
reconhecimento da capacidade da Contabilidade na modelação do seu
ambiente ao invés de simplesmente o reflectir (Previts et al., 1990b, p. 143).
Esta área será objecto de aprofundamento em ponto ulterior deste trabalho.
Bases de dados – Cronologias, bibliografias e taxonomias
Este tipo de investigação histórica tem por finalidade fornecer informação
sobre fontes/referências, constituindo um repositório indispensável para
posteriores investigações.
O enquadramento social e económico dos fenómenos ou a interpretação ou
explicação das principais influências e causas, modelos ou estruturas estão
ausentes deste tipo de investigação, que procura disponibilizar informação
descritiva sobre acontecimentos, datas, períodos, conjuntos de artigos,
fontes, e publicações afins (Previts et al., 1990b, p. 144).
São exemplos de bases de dados/resenhas bibliográficas publicadas na
literatura técnica de Contabilidade portuguesa: Elementos para a História
da Contabilidade, de Arnaldo Nunes (1933); Ensaio de Bibliografia
Portuguesa de Contabilidade e Para a História da Contabilidade Pública em
Portugal, de Rodrigo Everard Martins (1944 e 1963, respectivamente) e A
Contabilidade e a História Económica, de Moses Bensabat Amzalak (1943).
Historiografia
A historiografia «é o estudo da escrita da história; inclui a teoria, a
metodologia e o desenvolvimento da escrita histórica» (Previts et al., 1990b,
p. 144). Conforme referem Goodman e Kruger (1988) (ibid.) «inclui o corpo
de técnicas, teorias e princípios associados à investigação histórica. É uma
forma de abordar dados e fontes, colocar questões e edificar teorias com base
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em evidências».
À semelhança da Histórica crítica, é uma área que não tem merecido a
devida atenção dos historiadores de Contabilidade portugueses. O artigo de
maior relevo sobre esta temática é da autoria do historiador espanhol
Esteban Hernández Esteve e intitula-se Historia de la Contabilidad: Pasado
Rumbo al Futuro (1997).
6. As Novas Tendências da História da Contabilidade
6.1. As origens da “Nova História da Contabilidade”
O aparecimento da “Nova História da Contabilidade” foi o acontecimento
mais marcante no seio desta disciplina e a ele se deve grande parte do auge
que ela hoje experimenta.
De acordo com Hernández Esteve (1997, p. 615), a “Nova História da
Contabilidade” teve como factores impulsionadores o aparecimento de uma
abordagem alternativa de investigação contabilística - o chamado
paradigma crítico - e a aceitação, gradual, das novas ideias epistemológicas
e metodológicas introduzidas no seio da disciplina de História pelos
partidários da construção de um novo modelo de investigação histórica, que
destronasse e fizesse desaparecer os postulados seguidos pelos
“historiadores tradicionais”.
A sua génese formal inscreve-se na publicação, na revista Accounting,
Organisations and Society, dos artigos “The Normative Origins of Positive
Theories: Ideologies and Accounting Thought”, de Anthony M. Tinker,
Barbara D. Merino e Marilyn Neimark, e “On Trying to Study Accounting in
the Contexts in Which it Operates”, de Anthony G. Hopwood, em 1982 e
1983, respectivamente. A confirmação definitiva da sua existência ocorreria
em 1991, aquando da publicação, na mesma revista, do artigo “The New
Accounting History: An Introduction”, de Peter Miller, Trevor M. Hopper e
Richard C. Laughlin (ibid., pp. 623-4).
Os desenvolvimentos no domínio da História da Contabilidade estão
intimamente relacionados com os acontecimentos verificados nos anos
sessenta no seio da disciplina de História Geral, muito embora a rivalidade
entre a “Nova” e a “Velha História” remonte a 1929, ano da publicação, em
França, de “Annales d’Histoire: Economique et Sociale” por Lucien Febvre e
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Marc Bloch e por volta da mesma altura, em Inglaterra, da “Economic
History Review”.
De acordo com Peter Novick (ap. Miller et al., 1991, pp. 396-7), desde a
década de 60 que a principal corrente da história americana se encontra
num autêntico estado de turbilhão. Grande parte das mudanças que se
verificam actualmente na História da Contabilidade, assolaram a profissão
histórica americana durante cerca de três décadas.
Nos anos 60 e 70, à medida que a noção de “progresso” se tornou alvo de
contestação, a “questão da objectividade” passou a estar na ordem do dia em
inúmeras disciplinas, incluindo a de História. As suas principais
componentes, designadamente:
¯
o compromisso com a realidade do passado e com a verdade
histórica inerente àquela realidade;
¯
uma nítida distinção entre conhecedor e conhecido, assim como
entre factos e valores, história e ficção;
¯
uma noção de que os factos históricos são anteriores e
independentes da interpretação;
¯
uma visão de que a verdade histórica é unitária ao invés de
perspectiva (assente em várias perspectivas);
¯
em suma, a ideia de que se deve relatar o passado “tal como ele
verdadeiramente
aconteceu”
(um
projecto
elaborado
e
implementado no final do século XIX e princípio do século XX),
começaram a ser objecto de erosão em inúmeras frentes (Miller et al., ibid.).
A partir da década de 1960 assistiu-se igualmente à emergência de novas
formas de História que vieram desafiar a “História Tradicional” e que
ficaram conhecidas por “Nova História Social”. Estas não rejeitavam os
métodos da “História Tradicional”, apenas as suas conclusões,
redireccionando o ênfase do político e do económico para o social, i.e.,
reconhecendo a existência de outras classes sociais para além das elites
política e económica (Funnel, 1996, p. 42). O âmbito da História foi alargado,
passando a comportar aspectos sociais, culturais e intelectuais.
Embora a História da Contabilidade tenha percorrido uma trajectória de
desenvolvimento semelhante, os estádios por que passou foram comprimidos
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e em alguns pontos sobrelevam na “Nova História da Contabilidade” com a
presença de uma amálgama de diversos estilos de História que perseguem a
“História contextualizada”, nos quais se incluem, entre outros, historiadores
de Contabilidade como Christopher Napier (Universidade de Southampton),
Trevor Hopper (Universidade de Manchester), Peter Armstrong
(Universidade de Sheffield) e Anthony Hopwood (London School of
Economics and Political Science).
6.2. Contabilidade Crítica e História da Contabilidade
A ascensão da investigação “alternativa” ou centrada no paradigma crítico,
ocorrida nas últimas décadas em resposta à hegemonia do paradigma
positivista - assim chamado, segundo Hernández Esteve (1997), porque
recorre a dados reais, positivos, perceptíveis de forma directa e objectiva constitui um dos traços mais surpreendentes e importantes da
Contabilidade académica nos últimos anos. O paradigma crítico insere-se
numa corrente que Mattessich designa “Behavioural and organizational
accounting” e que Hernández Esteve (ibid., p. 613) traduz em espanhol como
“Estudio de las conductas sociales relacionadas com la contabilidad y de ésta
en tanto elemento de organizador e configurador de la sociedad”, não
constituindo, portanto, “um estudo da contabilidade propriamente dita, mas
das relações sociológicas que a contabilidade produz na sua envolvente”.
Laughlin (1999, pp. 73-74), define Contabilidade crítica como «a
interpretação crítica do papel, dos processos e práticas de contabilidade e da
profissão contabilística no funcionamento da sociedade e das organizações
com uma intenção de usar essa interpretação para empreender na mudança
(quando apropriada) desses processos, práticas e da profissão».
Segundo o autor, esta definição encerra as principais características da
Contabilidade crítica:
1. a Contabilidade crítica é sempre contextual, o que significa que a
Contabilidade é um fenómeno abrangente que não se dissocia de
marcos políticos, sociais e económicos precisos, pelo que carece de ser
interpretado neste contexto;
2. a interpretação tem sempre um objectivo que é, neste caso, o de
possibilitar a realização de um processo de avaliação e subsequente
mudança (quando apropriada);
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3. a Contabilidade crítica preocupa-se com o funcionamento da
profissão contabilística, das práticas e dos processos contabilísticos
tanto ao nível macro da sociedade, do governo, normativo e
profissional, como ao nível específico das instituições e das
organizações;
4. a Contabilidade crítica requer “empréstimos intelectuais” de outras
disciplinas (como destaque para a Sociologia, Antropologia,
Economia, História da Ciência, Teoria das Organizações, ...) que lhe
fornecem as perspectivas teóricas e metodológicas necessárias para a
análise da multidimensionalidade dos fenómenos em questão.
Os investigadores críticos utilizam como referência uma dentre várias
perspectivas que se inspiram no pensamento de teóricos sociais como
Foucault, Derrida e Latour (de nacionalidade francesa) e Marx, Adorno e
Habermas (de nacionalidade alemã), não podendo as perspectivas utilizadas
deixar de influenciar a selecção, análise e interpretação que aqueles fazem
dos factos. Daí que, nos últimos anos, se tenha vindo a assistir a um
crescente, interessante e acesso debate em torno dos teóricos cujo
pensamento deve fazer parte do projecto crítico de Contabilidade e da forma
como estas perspectivas devem coexistir e cooperar. Este florescimento de
saber crítico estendeu-se à História da Contabilidade, assinalando o
aparecimento da infelizmente (Laughlin, 1999, p. 74) ou proeminentemente
(Fleischman et al., 1996, p. 66) denominada “Nova História da
Contabilidade, que, como já foi assinalado, se caracteriza por «uma
pluralização de metodologias» e um «leque heterogéneo de abordagens
teóricas» (Miller et al, 1991).
De acordo com Merino (1998), o recente interesse na investigação históricocontabilística, que foi rotulado de “Nova História”, espelha claramente o
impulso que o pensamento crítico trouxe ao domínio da análise genética da
disciplina, sendo actualmente encarado como uma fonte de oportunidades
por uma parcela significativa dos historiadores de Contabilidade, que
consideram a investigação histórica uma componente essencial da
investigação crítica.
Desenvolvendo-se essencialmente em dois domínios - a escrituração por
partidas dobradas e as origens da Contabilidade de custos – este tipo de
investigação «tem procurado questionar a legitimidade das instituições
existentes, a distribuição de poder e o papel da contabilidade em sustentar e
eternizar formas de discurso capitalista dominantes» (Funnel, 1996, p. 38)
utilizando como referência um dos dois paradigmas predominantes –
Marxista e Foucaultiano.
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A Perspectiva Marxista/Processo de Trabalho
As histórias de Contabilidade de influência marxista baseiam-se no
postulado de que a Contabilidade não é em si um elemento neutro ou
passivo, mas uma poderosa ferramenta utilizada na luta de classes para
apoiar e perpetuar o domínio capitalista (Hernández Esteve, 1997, p. 614;
Merino, 1998, p. 611).
Os historiadores contemporâneos que subscrevem este paradigma, embora
mantendo o contacto com a visão Marxista de conflito de classes, alargaram
o âmbito da sua investigação, por forma a incluir os suportes social, cultural
e político que definem as relações industriais (Fleischman et. al., 1996, p.
326).
Associada a esta perspectiva historiográfica surge a escola “Processo de
Trabalho”, que representa uma actualização dos escritos de Marx aos novos
estádios de desenvolvimento capitalista. Os teóricos pertencentes a esta
tradição, entre os quais se incluem muitos Marxistas confessos, consideram
que o poder se encontra embutido nas estruturas capitalistas.
Críticos em relação às teorias Neoclássicas e Foucaultianas, que admitem a
neutralidade da Contabilidade enquanto sistema de registo, os historiadores
de Contabilidade marxistas defendem que a mesma oscila entre «um método
“para apoiar grupos de interesse específicos” e uma “arma ideológica” na luta
de classes pela distribuição da riqueza» (Tinker et al., 1982, 1991, ap.
Fleischman et al., 1996, p. 327). O trabalho de Hopper e Armstrong (1991),
que examina os mecanismos de controlo de trabalho americanos no final do
séc. XIX, apresenta conclusões que dimanam desta abordagem. Nele, os
autores argumentam persuasivamente que os desenvolvimentos da
Contabilidade de custos se encontram arreigados em lutas que se centram
no controlo dos processos de trabalho, relacionando-as quer com a destruição
da subcontratação interna e do controlo da produção pelos praticantes do
ofício nas fábricas primitivas, quer com outras técnicas correntes e
ideologias de controlo – como sejam o advento da gestão científica, os
acordos entre sectores trabalhistas e corporações, etc.
Perspectiva Foucaultiana
O filósofo francês Michel Foucault tornou-se a principal figura de referência
para um grupo substancial de investigadores que defende que os primeiros
desenvolvimentos da Contabilidade, nomeadamente de gestão, não são
apenas um reflexo da ascensão do capitalismo ou da industrialização, da
propriedade ou das estruturas organizacionais. Há que ponderar, segundo
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Stewart (1992, p. 61), que «a emergência e o funcionamento da contabilidade
nos seus diversos contextos é um fenómeno complexo, devido à interacção de
múltiplas influências».
A atracção dos historiadores e teóricos de Contabilidade por Foucault
prende-se com a possibilidade de aplicação à Contabilidade, quer da sua
matriz analítica, quer do seu esquema teórico, aspectos que lhes permitem,
respectivamente, abordar os temas investigados e problematizar e
questionar a Contabilidade, afastando-os assim de uma visão
unidimensional do seu desenvolvimento.
O trabalho de Foucault pode ser dividido em duas etapas cronológicas
(Stewart, 1992, p. 62): a primeira compreende uma serie de casos de estudo
históricos que o teórico francês denomina de “arqueologias” e que respeitam
às circunstâncias que conduziram ao aparecimento de uma multiplicidade
de ciências humanas modernas; a segunda assenta na noção de “genealogia”.
Nesta fase, Foucault mantêm o interesse pelas ciências humanas – pela
arqueologia das estruturas do conhecimento - embora atribua maior
importância ao papel estratégico destes conhecimentos em determinados
campos da administração e da política públicas e, em particular, ao papel
constitutivo que o poder desempenha na construção social do conhecimento.
A abordagem genealógica, que analisa as inter-relações entre poder e
conhecimento, constitui uma das principais contribuições de Foucault para a
filosofia da História. Na perspectiva de Foucault, o poder é encarado, não
como uma actividade de subjugação, repressiva, que tem como finalidade
suprimir os interesses dos subordinados, mas como algo produtivo a supor a
produção de conhecimento para o seu exercício, sendo assim possível
conceber regimes de poder-conhecimento geradores de valores desejáveis
para o bem comum, como sejam a motivação, a ordem e a regulamentação
(Fleischman et al., 1996).
O paradigma disciplinar estabelecido pelo “teórico do poder” - como lhe
chamou Habermas - para relatar a história de instituições panópticas, como
asilos, prisões, quartéis, escolas e outras parece ter verosimilhança com as
metamorfoses no sistema fabril, pelo que tem sido amplamente utilizado na
historiografia de Contabilidade de gestão. No entanto, de acordo com
Fleischman et al. (ibid., p. 325), a maioria dos investigadores de
Contabilidade que adopta a abordagem histórica de Foucault não está
particularmente interessada nas origens da Contabilidade de custos per se,
mas em conceitos tão gerais como os de poder e controlo e o seu
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desenvolvimento e manifestação no contexto da Contabilidade.
As histórias de Contabilidade de inspiração “Foucaultiana” não constituem
descrições neutras, objectivas, do passado da Contabilidade. Elas são
sobretudo histórias do presente que, inserindo-se na tradição do pensamento
crítico, procuram mostrar a Contabilidade como uma forma de “poder
disciplinar” – e não de “poder soberano” - sendo este definido como aquele
que “actua por meio de visibilidade geral” e que “permite vigiar sem ser
visto”, i.e., o poder é exercido essencialmente através da observação
(Stewart, 1992, p. 62). O sistema de Contabilidade de gestão, ao permitir
observar o funcionamento da totalidade da organização e assegurar, de
forma permanente, a vigilância e controlo do comportamento e do
rendimento dos seus trabalhadores, proporciona aos Foucaultianos um
exemplo patente de aplicação daquele paradigma ao contexto da
Contabilidade (Hernández Esteve, 1997 e 1998). Nesta perspectiva, a
Contabilidade deixa de ser um mero sistema de apoio à tomada de decisão
ou ao controlo da gestão e passa a comportar uma nova dimensão: a de
instrumento de vigilância.
A análise das relações poder-conhecimento no contexto da História da
Contabilidade foi desenvolvida por autores como Hoskin e Macve, Loft,
Miller e O’Leary e Hopwood (ap. Fleischman et al., 1996; Napier, 1989;
Stewart, 1992). Examinando a contabilidade de custos da empresa
Springfield Armory, em meados do séc. XIX, Hoskin e Macve (1986,1988)
(ap. Fleischman et al., 1996; Merino, 1998), ilustraram como ela constituía
um poderoso instrumento para a gestão, ao criar novas categorias que
tornavam visíveis as ineficiências dos indivíduos, e como era irrelevante
para a tomada de decisão per se. Este novo tipo de “vigilância hierárquica”
servia para transmitir aos trabalhadores a ideia de que todos os seus
esforços produtivos se encontravam normalizados, sistematizados e
escrutinados, ou seja, que a mão de obra era “calculável”.
Miller e O’ Leary (1987), por seu turno, associaram o desenvolvimento das
técnicas de custeio padrão e orçamentação, nos primeiros decénios do século
XX, não a um avanço no refinamento e fiabilidade dos conceitos e técnicas
contabilísticas, mas a uma forma da gestão efectivar o exercício do poder
sobre o trabalhador enquanto indivíduo, criando assim uma entidade mais
manobrável e eficiente, i.e., governável.
7. Aspectos Distintivos da “Nova História da Contabilidade”
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face à “História da Contabilidade Tradicional”
O debate epistémico e metodológico dos últimos anos em torno da
experiência humana em geral, que se estendeu à História da Contabilidade,
manifestou-se na utilização de novas correntes historiográficas cujos
enfoques redundam, invariavelmente, críticos em relação à “História
Tradicional”. Estas críticas prendem-se essencialmente com questões
ontológicas e epistemológicas, que levaram os novos historiadores de
Contabilidade a rejeitar, a diversos níveis, as preocupações tradicionais,
embora não necessariamente os métodos da prática histórica (Funnel, 1996,
p. 41).
As características distintivas da “Nova História da Contabilidade” foram
sumariadas por diversos historiadores. Yannic Lemarchand (1994, ap.
Hernández Esteve, 1997 e 1998) resume-as à perda de confiança na
possibilidade de conseguir objectividade no estudo e descrição de
acontecimentos históricos e ao abandono de uma espécie de “Darwinismo”
historico-contabilístico, que consiste em acreditar que a Contabilidade, tal
como outras actividades humanas, está sujeita a um processo mais ou
menos linear de progresso contínuo, motivado pela necessidade de se
adaptar às exigências da sua envolvente.
Carnegie e Napier (1996, pp. 7-8), por seus turno, identificam como traços
comuns do tratamento teórico-científico da “Nova História” os seguintes:
¯
Ênfase na importância de perceber a Contabilidade como uma
prática social, entre muitas, e na necessidade de a interpretar no
contexto em que opera como um fenómeno localizado no tempo e no
espaço. Tal significa que a Contabilidade deve ser encarada como
um instrumento de domínio e de poder e não como um corpo de
ideias e técnicas sem valor, com carácter meramente probatório.
¯
Rejeição de uma visão “Whig” da História como a narrativa de um
progresso inexorável do “primitivo” para o “sofisticado”, com o
triunfo do presente a ocultar os fracassos do passado. Os “novos
historiadores” revelam algum cepticismo em relação ao emprego de
conceitos como os de “evolução”, “progresso” e “origens” nas suas
análises.
Simultaneamente, os autores adiantam que «nos seus escritos
historiográficos, os “novos historiadores” têm tendência para construir uma
caricatura “tradicionalista” que descontextualiza a contabilidade, que exalta
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o progresso denegrindo subtilmente o passado, que explica tudo por
referência à economia neoclássica, que na pior das hipóteses envereda numa
“caça ao tesouro” apenas para estabelecer o mais velho, o mais primitivo, o
mais estranho, e que na melhor das hipóteses encara o passado unicamente
pelo perspectiva do presente» (ibid., p. 8).
Para Miller et al. (1991, p. 399), o principal aspecto distintivo da “Nova
História da Contabilidade” reside «no seu foco nas mudanças verificadas nas
formas de conhecimento ou perícia que caracterizam a Contabilidade num
dado momento e num determinado contexto social, seja num cenário
cultural nacional particular ou mais localizado (...) A história da
contabilidade terá um impacto mais abrangente e vasto, na medida em que
possa demonstrar como o aparecimento e o funcionamento da contabilidade,
como um conhecimento, corpo de perícia ou saber perfeitamente distintivo é
formado e transmitido com o potencial de moldar e transformar os tipos de
relações sociais que nos cercam, seja isto numa empresa, quando visitamos
um hospital ou o nosso médico de família, ou de uma forma geral, na vida
pública».
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Napier (1989, p. 244) aponta como
diferença basilar entre a “História Tradicional” e a “História da
Contabilidade Contextualizada”, a mudança de foco da Contabilidade
enquanto técnica, para a Contabilidade enquanto elemento constituinte e
activo dos contextos social e organizacional.
Estas concepções da História assumidas pelos “novos historiadores”
levaram-nos a atribuir à “História Tradicional”, entre outros qualitativos, os
de “a-histórica” ou “presentista”, “reducionista” e “antiquária”.
A linha de pensamento que Napier (1989) caracterizou como
“contextualização da Contabilidade” (introduzida por Hopwood em 1983)
constitui a resposta dos “novos historiadores” à visão Whig e a-histórica em
que se alicerça a maioria das histórias de Contabilidade tradicionais, onde o
passado é encarado como uma sombra ou simulacro do presente. Baseia-se
no princípio de que «uma verdadeira abordagem histórica ao estudo de
qualquer disciplina significa inserir a disciplina no seu contexto» (Skinner,
1969, ap. Stewart, 1992, p. 58), o que envolve a conscientização de que os
fenómenos não se geram isoladamente, mas que inserem num contexto que
os explica e condiciona. Na esfera da História da Contabilidade, implica
atribuir aos contextos social, político e ideológico da Contabilidade idêntica
ou maior importância do que aos contextos económico e técnico, o que
permitirá libertar o seu estudo dos «constrangimentos do presente» (Stewart,
1992, p. 58). Esta abordagem declina a visão de que a Contabilidade vive um
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processo de mudança, ou mesmo de aperfeiçoamento, motivado pela
necessidade de se adaptar a diversas necessidades empresariais e
organizacionais. Em detrimento das mudanças de cariz evolutivo, os “novos
historiadores” preferem privilegiar as situações de quebra, de interrupção,
de retrocesso (Lemarchand, ap. Hernández Esteve, 1997 e 1998). O processo
de adaptação da Contabilidade às exigências da sua envolvente não é por
eles considerado tão relevante como a forma como a Contabilidade ajudou e
continua a ajudar a moldar os contornos de uma realidade social dinâmica,
contribuindo assim para o fomento das transformações sociais que se vão
operando no mundo.
Sendo “a tentativa de compreender a Contabilidade no contexto em que
actua” (Hopwood, 1983), apontada como um dos aspectos positivos da “Nova
História da Contabilidade”, não é, todavia, exclusiva desta escola. Porém, os
“novos historiadores” não hesitam em rotular a abordagem tradicional –
conhecida por Neoclassicismo ou racionalismo económico - de “reducionista”,
uma vez que considera apenas os contextos económico e técnico da
Contabilidade, como se ela se “desenvolvesse”, “progredisse” e
“transformasse” por forma a satisfazer somente as necessidades de
informação racional dos tomadores de decisão como implícito nos modelos
económicos.
Por serem originários de um ambiente em que a Contabilidade é
considerada uma tecnologia indispensável à racionalidade das decisões ou
de uma área de formação onde sofreram uma forte exposição à teoria
económica, i.e., Contabilidade ou Economia, os “historiadores tradicionais”
entendem que o desenvolvimento da Contabilidade deve e pode ser explicado
por referência às alterações no contexto económico, mormente as
relacionadas com a necessidade economicista de reduzir os custos de
transação ou incrementar a aderência entre a estratégia organizacional e as
exigências ambientais. Os praticantes da “Nova História da Contabilidade”,
porquanto encaram a Contabilidade predominantemente como um fenómeno
cultural, e não como uma técnica ou ferramenta cujas características são
neutras, senão benignas, preferem concentrar-se na estrutura e no emprego
da informação contabilística para controlo e mesmo coerção, do que
considerá-la um mero input num processo de tomada de decisão racional
(Carnegie e Napier, 1996, pp. 15-16). Assim, imputam a sua evolução a
outras causas concorrentes, tais como (Hernández Esteve, 1996, p. 62) o
desenvolvimento do poder administrativo, a profissionalização da
Contabilidade, o papel do Estado ou a normalização e consolidação das
técnicas educativas.
Acresce que a relevância da teoria económica na explicação de questões
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contabilísticas não é igualmente reconhecida pelo crescente número de
historiadores originários de disciplinas tão variadas como a Sociologia, a
Filosofia, a Psicologia e até a História, uma vez que começou a ser associada
a uma abordagem metodológica específica - a abordagem “científica” ou
“positiva”2. Como sugere Parker (1999, pp. 14-15), ao ficarem “presos” no
modo “presentista/cientista”, os investigadores de Contabilidade e Gestão
tornaram-se «peritos em estabelecer “cientificamente” respostas para “o que é”
e em prever as consequências da confluência de variáveis rigorosamente
definidas». A emergência de metodologias e perspectivas teóricas
alternativas veio “libertá-los” daquela rigidez, permitindo-lhes abordar
temáticas até então ignoradas, como sejam «a crítica às estruturas,
estabelecimento de normas e códigos de ética da profissão contabilística;
género na contabilidade; estratégia e divulgação social e ambiental; gestão
do sector público e mudança contabilística; comunicação contabilística;
contabilidade e gestão de sectores sem fins lucrativos; contabilidade,
literatura e as artes, e muito mais».
O diálogo entre “historiadores tradicionais” e “novos historiadores” centra-se
com frequência naquele que é tido como o principal ponto de divergência
entre as duas “correntes” - as respectivas posições em relação aos “factos” da
História. Segundo Stanford (1987) (ap. Fleischman et al., 1996b., p. 61), os
historiadores que encaram a História como uma sucessão de eventos tendem
a adoptar uma visão positivista dos testemunhos3, presumindo que os factos
falam claramente, que são inflexíveis e que podem ser conhecidos, pelo que
devem ser acumulados até que toda a verdade e a interpretação correcta
surja. Justamente por se preocupar excessivamente com os factos, ignorando
que a sua acumulação, por si só, não fornecerá explicações adequadas de
como e porquê as práticas contabilísticas se desenvolveram de determinada
maneira (Miller e O’Leary, 1987), a “História Tradicional” vem sendo
apelidada de “antiquária” (Funnel, 1996; Hernández Esteve, 1996; Stewart,
1992).
O debate sobre a compilação de factos, que Stewart (1992, p. 59) reconhece
não ser uma actividade neutra e indiscutível, não é recente, tendo as suas
origens na literatura histórica. Carr (1964, ibid.) refere-se a «uma tensão
entre o historiador e os factos da história. A tensão, por um lado, de deixar os
2
Esta abordagem tem como ponto forte a capacidade de ser testada contra dados
empíricos e caracteriza--se pelos, por vezes sofisticados, testes estatísticos de
hipóteses derivados de modelos contabilísticos essencialmente económicos cujo
objectivo é prever e explicar a prática contabilística.
3
Os testemunhos podem definir-se como acontecimentos passados que ilustram
ou explicam outros acontecimentos.
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factos falar por si e, por outro lado, a necessidade de oferecer alguma
explicação do passado».
Os “historiadores tradicionais” reivindicam extrair dos testemunhos os
factos da história e deixar-se surpreender pela história que emerge desses
factos. Esta pretensão levou os “novos historiadores” – que encaram a
narrativa como um discurso com interesse, ao invés de desinteressante – a
qualificar a “Historiografia Tradicional” de “neutra”, “desinteressante”,
“factual” (Parker, 1999, p. 22). Inspirados no modelo das ciências sociais,
cujo propósito é testar leis gerais por aplicação a eventos específicos, os
“novos historiadores” reclamam que sejam os acontecimentos históricos a
comprovar asserções estabelecidas a priori, i.e., usam o passado para
compreender o presente. Nesse sentido, procuram (Parker, ibid.)
«descodificar as mensagens latentes, até agora por desvendar nos relatos
narrativos do passado» ao passo que, encaram «a verdade como sendo
dependente da perspectiva teórica ou filosófica expressa ou implicitamente
adoptada pelo historiador». Funnel (1996, 1998) aponta mesmo uma
tendência por parte dos “novos historiadores” de Contabilidade para
reexaminarem as narrativas históricas existentes através de paradigmas
alternativos, com o intuito de demonstrarem que a partir do mesmo
testemunho se podem obter conclusões diferentes, e para analisarem fontes
primárias com o objectivo de construírem “contranarrativas” que
controvertem as narrativas precedentes.
O facto da “Nova História” admitir explicitamente a natureza “simulada” da
História é identificado por Chua (1998, p. 618) como um dos principais
aspectos que a diferencia da “História Tradicional”. Como sugere o autor
(ibid.), apesar de terem há muito reconhecido a natureza incompleta dos
arquivos históricos, o inevitável exercício de julgamento e privilégio
interpretativo por parte do historiador, e a necessidade de se sujeitarem a
essa subjectividade, os “historiadores tradicionais” alimentam eternamente
a esperança de descobrir a verdade histórica nos factos documentados.
Contrariamente, os “novos historiadores” consideram a verdade contingente,
parcial, e tendem a escarnece-la como objecto do seu trabalho, pelo que, de
acordo com Chua (ibid.), estão mais dispostos a eleger, em substituição da
verdade com V maiúsculo, a noção de plausibilidade.
A dissonância de opiniões entre “historiadores tradicionais” e “novos
historiadores” no que concerne aos factos é ainda acentuada pelo que os
“novos historiadores” designam de “selectividade” inerente descoberta dos
factos e ao que alegam ser a desonestidade dos “historiadores tradicionais”
ao disfarçar tal selectividade. Admitindo o seu cepticismo em relação aos
factos, os “novos historiadores” defendem que o acto de escolher, dentre um
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vasto universo de candidatos, factos que entretanto já poderiam ter sido alvo
de selecção por outros actores históricos, torna a História da Contabilidade
parcial e enviesada e, logo, indigna de esforço (Funnel, 1996, pp. 48-9).
Destarte salientam que os registos podem ser um instrumento de
desigualdades, passível de favorecer apenas os interesses das elites
dominantes. Bryer (1991) (ap. Funnel, 1996, p. 49) chega mesma a
conjecturar que «em algumas circunstâncias pode ter havido uma tentativa
continuada e deliberada de sanear o registo histórico através da destruição e
selecção de documentos pelos descendentes das elites governantes». Neste
caso, esclarece Funnel (ibid.) a parte do passado que não ficou registada é
silenciada para sempre; é como se os não poderosos em tempo algum
tivessem existido, jamais lhes será dada visibilidade.
Pelos motivos expostos, existe uma maior prudência entre os “novos
historiadores” relativamente à primazia dos registos primários, desde
sempre o material de eleição dos “historiadores tradicionais”. No entanto, as
divergências apontadas não eliminam o respeito que os adeptos de ambas as
correntes possuem pela investigação em arquivos, preservando este tipo de
investigação grande parte da sua lendária importância. Neste aspecto, a
diferença basilar entre “historiadores tradicionais” e “novos historiadores”, é
que, enquanto os primeiros entendem que a sua missão consiste na
descoberta, descrição e exposição dos factos, os segundos atribuem pouca
importância a esta fase da investigação, considerando que a sua missão se
deve centrar na interpretação e investigação dos factos, independentemente
destes terem sido investigados e expostos por eles próprios ou de terem sido
produto do esforço de outros historiadores.
8. Conclusão
Neste trabalho abordaram-se diversas questões atinentes à investigação do
passado da Contabilidade, dando-se especial ênfase às características
essenciais das principais correntes intervenientes no debate epistemológico
e metodológico mantido no seio das disciplinas históricas em geral e
recentemente propalado à História da Contabilidade. Tal alusão,
juntamente com a identificação e revisão das áreas temáticas em que se
decompõe a investigação histórica em Contabilidade, onde se apresentaram
diversos exemplos seleccionados do contexto português, procurou revelar o
enorme potencial e os desafios que a investigação nesta área do saber
encerra e assim, quem sabe, avivar o interesse pela mesma ou nela envolver
novos investigadores.
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Basta examinar o conteúdo das principais revistas da especialidade ou o
programa de um congresso – nacional ou internacional – sobre esta
temática, para comprovar a sua forte multidimensionalidade. A História da
Contabilidade pode consubstanciar-se em “pura” História empresarial, na
evolução da profissão contabilística e na sua progressiva institucionalização,
na narração da vida e obra das elites da Contabilidade, na evolução de
técnicas e conceitos contabilísticos específicos, no estudo da literatura
contabilística do passado, na análise histórico-comparativa de práticas,
normas, instituições e conceitos contabilísticos numa perspectiva
internacional, na revisão de métodos inovadores de condução e interpretação
da investigação histórica, etc.
As novas abordagens ao estudo e escrita da “História da Contabilidade”,
reunidas sob a designação de “Nova História da Contabilidade”, vieram
acentuar a interdisciplinaridade deste campo do saber. Um numero
substancial de “novos historiadores” de Contabilidade, na esteira da tradição
do pensamento crítico, intenta agora examinar as genealogias dos discursos
contabilísticos para evidenciar a sua mutabilidade em diferentes contextos
sociais e organizacionais e o seu papel como armas ideológicas em lutas em
torno da distribuição do rendimento e da riqueza (Tinker e Neimark, 1988).
Outros, mais moderados ou mais desligados dos problemas da sociologia
política, empregam teorias complexas (como a institucional, a da agência e
outras) para interpretar os acontecimentos que investigam (Hernández
Esteve, 2001).
A introdução de paradigmas explanatórios alternativos na História da
Contabilidade não tem sido pacífica, o que se constata pela rivalidade
existente entre os partidários das denominadas “História da Contabilidade
Tradicional” e “Nova História da Contabilidade”, ou, até, entre os que
subscrevem diferentes paradigmas pertencentes à mesma “corrente”
(Foucaultinos e Marxistas). O debate epistemológico e metodológico a que se
vem assistindo teve, no entanto, o mérito de revigorar e de engrandecer a
Historiografia de Contabilidade, revelando-lhe horizontes ainda não
explorados. Simultaneamente, obrigou os investigadores a reconsiderar
noções e práticas instituídas, necessitadas de alguma reflexão, incitando-os
a adoptar atitudes mais interpretativas aquando das suas investigações.
Pelos motivos traçados, e em conformidade com Hernández Esteve (1998 e
2001), os postulados da “Nova História da Contabilidade” devem ser
encarados numa óptica de complementaridade e de enriquecimento dos
velhos padrões e não como uma abordagem revolucionária que, buscando a
superioridade intelectual, procura rebaixar as realizações e métodos da
“História da Contabilidade Tradicional” - ainda que seja esse o espírito que
anima alguns adeptos mais radicais. Nesta linha de raciocínio, deverá ser
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respeitado qualquer trabalho que apresente novos factos, mesmo que apenas
os apresente e descreva, ou pelo contrário, somente interprete factos
expostos anteriormente, e não interpretados, ou interpretados de maneira
distinta. Nenhum trabalho deverá ser rejeitado ou considerado incompleto,
mesmo que não ofereça as interpretações, contextualizações e avaliações
teóricas desejadas. Se possuir qualidade e rigor científicos, a sua análise
poderá vir depois, do próprio ou de outro autor; o que é relevante é que os
factos tenham sido resgatados do esquecimento e que estejam ao dispor da
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