CULTURA Tema: Comida em Cena Pesquisador: Francis Vogner

Transcrição

CULTURA Tema: Comida em Cena Pesquisador: Francis Vogner
CULTURA Tema: Comida em Cena Pesquisador: Francis Vogner dos Reis Sinopse Se o cinema lida com o desejo do espectador, natural que a comida seja um dos elementos trabalhados em diversos filmes. A comida é personagem em filmes latino-­‐americanos de sucesso que a abordam pelo viés do desejo, da cultura e até da resistência política. Os filmes abordados no programa abrangem o tema de maneira ampla: Como água para Chocolate, de Alfonso Arau (México), Estômago, de Marcos Jorge, O mineiro e o Queijo, de Helvécio Ratton e Maus Hábitos, de Simon Bross (México). Apresentação dos filmes e das questões Como Água Para Chocolate (México, 1992), de Alfonso Arau Tita é vítima de uma tradição local que diz que a filha mais nova não pode se casar para que cuide da mãe viúva até sua morte. Nascida literalmente na cozinha enquanto a mãe cozinhava, ao crescer Tita se apaixona por Pedro que deseja se casar com ela. A mãe veta o matrimônio devido à tradição e sugere que Pedro se case com Rosaura, a filha mais velha. Pedro aceita para poder ficar perto da amada. Tita impedida de expressar seu amor de modo prático e claro, elabora pratos que transmitem aos degustadores seus sentimentos. O filme mecicano de Alfonso Arau tem a atmosfera da literatura fantástica latino-­‐americana e foi um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema mexicano. Maus Hábitos (México, 2007), de Simon Bross O filme do mexicano Simon Bross tem abordagens variadas para a questão da comida. Há a jovem freira Matilde que inicia um jejum místico para impedir uma inundação. Há também Elena uma mulher bela e magra, que tem vergonha do peso de sua filha, Linda, e pretende fazer de tudo para que ela emagreça até sua 1ª comunhão. Já o pai de Linda, Gustavo, se apaixona por uma estudante apelidada de Gordinha, também apaixonada por comida. O filme trata da comida pelo viés da paixão, seja a paixão mística de Matilde, seja o das aparências por meio de Elena e Linda, seja o da paixão sensual por intermédio de Gustavo e Gordinha. Estômago (Brasil, 2007), de Marcos Jorge O filme Marcos Jorge faz da comida elemento de poder e paixão. O migrante do nordeste Nonato aprende na cozinha o ofício de cozinheiro e descobre assim um talento singular. Se envolve com uma prostituta, ligada a ele pelo “estômago” e acaba cometendo um crime passional. Na cadeia, seu poder e liderança na cela em que vive, virá por meio de seus hábitos culinários. O Mineiro e o Queijo (Brasil, 2010), de Helvécio Ratton O Mineiro e o queijo mostra a tradição de 300 anos da fabricação do “queijo Minas”. Helvécio Ratton faz um curioso documentário que o próprio denomina como “político”, ou seja: pretende uma intervenção na realidade cultural e econômica ao questionar uma lei sanitária nacional que impede a comercialização do autêntico queijo Minas fora do Estado de Minas Gerais. O motivo seria que o método de fabricação do queijo não responde aos critérios sanitários nacionais. O problema alegado pelos fabricantes, tanto os mais tradicionais quanto os mais modernos, é que os métodos de fabricação não podem aderir às demandas sanitárias da maneira como se pede porque – fato incontestável -­‐ mudaria o sabor e a qualidade do queijo. Material Anexo Comida revela nossos valores culturais “Somos aquilo que comemos”. Essa frase, espécie de sentença moral recorrente na fala de médicos e nutricionistas, é reveladora da vinculação cada vez maior entre alimentação e saúde presente na nossa sociedade. A preocupação com o corpo, o esforço para se evitar doenças através daquilo que seria uma “alimentação balanceada” ou mesmo o prazer à mesa sendo posto em segundo plano em nome de uma suposta “qualidade de vida”. Tudo isso descreve a forma como atualmente se configura a nossa relação com a comida: o aspecto nutricional tem preponderado na nossa alimentação. Essa associação entre alimentação e nutrição pode ser percebida no tipo de crítica suscitada pelo documentário Super size me no qual a preocupação com os efeitos biológicos da alimentação no organismo humano, através da associação entre um certo padrão alimentar – a chamada junk food – e a obesidade, é explícita. Se essa relação estreita entre alimentação e nutrição é uma característica marcante da nossa sociedade, não se pode esquecer que comportamentos relativos à comida não são condicionados apenas pelo seu valor nutricional. O comportamento em relação à comida revela a cultura em que cada um está inserido. “Na China, por exemplo, comer no McDonald’s é sinal de mobilidade ascendente e de amor pelos filhos. Onde quer que o McDonald’s se instale na Ásia, as pessoas parecem admirar a iluminação feérica, os banheiros limpos, o serviço rápido, a liberdade de escolha e o entretenimento oferecido às crianças. Mas também percebe-­‐se que eles gostam mais dessas coisas do que propriamente da comida!”, lembra, num artigo (“Comida e antropologia: uma breve revisão”), o antropólogo norte-­‐americano Sidney Mintz ao afirmar que “o produto que o McDonald’s vende e o que as pessoas compram não são necessariamente a mesma coisa, ainda que a empresa tenha sucesso financeiro”. Esses comportamentos culturais variados em relação à comida do McDonald’s – seja na China seja nos Estados Unidos de Super size me – servem para lembrar que as representações sociais em torno de um mesmo alimento podem variar a partir dos valores de cada sociedade ou grupo social. Um exemplo dessa variação cultural pode ser notada em relação à carne. Se para os vegetarianos ela é um alimento que deve ser evitado por razões ideológicas – o “sacrifício” e a morte de animais – para as classes mais pobres, uma característica recorrente do aumento da renda e um sinal de ascensão social é o incremento do consumo de proteína animal. A relação estreita entre nutrição e alimentação – que tem criado fenômenos como os chamados “alimentos funcionais” – cria tabus fazendo com certos alimentos ricos em açúcar e gordura, por exemplo, sejam cada vez mais demonizados em nossa cultura. Mas todas as sociedades proíbem certas classes de alimentos e recomendam outras. A criação de regras, de prescrições e proibições, seja para a comida mas também em relação a outras atividades – ao casamento, ao parentesco, à política, etc – faz parte da chamada natureza humana. Por conta disso é que muitos antropólogos têm se dedicado à antropologia da comida ou da alimentação. Alimentos proibidos Se a ciência, através dos tabus e proibições criados pela nutrição, é que tem, predominantemente, ditado as regras e os valores em relação à comida na nossa sociedade, não se pode esquecer das barreiras de outras ordens (religiosas, ideológicas, folclóricas) presentes à mesa. Dentre as várias teorias, escolas ou correntes de pensamento, dois tipos de explicação para os tabus alimentares podem ser distinguidos na antropologia: uma de ordem mais prática e outra que enfatiza as proibições alimentares como operações simbólicas. Vejamos a questão da origem da interdição da carne de porco entre os judeus. Para o antropólogo norte-­‐americano Marvin Harris, os tabus religiosos em relação à alimentação seriam regras culturais criadas a partir de problemas de adaptação ecológica. Ao explicar a origem do tabu da carne de porco no judaísmo no livro Vacas, porcos, guerras e bruxas: os enigmas da cultura, Harris afirma que a criação de suínos seria uma atividade incompatível com o nomadismo dos pastores judeus que habitavam os desertos nos tempos bíblicos: os porcos se alimentam diariamente, ao contrário dos animais ruminantes prescritos pelo Velho Testamento. A proibição seria, assim, uma forma de se impedir o consumo de uma carne cuja criação era inviável economicamente para o grupo. Já para a antropóloga inglesa Mary Douglas no livro Pureza e perigo, a proibição do consumo da carne de porco entre os judeus é de ordem simbólica e não prática ou utilitária como propõe Marvin Harris. A antropóloga parte da análise dos textos do Levítico, um dos livros do Velho Testamento, para buscar aquelas que seriam as bases dessa interdição: a restrição à carne de porco seria expressão de um conjunto de valores da religião judaica dos quais fariam parte noções de santidade e de integridade. A partir dessas noções é que os mandamentos do Velho Testamento classificam os animais que são bons para o consumo – nesse caso, os ruminantes e de casco fendido tais como os carneiros e as cabras – e os animais que não devem ser comidos. Nesse sentido, seria necessário atentar não só para os animais considerados tabus mas também para aqueles cujo consumo é recomendado. “Note-­‐se que não conformar-­‐se com os dois critérios [ruminação e casco fendido] necessários para a definição de gado é a única razão dada, no Velho Testamento, para evitar o porco; absolutamente nada é dito sobre os seus hábitos de chafurdar na sujeira. Como o porco não fornece leite, couro nem lã, não há nenhuma outra razão para criá-­‐lo exceto por sua carne. E se os israelitas não criavam porcos eles não poderiam estar familiarizados com seus hábitos”. O porco, portanto, é considerado impuro para o consumo não por suas características ou hábitos, mas simplesmente porque ele foge à classificação dos animais que são bons para o consumo segundo os mandamentos do Velho Testamento. “Eu sugiro que, originariamente, a única razão para ele ser considerado impuro é o fato de ele, enquanto porco selvagem, não pertencer à classe dos antílopes e que quanto a isso está em igualdade de condições com o camelo e o texugo, exatamente como se afirma no livro”, explica Mary Douglas. Essa arbitrariedade na escolha do porco revela que a seleção e a escolha de certos animais, seja para proibir o seu consumo, seja para recomendá-­‐lo, não seria explicável apenas de um ponto de vista utilitário. As regras em torno da alimentação escapam, portanto, a uma praticidade imediata e podem variar historicamente. Alimentos antes desvalorizados ou cujo consumo era restrito a determinados grupos e religiões podem ter o seu status modificado. Essas transformações em relação à comida acompanham as mudanças que acontecem no âmbito da própria sociedade. Status do acarajé Um exemplo de mudança de status de uma comida é o acarajé, hoje considerado como um prato característico da culinária baiana. A comercialização do acarajé tem início ainda no período da escravidão com as chamadas escravas de ganho que trabalhavam, nas ruas, para as suas senhoras, desempenhando diversas atividades, dentre elas, a venda de quitutes nos seus tabuleiros. O acarajé ainda é tido como um bolinho característico do candomblé. Mesmo ao ser comercializado e consumido fora do terreiro, o acarajé ainda é considerado, pelas baianas, como uma comida sagrada. Para elas, o bolinho de feijão fradinho frito no azeite de dendê não pode ser separado de sua religião. Por isso, a sua receita não pode ser modificada e deve ser preparada apenas pelos filhos-­‐de-­‐santo. Só que as baianas, cada vez mais, têm que enfrentar a concorrência do comércio do acarajé nos bares, supermercados e restaurantes. Mas sua venda como “bolinho de Jesus” pelos adeptos de religiões evangélicas – que postam Bíblias em seus tabuleiros – é o que tem causado mais polêmica. Muitas baianas indagam-­‐se sobre o por quê dos evangélicos quererem vender acarajé e não qualquer outro quitute. Para a maioria das baianas de tabuleiro, filhas-­‐de-­‐santo, o bolinho é indissociável do candomblé. Porém essa indistinção não deixa de ser, também, uma estratégia de diferenciação de seus produtos, num contexto de concorrência cada mais acirrada que é Salvador, uma cidade que atrai muitos turistas por ser considerada como o locus de africanismos no Brasil, a partir dos quais uma inegável comercialização da cultura negra tem se constituído. Brasil Colônia As relações de poder, as hierarquias entre os diferentes grupos sociais e modo como elas se configuram historicamente também perpassam os costumes relativos à comida. Um exemplo presente na história do Brasil diz respeito aos hábitos alimentares dos portugueses no Brasil Colônia. A despeito das dificuldades econômicas e de transporte, os colonizadores portugueses mantiveram o consumo do pão de farinha de trigo, do azeite e do vinho mesmo com o comprometimento da qualidade desses produtos ao serem trazidos de Portugal para o Brasil. Ao contrário da tese de que os portugueses teriam aderido rapidamente aos costumes do Brasil Colônia devido àquilo que seria a capacidade lusitana de assimilação de culturas diferentes, o historiador Evaldo Cabral de Mello afirma, no artigo “Nas fronteiras do paladar” (Caderno Mais, Folha de S. Paulo, 2000) que, ao longo de todo o período quinhentista (1532-­‐
1630), os portugueses continuaram bastante apegados aos hábitos alimentares correntes no Reino de Portugal, procurando reproduzi-­‐los na Colônia. “Mesmo quem, como no caso dos jesuítas, havia substituído o trigo pela mandioca, só usando farinha nobre para o fabrico de hóstias, não dispensava os outros gêneros da metrópole, como o vinho e o azeite, para não falar do vinagre, das azeitonas, dos queijos e de outras coisas que deviam vir de Portugal. Era raro haver almoço ou jantar, por frugal que tenha sido, em que não se aluda ao consumo do vinho, inclusive no tocante ao passadio dos reinóis modestos, como aqueles artesãos de Olinda que surgem nas páginas da documentação inquisitorial fazendo seu repasto ortodoxamente europeu de pão, carne e vinho”, descreve o historiador. O desprezo dos portugueses pelos produtos locais seria explicado pelo esforço de se diferenciar socialmente dos nativos indígenas e dos africanos. Os colonizadores deixavam, assim, de consumir a farinha de mandioca, a aguardente de cana e o azeite de dendê por serem esses os alimentos consumidos por aqueles que eram considerados “inferiores”. Revista ComCiência Disponível em http://www.comciencia.br/reportagens/2005/09/07.shtml Como Água Para Chocolate (México, 1992), de Alfonso Arau "Best-­‐seller" de Laura Esquível adaptado ao cinema por Alfonso Arau e transformado numa fascinante fábula romântica e gastronómica No norte do México, Pedro e Tita estão apaixonados um pelo outro, mas a mãe dela opõe-­‐se ao casamento, tão só porque uma tradição familiar impede que a filha mais nova se case para poder cuidar da mãe até ao fim dos seus dias. Pedro aceita casar com Rosaura, a irmã mais velha de Tita, só para poder estar próximo dela. Esta, que nasceu na cozinha, aprendeu a dominar a arte de misturar condimentos e sentimentos através da comida. Os anos passam e Tita vai-­‐se habituando à tirania da mãe. Entretanto, a sua outra irmã foge com um revolucionário e Rosaura tem uma filha, de que Tita se ocupa com grande dedicação. Rosaura acaba por partir com Pedro e a filha, deixando Tita mergulhada na maior e mais devastadora melancolia. Só vinte anos depois da morte da mãe Tita se irá juntar a Pedro numa tão aguardada e derradeira "noite de núpcias". O romance de Laura Esquível "Como Água para Chocolate" transformou-­‐se, rapidamente, num "best-­‐seller", traduzido para onze línguas e editado em 20 países. Trata-­‐se de uma amarga história de amor, que se desenrola no México entre 1895 e 1934, sobre a tragédia pessoal de uma rapariga impedida pela mãe de casar com o homem que amava, devido a uma absurda tradição familiar. Toda esta história de desencontros amorosos, fugazes seduções, casamentos alternativos, melancolias devastadoras e tiranias maternais está, admiravelmente, ligada pela rica e variada gastronomia mexicana, num jogo fascinante entre a mesa e os sentimentos. Alfonso Arau, a partir do argumento adaptado pela sua mulher, constrói uma bela, fantástica e imaginativa história de amor, numa mista atmosfera de fábula romântica e irónica sátira familiar, onde nem sempre é fácil ficar "como água para chocolate", isto é, em estado de paixão efervescente. RTP – Radio e Televisão Portuguesa Disponível em http://www.rtp.pt/programa/tv/p3716 Como Água Para Chocolate “Não se pode trocar ‘tacos’ por ‘enchiladas’.” É com esta afirmação da personagem Chencha que podemos contra-­‐argumentar o desgosto do senso comum em relação ao filme Como Água para Chocolate, do diretor mexicano Alfonso Arau. A história de amor entre Tita (Lumi Cavazos) e Pedro (Marco Leonardi) leva muitos espectadores a proferir críticas sem qualquer embasamento estético, julgando a película como demasiadamente “banal” e “piegas”. Como Água para Chocolate pode até ser agridoce, mas não se encaixa em hipótese alguma numa produção banal. O uso da sensibilidade e do realismo fantástico não justifica a classificação negativa de pseudo-­‐intelectuais que analisam o cinema a partir de um método (se é que existe) imediatista. Pelo contrário, tais características consideradas “banais” engrandecem o filme de uma carga significativa permeada de metáforas que só quem já leu alguma obra de Gabriel Garcia Márquez, entende do que eu estou falando. Em relação à mostra em que está inserida (Comida, Diversão e Arte), o filme não precisou utilizar a escatologia gratuita para tratar do universo gastronômico. Provocando as sensações mais diversas, o saborear da comida de Tita conduz os personagens a enveredarem por caminhos que passam longe do óbvio. “O segredo é fazer a comida com amor”, afirma Tita. Impedida de expressar o que sente por Pedro, ela dedica-­‐se aos afazeres da cozinha do rancho e, através de sua exímia habilidade culinária, elabora pratos que magicamente transmitem aos degustadores seus sentimentos. Este mote por si só desperta para outras possibilidades no campo da comunicação ao transformar o paladar num instrumento de envio e recepção de mensagens. Inserido na época da Revolução Mexicana, Como Água Para Chocolate se passa num ambiente marcado pelos hábitos simples, pela vida rústica e pelos bons costumes. O amor de Tita por Pedro é reprimido por uma tradição estabelecida por gerações. Como filha mais nova, ela deve ficar solteira para poder cuidar da mãe Elena (Regina Torné) na velhice. Para continuar próximo de sua amada, Pedro casa-­‐se com Rosaura (Yareli Arizmendi), uma das irmãs de Tita. Apesar do triângulo amoroso, o mais interessante no roteiro é a existência de personagens que se destacam da trama. A irmã mais velha de Tita, Gertrudis, é o exemplo de felicidade realizada após fugir com um sargento zapatista em uma situação pra lá de inusitada. A experiente cozinheira Nacha cuida de Tita como se fosse sua verdadeira mãe. Já a empregada Chencha alegra o rancho com seu jeito de ser brincalhão. Sucesso de público e crítica no mundo todo no ano de seu lançamento (93), o filme foi indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e conquistou o prêmio de público como Melhor Filme e Melhor Atriz (Lumi Cavazos) no Festival de Cinema de Gramado. No México, recebeu dez prêmios Ariel, o Oscar mexicano, incluindo as categorias de Melhor Filme, Melhor Roteiro, Melhor Diretor, Melhor Ator e Melhor Atriz. Baseado no livro homônimo de Laura Esquivel, Como Água para Chocolate se encaixa como um dos melhores filmes já realizados pela cinematografia latino-­‐americana e que iria mais tarde culminar em produções mexicanas de qualidade, como E Sua Mãe Também e Amores Brutos. É uma pena que nos dias de hoje, Como Água Para Chocolate não seja mais reconhecido como deveria. Infelizmente o mundo atual cientificizado e imediatista acaba moldando os “corações e mentes” daqueles que se metem a falar de cinema pelo mero achismo, que acaba esquecendo a dimensão poética do ser humano. P.S.: Resenha publicada no site CineClube Casa Amarela. Site Cinema com rapadura Disponível em http://cinemacomrapadura.com.br/criticas/83216/como-­‐agua-­‐para-­‐chocolate-­‐
1992-­‐83216/ "Best-­‐seller" de Laura Esquível adaptado ao cinema por Alfonso Arau e transformado numa fascinante fábula romântica e gastronómica No norte do México, Pedro e Tita estão apaixonados um pelo outro, mas a mãe dela opõe-­‐se ao casamento, tão só porque uma tradição familiar impede que a filha mais nova se case para poder cuidar da mãe até ao fim dos seus dias. Pedro aceita casar com Rosaura, a irmã mais velha de Tita, só para poder estar próximo dela. Esta, que nasceu na cozinha, aprendeu a dominar a arte de misturar condimentos e sentimentos através da comida. Os anos passam e Tita vai-­‐se habituando à tirania da mãe. Entretanto, a sua outra irmã foge com um revolucionário e Rosaura tem uma filha, de que Tita se ocupa com grande dedicação. Rosaura acaba por partir com Pedro e a filha, deixando Tita mergulhada na maior e mais devastadora melancolia. Só vinte anos depois da morte da mãe Tita se irá juntar a Pedro numa tão aguardada e derradeira "noite de núpcias". O romance de Laura Esquível "Como Água para Chocolate" transformou-­‐se, rapidamente, num "best-­‐seller", traduzido para onze línguas e editado em 20 países. Trata-­‐se de uma amarga história de amor, que se desenrola no México entre 1895 e 1934, sobre a tragédia pessoal de uma rapariga impedida pela mãe de casar com o homem que amava, devido a uma absurda tradição familiar. Toda esta história de desencontros amorosos, fugazes seduções, casamentos alternativos, melancolias devastadoras e tiranias maternais está, admiravelmente, ligada pela rica e variada gastronomia mexicana, num jogo fascinante entre a mesa e os sentimentos. Alfonso Arau, a partir do argumento adaptado pela sua mulher, constrói uma bela, fantástica e imaginativa história de amor, numa mista atmosfera de fábula romântica e irónica sátira familiar, onde nem sempre é fácil ficar "como água para chocolate", isto é, em estado de paixão efervescente. Como Água Para Chocolate Domingo próximo é dia do Oscar. Tempo de lembrar filmes que ficarão para sempre em nossas memórias. Entre eles o mexicano Como Água Para Chocolate – uma expressão que “no México, quer dizer água a pique de ferver ou alguém a pique de explodir”, segundo a jornalista Nina Horta (em, Não é sopa). O filme é de 1992, e conta a história de 12 receitas. Baseado em livro homônimo de Laura Esquivel e dirigido por seu marido, Afonso Arau. Tudo se passa no pequeno e tranqüilo rancho de La Graza, fronteira entre México e Estados Unidos. Começo do século passado. Mama Elena educava as filhas Gertrudes, Rosaura e Tita com enorme rigor. Tinha um coração de pedra – por ter sufocado, ao longo da vida, uma paixão proibida. Seu marido morreu de tristeza, incapaz de suportar a insinuação dos amigos, de que outro homem seria o pai de Gertrudes. Seguindo a tradição familiar Tita, a filha caçula, teria que permanecer solteira. Para cuidar da mãe. Tita nasceu na mesa da cozinha. E na cozinha foi criada. Entre cheiros de canja, tomilho, louro, leite fervido, alho e cebola. Um dia ela e a mãe, por causa de uma cebola, choraram rios de lágrimas que inundaram a cozinha e desceram pelas escadas. Mais tarde foram recolhidos, nessas escadas, 5 quilos de sal. Acabou desenvolvendo uma relação mística com os sabores. A velha e sábia Nacha, agregada da família, lhe ensinou todas as receitas. E corria em paz a vida. Assim foi até quando os ventos da tragédia tomaram conta da casa. No momento em que Tita se apaixona por Pedro. Então “compreendeu o que sente a massa ao entrar em contato com o óleo fervente” – assim disse do calor que lhe invadiu. Quando o viu, até temeu “que lhe surgissem bolhas no corpo, como a massa”. Mama Elena, por castigo, ofereceu a Pedro sua outra filha Rosaura. Proibido de se casar com Tita, era essa a única maneira de que pudessem permanecer juntos, sob o mesmo teto. A oferta foi aceita. E assim foi. Tita preparou o bolo Chabella de casamento. Usou 170 ovos. Só não seguiu o conselho de Nacha – “não chore sobre a massa”. Razão porque, na festa, todos os que provaram do bolo começaram a chorar – espiando remorsos, sonhando sonhos impossíveis, lembrando amores do passado. Inclusive Mama Elena – que correu ao quarto, em busca do retrato do seu amado, há tempos escondido em uma pequena caixa. Nacha morre nesta noite. E Tita assume seu lugar, na cozinha. Passa a se comunicar com Pedro pelos alimentos. O amor, para ela, é quente como a água que ferve, para fazer chocolate. Pedro lhe ofereceu rosas brancas. Tita aperta essas rosas com tanta força, contra o peito, que os espinhos lhe arranham a pele. E as pétalas ficam vermelhas, cor de sangue. Nesse momento escutou a voz da velha Nacha sussurando, só para ela, mandando preparar codornas ao molho de pétalas de rosas. Todos arderam de prazer. Gertrudes foge nua, na garupa de um revolucionário de Zapata. Mama Elena pensa em seu amor proibido e diz frases desconexas: “os homens não são importantes para se viver; pior é comer pimenta sem água por perto”. O desejo de alimentar o filho recém nascido de Pedro, faz com que o peito de Tita tenha leite. Mama Elena reconhece o perigo que é manter aqueles dois na mesma casa. E faz com que Pedro, Rosaura e a criança viagem. O bebe morre e Tita enlouquece de saudade. É tratada por um médico americano, Dr. John. A avó desse médico, “Luz do Amanhecer”, uma velha índia kakapoo, ensinava que “todos nascemos com uma caixa de fósforo por dentro, que não podemos acender sozinhos. Necessitamos de oxigênio e da ajuda de uma vela. O oxigênio vem da boca da pessoa amada. E a vela pode ser uma melodia, uma palavra, um som, qualquer coisa que acenda um de nossos fósforos”. John pede a mão de Tita. Ela aceita, mas o casamento nunca se realiza. Mama Elena morre. E voltam todos para o rancho – Tita, Pedro, Rosaura e também Esperança, a nova filha do casal. Gertrudes, a nua, volta como se nada tivesse acontecido. Rosaura morre de desgosto. Dia de Reis, Tita prepara Rosca de Reis. Esperança, filha de Pedro, casa com um filho de Jonh. Tita prepara o jantar do casamento. Depois de comer, todos se abraçam e se beijam. Os noivos se vão. Tudo tem seu tempo próprio. Como a calda de caramelo – “molhe os dedos na água fria, mergulhe-­‐os na calda e depois na água de novo. Se a calda endurecer, é porque está no ponto certo”. Pedro e Tita ficam sozinhos, na casa, pela primeira vez em suas vidas. Ainda não sabiam que seria também a última. Dirigem-­‐se à cabana cheia de velas. No céu, relâmpagos e trovões. Pedro se deita. E, como se tivesse cumprido sua missão na terra, morre em paz. Tita o cobre com um manto que brilha como brilham as estrelas. E lembra os ensinamento da velha índia – “se uma intensa emoção acender todos os fósforos ao mesmo tempo, produzirá uma luz tão forte que veremos um túnel esplendoroso que nos mostra o caminho, que esquecemos ao nascer, e que nos chama de volta a nossa perdida origem divina”. Então se deita junto a ele. Feliz. Nunca mais os dois seriam vistos. O fogo toma conta de tudo. Tempos depois, a filha de Esperança abre o velho livro de receita de Tita. Foi tudo o que escapou do incêndio. Sente saudades da comida dela. Da sua conversa. Do cheiro de sua cozinha. Das tortas de Natal. De seus conselhos – entre eles, “colocar um pedaço de cebola na cabeça, para evitar as lágrimas. O ruim de chorar, quando se pica a cebola, não é o fato de chorar e sim que às vezes não se consegue parar”. Só então se dá conta que o conselho não vale só para a cozinha. A seu lado, silenciosos, os fantasmas de Nacha e Tita. A noite começa a descer, lentamente. Os primeiros raios de lua iluminam o velho fogão. E segue a vida. RECEITAS: BOLO CHABELLA INGREDIENTES: ½ xícara de açúcar, 6 gemas, 2 ovos, 1 xícara de farinha de trigo, 1 colher de sopa de raspa de limão, ¾ de xícara de geléia de damasco. COBERTURA: 2 xícaras de açúcar de confeiteiro, 1 colher de sobremesa de suco de limão, 2 claras PREPARO: Na batedeira, bata os ovos, 2 gemas e o açúcar, até obter uma mistura clara. Junte as gemas restantes, a casca de limão e continue batendo. Acrescente a farinha de trigo e misture cuidadosamente. Coloque em 2 formas com 25 cm de diâmetro e asse em forno pré-­‐aquecido. Depois de frio, recheie com a geléia de damasco e cubra com as claras batidas, bem firmes, com açúcar e raspa de limão. CODORNAS AO MOLHO DE PÉTALAS DE ROSAS INGREDIENTES: 6 codornas, 12 rosas vermelhas, 12 castanhas portuguesas, 3 colheres de sopa de manteiga, 2 colheres de sopa de anis, 2 colheres de sopa de mel, 2 dentes de alho, 2 gotas de essência de rosas, 3 copos de água, sal e pimenta. PREPARO: Limpe e tempera as codornas com sal e pimenta. Amarre as pernas e doure na manteiga. Em outra panela doure o alho com o restante da manteiga. Junte o purê de castanha (depois de cozida em água e sal), o mel, as pétalas (amassadas no pilão, junto com o anis), a água e o sal. Deixe cozinhando em fogo brando. Peneire esse molho e acrescente a essência de rosas e as codornas. Decore o prato com pétalas de rosas. ROSCA DE REIS INGREDIENTES: 125g de fermento fresco, 2 kg de farinha de trigo, 10 ovos, ½ litro de leite, 325 g de açúcar, 325 g de manteiga, 20 g de sal, 2 colheres de sopa de água de flor de laranjeira, raspas da casca de um limão, 10 g de canela em pó, 250 g de frutas cristalizadas, manteiga para untar a forma, trigo para polvilhar a forma, 3 ovos batidos para pincelar a rosca, açúcar de confeiteiro para polvilhar a rosca. PREPARO: Desmanche o fermento em leite morno, com um quarto da farinha. Amasse e deixe descansar por 2 horas. Coloque o restante da farinha na mesa. No centro, o leite restante, os ovos, o açúcar, a manteiga, o sal, as raspas de limão e a água de flor de laranjeira. Amasse bem. Junte a massa anterior que já cresceu de tamanho. Incorpore bem as duas massas. Deixe descansar novamente, até atingir o dobro do tamanho. Abra a massa em forma de tira. Recheie com um creme feito com 80g de açúcar, 300 ml de leite, 2 gemas e 35 g. de maisena. Por cima do creme coloque as frutas cristalizadas e a canela. Enrole e torça a tira, como uma rosca. Coloque em assadeira untada e polvilhada. Cubra com guardanapo e deixe dobrar de volume.Pincele com as gemas batidas, decore com algumas frutas cristalizadas. Leve ao forno até dourar. Polvilhe açúcar de confeiteiro em cima. Lecticia Cavalcanti Terra Magazine Disponível em http://terramagazine.terra.com.br/blogdalecticiacavalcanti/blog/2013/02/21/como-­‐agua-­‐
para-­‐chocolate/ Como agua para chocolate É possível juntar em um mesmo filme rigorosas tradições, revolução mexicana, amores proibidos e culinária? O filme mexicano “Como Água para Chocolate” do diretor Alfonso Arau, baseado em um livro de sua mulher Laura Esquivel, que também assina o roteiro, prova que sim. E com uma sensibilidade impressionante. Tita é a filha mais nova de Elena e, por isso, tem que permanecer solteira para cuidar da mãe na velhice. Porém, Tita se apaixona por Pedro e ele por ela. Depois da proibição do casamento, para não ficar distante, ele decide aceitar a oferta de Elena e se casa com uma das irmãs de sua paixão. Com um roteiro fantástico como as obras de Gabriel García Marquez, cheio de acontecimentos inusitados e personagens que sempre são mais do que aparentam, o filme é daqueles que consquista desde os primeiros minutos. Embora não agrade a todos os públicos, tem tanto significado em suas cenas e trata os assuntos com tanta delicadeza e sabor que quase conseguimos sentir o gosto de cada um dos sentimentos que compõe o cardápio de Tita. A direção dos atores está na medida certa e conta com um elenco dedicado e talentoso. Uma outra surpresa é a bela fotografia assinada pela dobradinha inusitada de Steven Bernstein, que se especializou mais tarde em filmes besteirol como As Branquelas e O Pequenino, e Emmanuel Lubezki, responsável por Queime Depois de Ler, Filhos da Esperança e Desventuras em Série. Amor, misticismo, crenças, tradição e esperança com muito sabor. Uma excelente pedida quando a vontade é de ver um filme que fale singelamente de muitas coisas. Cecilia Barroso Cenas de Cinema Disponível em http://www.cenasdecinema.com/como-­‐agua-­‐para-­‐chocolate/ Maus Hábitos (México, 2007), de Simon Bross Maus Hábitos explora religiosidade com bom estilo cinematográfico Não confunda: apesar de Pedro Almodóvar já ter dirigido em 1983 um filme exatamente com este nome, este “Maus Hábitos” é uma produção mexicana de 2007. E seu título original é de fato “Malos Hábitos”. Premiado nos festivais de Montreal, Los Angeles e Bogotá, “Maus Hábitos” é um estudo sobre duas obsessões: a religiosa e a estética. Matilde é uma jovem freira enclausurada num convento onde o jejum é prática corriqueira. Cheia de fé, ela sucumbe porém ao pecado da gula, comendo escondido de sua superiora e buscando comida até no lixo, se preciso for. Paralelamente, Elena é uma mulher anoréxica que não consegue resistir à sua obsessão por magreza, fazendo regime escondida do marido, e colocando assim em risco o seu próprio casamento. Para piorar sua situação, ela tem uma filha, Linda, que não consegue emagrecer. Estas duas formas de sofrimento compulsivo, ambas tendo a comida como ponto em comum, vão se entrelaçar numa história intrigante dirigida com estilo pelo estreante Simon Bross. Embora seja um drama, “Maus Hábitos” tem clima e fotografia de suspense. Trabalha com pouca luz e cores saturadas que contribuem para dar à história uma certa aura de misticismo. Sua atmosfera tensa e ritmo contemplativo deixam o espectador numa eterna expectativa de mau agouro, que algo terrível está para acontecer a qualquer instante. Conseqüentemente, a trama envolve e abre sub textos para variadas leituras. Traições, dor, e a tradicional moral católica da culpa e do pecado – tema tão recorrente na cinematografia latina em geral e na mexicana em particular – ajudam a formar o painel de sentimentos contraditórios deste interessante “Maus Hábitos”. Vale experimentar. Celso Sabadin Planeta Tela Disponível em http://www.planetatela.com.br/cri.php?cri_id=218 Maus Hábitos, de Simon Bross O público brasileiro começa a se interessar pelo cinema que se faz em outros países do continente, como a Argentina. Mas acaba de ser lançado em DVD pela Paris Filmes, Maus Hábitos, um exemplo de vitalidade na cinematografia mexicana. É até aconselhável anotar o nome de seu autor: Simon Bross, um produtor que, aos 48 anos, decidiu realizar um filme cuidando apenas do roteiro e da direção. E a tentativa impressiona pela estatura do resultado: um trabalho que retoma as preocupações de Luis Buñuel sobre o absurdo da vida em sociedade, especialmente em obras sarcásticas como O Discreto Charme da Burguesia. Numa linha aparentemente naturalista, o diretor focaliza um grupo de personagens femininas para as quais a comida representa papéis bem diferenciados. Uma freira pratica jejum porque acredita adquirir poder de cura por meio dele. Por outro lado, o seu convento sobrevive vendendo as guloseimas que as religiosas cozinham. Sua tia é tão obcecada com a aparência que se torna anoréxica e inferniza a vida da filha (na foto) que tem tendência para engordar. Em conseqüência, o tio se apaixona por uma estudante de formas confortáveis e abundantes que atende pelo apelido de Gordinha. Assim como fazia aquele mestre espanhol naturalizado mexicano, o filme vem carregado de uma melancólica ironia, demonstrando ternura e compaixão ao expor o ridículo dos personagens. Outro mérito de Maus Hábitos é a fotografia, a um só tempo sóbria e expressiva, lembrando o claro-­‐escuro dos pintores flamengos do século XVII, como Johannes Vermeer. Luciano Ramos Cinema Falado Disponível em http://programacinemafalado.blogspot.com.br/2009/01/maus-­‐hbitos-­‐lanado-­‐
em-­‐dvd-­‐uma-­‐jia-­‐do.html Disturbios alimentares e religião em xeque no filme de Simón Bross Estranho e interessante esse Maus Hábitos (Malos Habitos, 2007), longa-­‐metragem mexicano de Simon Bross. O filme reúne narrativas paralelas que têm em comum distúrbios alimentares. Na primeira, uma feira (Ximena Ayala) acredita que seus jejuns operam milagres. Na outra, uma mãe anoréxica (Elena de Haro) desespera-­‐se com a gordura da filha (Elisa Vicedo), tentanto fazer com que ela emagreça antes da cerimônia de primeira comunhão. Personagens periféricos também enfrentam suas próprias agruras -­‐ todas relacionadas de uma maneira ou de outra à comida. O diretor oferece paralelos interessantes entre a alimentação e a religião. A gula da filha, afinal, é um pecado capital. Assim com a soberba, que motiva a mãe. Mas qual seria então o pecado da freira, que através da privação tenta salvar a cidade de uma catástrofe que ela sente ser iminente? Bróss rodeia a questão com elegância. Seriam mesmo condenáveis esses pecados? Ou o pecado depende apenas do uso que se faz dele? O drama, curiosamente, responde tais perguntas através dos gordinhos. Note os destinos da filha, da amante (Milagros Vidal) e do engenheiro (Marco Antonio Treviño), personagens que entregam-­‐se aos seus prazeres sem culpa. Igualmente interessante é o uso da iluminação e enquadramentos, que mais lembram um suspense sobrenatural em vários momentos. As seqüências de sonho/visões da freira são especialmente inspiradas, estreitando a relação entre o tema dos distúrbios e a religião católica. Érico Borgo Omelete – 31 de julho de 2008 Disponível em http://omelete.uol.com.br/cinema/maus-­‐habitos/ Maus Hábitos O México cultiva a tradição da estranheza no cinema – basta pensar em Arturo Ripstein, por exemplo, ou, entre os mais jovens, em Carlos Reygadas (de Japón e Luz Silenciosa). Nunca é demais lembrar, aliás, que mestre Buñuel filmou no México, lá passou seus últimos anos e morreu. Em sua autobiografia, Meu Último Suspiro, se dizia sensibilizado pelo clima de leve absurdo que cercava o cotidiano mexicano, a devoção religiosa, o culto um tanto carnavalizado à morte. É nessa linha que se inscreve o cinema de outro diretor da geração de Reygadas, Simón Bross, autor de Maus Hábitos, que chega agora aos cinemas brasileiros. O primeiro aviso a ser dado ao espectador é para não confundi-­‐lo com o filme homônimo de Pedro Almodóvar. Aliás, o nome igual não é fruto de nenhuma má intenção, do tipo ”pegar carona no mais conhecido”. É que o título em espanhol é mesmo Malos Habitos. E, no caso, foi com o filme de Almodóvar que a tradução brasileira se revelou criativa, ao traduzir por Maus Hábitos o muito mais alusivo Entre Tenieblas. Enfim, questão de terminologia. Mas o título parece bastante significativo no que se refere às duas histórias básicas que compõem a narrativa. Numa delas, uma freira (Ximena Ayala) jejua à espera de um milagre. Na outra, uma mãe magérrima (Elena de Haro) lida com dificuldade com sua filha obesa a quem tenta enquadrar num duro regime alimentar. O que se tem aqui, num ambiente de luz natural e enquadramentos pouco usuais, é a presença da aura mística que tanto espanto causava em Buñuel e, depois, em Ripstein. A freira Matilde, vivida por Ximena, é um protótipo desse relacionamento complicado com a fé, no qual a abstinência só faz sentido quando convive com o desejo de transgredi-­‐la. Nesse mundo de tentações, que pode ser sexual ou de qualquer dos outros sentidos, a possibilidade de cair em pecado sempre existe. Dessa dialética entre o ascetismo e o desejo que o ronda, nasceram grandes obras. E, aqui, Simón Bross se debruça sobre o desejo alimentar. Essa tentação se desdobra na segunda história. Se na primeira trata-­‐se de uma freira empenhada em jejuar para evitar uma catástrofe natural que, pressente, vai se desencadear sobre a cidade, na segunda, se trata de jejum, vamos dizer assim, laico. Pois Elena (Elena de Haro) é uma mulher magra e bela, cuja filha, Linda (Elisa Vicedo) não consegue emagrecer para o dia da sua primeira comunhão. Ou seja, temos aqui a presença de novo da religião, mas sob outra forma. A primeira comunhão trata-­‐se de uma cerimônia pública, de um ato social para o qual é preciso estar ”apresentável”. Ou seja, dentro de padrões estéticos da sociedade. Dessas duas tramas entrelaçadas (em mais de um sentido) Bross tira uma narrativa interessante, embora se possa fazer a restrição ao que nela existe de estiloso, uma espécie de concessão que o cineasta faz às possibilidades da linguagem cinematográfica. Existe de fato essa tentação, tão grande em jovens cineastas quanto a fome nos personagens de Maus Hábitos – experimentar novos caminhos e tentar mostrar-­‐se diferente. Mas o filme tem substância. E cava sua força no fundo de religiosidade que subsiste, mesmo em sociedades ditas laicas, como as contemporâneas. Luiz Zanin Oricchio O Estado de S. Paulo – 21 de agosto de 2008 Disponível em http://blogs.estadao.com.br/luiz-­‐zanin/maus-­‐habitos/ Con “Malos hábitos”, Simón Bross pide una mayor cultura de la salud. “Malos Hábitos” es una película que aborda los desórdenes alimenticios. Es la ópera prima de Simón Bross quien se ha desempeñado en el campo de la publicidad. El filme se destaca por su estética visual, misma que contrasta con los problemas en que viven inmersos sus personajes. “Tenemos ganas que la gente la vea. Hemos estado en diversos festivales. El argumento es de Ernesto Anaya, ambos escribimos el guión. Nuestra primera misión es entretener, lo que estamos mostrando pretendemos que se transforme en acción. “Cuando la empezamos a escribir hace cuatro años, el tema de la bulimia y la anorexia, aún no era muy manejado por los medios de información”, mencionó Simón Bross. Respecto a la génesis del proyecto, el escritor Ernesto Anaya afirmó que “Soy chileno de origen y nacionalizado mexicano, por eso me considero ‘chilengo’. La película nace de un acto de vanidad. Hace unos años yo estaba en una situación crítica de gordura, el nutriólogo a quien acudí era una especie de nazi, me tenía en un régimen de pan y agua. “En ese entonces, el atún se convirtió en un bien de primera necesidad. Hacer dieta en México es muy difícil puesto que se come todo el tiempo. Me recomendaron mis amigos varias dietas, como la de la luna, la del té verde, entre otras. La anorexia y la bulimia son asunto que atraviesan todas las clases sociales. “A esto se aunó que junto a casa había un convento de clausura, por una ventana las monjas vendían galletas, con el tiempo ello se convirtió en un gran negocio. Imaginé que sucedería con una monja que en un acto de contrición sacrificará el llegar a los excesos”, anotó. La lucha contra la naturaleza tiene un papel protagónico en “Malos hábitos”, puesto que en la actualidad se vive en una sociedad que niega que el aparato digestivo se trata de un severo problema. Como afirma Anaya, la cinta es apenas la punta del iceberg. Par la realización de la cinta, algunas actrices tuvieron que adelgazar y otras que engordar. Elena, una mujer atormentada, madre de una hija “gordita” es interpretada por Elena de Haro. Ella es anoréxica. “Tuve el privilegio de representar este papel. Me tuve que someter una dieta extrema para bajar ocho kilogramos. La experiencia con Sión, actoralmente hablando, ha representando en mi carrera un antes y un después. “Siempre he sido criticada por ser grandilocuente en escena, por mover a mis personajes de un modo exagerado. El tono de la película es íntimo es el ‘sub debajo’. Esto permitió descubrir nuevas facetas que desconocía como actriz”. En cambio a Milagros Vidal, quien caracteriza a la “gordibuena”, tuvo que aumentar nueve kilogramos. “Mi personaje es la válvula de escape de esa olla Express que es la película. Al engordar me di cuenta que era volver a fortalecer mi autoestima y aceptarme como era”. Como contrapartida, aparece el mundo “monjeril”. Por un lado está Matilde que cuenta con la actuación de Ximena Ayala. “La imagen de mi personaje indaga en la reflexión del ser humano. En lo personal no me gustan los productos Light, porque crean una realidad inexistente. Me gusta que el público reflexione en cuánto a lo que sucede cuando se llegan a situaciones extremas”. Matilde cuenta con los mimos y la ternura de Teresa, otra monja, que interpreta Aurora Cano. “Para mí fue muy interesante participar en mi primer largometraje, sobre todo con director como Simón, quien va de lo macro a lo micro, en la película el tono es íntimo, casi murmurado”. “Malos hábitos” ha iniciado su corrida comercial en México desde el pasado 12 de octubre en 200 salas de todo el país y va ser distribuida por Fortísimo en Europa, Asia y varios países más. Otro de sus elementos destacables a nivel visual es la lluvia. “En el filme hay dos mundos: un mundo concreto, casi documental, personas que dejan de comer y un mundo que el Doctor David Szydlow cataloga como un espectro mágico, donde subyacen la religión y las supersticiones, éste último se representa a través de una lluvia monstruosa, que se presenta sobre todo en los sueños y alucinaciones de Matilde, mientras que la comida es el otro hilo conductor”, concluyó su director. Perla Schwartz. Filmeweb – 15 de outubro de 2007 Disponível em http://www.filmeweb.net/magazine.asp?id=875 Estômago (2007), de Marcos Jorge Estômago, de Marcos Jorge Estômago é um filme saboroso. Péssimo trocadilho para um filme em que o personagem central é um cozinheiro. Atuação excelente de João Miguel. Quando lí Estação Carandirú, de Drauzio Varela, que certamente foi uma referência para Marcos Jorge, um dos personagens que mais me impressionaram foi o do preso que refaz a comida na prisão. Ele recebe uma gororoba e transforma aquilo em algo saboroso. Talvez por identificação -­‐ se um dia eu for preso vou fazer isso -­‐ esse personagem me impressionava. Naquele ambiente infernal ele trabalha com odores, perfumes, sabores, cores e combinações. Uma tensão óbvia, mas poética. Pois é o que faz Raimundo Nonato no filme. Por conta de seu talento na cozinha ele consegue subir na vida, tanto quando está em liberdade quanto preso. O filme é especialmente divertido por conta da forma como o talento de Nonato é meio que apartada do lugar em que ele está. Na prisão suborna o policial para comprar Gorgonzola e Angustura e serve Carpaccio para o chefe dos criminosos. Uma delícia! O filme me fez pensar em um momento de Barry Lyndon do Kubrick (1975). O filme é dividido em capitulos e um dos deles se chama algo como : De como Barry Lyndon perdeu seu filho em um acidente de cavalo. A cartela sai e o filme narra o que prometera que iria acontecer. Seria demasiadamente cruel com os espectadores não avisá-­‐los que o personagem principal, com quem certamente já estabelecemos uma relação de identificação, perderá o filho. Pois esse é uma forte incômodo em Estômago. O personagem de João Miguel é excelente, e passamos o filme muito colados a ele, torcendo pelo seu sucesso e encantados com seu talento espontâneo e natural. Mas, o tempo todo sabemos que ele irá preso, já que o filme narra as duas situações em paralelo -­‐ a chegada em SP e a chegada na Prisão. Essa apreensão nos distancia do que é divertido e delicado no filme. Frequentemente me vi envolvido com o filme e me dizendo: "Ai não, agora ele vai fazer uma besteira e vai ser preso." O filme cria um tipo de tensão absolutamente desnecessária, que mais nos distância do que o filme tem de rico do que nos mantém junto à ele. Um filme popular que espera uma boa distribuição. DVDs a 5 reais, por exemplo! Cézar Migliorin Polis + Arte Disponível em http://a8000.blogspot.com.br/2007/09/estmago-­‐de-­‐marcos-­‐jorge.html Diretor Marcos Jorge estréia em longas com "Estômago" "Sob a aparência de uma comédia, eu queria fazer um filme mais profundo", diz o diretor Marcos Jorge a respeito de "Estômago", seu primeiro longa-­‐metragem, que estréia hoje nos cinemas. O viés cômico do filme é dado pelos embaraços em que se mete o protagonista Raimundo Nonato (João Miguel), ao tentar se adaptar a uma região (o sudeste e o sul do país), a um trabalho (o de chef) e a um estilo de vida (o das grandes cidades) que não são originalmente os seus. Trata-­‐se de um personagem "ingênuo e ignorante, mas inteligente", na definição do diretor do título. Sem nada no bolso e uma modesta mala nas mãos, Nonato sai do Nordeste, em busca de uma nova perspectiva de vida. Do primeiro emprego -­‐como o sujeito que frita coxinhas num boteco de nulas credenciais gastronômicas-­‐, Nonato consegue pular para a cozinha de um restaurante italiano (o país europeu é co-­‐produtor do filme), onde aprende as manhas da profissão. A aparente ascensão de Nonato é interrompida por uma decepção a que ele responde com um primitivo e criminoso ato de vingança, indo parar na prisão. Na cadeia, o agora gourmet busca novamente uma escalada "social", a partir de sua habilidade na cozinha. O caráter "profundo" que Jorge quis dar a essa história reside num "ensaio sobre a alma humana em relação ao poder". Metaforizado na digestão, que começa com o prazer do gosto e termina em excremento, o poder, em "Estômago", decompõe (o humano). Por isso, "o filme começa com a boca e termina com a bunda", aponta Jorge, ciente de que nem todos os espectadores se dão conta de sua intenção ao descrever esse percurso. A quem o perceba, o cineasta está "consciente do risco" de desagradar, não exatamente pelo discurso, mas pela forma que o filme assume. "Sei que flertei de maneira perigosa com o grotesco e a obscenidade, mas eu queria fazer um filme visceral, uma comédia de humor negro", afirma ele. Curitiba "Estômago" foi filmado em Curitiba, onde Jorge vive e de onde saiu também boa parte do elenco que contracena com João Miguel. Exceções são as presenças do carioca Babu Santana e do "titã" Paulo Miklos, ambos interpretando chefões do crime. "A presença de Miklos em "Estômago" é obviamente uma homenagem minha ao filme do Beto Brant ["O Invasor", em que o ator interpreta o papel-­‐título]", diz o cineasta. Outros diretores que influenciaram Jorge e a quem ele procurou prestar tributo em seu primeiro filme são "o Peter Greenaway da primeira fase, em que fez "O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante", um ótimo filme de cozinha, e o mestre Sergio Leone". Jorge chegou a conhecer Leone, quando foi estudar cinema na Itália, onde morou por mais de uma década. Em 2001, o diretor percebeu que "dava para fazer cinema de novo no Brasil", após o colapso da produção enfrentado nos anos 90, e retornou ao país. "Ou voltava naquele momento, ou não voltava mais." Silvana Arantes Folha de S. Paulo – 11 de abril de 2008 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u391131.shtml De grão em grão Para Marcos Jorge, foram 13 viagens internacionais em 2008. No domingo de Páscoa, contou oito finais de semana seguidos de trabalho ininterrupto. Se Estômago (2007), o primeiro de seus longas de ficção a ser lançado, começou pequeno no orçamento – um milhão de reais na produção e outro milhão na pós –, cresceu, ganhou o Brasil e além. E, em abril, levou cinco prêmios da Academia Brasileira de Cinema, incluindo Melhor Longa-­‐metragem de Ficção de 2008 e melhor filme na votação do público – enfrentando concorrentes de peso como Ensaio sobre a cegueira (2008), de Fernando Meirelles, e Meu nome não é Johnny (2008), com orçamento duas vezes maior e público de 2,1 milhões de pessoas (Estômago fez 100 mil espectadores nos cinemas). A premiação coroou a carreira do filme brasileiro mais premiado no exterior em 2008 – lá fora foram 14 prêmios. O pontapé inicial no Festival do Rio de 2007, em que também levou melhor filme do júri e do público, e mesmo o sucesso no de Roterdã, na Holanda, não foram suficientes para tirar de Estômago a condição de coadjuvante no Festival de Berlim do ano passado – que teve Tropa de Elite (2008) como a grande sensação. Mas como o próprio Marcos Jorge conta na entrevista abaixo, quando se tem pouco dinheiro para investir em mídia – foram apenas dois anúncios em jornal, um no Globo, outro na Folha – o impacto vai acontecendo aos poucos. Ciente do caminho trilhado, esperava que seu filme fosse o brasileiro indicado ao Oscar. Não foi. Na conversa, que aconteceu três dias depois da vitória no Grande Prêmio Vivo, não escondeu a frustração por não ter sido o selecionado brasileiro ao Oscar – o que coube ao fraquíssimo Última Parada 174 (2008), de Bruno Barreto. Ainda que ele tenha sido uma surpresa para muitos, Marcos Jorge, 45, estava preparado para o sucesso. Pragmático e metódico, foi o melhor aluno do curso de eletrônica no ensino médio do Cefet (hoje Universidade Federal Tecnológica do Paraná). Apesar da afinidade com a matemática, percebeu, ali, que seguiria o caminho das artes. Pela falta de competência como pintor, como ator e músico – apesar de sua cultura musical acreditava que era tarde para tal – encontrou no cinema a forma de arte para exercer cada um desses ofícios – ainda se revelaria um bom fotógrafo de still, faceta apresentada no livro Brasil Rupestre – Arte Pré-­‐Histórica Brasileira. E na faculdade de jornalismo da Universidade Federal do Paraná, o caminho mais próximo do cinema – seu pai era motorista de caminhão, sua mãe, que lhe ensinou a ler em casa, era costureira e não tinham condições de bancar sua ida para outra cidade. À época, não existia em Curitiba um curso de formação em cinema. Logo depois de concluir o curso de jornalismo, em 1989 foi à Itália estudar cinema. Lá, por onde viveu mais de dez anos, teve as mais diversas experiências – trabalhou com filmes institucionais e publicitários e, talvez na mais divertida delas, pediu emprego a Bernardo Bertolucci em uma carta-­‐vídeo. Por incrível que pareça, recebeu retorno do cineasta em sua secretária eletrônica e acompanhou a montagem de O pequeno Buda (1993) – fato que ele conta em detalhes logo abaixo. Em paralelo, Marcos Jorge sempre realizou seus trabalhos experimentais, com os quais foi reconhecido em diversos festivais – uma trajetória que certamente merece ser revista. Discutindo os limites da tela, exibiu a videoinstalação A condição humana segunda parte: o medo e seu contrário (2000) nos subterrâneos de um castelo de Roma, em uma superfície redonda. Em 2001, retorna ao Brasil, quando parte para a produção em 35mm em dois curtas com narrativas mais convencionais – sem porém abandonar certo grau de experimentalismo. Com Fernando Severo, com quem divide trajetória semelhante – sentaram-­‐se nos mesmos bancos da Cinemateca do Museu Guido Viaro, em Curitiba, e transitaram do experimentalismo a narrativas mais formais em seus curtas –, codirigiu o longa-­‐metragem Corpos Celestes, no começo de 2006 – sobre o qual fala dos bastidores da filmagem. O curioso é que em uma mesma semana de 2004 recebeu a notícia de que os dois projetos – Corpos e Estômago – haviam sido aprovados em editais. Rodou os dois em 2006. Mas com aporte italiano, finalizou Estômago antes. Neste maio, ruma para Cannes para divulgar Corpos Celestes -­‐– que pode vir a ter outro nome de lançamento – e Dois sequestros, seu próximo trabalho. De batismo Marcos Joel Jorge, vive em Curitiba com seu filho Pedro – que tem em seu quarto o único cartaz de cinema na casa, o de um filme de Sergei Parajanov – e sua esposa Cláudia da Natividade, produtora de seus filmes e a quem atribui a condição de trazer-­‐lhe a objetividade que lhe faltava. Você conheceu o Brasil ainda pequeno junto com seu pai, que era caminhoneiro. Exatamente. O meu pai era caminhoneiro e viajava pelo Brasil e quando eu era criança fiz viagens com ele na boleia, o que foi muito legal. Até hoje, quando estou numa estrada, ou em um hotel à beira da estrada, tem vezes que acordo no meio da noite e volto a ser criança. Eu viajo muito, realmente muitíssimo, e às vezes acordo sem saber em que cama estou. Uma memória muito forte, mágica. Tem memórias que a gente nunca esquece. Na velhice, é o tipo de memória que nem mesmo o Alzheimer destrói. Esses aspectos deflagraram sentimentos que ficam profundamente arraigados e definem quem realmente somos. A estrada tem uma carga antiga em minha memória. Isso é muito interessante, pois certa vez conversei com o documentarista Joel Pizzini sobre a presença da linha do trem em praticamente todos os seus filmes. Ele me contou de uma referência da infância, em que um trem passava muito perto de sua casa. No teu caso, a estrada é um elemento presente em quase todos os teus filmes. De fato, especialmente em meus trabalhos anteriores. Nunca tinha pensado no meu pai, mas sem dúvidas a jornada, o movimento, fazem parte. O meu pai morreu quando eu tinha 17 anos, na estrada, inclusive, em um acidente na Dutra, dirigindo o caminhão dele, um fenemê. Era anos 70, o caminhão era uma tosqueira total: o ar condicionado era uma janelinha que abria. Tanto que se ele tivesse em um mais moderno talvez não tivesse morrido, pois foi a falta de espaço na cabine que acabou matando-­‐o. Mas viajar de caminhão é um tipo de viagem que te deixa muito consciente: você está muito alto, tem muito vidro e é lento. Viajar não é simplesmente ir de um lugar para o outro – isso é viagem de avião. De automóvel, especialmente de caminhão, é viajar curtindo a viagem. Isso é cinema. E nada mais cinematográfico que uma viagem de caminhão. É muito interessante e eu nunca tinha pensado na influência da viagem no meu cinema. Mas sem dúvida tem uma coisa fundamental: viajo, hoje, mais que meu pai. E isso está em seus filmes experimentais: um é dirigido “por” Marcos Jorge, o outro, “by” Marcos Jorge, um terceiro tem os créditos em italiano, um quarto em Francês... Tem um projeto que eu desenvolvi na França que é o A condição humana segunda parte: o medo e seu contrário. Eu tinha uma bolsa no Centro Internacional de Criação Vídeo de Montbéliard, que depois fechou, mas à época era a principal escola de videoarte do mundo. A condição humana era para ser uma trilogia completa, tinha um terceiro projeto, mas aí o cinemão, a telona do cinema, me pegou completamente e não tive mais tempo. Até gostaria de voltar a trabalhar com videoinstalação – agora no segundo semestre talvez pare um pouco e consiga fazer algumas coisas menores antes de encarar meu próximo filme, que é o Dois sequestros. Também estou escrevendo outros projetos que estão em diversas fases de desenvolvimento, mas cinema te demanda muito trabalho. Lembro que na videoinstalação A condição humana segunda parte há uma cena muito forte que é a do parto. É o nascimento de minha sobrinha. O filme é um poema visual e a tentativa dele na verdade é de fazer a poesia unicamente com imagens. A videopoesia em geral é paradoxal, pois tem como base a poesia recitada com imagens que pouco a ilustram. Queria fazer um filme usando as imagens como um poeta pensa as palavras. Se cada imagem fosse um verso, o que seria a rima? Usei imagens fortes e diretas que comunicam sem a necessidade de mais palavras. Talvez o trabalho que fiz menos concessão até a mim mesmo. Foi rodado em Super-­‐8, o que te dá uma liberdade muito grande. E tem imagens que gosto muito – sem dúvida, a do parto é uma delas. O curta foi pensado para ser um espetáculo multimídia – é uma característica do meu trabalho nos anos 1990 o uso de várias mídias. Essa instalação foi um dos momentos mais sensacionais da minha vida: montei uma tela redonda de quatro metros de diâmetro, nos subterrâneos de um castelo medieval na periferia de Roma. Era um lugar que parecia um gigantesco forno; era uma estrebaria. A forma da tela parecia um olho. Tudo acompanhado de músicos, no local, tocando música ao vivo. Aí inundávamos a sala com fumaça de gelo seco, como se as pessoas estivessem flutuando em uma nuvem. Foi sensacional o espetáculo, que pôde ser visto como uma instalação e hoje como um vídeo de 26 minutos. O que sempre me interessou na videoarte são as possibilidades de uso da imagem em movimento em situações não-­‐bidimensionais, como projetar nas coisas, no chão ou em duas telas. O meu trabalho tem uma pesquisa no sentido de ampliar os limites da tela. Depois de estudar jornalismo na UFPR – opção que te pareceu a mais próxima de cinema – foi à Itália estudar cinema. Estudar cinema no Centro Sperimentale di Cinematografia. E logo na sequência, fui fazer assistência de direção na Cinecittà. Eram projetos grandes, blockbusters de produção internacional rodados na Itália. Eu já falava italiano, francês, inglês e português e fui candidato óbvio para ser segundo assistente em uma série de produções. Eram filmes bastante comerciais de nenhum diretor muito famoso. Mais tarde, conheci o Bertolucci. Essa história é muito interessante, sobre a qual gostaria que comentasse a respeito. Quando eu estava em Roma, percebi que deveria buscar outra experiência e um amigo me levou na produtora em que trabalhava – não tinha lugar para diretor, mas para montador e comecei a aprender a montar em uma ilha A-­‐B roll Betacam. Durante dois anos montei documentários entre outros trabalhos. E o encontro com Bertolucci vem de que eu me vi em uma produtora que tinha câmera e uma ilha de montagem à disposição e soube que ele estava indo fazer O pequeno Buda (1993). Meu melhor amigo era o terceiro assistente do Vittorio Storaro (diretor de fotografia do filme). E pensei, bem, preciso falar com o Bertolucci, mas como chegar até ele? Resolvi fazer um vídeo baseado em O inconformista (1970). Também fotografado por Storaro. Exatamente por isso mesmo. O pequeno Buda, por sinal, foi a última parceria entre eles. Fui em várias locações do filme e me filmei falando para ele – usei muita voz off também. E daí fiz uma coisa chamada Carta a Bertolucci, no final pedindo descaradamente emprego. Como as pessoas mandam currículo, mandei esse filme para ele como uma carta para o escritório dele. No dia seguinte chego em casa – naquela época usávamos secretária eletrônica – e tinha a voz dele dizendo “sou Bernardo Bertolucci, gostei muito do seu trabalho, me ligue para a gente conversar”. Na versão final do curta, a gravação aparece junto aos créditos. Como trabalhava muito e estava muito em cima da hora, não pude estar nas filmagens, mas acompanhei a montagem do filme. E Carta a Bertolucci viajou para mais de vinte festivais. Na sequência fiz Reflexões (1994), que foi meu primeiro trabalho autoral – Carta... era uma brincadeira. No seu portfólio publicitário tem trabalhos divertidíssimos. No meu repertório histórico tem muita comédia. O comercial é uma grande escola. Te ensina a resolver problemas, a ser objetivo, profissional, lidar com equipes grandes – tem dinheiro grande e responsabilidade equivalente. Talvez no experimentalismo, na arte, você não tenha essa obrigação. Então te dá uma capacidade de encarar a profissão de diretor não como “cineasta”, mas como alguém que para dirigir tem que conhecer determinadas ferramentas da função. Sempre digo que prefiro me definir como diretor de cinema do que cineasta. Cineasta deveria ser reservado aos grandes mestres. Fellini é cineasta, Leoni, Nelson Pereira. A maior parte de nós somos diretores. Os melhores de nós, jovens, são diretores, aqueles que sabem dirigir cena. Diretor é como encanador, como pedreiro, é como médico, que domina certos conhecimentos e tanto usa esses conhecimentos para si mesmo como pode usar para um programa de televisão, documentário, uma coisa encomendada. E a publicidade é uma coisa de encomenda. É como é esse trabalho? O desafio de narrar, de te darem um roteiro de duas páginas, com uma história gigante, e você ter de colocar tudo aquilo em trinta segundos. Não é bolinho. Tem coisas que você não acredita: lê o roteiro e só aquilo que está ali, dito, mede mais de trinta segundos. E você vai ter de contar a história. É desafiador fazer publicidade narrativa. Eu não sou especialista em videoclipe e não sou especialista em publicidade limpinha, a platinum. Sou especialista em histórias e filme de ator; dirigir atores e contar, decupar histórias visualmente. A publicidade que eu faço é sempre narrativa, tem sempre história e atores falando. E frequentemente temos de fazer em trinta segundos coisas que não pareciam caber nem em um minuto. E é incrível como cabe coisa em trinta segundos. E aí você tem de ser muito econômico e direto ao ponto. Bem, não preciso de outros exemplos, diretores que foram ou são publicitários: Fernando Meirelles é diretor publicitário, Walter Salles foi diretor publicitário, Andrucha Waddington é, o Breno Silveira também. Noventa por cento dos novos diretores brasileiros são ou foram diretores publicitários. Barcinski... Philippe Barcinski. Mas por quê? Porque nos começo dos anos 90 no Brasil não se fez cinema. Não tinha cinema. Então o que manteve as equipes trabalhando e o know-­‐how de como se faz cinema no Brasil? Foi a publicidade. E quando esses novos diretores chegaram no mercado eles tiveram a mesma conclusão que eu: durão, eu não quero ser, então vou fazer o quê? Publicidade. Só que tem uma coisa em que a publicidade é terrível: é dificílimo de entrar. Por que o que é a publicidade? Alguém acredita que você é um bom diretor e coloca na tua mão R$ 500 mil para fazer um filme. Você tem um budget de R$ 200 mil, R$ 500 mil, R$ 1 mi ou R$ 1,5 mi, não é seu o dinheiro, mas você está lidando com um filme que custa um milhão. E por que, no início dos 2000, voltar ao Brasil? No ano de 2000, já estava casado, fazia sete anos que estava com a Cláudia, então era o momento de pensar sobre ter filhos e ficar ou não na Europa. Foi um ano interessante para o Brasil, pois depois do plano Real a economia se estabilizou, o cinema voltou a acontecer, tudo era otimista. Ou a gente voltava naquele momento ou nunca mais voltaria e eu estaria até hoje na Itália. E era uma dúvida mesmo, pois passei mais de seis meses com apartamento em Milão e a casa em Curitiba. A Cláudia começou a fazer o mestrado em Ciências Políticas (na UFPR) enquanto eu voltava para Milão, viajava para os Estados Unidos – estava indeciso. Mas botei o pé no Brasil e comecei a fazer publicidade e vi que dava. E comecei imediatamente a viabilizar os meus curtas. Fiquei indo e voltando até que em 2001 deixei meu apartamento em Milão e decidi voltar. Abrimos a Zencrane e durante o Carnaval de 2001 eu rodei O encontro e no final do mesmo ano rodei o Infinitamente maio. O primeiro curta em 35mm (O encontro) é pouco narrativo ainda que tenha uma narrativa que você chamou de circular. Já Infinitamente maio é efetivamente sua primeira experiência com uma narrativa mais formal. Digamos que é o meu primeiro trabalho em que a palavra dita, a representação do ator num modo convencional, tem um grande peso. N’O encontro é um híbrido de toda a experimentação visual dos anos 90 com diálogos. O curta é um ensaio sobre a narrativa cinematográfica, em que através do plano e contraplano você pode contar uma história absurda que de outra maneira não poderia ser contada. Uma história que só se conta porque eu corto – se não, os personagens não poderiam nem trocar de roupa instantaneamente de um corte para o outro. É realmente um momento de síntese. Tal como agora estou sentindo a necessidade de fazer um drama – o meu próximo filme é um drama –, senti que naquele momento eu precisava fazer um filme mais convencional do ponto de vista de atores dizendo palavras. Eu conversei com o Rodrigo Ferrarini, um dos atores de Estômago, e a primeira coisa que ele me falou foi que normalmente os bons diretores de atores são do teatro, por colocarem o ator como peça fundamental. E que se surpreendeu com você por algumas razões: por ter o ouvido muito sensível, muito atento a tudo, por saber o que quer e por ser esse bom diretor de atores. Além disso, ressaltou o quão importante foi ensaiar antes de gravar. Ensaio é fundamental para mim. No Brasil tem uma moda, uma tendência, de se trabalhar com preparador de atores. Acredito que isso seja uma derivação do fato de que alguns filmes de grande sucesso tenham sido feito com não-­‐atores. Já trabalhei com não-­‐atores, mas não sou fã disso. Prefiro trabalhar com atores, e com ator adoro a preparação de elenco, o ensaio. Então não consigo entender como os diretores dão essa parcela tão gostosa de seu trabalho para uma outra pessoa fazer – muito embora reconheça o trabalho dessa pessoa, um especialista nisso. Mas, para mim, a concepção de personagem nasce do ensaio. Porque filmar, em qualquer situação brasileira, é tão caro, tão tenso. Se tem tão pouco tempo para experimentar que se não estiver todo mundo sabendo, tudo muito combinado – atores, diretor, técnica – não se consegue fazer o que se quer. Se deixar para experimentar durante a filmagem, está ferrado, porque vai fazer experimentalismos de baixo calibre – algo muito rápido, em que terá que acertar na primeira coisa que aparecer. Enquanto que, se ensaiar, pode filtrar depois na filmagem as coisas boas e as coisas ruins que vêm do ensaio. A minha meta é ensaiar o mesmo tempo que eu vou filmar. Se filmei o Estômago em cinco semanas, ensaiei em cinco semanas. O que custa, é caro manter os atores de fora por semanas ensaiando – e por isso mesmo não se ensaia muito no cinema brasileiro. Mas acho que vale o investimento, pois na hora de filmar se tem objetividade. Por que Estômago custou tão barato se comparado ao cinema brasileiro? Porque a gente preparou muito o filme. E essa preparação que parece cara (porque é só dinheiro que sai, nada fica na lata), com meses de preparação, gente trabalhando no teu escritório, na hora que se vai filmar, se economiza. A equação foi investir na preparação para economizar na filmagem. No volume do roteiro editado na coleção Aplauso, a Cláudia lembra da semana de dezembro de 2004 em que vocês tiveram dois projetos contemplados. Exatamente. Um é o Corpos Celestes, que vai sair agora – por uma série de razões a gente filmou antes e vai acabar depois. E o outro é o Estômago. E mais o livro – tínhamos ganhado o edital da Petrobrás alguns meses antes para fazer o livro do Brasil Rupestre. Você imagine a quantidade de trabalho. Tínhamos um escritório forte em São Paulo e outra sede em Curitiba. Foi aí que transferimos nossa casa para cá e fizemos dois longas ao mesmo tempo. Em Corpos Celestes temos dois diretores. Fernando Severo, que é o cara que é o grande expoente da Geração Cinemateca, em Curitiba, muito premiado, que fez filmes, tal como você, experimentais e depois foi para o mais narrativo. Vocês eram os principais nomes do cinema paranaense e na produção do longa começa-­‐se a ouvir que vocês estão em conflito no set. Como foi isso, existiram conflitos entre vocês no set? Não, não teve conflitos de verdade no set. Todo mundo apostava que a gente iria ter conflitos no set porque nenhum de nós dois somos pessoas fáceis. O Fernando tem um histórico de pessoa difícil e eu também não sou fácil. E aí faz sentido falar do Corpos antes, pois o rodei antes de Estômago. E a experiência no filme, como diretor e produtor, foi bastante embasadora para o Estômago, que é um filme no qual sou um diretor mais maduro do que era no Corpos. Além do que o Corpos foi um grande esforço físico, pois além de dirigir com o Fernando eu operei câmera – o que é uma coisa que eu nunca mais vou fazer, pois é algo extremamente cansativo fisicamente. Eu frequentemente opero a câmera nos comerciais também, pois gosto de ficar próximo aos atores – não sou um diretor de vídeo assist, não gosto de ficar vendo os atores através da televisãozinha. Gosto de ficar perto para ver o que eles estão fazendo e te garanto que o vídeo assist é uma droga para ver o que eles estão fazendo, pois se abriu um pouco o quadro, você já perde. Bem, eu tinha dois argumentos separados. Um deles se chamava O telescópio, um roteiro de curta que se passava nos anos 20, a relação de um menino com um homem mais velho através de um telescópio, que é esse instrumento mágico que mostra as estrelas mas que também aproxima as pessoas – e que é o embrião do Corpos. Esse roteiro o Fernando conhecia. E eu tinha outro argumento que se chamava O astrônomo e a prostituta. E eu sempre tive paixão por cosmologia e vinha desenvolvendo essa história desde 1998. Fala de um astrônomo que vive nas estrelas e não entende a vida cotidiana e uma mulher que seja o contrário dele – uma prostituta que vive a carnalidade das relações de poder. Meses antes de abrir o edital, de surgir a necessidade de escrever um roteiro, a gente já conversava e veio a ideia de fazer um trabalho juntos. Juntos você e o Fernando Severo, é isso? Isso. Aí contei ao Fernando a história d’O astrônomo e a prostituta e ele relacionou com O telescópio: e se o menino do telescópio for a mesma pessoa? É óbvio, pensei, ele pode ser a mesma pessoa e passamos a escrever o roteiro. Chamamos o Mario Lopes e o Edu (o paulista Carlos Eduardo de Magalhães) e a gente escreveu essa história a oito mãos; escrevi mais com o Mario e o Eduardo enquanto o Fernando ficou mais na retaguarda, para dizer o que achava. Escrevo muito fisicamente e quando escrevo com outras pessoas sou eu quem recebe e faz a organização formal dos roteiros. E aí inscrevemos essa história no edital e vencemos. É claro que existe no Corpos Celestes uma diferença de visões que permeia um pouco isso – o que é inevitável, afinal somos em dois diretores. Mas a gente não brigou em nenhum momento, não teve nenhum grande atrito no set. Até pelo estilo do Fernando, devo dizer. O estilo do Fernando no set é um estilo mais contemplativo. É mais um estilo de vídeo assist. Enquanto eu operava a câmera, no set, até por minha experiência de tocar o set, o Fernando era mais contemplativo. Não teve nenhum conflito sério. Agora, que estamos lançando o filme e temos de definir o nome comercial dele, temos de pensar que o Corpos tem uma dimensão diferente após o sucesso de Estômago. Já foi definido o nome do filme? Eu torço por um, ele torce por outro. Ele ainda deseja o Corpos Celestes e eu quero O céu do dia em que nascemos. Que é bonito, não é? É bonito, eu acho. É bastante bem aceito pelos distribuidores e pelas pessoas de cinema. “Celestial bodies”, para todas as pessoas de língua inglesa com quem eu comentei, parece filme pornô. Não vai ter jeito: o título em inglês vai ser The Sky we were born under, que seria em português “O céu sob o qual nascemos”. Como lidar com o sair desse quase anonimato de ser um diretor de curtas – que só mais recentemente se deu conta que não era tão conhecido – para tornar-­‐se o diretor do melhor filme brasileiro do ano? Essa é uma coisa que acontece lentamente na minha vida, até mesmo com a carreira do Estômago foi assim. Na primeira vez que o Merten publicou alguma coisa do Estômago escreveu “esse diretor desconhecido”, o que é natural, pois nunca tinha ouvido falar de mim. E o Estômago fez grande sucesso inicial, mas é engraçado, pois é um filme pequeno, e quando não se tem mídia ou a Globo Filmes, ou uma major por trás, ele não impacta todas as pessoas ao mesmo tempo. A gente impactou muito o Rio de Janeiro em um primeiro momento – uma parcelinha do Rio de Janeiro, público de festival, né? Aí demorou quatro meses, porque foi para os festivais internacionais, críticos internacionais. Levei meses para lançar o filme, pois não estava pronto, cometi alguns erros de preparação, de delivery, técnicos mesmo, não tinha um trailer pronto. A gente queria lançar dia primeiro de janeiro, quando o Bruno (Wainer), o mesmo distribuidor do Johnny, na mesma janela do Johnny. Mas não estávamos prontos. Ele saiu em abril e foi impactando: Rio, São Paulo, com críticas excelentes, foi abrindo e abrindo, mas é um filme pequeno, saímos com 15 cópias no Brasil – um circuito limitado. Quando veio o DVD, aí o impacto foi bem maior – é um dos campeões de locação em termos de rotatividade. Na locadora perto da minha casa em Curitiba – e eles não sabiam quem eu era –, um locadora bem pequenininha, foi o segundo mais locado de dezembro, atrás do Batman. Aí sentiu que o negócio estava pegando. Isso, que estava bombando. O que aconteceu: o Estômago teve muita mídia espontânea. Ele saiu no lançamento com dois anúncios de jornais – um na Folha (de São Paulo) e um no Globo. Dois. E não tinha mais; em um dia acabou a mídia do filme. Então a gente teve mídia espontânea: blogs, críticas, o mapa das coxinhas de São Paulo, e os caras falando de comida, os chefs falando do filme. Isso impactou. Todo mundo ouviu falar do Estômago, só que não tinha tido acesso ainda – caso da maior parte do interior do Brasil, que só agora vai ter acesso. Agora vai sair o DVD para colecionador e em junho o Blu-­‐ray disc. Depois vai para a HBO e até o final do ano vai para a Globo e lá vai dar como melhor filme brasileiro de 2008, grande vencedor... E quando for para a Globo, vai impactar todo mundo, milhões de espectadores. E tudo isso reflete no quanto sou conhecido. É engraçado, pois quando fui a Berlim, embora já tivesse vencido o Festival do Rio e roubado totalmente a atenção no Festival de Roterdã, ninguém me conhecia. E aí o filme foi crescendo, as pessoas viram a importância dele. Mas e aí, pô, na hora da decisão do Oscar, o Estômago era o filme brasileiro mais premiado do ano, era o filme brasileiro que tinha mais vendido no exterior no ano, e eles escolheram outro filme – Última Parada 174 (2008), de Bruno Barreto. Se a decisão do Oscar fosse hoje era impossível não indicar o Estômago. Não existiria não indicar Estômago. Acreditei que com o Oscar eu tinha perdido uma ocasião histórica, que Estômago tinha perdido uma ocasião histórica, achei que o filme tinha acabado ali. Vendo o perfil de uma série de filmes que ganharam o Oscar de filme estrangeiro, o Estômago... É óbvio. Mas a decisão foi outra também porque foi uma decisão tomada por poucas pessoas. A decisão da academia é muito democrática e todo mundo vota na internet, um voto secreto. Claro, você faz os lobbies, mas no final prevalece a vontade da maioria. O momento do Oscar foi muito triste para mim. Eu estava esperançoso. E com certeza isso teria mudado a minha vida, pois ser indicado ao Oscar muda a sua vida. Teria muito mais facilidade para fazer meus próximos filmes. Eu lamentei muito a perda de uma ocasião dessas que é única. Espero que se repita na minha vida, mas é muito difícil você acertar a mão. Há três dias (14 de abril) você venceu os principais prêmios da Academia Brasileira de Cinema, um momento que coroou esse trabalho. Um momento que deu uma arredondada. O filme se impôs. Também porque Estômago é um filme tão humilde, o personagem é humilde, a história é humilde – fala de prisão, de cozinha. Quem vai fazer filme intelectual falando de cozinha, quem é? No cinema brasileiro ele entrou humilde, pequeno, lá no Festival do Rio. Não foi fanfarra. Todo o trabalho decorre do filme. Mas lentamente, como o Nonato, vai se impondo pela inteligência. À parte alguns críticos que viram logo a importância do filme – o Merten, o Fonseca – nem todos viram o filme por inteiro. Por minha sorte, todos gostaram. Eu não tive críticas negativas. Só que alguns críticos não viram a relevância dele. Hoje posso dizer com todas as palavras: é um filme relevante na cinematografia brasileira. É uma forma de fazer cinema pouco praticada no Brasil, que combina elementos pouco combinados por aqui. O que é isso que você entende que o filme trouxe para o cinema brasileiro e que ele não tinha. Não que não tinha, porque ser original, no mundo, é muita pretensão. O que se usa pouco no cinema brasileiro é misturar comédia com filme de autor. Também acho que em alguns momentos ele (Estômago) se deparou com o preconceito que existe na inteligência brasileira contra a comédia. Aqui, temos problemas com a comédia, com o palavrão e com o nu. Cinema brasileiro até determinado momento foi chanchada, depois pornochanchada. Era muito sexo, escrachado e a tentativa de ser engraçado. Isso criou um preconceito gigante com esse cinema. Durante décadas o nosso cinema ficou sem sexo, capado – veja a dificuldade que o nosso cinema tem de mostrar sexo. E não pode falar palavrão. Estômago provavelmente seja o filme brasileiro com mais palavrão dos últimos tempos, veja que ninguém ressaltou isso – uma crítica só deu uma pequena criticada nisso. Eu pensei que iam me destruir por causa do palavrão. Sexo, palavrão e comédia, o terceiro aspecto. Por que nós temos preconceito com a comédia? Porque a comédia é ligada à televisão, aos programas humorísticos, e fazer rir às pessoas parece menos nobre que fazê-­‐las chorar. Quando na verdade é exatamente o que diz o Jorge Furtado: é o contrário. Fazer as pessoas chorar é muito mais fácil que fazê-­‐las rir. Claro, de maneira inteligente; mostrar alguém tropeçando numa casca de banana é fácil. Agora, fazer uma pessoa rir de uma piada inteligente... E no Estômago, sem ser modesto, você ri muito. Alguns críticos, por sorte não a maioria deles, demonstraram o seu preconceito com a comédia. No começo, eu era muito sensível às críticas, mas fui amadurecendo. E nesse processo todo me acostumei a ser reconhecido, um diretor valorizado. Rafael Urban Juliette Revista de Cinema n° 007, maio/2009 Disponível em http://www.julietteeditora.com.br/page62.html O humor dos detalhes Se houvesse cinema popular no Brasil, e não apenas filmes com vocação popular, Estômago seria visto por milhões de espectadores. Desde sua primeira informação narrativa, em forma de narração em off de João Miguel, sentimos o pacto com a comédia verbal. O humor não está tanto no que está sendo dito pelo ator, mas na maneira com a qual ele diz para produzir o efeito cômico. E assim será em todo o restante do filme: a graça está no ritmo das palavras, nas freadas, nas interjeições, em alguma expressões, em uma autenticidade de cinema, em um naturalismo que não esconde sua carga de representação, de código de comédia, criando uma sedução imediata. Os diálogos são um ponto muito alto em Estômago. Cinema da palavra? Longe disso. Marcos Jorge sabe dirigir para seus atores e para as situações nas quais estão envolvidos, chamando pouca atenção para suas construções visuais – e ameaçando derrapar quando o faz, em busca de uma visualidade chique e publicitária em poucos momentos, para qual colabora algumas imagens do fotógrafo Toca Seabra e uma música exageradamente explorada quando a coisa aperta. Esse senão não inibe a potência do que realmente importa em Estômago: o anedotário em torno do protagonista-­‐narrador, Raimundo Nonato, e a performance dos intérpretes (João Miguel e Babu Santana sobretudo). Não há um único momento em que essas atuações-­‐shows entrem em competição com o material, ou mesmo com os personagens, porque os personagens são essas atuações. Só estão ali como imagens e presenças capazes de nos cativar com suas características. Sim, há estereótipos. Mas se brinca com eles. Brinca-­‐se também com as expectativas criadas a partir dessas caricaturas. Dessa maneira, a evolução do percurso de Nonato, o paraibano que chega ao Sudeste, vira cozinheiro de pé-­‐
sujo, ascende para a cozinha de um restaurante italiano e vira o chef de sua cela na cadeia, não canta os passes. Embora a narrativa se desdobre em dois segmentos temporais, um acompanhando sua evolução como cozinheiro, outro a sua ascensão na prisão pelos dotes culinários, não parece haver antecipação da causa de seu encarceramento, deixando a revelação para os momentos finais. Um final surpreendente em alguma medida, porque, na apresentação e desenvolvimento de Nonato, vemos um tipo ingênuo e devagar na compreensão, uma ignorância com talento, sem nenhum tipo de sinal de maldade ou amoralidade à vista. Esse choque entre o que vemos do protagonista, alguém puro, e sua condição de criminoso trancado no xadrez, cria certo desconforto porque sabemos, de alguma forma, que as imagens vistas não traduzem tudo. E esperamos esse momento da revelação. Pois essa pureza do nordestino chucro e gente boa será contaminada em parte pelo mundo onde vive, em parte por sua própria mudança, mostrando o quanto a arte, no caso gastronômica, é um exercício de poder, com a qual ele se beneficia e manipula seu entorno para sua afirmação. Nonato é corrompido pelo talento, pela capacidade de agradar com suas criações, de se fazer necessário, do qual todos passam a depender para viver. A arte de forrar os estômagos alheios com capricho e criatividade torna-­‐se a ferramenta com a qual o protagonista mediará sua relação com o mundo. Ele cozinha para ter sexo, para ter sossego, para ter conforto e para ter poder. Não é um zé mané. Apenas come pelas beiradas. Não é o caso de se apegar a esse tema para vermos o filme como uma auto-­‐reflexão sobre a própria condição do criador. Porque a força de Estômago, longe de estar na relação entre os dois focos narrativos, um tanto esquemática em sua equilibrada organização, encontra-­‐se na beleza de alguns momentos. É possível rir e se emocionar simultaneamente com as experiências entre as caricaturas, com a doce visão dos presidiários, com a relação entre Nonato e uma prostituta felliniana, com a própria narração do protagonista. São forças geradas por detalhes, sutilezas, pela explosão verbal de um Babu, por um olhar de lado de João Miguel, por um resmungo, por pequenas modulações de expressões e vozes. Um filme de minúcias, de um conjunto poderoso, que merece transpor certo gueto de circulação. Cléber Eduardo Revista Cinética -­‐ Setembro de 2007 Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/estomago.htm O Mineiro e o Queijo (2010), de Helvécio Ratton Uma cultura que resiste Dentre os traços culturais de Minas Gerais, um dos mais fortes, sem dúvida, é o seu queijo típico. É uma cultura de mais de 300 anos. Por mais que tenha sido rebatizado nos mercados do País por “Frescal” e outras denominações, o Queijo Minas resiste, apesar de ser considerado contrabando fora do seu estado de origem, isto é, não pode ser vendido no resto do Brasil na sua versão artesanal. Este absurdo é uma das facetas apresentadas pelo filme O mineiro e o queijo, de Helvécio Ratton, ainda em cartaz, resistindo, numa única sessão, sempre cheia e aplaudida ao final. Pelos menos foi essa a experiência que tive ao assisti-­‐lo. O documentário, no entanto, vai muito além dessa denúncia. É um convite à degustação física e espiritual. Sai-­‐se com vontade de experimentar um gosto talvez já esquecido ou ainda não vivenciado, tal a simpatia e encanto com que o filme apresenta seus personagens e produtos. Por outro lado, o documentário evoca um tipo de vida que parece não mais existir na face da terra. Esse mundo rural, quase intacto nas suas paisagens e regimes de ser, nos é mostrado com a sua verdade e também com a sua poesia. Coisa rara no cinema contemporâneo. Esse mérito é do seu realizador, Helvécio Ratton, um mineiro intrínseco. Lembra outro cineasta mineiro profundo e histórico, o nosso pioneiro Humberto Mauro que, mesmo fazendo cinema no Rio de Janeiro, por tantos anos, nunca deixou aportar em seus filmes traços de sua mineirice atávica. Ratton não apenas cita o seu conterrâneo em vários momentos do filme, como constrói um relato que coloca em evidência valores que se aproximam aos sotaques, prosódias e convenções familiares do cinema maureano, principalmente o realizado no Instituto Nacional do Cinema Educativo, durante várias décadas. Aliás, essa obra é, seguramente, um conjunto dos mais admiráveis do nosso cinema. A narrativa de Ratton conjuga diferentes aspectos da vida cotidiana, propondo uma imersão nesse tipo de cultura econômica e existencial, para ressaltar a felicidade e a integração que ela representa no ambiente de preservação ecológica do nosso planeta. Certas falas dos personagens atuam como uma espécie de confirmação de que uma outra vida é possível, mesmo que pressionada por toda a tecnologia contemporânea. Os produtores dos queijos artesanais de Minas Gerais, alguns espantados e não entendendo bem as modernidades dos dias que correm, conseguem conviver em harmonia com os próximos, suas famílias e o meio ambiente que os cerca de poesia. Transformam o ato comum, num ato vital e belo, digno da nossa admiração e adesão afetiva. O mineiro e o queijo, de Helvécio Ratton, é um documentário que inova na sua forma simples e verdadeira de nos contar histórias e nos revelar um outro modo de ser que a pressa, a mobilidade e a neurose da vida urbana não nos deixa ver e nem apreciar com gosto e desejo de experimentar. Miguel Pereira Rede Católica de Rádio Disponível em http://rcr.org.br/noticias/ver/critica-­‐o-­‐mineiro-­‐e-­‐o-­‐queijo-­‐de-­‐helvecio-­‐ratton Em filme polêmico, diretor mostra lei "absurda" do queijo de minas O cineasta Helvécio Ratton fez o documentário "O Mineiro e o Queijo", que estreia nesta sexta-­‐feira (30), não apenas por causas políticas. Motivos não lhe faltaram, já que os queijos artesanais de Minas Gerais -­‐-­‐por serem feitos com leite cru-­‐-­‐ não podem ser vendidos no resto do país devido a leis higienistas, consideradas obsoletas (datam de 1952), que acabam favorecendo as grandes indústrias de laticínios. Mineiro criado na região do Serro, Ratton o fez também por causas afetivas, para mostrar que o queijo de minas é não só questão de sobrevivência, mas de identidade cultural. O diretor percorreu fazendas, conversou com produtores e registrou o modo de fazer a iguaria mineira em três regiões do Estado: a Serra da Canastra, o Vale do Paranaíba e a própria região do Serro. Leia abaixo a entrevista com o diretor do filme: Guia Folha -­‐ O mineiro tem uma ligação afetiva com o queijo. Você inclusive? Helvécio Ratton -­‐ Claro. Eu morei, quando criança, na região do Serro. Eu tinha cerca de cinco anos de idade e me lembro de meus pais irem até as fazendas experimentar os queijos; a gente recebia em casa também, aprendi com minha mãe a cultura do queijo. E na minha casa sempre teve queijo, eu guardei essa relação de afeto com o queijo de minas, de gostar dele. E também de perceber como ele foi -­‐-­‐e ainda é-­‐-­‐ importante na formação de Minas Gerais, pois ajudou os moradores a se fixarem na terra, e faz isso até hoje. É falado no filme que o queijo faz parte da identidade cultural, da própria autoestima do mineiro... Faz parte sim, e os produtores consideram que são guardiões de um saber. Este conhecimento chegou às mãos deles, e eles são respeitados por isso. O pessoal da Serra da Canastra é impressionante, há um personagem do documentário que diz "fazer queijo, pra mim, é uma honra." Você teve algum problema para conseguir os depoimentos de trechos mais polêmicos do documentário, como os produtores que vendem ilegalmente para São Paulo e o Rio? Na verdade, eu não tive problema, eu protegi esses produtores. Eles não tinham ideia da gravidade das declarações que estavam me dando. Não coloquei o rosto da pessoa que deu essa declaração, mas ela gravou de cara limpa, sem se preocupar. Eles se abriram muito com a gente por se identificar com o que estávamos fazendo. Eles sabiam que era algo que ia lançar uma luz sobre a situação deles. Mas eles precisavam de proteção, pois o que eles fazem é algo contrário a lei. E você pretende continuar lutando por essa causa? Eu quero que eles tomem o filme pra eles. Meu negócio é cinema, o deles é fazer queijo. Eles gostaram muito, os produtores foram à sessão em Belo Horizonte. Era a primeira vez que eles entravam numa sala de cinema, eles estavam fotografando a sala. Não tem mais sala de cinema do interior. Eles estavam loucos, se viram na tela grande, é diferente de se ver no monitor de vídeo. Pra quem você fez o filme? Eu queria que, em primeiro lugar, o público visse o filme, pra se informar de uma situação absurda. A primeira condição pra que você possa mudar uma realidade é que as pessoas se informem. E, em um segundo momento, que as autoridades vejam o filme e respondam aos questionamentos que são feitos. O documentário tem uma proposta dupla de informar e polemizar, e de questionar se as restrições que existem até hoje são justas. É importante que a gente saiba porque isso é assim e, se for o caso, porque deve continuar assim. Clara Massote e Deborah Couto e Silva Guia da Folha de S. Paulo -­‐ 30 de setembro de 2011 Disponível em http://guia.folha.uol.com.br/cinema/983096-­‐em-­‐filme-­‐polemico-­‐diretor-­‐
mostra-­‐lei-­‐absurda-­‐do-­‐queijo-­‐de-­‐minas.shtml Impacto do filme ‘O Mineiro e o Queijo’ surpreende diretor Longa de Helvécio Ratton integra 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Era para ser um filme que mostraria a forte ligação que o mineiro tem com o queijo. Mas o diretor Helvécio Ratton acabou descobrindo muito mais do que isso. Durante a filmagem de “O Mineiro e o Queijo”, ele viu que este patrimônio está ameaçado por leis e pelo lobby de grandes laticínios. “Eu fiquei impressionado com o impacto do filme. Eu senti que a gente mostrou os mineiros do jeito que somos. A forma que os mineiros estão à vontade”, explicou o diretor. Com o depoimento de produtores do queijo artesanal, o diretor mostra que existem leis que proíbem a comercialização do produto fora de Minas Gerais. A história foi filmada nas regiões do Serro, Canastra e Alto Paranaíba. A psicóloga Márcia Fonseca, de 50 anos, disse que, por ser mineira, está à espera do longa na Mostra de Tiradentes. “É ótimo um filme para resgatar a cultura e valorizar o regionalismo mineiro. O mineiro da capital é diferente do interior e, por isso, a importância de mostrar isso no filme”, afirmou. Para Helvécio Ratton, se o documentário tivesse sido feito por uma pessoa de outro estado, talvez não desse tão certo e não tivesse a mesma repercussão. “O diferencial foi a forma que as pessoas das cidades me receberam. Era um mineiro conversando com o outro. Outros talvez não teriam a mesma recepção”, falou. O filme já teve a sua estreia nacional e, segundo Ratton, o documentário vai ser exibido na mostra para dar oportunidade à população da cidade que não conta com uma sala cinema. “A história do queijo começou por aqui [Região de Tiradentes]”, explicou. Manuela Siria, de 13 anos, e Adilson Nogueira, de 52 anos, estão na mostra e querem assistir ao filme. Mesmo com a diferença de idade, os dois têm uma opinião em comum: a importância do longa para mostrar a cultura do mineiro para outros estados. Ainda de acordo com o diretor, foi importante mostrar o mineiro da forma real e não a caricatura que é exibida em muitos lugares. O documentário faz parte da programação desta sexta-­‐feira (27) da 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes, realizada até este sábado (28). Pedro Triguinelli G1 – 22 de janeiro de 2012 Disponível em http://g1.globo.com/minas-­‐gerais/noticia/2012/01/impacto-­‐do-­‐filme-­‐o-­‐
mineiro-­‐e-­‐o-­‐queijo-­‐surpreende-­‐diretor.html O Mineiro e o queijo “O Mineiro e o Queijo” é um ato de amor do diretor Helvecio Ratton. Mineiríssimo ele próprio, o cineasta documenta essa iguaria brasileira que é o autêntico queixo mineiro. Ao fazê-­‐lo, não deixa de apontar uma contradição inesperada. Fabricado de maneira artesanal em pequenas fazendas do interior de Minas, foi praticamente sitiado em seu estado natal. Após um decreto federal de 2000, estabelecendo normas sanitárias rígidas, o queijo produzido a partir de leite cru, como os tradicionais da Serra da Canastra, do Serro e do Alto Paranaíba, não podem mais ultrapassar as fronteiras de Minas. Essa limitação provoca prejuízos aos pequenos produtores. Muitos deles dizem que continuam a fabricar o produto por puro amor. Ou porque seus pais e avós o fizerem e eles não querem interromper a cadeia tradicional. Alguns se renderam e passaram apenas a produzir e vender o leite – o que dá menos dor de cabeça e mais lucro. São exceções, em todo caso. A maioria teima em prosseguir. O documentário dá voz a esse pessoal. E esse é ponto mais positivo de um filme que, se fosse pura denúncia, cairia na chatice. Ratton tem a sensibilidade de conduzir o espectador a um delicioso passeio pelo interior de Minas. As paisagens, o sotaque característico, o bom humor matreiro com que narram suas dificuldades são saborosos como um pão de queijo. O filme faz um pequeno retrospecto histórico e explica como esse queijo mineiro, que hoje conhecemos, vem de uma tradição de quase 300 anos. Essa maravilha culinária no princípio era apenas uma forma inteligente de conservar o leite. Curado (amadurecido), o queijo durava o suficiente para alimentar os habitantes e tropeiros por semanas, isso num tempo em que refrigeração artificial não passava de sonho. Esse processo foi sendo depurado por um artesanato que fez da necessidade alimentar uma festa do paladar. E esse sabor é extremamente variado. Como dizem os pequenos fabricantes, cada região tem o seu queijo, com suas características próprias. Um meia cura da Serra da Canastra se distingue com facilidade de outro do Serro. Um dos fabricantes diz: “Me perguntam o segredo. Eu digo que só vindo para a Canastra, senão é impossível fazer um queijo como o nosso.” Dizem mais: as diferenças de sabor de região para região são explicáveis pelo solo e clima distintos, mas elas também existem, de forma sutil, mesmo nos queijos do mesmo local. Cada fazendinha produz o queijo a seu modo, embora usando receitas ancestrais semelhantes, de modo que um não tem o mesmo gosto do outro. Há coisas ainda mais intrigantes. Dentro de uma mesma fazenda os queijos também diferem, dependendo de quem os manipula. Um casal diz que os quatro filhos são queijeiros; produzem a partir do mesmo leite, com a mesma técnica, no mesmo lugar, com o mesmíssimo instrumental, e cada um deles faz um queijo de personalidade própria. Coisas do artesanato. Luiz Zanin Orichio O Estado de S. Paulo – 27 de setembro de 2012 Disponível em http://blogs.estadao.com.br/luiz-­‐zanin/o-­‐mineiro-­‐e-­‐o-­‐queijo/ Helvécio Ratton O cineasta mineiro, diretor de filmes como “Menino maluquinho”, “Amor e companhia”, “Uma onda no ar” e “Batismo de sangue”, sucessos de público e crítica, conta que o seu filme mais recente, o documentário “O mineiro e queijo”, lhe possibilitou conhecer mineiros autênticos, guardiões de uma cultura centenária. Helvécio Ratton fala sobre o seu próximo projeto, o longa “O segredo dos diamantes”, um filme com valores universais, mas que é essencialmente mineiro — todas as locações são em Minas Gerais. Ratton também analisa a conjuntura do cinema brasileiro e diz que é preciso investir em salas populares e resgatar os cinemas de rua. — Como mineiro e conhecedor desta terra, o que o documentário “O mineiro e o queijo” trouxe de novidade para o senhor em se tratando de “coisas” de Minas Gerais? A produção de “O mineiro e o queijo” me fez encontrar com os mineiros autênticos, isso foi muito importante para mim. Foi algo que surgiu muito além de todas as questões relacionadas ao queijo — como a abordagem histórica e as muitas contradições que cercam a produção artesanal. Até Dezembro de 2011, a legislação não permitia o comércio, fato que quase fez do queijo artesanal um produto clandestino, embora ele seja um patrimônio nacional. O felicidade de ter encontrado mineiros, guardiões de uma cultura centenária, ricos em tradições, me possibilitou identificar pessoas autênticas que foram colocadas na tela como um contraponto aos estereótipos formados que você vê por aí afora, principalmente na televisão. O mineiro geralmente é caricaturado como uma espécie de caipira muito simplório, que fala errado. Ele é sintetizado de uma forma muito grosseira pela TV e por outros meios de comunicação. No filme, o espectador vê como os mineiros realmente são. Eu gostei muito de colocar esse verdadeiro mineiro na grande tela tanto na forma de se expressar quanto na forma de ser e na forma de falar. Eles se entregaram ao filme de uma forma muito bonita, sem reservas, sem defesa. Eu sinto que foi um presente. — Minas Gerais é um estado muito rico em cenários, principalmente no que diz respeito ao seu patrimônio histórico. Como cineasta, qual é a sua visão sobre as questões relacionadas à proteção deste patrimônio? De fato, esta é uma questão complexa, é complicado falar sobre o tema. Minas Gerais tem um imenso patrimônio histórico e, como cineasta, é muito difícil falar sobre isso porque parece que você está competindo com toda uma imensa cultura que precisa ser preservada e para a qual nunca há dinheiro suficiente para conservá-­‐la. São tantas igrejas, obras de arte e museus extremamente importantes que precisam ser preservados, tantas construções que devem ser conservadas, porém sempre falta dinheiro. O Estado não tem condições de preservar, revitalizar, proteger e transfere, na maior parte dos casos, a responsabilidade para as leis de incentivo à cultura. A verdade é que existe uma verdadeira guerra por conta desses recursos que, aliás, são mínimos. Todas as formas de produção cultural buscam recursos praticamente numa única fonte, a mesma que deveria financiar também a proteção ao patrimônio histórico. Eu assisto a tudo isso com uma certa aflição e muita angústia. Como não perceber, por exemplo, o estado precário de uma igreja que poderia ser uma linda locação para um filme? Como o dinheiro, insisto, sai da mesma fonte, é impossível ter recursos para todos. A dificuldade é muito grande, não conseguimos fazer com que haja projetos contínuos de manutenção e preservação do nosso patrimônio histórico. Na verdade, a gente está sempre apagando incêndios e às vezes incêndios verdadeiros. O complicador definitivo são as irrisórias verbas destinadas à cultura. O orçamento federal destina uma parcela mínima para cultura, a verdade é esta. Você vê o Estado sempre “terceirizando” via as leis de renúncia fiscal, e até os orgãos federais se beneficiam das leis. Definitivamente é complicado! — O que o senhor pode contar sobre o seu novo projeto, o próximo filme que leva a sua assinatura? “O segredo dos diamantes”: para fazer esse filme eu me inspirei em histórias que ouvia desde criança. Passei a infância em São João del Rei, terra da família de meu pai e sempre escutava histórias sobre pedras preciosas e ouro, casos que lá aconteciam e como em toda as Minas Gerais. Onde existe mineração, garimpo de ouro e diamantes, onde há riqueza sempre se fala sobre fortunas e tesouros escondidos, em especial porque a pessoa guardava diamante e ouro para não pagar impostos. Então ouvia coisas assim: “o fulano morreu, ele tinha escondido um tesouro e nem a família sabe onde está”. Então surgiam lendas: o sujeito morria e depois voltava para indicar onde ele havia escondido o seu tesouro. Enfim, são muitas histórias e estórias. Eu me inspirei nestes conjuntos de lendas que envolvem as fortunas geradas pelas pedras e pelo ouro. Isso tudo tem um fundamentando, pois muita gente fez fortuna desta forma. Eu crei uma história onde três adolescentes buscam um tesouro em forma de diamantes do século XIX. Histórias sobre caças a tesouros são universais. Eu cresci lendo a Ilha do Tesouro (de Roberto Louis Stevenson) e outras obras que são totalmente universais. Aqui no Brasil e em Minas Gerais temos histórias como estas e eu acho que cabe ao cinema, de certa forma, utilizá-­‐las porque são histórias que poderiam ser contadas em qualquer outro lugar do mundo. A sedução que as pedras preciosas e o ouro exerce sobre as pessoas acontece em qualquer lugar, e aqui em Minas Gerais nós vivemos uma longa história ligada à mineração e aos garimpos. Basta você chegar na Europa e ver a quantidade monstruosa de ouro e pedras preciosas que partiram daqui para construir aquele fascinante patrimônio histórico. Muitas histórias foram geradas neste processo e o filme se alimenta disto. Eu estou contando aqui uma história, “O segredo dos diamantes”, que tem valores universais, mas que é essencialmente mineira. Esta história vai ser filmada em locações mineiras, em nosso cenário mineiro, com muita gente mineira — na verdade eu estou usando um grande elenco mineiro. Em resumo: é uma história universal de alma mineira. — Além do patrimônio histórico, Minas é um cenário universal? Sim, sem dúvida que é! Incluindo o patrimônio histórico, temos cenários extremamente diversificados em Minas Gerais. Isso é muito intressante. Na cena urbana, em Belo Horizonte, você filma como se estivesse em outra grande metrópole. Eu filmei “Batismo de sangue” em BH, mas é uma história que se passa na cidade de São Paulo; eu filmei cenas de São Paulo em nossa cidade e ninguém veio me falar que não parecia São Paulo. Os cenários naturais também são muito diversificados: você tem o Cerrado, a Mata Atlântica … O sertão tem as suas vastas paisagens, o sul de Minas tem a Mantiqueira, o norte tem os grandes planaltos. Você consegue ter uma imensa variedade na tela. Em “O segredo dos diamantes” eu vou filmar no Serro, no distrito de Milho Verde, em São Gonçalo do Rio Abaixo, Guanhães, Sabará e Belo Horizonte. Veja quantos cenários teremos! Vamos compor um painel de locações muito atraente, muito bonito. Minas é um território muito bom para você filmar porque existem inúmeras grandiosas histórias ao lado de grandes cenários, diferentes e fortes. A questão não é ter leis que obriguem que os filmes brasileiros fiquem por mais tempo em cartaz. A solução passa é pela urgência de ampliar o universo das salas de cinema e, principalmente, pela necessidade de contarmos com salas populares. — Como o senhor analisa a atual produção cinematográfica de Minas Gerais? Minas Gerais tem uma enorme vocação para o audiovisual. O fato de não termos teledramaturgia em BH — as grandes producões para TV estão concentradas no Rio, na TV Globo, e em São Paulo nas outras emissoras —, faz com que a produção do audiovisual seja canalizada para outras produções, especialmente para o cinema. A videoarte se desenvolveu aqui em Minas exatamente porque a televisão não canaliza esse tipo de criação. A videoarte surgiu nas pequenas produtoras e nas garagens com uma criatividade imensa que simplesmente ganhou o mundo. Existem hoje algumas gerações que produzem cinema, um grupo de ótimos profissionais, posso citar o pessoal da Camisa Listrada, da Teia, dentre tantos outros. Há muito interesse pelo audiovisual, porém o estado não consegue potencializar esta demanda. Na verdade, o único instrumento de apoio que temos aqui é o “Filme em Minas”, que acontece de dois em dois anos e que, de fato, é insuficiente para atender essa demanda. Inclusive, o “Filme em Minas” trabalha com pequenos orçamentos. O Estado precisa injetar mais recursos, pois Minas investe muito pouco até em comparação com Estados com menor economia. Existe muita vontade de fazer cinema em Minas, mas poucos recursos. — E não existe uma cultura de investimento privado na produção cultural … Esta cultura não existe no Brasil, não é um problema exclusivo de Minas. O fato é que as Leis de Incentivo quando surgiram pretendiam criar a figura do mecenas privado, aquele que tiraria o dinheiro do próprio bolso para investor na producão cultural, mas esta figura não apareceu. A verdade é que no Brasil a cultura é financiada com dinheiro público. As empresas não investem recursos próprios, todo o dinheiro é canalizado para as leis de incentivo. — Sobre a repercussão de seus filmes, o senhor recebe respostas satisfatórias do público? Sim, pelo meu lado, tenho respostas muito positivas. Eu posso dizer que faço cinema para me comunicar com as pessoas. Eu procuro fazer um cinema aberto, um cinema que possa interessar ao público que frequenta salas de cinema até porque eu sou um frequentador assíduo de cinema e eu quero fazer filmes que possam competir no mercado — especialmente com as produções estrangeiros. Isso quer dizer que eu preciso dirigir filmes que possam atrair e emocionar as pessoas. Por isso, todos os meus filmes são abertos ao público. Eu fico muito contente porque os meus trabalhos, no geral, repercutem muito bem. Uns mais outros menos, mas a resposta é sempre boa. Na verdade, depende de cada filme encontrar o seu público. “O mineiro e o queijo”, um projeto de menor custo, teve uma repercussão extremamente calorosa e continua circulando muito. Já “Menino maluquinho” teve muita aceitação popular, já foi exibido várias vezes na TV Globo, e é muito conhecido em outras partes do mundo. — Qual é a sua opinião sobre a conjuntura de mercado relativa ao cinema brasileiro? Vivemos uma conjuntura de mercado extremamente difícil porque o filme brasileiro é exibido por uma ou duas semanas e sai de cartaz. Isso se deve a um problema estrutural em função das poucas salas de cinema que existem no país, pouco mais de duas mil salas, um número irrisório em se tratando de Brasil. Estamos muito atrás de países como México e Argentina que contam com redes de cinema muito maiores do que as nossas, isso sem falar nos países de primeiro mundo, obviamente. As pouquíssimas salas que temos são organicamente ligadas ao cinema norte-­‐americano, portanto o nosso filme é retirado da sala para dar lugar a mais uma nova produção estrangeira. A questão não é criar leis que obriguem que os filmes brasileiros fiquem por mais tempo em cartaz, não é isso. Uma possível solução passa é pela necessidade de ampliar o universo das salas de cinema e, principalmente, pela necessidade de contarmos com salas populares. Eu percebo o tamanho de público que perdemos depois que deixaram de existir os cinemas de rua. Quem mais gosta de cinema brasileiro é o povo brasileiro, as camadas populares, que não tem preconceito em relação ao Brasil, em relação às coisas brasileiras e um público que gosta de se ver na tela. Este tipo de expectador nós perdemos com a extinção do cinema de rua e não houve uma reposição. Não foram criadas novas salas para ele. Os cinemas estão confinados nos shoppings e a ida a esses centros de compras é uma operação cara: o ingresso é caro, o estacionamento é caro, a pipoca é cara, o transporte é difícil e o cinema deixa de ser uma diversão barata. Para solucionar esse estrangulamento é preciso investir em salas populares, sobretudo nas periferias, nas vilas, próximo às favelas para conquistar de volta esse imenso público. Esse setor da população perdeu o hábito de frequentar cinema e passou a suprir a sua necessidade de dramaturgia, do audiovisual, por meio da televisão. Tem um grande exibidor no Brasil, o Ademar de Oliveira, que fala com muita inteligência que nós precisamos criar no Brasil um conceito “Casas Bahia” de cinema onde o povão possa entrar sem constrangimento numa sala de qualidade, confortável, com um bom som e uma boa imagem para consumir um cinema brasileiro de qualidade. — E quanto ao padrão de qualidade da produção nacional? Este é o maior paradoxo em que vivemos: produzimos um cinema com cada vez mais qualidade e muitas vezes com menos público. Somos sacrificados porque quando o público pensa em ver o filme, ele já saiu de cartaz. Como também não temos a capacidade de fazer campanhas milionárias de marketing, o ‘blockbuster’ já chega embalado por violentas campanhas nos meios de comunicação e com uma visibilidade imensa. Bem antes dele estrear, o público já sabe quando vai ser a estréia e onde ele vai assistir ao filme. No caso do cinema brasileiro é muito difícil, a gente fica confinado aos cadernos de cultura dos jornais que chegam a uma parcela ínfima da população. Como é inviável financeiramente produzir grandes mídias na televisão, eu vislumbro maiores possibilidades de expansão da comunicação por meio da internet. Por um custo muito menor, você pode fazer campanhas e atingir muito mais pessoas. Temos que buscar essas novas mídias para divulgar o cinema brasileiro. Em termos de qualidade de produção, não tenho dúvidas de que estamos crescendo aceleradamente. Em termos técnicos, temos um cinema impecável, no padrão dos melhores do mundo. Temos ótimas fotografia, direção de arte, música, mas acho que podemos aprimorar os roteiros, temos que criar uma jovem geração ligada à dramaturgia, que aprenda a escrever para a tela. César Felix Revista Sagarana Disponível em http://www.revistasagarana.com.br/?p=1144 R DE O
S
S
E
S
N IHÊ A
COMIDA COMO CULTURA
De: Massimo Montanari
Comida como cultura. São Paulo: editora SENAC São Paulo, 2008. 207 p.
Por: MARIA DE FÁTIMA FARIAS DE LIMA
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará.
Leve, curioso e absolutamente instigante,
Comida como cultura é um compacto de reflexões
acerca dos principais temas em debate nos estudos
sócio-históricos sobre a alimentação. Não obstante
o tom “despretensioso” da obra, enfatizado pelo
autor na Introdução, sua aguçada sensibilidade
analítica surpreende e envolve quem se dispõe à sua
leitura. Descrições históricas de hábitos e crenças
alimentares, utilizadas como fundamento explicativo
do trabalho, dão sutileza às discussões de cunho
teórico, que aparecem como observações simples,
mas nem por isso menos engenhosas. Deste modo,
na urdidura das histórias contadas, modalidades
do alimentar-se vão ganhando registro, incitando o
pensamento e produzindo um “novo olhar” sobre o
lugar da comida nos processos de formação cultural.
O livro, escrito pelo historiador italiano
Massimo Montanari, especialista em história
medieval e da alimentação, é composto por quatro
grandes blocos temáticos, que se subdividem em
partes menores. Estas têm o formato de ensaios
curtos, o que permite que o leitor crie seu próprio
itinerário de leitura da obra, de acordo com seu
interesse específico. Todavia, para aqueles que
optam por seguir a ordenação proposta pelo autor, é
possível perceber, a despeito da independência entre
as partes, uma certa “lógica de continuidade” que,
paulatinamente, vai apresentando a comida como
um fato cultural. Neste sentido, as primeiras páginas
nos convidam a reflexões acerca das primeiras
dificuldades de uma abordagem deste tipo: a saber,
as relações entre cultura e natureza.
Sendo a alimentação uma necessidade vital,
comum a todos os homens, não é de se estranhar
que ela tenha sido tantas vezes interpretada como
algo natural. Entretanto, conforme nos sugere
Montanari, logo na Introdução, “os valores de base
do sistema alimentar não se definem em termos de
‘naturalidade’, mas como resultado e representação
de processos culturais que prevêem a domesticação,
a transformação, a reinterpretação da natureza” (p.
15). Portanto, a comida é cultura, ainda segundo o
autor, em todo o seu percurso até a boca do homem:
quando produzida, porque não comemos apenas o
que encontramos na natureza, mas também criamos
nosso próprio alimento; quando preparada, já que
este processo criativo implica uma transformação
dos produtos-base da alimentação, mediante técnicas
elaboradas que expressam as práticas da cozinha; e
quando consumida, uma vez que selecionamos o que
comer, mesmo podendo comer de tudo, com base
nos mais variados critérios (econômicos, religiosos,
nutricionais, etc.).
107
Na primeira parte do livro, intitulada “Fabricar
a própria comida”, Montanari desenvolve com mais
cuidado essas considerações iniciais, especialmente
no que tange à dinâmica entre natureza e cultura.
Enfatizando as primeiras tecnologias de produção
de alimentos, o autor nos mostra o quanto o homem
foi se tornando “o dono do mundo natural”. As
técnicas de aproveitamento do território, como a
caça e a coleta, embora ainda representassem certa
dependência da natureza, já se mostravam reveladoras
da produção de um saber, um conhecimento acerca
do comestível, partilhado e acumulado entre grupos.
A passagem desta “economia de predação” para uma
“economia de produção”, entretanto, significou uma
mudança decisiva na relação do homem com o meio
ambiente. Isto porque, ao contrário do modo pelo
qual nos habituamos a pensar (motivados pela nossa
experiência industrial), a atividade agrícola significou
um momento de ruptura, separando o homem da
natureza, do “mundo selvagem”. Assim, pode-se
afirmar, segundo o autor, que com a agricultura
elabora-se a idéia de um “homem civil”, que constrói
artificialmente sua comida e um espaço para habitar.
Na esteira desse movimento de dominação
do meio ambiente, o tempo e o espaço constituemse barreiras “naturais” a serem vencidas. A fim
de prolongar a vida útil da comida, métodos de
conservação foram desenvolvidos como parte
de estratégias de sobrevivência e do desejo de
contornar o condicionamento das estações. Os
primeiros procedimentos elaborados consistiam na
manutenção da comida à custa de modificações no
gosto original. As técnicas baseadas no uso do açúcar
e do sal são icônicas deste tipo de conservação e
representativas de modelos alimentares distintos.
Introduzido na Europa durante a Idade Média, o
açúcar teria permanecido por muito tempo como
108
REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS
v. 40
n. 1
privilégio de poucos, perdendo seu caráter elitista
apenas no início do século XIX. Já o sal teria
caracterizado, por longo período, o que o autor
chama de “cozinha pobre”. Carnes, peixes e verduras,
afirma Montanari, “sempre se conservaram
principalmente com o sal, que constituía a principal
garantia de subsistência de uma economia rural
que não podia confiar no mercado cotidiano ou no
capricho das estações” (p. 39).
A luta pelo domínio do espaço tem na
necessidade de expansão do comércio alimentar
um momento significativo, gerador de mudanças
culturais em diversos níveis da sociedade. A prática
de consumir alimentos de outros lugares, mais ou
menos distantes, permaneceu por milênios como
um sinal de privilégio social, explica o autor. Todavia,
a constante integração comercial de regiões e países,
associada às revoluções industrial e dos transportes,
modificou radicalmente a relação dos homens
com o espaço. Hoje, em países industrializados, o
consumo de gêneros alimentícios produzidos no
exterior é consideravelmente mais acessível. Junto
com os preços, bem nos lembra Montanari, caem
também as imagens de prestígio que acompanhavam
estes produtos. Assim, a distinção passa a ser
operada, curiosamente, em sentido inverso: é o
local, “longamente desonrado”, que tem se tornado
representativo do que orgulha e diferencia grupos
abastados da sociedade.
Em “A invenção da cozinha”, segunda parte
da obra, o autor enfoca, como o título já sugere,
a noção de cozinha, procurando percebê-la em
suas representações sociais e em sua dinâmica de
constituição. Cozinhar, para Montanari, é uma
atividade humana por excelência. É este o gesto
que transforma o produto da natureza em alimento
fabricado pelo homem. E, neste sentido, “a cozinha
2009
é o símbolo da civilização e da cultura” (p. 71). Tal
afirmação nos remete ao clássico estudo de LéviStrauss, intitulado “O cru e o cozido” (primeiro
volume de Mitológicas), no qual estas duas expressões
do alimentar são consideradas como pólos opostos
da suposta contraposição entre natureza e cultura.
Concordando com Lévi-Strauss, Montanari
demonstra, citando exemplos de mitos gregos e de
tradições cristãs, que a rejeição à cozinha (e, portanto,
ao cozido) assume o significado de contestação da
“civilização”. Todavia, acrescenta que definir o ato
culinário simplesmente pela transformação dos
alimentos pelo fogo parece reducionismo. É preciso
atentar para a existência de outros métodos, como
as refinadas técnicas utilizadas pelos cozinheiros
japoneses na preparação do peixe cru. Apesar de
não pressupor o uso do fogo, tal preparação implica
procedimentos de modificação do produto natural
representativos, portanto, da prática de cozinha.
Os métodos de preparo da alimentação
indicam não só o desejo de melhorar o sabor da
comida, proporcionando maior prazer ao ato de
comer, mas também um cuidado com a saúde. Não
é à toa que medicina e cozinha sempre sofreram
influências mútuas, historicamente. Boa parte dos
tratados dietéticos medievais se assemelha, em
muitos aspectos, a um receituário de cozinha. Do
mesmo modo, sinais das normativas médicas são
encontrados com freqüência nos livros de receita da
mesma época. É por isso que, para o autor, “médico
e cozinheiro”, nesse período, “são duas faces de um
mesmo saber” (p. 88). A relação saúde-prazer, que o
imaginário contemporâneo tende a compreender de
forma conflitante, é pensada, assim, como um nexo
inseparável: “o que é mais agradável para o gosto é
melhor para a digestão” – segundo a orientação do
médico milanês Maino de Maineri, em um tratado
dietético do século XIV, citado por Montanari.
Nesse contexto, as regras alimentares e de saúde
se confundiam, na medida em que estas não eram
entendidas como restrições (conforme parece
sugerir, atualmente, a idéia de dieta).
A noção de gosto é o tema que inspira a
terceira e maior parte da obra: “O prazer (e o
dever) da escolha”. Conforme entende Montanari, é
possível pensar esta noção em duas acepções: o gosto
como sabor, isto é, como uma sensação individual
da língua e do palato; e o gosto como saber, ou seja,
uma avaliação sensorial do que é bom ou ruim, feita
pelo cérebro antes que pela língua. Sob este ponto de
vista, o gosto não é apenas uma realidade subjetiva
e incomunicável – como, por vezes, tendemos a
compreendê-lo. É, sobretudo, uma experiência
coletiva, compartilhada; um conhecimento que nos
é transmitido juntamente com outras variáveis que
contribuem para definir os “valores” da sociedade à
qual pertencemos.
Sendo uma forma de saber, o gosto não pode
ser interpretado como um padrão estático, invariável.
Aquilo que nos parece “bom para comer”, hoje, é
resultado de um longo processo de transformação
cultural, influenciado por inúmeras variáveis de
ordem social. O atual “sistema de sabores” europeu,
de acordo com o autor, difere bastante daquele que
marca a Idade Média, por exemplo. A gastronomia
pré-moderna era fundamentalmente “magra”,
explica Montanari. Na preparação dos molhos
que acompanhavam carnes e peixes, utilizavamse ingredientes ácidos como vinho, vinagre e
sucos cítricos. Os molhos “gordos” à base de óleo
e manteiga, mais familiares ao paladar atual, são
invenções modernas, não anteriores ao século XVII,
que teriam modificado profundamente o gosto e o
aspecto das comidas.
109
A despeito dessas mudanças sofridas na
“estrutura do gosto”, a chamada “cozinha histórica”
estaria virando moda na Europa e em vários outros
continentes. A idéia consistiria, basicamente, no
“resgate” do patrimônio culinário de determinada
época. Mas, do ponto de vista cultural, como
seria possível resgatar um gosto do passado? Para
Montanari, reconstituir a “sensação de um tempo”
é algo tecnicamente impossível. Por duas razões
simples: os produtos já não são os mesmos (ainda
que levem o mesmo nome) e, o mais importante, os
sujeitos são outros (com uma educação sensorial,
inevitavelmente, distinta). Logo, sugere o autor,
“a proposta poderia ser a de jogar com a ‘cozinha
histórica’, respeitando algumas regras (não há
jogo sem regras), mas sem cair na empáfia da
reconstituição filológica com fim em si mesma, da
receita retomada em sua ‘autenticidade’” (p. 106).
Assim como o tempo, também o espaço tem
servido de referência à formação de “cozinhas”.
Conhecer ou exprimir uma “cultura de território”
por meio de suas comidas típicas é algo tão comum,
hoje, que nos parece “natural”. Todavia, somente a
partir do século XIX é que este tipo de cozinha surge
no cenário gastronômico europeu. Diferente do
modo como tendemos a pensar, costumeiramente,
a chamada “cozinha internacional” é que tem raízes
bem antigas. As culinárias romana “mediterrânea”
e medieval “européia” eram abertas à totalidade do
mundo conhecido e freqüentado. Os ingredientes
estrangeiros sempre foram bem-vindos, sendo
utilizados, inclusive, como marca de prestígio
social – conforme foi dito. É claro que os “pratos”
produzidos com base nos recursos locais sempre
existiram. Entretanto, perceber a territorialidade
como uma noção e como um dado positivo é uma
invenção, relativamente, recente. O início dos
110
REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS
v. 40
n. 1
processos de uniformização dos mercados e dos
modelos alimentares teria, na visão do autor,
estimulado um novo cuidado em relação às culturas
locais e, consequentemente, a criação de sistemas –
com base em fragmentos transmitidos pela história
– que hoje denominamos de “cozinhas regionais”.
A quarta e última parte, intitulada
“Comida, linguagem, identidade”, constitui um
rápido exercício reflexivo acerca dos códigos que
configuram esses sistemas culinários. Montanari
afirma que os gestos forjados na prática do “comer
junto” tendem a sair de sua dimensão simplesmente
funcional para assumir um valor comunicativo.
Como uma forma de linguagem – metáfora usada,
primeiramente, por Lévi-Strauss, em “Origem dos
hábitos à mesa”, terceiro volume de seu Mitológicas –,
a cozinha e as práticas de comensalidade expressam
os mecanismos de estruturação e diferenciação
social. A participação na mesa comum, indica
o autor, é o primeiro sinal de pertencimento ao
grupo. Porém, não se pode deixar enganar: comer
junto não necessariamente significa estar em
perfeita harmonia. Os hábitos à mesa são também
reveladores dos conflitos e hierarquias do social –
ou da necessidade de mascarar tais disparidades,
por exemplo, através da substituição, na moderna
sociedade “democrática”, da mesa retangular pela
redonda, menos adequada para marcar as diferenças.
De acordo com Montanari, “assim como
a língua falada, o sistema alimentar contém e
transporta a cultura de quem a pratica, é depositário
das tradições e da identidade de um grupo”
(p. 183). Trata-se, portanto, de um importante
veículo de auto-representação e de troca cultural,
possivelmente, mais forte do que o idioma – afinal,
comer a comida de outros, lembra o autor, é mais
fácil (pelo menos aparentemente) do que decodificar
2009
sua língua. Na prática, estas duas noções são quase
sempre evocadas de forma contraposta: a troca
cultural aparece como um obstáculo à salvaguarda
das identidades. Montanari convoca a atenção, no
entanto, para o fato de que as identidades culturais
não são realidades metafísicas e nem estão inscritas
no “patrimônio genético” de uma sociedade. Ainda
que a história venha sendo compreendida como
o lugar da produção de “raízes” que servem de
referência à conservação das identidades, o que ela
mostra, de fato, é que estas identidades só “existem”
em função de processos infindos de adaptação a
situações sempre novas, determinadas pelo contato
com culturas diversas.
Voltando constantemente seu olhar para a
história, para as mudanças e permanências que este
processo amplo e complexo desencadeia, o autor
nos convida a perceber nas práticas alimentares
sua natureza fundamentalmente cultural. Sem
maiores preocupações com ordens cronológicas
e aprofundamentos teóricos, o texto tem um tom
descontraído que o torna acessível a um público
amplo de leitores. Para os interessados em adentrar,
com maior densidade, as discussões acerca do
fato alimentar, um guia à leitura, que substitui
a bibliografia no final da obra, traz uma breve
descrição, por assunto, dos referenciais teóricos que
orientaram o autor nesta produção.
Uma abordagem suave, mas nem por isso
simplificada, das principais temáticas da História
da Alimentação (com digressões pelos campos da
Sociologia e da Antropologia), Comida como cultura
foge de modismos intelectuais que apelam para a
comida como mais um aspecto meramente curioso
da cultura. De forma inteligente, o autor se preocupa
em traçar linhas de compreensão histórica dos
costumes alimentares apresentados, interpretandoos não como peças de museu, congeladas em seu
próprio exotismo, mas como sinais de um contexto
social específico, rastros materiais e simbólicos de
uma história que se revela como processo carregado
de agitações e rupturas cognitivas.
111

Documentos relacionados