Rosana Costa Gomes - Programa de Pós

Transcrição

Rosana Costa Gomes - Programa de Pós
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
A VIDA NO VAI-E-VEM DAS ÁGUAS:
MULHERES MARISQUEIRAS DE SALINAS DA MARGARIDA
TRABALHO, CULTURA E MEIO AMBIENTE (1960-1990)
ROSANA COSTA GOMES
SANTO ANTONIO DE JESUS
JUNHO/2009
1
ROSANA COSTA GOMES
A VIDA NO VAI-E-VEM DAS ÁGUAS
MULHERES MARISQUEIRAS DE SALINAS DA MARGARIDA
TRABALHO, CULTURA E MEIO AMBIENTE (1960-1990)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação
em História Regional e Local da Universidade do Estado
da Bahia -UNEB, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do título de Mestre em História Regional e
Local.
Orientador: Prof. Dr. Charles D‟Almeida Santana.
JUNHO/2009
2
G633
Gomes, Rosana Costa.
A vida no vai-e-vem das águas: mulheres marisqueiras de Salinas da Margarida,
trabalho, cultura e meio ambiente (1960-1990)./ Rosana Costa Gomes - 2009.
146 f.; il
Orientador: Prof. Dr. Charles D‟Almeida Santana.
Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa de pósgraduação em História Regional e Local, 2009.
1. Pescadoras - Marisqueiras. 2.Meio Ambiente. 3. Pesca artesanal I. Santana,
Charles D‟Almeida. II. Universidade do Estado da Bahia, Programa de Pós-graduação
em História Regional e Local.
CDD: 639.2092
Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB
Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396.
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A VIDA NO VAI-E-VEM DAS ÁGUAS
MULHERES MARISQUEIRAS DE SALINAS DA MARGARIDA
TRABALHO, CULTURA E MEIO AMBIENTE (1960-1990)
ROSANA COSTA GOMES
BANCA EXAMINADORA
___________________________________
Charles D‟Almeida Santana (orientador)
Doutor em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
___________________________________
Márcia Maria da Silva Barreiros
Doutora em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
___________________________________
Vilma Maria do Nascimento
Doutora em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Universidade Católica do Salvador (UCSAL)
JUNHO/2009
4
Às mulheres marisqueiras de Salinas da
Margarida.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por grandes coisas ter feito por mim. Sinceros
agradecimentos ao meu orientador, professor Charles D`Almeida Santana, pela
amizade, confiança, incentivos, senso profissional, paciência, indagações e sutis
insistências nas conversas que me ajudaram na descoberta de novos caminhos para
a pesquisa.
Minha eterna gratidão, as minhas ex-alunas e aos meus ex-alunos de Salinas
da Margarida muitos filhos e filhas de marisqueiras que com os seus jeitos de ser me
despertaram para perceber e buscar conhecimentos sobre suas histórias. As
catadoras de chumbinho, mulheres marisqueiras ou mariscadeiras, como são
também conhecidas, que perceberam a importância do estudo e receberam-me sem
resistência, mas sim com muita boa vontade concedendo-me informações preciosas
sobre o seu viver. O meu profundo agradecimento a essas mulheres e a todas as
demais pessoas que conversei em Salinas, as quais abriram as portas de suas
casas, de suas vidas, de suas memórias e que busquei com zelo deixar aqui
registrada.
Agradeço a todos da Universidade do Estado da Bahia – UNEB que se
envolveram, e conseguiram a implantação do Curso de Pós- Graduação em História
Regional e Local no CAMPUS V. Proporcionando a ampliação do leque da produção
historiográfica. A todos os professores e colegas do curso que me ajudaram a
alcançar subsídios para este estudo. Ao Professor Dr. Walter Fraga Filho pelas
orientações que deu quando estava na frente da coordenação desse mestrado. A
Professora Drª Márcia Maria da Silva Barreiros e a Professora Drª Vilma Maria do
Nascimento sou profundamente grata pela ajuda que me deram para dar
prosseguimento a esse estudo. Não posso esquecer de agradecer as secretárias do
curso Ane e Consuelo obrigada pela paciência e carinho que tiveram comigo.
As ex-colegas de trabalho de Salinas da Margarida pelo ensino e a
aprendizagem adquiridos através do convívio, da experiência compartilhada que
muito me ajudaram no desenvolvimento da pesquisa. As amigas e amigos que me
ajudaram com palavras de confiança e estímulo. A Lauro Souza serei sempre grata
pela paciência e carinho que dedicou, quando eu tanto precisei nos primeiros passos
dessa pesquisa.
6
As colegas de trabalho e alunos de Santo Antonio de Jesus sou grata pela
compreensão que tiveram quando precisei me afastar do trabalho por conta dos
estudos. A colega Rita Loyola, agradeço pela revisão ortográfica. Aos funcionários
da Câmara Municipal de Salinas da Margarida, que permitiram-me consultar os
documentos arquivados e aos funcionários da Prefeitura Municipal quero agradecer
pela cordialidade que me receberam e pela ajuda que me prestaram. Agradeço
também a todas as demais pessoas de outros arquivos que me receberam e
permitiram o desenvolvimento da pesquisa.
A amiga Rosineide pelas orações que fizemos juntas, para conseguirmos o
ingresso e conclusão desse curso. Não poderia deixar de agradecer ao meu
cachorrinho Amstad pela sua amizade e companheirismo, pois nos momentos que
se tornava angustiante a produção da escrita, as brincadeiras dele serviram para
distrair-me e fazer com que retornasse ao texto com mais ânimo. Enfim, sou
profundamente grata a todos aqueles que me ajudaram na realização desse estudo.
7
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ACMSM – Arquivo da Câmara Municipal de Salinas da Margarida.
Ceb – Companhia Eletroquímica da Bahia.
CQR – Companhia Química do Recôncavo.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Pescon – Pesqueira do Recôncavo Ltda.
8
ÍNDICE DE FIGURAS
FIGURA 1: Mapa do Recôncavo Sul, com destaque para Salinas da Margarida.
(Fonte: CEI).
FIGURA 2: Mapa de Salinas da Margarida. (Fonte: CEI).
FIGURA 3: Crianças mariscando. (Fotografia de pesquisa, 2003)
FIGURA 4: Mulher mariscando. (Fotografia de pesquisa, 2003)
FIGURA 5: Comemoração religiosa dedicada à Iemanjá. (Fotografia de pesquisa,
2003).
FIGURA 6: Mariscos sendo transportados. (Fotografia de pesquisa, 2008).
FIGURA 7: Homem na mariscagem segurando o puçá com chumbinhos. (Fotografia
de pesquisa, 2008).
FIGURA 8: Puçá, instrumento usado na mariscagem. (Desenho adquirido via
internet).
FIGURA 9: Homem mariscando. (Fotografia de pesquisa, 2008).
FIGURA 10: Viveiros da Maricultura e locais das mariscagens. (Croqui produzido por
Ana Louíse Gomes Cruz durante a pesquisa de campo, 2008).
FIGURA 11: Viveiros da Maricultura e locais das mariscagens. (Croqui produzido por
Ana Louíse Gomes Cruz durante a pesquisa de campo, 2008).
FIGURA 12: Prédio onde funcionava o Antigo Escritório da Companhia Salinas da
Margarida. (Fotografia de pesquisa, 2007).
FIGURA 13: Empreendimentos imobiliários da orla marítima de Salinas da
Margarida. (Fotografia de pesquisa, 2007).
FIGURA 14: Residência do Comendador Campos. (Fotografia de pesquisa, 2003.)
FIGURA 15: Tanque da Maricultura da Bahia onde são criados os camarões com
destaque para a cerca. (Fotografia de pesquisa, 2007).
FIGURA 16: Formatura do curso de magistério de algumas marisqueiras e de filhas
de marisqueiras. (Fotografia de Lauro Souza, 2001).
FIGURA 17: Criança brincando sobre cascas de chumbinhos. (Fotografia de Lauro
Souza, 2001).
FIGURA 18: Artesanato feito com conchas de chumbinhos e de outros mariscos.
(Fotografia de pesquisa, 2003.).
9
Cooperação no relacionamento com os residentes locais de
áreas ecologicamente frágeis são de extrema importância para
compreendermos o meio ambiente natural e os efeitos do uso
de seus recursos. Não podemos, porém, negligenciar nossas
responsabilidades em tais relacionamentos ou subestimar o
efeito (positivo ou negativo) que temos sobre uma comunidade
rural. De nossa parte, devemos prestar ajuda e dividir as
informações às quais temos acesso. Desse modo, a população
local poderá entender sua situação em um contexto mais
amplo e tomar decisões fundamentadas sobre suas vidas e
suas terras.*
*Arturo Gómez-Pompa & Andrea Kaus. Domesticando o Mito da Natureza Selvagem. In;
Antônio Carlos Diegues (Org.). Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza
nos trópicos. São Paulo: Annablume, 2000, p. 142.
10
RESUMO
Esta pesquisa se refere ao cotidiano das marisqueiras de Salinas da Margarida,
município localizado no Recôncavo Sul da Bahia, situado na Bacia Hidrográfica do
Rio Paraguaçu, na Baia de Todos os Santos. A mariscagem feita por estas mulheres
é uma prática que consiste no processo de catar pequenas conchas nas areias das
praias, das quais são retirados os mariscos, conhecidos no local como chumbinho
ou sarnabitinga. Esta atividade envolve relações de trabalho em grupo, que perpetua
uma tradição marcada por aspectos próprios, referenciando a luta pela
sobrevivência das marisqueiras e suas famílias. Buscou-se neste estudo, através da
exploração de fontes orais, documentos escritos, fotografias, croquis, mapas e
outras fontes, a compreensão do viver das marisqueiras, dos seus costumes, os
mecanismos de socialização, como a prática da mariscagem é passada de geração
para geração, as formas utilizadas na superação das dificuldades, seus sonhos,
desilusões e as mudanças sócio-geográficas e ambientais ocorridas na cidade e que
interferiram na mariscagem. As marisqueiras inseridas na abordagem da história
regional, com suas histórias que retratam o concreto do cotidiano e a especificidade
da singularidade de suas práticas de vida, contribuem para a compreensão da
história local. É no espaço das areias das praias, embebidas pelas lamas dos
manguezais e nos pontos de vendas dos mariscos que elas se lançam vivificando
uma tradição que lhes foi passada por gerações de outrora. Mesmo com o avanço
tecnológico no campo da ciência moderna, e diante da evolução urbana pela qual
Salinas da Margarida atingiu no contexto da globalização, a arte de mariscar, não
perdeu importância na vida dessas mulheres que se engajam com vigor na sedenta
peleja em prol da sustentação de suas vidas.
Palavras-chave: Mulher. Trabalho. Cultura. Meio Ambiente.
11
ABSTRACT
This research is about the daily life of shellfish workers of Salinas da Margarida, town
located in southern Recôncavo, Bahia, in the Watershed of Rio Paraguaçu, Todos os
Santos Bay. The “mariscagem” practiced by these women is a process where small
shells in the sands of the beaches are collected, from which is taken the shellfish,
locally known as “chumbinho” or “sarnabitinga”. This activity involves working
relations in a group which perpetuates a tradition marked by peculiar aspects,
referencing the struggle for survival of the workers and their families. This study
aimed to understand, through the use of oral sources, written documents,
photographs, sketches, maps and other sources, the life of these shellfish workers,
their customs, the mechanisms of socialization, how the practice of “mariscagem” is
passed from generation to generation, the ways used to overcome the difficulties,
their dreams, disappointments and the socio-geographical and environmental
changes occurred in the city that interfered in the “mariscagem” practice. The
shellfish workers included in the regional history approach, with their stories that
portray the real of daily life and the specificity of uniqueness of their practices of life,
contribute to the understanding of local history. It is in the sand of the beaches area,
absorbed by the mud of the mangroves swamps, and in the points of sale of shellfish
that they live a tradition that was passed to them by ancient generations. Even with
technological advances in the field of modern science, and in the face of the urban
development reached by Salinas da Margarida in the context of globalization, the art
of “mariscar” didn‟t lose importance in the lives of these women who engage with
energy in the thirsty battle for the support of their lives.
Keywords: Woman. Work. Culture. Environment.
12
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS...............................................................
13
CAPÍTULO I
O VAI-E-VEM DAS MARÉS.................................................................
33
PASSAVA FOME, MAS A MINHA ALEGRIA ME ALIMENTAVA..........
34
FESTEJOS: ALEGRIA ALÉM DA MARÉ............................................... 50
EU VOU À MATA, À MARGARIDA E AO MANGUEZAL....................... 59
CAPÍTULO II
MARÉS DA MODERNIZAÇÃO..............................................................
67
VIAGENS E MERCADO........................................................................
68
QUEM TEM TELHADO DE PALHA VAI MORAR EM OLHO DE
VIDRO...................................................................................................
76
MARISCAGEM E BIODIVERSIDADE AMEAÇADAS............................
90
CAPÍTULO III
RELAÇÕES NOS ESPAÇOS DA MARISCAGEM.................................
101
TERRA OCUPADA................................................................................
102
OUTRAS VEREDAS..............................................................................
109
ESPAÇOS DE SOLIDARIEDADES.......................................................
117
A MARÉ TAÍ!..........................................................................................
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................... 132
FONTES ...............................................................................................
139
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................
141
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................
144
13
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este trabalho é o resultado da pesquisa que realizei a respeito das
marisqueiras, mulheres que desenvolvem um tipo de pesca artesanal em Salinas da
Margarida, município localizado no Recôncavo Sul da Bahia, (ver figura1) situado na
Bacia Hidrográfica do Rio Paraguaçu, na Baia de Todos os Santos, a 280 Km da
capital Salvador via BA-001 BR-324. O enfoque é a vida das mulheres que catam
mariscos, moluscos que estão em pequenas conchas nas areias das praias
conhecidos na região como chumbinho ou sarnabitinga.
O recorte de tempo privilegiado foi o período entre as décadas de 1960-1990.
Este período foi estabelecido a partir das observações feitas do cotidiano do viver
das marisqueiras e das transformações ocorridas em Salinas da Margarida. Nos
primeiros anos, destaca-se o fechamento da Companhia Salinas da Margarida e nos
últimos notamos as significativas modificações urbanas operadas pelo poder público
municipal.
Ponta da Margarida foi um sítio que outrora teve suas terras pertencentes à
Capitania dos Portos de Salvador. Ponta é um nome dado em referência a sua
estrutura geográfica, pois esta faixa territorial apresenta uma ponta de terra que se
estende do continente em direção à Baía de Todos os Santos, próximo da Ilha de
Itaparica (ver figura 2). O nome Margarida, segundo a versão de alguns moradores
da localidade, trata-se do fato de ter existido neste local, muitas flores conhecidas
por margarida ou malmequer.
A mudança do nome para Salinas da Margarida ocorreu devido à exploração
do
sal
desenvolvida
em
grande
escala
neste
local.
A
implantação
do
empreendimento industrial para a exploração salineira por evaporação, foi concedida
em 02 de junho de 1877, pelo então presidente da província da Bahia, Senhor
Henrique Pereira de Lucena, ao Senhor Comendador Manoel de Souza Campos e
ao Senhor Horácio Urpia Júnior. Assim, em 20 de março de 1891, foi fundada a
Companhia Salinas da Margarida e teve seus estatutos aprovados. 1
Apesar de toda a glória da indústria do sal, no período que sucedeu os anos
de 1953, foi registrada uma queda vertiginosa na produção. Em 25 de outubro de
1963, a companhia requereu licença para transferir parte de suas áreas territoriais à
1
Ver Almir de Oliveira. Salinas da Margarida; Notícias Históricas. Minas Gerais: Minas Editora, 2000, p. 79.
14
Companhia Eletroquímica da Bahia - Ceb. Em 18 de maio de 1964, requereu
novamente outra área à Ceb e outra para a Companhia Química do Recôncavo –
CQR, a qual, em 9 de outubro de 1981, solicitou licença para transferir as áreas
FIGURA 1: Mapa do Recôncavo Sul, com destaque para Salinas da Margarida. (Fonte: CEI).
15
territoriais para a Pescon -Pesqueira do Recôncavo Ltda. Esta empresa tinha como
finalidade explorar a criação dos camarões em cativeiro, utilizando, assim, os
espaços já existentes que eram propícios a esta cultura. Em 17 de setembro de
1996 a Pescon, agora, Pescon Empreendimentos e Participações Ltda., vendeu
suas áreas para a Maricultura da Bahia S. A. Esta empresa também se destinava à
cultura do camarão de cativeiro. 2
Assim, encerrou o ciclo da exploração do sal cujo esgotamento pode ser
atribuído a muitos motivos “entre os quais podem ser apontados, a falta de
modernização dos equipamentos e de continuidade administrativa.” 3 Apesar do
grande sucesso da exploração salineira, conseguido pelos antigos administradores,
seus sucessores, não conseguiram manter o mesmo resultado, o que acabou
gerando o fechamento da companhia. Tal fato gerou descontentamento em muitas
famílias, pois desempregou centenas de pessoas. Afinal, a empresa representou
para Salinas da Margarida, um célebre desenvolvimento e inserção no contexto
econômico nacional, ainda que tenham sido benefícios propiciados, sobretudo pelos
proprietários da companhia. Os poderes públicos, apesar de recolherem altos
impostos da companhia, pouco ou nenhum investimento favoreceram a Salinas da
Margarida.4 Senhor Raimundo Nonato fala com nostalgia sobre o fechamento da
fábrica:
Um gerente aqui, por nome José Granjeiro Coelho, achou que a
fábrica de sal não estava dando resultado, quando era mentira dele
que dava muito resultado. Mas não sei porque devia só ficar com o
fabrico de dendê, a seção agrícola, e desprezou o sal. Quando
chegou lá, disse ao gerente. Aos donos em Salvador, acreditou nele,
só ficou com o outro e aí foi a baixo, nunca mais foi como era.5
Ter conseguido o depoimento de Senhor Raimundo foi um motivo de muita
alegria e satisfação. Suas lembranças permitiram um maior esclarecimento e
entendimento do funcionamento da empresa e da produção do sal em Salinas da
Margarida. Remanescente da Companhia Salinas da Margarida, Senhor Raimundo,
2
Idem, op.cit. , passim.
Idem, op.cit. , p. 130.
4
Idem, op.cit. , p. 119.
5
Raimundo Nonato Ferreira. Entrevistado em 7 Jun. 2003.
3
16
com 84 anos de idade, foi um dos poucos homens que trabalhou nesta companhia e
que ainda morava em Salinas.
FIGURA 2: Mapa de Salinas da Margarida. (Fonte: CEI).
17
Como ele mesmo afirmou, muitos foram embora após o fechamento da
companhia, outros companheiros não estão mais vivos. Apesar de tanto tempo ter
passado, ele ainda guardava indignação pelo fechamento da empresa, pois segundo
ele, a exploração salineira ainda rendia muitos lucros. Senhor Raimundo manifestou
ter consciência de classe, ao demonstrar a importância que a produção salineira
representava na vida dos moradores que diretamente viviam dessa produção. A sua
preocupação era com as conseqüências que a decisão de terminar com o cultivo do
sal acarretaria tanto para ele, bem como para outros funcionários da companhia. Foi
triste ver seus companheiros demitidos e alguns irem embora de Salinas em busca
de trabalho.
Senhor Raimundo começou a trabalhar na Companhia muito novo, com
apenas 12 anos de idade. Permaneceu no trabalho, desenvolvendo várias funções
e, como ele fez questão de frisar algumas vezes na entrevista, permaneceu na
empresa durante trinta e três anos, três meses e vinte e seis dias. Trabalhou
diretamente com o sal, quando fazia um trabalho manual que precisava de força
física, pois tinha que deslocar o sal de uma determinada área para outra da
Companhia. Trabalhava na condução do sal na linha férrea, botando os trilhos para
as locomotivas passarem levando o sal para os barracões.
Este Senhor lembrou da fartura do sal que existia naquela época. Muitas
pessoas beneficiavam-se ganhando sal de presente, ou mesmo apropriando-se dele
de outras maneiras, pois geralmente o sal ficava por algum tempo em áreas abertas.
Saveiros vinham durante a noite e levavam grande quantidade do produto sem o
devido consentimento dos donos da companhia. A abundância era tão grande que
os proprietários tomavam poucas medidas de segurança para proteger a produção
salineira.
O jornalista soteropolitano Almir de Oliveira fez um estudo sobre Salinas e em
suas reflexões a respeito da exploração do sal, observou que até a implantação da
Companhia, Salinas da Margarida - ainda chamada Ponta da Margarida - não tinha
respaldo, importância alguma no cenário baiano ou nacional, pois não havia
nenhuma igreja no local, já que a existência de igrejas era tão importante nas
localidades brasileiras durante o século XIX, momento da implantação salineira.
Após a implantação da Companhia, passaram a relacionar o nome da mesma
ao lugar, mesmo quando ainda quando era distrito, e mais tarde como município,
permanecendo desde então o nome desta localidade Salinas da Margarida. Com o
18
sucesso
da
exploração
do
sal,
Salinas,
que
antes
não
tinha
nenhum
reconhecimento, entra no cenário baiano e nacional tornando-se conhecida também
internacionalmente, pois seu produto fora reconhecido e circulava nos estados do
Brasil e era exportado para outros países, sendo premiado em várias oportunidades
pela qualidade do sal. 6
Lamentavelmente, com o fim da exploração do sal, muitos pais de famílias
ficaram desempregados, como lembrou Senhor Raimundo. Sem emprego e
conscientes da falta de opção em Salinas, muitos dos ex-funcionários foram embora
com suas famílias em busca de êxito profissional em outras localidades. Outros que
estavam com idade de se aposentar conseguiram o benefício junto ao INSS. Aos
demais que permaneceram em Salinas, predominou as águas salinenses de onde
poderiam tirar o pão de cada dia.
Elimar Pinheiro do Nascimento fez considerações sobre a exclusão social que
atinge os brasileiros. A exclusão é tida como uma preocupação que abrange vários
seguimentos da sociedade como a política e o meio acadêmico. Segundo ele “é um
problema na sociedade moderna, pois esta nasce sob o signo da sua negação, a
igualdade”.7 Ele salienta que a exclusão social pode, nos ideais da modernidade,
servir como incentivo para a busca do crescimento, no entanto, tem como
conseqüência a negação do acesso pleno à igualdade.
Nesse contexto, as marisqueiras de Salinas da Margarida que a longos anos
viveram sem desfrutar de uma justa igualdade social, buscaram não se abater por
conta disso, a necessidade pela manutenção da própria vida e a responsabilidade
pelo sustento familiar, fez com que elas se lançassem na pescaria em busca de
suprimentos. Atividade que elas e os homens desenvolviam, mesmo durante a
exploração salineira. Foi a essa “fábrica”, com mais intensidade que recorreram para
garantir o ganha-pão, através da pesca e da coleta de frutos do mar, atividades
tradicionais em Salinas como em tantas outras praias da Baía de Todos os Santos.
Durante a pesquisa, ouvi algumas marisqueiras que além de trabalharem com
o chumbinho lidavam com outros tipos de mariscos, como o siri, a lambreta e a
ostra. Tanto as marisqueiras como os demais entrevistados que fui à procura em
6
Nas suas descrições Oliveira aponta 3 prêmios: o Grande Prêmio, conquistado na Exposição Baiana de 1916, a
medalha de Ouro, obtida na Exposição Baiana no mesmo ano e a Medalha de Ouro obtida na Exposição
Nacional de 1908, realizada no Rio de Janeiro, então capital da República. Almir de Oliveira, op.cit. p. 121.
7
Elimar Pinheiro do Nascimento. A exclusão social no Brasil: Algumas hipóteses de trabalho e quatro sugestões
práticas. Caderno do CEAS, n. 152, 1994. p. 58.
19
suas casas, nos manguezais, nos locais de vendas dos seus produtos, na
Associação das Marisqueiras, nas praias ou em outros setores de trabalho, foram
muito atenciosos. Elas e eles contribuíram ao revelarem as riquezas de suas
experiências, vivências e saberes, propiciando, assim, um vasto leque de
informações que possibilitou-me alargar o meu conhecimento em relação à
importância deste trabalho na sociedade local e a sua interatividade com a natureza.
Em Salinas da Margarida, a mariscagem de catar chumbinho é em grande
escala praticada por mulheres, tendo elas desempenhado um papel importante para
o desenvolvimento histórico-cultural local. A atividade desenvolvida por elas envolve
relações de trabalho em grupo e perpetua uma tradição vivida por várias gerações e
que é marcada por aspectos próprios, referenciando a luta pela sobrevivência das
marisqueira e suas famílias. São mulheres populares, algumas chefes de famílias,
que sobrevivem do fruto do seu trabalho.
O meu interesse em desenvolver esta pesquisa vem dos contatos que tive
com as marisqueiras a partir do ano de 1998. Após finalizar o curso de graduação
em História na UNEB-Universidade do Estado da Bahia, Campus V, localizado no
município de Santo Antonio de Jesus, cidade em que resido, lancei-me em busca de
campo de trabalho onde pudesse desenvolver-me profissionalmente. Dessa forma,
no período de dois anos trabalhei como regente de classe em Salinas da Margarida.
Como docente, tive a oportunidade de conhecer este grupo de trabalhadoras, o que
favoreceu a chance de trazer à tona um debate sobre esse segmento popular,
contribuindo com a produção do conhecimento histórico regional.
Os primeiros contatos que tive em sala de aula com meus alunos logo me
revelaram que teria sérios problemas com choques culturais, pois me assustei com a
agressividade e a falta de respeito que grande parte deles dispensavam aos
professores, bem como aos seus colegas. O sentimento de desafio e a necessidade
do trabalho fizeram-me buscar meios de poder desenvolver as atividades em sala de
aula. Procurei informações a respeito dos meus alunos na tentativa de compreender
aqueles comportamentos agressivos. Então, iniciei uma série de diálogos com eles,
com a direção do colégio, com os professores mais antigos e com outras pessoas do
lugar.
Vários
motivos
apresentados
como
responsáveis
por
aqueles
comportamentos e muitos são os mesmos que atingem milhares de famílias
brasileiras, como o desemprego, subemprego, filhos que não chegaram a conhecer
20
os pais, moradia precária e outros. Porém, uma informação me despertou maior
atenção: muitas alunas eram filhas de marisqueiras ou eram marisqueiras.
A partir da insistência de alguns em querer apontar o trabalho que as
mulheres desenvolviam como fator determinante do comportamento de certas
alunas, é que despertou em mim o interesse em melhor conhecê-las. Com o passar
do tempo, crescia o sentimento de respeito e admiração por suas histórias de vida.
Fui, em algumas oportunidades, com as alunas e alunos até os locais das
mariscagens, esses contatos foram gratificantes, pois permitiram-me conhecer um
pouco do universo que fazia parte da vida deles. Em uma tarde quando havia
terminado de ministrar as aulas, fui dar uma caminhada na praia e lá me encontrei
com Floraci, uma ex-aluna que tem um jeito muito alegre e que costuma sorrir ao
falar. Assim que me viu perguntou-me se não queria ir com ela de canoa em águas
mais distantes da margem, colocar as gaiolas para pegar o siri; eu de imediato
aceitei. Lembro-me que Floraci demonstrou em sua fisionomia espanto e satisfação
quando aceitei o convite. E lá fomos nós! Experimentei uma adrenalina excitante:
mistura de apreensão à medida que nos afastávamos da margem, e alegria em me
ver fazendo parte daquela imensidão de água que se confundia entre as cores azul
e verde.
Floraci conhecia bem os locais para melhor capturar os siris. Remava e fazia
rápidas paradas lançando nas águas as armadilhas que iria, possivelmente, lhe
trazer o fruto do seu trabalho. Naquele momento ela era a mestra das águas e eu,
uma leiga naquela natureza imensa, apenas contemplava aquele infinito ao mesmo
tempo em que me divertia com a conversa animada de Floraci, ensinando-me a arte
de lidar com a maré.
Muitas foram as ocasiões em que comprei das alunas o chumbinho, o fruto
do seu trabalho. Foi gratificante vê-las tão empolgadas quando me ensinaram como
cozinhar o marisco, lembrando-me que não esquecesse de fervê-lo, escorrer o caldo
e, só depois desse cuidado, ele estaria pronto para o cozimento final e daí a
degustação.
Esses momentos vividos com as alunas e alunos tiveram uma importância
grandiosa, pois favoreceram o crescimento do vínculo de confiança, respeito e
amizade que, aos poucos, foram se solidificando. Como resposta ao meu
comportamento, tive um resultado positivo, pois consegui um ambiente mais
harmônico em sala de aula, o que proporcionou o desenvolvimento de um trabalho
21
satisfatório durante o período em que lecionei em Salinas da Margarida. Percebi,
então, que as atitudes interpretadas por mim como agressivas e mal educadas,
poderiam ter sido formas encontradas por algumas, para darem respostas às
dificuldades em suas vidas, ou eram a maneira que encontravam para reagirem e se
protegerem da minha presença que, naquele momento, era o novo, o desconhecido.
Depois de dois anos deixei de lecionar em Salinas da Margarida e voltei a
trabalhar em Santo Antonio de Jesus. No entanto, o meu interesse e amizade pelas
pessoas dessa comunidade não se restringiram apenas ao período em que estive
trabalhando lá. Mesmo afastada da cidade, continuei mantendo contatos. Em
conversas com amigos e alguns professores dessa Universidade, sobre a história de
vida dessas mulheres, fui muito estimulada a levar o tema para ser discutido na
Academia. Dessa forma, logo que surgiu a oportunidade para o debate, trouxe para
a discussão acadêmica um recorte da história dessas mulheres, no intuito de
contribuir com a aquisição do conhecimento histórico das pessoas comuns dessa
região: o trabalho, as experiências, e as vivências de sujeitos sociais que, até então,
estavam à margem da historiografia tradicional.
Para conhecê-las, foi preciso adentrar no seu mundo, perscrutar suas
memórias, escutar e registrar os seus depoimentos. Percorri o cotidiano por elas
vivenciado, conheci o seu trabalho, suas experiências, suas mudanças, quando
saíram da maré por acreditar que eram capazes de realizar coisas diferentes e foram
experimentar outras formas de trabalho em outros espaços. Outras continuaram sua
trajetória de vida fazendo o que acreditavam, permaneceram nas marés.
Observei atenta a vivência nos manguezais, nas areias das praias, nos seus
quintais, nas cozinhas, nas salas de visitas, nas matas, nos locais de vendas dos
seus produtos. Entendi, através dos seus depoimentos, os mecanismos utilizados
para a sobrevivência que resiste a força da norma capitalista, valorização e
manutenção da vida e de seus costumes. Compreendi, com isso, suas relações
familiares, as formas de socialização desenvolvidas por elas no cotidiano do
costeiro, espaço onde tinha uma maior quantidade de chumbinho, nas viagens para
a venda do marisco, nas suas festividades e em outras situações do dia-a-dia. Notei
a maneira como a prática da mariscagem é passada de geração para geração, os
meios viabilizados na superação das dificuldades, seus sonhos e desilusões e as
mudanças sócio-geográficas, urbanísticas e ambientais ocorridas na cidade que
interferiram na vida dessas pessoas e na mariscagem.
22
Este estudo associa-se à história vista de baixo, que para Jim Sharpe
“proporciona também um meio para reintegrar sua história aos grupos sociais que
podem ter pensado tê-la perdido, ou que nem tinham conhecimento da existência de
sua história”8. Nesse sentido, foi fundamental para a construção da pesquisa trazer
as vozes dessas pessoas. Como afirma Paul Thompson, a história oral “pode
devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental,
mediante suas próprias palavras”.9 A exploração de fontes orais, ao torna-se um
importante suporte na pesquisa histórica, rompe com a tradicional distância entre o
pesquisador e as fontes. Além disso, faz com que a subjetividade do pesquisador
venha à tona no processo da pesquisa, no contato com os entrevistados em análise.
A respeito da pesquisa feita através da oralidade, Paul Thompson afirma que a
história oral:
Torna possível um julgamento muito mais imparcial: as testemunhas
podem, agora, ser convocadas também de entre as classes
subalternas, os desprivilegiados e os derrotados. Isso propicia uma
reconstrução mais realista e mais imparcial do passado, uma
contestação ao relato tido como verdadeiro. Ao fazê-lo, a história oral
tem um compromisso radical em favor da mensagem social da
história como um todo.10
A oralidade favorece o esclarecimento da dimensão do viver, enquanto,
indiscriminadamente traduz o real segundo a consciência individual, envolta por
olhares coletivos dos acontecimentos, tornando possível uma maior imparcialidade
dos historiadores ao relatar os momentos que cursam do tempo aos homens que
interagem entre si na edificação da história. Essa imparcialidade, no entanto, não
significa fazer do historiador incapaz à percepção do inefável, pois o mesmo se
envolve subjetivamente na reflexão sobre o significado das falas, bem como dos
gestos e silêncios dos sujeitos entrevistados. O historiador, ao fazer estas leituras, é
imerso em sentimentos que afloram do momento e do contexto da entrevista e
daquele em que vive, quando uma gama de experiências próprias vem à tona ao
analisar o seu material de estudo.
8
Jim Sharpe, A história vista de baixo. In; BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo:
UNESP, 1992, p. 59.
9
Paul Thompson. A voz do passado: História Oral. Paz e Terra. Rio de Janeiro: 1992, p. 22.
Idem, op.cit. , p. 26.
10
23
Na riqueza das formas de expressão experimentada pela humanidade, as
palavras ganham um significado maior e mais amplo quando são pronunciadas
através dos sons, produzidos por meio das cordas vocais e acompanhadas de
gestos. A esse respeito Paul Zumthor acrescenta:
A palavra pronunciada não existe (como o faz a palavra escrita) num
contexto puramente verbal: ela participa necessariamente de um
processo mais amplo, operando sobre uma situação existencial que
altera de algum modo e cuja totalidade engaja os corpos dos
participantes.11
A palavra, quando pronunciada, expressa o quanto é rica a comunicação
humana, pois é carregada de significados apresentados em signos através de
entonações vocálicas, expressões faciais, gesticulações, enfim, todas as formas que
tem o ser humano de se expressar através do corpo para fazer-se compreender ao
usar a peculiaridade de sua comunicação. Desse modo, as entrevistas realizadas
durante a pesquisa me levaram a observar com mais atenção à forma como os
entrevistados se comportavam mediante determinados assuntos, ou por mim
abordados ou por eles lembrados, pude aguçar o sentido da percepção e sentir na
sutileza de seus gestos e de suas palavras a riqueza de informações que essas
manifestações transmitiam.
Na pesquisa, utilizei documentos escritos como as atas produzidas pela
Câmara Municipal de Salinas da Margarida e busquei perceber nesses documentos
o discurso do poder constituído quando essa cidade se emancipava e era objeto de
reformas
urbanas.
Os
documentos
da
Associação
das
Mariscadeiras
proporcionaram-me valiosas informações como essas mulheres organizadas
buscaram uma maior afirmação e representatividade como trabalhadoras. Através
da imprensa escrita, jornais pesquisados na Biblioteca Central em Salvador tentei
contextualizar Salinas no novo processo dos empreendimentos modernistas do qual
ela estava sendo palco.
O poema de autoria do Senhor Ademir Cerqueira da Cruz, morador de
Salinas, provocou-me mais sensibilidade para entender a convivência amorosa de
algumas dessas mulheres. A literatura escrita sobre Salinas da Margarida forneceume informações sobre o contexto histórico dessa cidade. Ao analisar com mais
11
Paul Zumthor. A letra e a voz: A “literatura” medieval. São Paulo: Cia das Letras, 1993, p. 244.
24
atenção às fotografias, pude perceber e entender melhor o cotidiano das
marisqueiras busquei com os croquis e os mapas expor com mais detalhes os
espaços de vivências das marisqueiras.
Os historiadores têm buscado novos caminhos, novos olhares para a
produção do conhecimento historiográfico, o que rompe com aquelas velhas formas
que concediam ao documento escrito respeito maior na aquisição do conhecimento.
Isso, no entanto, não diminui a importância da fonte escrita no debate histórico
contemporâneo, pois uma fonte não suplanta uma outra fonte. Pelo contrário,
múltiplas fontes tendem a oferecer mais informações à produção historiográfica.
Inseridas dentro dessas variadas formas de busca do conhecimento, as imagens
ganham espaço, propiciando ao homem maior riqueza de informações sobre o
mundo que o cerca. Willian Meirelles a respeito das imagens produzidas pelo
homem afirma:
As imagens que o homem elaborou através dos tempos estão
carregadas de propostas, questionamentos, tensões, acomodações,
desejos, enfim expressões presentes nas relações sociais que
modelam e ao mesmo tempo são modeladas pelas formas de pensar
e agir.”12
São variadas as formas que os homens têm de compreenderem as imagens
produzidas pelo próprio homem ao longo do tempo, no processo de interpretação
dessas fontes, eles são embalados por valores, experiências, idéias, saberes de
uma sociedade da qual fazem parte e se transportam com sensibilidade para
períodos passados distantes dos vivenciados por sua geração, na busca incessante
da compreensão daquela sociedade que as imagens representam. Longe de
congelar o real, as fotografias ao serem analisadas dentro do contexto em que estão
inseridas, elas contribuem com sua riqueza de informações que vão muito além de
simples imagens estáticas. Elas apresentam momentos singulares de interação
homem e natureza, homem e homem, homem e urbanização, enfim tudo que
compõe o visível. Por outro lado, é uma pausa no constante transcorrer do tempo,
pois a fotografia sustenta vivificando a memória das presentes e futuras gerações.
12
Willian Reis Meirelles. História das imagens: uma abordagem, múltiplas facetas. Unitermos: história e
imagens; fotografia; cinema, São Paulo: n. 3, 1995, p. 95.
25
Os contatos com estes documentos ajudaram-me no entendimento do viver
mariscando das mulheres de Salinas da Margarida. A medida do possível
entrecruzei essas fontes, na intenção de enriquecer o conhecimento acerca do
mundo que as circundam.
Esta pesquisa sobre as marisqueiras de Salinas da Margarida insere-se
também no campo de estudo da História social, que possibilita a utilização de uma
variedade de fontes e caminhos de pesquisas, enquanto exige que os
pesquisadores tenham uma maior atenção e sensibilidade nas suas análises. E
como diz Déa Fenelon, permite “extrair o não dito, as entrelinhas e aquilo que
potencialmente permite olhares e leituras diversas” 13. Assim, se descortinará um
leque maior de informações para uma ampla compreensão dos agentes históricos
no contexto socioeconômico e cultural, imbuídos na sua diversidade são arquitetos
dos fatos históricos.
Na perspectiva de nova abordagem da História social, os estudos a respeito
das mulheres ganham espaço em decorrência dos movimentos feministas que
explodiram a partir de 196014, cujo objetivo inicial buscava “apreender o passado
legítimo das mulheres, introduzindo-as, definitivamente, na história”.15 O estudo da
mulher está no centro da historiografia, ele é de suma importância para uma melhor
compreensão da participação delas na construção do desenvolvimento de toda e
qualquer sociedade.
Nesse sentido, Rachel Soihet apresenta seu ponto de vista:
A grande reviravolta da história nas últimas décadas, debruçando-se
sobre temáticas e grupos sociais até então excluídos do seu
interesse, contribui para o desenvolvimento de estudos sobre as
mulheres.16
A valorização de suas histórias tiram-nas do esquecimento e da exclusão que
a historiografia tradicional as colocou. Márcia Maria Leite assevera que “mulheres
não consideradas sujeitos históricos e condenadas a formar uma coletividade
13
Déa Ribeiro Fenelon. Cultura e história social: história e pesquisa. In: Projeto História: Revista do Programa
de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP.São Paulo, Educ, l981, p. 77.
14
A esse respeito ver, Rachel Soihet. História das Mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS,
Ronaldo (orgs.) Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus. 1997, p. 276.
15
Mary Del Priore. História das mulheres: as vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.)
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. p. 217.
16
Rachel Soihet, História das Mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.) Domínios
da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 275.
26
anônima vão sendo, aos poucos, recuperadas para além de um discurso e histórias
oficiais.”17 A história vista de baixo, ao tratar de temas das camadas populares,
possibilita o conhecimento de mulheres que em prol de sua valorização humana, e
na luta por sua sobrevivência ou de seus familiares, souberam romper laços
convencionais de preconceitos e tabus de uma sociedade machista que muito se
preocupou em retratar os “grandes feitos dos grandes homens”.18
Em contraposição à historiografia tradicional que revela os acontecimentos
que rodeiam principalmente o universo das elites, dos homens “monarcas, primeirosministros ou generais”19, nos últimos tempos, em especial os períodos que marcam
as décadas de 70 e 80, “período em que a reação contra o paradigma tradicional
tornou-se mundial, envolvendo historiadores do Japão, da Índia, da América Latina e
de vários lugares”20, vem surgindo estudos que muito tem se preocupado em trazer
à tona temas que mostram o dia-a-dia das classes populares. Nesse contexto, Leite
afirma que “as mulheres vêm sendo pensadas nas complexas redes de
sociabilidades e nas experiências dos espaços público e privado.”21. Ganha voz suas
experiências cotidianas, os mecanismos acionados por essas pessoas na luta pelo
sustento diário de suas vidas, de seus costumes, suas tradições, as formas
viabilizadas para serem respeitadas e valorizadas no meio em que estão inseridas.
Leite continua suas explicações sobre a contribuição do estudo de outras histórias:
Além da contribuição propriamente científica, o estudo de outras
histórias embasa projetos políticos que visam ao resgate de variados
sujeitos e atores, não mais abstratos e universais, e,
consequentemente, das suas experiências e lutas, proporcionando
assim, a construção de uma sociedade mais plural em identidades e
cidadanias.22
Cada vez mais os historiadores estão se aproximando de outras ciências
sociais como a Sociologia e a Antropologia, “e, nesse bojo, as mulheres são alçadas
à condição de objeto e sujeito da história,”23 obtendo analises e valorização de suas
experiências. Para Joan Scott “precisamos pensar sobre este campo como um
17
Márcia Maria da Silva Barreiros Leite. Entre a tinta e o papel: memórias de leituras e escritas femininas na
Bahia (1870-1920). Salvador. Quarteto. 2005, p. 25.
18
19
Peter Burke (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 12.
Jim Sharpe, op.cit. , p. 60.
Peter Burke, op.cit. , pp. 16 -17.
21
Márcia Maria da Silva Barreiros Leite, op.cit. , p. 27.
22
Idem, op.cit. , p. 23.
23
Rachel Soihet, op.cit. , p. 275.
20
27
estudo dinâmico na política da produção de conhecimento”24. Logo, é preciso
observar, mais atento, a participação dessas pessoas nas mudanças sociais, e
como chama a atenção Giovanni Levi observar “o papel ativo do indivíduo que antes
parecia simplesmente passivo ou indiferente”25, pois a história não existiria se não
existisse o ser humano, já que a concepção histórica é fruto da manifestação do
racional em interação com o semelhante e a natureza que o circunda.
Nessa perspectiva, esse estudo harmoniza-se com as considerações feitas
por Erivaldo Fagundes Neves sobre a história regional e local, a qual busca analisar
as práticas realizadas por indivíduos em um determinado espaço territorial em
contato com o próprio grupo de pertencimento e com outros em diferentes
espaços.26 Neves acrescenta em seu estudo outras interpretações elaboradas sobre
o sentido de regionalizar , a exemplo ele cita as análises de Michel Foucault e Durval
Muniz. Para ambos as regiões, antes de qualquer coisa, teriam um significado de
poder. O espaço seria dividido para que houvesse uma maior vigilância e daí o
controle e comando.
O poder regionalizado poderia se manifestar nas atividades políticas,
econômicas, culturais entre os grupos de indivíduos localizados nos espaços
divididos de um território. Para Durval Muniz, no processo de regionalizar, variados
discursos tentaram homogeneizar “os costumes, as crenças, as relações sociais, as
práticas sociais de cada região”27 na tentativa de torná-las modelo para toda a
nação. Nesse propósito, enalteciam determinadas manifestações sociais que
emanava de locais que era o centro do poder, em contrapartida negligenciavam as
particularidades oriundas de outros espaços.
No propósito de ampliar o conhecimento da dinâmica regional de Salinas da
Margarida com a inserção das marisqueiras, busquei também como inspiradoras as
reflexões de Janaína Amado:
A historiografia regional tem ainda a capacidade de apresentar o
concreto e o cotidiano, o ser humano historicamente determinado de
fazer a ponte entre o individual e o social. Por isso, quando emerge
das regiões economicamente mais pobres, muitas vezes ela
24
Joan Scott. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São
Paulo: UNESP, 1992. p. 66.
25
Giovanni Levi. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas.
São Paulo: UNESP, 1992, p. 160.
26
A esse respeito ver Erivaldo Fagundes Neves. História Regional e Local: fragmentação e recomposição da
história na crise da modernidade. Salvador: Arcádia. 2002, pp . 45-59.
27
Durval Muniz de Albuquerque Jr. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1999, pp. 48-49.
28
consegue também retratar a História dos marginalizados,
identificando-se com a chamada “História popular” ou “História dos
vencidos”.28
As marisqueiras inseridas nesta abordagem da história regional, com suas
histórias de vida que retratam o concreto do cotidiano e a especificidade da
singularidade de suas práticas de vida, contribuem para a totalidade da história local.
O estudo dessas mulheres oferece possibilidades novas e enriquecedoras de
análise dos sujeitos excluídos pela historiografia tradicional, porém são sujeitos
importantes que constroem a história, edificando, assim, a produção do
conhecimento histórico regional.
Para o estudo da trajetória dessas mulheres junto com suas praticas de
trabalho, faz-se necessário apontar que o trabalho feminino foi por muito tempo
pouco valorizado no sistema econômico brasileiro. Isso aconteceu mediante a
discriminação que havia por parte da sociedade em requisitar a mão-de-obra
feminina. Muitas mulheres ficavam fora do processo produtivo.
Entretanto, o fato de a mulher trabalhar fora de casa, significou em muitos
momentos a ruptura de padrões machistas estabelecidos na sociedade. Ruíram
aqueles velhos estereótipos da mulher submissa, esposa, mãe, dependente e frágil,
considerada por muitos, incapazes de desenvolver atividades que fugissem às
prendas do lar. Mary Del Priore apresenta um conceito de uma sociedade machista:
A mulher deve estar sujeita a seu marido, reverenciar-lhe, querer-lhe,
obsequiar-lhe; não deve fazer coisa alguma sem seu conselho; seu
principal cuidado deve ser educar e instruir a seus filhos cristamente,
cuidar com diligencia das coisas de casa, não sair dela sem
necessidade e permissão de seu marido.29
Esta visão apresenta um exemplo de conceitos de uma sociedade em que
vivenciavam idéias machistas de exclusão das mulheres dos direitos igualitários,
permitindo apenas o cumprimento de restritos deveres à esfera do lar. Ao contrário,
28
Janaína Amado. História e região: reconhecendo e construindo espaços. In: SILVA, Marcos A. da (org.)
República em migalhas: História regional e loca . São Paulo: Marco Zero, 1990, p. 13.
29
Mary Del Priore. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia, Rio de
Janeiro, José Olympio, Brasília, EDUNB,1. ed. 1993,p.130. apud. PRIORE, Mary Del. História das mulheres:
as vozes do silêncio. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo:
Contexto, 1998, p. 223.
29
a mulher é um ser humano dotado de atributos tanto quanto o homem, em toda a
sua riqueza de possibilidades e capacidades praticando qualquer atividade.
Nesse sentido, na conjuntura brasileira em que cresce largamente a
participação feminina no mercado de trabalho, as marisqueiras de Salinas da
Margarida são retratos desta realidade, apesar da atividade de mariscar vir de
tempos longínquos, bem como a participação de muitas marisqueiras de Salinas na
contribuição do sustento do lar. São mulheres envolvidas em um cotidiano de
trabalho regido pelo movimento das águas do mar. É no vai-e-vem das marés,
quando as águas apresentam um menor volume nas areias das praias que as
marisqueiras se dirigem para a sua oficina de trabalho e ali permanecem por horas a
fio, independente de chuva ou sol, todos os dias, cavando e catando as pequenas
conchas onde estão guardados os chumbinhos.
A questão ambiental tem sido tema de intensa discussão no rol das ciências
naturais e sociais. Muitas pesquisas nas últimas décadas vêm realizando a
discussão que mostra como ocorre essa simbiose entre a natureza e o homem. 30
Isto sinaliza uma maior preocupação em investigar como o ser humano vive o seu
papel na natureza, e como a natureza em sua sabedoria devolve ao homem os
benefícios ou malefícios que ele provoca no meio natural.
Assim, as marisqueiras de Salinas da Margarida levam diariamente o meio
ambiente não só para dentro de suas casas, mas também para dentro de suas
vidas. O trabalho que elas fazem proporciona experiências e saberes múltiplos. As
considerações elaboradas por Edna Castro explica o que ocorre no interior dessas
populações tradicionais:
Uma integração entre a vida econômica e social do grupo, onde a
produção faz parte da cadeia de sociabilidade e a ela é
indissociavelmente ligada, facilitando encontros interfamiliares,
realização de festas, perpetuação de rituais e outras modalidades de
trocas não econômicas.31
Existe uma preocupação por parte de alguns estudiosos do meio ambiente
com as populações que fortemente dependem do ecossistema. É importante que
essas populações sejam pensadas e chamadas cada vez mais a participarem de
30
A esse respeito ver Edna Castro. Território, Biodiversidade e Saberes de Populações Tradicionais. In; Antônio
Carlos Diegues (Org.). Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo:
Annablume, 2000, p. 165.
31
Idem, op.cit. , p. 167.
30
estudos que forneçam saberes de sua prática social cotidiana, que está
intensamente associada com a natureza e que vai além do trabalho que elas
desenvolvem.
Como esclarece Arturo Gómez-Pompa & Andrea Kaus nos estudos sobre a
conservação ambiental “dentro desse grupo de indivíduos existe um conjunto de
conhecimentos sobre aquele terreno, um conhecimento de êxitos e fracassos que
deve ser levado em conta nas nossas avaliações ambientais”.32 Logo, o
entendimento do viver dessas pessoas, a analise das teias de relacionamentos
elaboradas no cotidiano, poderá contribuir para o conhecimento de como elas
interagem com o meio ambiente e poderá fornecer informações valiosas para a
preservação do espaço natural. É imprescindível lembrar que o homem também é
natureza e a continuação da própria existência dessas populações, bem como de
toda a humanidade depende diretamente dos atos positivos e negativos que ele
pratica na natureza no âmbito local, regional e não esquecer que tais práticas
repercutirão em toda a esfera global.
O trabalho da mariscagem em Salinas não se limita apenas aquele que é
desenvolvido nas areias. No momento em que se eleva o nível da maré, as
marisqueiras se dirigem para diferentes espaços onde são desenvolvidas outras
etapas do seu trabalho. Esses espaços, palco de esperanças, sustentabilidade,
interesses, conflitos e negociações transformam-se e transformam a vida dessas
mulheres ao longo do tempo. Nos estudos realizados por Milton Santos sobre o
espaço ele lembra que: “o espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário
e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não
considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá,”33
Nesse sentido, as marisqueiras percorrem variados caminhos que as levam a
lugares diferentes, dentre eles os das matas onde buscam madeira seca para fazer
o fogo e escaldar o chumbinho, para assim poderem tirá-los das conchas,
alimentarem-se, empacotá-los e vendê-los em outros lugares.
Embora a mariscagem do chumbinho seja prioritariamente conduzida pela
mulher em Salinas, durante a produção da pesquisa foi observado que o homem
salinense também buscou sustento através da cata desse molusco. Vilma
32
Arturo Gómez-Pompa & Andrea Kaus. Domesticando o Mito da Natureza Selvagem. In; Antônio Carlos
Diegues (Org.). Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo:
Annablume, 2000, p. 143.
33
Milton Santos. A Natureza do Espaço. São Paulo. Edusp. 2006, p. 63.
31
Nascimento esclarece: “As culturas não são imóveis e estão sempre em processo
relacionais, até porque para serem revitalizadas pressupõem tensões, confrontos
que, não raro, resultam em transformações.”34 A mudança de comportamento dos
homens de Salinas que cata o chumbinho, revela que eles souberam recriar
conceitos, pois é notório o conceito local que a cata do chumbinho é uma atividade
feminina. Como já afirmou Raymond Williams, “numa cultura particular, certos
significados e práticas são escolhidos para ênfase e certos outros significados e
práticas são postos de lado, ou negligenciados.”35 A presença desses homens nesse
trabalho demonstra que muitos priorizaram dar manutenção a vida, garantir o pão de
cada dia
A dissertação foi estruturada em três capítulos. No primeiro capítulo intitulado
“O VAI-E-VEM DAS MARÉS”, foram analisados os costumes, os mecanismos de
socialização, como a prática da mariscagem é passada de geração para geração, as
formas utilizadas na superação das dificuldades, as lutas das marisqueiras em
acionarem formas para a manutenção da vida e a de seus familiares, a preocupação
com a legalidade da profissão, as relações familiares e com as colegas de trabalho,
o cuidado com os seus corpos e as festividades em que participavam. Foi dado
destaque também a alguns dos aspectos do cotidiano dessas pessoas, fora da
maré. Quando as águas avançam em direção as areias e ao manguezal, elas saem
desses locais para desenvolverem outras atividades que continuavam imbricadas
com os mariscos. Aqui foram apresentados alguns aspectos que sinalizam a
devastação do meio ambiente salinense que foi pouco a pouco ocorrendo para dar
lugar à construção da cidade Salinas da Margarida.
No segundo capítulo, que traz como título “MARÉS DA MODERNIZAÇÃO”, foi
ressaltado muitas das experiências vividas por marisqueiras e ganhadeiras em
outros espaços na busca do sustento. São apontadas as incertezas quanto ao
retorno financeiro que a mariscagem oferecia, dando destaque ao que sentiam
quando voltavam para casa sem dinheiro, alimento e outros mantimentos
necessários para a vida diária. Nesse capítulo, foram identificadas, através de suas
falas e de documentos escritos, as mudanças urbanísticas e ambientais geradas na
cidade que atendiam aos interesses políticos e empresariais e a novos ideais de
34
Vilma Maria do Nascimento. Sagrado/Profano no trato do corpo e da saúde na “Metrópole Negra”: Salvador
nos anos 1950/1970. Tese de Doutorado. PUC, São Paulo, 2007, p. 14.
35
Raymond Williams, Marxismo e Literatura. Zahar. Rio de Janeiro, 1979 , p. 119.
32
modernização. Foi observado até que ponto essas mudanças refletiam no trabalho e
em outros aspectos da vida dessas pessoas.
No terceiro capítulo, que tem como título “RELAÇÕES NOS ESPAÇOS DA
MARISCAGEM”, salientou-se a forma como marisqueiras reagiram diante da
imposição dos novos empreendimentos durante as apropriações dos espaços
naturais de Salinas. Foram apresentados outros caminhos que essas pessoas
buscaram como estratégia de sobrevivência, como a busca de emprego, além dos
manguezais, espaços tão bem conhecidos por elas. Foram feitas reflexões sobre
algumas modificações ocorridas na vida das marisqueiras, geradas com a chegada
de novos serviços oferecidos à população, a exemplo do transporte coletivo
terrestre. As mudanças vindas com esse novo meio de transporte definiram de forma
marcante as viagens, as perspectivas para a vendagem e a própria segurança das
marisqueiras. Foram apresentadas formas como elas solidificavam os laços de
amizades e companheirismo através dos gestos de solidariedades criados e
recriados em múltiplos espaços de suas vivências. Por fim, foi analisado como essas
pessoas superaram dificuldades e continuaram a cultivar os sonhos, alguns
desfeitos durante os envolvimentos que tiveram no decorrer da vida. Procurou-se
explicar que mesmo com toda a adversidade vivida, elas continuavam a cultivar suas
esperanças na crença maior que através da maré teriam a conquista do alento
diário.
33
CAPÍTULO I
O VAI-E-VEM DAS MARÉS
[...] foi desde o tempo de minha mãe e a gente, os
filhos, seguindo o mesmo costume, e tamos até
hoje. Quase a maioria da população daqui, todo
mundo vive de maré.
Dilza Spínola de Souza
34
PASSAVA FOME, MAS A MINHA ALEGRIA ME ALIMENTAVA.
O crescimento da conscientização do valor próprio e a necessidade do
trabalho impulsionaram as mulheres a irem à luta por sua sobrevivência. Em muitos
momentos, isso também significava a sobrevivência do seu lar. Como expressa
Maria Odila, ao abordar a sociedade paulista no século XIX: “Mulheres pobres, sós,
chefes de família, viviam precariamente de trabalho temporário, antes como
autônomas do que como assalariadas”.36 Marginalizada nesse processo produtivo
brasileiro, a mulher sofreu por um longo período a ausência de condições favoráveis
ao seu desempenho em atividades que lhe rendessem um salário digno, de
reconhecimento social e de igualdade no mercado de trabalho.
Assim, continua Maria Odila, “multiplicavam-se mulheres pobres que o
sistema social era incapaz de absorver e que apenas tangencialmente se inseriam
na sociedade escravista”. 37 No entanto, no que diz respeito às mulheres das classes
dominantes daquele período, a historiadora aponta alguns exemplos que, “longe de
ser uma história de clausura e passividade”
38
, muitas mulheres exerceram papéis
fundamentais na organização de seus lares, de suas propriedades, bem como na
política local.
No decorrer dos séculos, a participação da mulher no processo produtivo é
cada vez mais marcante. São elas que respondem sozinhas em muitas localidades
pelo sustento de seus lares. Os estudos realizados por Tânia Cunha fornecem os
seguintes dados:
No Brasil, quase 25% dos lares são, atualmente, chefiados por
mulheres. As estatísticas confirmam que justamente nas camadas
mais pobres encontra-se o maior contingente de mulheres que
respondem sozinhas pelo provimento da família. Existem evidências
que esse fenômeno tende a se ampliar na medida em que nos
aproximamos da zona rural e da periferia das áreas metropolitanas.39
36
Maria Odila Leite da Silva Dias. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense,
1995, p. 15.
37
Idem, op.cit. , p. 111.
38
Idem, op.cit. , p. 104.
39
Tânia Rocha Andrade Cunha . A mulher chefe de família e o fenômeno da violência. In: Politeia: história e
sociedade/ revista do departamento de história da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- V. 1 n 1 (2001).
Vitória da Conquista - Bahia: edições UESB, 2001, pp. 270-271.
35
Em informações fornecidas pelo IBGE no ano de 1987 era de 21,1% o
número de famílias sustentadas por mulheres. Em 1996 esse percentual aumentou
para 25,23 %.40 Estes dados apontam o aumento da participação feminina no
mercado de trabalho e sua aptidão como sustentáculo de lares. Fatos que
determinam esta realidade social, segundo as análises de Cunha, são as
separações, a viuvez, as mães solteiras, os parceiros que não conseguem sozinhos
sustentar os lares.
Na conjuntura social brasileira em que cresce largamente a participação
feminina no mercado de trabalho, as marisqueiras de Salinas da Margarida
constituem-se um segmento desta realidade. Praticantes de uma atividade que vem
de tempos longínquos, existentes em inúmeras partes do litoral brasileiro, são
mulheres envolvidas em um cotidiano de trabalho regido pelo movimento das águas
do mar.
Trata-se de uma marcação cronológica do briquitar da vida que, assemelhase às considerações elaboradas por Thompson quanto à temporalidade no porto
marítimo: “a padronização do tempo social no porto marítimo observa os ritmos do
mar; e isso parece natural e compreensível para os pescadores ou navegantes: a
compulsão é própria da natureza.”
41
É ela quem delega o tempo que as tarefas
devem ser realizadas. As atividades da vida diária se alongam e se estreitam de
acordo com o vai-e-vem das marés. Essa noção de tempo é vivenciada pelas
marisqueiras em Salinas.
As considerações elaboradas por Vilma Nascimento trazem mostra de como
populares souberam construir estratégias para continuarem a viver praticando
formas diferentes de trabalho. Ela afirma:
Para além do universo do trabalho já definido pelo mercado, a cidade
não deixou de criar outros espaços regidos por lógicas imbricadas a
culturas populares, que não apenas resistem a determinadas
imposições de modernização, como ampliam suas redes de relações
sociais, promotoras de modos de trabalho e estratégias de
sobrevivência decorrentes de tradições familiares.42
40
IBGE – Pesquisa de Orçamentos Familiares.
Edward P. Thompson. Costumes em Comum; estudos sobre a cultura popular tradicional. Companhia das
Letras, São Paulo: 1998, p. 271.
42
Vilma Maria do Nascimento. Sagrado/Profano no trato do corpo e da saúde na “Metrópole Negra”: Salvador
nos anos 1950/1970. Tese de Doutorado. PUC, São Paulo: 2007, p. 36.
41
36
A todo instante, as pessoas viabilizam formas diferentes de trabalhos que
extrapolam aquelas marcadas pelo mercado. Empurradas daqui e dali, mulheres e
homens buscam corresponder ao chamado que a vida lhes atribui. Muitas vezes,
esses formatos de sobrevivências derivam de práticas tradicionalmente construídas
no âmbito familiar.
No cotidiano de Salinas, a mariscagem de catar chumbinho, que é
considerada uma pesca artesanal, tem como características ser desenvolvida com a
participação de membros familiares, sendo saliente a importância desse meio de
trabalho para a própria família. As crianças eram educadas durante o convívio com
suas mães, nas jornadas das mariscagens, pois já afirmou Agnes Heller, “O homem
nasce já inserido em sua cotidianidade.”43 O tempo da convivência entre os filhos e
as mães se repetia todos os dias por longas horas. As crianças enquanto
trabalhavam e brincavam, presenciavam também as conversas dos adultos.
Sobre peculiaridades da pesca artesanal, Claúdia Cristina Souza faz algumas
considerações:
A pesca artesanal, talvez, por estar historicamente ligada a
agricultura de subsistência, guarda certas características
semelhantes àquela atividade. Uma delas é certamente o fato de que
a pesca artesanal ainda se desenvolve como um trabalho familiar, do
qual participam mulheres e crianças. Essa participação geralmente
se dá na produção e manutenção de apetrechos da pesca, ou no
processamento do pescado e sua comercialização. Mas não exclui a
participação de mulheres, em atividades diretamente relacionadas à
captura do pescado. 44
A contribuição infantil no trabalho além de representar uma quantidade maior
de mariscos catados e ajuda no transporte, assegurava a difusão da tradição. Na
rotina das mariscagens, as crianças observavam o trabalho que suas mães faziam,
absorviam esses saberes e realizavam a mariscagem. Não esquecendo o que
lembra Michelle Perrot “as mulheres do povo têm outros saberes e poderes,
principalmente médicos, religiosos e mesmo culturais.”45 Era também nesses
43
Agnes Heller. O Cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 18.
Claúdia Cristina Souza. Mulheres da Maré: Um estudo sobre as marisqueiras de Maragogipe – Bahia.
Monografia de Graduação. Salvador: UFBA / Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de
Antropologia Etnologia. 1991, p. 9-14.
45
Michelle Perrot. Os Excuídos: operários, mulheres, prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 181.
44
37
espaços que suas mães preparavam-nas para a vida. Imbuídas de conceitos,
transmitia-os ensinando aos seus filhos o caminho que deveriam andar.
O desempenho dessas mães pode ser comparado as análises elaboradas
por Perrot, a respeito do comportamento das mães francesas no século XIX, no que
diz respeito à criação dos seus filhos. Para Perrot “A dona-de-casa está investida de
todos os tipos de função. Primeiramente, dar à luz e criar filhos que leva consigo e, a
partir do momento em que sabem andar, acompanham-na por toda parte.”46 Em
Salinas, adultos que mariscavam disseram que quando crianças não o faziam
obrigadas, colocavam-se a disposição para ajudar e lançavam-se em direção da
maré com risos e brincadeiras. Lá, ao contrário dos adultos, não sentiam tanto o
peso da responsabilidade de mariscar e acabavam divertindo-se com a criatividade
própria da infância.
A imagem seguinte sugere reflexões acerca de tais questões:
FIGURA 3: Crianças mariscando. (Fotografia de pesquisa, 2003)
A fotografia captou um momento divertido em que elas faziam a mariscagem.
Nota-se que estavam descalças, com os pés em contato direto com o chão úmido, e
sem nenhuma proteção em suas cabeças, expostas ao sol e ao vento. A foto foi
46
Idem, op. cit. , p. 214.
38
tirada a pedido das próprias crianças, que apesar de terem demonstrado com risos a
alegria que sentiam em serem fotografadas, não exibiram seus rostos, isso, talvez
por timidez.
É possível perceber os buracos que foram feitos com as mãos das crianças
na areia, para recolherem o chumbinho. Esta água que brotava da areia era usada
para uma pré-lavagem dos mariscos, o que diminuía o excesso de lama e areia que
estavam nas conchas. Este cuidado aliviava o peso no momento em que elas os
transportavam.
Como surge indicado na imagem, é importante ressaltar que grande parcela
das marisqueiras identificavam-se como negra. Quanto a essa particularidade, Rose,
ex-marisqueira com a idade de 34 anos, quando foi entrevistada, falou sobre o seu
trabalho. Ela trouxe em suas palavras, elementos diante dos quais é possível
observar o quanto se identificava com a atividade que fazia desde criança e como se
orgulhava dele. Surgiram em sua fala, o significado do ser marisqueira e ser negra.
Nunca, nunca me senti discriminada por mariscar. Nem nunca fui
contra, e nem senti revolta de ninguém dizer nada. Sempre nós
fomos criadas valorizando aquilo que nos favorecia. Por ser chamada
de marisqueira? Somos mesmo! Suas negrinhas marisqueiras!
Somos mesmo! E temos prazer de viver mariscando. 47
Rose e suas irmãs não admitiam discriminações por serem marisqueiras e
negras. Ouvir frases que tinham como intuito denegri-las, não abatia a certeza do
que eram e do trabalho que desenvolviam. Logo, Eva Alterman Blay traz análises da
mulher no mercado de trabalho paulista e esclarece que “A forma como a mulher
assume o trabalho reflete, pois a maneira como ela se autodefine socialmente.” 48
Para Blay, a mulher passa a se considerar uma profissional quando o trabalho pode
vir a ter um sentido inseparável na sua vida. É possível observar que, a criação que
os pais de Rose deram a ela e a suas irmãs, era imbuída de valores que
sublimavam o trabalho que desenvolviam. Tanto na fala de Rose, como de outras
marisqueiras, foi acentuada a maneira pela qual elas se identificavam como
mulheres negras, bem como profissionais da maré.
47
48
Rosangela Áurea Caetano (Rose). Entrevistada em 15 fev. 2003.
Eva Alterman Blay. Trabalho Domesticado: A Mulher na Indústria Paulista. São Paulo: Ática, 1978, p. 269.
39
FIGURA 4: Mulher mariscando. (Fotografia de pesquisa, 2003)
Na figura 4, nota-se uma profissional mo exercício do seu trabalho: o cavador
na mão esquerda, que revolve a areia na procura do marisco e a sacola de plástico
que serve para armazenar e transportá-lo. Em destaque está a posição que é
realizada a mariscagem: debruçada sobre a areia a marisqueira cava em busca dos
chumbinhos. Na cabeça, está um boné para se proteger da ação do vento, do sol e
para aquelas que o transportavam na cabeça, o boné ajudava a equilibrar melhor a
vasilha com os chumbinhos no momento em que ele era transportado.
Uma outra particularidade na coleta do chumbinho é a necessidade do uso de
qualquer instrumento que sirva para cavar as areias da praia em uma rasa
profundidade, como o cavador presente na mão da marisqueira. A simplicidade dos
instrumentos necessários à pescaria é mais uma característica geralmente presente
na pesca artesanal.
Por outro lado, deve-se lembrar que essa atividade é marcada por aspectos
próprios e que uma de suas características é ser desenvolvida de maneira difícil e
estafante. O depoimento abaixo de Cleide, marisqueira indica essa peculiaridade:
É cansativo, é difícil pra caramba! Cavar de um em um ali no sol
quente, pegar o peso... Pra você pegar um quilo de marisco, você
40
passa horas ali mariscando, raspando aquela areia todinha. Lava o
marisco, coloca na vasilha e leva na cabeça o peso. À distância de
casa é sempre muito, muito quilômetro, muito mesmo! E você vai lá
no sol, na areia quente [...] No inverno não se fala... A chuva é chuva
demais, aqui chove demais. Aí, tem que ir para a maré debaixo de
chuva, trovoada... 49
Cleide tinha 22 anos de idade quando concedeu a entrevista. É filha e neta de
marisqueiras. Começou a mariscar com a idade de 12 anos. Teve duas filhas, mas
não morava com os pais das crianças – as filhas eram de pais diferentes – Quando
começou a mariscar era apenas para ajudar na renda familiar. Sustentava sozinha a
família. Trabalhou temporariamente em uma das pousadas de Salinas. Segundo ela,
esse trabalho não lhe oferecia nenhum vínculo empregatício e o salário que recebia
era pouco. Assim, continuava mariscando. Neste depoimento, nota-se dificuldades
que perpassam os aspectos físicos e abrangem os aspectos naturais, como o mal
tempo vivenciados. Elas o faziam de cócoras ou debruçadas sobre a areia, cavavam
e catavam as pequenas conchas com grande maestria.
A quantidade do produto pescado sempre dependia do peso que se
agüentava transportar. A denominação que é dada ao marisco (chumbinho), parece
fazer sentido, pois eles são pequenos, não tão pequenos quanto à esfera do
chumbo industrializado para arma de fogo, mas consideravelmente pequenos e
pesados. Antes de serem degustados, os chumbinhos eram retirados das conchas e
depois passavam por um processo duplo de fervura; a primeira vez é para poder
tirá-los das conchas, e a segunda, faz-se necessária para que seja retirada uma
substância, um caldo da cor de chumbo, que pode provocar mal estar nas pessoas.
Quanto as conchas do chumbinho, chamadas de cascas, eram lançadas na frente,
no lado ou no fundo das casas das marisqueiras que, acumuladas formavam
montes, e outras revestiam o solo como se fosse um tapete branco, onde
naturalmente as pessoas caminhavam sobre elas.
Cleide prosseguiu seu depoimento e destacou a dificuldade em realizar a
mariscagem. Apesar disso, toda a falta de tranquilidade é relativamente deixada de
lado quando, diante das dificuldades que passam, agradecem a Deus por dar-lhes a
maré e terem através dela o sustento. É o que Cleide expõe:
49
Cleide França Silva. Entrevistada em 1 mai. 2002.
41
É muito difícil mesmo, é péssimo mariscar. Mas... É bom! Eu
agradeço muito a Deus de ter a maré, como muitas pessoas, porque
é um meio de sustento. Porque se não tivesse a maré... Eu já chorei
várias vezes porque não tinha o que dar às minhas filhas, e naquele
dia eu amanhecia aí, ia mariscar. Voltava e de noite já tinha o leite, a
farinha de mingau, coisas que se fosse em Salvador, ou em outro
lugar não tinha, né? Porque aqui, apesar de ser pequena, pouco
conhecida, tem o recurso que é a maré. 50
O depoimento de Cleide é caracterizado por sentimentos ambíguos, que
marcam a sua relação com o trabalho da mariscagem. O difícil, o péssimo e o bom
se mesclam durante todo o período em que ela se refere ao seu trabalho. Ela
apontou Salinas como uma cidade pequena, que apesar de não oferecer muitas
outras possibilidades de trabalho, tem a maré que permite a conquista do pão diário.
Cita a capital Salvador que, embora possua muitas outras possibilidades de
trabalho, ela acreditava que se morasse lá passaria dificuldades ainda maiores do
que aquelas que passava em Salinas. Ela fez questão de ressaltar que gostava de
mariscar, apenas não gostaria que fosse esse o único meio de sustento. Pois sem
essa preocupação, a maré se tornaria um lugar de lazer, onde seria possível brincar,
tomar banho, e não apenas pegar frutos do mar. Já que a lida na maré era tão
desgastante e o retorno financeiro muito baixo.
Nas conversas mantidas com as marisqueiras, ocorriam sempre desabafos.
Eram queixas quanto ao valor em que era comercializado o chumbinho. Depois de
todo o trabalho que envolvia a prática desta mariscagem, não ocorria o merecido
valor. Esse ponto de vista é defendido por Rose:
Eu acho que o chumbinho precisava ser valorizado, pra que as
pessoas reconhecessem que ele tem um valor bem maior que o
camarão. Sem contar que você não aproveita as cascas do camarão.
As cascas do chumbinho servem pra você fazer artesanato, serve
pra alicerce, serve pra moer, pra fazer ração de galinha. Algum
tempo atrás já serviu de cal, pra misturar no cal, tanto o casco do
chumbinho como o casco da ostra. 51
No momento que falou sobre o valor do chumbinho, ela deslizava com força e
de maneira rítmica o dedo médio no dedo polegar. A intenção era acentuar o valor
50
51
Cleide França Silva. Entrevista citada.
Rosangela Áurea Caetano. Entrevista citada
42
mediante as utilidades do produto, com um gesto que “contribuía com a voz para
fixar e para compor o sentido”
52
. Isso no intuito de se obter mais compreensão e de
transmitir mais veracidade na idéia que se deseja divulgar. O gesto é um parceiro
primordial nesse propósito da comunicação oral.
Rose procurava fazer sua parte na tentativa de mudar esta discriminação.
Mantinha conversas com as pessoas para que reconhecessem o valor deste
produto. Na sua barraca em Salinas, vendia petiscos feitos com os chumbinhos a
um valor nivelado aos demais mariscos e afirmou a variedade que as cascas de
forma criativa poderiam ser aproveitadas.
Com o tempo, Rose buscou outras formas de trabalho, desenvolveu funções
fora da maré. Formou-se em magistério, mas não exerceu a profissão. Teve um bar
na orla marítima de Salinas da Margarida e outro em Salvador onde vendia, entre
outras coisas, frutos do mar. Viveu desenvolvendo mecanismos para desdobrar-se
entre Salvador e em Salinas da Margarida. Este viver foi mais uma forma de luta
pela manutenção de sua vida e da sua família.
Entre as marisqueira, multiplicam-se as memórias sobre as estratégias
criadas para enfrentarem as adversidades que viveram. Dona Sofia, por exemplo,
relata os momentos na maré em companhia de sua mãe, quando esta ainda
mariscava. Falou com entusiasmo e saudosismo de sua infância quando dividia seu
tempo entre os estudos e a mariscagem:
No tempo de minha mãe eu tava na escola, eu fazia assim... Na
minha época, a escola era duas vez no dia. Não é hoje que é uma
vez só, não! Era de manhã e de tarde... Eu ia pra escola quando
chegava eu perguntava por mamãe, arriava os livros, já sabia onde
ela estava, a maré que ela ia, era aqui perto, ia todo dia. Quando
chegava, almoçava e ia pra escola de novo, que era duas vezes por
dia... Naquela época tava de uns 8 a 10 anos, 8 a 10 anos não perdia
a minha escola, nunca perdia, já gostava da minha escola. 53
É possível notar que a atividade de mariscar vem de tempos longínquos.
Nesse sentido, esclarece Hall “As culturas, é claro, têm seus „locais‟. Porém, não é
mais tão fácil dizer de onde elas se originam.”54. Chegar em casa depois da escola,
52
Paul Zumthor . A letra e a voz: A “literatura” medieval. São Paulo: Cia das Letras, 1993, p. 244.
Sofia Lima Pinheiro. Entrevistada em 13 fev. 2003.
54
Stuart Hall. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Org. Liv Sovik; Trad. Adelaine La Guardia
Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003, p. 36.
53
43
era um momento marcado de euforia para Dona Sofia, por significar que iria até a
maré ao encontro da mãe e junto com ela iria desfrutar alguns momentos de lazer
brincando e ajudando-a na coleta dos mariscos. Ela trouxe em suas lembranças o
período que tinha a idade de 8 a 10 anos, e desenvolvia junto com sua mãe a
mariscagem.
No período da entrevista Dona Sofia tinha 82 anos de idade. Com o
referencial da idade dessa senhora, foi possível observar que essa atividade
marítima é realizada há bastante tempo em Salinas da Margarida, configurando-se
assim, como uma prática tradicional.
Dona Sofia, viúva e mãe de 10 filhos, sorriu quando falou que não sabe
quantos netos e bisnetos têm. Com alegria, lembrou que aguarda os tataranetos.
Disse que gostava muito de estudar, estudou da primeira até a quarta série do curso
primário; seu grande sonho era tornar-se professora. No entanto, este sonho ela não
conseguiu realizar por seu pai não ter tido condições de patrocinar os seus estudos
e por sérios problemas de saúde que ela teve.
Ela afirmou ter deixado de mariscar por insistência dos filhos e netos
preocupados com a saúde dela. Associou-se à Colônia dos Pescadores de Salinas,
que viabilizou os meios legais para que ela se aposentasse como pescadora.
Porém, aposentada, afirmou que se deixassem, ela ainda iria para a maré, trabalho
iniciado ainda criança e que sempre gostou de fazê-lo. Mesmo quando estudava e
tinha que permanecer na escola durante a maior parte do dia, mas sempre que
podia, dedicava algum tempo na maré em companhia de sua mãe.
Quando casou e vieram os filhos foi dos recursos do mar o principal meio de
sustento. Criou os filhos e dessa forma foram criados os netos. Ela atribuiu à
mariscagem todos os bens materiais que conseguiu obter durante a sua trajetória de
vida, e muitos dos saberes que adquiriu através das experiências que vivenciou com
amigos, companheiros das jornadas de trabalho.
Algumas marisqueiras fizeram questão de falar do cuidado que elas
dedicavam ao corpo. A esse respeito nos conta Cleide:
Pode a gente passar o dia todo mariscando, mas quando a gente
chega, todo mundo toma banho, aí almoça, ou toma café,
dependendo do horário, e depois é que a gente vai continuar o
processo. Vai escaldar, catar, embalar pra vender. Mas tem gente
que não, que anda todo sujo pelo meio da rua [...] você tem que se
conscientizar que você também é gente. Você tem que andar
44
limpinho, calçadinho, as unhas cortadas, cabelo penteado. Mesmo
que você não tenha um tempinho, mas você uma hora vai ter que
parar, se cuidar também.55
A marisqueira Cleide fez questão de relembrar, com consciência do valor
próprio, que não era pelo fato delas fazerem um trabalho tão “desvalorizado” diante
da sociedade capitalista, que deveriam descuidar da sua condição feminina. Nesse
propósito, as análises sobre o cotidiano elaboradas por Agnes Heller vêm esclarecer
que “São partes orgânicas da vida cotidiana: a organização do trabalho e da vida
privada, os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a
purificação.”56. Tais explicações sintonizam-se com aspectos do dia-a-dia das
marisqueiras, o cuidado que elas tinham com o trabalho, era vinculado a outras
esferas da vida: Apesar desse vai-e-vem na labuta diária em que múltiplas
atividades precisavam ser realizadas, para Cleide não deveria faltar o batom
adornando o sorriso, unhas pintadas, cabelos frisados, roupas limpas para levantar a
auto-estima do que de fato são: pessoas, mulheres.
Quanto aos meios utilizados para que relaxassem no cotidiano da labuta,
Dona Amor, outra marisqueira, lembrou de uma canção que costumava cantar na
sua lida diária. Fazer isso amenizava um pouco o cansaço do corpo e a dureza do
trabalho. Com uma voz suave e bastante afinada, essa marisqueira de 70 anos
cheia de energia cantou a canção:
Violão, eu estou tão sozinho
Sem amor, sem carinho
Solitário na dor
Violão, já chorei tanto, tanto
Que hoje eu não tenho mais pranto
Pra chorar pro meu amor.
Violão, companheiro dileto
És meu único afeto
Tudo que me restou.
Meu violão, meu amigo
Nem anos separou
Hoje eu trago comigo
Na saudade que ela deixou
Fiquei entre a cruz e a espada
55
56
Cleide França Silva. Entrevista citada.
Agnes Heller, op.cit, , p. 18.
45
Quando ela desesperada
Obrigou a me escolher
E agora, o meu dilema persiste
Viver sem ela é tão triste
Sem ti não posso viver.57
Aí eu ia, botava a boca no mundo a cantar, mariscando e cantando, e
toda hora ia na maré, tomava um banho, essas coisas. Eu era a
alegria da maré!58
Meu Dilema é o nome dessa música cuja autoria é de Adelino Moreira,
gravada por Nelson Gonçalves.
59
Dona Amor foi mãe de 15 filhos, dos quais oito
morreram. Os demais sobrevivem da maré. Sofreu muito durante o tempo em que
esteve casada, pois teve que ser pai e mãe dos filhos, já que o lucro que seu marido
obtinha da pescaria era consumido em bebidas. A forma serena como Dona Amor
cantou entrou em contradição com a aspereza que esse trabalho provocava em seu
corpo. Foi possível observar, enquanto ela falava, que as mãos e os pés
apresentavam cicatrizes de cortes que foram geradas nas longas jornadas de
trabalho, realizadas no decorrer da vida. As dores na coluna é outro problema que
normalmente as marisqueiras apresentaram por ter permanecido tantas horas
debruçadas na areia mariscando o chumbinho. A pele, os cabelos e a visão eram
afetados pelos efeitos negativos do sol, devido ao longo tempo de exposição, não
apenas ao sol, mas também ao vento, a chuva e ao sereno. No entanto, apesar da
intensidade desses efeitos gerados em seu corpo, Dona Amor guardava uma grande
sensibilidade musical, e a alegria de expressar o seu canto para as colegas.
Apesar de todo o cansaço que podia significar ir mariscar, ela sublimava essa
fadiga diária fazendo-se a “alegria da maré”. Ao mesmo tempo em que trabalhava,
buscava alegrar as demais companheiras com a sua cantoria, brincadeiras e
anedotas. Em intervalos se banhava nas águas, para refrigerar seu corpo do calor
57
Música Meu Dilema que Dona Amor cantou quando foi entrevistada em 25 set. 2007. Os grifos são meus por
preferi apresentar a letra da música da forma como foi composta. Ela está disponível no site:
http://letras.terra.com.br/adelino-moreira/303018/.
58
Heloiza Marcelina Ramos ( Dona Amor). Entrevistada em 25 set. 2007.
59
A
respeito
de
Adelino
Moreira
e
Nelson
Gonçalves
ver:
http://www.paixaoeromance.com/50decada/a_volta_do_boemio/h_a_volta_do_boemio.h
tm.
46
provocado pelo contato direto com o sol, e para afastar a canseira que enfraquecia
suas forças com o passar das horas do trabalho.
Sobre esse cotidiano de pessoas que estão em contato direto com a natureza
Jacques Laberge esclarece: “Chuva e água, sol e água, noite e água. Pode faltar o
peixe, pode romper a rede, mas nunca este contato direto com a natureza: sol chuva - noite - água.”
60
Ao seguir as riquezas das informações diversas do senso
comum, observando a lua, a direção dos ventos e a formação das nuvens, muitos
homens e mulheres que vivem do mar, sabiamente discernem o momento daquilo
que devem fazer e como pôr em prática seus conhecimentos relativos à natureza.
Associado ao trato com os seus corpos é perceptível a preocupação com a
legalidade de sua profissão. Por ser um trabalho sem garantias de salário fixo,
acabam ficando desprotegidas. Assim, elas buscavam na Legislação, seus direitos
trabalhistas. Em Salinas da Margarida, essas mulheres que se denominam como
marisqueiras e mariscadeiras, na busca de afirmar a sua identidade através dessa
prática artesanal, denotaram a percepção do seu valor ao se organizarem, apoiando
a criação da Associação das Mariscadeiras de Salinas da Margarida, sociedade civil
sem fins lucrativos. O estatuto da associação apresenta como primordial finalidade
defender democraticamente a idéia de compromisso com o trabalhador sem
distinção de nacionalidade, raça, cor ou religião, valorizando a força do trabalho
artesanal por elas. 61
Constam no estatuto da Associação das Marisqueiras, os seguintes objetivos:
IRepresentar os associados nas suas relações com os Órgãos
Públicos em geral, Sociedade Privada ou de Economia mista,
concluindo, efetivando ou retificando acordos, convênios,
solicitações, pedidos ou outras reivindicações que visem ao bem da
comunidade representada;
IIPrestar aos associados serviços de natureza jurídica,
educacional, médico-odontológico, cultural, recreativa e outros de
acordo com os recursos disponíveis que possam contribuir para
elevação dos padrões de vida da comunidade;
60
Jacques Laberge . As naturezas do pescador. In: DIEGUES, Antônio Carlos (Org.) A imagem das águas. São
Paulo: Hucitec, 2000, p. 45.
61
Ver Estatuto da Associação das Mariscadeiras. f. 1.
47
III- Administrar os recursos financeiros advindos da contribuição de
todos os sócios e de outras contribuições ou doações de órgãos
Públicos, privados ou de pessoas físicas. 62
Segundo a vice-presidente, Ângela Lima, alguns destes objetivos iriam sofrer
mudanças, por não ser possível a realização dos mesmos, como o serviço jurídico,
educacional, médico-odontológico. Os trabalhos da associação estavam voltados
para o lado social. Ângela Lima contou sobre os trabalhos que a associação
desenvolvia:
A associação faz pelas mariscadeiras um esclarecimento melhor
sobre sua realidade: o serviço social. Conseguem hoje saber o direito
que ela tem perante a justiça, perante a aposentadoria... Dar ajuda,
dar remédio, dar cesta básica. Quando a gente também tem
condições, que a associação tem também conta pra pagar. Aí tem
que pagar as contas, do que sobra a gente compra. A gente faz
bingo, fazemos seresta pra poder beneficiar alguma associada. 63
Para as marisqueiras participarem dos benefícios da Associação era preciso
que estivessem em dias com o pagamento da mensalidade. Segundo Ângela,
apesar de ter 110 associadas, nem todas pagavam a mensalidade, o que dificultava
os trabalhos que a associação buscava fazer. Além da renda que vinha da
mensalidade, a associação contava com o aluguel de um restaurante localizado na
orla marítima de Salinas.
Em Salinas da Margarida, funcionava uma Colônia de Pescadores, a Z13, um
Órgão que dentre outras funções, recolhe as contribuições dos pescadores e
repassa para a Previdência Social os valores recolhidos. No caso das marisqueiras,
elas se associavam à colônia, como pescadoras, e participavam dos benefícios
garantidos pela Previdência Social.
Segundo o depoimento de Ângela, para conseguirem através da Colônia dos
Pescadores os benefícios da Previdência Social, era necessário que elas se
associassem à Colônia e pagassem em dias a taxa da mensalidade. Quando
completavam no mínimo 10 anos de contribuição e com a idade de 50 anos, elas
então tinham o direito à aposentadoria. Além desse benefício, podiam contar com
62
63
Idem, op. cit., , ff. 1e 2.
Ângela Ribeiro de Lima. Entrevistada em 31 mai. 2002 .
48
outros serviços como auxílio maternidade e auxílio doença. As dirigentes da
associação faziam o trabalho de divulgação dos direitos das marisqueiras, e as
estimulavam a irem buscar os mesmos. Ao que se pode observar, estar
representada por uma categoria traz um sentimento de complemento. Quanto às
marisqueiras, elas buscavam os valores legais dessa prática, que também estão em
vigência em todo território nacional.
A associação foi fundada em 16 de Julho de 1982, data que consta no
estatuto, e teve como fundadora Elba Chagas Santos, moradora de Salinas que
nesse período trabalhava como funcionária pública na Assembléia Legislativa de
Salvador. Segundo sua entrevista, já havia exercido dois mandatos como vereadora
em Salinas da Margarida. Fundou a Associação das Marisqueiras, auxiliada por uma
amiga que trabalhava em associações, em Salvador. Durante o período que exerceu
a função de presidente da Associação das Mariscadeiras, viabilizou verbas para a
construção de quatorze casas, distribuídas entre as marisqueiras. Anos depois de
ter fundado a Associação das Marisqueiras, ganhou a eleição popular para líder
maior da Prefeitura de Salinas da Margarida, tornando-se prefeita.
64
Isto sinaliza
que o seu desempenho em abraçar causas das marisqueiras trouxe-lhe um retorno
positivo.
Ao que parece, existe um movimento ampliado de associações de
pescadores. Segundo Simone Maldonado:
Atualmente, no Norte e Nordeste do Brasil, as marisqueiras e as
coletoras de sargaço e caranguejo, assim como as mulheres que
fazem uma pequena pesca, ou pesca de mar raso, estão se
inscrevendo na Sudepe como pescadeiras, num movimento de
apropriação em termos produtivos e institucionais do espaço
feminino por elas ocupados no mar.65
Ao buscarem estar representadas em órgãos legais como pescadeiras, elas
apontam estar conscientes de que são possuidoras de direitos pela atividade que
desenvolvem. Este tipo de pescaria está inserida na Organização Internacional do
Trabalho que as define como pescadores:
64
65
Elba Chagas Santos. Entrevistada em 13 fev. 2003.
Simone Carneiro Maldonado . Pescadores do Mar. São Paulo: Ática. Princípios, 1986. p. 21.
49
A Organização Internacional do Trabalho define como pescadores os
trabalhadores que se dedicam à captura de pescado e (...) Ainda
fazem parte dessa definição os coletores de esponjas e pérolas,
algas e sargaços, moluscos e crustáceos, os ostreicultores, baleeiros
e caçadores de focas.66
De todo modo, a resistência das mulheres marisqueiras mostrou influência no
poder local, em Salinas da Margarida. No entanto, foram muitas as marisqueiras que
falaram de suas aflições, venturas, desventuras e desilusões experimentadas por
elas em seu cotidiano. Como Dona Maria José, em um clamor franco e pleno de
dificuldades vivenciadas, lembrou que precisavam muito da ajuda do poder político
constituído para que amenizassem a labuta diária da mariscagem. Apontou a
doação de um meio de transporte como forma de ajuda para que elas
desenvolvessem o trabalho com menos entraves.
O que a gente precisa aqui em Salinas é de uma ajuda, de um
transporte. Pra gente que vai lá que traz que pega, e que tenha o
transporte pra trazer. A gente, as mulheres de Salinas, é o peso que
a gente pega no dia-a-dia e isso é todo dia. A gente sente cansada, é
trabalho sim! Um trabalho cansado, mas é um trabalho também que
a gente se sustenta, com isso que a gente vive. Eu criei 11 filhos
através da maré e eu fiz sempre um trabalho que eu precisava fazer
porque não tinha outra oportunidade de fazer. Só tinha essa mesmo,
e eu ia fazer esse trabalho. Mas nunca fui zangada por fazer isso
não, eu sempre tive orgulho de trabalhar na maré, acho que isso aqui
não é desprezo não [...] A gente tá precisando de ajuda, a gente tem
que fazer muito apelo pra ver se o governo estadual, federal,
qualquer um deles dá uma ajuda de transporte. Como eu mesmo tô
com 53 anos, mas se eu for mariscar eu marisco, e agora pra trazer?
Como é que traz? À distância... A gente não pega aqui perto, a gente
vai pra longe pra pegar. 67
Dona Maria José não vai mais catar chumbinho. O desabafo mostrou sinais
de cansaço físico e psicológico acumulados ao longo dos anos, gerados tanto pela
labuta diária de mariscar quanto pelas promessas feitas por políticos. Que segundo
ela, não faziam uma política digna que atendesse as demandas das primordiais
necessidades da população pobre, e ainda colocando-as num estado de segregação
pós-período eleitoral. Algumas marisqueiras reclamaram com veemência por um
projeto social que as fizessem sentir-se pessoas respeitadas no âmbito de seu
66
67
Idem, op.cit. , p. 11.
Maria José Pinheiro (Dona Baga). Entrevistada em 13 fev. 2003.
50
trabalho. O transporte para locomoção dos mariscos foi apontado por muitas
marisqueiras como um bem necessário e que muito lhes fazia falta, pois o
suprimento desta necessidade favoreceria muito na diminuição do cansaço diário.
FESTEJOS: ALEGRIA ALÉM DA MARÉ
As pessoas produzem cultura enquanto vivem. E a própria vida transforma-se
e edifica-se na complexidade dinâmica das relações de conflito gerados no social,
na interação com o outro, na luta pela manutenção da vida, do poder, de valores
políticos, religiosos, morais e artísticos. Sobre este comportamento, é interessante
trazer a reflexão que Thompson faz de que o homem – na experiência – constrói sua
própria história e através do seu existir, atuar, sentir, interagir ele compõe um
processo ao dar continuidade a existência e assim passa a ser recolocado na
história.68
As marisqueiras precisavam se desdobrar para atuarem em suas atividades
como mãe, pescadora, ganhadeira, estudante, namorada, esposa. No decorrer de
suas histórias, viviam em uma permanente busca, para acionarem meios de não
negligenciarem na atividade diária, o que não significa dizer, que isto sempre
ocorresse. A dinâmica pulsação do viver, era o que caracterizava o dia-a-dia dessas
mulheres.
Atrelado ao cotidiano do trabalho, elas vivenciavam momentos festivos,
quando a diversão era o ingrediente principal. Com base nas explicações de Ribeiro
júnior, entende-se que “o desafio pedagógico da festa é alargar-se a formidável
energia expressa/suscitada nela, para que esta energia penetre e transforme o
cotidiano e a sociedade.”69 Nessas ocasiões, as pessoas com alegria desprendiamse da rotina cansativa, e extravasavam suas emoções, entregando-se as
brincadeiras próprias dessas comemorações.
Dona Sofia guardou na sua memória boas lembranças de grandes festas
religiosas que marcaram sua vida em Salinas. As indagações feitas a essa senhora
a conduziram para remotas recordações festivas de sua infância. Ela trouxe com
bastante entusiasmo em suas palavras, essas reminiscências. Ao relatar, deixou a
68
69
Edward P. Thompson. A Miséria da Teoria: ou um planetário de erros. Zahar, Rio de Janeiro: 1981, p. 189.
Jorge Cláudio Ribeiro Júnior Noel. A festa do povo; Pedagogia de resistência. Vozes. Petrópolis: 1982, p. 50.
51
impressão de que estava vivenciando a essência das preparações e realizações de
algumas dessas festas.
Antigamente, quando eu era menina, eles saiam daqui de jornada...
É um bocado de homem, que saia com a imagem pra esses cantos
tudo, saia pra Encarnação, Conceiçao, Barra. Esses canto tudo ai,
levava oito, dez dias. Andando e tirando esmola e cantando, era
cantada nas casas de violão e pandeiro, era bonito mesmo, ainda me
lembro da canturia quando chegava. Era beleza, era bonito mesmo!70
A importância dada por Dona Sofia, para que fosse conhecida a jornada, que
se realizava em Salinas, no tempo em que ela era menina, justifica o seu registro
nesse estudo, pois ela ocorreu em um período que vai além do marco temporal da
pesquisa. Essa jornada tinha o objetivo de arrecadar fundos para a comemoração da
festa da padroeira de Salinas da Margarida, Nossa Senhora do Carmo, comemorada
no dia 16 de Julho. Consistia em grupos de homens que saíam e visitavam os
povoados circunvizinhos, onde pediam às pessoas ajuda financeira – que
denominavam de esmola – em nome da santa. Ao retornarem a Salinas, com o
dinheiro arrecadado, era hora de planejar quais os investimentos que poderiam fazer
para que pudessem abrilhantar as comemorações. Havia a necessidade de pagar o
padre, a celebração da missa e da procissão, aos músicos, os fogos de artifício
utilizados e tudo o que fosse necessário para a realização da festa. A jornada com o
tempo foi deixando de acontecer. Dona Sofia apontou como motivo a falta de
interesse popular para continuarem a buscar, através da jornada, ajuda financeira
para a festa da padroeira.
Júlia, filha de Dona Sofia, presente no momento em que sua mãe falava,
contou com o mesmo entusiasmo da mãe, as lembranças que guardou das festas
que aconteciam em Salinas, na sua mocidade e que participava tão ativamente:
As festa era assim... Tinha um tesoureiro. Uma pessoa responsável
pela festa, aí aquele tesoureiro procurava umas pessoas pra sair
arrecadando dinheiro. Tinha um livro chamado livro de ouro pra
pessoas anotar o dinheiro que desse, tinha também a gente que saia
com as bandeiras ia pra Conceição. Um domingo era em Conceição,
70
Sofia Lima Pinheiro. Entrevista citada.
52
outro em Encarnação o outro na Enseada. A gente saia dia de
domingo arrecadando dinheiro pra aquela festa. 71
A arrecadação financeira que Júlia fazia era também para a festa da
padroeira. Tal levantamento de fundos era feito tanto em Salinas como nos
povoados próximos, como uma forma de integrar a população de toda região de
Salinas. Os mecanismos utilizados eram os mais variados possíveis, desde o livro
de ouro, até envelopes, chamados de cartas, que eram endereçados a membros da
comunidade os quais colocavam dentro a contribuição para a festa. É o que Júlia
continuou a contar:
A gente arrecadava dinheiro pra Nossa senhora do Rosário. Então,
todo domingo a gente saia pra arrecadar em um lugar. Aquele
dinheiro a gente vinha, prestava contas ao tesoureiro da festa, aí o
tesoureiro no fim do ano, quando chegava na data da festa de
comemoração, então ele contratava músicos pra tocar durante três
dias é... Pagava pra realizar a missa, a procissão, comprava foguete.
Tudo isso aí, quer dizer, fazia a missa durante os três dias. As três
noites era tocado ali na sede, que hoje em dia é ali na praça.72
Júlia trouxe em suas lembranças marcas de sua vivência no âmbito da cultura
local. No período em que foi entrevistada, tinha 39 anos de idade, mas desde
criança acompanhava sua mãe nas idas e vindas das mariscagens. Mantendo a
tradição, continuou junto ao marido e aos filhos com essa prática.
Nas recordações de Júlia, o padre, morava em Salinas, o que facilitava a
realização da celebração religiosa, pois assim não havia a preocupação de
providenciar um pároco em outra comunidade. Durante três dias havia a
comemoração. Os músicos que vinham de Maragojipe, município próximo, cuidavam
da animação. Além de pagar aos músicos, financiar a procissão e a missa, no final
da celebração religiosa, havia uma comemoração feita com a população na rua. A
qual as pessoas denominavam de “gandaia”: os músicos tocando e as pessoas
presentes pulavam, brincavam como se fosse uma festa de carnaval. Afinal, como
esclarece Paul Zumthor “Não há festa sem dança; e esta, em cada localidade, tem
71
72
Júlia Pinheiro dos Santos. Entrevistada em 13 fev. 2003.
Idem. Entrevistada em 13 fev. 2003.
53
seu lugar próprio.”73 A dança é uma expressão corporal e que vem a concretizar os
sentimentos que estão associados a momentos como nascimento, casamento,
celebrações populares religiosas,
aniversário,
batizado, e outras ocasiões
vivenciadas por pessoas sozinhas ou em grupos, expressando tanto alegria quanto
tristeza.
Júlia prosseguiu com mais detalhes:
Tinha gandaia... Era gandaia tocando, era saxofone, carnaval pela
rua, o povo pulando aquelas coisas. E quando acabava tudo... Ás
vezes o dinheiro que sobrava, ele prestava contas de tudo as
pessoas que trabalhou. O que sobrou ia fazer um tipo, chamado
cozinhado que era pro povo que trabalhou na festa.
Júlia guardou na memória as comemorações que envolviam a comunidade
quanto ao resultado positivo da realização da festa de Nossa Senhora do Carmo.
Muitos
participavam
imbuídos
pelo
sentimento
de
alegria
e
satisfação,
principalmente aqueles que de maneira mais direta haviam contribuído para a
efetivação da festa.
Júlia recordou que na “gandaia” estava presente uma bandeira, que era um
símbolo festivo, levado pelo responsável da festa. O circuito era feito também com o
propósito de chegar até a casa de um membro da comunidade para entregar a
bandeira. Este já havia sido contactado antes e concordado em aceitar a ser o
responsável pela organização da festa de Nossa Senhora do Carmo no ano
seguinte.
Há 20 anos Júlia não mais participa da organização desses festejos. Ela
apontou este período como marco do final dessas formas de envolvimento das
pessoas da cidade para a preparação da festa da padroeira. “Porque ninguém quis
mais o compromisso de arrecadar dinheiro, de sair arrecadando dinheiro, tomar
aquele compromisso, de fazer tudo aquilo. Então a festa morreu, parou por aí.”
74
O
desinteresse popular foi lembrado como possível conseqüência do fim das
articulações para conseguir os benefícios para a comemoração dos festejos.
73
74
Paul Zumthor, op.cit. , p. 247.
Júlia Pinheiro dos Santos. Entrevista citada.
54
Outro festejo lembrado por Dona Sofia, foi à festa do Senhor dos Navegantes.
Ao cruzar as águas salinenses, traziam muito agito para os povoados. Era uma
romaria marítima chamada de “bordejo”, sendo que um dos barcos levava a imagem
do Senhor dos Navegantes. Populares embarcavam com muita animação, seguiam
todo o trajeto cantando, visitando as localidades próximas. Dona Sofia contou que
havia muitas embarcações que participavam da romaria, e canoas que chegavam a
disputar velocidade. Ela registra também a presença de saveiros e de um navio,
onde ela esteve a bordo, em uma das romarias. Dona Sofia, muito saudosa, disse
não haver mais essa comemoração em Salinas. Ela não aponta nenhum fato
especial que tenha provocado o fim dessa comemoração.
Mas, entre as festas nas quais as marisqueiras divertiam-se, não apenas a do
Senhor dos Navegantes desapareceu no tempo. A de São Benedito também. Nessa
comemoração, Salinas era visitada por andarilhos vindos de outras localidades, que
em nome do santo, buscavam ajuda financeira para a realização da festa. Dona
Sofia contou e cantou a passagem desses homens:
Abrindo as portas devoto
Ao senhor do mundo inteiro
O rei do céu e da terra
O nosso pai verdadeiro...
É chegado nessa casa
E a viagem chegar
E o rei Benedito
Que hoje vos veio visitar.
Aí eles tirava as frases. Era bonito como que menina. Ele vinha daí
de cima, do sertão.75
Dona Sofia não lembrou com exatidão de qual lugar vinham esses homens,
geralmente em número de cinco ou seis. O que marcava a passagem deles com a
imagem de São Benedito na localidade era a alegria e a curiosidade que tomavam
conta de muitos moradores. Entravam nas casas cantando e pedindo a esmola e
75
Sofia Lima Pinheiro. Entrevista citada.
55
rapidamente se enchia de curiosos, gente como Dona Sofia que gostava de vê-los e
ouvi-los cantar. Ela lembrou que, além dos motivos religioso e cultural, as moças
gostavam muito de ir ver os homens, pois os achavam bonitos. E após a visita em
Salinas e nos demais lugares, retornavam ao local de origem no intuito de
providenciar as devidas providências para as comemorações dos festejos. Com
muito pesar, ela falou sobre o fim dessa manifestação, em Salinas e em outras
localidades. Os andarilhos não mais retornaram à Salinas. Ela não soube identificar
o motivo. Deixaram muitas saudades para ela e para muitas outras pessoas que
admiravam estas manifestações culturais e de fé.
Apesar de todas essas mudanças ocorridas com o tempo e a perda dessas
tradições religiosas, Dona Sofia fez questão de ressaltar que a fé que sempre teve
em Jesus Cristo não se perdeu. Lembra que quando bem jovem, teve sérios
problemas de saúde e foi a fé que a fez recuperar sua saúde. Disse não sentir nem
mesmo dores nas costas, sintoma que cedo, muitas marisqueiras, como sua filha
Júlia com 39 anos de idade, já apresentava.
Apesar de algumas manifestações festivas ter deixado de acontecer em
Salinas, foi possível identificar que determinadas comemorações resistiram ao
tempo. É o caso da festa dedicada a São Pedro, padroeiro dos pescadores, que no
calendário católico é comemorado no dia 29 de junho. O lugar dedicado ao santo é
uma pequena capela que muitos chamam de gruta. A capela fica de frente para o
mar, no local chamado de Veneza que fica em Porto da Telha, dentro de Salinas.
Onde também está localizada a Casa das Mariscadeiras. Pescadores e marisqueiras
se unem com o propósito de abrilhantarem a realização da festa do seu padroeiro.
Dona Reinalda, ex-marisqueira, falou sobre esta festa:
Aqui tem uma Igrejinha de São Pedro, que todo ano celebra uma
missa em conveniência dos pescadores e as marisqueiras, que
comemora no dia de São Pedro e no dia 2 de janeiro. Tem essa
festinha dos pescadores e das marisqueiras para agradar São Pedro,
depois tem uma festinha que sai brincando pela rua com
instrumentozinho de assopro vai por aí pela rua. 76
76
Reinalda Áurea da Silva. Entrevistada em 7 jun. 2003.
56
A organização desta festa sugere o sentimento de harmonia e cumplicidade
entre marisqueiras e pescadores nos ritos de suas devoções religiosas. Os dois
grupos se empenhavam pelo brilhantismo da festa. Nela ocorre a celebração da
missa na capela dedicada ao Santo. Após a cerimônia religiosa, os participantes
percorrem em ritmo de folia algumas ruas de Salinas. Saiam do Porto da Telha –
também chamado de Dendê – em direção ao centro de Salinas.
Segundo Dona Reinalda, era como se fosse um carnaval, as pessoas
cantavam, dançavam e se divertiam com bebidas e com a participação de músicos
os quais abrilhantavam ainda mais o ritmo da festa. Não tinha hora para terminar a
folia. O motor condutor era deixar fluir a alegria em espontaneidade, sentimento
próprio dessas ocasiões, em que a fadiga, tensão, o compromisso com a hora da
maré era momentaneamente deixados de lado. Saber divertir-se nessas ocasiões
festivas poderia proporcionar um retorno mais relaxado ao trabalho.
O sagrado e o profano que estão imbricados nessas festividades. São duas
dimensões que, do ponto de vista de Ordep Serra, uma não existe sem a outra. 77
Ambos são conjunturas que abrangem comportamentos complementares dos
participantes. No sagrado faz-se presente a prudência, e um ritual dogmático que
deve ser seguido à risca. Em outro pólo está o profano, onde ocorre uma
manifestação extrovertida do público sem regras a seguir, a folia é quem reina no
conjunto da expressão popular, o efêmero é uma característica presente e marcante.
Portanto, ocorre uma ligação entre práticas sagradas e práticas profanas.
Uma outra comemoração vivida pelas marisqueiras e outros habitantes de
Salinas, que continuou em destaque, diz respeito à festa dedicada a Iemanjá, a
rainha do mar no candomblé. Que embora comemorada em Salvador no dia 2 de
Fevereiro, em Salinas, ocorria no mesmo mês, entretanto, sem data fixa. A festa foi
registrada na imagem a seguir:
77
Ordep Serra. Rumores de Festa. O sagrado e o profano na Bahia EDUFBA. Salvador: 2005, pp. 59-60.
57
FIGURA 5: Comemoração religiosa dedicada à Iemanjá. (Fotografia de pesquisa, 2003).
Na imagem, uma mistura de fé e alegria determinam o ritmo da
comemoração. Muitas marisqueiras e pescadores participam dos festejos, adornamse a caráter, onde o branco é a cor predominante. Abastecem-se de flores e de água
de cheiro e saem em cortejo pelas ruas da cidade até a praia. Ao passar em frente
da Igreja Católica de Nossa Senhora do Carmo, em sinal de respeito, param e
cantam em homenagem à Santa, mesmo que o templo esteja fechado. Continuam a
caminhada e logo embarcam rumo a um determinado local das águas para lançarem
ao mar as oferendas à Iemanjá. Nem todos embarcam. Os que ficam na terra se
reúnem ali mesmo na praia, numa cerimônia marcada com cantorias e palmas.
Uma festa criada mais recentemente, em 1997, possivelmente que dará início
a mais uma tradição, é a festa do Festival do Marisco, cujos principais símbolos são
a escolha da Garota Marisco e a apresentação dos mais variados pratos, todos
tendo o chumbinho como ingrediente principal. Essa festa envolve muito a
comunidade e conta com a decisiva contribuição da Associação que busca propiciar
diversão para todas as trabalhadoras da maré. A escolha da Garota Marisco
significa para muitas, um momento célebre, em que o corpo é valorizado além da
58
sua capacidade de mariscar. Continua ligada ao marisco, no entanto, o manguezal é
substituído por uma passarela onde desfila sendo o centro das atenções, pois seu
corpo é admirado e estimado em outra dimensão. Estar nesse espaço pode denotar
uma demonstração de resistência, e uma alegre pausa na fadiga do corre-corre
diário do ser marisqueira.
Para tornar a festa mais comemorativa, ocorrem regatas, contando com um
maior fluxo de turistas, na cidade. Com a divulgação do chumbinho, as marisqueiras
têm a oportunidade de expandirem mais os seus produtos, aprimoram a culinária e
sentem que aumenta a valorização do seu trabalho.
Nessa festa, está presente um dos pratos mais comumente encontrados nos
bares e restaurantes locais: o caldo de chumbinho. Na receita desse prato tem o
chumbinho, coentro, cebola, pimentões, tomates maduros, alho, limões, óleo e
farinha de copioba. Para preparar o caldo, é necessário ferver o chumbinho, depois
bater no liquidificador os temperos com um pouco de chumbinho, juntar tudo e levar
ao fogo, acrescentando a farinha aos poucos até alcançar a consistência desejada.78
Esta é uma das iguarias muito apreciada em Salinas, tanto por moradores como por
visitantes, encontrado à venda em diversos bares e restaurantes da cidade. Na
localidade existe uma crença popular que este caldo é muito nutritivo e energético.
Porém, entre tantas festas que contavam com a presença e a participação
das marisqueiras, uma das mais aguardadas, principalmente por aquelas que eram
mães, era a festa do dia das mães. Essa festa é aberta para todas que queiram
participar e não apenas para as associadas, agitando bastante a cidade durante
todo o dia e adentrando pela noite.
Essa comemoração é realizada pela Prefeitura Municipal de Salinas da
Margarida, com a colaboração da Associação das Marisqueiras e demais
colaboradores e parceiros que promoviam esses eventos com interesses diversos. 79
Nesse sentido, a Associação das Mariscadeiras não deixava de ser uma bandeira
política para muitos políticos, pois a associação representava uma categoria da
população que era a maioria e a mais carente de Salinas da Margarida.
78
79
Ingrid Vita . III Festival do Marisco. Salinas da Margarida: 2002, p. 15.
Sobre as comemorações populares e seus patrocinadores, ver Jorge Cláudio Ribeiro Júnior Noel , op.cit.
p. 51.
59
O festejo do dia das mães é comemorado com bebidas, comidas, músicas e
danças. Nessas ocasiões, podiam ocorrer confusões em decorrência da acentuada
ingestão de bebida alcoólica ou pela insatisfação de ter recebido um prêmio que não
gostou ou ainda por não ter recebido nenhum brinde.
Esses momentos festivos representavam para os salinenses, um meio pelo
qual afloravam suas alegrias, com danças, brincadeiras, envolvendo adultos e
crianças na tentativa de refrigerarem as tensões, que se fazem presentes na vida da
maioria dos seres humanos, pois, como esclarece Ribeiro Júnior em relação às
festas populares: “Quanto mais lúdica e expressiva for uma festa, mais contraste ela
terá com o cotidiano fatigado, calado, reprimido.”80 Assim, festejar, para eles, mesmo
com as adversidades que surgiam com o passar das horas, era antes de tudo,
sinônimo de celebrar a vida. Após esse período de diversão, as energias eram
retomadas para o retorno às suas atividades. Os dias seguintes eram marcados por
comentários referentes às festas, em que cada um trazia a sua opinião do que viu,
ouviu, gostou e não gostou.
EU VOU À MATA, À MARGARIDA E AO MANGUEZAL
Quando as águas avançavam nos locais da mariscagem, elas retornavam
para suas casas, e continuavam a desdobrarem-se para a manutenção de seus
lares e de suas vidas. Dona Dilza trouxe em suas palavras marcas desse cotidiano:
Quando acaba vai lavar aquele marisco, pra não trazer cheio de
terra, de cascalho. A gente lava, tira tudo, pra botar na vasilha pra vir.
O peso... É uma distância boa de vir, de lá pra cá! A gente vem com
aquele peso na cabeça. Aí, quando chega aqui, tem que procurar
lenha pra cozinhar, a gente vai panhar lenha pra cozinhar! Então isso
tudo é cansativo, a pessoa cansa mesmo! Chega em casa vai catar,
cozinhar, sustentar. Leva àquela hora catando, aí perde quase uma
manhã toda, ou uma tarde fazendo só aquele trabalho. 81
Dona Dilza tem 52 anos de idade, começou a mariscar quando ainda era
criança, junto com sua mãe e irmãs. O motivo dela ter trabalhado quando criança se
misturava com as histórias de outras, pois vinha da necessidade de ajudar os pais
80
81
Idem. , op.cit. , p. 49.
Dilza Spínola de Souza. Entrevistada em 31 mai. 2002.
60
na manutenção de suas vidas. Suas lembranças indicam os múltiplos cuidados com
os frutos do mar. Na praia mesmo, elas faziam a primeira limpeza do marisco, onde
lavavam nas águas salgadas as lamas e areias que ficavam grudadas na parte
externa das conchas. Este tratamento favorecia a limpeza e a diminuição do peso no
momento do transporte.
Algumas marisqueiras, lá mesmo na praia, catavam madeiras secas, faziam o
fogo, escaldavam e tiravam os mariscos das conchas. Isto aliviava o peso do
transporte e ajudava essas mulheres a levarem para casa uma quantidade maior de
chumbinhos. Outras, em grupo ou sozinhas, davam prosseguimento ao seu trabalho,
dirigindo-se até as matas para recolher lenhas que eram utilizadas no fogo para o
pré-cozimento dos mariscos. São “eternas catadoras de coisas” para quem, como
diz Perrot:
O „trabalho doméstico‟ não é „fazer faxina‟ por dia, mas fazer suas
compras, preparar as refeições – cozinhar é um meio de aproveitar
matérias-primas baratas e duras – ocupar-se da roupa, cuidar das
crianças.”82
A vida das marisqueiras se assemelha a práticas desse viver, dessas donasde-casa. Ir à mata denotava múltiplos significados no cotidiano dessas catadoras do
mar, embora a queima de madeira nos manguezais, provocava certo desequilíbrio à
natureza. Quanto ao solo, ele recebia um bom nível de fertilidade, pois as conchas,
ricas em cálcio, eram deixadas nesses locais, o que propiciava o seu fortalecimento,
servindo como adubo natural. Algumas marisqueiras questionadas sobre o motivo
de não praticarem o trabalho dessa forma, argumentaram preferir fazer a atividade
em casa para que, assim, elas ficassem mais protegidas dos efeitos do sol e da
chuva. Era importante a comodidade de suas casas, além de poder contarem com a
ajuda da família, amigos, vizinhos no trato com os mariscos.
Mas não só Dona Dilza relata significados de ir à mata. As recordações da
marisqueira Dona Amor, como é carinhosamente chamada pelos moradores do
local, indicaram um outro significado do ir à mata em Salinas.
Ah! Ir pro mato... Que aqui era um matagal, muito matagal! Aqui em
Salinas hoje tá cheio de casa. Mas tinha cajueiro! Tinha, e por sinal
82
Michelle Perrot, op.cit., pp. 200-201.
61
eu fui até mordida de cobra dentro de casa, que era tanto mato, era
tanto mato aqui, que hoje a gente pode dizer que tá na cidade. 83
É fácil identificar através das palavras de Dona Amor como era marcante a
grande vegetação existente em Salinas da Margarida. Realidade que, com o tempo,
foi sofrendo modificações que decidiram os novos traçados e deram o atual formato
a cidade.
Porto da Telha, e Dendê trata-se do mesmo local. Receberam estes nomes
respectivamente por ter servido como porto para desembarque de telhas e devido a
grande quantidade de dendezeiros que existia no local. Ele fica situado nos
arredores de Salinas. Algumas pessoas que moravam nesse local, quando
precisavam dirigir-se até o centro de Salinas, costumavam se referir a este centro
como a mata. Dona Amor externou, no decorrer da conversa, que alguns dos
moradores do Dendê zombavam de quem morava nessa “mata”. Eram considerados
por eles como mateiros. No entanto, era nesse local que eles vinham tratar de seus
assuntos. Dona Amor continuou com suas lembranças desse período:
E a gente passava pra mariscar, assim... Três horas da manhã. Elas
ficavam no caminho, em vez de ir mariscar, ficava no caminho
esperando a gente pra bulir, a cambada de lá: “A gente hoje vai pra
mata, a gente vai pra mata.” O povo chamava a gente de mateiro.
Porque quando ela vinha, tudo era pra resolver aqui em Salinas.
Expressões ditas pelos moradores do Porto da Telha como ”Hoje eu vou pra
mata” eram recheadas de significados que poderia indicar uma simples zombaria, na
tentativa de desvalorizar o lugar perante aqueles que lá moravam, bem como podia
significar dizer que teria que ir até lá para comprar algum alimento. Além disso,
poderia denotar que os moradores iriam pegar a embarcação para viajarem até a
capital baiana e lá venderem os frutos do mar, produtos da práxis diária dessa
população.
A fala de Dona Amor sinaliza a necessidades desses moradores para se
dirigirem até a mata.
Não tinha venda, não tinha nada! Tinha uma vendazinha, mas não
tinha o que tinha aqui. Elas vinham de lá pra cá, pra comprar aqui.
83
Heloisa Marcelina Ramos ( Dona Amor). Entrevista citada
62
Não tinha farmácia, mas vendia assim remédio. [...] Ai essa base
naval trouxe uma cooperativa pra aqui, onde a gente ia, por menor
preço, quando adquiria um trocado. Ai a gente ia nessa cooperativa.
Dona Amor lembrou que em Porto da Telha não tinha nem sequer uma
venda, no sentindo de um comércio mais amplo, enquanto que aponta no centro de
Salinas a existência desse serviço, que era oferecido pela Base. Durante o período
que a Base ficou instalada em Salinas, representou uma importante ajuda para a
população carente, principalmente no que se refere aos alimentos que eram
vendidos em uma cooperativa com preços acessíveis. Nesses estabelecimentos que
funcionavam na base, moradores compravam “um pouquinho de qualquer coisa”
84
,
recebiam assistência médica, distribuição de medicamentos, entre outros serviços
que eram realizados por médicos, marinheiros e demais funcionários que
trabalhavam na Base. Porém, esses momentos iam além de consultas e compras,
os moradores aproveitavam para conversar, fazer mexericos e acabavam criando,
nesses espaços, vínculos de amizades, solidariedade e diversão.
Almir de Oliveira retrata o período em que a Base esteve instalada em Salinas
da Margarida:
Durante muitos anos Salinas da Margarida abrigou uma estação de
rádio da Marinha. Era o posto de recepção PWF 4 [...], na sede do
município, no local que terminou ficando conhecido por “Base”. Os
trabalhos de montagem ocorreram no ano de 1943, durante o
desenrolar da Segunda Guerra Mundial e foram executados pela
Marinha dos Estados Unidos da América.85
A Base naval que Dona Amor fez referência diz respeito à estação PWF – 4,
uma estação de rádio da marinha que foi instalada em Salinas pela Marinha dos
EUA, no período da Segunda Guerra Mundial. No final do conflito, a estação foi
entregue a marinha do Brasil. Em 1954 a Estação de Rádio de Salvador, localizada
na Capitania dos Portos, necessitava ser ampliada, assim a Diretoria de Eletrônica e
Telecomunicações – DET reativou as instalações de Salinas.
86
A Base não ficava na mata onde as trablhadoras do chumbinho catavam
lenha, nem no manguezal. Mas quer fosse em relação a esses espaços ou à cidade,
o viver das marisqueiras não se orientava por marcos mecânicos do tempo. Aliás,
84
Idem. Entrevistada em 25 set. 2007.
Almir de Oliveira . Salinas da Margarida; Notícias Históricas. Minas Gerais: Minas Editora, 2000, p. 152.
86
Idem, op. cit. , passim.
85
63
por seguir o tempo da natureza, as pessoas que vivem do mar não tem um horário
fixo para desenvolverem o seu trabalho. Ele poderia ocorrer qualquer horário do dia
ou da noite. Cleide, em sua narrativa apresentou aspectos importantes sobre essa
pculiaridade:
Conseguia! Tinha que conseguir [um leve sorriso], se não mariscasse
aquele período não mariscava mais hora nenhuma. Porque era o
período da maré. 4:00h da manhã, a gente tinha que ir rapidão. A
gente ia com escuro mesmo e turvo, um não enxergando o outro, se
batendo no outro, mas tinha que sentir o marisco com a mão. A
gente sentia a terra, cavando. Com os olhos, a gente não enxergava
quase nada. A gente tinha que fazer um esforçozinho.87
Quando as águas baixavam e deixavam as areias e manguezais descobertos
independente do horário, Cleide ia mariscar com a sua mãe e suas irmãs. Às vezes
desfrutavam da luz das estrelas e da lua que clareava o caminho por onde
passavam, e os locais das mariscagens. Algumas pessoas faziam uso de um
improvisado candeeiro para obterem uma melhor visão no trajeto e na coleta. Cleide
falou que ela e suas irmãs não costumavam levar nada para obterem iluminação.
Nas noites escuras, constantemente se batiam umas nas outras, e pegavam os
mariscos através do tato.
Dona Sofia lembrou que em períodos da Semana Santa, chegou a mariscar
de noite com a mãe, na maré por ela definida como a maré boca da noite, por ser
durante o crepúsculo, o momento em que a maré oferecia boas condições para a
mariscagem. Por outro lado, não poderia deixar de lembrar que “É também pelas
mulheres – mulheres crepusculares – que se transmite, muitas vezes de mãe para
filha, a longa cadeia de histórias de família ou aldeia.”88 Foi possível notar durante a
entrevista, nos olhos de Dona Sofia, sua alegria em se sentir parte viva da natureza
ao interagir e respeitar o ciclo natural das marés. Ela demonstrou, como tantas
outras marisqueiras, ter o conhecimento empírico da natureza. Para Dona Sofia, não
importava se a atividade era feita durante o dia ou à noite, já que para ela o
importante era viver aquele momento com a satisfação de sobreviver com os
recursos oferecidos pela natureza e por estar dividindo estes momentos na
companhia de sua mãe.
87
88
Cleide França Silva. Entrevista citada.
Michelle Perrot. op.cit. , p. 206-207.
64
Quando faziam isso durante a noite, ao amanhecer, tinham a satisfação de ter
o marisco já limpinho dentro de casa. Com essa missão cumprida, podiam então
partir para outros trabalhos, pois já tinham conquistado o pão sagrado.
Na busca para perceber recriações elaboradas no mundo das marisqueiras,
foi observado que devido à distância da casa delas para os locais das mariscagens,
elas incluíram em seu trabalho os mais diversos meios de transportes para a
locomoção dos mariscos. A vinda do Costeiro para casa, por exemplo, requeria
sempre uma boa disposição física. Em alguns casos, fazia-se necessário o uso de
canoas para trazer o chumbinho até a margem da maré e, daí, o uso de vasilhas
plásticas, panelas, sacos plásticos, cestos de cipó, que eram levados na cabeça até
as casas das marisqueiras. Foi observado por vezes o uso de animais, carros de
mão e bicicletas (ver figura 6).
A distância para levar o marisco, era sempre grande. O significado dos
quilômetros e tempo percorrido por elas vai muito além do tempo do relógio e da
distância em quilômetro. Isto perde a importância ao analisar o esforço já gasto por
elas nos momentos dedicados à coleta dos mariscos. É grande o cansaço de seus
corpos, pois já permaneceram horas a fio debruçadas e de cócoras sobre o solo,
debaixo do sol ou da chuva. O trajeto que é feito para casa foi lembrado como um
trajeto longo e cansativo, mas não comparado com o tempo decorrido da
mariscagem.
FIGURA 6: Mariscos sendo transportados. (Fotografia de pesquisa, 2008).
65
A figura 6 apresenta uma imagem que se tornou costumeira em Salinas,
quando alguns moradores passaram a ter a seu dispor a bicicleta, um meio que
favorece mais praticidade ao transporte do marisco, veículo que pode ser
identificado, em Salinas, como um elemento da modernidade. Nota-se no fundo da
fotografia outras pessoas que terminaram de realizar a mariscagem e levam frutos
do meio ambiente em suas cabeças.
Ir à ponte Margarida era um outro espaço que se entrecruzava no vai-e-vem
das experiências diária dos pescadores, marisqueiras e outros moradores de
Salinas. Representava irem a outro elo de resistência. A ponte Margarida, era o
acesso que os levava às embarcações em direção a Salvador, outra distância.
Dirigiam-se para a Margarida os que iriam receber aqueles que chegavam de
viagem, e aqueles que ajudavam outros a embarcarem. Rose trouxe um pouco
deste cotidiano:
Eles já sabiam quem viajavam todo dia com marisco. Ele tinha um
carrinho de mão de madeira, ele saía à madrugada pelas portas
pegando esses mariscos, pra levar pra lancha e tinha o cuidado de
separar um por um e marcar. 89
Para aquelas pessoas que podiam pagar um carregador, esta ajuda
representava alívio nas madrugadas em que pescadores, marisqueiras e
ganhadeiras e outros moradores se dirigiam até ao pequeno porto para
embarcarem. Para isto era preciso acordar às 3:00h, 4:00h da manhã. Aqueles que
não tinham condições de pagar a um carregador, o jeito era contar com a ajuda da
própria família para transportarem a mercadoria até a ponte. “Morava em
Encarnação, trazia pra aqui salgado. A gente morava em Encarnação e trazia de
animal. Juntava a semana toda e trazia de animal.” 90 Neste caso, a marisqueira
Maria José sinalizou um dos aspectos do cotidiano enfrentado por ela e suas irmãs.
Os mariscos eram trazidos de Encarnação, povoado de Salinas, no lombo de um
animal e entregues à ganhadeira que os levaria para serem vendidos em Salvador.
Sobre esses momentos do embarque Júlia descreveu:
89
90
Rosangela Áurea Caetano. Entrevista citada.
Maria José Caldas Costa. Entrevistada em 4 out. 2007.
66
Ah! Geralmente ela [a mãe de Júlia] ia só. A gente ia embarcar ela e
aí ela viajava. Depois ela retornava, e a gente ia buscar ela
novamente na Albatroz, na ponte, ela vinha na Albatroz, A gente
esperava descarregar as coisas que ela trazia, muitas vezes não
revendia tudo.91
Os que viviam dos frutos do mar colocavam os peixes, caranguejos e demais
mariscos em sacolas e vasilhas plásticas e de alumínio. Levavam na cabeça e no
ombro para serem embarcados. Nesse período, por não ter ainda geladeira, os
mariscos eram salgados para não estragarem facilmente. Os que retornavam, eram
misturados a outros para serem vendidos em outra oportunidade.
Os dias adentravam as noites e estas se alongavam preenchidas de muito
trabalho. As madrugadas árduas desses trabalhadores se mesclavam em idas ao
manguezal, à mata, à Margarida e ao mar. Eram momentos cheios de expectativas
quanto ao futuro, povoavam suas mentes a ansiedade, o medo e a angústia.
Pensamentos incertos em relação ao resultado que obteriam no dia seguinte nas
investidas do trabalho. A inconstância, numa vida cheia de lutas tidas no dia anterior,
não influenciava e não determinava que o dia seguinte fosse ser fácil. Era
simplesmente, um dia vivido após o outro. Uma nova batalha e novas conquistas
tidas a cada dia.
Toda a inquietude que as marisqueiras viviam transpassava a todos ao seu
redor, e acabava por influenciar por completo a vida dessas mulheres. Seu
relacionamento com os familiares, amigos, esposos, dependia de como tinha sido o
dia de trabalho. Cada mulher que chegava em casa e via que seus filhos estavam
esperando-a para poder se alimentar, e percebia que não tinha conseguido o
dinheiro, se sentia impotente, incapaz. O que tornava ainda mais difícil e penosa a
falta de remuneração fixa para essas famílias.
Casos mais complexos existem quando as mulheres são os lideres da casa, e
sustentam sozinhas todas as despesas. Vêem-se numa situação complicada e ao
mesmo tempo presas ao comodismo matrimonial. Impossibilitando-as de tomarem
um rumo mais ameno, para melhoraria de sua vida.
91
Julia Pinheiro dos Santos. Entrevista citada.
67
CAPÍTULO II
MARÉS DA MODERNIZAÇÃO
É que sempre queriam uma indústria para uma
cidade! Sempre é um desenvolvimento, apesar de
quê, traz algum transtorno. Porque inclusive, alguns
caminhos que davam acesso às marisqueiras, foram
impedidas, foram impedidos.
Edson Benedito Caetano
68
VIAGENS E MERCADO
Apesar das incertezas quanto ao lucro que iriam conseguir do fruto do
trabalho, marisqueiras, pescadores e outros trabalhadores que moravam em Salinas
da Margarida, colocavam a bordo suas esperanças nas embarcações que faziam o
trajeto Salinas da Margarida ao porto marítimo de Salvador. Nos estudos realizados
por Charles D‟Almeida Santana sobre trabalhadores rurais de cidades do Recôncavo
baiano, ele revela que “Neste período, Salvador foi eleita como principal praça de
pequenos comerciantes que para lá transportavam carne-de-sol e flores, entre
outras mercadorias.”92 Os de Salinas tinham como objetivo conseguir vender o fruto
do seu trabalho e retornarem às suas casas trazendo aquilo que o mar de maneira
direta não lhes fornecia.
As embarcações Albatroz, Mar-Grande, Loirinha, Espera, Maragojipe, Gil 2 e
João das Botas, foram algumas das embarcações lembradas pelos moradores como
o meio de transporte que os levavam de Salinas para Salvador. A lancha Albatroz foi
a mais lembrada pelas marisqueiras nas entrevistas, a distância entre Salinas da
Margarida à Capital, via “ferry-boat”, é de 56 km93.
Entretanto, não só trabalhadoras de Salinas atribuíam relevâncias a essas
embarcações. O jornal A Tarde, por exemplo, divulgou uma notícia sobre a Albatroz.
A notícia divulgava um passeio recreativo que iria ocorrer de Salvador a Salinas da
Margarida, promovido pelo Esporte Clube Londres Magazine. A partida aconteceria
no cais da Navegação Baiana nessa lancha. Em Salinas, os funcionários da
empresa participariam de um jogo amistoso e depois de uma festa dançante,94 os
quais experimentaram variadas emoções.
Outra nota divulgada pelo jornal A Tarde, foi sobre a construção da lancha
Espera. Que foi uma produção nacional, destinada para 150 passageiros, construída
com motores alemães cuja finalidade era servir para à linha do Recôncavo. Essa
nota foi divulgada na primeira visita do presidente Juscelino Kubitschek a Salvador,
quando este desenvolvia no país o projeto de obras do seu governo, para estimular
o desenvolvimento econômico do Brasil. Os investimentos estenderam-se para a
fabricação de outras embarcações bem como para a ampliação do porto de
92
Charles D’Almeida Santana. Fartura e Ventura Camponesas. Trabalho, Cotidiano e Migrações . Bahia: 19501980 Annablume. São Paulo: 1998, p. 85.
93
Pedro Tomás Pedreira . Pequeno Dicionário dos Municípios Baianos. Santo Amaro: 1981, p. 131.
94
A Tarde, 21 fev. 1970, Passeio de recreio a Salinas das Margaridas.
69
Salvador.95 Faz-se notar a Bahia nas metas do então presidente Juscelino
Kubitschek, o que oportunizou a Salinas da Margarida e seus moradores que
provassem dos empreendimentos governista do presidente Jk.
Quando as marisqueiras foram questionadas sobre as viagens que
realizavam de Salinas da Margarida para Salvador, algumas traduziram situações
por elas vivenciadas de forma engraçada e outras. Dona Amor relata uma situação
muito triste:
Coisa ruim já teve, já peguei mastro de lancha quebrando com o
vento, com a lancha perdendo a direção, todo mundo gritando por
Deus e socorro. Era aquela acabação! Criança e tudo. E teve uma
época também que foi numa lancha que ela deu um vira assim, aí
desceu uma criatura e ficou muita pessoas em pânico.96
Esses momentos em que a natureza se manifestava, avessa a viagem
marítima, trazia angústias para aqueles que necessitavam sair de Salinas e
enfrentarem o mar em barcos movidos a vela ou a motor. Santana observa: “Durante
o período anterior à construção da BR 101, a viagem à capital da Bahia era
representada como repleta de dificuldades.”97 Quando tinha problemas com a
embarcação, a viagem tinha que parar e esperar o socorro.
Em suas recordações, Dona Amor falou que a pessoa lançada ao mar era
uma gestante e que faleceu. O seu corpo foi encontrado em uma praia de Salvador.
Um acontecimento como esse, que foi trazido pelas lembranças de Dona Amor
podia representar um motivo forte para afastar essas pessoas a continuarem
fazendo essas viagens. Mas, como afirma Lúcia Cunha, “a água não só representa a
virtude, a beleza, a liberdade e a purificação; é, ao mesmo tempo, fonte de criação e
de destruição, vida e morte.”98 O medo que repercutia em suas mentes, da
possibilidade de vir a ser a próxima vítima, a ter também esse fim trágico, poderia
fazer com que não mais buscassem enfrentar tão diretamente o mar. Mas, para
essas pessoas, a sobrevivência vinha do que tiravam do mar, e era navegando
através dele que dariam prosseguimento a manutenção de suas vidas. A busca de
95
A Tarde, 9 Jul. 1960, A Companhia de Navegação Bahiana presta o seu público reconhecimento ao presidente
Juscelino Kubitschec na sua primeira visita a Salvador; A Bahia nas metas de JK: Ampliação do Porto de
Salvador.
96
Heloisa Marcelina Ramos. (Dona Amor). Entrevistada em 25 set. 2007.
97
Charles D’Almeida Santana, op.cit. , p. 91.
98
Lúcia Helena de Oliveira Cunha . Significados múltiplos das águas. In: DIEGUES, Antônio Carlos (Org.) A
imagem das águas. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 20.
70
outros provimentos em outros espaços era necessário, mesmo com todo o risco que
corriam.
Apesar de tantas aflições e inseguranças que significava o sair de casa, do
território sólido e conhecido, da proteção de estar em família e na companhia dos
amigos e camaradas, ainda assim, navegar era preciso. Esse mesmo espaço
marcou a memória da ex-marisqueira Rose como o caminho que deu acesso ao
lugar que tornou possível o nascimento do seu irmão.
Ah! Vou lhe contar uma! Mainha estava com dor de pari. E aí a
estrada ainda era inacabada, daquelas estradas de barro, tinha até
trilhos de ferro, até! E era muito difícil pra se tirar um carro de dentro
de Salinas até Bom Despacho. Então o parto foi ficando difícil, difícil.
Eu me lembro que meu pai teve que pagar 500 mil cruzeiros pra
Albatroz levar mainha até Salvador, com a criança atravessada na
barriga.99
As embarcações tinham escalas de dias e horários para fazerem o trajeto de
Salinas à Salvador. Mas em muitos momentos os moradores se viam em situações
extremamente desesperadoras, quando tinham necessidade de se deslocarem de
Salinas em horários que não condiziam com aqueles seguidos pelas embarcações.
Rose contou que a sua mãe conseguiu chegar a Salvador a tempo de receber
atendimento e de dar a luz ao seu irmão. O pai de Rose teve condições de pagar o
valor do serviço que na época, segundo Rose, foi referente a uma lotação.
Dificuldades maiores passavam aqueles que não tinham recursos para isso.
Júlia, outra marisqueira, falou que muitas pessoas chegaram a morrer em Salinas
quando não adquiriam socorro, por não conseguirem transporte que os levassem a
um atendimento mais especializado, daqueles que Salinas não dispunha.100
Em suas recordações Rose também guardou momentos cômicos dessas
viagens:
Teve uma situação de um rapaz que se chamava Miranda. Ele é
morto hoje. Ele tinha assim, distúrbio mental, e só tinha um sanitário
na lancha. Esse sanitário tava ocupado com uma pessoa que tava
com medo do mar, sentindo dor de barriga, e ele também estava com
dor de barriga. Andou a lancha toda pra lá e pra cá, [...] Quando ele
não agüentou mais ele chegou assim na popa da lancha [...] E foi
99
Rosangela Áurea Caetano. Entrevistada em 15 fev. 2003.
Júlia Pinheiro dos Santos. Entrevistada em 13 fev. 2003.
100
71
uma tremenda confusão. As pessoas correndo pra um lado, só
querendo ficar contra o vento.101
Foi com risos que Rose relatou esse episódio. Gritos, correrias, risos e
confusão marcaram esse momento que foi dividido entre Miranda e os outros
passageiros. Ele não perdeu muito tempo em se livrar do que lhe incomodava. Os
passageiros, assustados, buscaram se proteger como puderam. Miranda, já
conhecido em Salinas, a partir de então sua popularidade aumentou ainda mais. Por
onde passava provocava nas pessoas risos que geralmente vinham acompanhados
de piadas e de mais risos.
A ex-marisqueira Dona Sofia, também falou com alegria dos momentos que
viveu durante essas viagens:
Já gostava da minha viagem, já gostava minha filha! E no tempo da
lancha... Era beleza também, que saia daí da ponte, saltava lá na
rampa. Nunca tive que dizer da lancha. Beleza aquela lancha, do
finado Elias. O mestre já morreu, ele e o finado Elias. Saía da ponte
saltava na rampa. Era pertinho dali, do Mercado Modelo.102
Dona Sofia lembrou com risos das viagens que fazia. É possível que, nessas
viagens marítimas, apesar dos perigos inerentes, Dona Sofia deixava-se seduzir
pelo balanço do mar, com o seu cheiro e o som produzido pelo vento em suas
ondas. No momento em que concedia a entrevista, ela preferiu destacar apenas as
boas lembranças de quando estava a bordo. Ela recolhia os moluscos, entre eles o
chumbinho, a lambreta e a ostra, que eram catados por suas filhas e outras
marisqueiras, e os levava para serem vendidos em Salvador. Sobre esse período ela
contou:
Eu cavava aqui e ia vender em Salvador, no Mercado Modelo, tinha a
freguesia certa. Chegava lá e entregava... Ia três vezes na semana...
Graças a Deus ladrão nunca me atacou. Eu cochilava ali no Mercado
Modelo até a hora de vir. E outro dia quando eu fui fazer o exame da
vista, os camaradas quando me viu, só você vendo! Tem uma
menina lá que mim chama mãe, quando me viu... Ô minha mãe! Me
abraçou. Não tenho o que dizer daquele Mercado Modelo, já gostava
dali.103
101
Rosangela Áurea Caetano. Entrevista citada.
Sofia Lima Pinheiro. Entrevistada em 13 fev. 2003.
103
Idem. Entrevistada em 13 fev. 2003.
102
72
Ao chegar em Salvador, na Cidade Baixa, dirigia-se ao Mercado Modelo, na
esperança de conseguir vender toda a mercadoria. Assim, essas mulheres
souberam burlar momentos de crises. Semelhante às mulheres estudadas por
Perrot, as marisqueiras aprenderam a desdobrar “uma extrema engenhosidade para
encontrar nos múltiplos comércios das cidades [...], recursos complementares que
empregam para completar o orçamento da família.”104 Não se enclausuraram ou se
deixaram ser enclausuradas. Evitaram o estereótipo que impuseram a elas: a
Maternidade e a Casa. Com determinação, não se deixaram intimidar, arregaçaram
as mangas e saíram do interior de suas moradias. Foram para as marés para as
ruas, conquistaram as calçadas de onde realizavam atividades e tiravam recursos,
para defenderem a sua sobrevivência e de seus entes queridos.
As marisqueiras uniram forças e desenvolveram os mecanismos necessários
para levar para casa o que fosse possível levar. Era através do mar que chegavam
até o mercado, o ambiente em que desenvolviam outra função, passavam a vender
os frutos do mar para continuar mantendo sua família. Dona Sofia lembra que
determinadas quantidades de mariscos, ela deixava com uma moça para que
fossem comercializados, pois era melhor fazer isso do que trazer o produto de volta.
Uma quantidade dos produtos que Dona Sofia levava já tinha a clientela certa, os
seus fregueses já haviam feito as encomendas, inclusive de outros produtos, como
fruta-pão, carambola, manga, coco. No entanto, acontecia algumas vezes dos
mariscos retornarem para Salinas.
Em vários momentos da entrevista Dona Sofia, procurou demonstrar o quanto
gostava das viagens que fazia através das lanchas. Ela salientou que gastavam
menos com a viagem marítima, e que nunca teve medo do mar; nas lembranças
guardadas dessas viagens não apresentou os momentos ruins, pelo contrário, o que
lhe alegrava era lembrar dos momentos vividos com companheiros no Mercado
Modelo. Disse ter feito muitos amigos lá, e com saudades lembrou desses amigos.
Dona Sofia desenvolvia em Salinas da Margarida, as funções de marisqueira
e ganhadeira, uma espécie de intermediária na venda dos mariscos. 105 Trata-se de
passagens dos depoimentos que levantam outra característica presente na pesca
artesanal, a presença dos atravessadores, fato já apontado por Simone Maldonado:
104
Michelle Perrot. Os Excuídos: operários, mulheres, prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 190.
Sobre o trabalho desenvolvido por mulheres, tanto no campo como na cidade, ver Rachel Soihet. História das
Mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.) Domínios da História: ensaios de teoria
e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 285.
105
73
Os pescadores artesanais [...] dependem também de intermediários
para comercializar seu produto, tanto devido à perecibilidade deste
como porque, geralmente, não dispõem de infra-estrutura para a sua
conservação e de meios para transportá-lo aos mercados mais
distantes.106
Em Salinas da Margarida, os intermediários dos mariscos eram em maioria
mulheres denominadas de ganhadeiras. Uma profissão importante, uma vez que,
em sua maioria, as marisqueiras não tinham condições de viajarem para venderem
os seus produtos, bem como, não possuíam meios para conservá-los por muito
tempo. A geladeira ou o freezer eram bens que não faziam parte de suas vidas. Por
outro lado, a ausência delas na maré, ainda que por apenas um dia, significaria
prejuízo no processo da coleta dos mariscos. Apesar de ser pequeno o lucro que
adquiriam quando vendiam seus produtos para as ganhadeiras, era preferível poder
contar com esse pouco, a correrem o risco de ficarem sem nenhum ganho como
fruto do seu cansativo trabalho.
Ao retornar a Salinas, Dona Sofia fazia o pagamento a suas filhas e demais
marisqueiras que lhe haviam passado os mariscos fiados; ela afirmou que nunca
ficou devendo a nenhuma delas. Os mariscos que retornavam eram logo salgados
na tentativa de conservá-los por mais algum tempo. Com o dinheiro da vendagem
dos mariscos, tanto Dona Sofia, como as demais marisqueiras, abasteciam suas
dispensas com outros alimentos. As marisqueiras, nos seus arranjos, compravam os
produtos de limpeza, higiene, roupas, calçados, móveis, eletrodomésticos e outros
objetos para suas casas e para uso pessoal.
Quanto aos maridos, à participação de muitos deles no orçamento familiar
vinha das vendas que faziam dos peixes pescados. O marido de Dona Sofia ajudava
com o trabalho que desenvolvia como pescador. Outros maridos trabalhavam como
biscateiros, como pedreiros. Dona Sofia contou com muita alegria dos bens
materiais que possuía em casa, conseguido com as vendas dos frutos do mar e a
participação do marido.
Em Salinas da Margarida, este fato é bem perceptível, já que muitas são
mulheres que participam ativamente da renda familiar, ajudando seus maridos. Se
não existisse cooperação por parte deles, era gerado um ambiente familiar de
106
Simone Carneiro Maldonado. Pescadores do Mar. São Paulo: Ática. Princípios. 1986, p. 15.
74
desentendimentos, brigas e insatisfações. Muitas foram as marisqueiras que
sustentavam sozinhas seus lares sem a participação masculina.
Júlia, com 39 anos de idade, marisqueira, presente e atenta durante o tempo
em que sua mãe concedia a entrevista, fez questão de retratar a sua experiência
com as ganhadeiras.
Depois que mãe deixou, ficou uma criatura que também trabalha lá
no Mercado Modelo que leva a lambreta da gente. Agora o
chumbinho eu junto dos meninos, eu junto na geladeira, junto à
semana toda e na sexta-feira eu entrego e no sábado a moça me
paga... Tem ganhadeira que já paga na hora. A pessoa entrega o
marisco e paga na hora, mas algumas paga assim, deixa pra pagar
quando ela vem de Salvador.107
As ganhadeiras pegavam os mariscos por um custo menor nas mãos das
marisqueiras e os revendiam em Salvador, em praias da Ilha de Itaparica e em
outras cidades do Recôncavo Sul como Nazaré das Farinhas e Santo Antonio de
Jesus. Era uma tendência forte das ganhadeiras essa desenvoltura de estar em
outros locais fora de Salinas para venderem os chumbinhos e outros mariscos. No
seu dia-a-dia, lá estavam elas, rompendo com o mundo particular de suas casas e
indo para o ambiente livre das ruas para fazerem à entrega, como restaurantes,
bares e outros pontos comerciais. Outras não tinham clientela certa e assim,
aventuravam-se na venda dos produtos.
Ao se aproximar o momento de retornarem, as ganhadeiras vendiam os
mariscos pelo mesmo preço que pegavam nas mãos das marisqueiras para que não
tivessem que levar de volta, e não corresse o risco de terem como prejuízo o
marisco estragado. Não foram observadas insatisfações das marisqueiras com as
ganhadeiras, as quais na sua maioria pertenciam a mesma comunidade. Além de
Dona Sofia, outras mulheres faziam este trabalho, companheiras de Dona Sofia das
quais algumas ainda estavam vivas.
Em Salinas era uma prática normal os mariscos serem vendidos nas ruas.
Filhos das marisqueiras vendiam nas casas, restaurantes, pousadas, hotéis e bares.
Pessoas que estivessem interessadas em comprar os mariscos tinham que pega-los
os buscavam nas casas das marisqueiras e em pontos comerciais.
107
Júlia Pinheiro dos Santos. Entrevista citada.
75
Em sua narrativa, Dona Amor explicou que além de mariscar, viajava também
para Salvador para vender o marisco. Sua entrevista trouxe mais detalhes dessa sua
vivência:
Eu vendia no Mercado Modelo, mesmo! Dentro do Mercado Modelo,
que era o mercado... Era mesmo de pesca. Hoje tem o mercado de
turismo, mas antes era o mercado de pesca mesmo. A gente assim,
vendia o marisco, vinha pra casa [quando não vendia] sem dinheiro
sem nada. Tinha época que levava 20 [kg], mas pra vender por
qualquer preço. Tinha ocasião que o marisco até voltava, não tinha
quem comprasse, chegava lá o comprador dizia: Hoje eu não quero!
Aí, vinha lágrima no olho.108
Com palavras carregadas de emoção, Dona Amor sintetizou a agonia de
muitas marisqueiras. Parecia ter sido em vão toda a aventura do percurso realizado.
A esperança desbotava-se ao ouvirem o “não quero”. A negativa significava que não
levariam para suas casas o dinheiro, e outros bens necessários à manutenção
diária, que viria através da venda do seu pescado, como o feijão, a farinha, o café,
arroz, o leite e até mesmo o carvão para fazer o fogo e cozinhar os alimentos.
De imediato vinha-lhes a lembrança dos que aguardavam pelo retorno delas.
Eram os filhos, outras marisqueiras, o marido, a conta a pagar que haviam deixado
pendente em alguma venda. A própria viagem não poderia ser paga ao mestre da
embarcação. Este, entretanto, conhecia a labuta e era possível que deixasse para
receber o pagamento na próxima viagem.
Afinal, como explica Gláucia Oliveira da Silva:
A faceta ingrata da vida de pesca, a imprevisibilidade determinada
pelo comportamento dos caprichosos peixes (a serviço de uma
instância maior) ou do mercado que, imperfeito como muitas
realizações sociais, desfavorece os pequenos produtores do
pescado. 109
Ventura! Palavra que tem um significado forte no cotidiano de pessoas que
tiram do mar o sustento. Correm o risco de não obter o sucesso desejado com a
pescaria, além da incerteza que o mercado pode significar ao não favorecer um
ganho imediato e justo. Isto pode ocorrer, mesmo com o conhecimento técnico
108
Heloisa Marcelina Ramos. (Dona Amor). Entrevista citada .
Gláucia Oliveira da Silva. Tudo que tem na terra tem no mar. A classificação dos seres vivos entre os
trabalhadores da pesca em Piratininga – RJ. In: DIEGUES, Antônio Carlos (Org.) A imagem das águas. São
Paulo: Hucitec, 2000, p. 85.
109
76
adquirido e os saberes que foram passados de geração para geração, quanto à
maneira de obter os benefícios que o mar hospeda. Em suas análises, Maldonado
expõe que “Os pescadores têm o seu acesso aos recursos condicionado pelo nível
tecnológico do instrumental pesqueiro e, sobretudo, pelo conhecimento do meio
marítimo que cada grupo constrói e desenvolve na sua atuação frente à natureza.” 110
A expectativa é marcante quanto à ida ao mar. Ainda que leve-se em conta o
período do ano, fases da lua, posição dos ventos. No entanto, tudo isso pode ser em
vão, se os benefícios que pescadoras e pescadores esperam ganhar com esses
investimentos não forem concretizados.
Na cultura de homens e mulheres que labutam com o mar, é marcante a
paciência na espera do momento sagrado, o prazer de conseguir o seu pescado e o
de vendê-los. A paciência está presente no comportamento dessas pessoas, quando
retornam a terra sem o fruto do seu trabalho, ou quando não conseguem que seu
pescado seja vendido. Ela, a paciência, os eleva à perseverança, pois apesar da
imprevisibilidade do mar em fornecer o galardão de sua labuta, e do comércio, por
não ter comprado ou por não ter sido justo na compra da sua mercadoria, eles e elas
continuam acreditando no sucesso da próxima pescaria e da próxima viagem ao
mercado.
QUEM TEM TELHADO DE PALHA VAI MORAR EM OLHO DE VIDRO
Até o século XIX Salinas da Margarida pertenceu a vila de Jaguaripe. No
entanto, por interesses políticos e administrativos, a jurisdição administrativa passou
para o município de Itaparica em 15 de janeiro de1901. Conquistou a emancipação
em 27 de julho de 1962, com o então governador Juraci Magalhães. Teve como
primeiro prefeito Manoel Dias de Albuquerque que tomou posse no dia 14 de Abril
110
Simone Carneiro Maldonado. No mar: conhecimento e produção. In: DIEGUES, Antônio Carlos (Org.) A
imagem das águas. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 86.
77
de 1963111. Dias antes, 7 de Abril de 1963, foi instalada a Câmara Municipal e tomou
posse os vereadores eleitos.112
Ocorrida à emancipação, foi dado prosseguimento a implantação de novas
modificações em Salinas, inaugurando um novo momento em sua história. As
marisqueiras e demais moradores sentiram pouco a pouco os reflexos dessas
mudanças, em seu cotidiano de trabalho, bem como em outras esferas da vivência
local. Nas decisões administrativas foram criadas portarias municipais para dar
funcionamento a essas mudanças. Um processo que atendia mais os interesses e
vaidades dos setores privilegiados da população do que a expressiva parcela de
pescadores e marisqueiras, que já sofriam um processo de desigualdade social e
com as novas investidas do poder político por certo pagariam um ônus ainda
maior.113
Apesar das modificações que foram ocorrendo em Salinas através das novas
medidas da administração pública, que visava inserir a cidade em um contexto de
modernização, que acontecia em diversas regiões do país, a coleta do chumbinho
continuou sendo o principal alimento e meio de sustentação dos desprovidos
economicamente. Alguns dos elementos da modernidade que foram pouco a pouco
se configurando na paisagem salinense não refrearam a cultura da mariscagem.
Mulheres e homens que viviam dessa prática resistiram e recriaram meios de
conservarem essa cultura.
No Recôncavo baiano, a forma de utilização do espaço natural em espaço
social não é percebida apenas em Salinas. No processo de implantações dos
interesses imobiliários, muitos foram os espaços que se transformaram em palco de
investidas financeiras, ações que alteraram de forma determinante as paisagens.
É o que nos apresenta Wellington Castellucci nos estudos que realizou a
respeito da Vila de Tairu, localizada próxima à Salinas, na Ilha de Itaparica, na Baia
de Todos os Santos. Ele considera que “Corretores imobiliários, que barganharam
grande parte dos terrenos nativos, modificou sensivelmente o panorama
111
Ata de posse do Prefeito Senhor Manoel Dias de Albuquerque. Arquivo da Câmara Municipal de Salinas da
Margarida (ACMSM) de 14 de abril de 1963. f . 2.
112
Ata da sessão especial destinada à instalação da Câmara Municipal de Salinas da Margarida e posse dos
vereadores diplomados. (ACMSM) 7 abril 1963. f. 1.
113
Nicolau Sevcenco, em relação ao Rio de janeiro, traz importantes reflexões sobre esse processo que guarda
semelhanças a esse observado em Salinas. Ver, Nicolau Sevcenko . Literatura como missão: tensões sociais e
criação cultural na primeira República. 2ª ed. São Paulo: Cia. Das Letras, 2003, p. 225.
78
arquitetônico e social da vila”114 Sua pesquisa sugere que as transformações
ocorridas não se destinaram apenas a Tairu. As transformações afetaram toda a ilha
bem como a vida dos seus moradores. Castellucci lembra como motivos dessas
mudanças as obras realizadas na década de 70, que intensificaram o acesso a
Itaparica, como a construção da Ponte do Funil que liga a Ilha ao continente, em
direção a Nazaré, e a implantação do sistema Ferry Boat, embarcações que fazem o
transporte de veículos e passageiros que vão e vêm de Salvador à Ilha.115
O sistema de Ferry Boat, a construção de rodovias asfaltadas e a Ponte do
Funil, são apontados como mecanismos implantados no intuito de atender
interesses econômicos, facilitando o escoamento de produtos agrícolas vindos do
Recôncavo Sul da Bahia para a capital baiana. Muitas foram às empresas que se
interessaram em fazer uma corrida de investimentos imobiliários na Ilha visando
turistas tanto de cunho nacional como internacional.116
Salinas da Margarida, por situar-se próxima a Itaparica e possuir uma
natureza prodigiosa, rica na sua marinha, não ficou a parte desta corrida de
investimentos imobiliários. Ela foi palco das conseqüências provenientes deste tipo
de investimento, realizado ou não com prudência e respeito à natureza, a hábitos e
valores das pessoas do lugar. De algum modo, ocorre aqui desdobramentos iguais
àquelas questões ambientais e sociais trabalhadas por Nunes, sobre os pescadores
de Nagé. 117
Atrelado a isto, em muitos destes locais, ocorreu uma profunda transformação
na flora, como foi lembrado por Dona Sofia:
O Araça! Quem era o Araçá? O Araçá era mato puro. Hoje em dia eu
passei ali na caminhada... Cada casa linda! [risos] O Araçá era mato,
só tinha mato. Já botaram o nome Araçá porque só tinha araçá,
araçazinho, cajueiro, essas coisas... Agora, cada casa bonita
mesmo! Passei lá no dia da caminhada e vi o Araçá. Quem era o
Araçá?!118
Este lugar, trazido através da oralidade, está localizado nos arredores de
Salinas. Como observou Dona Sofia, existia nesse local uma vasta flora com a
114
Wellington Castellucci Júnior. Pescadores da Modernagem Cultura, Trabalho e Memória em Tairu Bahia:
1960-1990. Dissertação de mestrado. PUC, São Paulo: 1999, p. 47.
115
Idem, op.cit. , pp. 16-17.
116
Idem, op.cit. , pp. 58-59.
117
Eduardo José Fernandes Nunes. Pescadores de Nagé: Um estudo sobre relações sociais e impacto-ambiental.
Salvador: UFBA / Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Mestrado em Ciências Sociais. 1988, p. 43.
118
Sofia Lima Pinheiro. Entrevista citada.
79
presença de variadas espécies de árvores frutíferas, que com o tempo
desapareceram para dar lugar a muitas casas, respondendo ao processo
urbanístico.
A interação do homem com a natureza, provoca uma constante mutação de
conceitos e conflitos entre o que é fundamental para o nosso bem estar pessoal e
social, como sendo o homem parte singular de um todo, e o que é movido baseado
apenas no interesse do crescimento urbano capitalista.
A respeito de algumas dessas mudanças, foram importantes as informações
cedidas pelo Senhor Serafim, com 83 anos de idade, nascido em Salinas, trabalhou
na Companhia Salinas da Margarida. Teve uma grande participação na primeira
administração pública, ao lado do prefeito Manoel Dias de Albuquerque e trabalhou
ativamente para que fossem implantadas as metas da administração pública. Na
entrevista que concedeu demonstrou ter sido um grande representante do poder em
Salinas e sobre a formação desta cidade, Senhor Serafim, trouxe as seguintes
lembranças:
Abriu essas ruas, todas aqui. O pessoal derrubando dendezeiro, a
gente pediu ao pessoal: Vamos deixar passar aqui, que aqui melhora
a rua, a cidade e tal. Então, o pessoal disse: Tá certo! E foi assim
que começou Salinas, com tenente Ozinho. 119
Para responder ao novo processo administrativo, áreas verdes tiveram que
ser desmatadas, dendezeiros e outras árvores que estavam fora do alinhamento
projetado pelo poder público. 120 Muitos moradores em Salinas tiveram que ceder os
espaços de seus quintais para o alinhamento das ruas e para que elas fossem
alargadas. Essa medida, no entanto, não deve ter sido bem vinda pelos munícipes,
como pode-se concluir com as palavras do Senhor Serafim. Até onde foi possível
averiguar, não houve indenizações para as marisqueiras e pescadores que
perderam seus quintais, nesses espaços havia árvores cujas frutas eram
consumidas pela própria família ou vendidas para ajudar na manutenção financeira
do lar. Outra perda diz respeito ao velho sonho da casa própria. Os quintais eram
locais que serviriam, no futuro, para outro membro da família, irmão, irmã, filho ou
119
Serafim de Souza Conceição. Entrevistado em 26 de set. 2007.
Sobre as transformações no meio ambiente urbano, ver, por exemplo, Sandra Jatahy Pesavento. Cidades
visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. In; Cidades. Revista brasileira de história. Órgão Oficial da
Associação Nacional de História. São Paulo, ANPUH, vol. 27, nº 53, jan.,jun., 2007, p. 13.
120
80
filha que quisessem construir a futura moradia. Assim, não iriam precisar comprar
outro terreno.
Neste processo, as ruas também tiveram seus nomes suplantados. Exemplo
disso foi a rua “Vai quem quer”, cuja denominação se deve por ser distante do centro
de Salinas, que passou a ser chamada de Rua Getúlio Vargas. A Praça do Cruzeiro
passou a ser chamada de Praça Manuel Dias de Albuquerque. Na praça foi erguido
um busto do homenageado. O projeto de mudanças dos nomes das ruas foi
apresentado pelo Vereador João Ferreira Juazeiro,121 em um violento processo de
rompimento com a apropriação popular dos espaços citadinos a exemplo da
“monumentalidade das cidades modernas, das grandes e largas vias de trânsito,
aparece como expressões de um poder que está por toda parte e em parte
alguma”.122 Assim, o então prefeito ganhava mais um meio de demonstrar o seu
poder.
A harmonia que o Senhor Serafim tenta demonstrar como característica
desse processo entre moradores e a administração pública é imprecisa, já que
outras medidas estavam sendo tomadas como a proibição de casas cobertas de
palhas e construídas de taipa. A mágoa ainda era visível quando Dona Amor
lembrou da expressão “Quem tem telhado de palha vai morar em olho de vidro”123. A
tristeza rememorou a forma como ela e os demais pobres de Salinas foram tratados
pelo prefeito da época, Manuel Dias de Albuquerque, o qual chegou a utilizar um
sistema de som, com intuito de informar a medida para os moradores despojados de
sua habitação.
Dona Amor, como muitas outras mulheres e homens do povo, rejeitou esse
modernismo no aspecto urbano. Tais mudanças exigiam reformas radicais na vida
das pessoas. Um exemplo era a destruição da casa das marisqueiras e imediata
construção de novas habitações. A frase pronunciada pelo prefeito foi interpretada
como aviso, direcionado a essas pessoas de baixo poder aquisitivo, na intenção de
fazê-las mudar o telhado de palha para o telhado de cerâmica. As casas deveriam
ser construídas de bloco e não de barro, caso contrário, esses moradores deveriam
121
Ata de apresentação do projeto do Vereador João Ferreira Juazeiro que propôs mudar o nome da Praça do
Cruzeiro para Praça Manoel Dias de Albuquerque (ACMSM) de 13 de novembro de 1964. f. 45.
122
Reinaldo Lindolfo Lohn. Limites da utopia: cidade e modernização no Brasil desenvolvimentista
(Florianópolis, década de 1950). In; Cidades. Revista brasileira de história. Órgão Oficial da Associação
Nacional de História. São Paulo: ANPUH, vol. 27, nº 53, jan.,jun., 2007, p. 307.
123
Heloisa Marcelina Ramos ( Dona Amor). Entrevista citada.
81
ir morar em um lugarejo chamado, Olho de Vidro, próximo de Salinas, e de lá
também é que vinham as palhas que cobriam as casas dos pobres.
Afinal, como diz Reinaldo Lindolfo Lohn o espaço “é lugar de disputa e conflito
que envolve relações de força suscitadas por expectativas sociais”. 124 É possível
que os moradores de Salinas sem condições financeiras de se adequarem às novas
exigências, tenham entrado em choque com a administração. Mas, por outro lado, o
Senhor Serafim fez questão de afirmar que o prefeito “Não tomou as casas das
pessoas, não derrubou, não tomou as casa de ninguém, não! O que fez foi
melhoramento na cidade.”125 Dona Amor lembrou que ela, como outras marisqueiras
e pescadores, se sentiu bastante humilhada pelas palavras pronunciadas pelo então
prefeito.
É provável que as palhas que não estivessem bem arrumadas nos telhados
deixassem, em épocas de chuvas, molhar o interior das casas. O barro nas paredes
de taipa, quando se soltava, deixava passagem para que a chuva e bichos, como o
barbeiro,126 entrassem para o interior das moradias. Infelizmente, a população não
obtinha meios financeiros e nem recebeu ajuda dos representantes municipais para
melhorar as condições de moradia e assim, atender aos propósitos impostos pelo
Executivo. Foram dias vividos e registrados na memória como de intensa angústia e
conflitos com o poder público, entretanto, paulatinamente ocorreu às mudanças
exigidas.
Um detalhe importante que não passou despercebido quanto às funções que
o Senhor Serafim desempenhou, é que ele trabalhava como policial militar, quando
foi convidado, para trabalhar nos dias de folga na administração pública da cidade.
Essa sua condição profissional, possivelmente ajudou o prefeito a conseguir
alcançar seus objetivos administrativos. É presumível que tenha sido favorável a
administração pública o fato desse funcionário desenvolver essa profissão. Um
representante da lei, em dose dupla, pode ter intimidado alguns desses moradores
impedindo-os de fazerem manifestações contra as novas exigências do poder
público municipal.
Outra medida de cunho sanitarista e modernista foram tomadas para
disciplinar à vida urbana, no município recém emancipado. Uma delas diz respeito à
124
Reinaldo Lindolfo Lohn , op.cit. , p. 307.
Serafim de Souza Conceição . Entrevista citada.
126
Rosangela Áurea Caetano. Entrevista citada
125
82
proibição referente à criação de animais soltos pelas ruas de Salinas. A cerca disso
Júlia relatou que:
Eu nunca criei animal aqui não! Mas ouvia falar que, os animais aqui
criados, era criados soltos mesmo. Era boi, era porco, era cavalo,
tudo no meio da rua, a gente às vezes sentava na porta vinha aquele
monte de boi correndo, era um monte de cavalo correndo. Aquela
coisa toda, mas aí tinha que sair todo mundo correndo da frente. Mas
aí depois criaram essa lei, proibiram de colocar cavalo, fizeram um
negócio de uns corredores, uns curral, pra prender todos cavalos.127
Para dar uma nova postura à cidade, os moradores tiveram que manter os
seus animais longe da via pública. Aquele animal que fosse pego vagando, o dono
era multado. Acontecia que alguém que quisesse prejudicar o dono do animal,
soltava-os e o proprietário tinha que arcar com as conseqüências. As medidas
punitivas de multar, e até mesmo de matar animais ocorreram como mecanismo
disciplinador, rememorou a marisqueira.
Mas, muitos foram os conflitos gerados entre os que criavam esses animais e
os políticos responsáveis por tais decisões. Este fato repercutiu até mesmo na
Câmara Municipal da cidade, notificado no registro da Ata da Sessão Ordinária pelo
Senhor Presidente Eunápio Amorim: “Sobre queixas dos munícipes quanto a
conduta de propostas da Prefeitura na apreensão de animais no perímetro
urbano”.128 O Vereador Almir Martins de Araujo levou a pleito a importância de ser
construído um curral em Conceição (povoado de Salinas), pois no centro desse
povoado funcionava um curral de forma imprópria.129
É possível notar que o Legislativo estava preocupado com a insatisfação
popular. Queria estender as modificações para além da sede municipal, entendendo
que tais decisões administrativas justificavam-se no sentido de levar em conta à
saúde da população e a inserção de Salinas em um processo urbanístico moderno.
Contudo, como lembra Thompson: “a cultura popular é rebelde, mas o é em defesa
dos costumes,”130 O povo, contrariado, não perdeu a oportunidade de mostrar a sua
127
Júlia Pinheiro dos Santos. Entrevista citada.
Ata que registrou insatisfação de populares quanto a atos administrativos do Executivo (CMSM) de 11
outubro de 1963. f. 18.
129
Ata que registrou o pedido de informações do Vereador Almir Martins de Araujo a respeito da construção do
curral de Conceição (ACMSM) de 27 de dezembro de 1965. f. 58.
130
Edward P. Thompson. Costumes em Comum; estudos sobre a cultura popular tradicional. Companhia das
Letras, São Paulo: 1998, p, 19.
128
83
insatisfação quando foi possível fazer valer seu apreço por costumeiros usos dos
espaços do município e tradicionais maneiras de construções residenciais . É
possível que populares depois dessas transformações, em período de eleição, não
tenham esquecidos dos conflitos vivenciados, e muitos foram os votos perdidos para
os políticos que apoiaram tais medidas.
A criação de animais soltos pelas ruas colocava em risco a saúde dos
moradores. As crianças viviam mais soltas nas ruas, e mais propensas a adquirirem
alguma doença transmitida por esses animais. Aquelas de famílias desprovidas de
recursos financeiros, normalmente filhas de marisqueira e de pescador, dificilmente
tinham atendimento médico, além de permanecerem em constante estado de alerta,
pois, não se sabia a hora, de onde e como esses animais apareceriam e iriam reagir
mediante as pessoas. No entanto, as novas regras chegavam até a população de
forma autoritária. Muitos desses animais foram sacrificados. Muitas pessoas
sobreviviam criando esses animais e não tinha como aloja-los com facilidade. Era
difícil que essas normas fossem tão rapidamente aceitas e acatadas.
Nesse contexto, Rose vivenciou um episódio singular e marcante na sua
infância. Ela trouxe através da oralidade a alegre lembrança da época em que
porcos eram criados soltos em Salinas:
Tinha um rapaz lá próximo ao cemitério, chamado Seu Almiro, ele
criava porcos, enormes. Enormes mesmo, os porcos. Então quando
o pessoal ia enterrar seus mortos, tinha que ir uma pessoa na frente,
pra saber se os porcos de Seu Almiro tava solto. Pra não tomar
carreira de porco, levando o defunto. Tinha que ir na frente, tangendo
os porcos ou avisar Seu Almiro pra prender os porcos, que ia passar
um cortejo fúnebre, pra poder prender os porcos.131
Nas lembranças da ex-marisqueira, esses momentos eram marcados de
expectativas quanto ao desenrolar do sepultamento. Sua memória guardou a
lembrança de porcos enormes. Era assim que ela os via quando criança. Criaturas
enormes, capazes de devorar aqueles que por acaso não fugissem deles. Com
risos, Rose disse que “o defunto, ficava pra lá e pra cá, esperando os porcos saírem
da frente”.132 Momentos peculiares como esse vivenciado por Rose e demais
131
132
Rosangela Áurea Caetano. Entrevista citada.
Idem. Entrevistada em 15 fev. 2003.
84
moradores desapareceram à proporção que as ações punitivas vindas do poder
constituído se tornavam eficazes.
As marcas dos novos tempos eram fincadas pouco a pouco na cidade, e
ressoavam nas experiências vividas desses moradores. As transformações não
aconteciam apenas no aspecto urbanístico. Certos valores, cultivados por gerações
ganharam novos significados, em momentos em que o mais importante era a vida,
como assevera Thompson, “embora a vida social esteja em permanente mudança e
a mobilidade seja considerável, essas mudanças ainda não atingiram o ponto em
que se admite que cada geração sucessiva terá um horizonte diferente”133 e que “as
práticas e as normas se reproduzem ao longo das gerações na atmosfera
lentamente diversificada dos costumes.”134. Ocorre que, conforme pode-se perceber
nas fontes trabalhadas, as transformações ocorridas na cidade, após sua
emancipação deram-se concomitantemente as modificações na prática da
mariscagem. Uma delas apontada pelas marisqueiras refere-se à presença de
homens na cata do marisco. A figura 7 traz em destaque, um exemplo do que foi
apontado por algumas entrevistadas.
FIGURA 7: Homem na mariscagem segurando o puçá com chumbinhos.
(Fotografia de pesquisa, 2008).
133
134
Edward P. Thompson, op.cit. , p. 18.
Ibidem.
85
Muitos pescadores encaravam a atividade de mariscar como algo restrito à
mulher. Porém, a presença deles na mariscagem do chumbinho, tornou-se cada
vez mais necessária. Assim esclarece Williams: “Em todas as nossas atividades,
no mundo, produzimos não só a satisfação de nossas necessidades, mas também
novas necessidades e novas definições das necessidades.”135 Disso dependia a
sustentação desses homens e a de seus familiares. Gilberto Costa de Jesus
(figura 7), disse que começou a mariscar desde os cinco anos de idade na
companhia da sua mãe.136 Falou que mariscava durante o dia, e durante a noite
pescava. Em suas mãos estão os instrumentos necessários para efetuar a
mariscagem. Na mão direita está o cavador, instrumento usado para cavar a areia
para desenterrar os chumbinhos. Na mão esquerda, está o puçá “um pedaço de
rede preso a um aro feito de arame grosso e torcido em círculo. O aro de arame
grosso termina em um cabo para que possa ser usado diretamente com a mão”.137
O jereré é outro apetrecho da pescaria, com características parecidas com as do
puçá que também é usado nas mariscagens. A figura a seguir mostra com maior
precisão o puçá.138
FIGURA 8: Puçá, instrumento usado na mariscagem. (Desenho adquirido via internet)
135
Raymond Williams. Marxismo e Literatura. Zahar. Rio de Janeiro: 1979, p, 94.
Gilberto Costa de Jesus. Entrevistado em 23 mai. 2008.
137
.Jair
Malisek
Santos
A
pesca
do
siri
patola.
Encontrado
http://www.estacaocapixaba.com.br/textos/memoria/jair_santos/vila_velha/pesca_siri.htmil.
136
138
Ibidem.
no
site:
86
Trata-se de um instrumento usado para armazenar os chumbinhos. Dentro
dele os mariscos são lavados, para tirar a areia e a lama que ficam grudadas nas
conchas. Depois são acumulados ali mesmo na areia para serem colocados em
outros recipientes e serem transportados. Foi impressionante a maneira rápida e
precisa que Gilberto catava os chumbinhos, velocidade permitida pelo uso
adequado por tal apetrecho da pesca.
A figura 9 mostra a posição corporal mais comumente utilizada para
desenvolver essa atividade. O trabalho é feito de uma forma em que é exigido que
fiquem agachados por muito tempo, sobre a areia, cavando-a em busca do marisco.
Existe um conceito local a essa posição como um dos motivos que afastam alguns
homens da mariscagem. Muitos deles associam como não desrespeitosa à mulher.
Mas ao homem sugere dúvidas de sua masculinidade. Aqueles poucos homens que
a exercem se justificam com a carência da oferta de outro tipo de trabalho e a falta
de recursos em obterem o barco e a rede, instrumentos necessários para a pesca
em alto mar.
FIGURA 9: Homem mariscando. (Fotografia de pesquisa, 2008)
87
A fotografia mostra outras pessoas que mariscam distribuídas no costeiro –
forma pela qual é chamado o banco de areia, onde tem em grande quantidade os
chumbinhos –. Estão presentes mais alguns homens, mulheres e crianças.
Para entender melhor os significados das entrevistas dos homens que
disseram que a arte de mariscar é um atributo feminino, é interessante destacar a
opinião de Senhor Amando, pescador casado com uma marisqueira. A opinião dele
é semelhante de outros homens entrevistados durante a pesquisa.
Em 70 minha vida era melhor do que hoje, eu tinha telefone, tinha
tudo em casa... O pescar de rede tava dando mais dinheiro, então,
quer dizer, que as mulheres que pegavam esse chumbinho pra poder
ajudar em casa também. Aí ficava, nós saia, pra pescar de rede,
panhar peixe, coisa. E as mulher pra não ficar em casa assistindo
televisão... Televisão, televisão era coisa pra barão, né? Então
começou o que? Cavar isso aqui, o chumbinho, cavar chumbinho pra
poder ajudar em casa.139
Na fala do Senhor Amando, ele lembrou da década de 70, como um período
de relativa prosperidade financeira, fato analisado e apontado por Charles Santana
no que se refere à fartura camponesa nesse período. “Se andarmos pelos caminhos
das roças, no centro do Recôncavo Sul da Bahia, poderemos enxergar restos de um
passado recente, quando pessoas viviam ativamente dos frutos da terra.” 140 Além
dos frutos da terra citados por Santana, também na região litorânea do Recôncavo
Sul, os frutos do mar propiciavam uma certa fartura aos moradores dessa região.
Senhor Amando esclareceu que nessa época tinha uma grande variedade de
pescado e em grande quantidade. Era um período de fartura em que chegavam a
pegar de cem a duzentos quilos de peixes em um dia de pescaria, que eram logo
levados para serem vendidos em Conceição, Itaparica, Bom Despacho e Salvador
localidades próximas de Salinas da Margarida.
O Senhor Amando justifica como motivo dele e de outros homens não
mariscarem o fato de terem a pescaria. Ir para o alto mar pegar o peixe, essa sim,
segundo ele, era uma atividade mais rentável, trazia resultado imediato e satisfatório
e, por isso, não mariscavam. As mulheres não iam para o mar fazer essa pescaria
para ajudarem no sustento diário, elas mariscavam o chumbinho que era um
trabalho visto, na visão masculina, como um passa tempo lucrável, pois era melhor
139
140
Amando Oliveira de Jesus. Entrevistado em 7 jun. 2003.
Charles D’Almeida Santana, op.cit. , p.35.
88
fazer isso a ficarem em casa ociosas. Suas palavras denunciaram um sentido de
inferiorização quanto ao trabalho que as mulheres faziam. Catar chumbinho não foi
um consentimento dado pelos homens às mulheres, e sim uma atividade que elas
com muita propriedade realizavam independente da opinião deles.
Simone Maldonado apresenta uma importante reflexão acerca da divisão dos
tipos de pescas efetuadas entre homens e mulheres:
Tradicionalmente as mulheres têm sido excluídas da pesca de alto,
sendo largamente conhecidos os mitos existentes sobre a sua
presença nas embarcações e até mesmo o perigo do seu contato
com o instrumento do trabalho dos homens.141
Dentro dessa perspectiva é visível a presença de superstições quanto à
participação feminina na pesca em alto mar, observando-se um conceito mítico de
que o manuseio dos instrumentos de trabalho por mulheres, pode provocar azar e
prejuízos quanto ao sucesso da pescaria. Aliás, como propõe Thompson, “Homens
e mulheres discutem sobre os valores, escolhem entre valores, e em sua escolha
alegam evidências racionais e interrogam seus próprios valores por meios
racionais,”142 embora ocorra à aceitação por parte de algumas mulheres em Salinas
da opção dos homens de não praticarem esta mariscagem. Dona Dilza, marisqueira,
fala a esse respeito:
A gente tinha aquilo como trabalho nosso, que era obrigação da
gente. Não! Negócio de maré, marisco, é a mulher, mulher que
chega, cava! Homem tinha aquela, aquele preconceito assim...
Aquela vergonha de ir e de mariscar no meio da gente. Hoje em dia
que tá mais liberal. Porque era coisa de mulher, aí não ia, não fazia,
não ajudava a catar. A gente chegava em casa, pedia ajuda e ele
dizia que não, que isso era coisa de mulher, que ia procurar outra
coisa pra fazer. A gente se conformava porque já encontrava naquele
ritmo, aí não estranhava mais, já achava natural. 143
No cotidiano de Salinas, é marcante a resistência de alguns homens em não
realizarem a mariscagem do chumbinho, cheios de preconceitos, como apontou a
marisqueira, em desenvolverem essa atividade eles davam preferência a realização
de outros tipos de trabalhos. A relativa aceitação de Dona Dilza em não contar com
141
Simone Carneiro Maldonado, op.cit., p. 19.
Edward P. Thompson. A Miséria da Teoria: ou um planetário de erros. Zahar, Rio de Janeiro: 1981, p. 194.
143
Dilza Spínola de Souza. Entrevistada em 31 mai. 2002.
142
89
a ajuda do marido pode ser justificada por esse fato. Outro motivo apontado por
alguns homens, para não catarem o chumbinho diz respeito ao longo tempo gasto
para a realização da mariscagem. É imprescindível a paciência para se sustentar
horas a fio debaixo de sol ou chuva nesse difícil ofício. Considera-se que depois de
catados nas areias das praias em média 15 kg do chumbinho com as conchas e,
depois de retiradas às conchas, é que se obtém 1 kg do marisco como resultado da
mariscagem. Carregados desse significado, muitos homens se afastam desse
trabalho em que concebem ser a figura feminina a única dotada de paciência, uma
das principais características exigidas para esta labuta, bem como para a pescaria
de modo geral.
É curioso o fato do Senhor Amando ter trazido lembranças que aproximam
prosperidade ao fato de possuir uma linha telefônica, e de possuir tudo em casa,
apesar de que quando se refere ao aparelho de televisão deixa indícios de que ter
televisão neste período era coisa pra pessoas ricas. Sem esquecer que,naquele
período, como anota Reinaldo Lohn:
As cidades refletiriam o engajamento do Brasil nos novos tempos de
sonhos de consumo de bens que exprimissem progresso e de
novidades tecnológicas que reinventavam o cotidiano, como
modernos automóveis e aparelhos eletrodomésticos de todos os
tipos.144
Desse ponto de vista a chegada da energia elétrica em Salinas, inseriu esta
cidade no engajamento dos novos tempos, como acontecia em outras localidades
brasileiras. Mas, nem todos os pescadores e marisqueiras experimentaram de
imediato em seu cotidiano, melhoramentos que essa tecnologia poderia lhes
favorecer.
Foi o que Dona Amor esclareceu. No momento em que narrava sobre este
período, estava sentada no chão de sua casa, catando siri. Alguns dos membros da
família presentes sentaram-se no sofá e outros no passeio da casa. Silenciosos e
atentos ouviram a narrativa:
Mas, nem todo mundo tinha água de Embasa, não! Porque muitas
pessoas construíram cisternas. A gente que não tinha condições de
ter água da Embasa era quem se utilizava dessa água. Os próprios
144
Reinaldo Lindolfo Lohn , op.cit. , p. 309.
90
donos das cisternas, abria o portão, mandava a gente panhar a água,
a gente bibia disso! Era poço, que a gente cavava, nós mesmo, pra
ter água! E a água era uma água boa, que não prejudicava a
ninguém. [...] A luz quando chegou para aqui, na minha época, era
uma luz de poste de pau, com um gerador. Aí, chamavam a usina
elétrica, chamavam a usina elétrica, aqui. Ligava assim, aquelas
lâmpadas 6:00 a 5:00h, quando era 10:00, 11:00h apagava o
gerador, desligava o gerador todo mundo ia dormir. 145
Dona Amor, como muitas outras pessoas que não tinham condições para
usufruir desses serviços, continuou por muito tempo usando a água de poços
artesianos, tanto para beber, cozinhar como para todos os outros serviços da casa.
Muitas faziam suas trouxas de roupas sujas, e dirigiam-se para essas fontes para
lavarem suas roupas.
Sobre a energia elétrica, ela contou que só quem tinha condições é que tinha
em casa esse serviço. Os pobres continuaram vivendo iluminados pelo candeeiro. A
sua família e demais marisqueiras por muito tempo não conseguiram ter suas casas
iluminadas com a energia elétrica, não usufruindo, diretamente, das vantagens
desse serviço.
Portanto, a aquisição de eletrodomésticos não ocorreu de imediato para
essas pessoas, era grande a dificuldade para a obtenção de uma geladeira ou de
um freezer. Os mariscos continuaram por muito tempo sendo salgados para serem
conservados. A iluminação pública proporcionava às crianças a brincadeira na rua, e
aos adultos, as conversas e o namoro – para aqueles casais que não podiam e não
queriam o escuro – esses encontros aconteciam até o horário em que o gerador
fosse desligado.
MARISCAGEM E BIODIVERSIDADE AMEAÇADAS
Uma das características básicas da atividade pesqueira é a noção da não
apropriação do mar, pois ele é concebido pelas pessoas que vivem usufruindo os
seus frutos, como uma dádiva da natureza. A este respeito, Maldonado argumenta:
“A condição de patrimônio comum do mar, implica a sua indivisibilidade sistemática e
a ausência de apropriação formal e contínua do meio.”146 Nesse contexto, a
145
Heloisa Marcelina Ramos (Dona Amor). Entrevista citada.
Simone Carneiro Maldonado. A caminho das pedras: percepção e utilização do espaço na pesca simples. In;
DÍEGUES, Antônio Carlos (Org.) Imagem das águas: São Paulo: Hucitec. 2000, p. 60.
146
91
indivisibilidade dos espaços em que são
realizadas as mariscagens flui
“naturalmente” na consciência coletiva das marisqueiras. É deste espaço que se
favorecem, centenas delas fazem-se presentes nas faixas litorâneas de Salinas há
muito tempo, mas nenhuma delas se diz dona da maré.
Na década de 1990, Salinas da Margarida recebeu a instalação de empresas
que exploraram áreas de sua marinha. Os empreendimentos eram voltados para
interesses comerciais, direcionados para a criação do camarão em cativeiro;
empreendimentos para o turismo e veranistas, comércio de produtos para a pesca e
outros. De certa forma, esses investimentos geraram empregos para uma pequena
parte da população, entretanto, a grande parcela do benefício foi revertida em lucro
para aqueles que já detinham o capital financeiro. 147
Paralelo a existências desses investimentos, houve em Salinas da Margarida
uma profunda transformação no meio ambiente. Muitas áreas de manguezais foram
destruídas, fato que prejudicou a vida marinha existentes nesses espaços. Sem
esquecer que cerca de “90 por cento dos peixes marinhos consumidos pela
humanidade são provenientes de zonas costeiras e, destes, cerca de dois terços
dependem direta ou indiretamente dos estuários e mangues”. 148 A presença dos
manguezais é de grande relevância para as marisqueiras que tiram desses espaços
o necessário para a sua alimentação e a comercialização dos mariscos. A falta dos
manguezais para o homem que vive do pescado, significa desventuras em suas
vidas, e para o ambiente, perdas irreversíveis como argumenta Samuel Murgel
Branco:
Alterar a paisagem típica de nossas regiões costeiras; por eliminar
grandes reservatórios de águas de enchentes e grandes marés que,
de outra forma, poderiam causar inundações; por acelerar o
assoreamento dos portos e regiões costeiras e, finalmente, por
eliminar uma das maiores fontes de alimento de que dispõe o
homem, com uma produção vegetal quase duas vezes superior à da
agricultura mecanizada e que é responsável pela riqueza em
pescados que caracteriza as regiões costeiras bem como pela
produção de alguns alimentos típicos, como o caranguejo.149
147
Nesse sentido, Harvey explica que, o especulador imobiliário que tem dinheiro para esperar enquanto controla
o desenvolvimento dos espaços adjacentes está numa situação muito melhor, para obter ganhos pecuniários. Ver
David Harvey. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1996, p. 207.
148
Samuel Murgel Branco; Aristides Almeida Rocha. Elementos de ciências do ambiente. CETESB/ASCETESB.
São Paulo: 1987, p. 142.
149
Idem, op.cit. , p. 142-143.
92
A sobrevivência humana está intimamente ligada a outros ciclos de vida. Os
manguezais representam uma fonte rica na cadeia alimentar de imensa fauna, e que
tem sua vida constantemente alimentada através da manutenção de nutrientes que
normalmente são trazidos pelos rios, pois têm em suas águas substâncias
essenciais para a vida dos manguezais. Quando há quebra em algum desses ciclos
ocorre uma desestrutura nos ecossistemas o que provoca uma desarmonia para o
processo vital dos seres que dependem dos manguezais.
Nos aterros desses espaços são construídos pontes, portos, praças, enfim, é
investido um grande capital para dar lugar a áreas urbanizadas, e assim atender aos
princípios civilizatórios. No entanto, é interessante ressaltar como o patrimônio
cultural e natural tem ganhado reconhecimento como instrumento que ajuda a
sustentar e fundamentar a personalidade do homem quanto ser social. Sandra
Pelegrine faz uma reflexão a esse respeito:
A atitude de proteger o patrimônio local tem sido incentivada, de
modo a conservar as raízes plurais dos povos e suas tradições
culturais, uma vez que estas expressam as origens étnicas e
implicam a manutenção de suas identidades.”150
Segundo Pelegrini, desde a década de 1990, existe essa preocupação pelos
povos latino-americanos. Proteger o patrimônio cultural e natural representa um
meio eficaz para garantir a sobrevivência das pessoas que estão ligadas
diretamente a estes patrimônios. Nesse sentido, pode-se notar que em Salinas da
Margarida a utilização dos recursos naturais por aquela população consiste em
preservar o mar como patrimônio natural. Ela forma um grupo social que
tradicionalmente vive a utilizar de forma preponderante os recursos naturais
oriundos do mar. Desta forma foi fácil observar em algumas marisqueiras a
preocupação na conservação deste patrimônio natural.
A fala da marisqueira Lucinha traduziu esta preocupação. Quando foi
questionada sobre esse problema, ela lembrou da destruição que se verifica nos
manguezais, no espaço da marinha de Salinas. Ela desabafou: “Vai bater na lama
que nem tainha”.151 Nesta frase, a marisqueira expôs a sua apreensão, quanto ao
150
Sandra Pelegrini. Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na esfera do patrimônio
cultural e ambiental. In; Natureza e cultura. Revista brasileira de história. Órgão Oficial da Associação Nacional
de História. São Paulo: ANPUH, vol.26, nº 51, jan.-jun., 2006, p. 122 e 125.
151
Lúcia Maria Caldas Costa. Entrevistada em 24 de jan. 2008.
93
futuro daqueles que ali, sobrevivem da vida que é gerada a partir dos manguezais. A
frase fez alusão àqueles que cortam os manguezais para a retirada das ostras. “O
bater na lama que nem tainha”, Lucinha explicou que é quando o volume de água
está bem baixo, ou não tem água na lama do manguezal e o peixe – a tainha – não
encontra água para nadar até o mar. É assim que as pessoas ficarão, quando não
existir mais os manguezais.
Lucinha explicou que tem conversado muito com seus filhos e colegas na
tentativa de conscientizá-los para a conservação desses espaços, tarefa que não
tem sido fácil, pois a mesma justificou esta coleta, como meio de sobrevivência. No
entanto, ela disse que é possível tirar as ostras sem cortar os galhos dos mangues e
também escolher aquelas ostras que já estão em tamanho de serem coletadas.
Esta forma de Lucinha agir é um exemplo de que existe a preocupação entre
membros dessa população em preservar os manguezais, como patrimônio natural,
uma vez que esse é campo de manutenção das famílias que vivem dos mariscos. É
no espaço das areias das praias que elas se lançam vivificando uma tradição que
lhes foi passada por gerações de outrora. Mesmo com o avanço tecnológico no
campo da ciência moderna e diante da evolução urbana que tem atingido Salinas da
Margarida, a arte de mariscar não perdeu importância na vida daquelas mulheres
que se engajam com vigor na exigente peleja em prol da sustentação de suas vidas.
Não obstante os avanços contemporâneos, o mar ainda é a referência central da
sobrevivência de muitas famílias salinenses.
Um dos exemplos da utilização extensiva das áreas da marinha é a
Maricultura da Bahia S. A., que se instalou em Salinas da Margarida na década de
1990 e faz regularmente fertilizações nos viveiros. Nos períodos da retirada dos
camarões, uma grande quantidade de água é liberada dos viveiros e lançada na
maré.
A água que sai dos viveiros, conseqüentemente, possui uma determinada
quantidade de adubo que se instala nos manguezais e na vida marinha ali presente.
Esta pode ser uma das explicações para justificar a riqueza de nutrientes nos
manguezais que foi apontado por Rose152, proporcionando a abundância de alguns
dos frutos do mar que existem em Salinas, em contraposição com as demais
localidades tão próximas. No entanto, apesar de toda esta riqueza, já houve em
152
Rosangela Áurea Caetano. Entrevista citada.
94
Salinas um período em que a população que vive da maré “amargou”. Foi o que
Rose apontou:
Quando a Maricultura chegou... Era a CQR, passou a PESCON, de
PESCON passou a Maricultura, e eu lembro que o marisco amargou,
a região toda aqui. E nós amargamos juntos. Porque nós íamos pra
maré todos os dias. Catava o marisco não tinha condição de vender,
pra ganhar dinheiro e não tinha condição de comer pra se
sustentar.153
Rose tinha 34 anos de idade quando foi entrevistada. Formou-se em
magistério, mas não exerce a profissão. Tinha um bar na orla marítima de Salinas da
Margarida e outro em Salvador, onde vendia, entre outras coisas, frutos do mar.
Vivia desenvolvendo mecanismos para desdobrar-se entre duas cidades. Este viver
era mais uma forma de luta que impregnava seu cotidiano atingido pelo amargo dos
mariscos, que provocou uma calamidade na cidade. Pescadores, marisqueiras,
donos de bares e restaurantes e demais pessoas, que de maneira direta ou indireta
precisavam dos produtos que vinham do mar, passaram dificuldades. Foram
afetados peixes, caranguejos, siris e tantos outros crustáceos. Segundo as
lembranças de Rose, o problema permaneceu durante dois a três meses. Ela
lembrou que isto ocorreu em um período da Semana Santa, tempo da quaresma em
que alguns cristãos tiram à carne vermelha e o frango de suas refeições diárias, e
fazem mais uso de peixes e de outros frutos do mar. Rose tinha 34 anos de idade
quando foi entrevistada
Tiveram muitos prejuízos as ganhadeiras e demais atravessadores, pessoas
que compravam os produtos em Salinas e em outras localidades vizinhas para
venderem em cidade mais distantes. Não foi possível vender aos turistas que
chegavam à cidade para o feriado da Semana Santa, apesar de que alguns
tentaram vender esses alimentos à pessoas que desconheciam o problema, como
Rose narrou.
Muitos atribuem o motivo desse desequilíbrio ecológico a substâncias nocivas
que foram lançadas irresponsavelmente nas águas da maré, e que trouxe tanto
prejuízo. Thompson em seus estudos analisa como a plebe da sociedade inglesa do
século XVIII recebia as inovações capitalistas que se processavam no interior de sua
153
Idem. Entrevistada em 15 fev. 2003.
95
cultura “como uma exploração, a expropriação uso de direitos de uso costumeiros,
ou a destruição violenta de padrões valorizados de trabalho e lazer.” 154 De toda
sorte, as lembranças de Rose dizem da extrema importância da mariscagem na vida
da população. A sua escassez é traduzida na oralidade como algo amargo tanto
para os frutos do mar como para as pessoas, como uma forma de experimentar a
inovação capitalista.
São recordações que revelam o quanto é importante essa prática secular em
Salinas, constitui-se numa dimensão fundamental do cotidiano do lugar. A sua
interrupção, mesmo que de curto prazo, provoca depoimentos que tratam de
desventuras
e
infortúnios
em
suas
vidas,
enfim,
atos
irresponsáveis
e
inconseqüentes gerados pela ação do homem na natureza com a finalidade apenas
de beneficiar um pequeno grupo.
Tais atitudes demonstram falta de preocupação com a totalidade das famílias
que vivem com os frutos do mar. Para Pelegrini, foram irresponsabilidades que,
durante o Século XX, concorreu com o fato de que “a noção de patrimônio ambiental
urbano amplia-se e também passa a ser considerada fator de reconhecimento dos
núcleos históricos”.155 Ganham importância os manifestos sociais que lutam pelo
equilíbrio entre o homem e o meio ambiente. As chamadas populações tradicionais
surgem como possibilidades de manutenção e conservação do meio ambiente cuja
preservação da cultura, valores e tradições estão intrinsecamente ligados ao meio
natural.
Em Salinas da Margarida, era possível coletar mariscos em áreas mais
próximas, no entanto esses espaços foram gradativamente tomados. Aquelas que
desejassem mariscar nesses locais o faziam com mais rapidez, era possível realizar
várias viagens de ida e vinda da maré até a casa, já que a distância que se percorria
levando o marisco era menor. Com a extensiva apropriação da marinha de Salinas,
o que restou para as pessoas foram alguns estreitos caminhos até o costeiro, local
distante e de maior quantidade de mariscos (ver figura 10 e 11).
154
155
Edward P. Thompson, op.cit., p. 19.
Sandra Pelegrini, op.cit. , p. 119.
96
FIGURA 10: Viveiros da Maricultura e locais das mariscagens. (Croqui produzido por Ana
Louíse Gomes Cruz durante a pesquisa de campo, 2008).
Legenda:
I- Mercado das Mariscadeiras;
II- Ponte que dá acesso aos viveiros da Maricultura;
III-Viveiros para criação de camarão da Maricultura;
IV- Guarita da Maricultura;
V- Via de acesso da Maricultura ( lado esquerdo, entrada proibida);
VI- Ponte que dá acesso a Praia do Amor, no Camburuí;
VII- Costeiro, local de mariscagem;
VIII- Associação das Mariscadeiras, chamada de Casa das Mariscadeiras;
IX- Capela de São Pedro, chamada de Gruta;
X- Casa do pescador;
XI- Costeiro, local de mariscagem.
Na figura11, outro caminho que é percorrido para a realização das
mariscagens:
97
FIGURA 11: Viveiros da Maricultura e locais das mariscagens. (Croqui produzido por Ana
Louíse Gomes Cruz durante a pesquisa de campo, 2008).
Legenda:
I- Rua da Banca;
II- Guarita da Maricultura;
III-Ponte que dá acesso aos viveiros da Maricultura
IV-Ruínas da Companhia Salinas da Margarida (companhia que explorava o sal em
Salinas);
V- Casa das Mariscadeiras (onde funciona a Associação das Mariscadeiras);
VI- Capela de São Pedro, chamada de Gruta
VII- Casa do Pescador
VIII- Residências;
IX- Costeiro, local de mariscagem;
X-Viveiro para criação de camarão da Maricultura;
XI- Área da Maricultura.
98
As figuras 10 e 11 apresentam caminhos usados por pescadoras e
pescadores em seu dia-a-dia de labuta. Para chegarem aos costeiros – locais das
mariscagens – essas pessoas precisam andar pelas passagens, entre os viveiros da
Maricultura, antigos tanques construídos desde o período da Companhia Salinas da
Margarida, com a finalidade de armazenar a água para a obtenção do sal, através
da evaporação. A Maricultura ampliou esses tanques – chamados também de
viveiros – para a criação do camarão em cativeiro.
O que podemos observar é que a interação do homem na natureza provoca
uma constante mutação de conceitos em conflitos, entre o que é fundamental para o
nosso bem estar pessoal e social como sendo o homem parte singular de um todo, e
o que é movido baseado apenas no interesse do crescimento urbano capitalista.
Para Raymond Williams, quando ocorre o uso da terra como objeto de exploração
com fins lucrativos,
Os efeitos sobre as comunidades humanas, bem como sobre formas
de vida tradicionais e com peculiaridades locais, são em muitos
casos bem semelhantes. A terra, encarada em termo de fertilidade
ou de riqueza mineral, em ambos os casos é vista abstratamente. Ela
é utilizada no empreendimento que, durante certo tempo, deixa de
lado todas as outras considerações.156
Na incessante busca pelo lucro capitalista, o valor concreto durável dos
espaços naturais é sucumbido e suplantado pela ganância que não tem uma visão
prudente e dual de um benefício humano que respeite também o ciclo natural da
vida.
Em Salinas, tudo indica que as mudanças ocorridas no meio ambiente
sintonizam-se com as reflexões de Williams. As áreas que foram desmatadas
correspondiam a espaços necessários à implantação de empresas. A cidade obteve
ascensão econômica no âmbito estadual, já que contribuiu economicamente com
impostos, sem esquecer que “o modo de produção capitalista continua a ser, em
termos de história do mundo, o agente mais eficiente e poderoso de todos estes
tipos de transformação física e social.”157 Esses empreendimentos foram sinônimos
de “progresso” e “desenvolvimento” e, para muitas famílias, empregos. Nesse
156
Raymond Williams. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. São Paulo: Cia das Letras, 1990, p.
392.
157
Idem, op. cit. , p. 393.
99
contexto, serve como um alerta um dos princípios da corrente chamada de
economia ecológica que Ademar Ribeiro Romeiro apresenta:
A existência de limites absolutos e o risco de perdas irreversíveis que
podem ser catastróficas em um contexto de incertezas científicas
irredutíveis tornam absolutamente necessário que se defina
coletivamente, e numa atitude de precaução, os limites (escala) para
o consumo total de bens e serviços ambientais.158
O emprego de atitudes coletivas talvez poderá regular e direcionar a forma
como os bens e serviços ambientais estão sendo explorados; no entanto, tais
atitudes entram em oposição a dimensão de uma sociedade que tem como
característica marcante o consumo. A sustentabilidade seria, para Romeiro,
transformar a mentalidade do ter em uma mentalidade de ser, sem, no entanto, abrir
mão da dinâmica cientifica e tecnológica que caracteriza o processo civilizatório. As
restrições à acumulação de capital são para que se evitem perdas irreversíveis
ambientais e sociais.
Esses princípios se associam com as medidas do processo de gestão
ambiental que é explicado por Aracéli Cristina de Sousa Ferreira: “o estabelecimento
de políticas, planejamento, um plano de ação, alocação de recursos, determinação
de responsabilidades, decisão, coordenação, controle.”159 São algumas das formas
que visam fundamentalmente o desenvolvimento sustentável. Aracéli Ferreira
esclarece que a intensidade com que os empreendedores capitalistas vêm agindo
no meio natural é uma demonstração de que pouco se está levando em conta a
degradação dos mesmos.
Embora esse seja um objetivo a ser alcançado, num mundo que se
depara com questões tão primordiais como a fome, a educação, a
saúde; enfim, condições de sobrevivência do homem que a
humanidade ainda não conseguiu resolver.160
Nessa perspectiva, as universidades entram nos centros das discussões e
surgem como possibilidades de criarem condições para resolverem ou amenizarem
158
Ademar Ribeiro Romeiro. Economia ou economia política da sustentabilidade. In: MAY, Peter H.
LUSTOSA, Maria Cecília. VINHA, Valéria da (Orgs) Economia do Meio Ambiente. Teoria e Prática. Rio de
Janeiro: Campus, 2003, p. 25.
159
Aracéli Cristina de Sousa Ferreira Contabilidade Ambiental. Uma informação para o desenvolvimento
sustentável. São Paulo: Atlas, 2003, p. 33.
160
Idem, op. cit. , p. 33.
100
essas situações, contudo encontram-se em uma cruzilhada, pois são centros
formadores de tecnologia, opiniões e concentram uma gama de valores humanistas
ao mesmo tempo em que são representantes do Estado.161
Assim, como núcleo tecnológico que busca atender a um chamado cada vez
mais exigente de um mercado consumidor, os profissionais que são formados por
essas universidades, em muitos momentos devem ponderar as suas ações na
possível utilização desenfreada dos recursos ambientais, pois elas podem gerar a
ignorância do conhecimento, onde se sabe as conseqüências nocivas de suas ações
e ainda assim, alguns as praticam na cegueira egoísta do capitalismo. Em
contraposição a mentalidade desse uso descomedido, as universidades hospedam,
desenvolvem
e
propagam
idéias
de
conscientização,
preservação
e
sustentabilidade. E como Antonio Moraes aponta, o desenvolvimento tecnológico
representa de um lado a salvação e do outro o perigo para a humanidade. Ao que
tudo indica, a questão ambiental é bem evidente, e deve ser bem cuidada.
161
A esse respeito ver, Antonio Carlos Robert Moraes. Meio Ambiente e ciências humanas. São Paulo: Hucitec.
1997, p. 60.
101
CAPITULO III
RELAÇÕES NOS ESPAÇOS DA MARISCAGEM
As empresas trazem o progresso, mas muitas vezes
prejudica o solo nativo. [...] Em Valença os viveiros
são 17 km fora da cidade. Aqui, você passa ali, você
vê viveiro dentro da cidade.
Edson Benedito Caetano
102
TERRA OCUPADA
Atendendo ao “progresso”, Salinas da Margarida, conhecida como Ponta da
Margarida, sofreu mudanças para dar lugar aos novos empreendimentos que o
mercado exigia. Seus espaços naturais foram alterados, para atender a esse
momento inaugurado pelos empreendedores. Uma das particularidades atribuída à
companhia salineira foram as mudanças na flora em Salinas. A instalação da
companhia estendeu-se por boa parte da marinha. Como lembrou Almir de Oliveira,
até mesmo uma linha férrea foi instalada, cujo propósito foi transportar o sal,
interligando todos os estabelecimentos aos depósitos e à ponte por onde escoava a
produção. Utilizaram os espaços para a construção da linha férrea, construção dos
prédios residenciais dos proprietários e os escritórios.162 A figura 12 mostra uma das
construções dessa empresa:
FIGURA 12: Prédio onde funcionava o Antigo Escritório da Companhia Salinas da
Margarida. (Fotografia de pesquisa, 2007).
162
Ver Almir de Oliveira. Salinas da Margarida; Notícias Históricas. Minas Gerais: Minas Editora: 2000, p.
118.
103
O prédio que se observa em destaque na fotografia é um dos investimentos
dos proprietários da empresa que explorava o sal em Salinas. Trata-se do local onde
funcionava o escritório da Companhia Salinas da Margarida, localizado em frente ao
mar cuja rua recebeu o nome de Avenida Comendador Campos, nome de um dos
sócios da Companhia. A seguir, ao lado do escritório, está um hotel. O antigo
escritório faz parte na atualidade do hotel e funciona como restaurante. O escritório
foi construído, no período da implantação da Companhia, a qual foi formada no ano
de 1891. Junto a ele foram construídos o casario e as ligações férreas. 163.
Como é possível perceber nas analises realizadas por Marshall Berman, no
processo de domínio capitalista, o que pode significar novo nesse momento já não o
será, segundos depois.164 De maneira mais arrojada ocorre um enfrentamento de
capitais, saberes, vaidades e tecnologias os quais mexem diariamente com o modo
de viver das pessoas e de tudo que é edificado ao seu redor. É uma capacidade
feroz de construir e de se reconstruir a todo instante. O lucro é o objetivo que deve
ser alcançado a qualquer custo.
Senhor Serafim, morador de Salinas lembrou que, antes de seu fechamento,
a Companhia Salinas da Margarida além do sal explorava também em suas terras a
piaçava, o dendê e o azeite. Sentado na porta de sua casa, com entusiasmo ele
trouxe com suas palavras esse momento:
Esse era o lucro da fabrica o dendê. Tinha fabrica do dendê, a
piaçava. Nisso o sal já tinha caído de produção. Muitas pessoas
trabalhavam catando dendê, subindo em pé de dendê pra cortar o
cacho. As mulheres catando o dendê no chão e outras trabalhavam
na fábrica fazendo o azeite. Parte dessas mulheres hoje, algumas
são mariscadeiras.165
Apesar desse estudo não trazer como marco temporal o período da
implantação em Salinas da Companhia Salinas da Margarida, é interessante
observar que os investidores centralizaram em suas mãos determinados lugares de
163
Idem, op.cit. , p.117 e 131.
Ver, Marshall Berman. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992, p. 92.
165
Serafim de Souza Conceição. Entrevistado em 26 de set. 2007.
164
104
Salinas que possibilitaria um próspero retorno lucrativo. Quando o sal já não
possibilitava mais os lucros esperados, esses empreendedores buscaram ganhar
com outras fontes como o dendê e a piaçava.
No espaço que pertenceu a Companhia está um hotel (fig. 13), ao lado, o
antigo escritório e logo depois a instalação onde funcionou a fábrica Santa Bárbara,
que fazia o beneficiamento do siri para exportação.
FIGURA 13: Empreendimentos imobiliários da orla marítima de Salinas da Margarida.
(Fotografia de pesquisa, 2007).
Essas construções foram realizadas em boa parte da orla de Salinas. A
cidade que é, também, conforme José D‟ Assunção Barros, “a sede de uma cultura
material específica. Sinais, placas de trânsito, bancas de jornal, postes, viadutos,
arranha-céus – são estes os artefatos da cidade moderna.”166 Nesse sentido, para
inserir a área em frente ao hotel, dentro da perspectiva do moderno e propícia ao
banho de mar, quantidades significativas de areia foram colocadas para encobrir a
lama do manguezal ali presente. Esse local não era necessariamente o das
166
José D’Assunção Barros. Cidade e História. Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. 83
105
mariscagens. No entanto, com o aterro junto com o lamaçal, parte da vida marinha
foi também transportado, o que prejudicou o meio ambiente de trabalho de
mariscagem.
Para Oliveira, “A devastação do passado, fruto direto da insensibilidade que
nasce da ignorância, prosseguiu sem qualquer controle.”167 A crítica expressa sua
insatisfação quanto à falta de cuidado com o patrimônio arquitetônico que foi
deixado pelos antigos proprietários da empresa. Pouco a pouco novos investidores
adquiriram as antigas edificações e às suplantaram, sem o cuidado da preservação
histórica. Entretanto, desse período ainda restam o escritório, a residência do
Comendador Campos e a Igreja de Nossa Senhora do Carmo.168
A figura 14 mostra um pouco da relíquia arquitetônica salinense:
FIGURA 14: Residência do Comendador Campos. (Fotografia de pesquisa, 2003.)
A foto mostra a residência do Comendador Campos, bastante arejada,
rodeada de janelas, varanda e de pés de tamarindo. Porém, como Senhor Serafim
167
168
Almir de Oliveira, op.cit. , p. 132.
Idem, op. cit. , pp.132-133.
106
esclareceu, esta residência era usada pelos proprietários para receber visitas. A
casa que a família morava era em uma outra, próxima dessa que já não existe mais.
Em decorrência do sucesso da exploração do sal, Salinas da Margarida
passou por certo desenvolvimento, notado através das construções realizadas no
local, como a residências dos proprietários da fábrica e a Igreja de Nossa Senhora
do Carmo, considerada por algumas pessoas, na época, a mais bela do Recôncavo.
Para atender a um antigo desejo do seu pai, o Coronel Manoel de Souza Campos
Filho construiu a Igreja que teve as obras finalizadas em 1914.169 .
A Igreja está localizada próxima ao cais. Senhor Serafim lembrou que no
passado, em períodos de férias, as freiras costumavam banhar-se com outras
jovens na frente da Igreja. Em frente à Igreja tem um cruzeiro, com um lado
pendente em conseqüência das águas do mar que tem avançado com o passar do
tempo, em determinados períodos do ano. 170 Com o processo de urbanização, entre
outras transformações, a rua onde está localizada a Igreja foi calçada e houve a
construção do cais.
Senhor Serafim afirmou que bancos de areia que se formavam em áreas mais
distantes desse cais, com o tempo foram se formando em locais mais próximos. É
possível que com a chegada das construções ocorridas na orla marítima de Salinas,
inclusive do próprio cais, tenha provocado o avanço das águas e isso tenha
empurrado a areia fazendo com que os bancos se formassem em outros lugares.
Senhor Edson, outro morador de Salinas, trouxe através da oralidade mais
informações sobre a ocupação do ambiente marinho em Salinas. Ele lembrou que os
tanques para a aquisição da água do mar para o processo de obtenção do sal, foram
construídos pela Companhia Salinas da Margarida, que anos depois passaram para
a Companhia Química do Recôncavo – CQR que também explorava o sal, e a
Pescon – Pesqueira do Recôncavo Ltda. que criava camarão em cativeiro. Na
década de 90, a maricultura foi implantada em Salinas ocupando esses tanques, os
quais foram ampliados e continuaram a servir como viveiros para a criação de
camarão.171
169
Idem, op. cit. , p.146.
Serafim de Souza Conceição. Entrevista citada.
171
Edson Benedito Caetano. Entrevistado em 10 set. 2007
170
107
FIGURA 15: Tanque da Maricultura da Bahia onde são criados os camarões com destaque
para a cerca. (Fotografia de pesquisa, 2007).
Essa fotografia revela um dos viveiros da Maricultura da Bahia. Uma imagem
intrigante. Onde estão as marisqueiras e seus maridos: os pescadores? A esse
respeito, é bom registrar aquilo que Marshall Berman busca sustentar em seus
estudos: “Apesar de todos os maravilhosos meios de atividade desencadeados pela
burguesia, a única atividade que de fato conta, para seus membros, é fazer dinheiro,
acumular capital, armazenar excedentes.”172 Foram esses os propósitos daqueles
empreendedores que desfrutaram do ambiente salinense.
Foi interessante buscar saber das marisqueiras qual a repercussão da
maricultura em seu trabalho cotidiano. Apesar de muitas serem relutantes em falar
sobre o assunto, a marisqueira Júlia, sem constrangimento, lembrou como os
moradores utilizavam-se dos tanques quando estavam em desuso:
Porque esses viveiros foram abandonados pela Salinas. Salinas, era
uma empresa aqui que fazia sal. Que veio pra aqui, fazia sal aí fez
todo esse viveiro pra fazer sal, produzia sal, no qual eles foram
embora, abandonaram esses viveiros, no que ficaram, a todos eles
começou a entrar água salgada, criar marisco, a criar siri,
caranguejo, ostra, sururu. Essas coisas... Então a gente aproveitava
172
Marshall Berman , op.cit. , p. 92.
108
essas área mais perto e a gente fazia lugar... De qualquer lugar a
gente entrava, chegava mais perto e agora, depois que a Maricultura
chegou eles cercaram tudo isso.173
A chegada de uma nova empresa provocou expectativa nas pessoas. Salinas
não oferecia muitas possibilidades de emprego. Era o mar, a fábrica onde a maioria
das pessoas tirava seu sustento. Os tanques usados para a aquisição do sal, que a
marisqueira fez referência ficaram desativados e serviram como local para a criação
e da vida marinha ali presente. Pelo fato desses viveiros estarem localizados mais
próximo das margens e consequentemente mais perto de suas casas, era possível
fazer a coleta dos mariscos por mais de uma vez durante o dia.
Os cercamentos que a imagem traz desses espaços geraram ansiedades e
conflitos entre a população e os empresários. Ambos buscaram meios de tomarem
posse do que lhes pertencia. Marisqueiras e pescadores burlaram, sempre que foi
possível, determinações impostas pela Maricultura. É o que Julia conta:
Tinha gente que cortava a cerca. Era gente que passava por de
baixo de cerca, quando achava uma brecha aqui, alguém já tinha
cortado, a gente passava. Eu nunca cortei nenhuma, viu? Porque eu
nunca tive essa coisa de levar ferramenta pra cortar. Eu acho que
levavam ferramenta, começavam a tirar as madeiras, acho que gente
de mais perto pra queimar, não sei. Então aí a gente aproveitava
aquela brechinha aí, se não tinha nenhum vigia, a gente entrava ali
pra chegar mais perto, no lugar que tinha chumbinho.174
Esses momentos eram vividos plenos de tensão, medo, correria. Era uma
aventura conseguir passar nas aberturas que alguém tinha feito, e chegar de forma
mais rápida aos locais onde estavam os mariscos. Tinha sempre o perigo de ser
impedida pelo vigia e ser obrigada a voltar. No costeiro, local da mariscagem,
acontecia o desabafo, que vinha acompanhado por xingamentos para a empresa
que tanto proibia a mariscagem nos viveiros e como dificultava o acesso a outros
locais.
Com as cercas, outros caminhos tiveram que ser usados para dar acesso a
outros lugares de mariscagem, através da vegetação e entre viveiros e canais.
173
174
Júlia Pinheiro dos Santos. Entrevistada em 13 fev. 2003.
Idem. Entrevistada em 13 fev. 2003.
109
De algum modo, a apropriação de praias e manguezais em Salinas
assemelha-se a outras tantas:
O que as companhias de petróleo e de mineração fazem é o mesmo
que faziam os proprietários de terras, o mesmo que faziam e fazem
os donos de grandes fazendas coloniais. E muitos, seguindo seu
exemplo, passaram a encarar a terra e suas propriedades como
objetos de exploração com fins lucrativos: um lucro tão nítido que as
necessidades muito diversas das diferentes comunidades locais são
ignoradas, muitas vezes de modo brutal.175
Raymond Williams fez questão de frisar que a apropriação extensiva da terra
realizada pelo homem é uma característica marcante do capitalismo que atende aos
interesses de uma pequena esfera da população. No entanto, como assinala Milton
Santos “O território em que vivemos é mais que um simples conjunto de objetos,
mediante os quais trabalhamos, circulamos, moramos, mas também um dado
simbólico.”176 Essas pessoas tiveram que articular formas para se locomoverem
nesse ambiente com o qual se sustentavam, pois a existência delas, a grande
maioria, ficou a mercê dos interesses do pequeno grupo que monopolizava para si a
gratuidade da natureza. O lucro foi o motivo das ações nocivas ao meio ambiente
que, ao mesmo tempo, levavam à apropriação de bens que não lhes pertenciam.
OUTRAS VEREDAS
O transporte marítimo foi o meio utilizado nas viagens de Salinas da
Margarida a Salvador, através de lanchas que diariamente faziam o transporte de
passageiros. A partir da década de 70 é que teve início à ligação rodoviária com a
estrada BA-001, cujo acesso conduz ao terminal do sistema Ferry Boat, em Bom
Despacho, na Ilha de Itaparica. Com a construção dessa estrada, deu-se origem
anos depois, o serviço de ônibus intermunicipal e outros serviços de transporte
coletivo, o que ocasionou o fim dos transportes de passageiros por via marítima, a
175
Raymond Williams. O Campo e a Cidade na História e na Literatura. São Paulo: Cia das Letras, 1990, p.
392.
176
Milton Santos. O espaço do cidadão. São Paulo: EDUSP, 2007, p. 82.
110
não ser em alguns casos de lanchas particulares. Senhor Edson fez a sua
interpretação sobre esse final do transporte coletivo marítimo:
No momento que aconteceu a falta de manutenção, foi ficando
precária, entendeu? Aconteceu vários acidentes, parava no meio do
mar, acontecia esse problema e aí foi acabando esse tipo lancha. Foi
chegando as estradas, entendeu? E aí a lancha acabou ficando lá
como sucata.177
Senhor Edson tem 49 anos de idade, com 9 anos mariscava com a mãe.
Como ele disse, é “pai de uns 10 filhos”178 e tem uma neta: 11 filhos. Ele era o mais
velho dos irmãos. Com a idade de 19 anos foi ser funcionário público, trabalhava
como polícia militar e anos depois saiu da polícia e retornou à Salinas. Ao retornar à
terra natal, ao trabalho de pescador, teve que se adequar à nova forma de se
locomover. Muitos gostaram dessa mudança, outros não. Júlia trouxe um pouco do
que significou para as marisqueiras essa modificação:
Não ficou pior a estrada, ficou pior o jeito. Porque ela já chegava, ela
já saltava ali no Mercado Modelo e já vendia tudo ali. Então, quando
passou viajar de ônibus, mãe chegava aqui se queixando muito,
porque tinha que descer do ônibus, ai tomar uma kombi pra voltar,
pra vir pra cá. Quer dizer já se tornou tudo mais caro. Você pagava,
só pagava um transporte, que é a lancha Albatroz.
Enquanto Júlia expunha essa situação Dona Sofia, mãe de Júlia estava
presente e atenta ao que a filha dizia, infelizmente não pôde interagir na conversa
por ter sido vítima de um AVC, e já não falava com muita clareza. Mas demonstrava
entender tudo que era conversado e sempre pronunciava algumas palavras para
falar algo que Júlia lhe perguntava.
A mudança do transporte provocou para as marisqueiras novas formas de
adaptação para a locomoção e venda de seus produtos. Mas, como assinala Perrot,
“o que importa reencontrar são as mulheres em ação” 179, que, perspicazes nos
momentos de crise, souberam em vários momentos da história acionar estratégias
para saírem de situações adversas. Assim, para as marisqueiras já não era chegar
em Salvador, saltar no Mercado Modelo e vender os mariscos. Novos trajetos
177
Edson Benedito Caetano. Entrevista citada.
Idem. Entrevistado em 10 set. 2007.
179
Michelle Perrot. Os Excluídos: operários, mulheres, prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p, 187.
178
111
marcavam o seu cotidiano: a locomoção via terrestre, chegar em Bom Despacho,
pegar o Ferry Boat, lá pegar uma Kombi e ir até o local da venda dos mariscos. Para
aquelas que não tinham ponto certo e freguesia certa, foram ficando ali mesmo, em
São Joaquim, logo que saltava do Ferry Boat,.
Sobre a construção dessa estrada, o jornal A tarde noticiou que o Consórcio
Rodoviário Intermunicipal, em determinação com o plano da Secretária dos
Transportes, construiu 420 quilômetros de estradas municipais, a maioria delas
localizadas nas regiões do Recôncavo e do Litoral Norte. Dentre os municípios que o
jornal citou estava Salinas da Margarida.180
Esse mesmo jornal divulgou nota sobre a chegada do sistema Ferry Boat,
esclarecendo que, de acordo com a Secretária dos Transportes e Comunicações, a
partir do dia 31 de Abril de 1970 o sistema Ferry Boat já estaria à disposição dos
baianos, ligando Salvador ao município de Nazaré, com acesso à rodovia BR-101. O
jornal apontava deficiência de outras linhas da Companhia de Navegação Baiana
que dava acesso a Salvador, apresentava a nova via de acesso à capital baiana
como um sistema de características modernas que corrigiria essas falhas e que
aliviaria o trânsito na estrada Rio – Bahia. O tom indicava uma satisfação
generalizada. Esse aspecto foi apontado por Castellucci que advertiu quanto à forma
em que os meio de comunicação divulgaram esses empreendimentos capitalistas. A
idéia era defender esses investimentos como benfeitorias que alcançaria a todos.181
Contudo, na Câmara Municipal de Salinas, os vereadores discutiam sobre os
serviços oferecidos pela Companhia de Navegação aos moradores de Salinas. O
vereador e Vice-Presidente da Câmara João Ferreira Joazeiro trouxe ao plenário
comentários a respeito da chegada de um novo navio, para transporte dos
passageiros em substituição a lancha Albatroz que se encontrava em péssimas
condições. Acusou o dirigente da Companhia de Navegação de vender os bilhetes
de passagens para outras localidades e o mesmo se recusava a vender para os
salinenses: dizia não haver talões de passagens para essa localidade. Outro
180
A Tarde, 13 Fev. 1970. Consórcio Rodoviário aprontou 420 Km de Estradas Municipais.
A esse respeito ver, Wellington Castellucci Júnior. Pescadores da Modernagem Cultura, Trabalho e Memória
em Tairu Bahia: 1960-1990. Dissertação de mestrado. PUC, São Paulo: 1999, p. 25.
181
112
Vereador Leonardo José de Santana apontou sobre a importância da estrada de
rodagem e os benefícios que iria trazer para os moradores de Salinas182
Pode-se concluir que muitas marisqueiras gostaram da chegada dessa
estrada e do novo meio de transporte. Elas apontaram como fator positivo dessa
mudança, a diminuição do perigo nas viagens, os naufrágios, o mar violento, a
chuva, os ventos fortes, que tanto marcaram suas memórias. Foram muitas as
situações de dores e aflições que vivenciaram durante as viagens marítimas. Essa
nova maneira de viajar surgia como uma possibilidade de segurança em suas idas e
vindas à capital baiana. Apesar disso, experimentaram formas diferentes de
desventuras nesse novo trajeto. Foi o que Dona Amor retratou:
Saia daqui 4:30h da manhã, chegava no ferry 5:40h, cinco e pouca e
pegava o ferry de 6:00h. Comprava a passagem do ferry, de povão
ida e volta. A gente não pagava mais o ônibus coletivo, porque dali
daquela área mesmo a gente vendia o marisco e dependendo se a
gente fosse em outro lugares a gente pagava o coletivo. Mas não era
necessário a gente sair, porque muitas vezes demorava de vender,
demorava mesmo de vender. Hoje tá mais fácil, e antes era mais
dificultoso. A gente demorava de vender, e quando retornava pra
casa... Muitas vezes que tinha greve também [...] Nós passava
aquela noite de cansaço, e quando dormia aquele pouquinho,
despertava e os guardas querendo conversar com a gente, vinha
distraia até o dia clarear. Às vezes, quando eles tinha o plantão que
já iam embora, eles cediam aquelas quentinha prá gente pra passar
o dia. Ou eles mesmo chegavam assim naqueles bar... Porque antes
não era rodoviária. Na época da Viazul não era rodoviária, não. Era
só um abrigozinho que a gente ficava ali naquele abrigo, só pra
pegar os carros. Não tinha como a gente se aquecer naqueles
abrigo, não. Os policiais botavam a gente no modulozinho que só
tinha dois bancos, um sanitário e aquele vãozinho da gente ficar.
Aquecia a gente ali.
Com a construção da estrada e conseqüente mudança dos meios de
transportes, as marisqueiras inventavam novas rotinas. Retornar para Salinas pelo
sistema Ferry Boat poderia significar que teriam de enfrentar outras adversidades.
Por demorarem mais de vender os mariscos em Salvador, se atrasavam para a
travessia e não era sempre que encontravam transporte de Bom Despacho para
Salinas. Isso acontecia, algumas vezes, por motivo de greves que paralisavam o
182
Ata que registrou a opinião do Vereador Leonardo José de Santana sobre a estrada e suas vantagens como
meio de comunicação (ACMSM) de 23 de abril de 1971. f. 109.
113
transporte coletivo ou simplesmente pelo fato dos ônibus e caçambas que faziam o
trajeto já terem partido.
O sentimento de impotência que lhes vinha nessas circunstâncias era
amenizado com os gestos de camaradagem que foram solidificados com as próprias
colegas de trabalho e com os policiais que trabalhavam de plantão em Bom
Despacho. Era muito válido poder contar com aquele “vãozinho” do módulo policial,
o cafezinho ou até mesmo a quentinha que eles lhes ofereciam. Mesmo sabendo
que correriam o risco de não acharem mais o transporte para Salinas, era preferível
pernoitar em Bom Despacho a ficarem em Salvador. Lá sim, o perigo era maior de
passarem a noite desabrigadas, no relento.
Entretanto, como lembrou Dona Amor, havia perdas irreversíveis como a de
alimentos perecíveis, como a carne de boi fresca, que compravam na capital baiana.
Quanto a isso nada podiam fazer, o jeito era tentar tirar um cochilo ou se distraírem
conversando com os policiais enquanto aguardavam o amanhecer que traria o
transporte que as levaria para casa. A impressão é a de que não mediam
dificuldades.
A prioridade do amanhecer até o final o dia recaia em dar conta do que a vida
lhes deu para tomar conta. Ao acordar já conseguiam vislumbrar as dificuldades que
poderiam vir a sofrer. Dona Amor cautelosa quanto às dúvidas do dia e horário que
retornaria para casa quando viajava para vender os mariscos, costumava dizer aos
filhos que sabia a hora que saia, mas não sabia a hora que chegava. Tinha esse
cuidado de deixá-los prevenidos quanto à incerteza do regresso no percurso à
Salvador.
Tipos diferentes de trabalhos permitiram que essas mulheres andassem por
variados espaços. Rose é um exemplo: formou-se em magistério, mas não exerceu
a profissão. Tinha um bar na orla marítima de Salinas da Margarida e outro em
Salvador, onde vendia, entre outras coisas, frutos do mar. Vivia desenvolvendo
mecanismos para desdobrar-se entre Salvador e Salinas da Margarida. Este viver
era mais uma forma de luta pela manutenção de sua vida e de sua família.
Muitas dessas mulheres foram trabalhar na Santa Bárbara, fábrica instalada
em Salinas e que fazia o beneficiamento de um fruto do mar: o siri. Eles eram
pescados nas águas da Baía de Todos os Santos por pescadores de Salinas e de
outras localidades vizinhas. Os pescadores vendiam para a Santa Bárbara. Na
114
fábrica, eles eram fervidos em caldeiras e após o cozimento passavam pelo
processo de catar – o alimento era retirado da casca, selecionado e enlatado – para
serem exportados para os EUA. Mulheres e homens desenvolviam esse trabalho
dentro da fábrica.
As marisqueiras nada tinham de dóceis e submissas no lar, estavam sempre
na intenção de solucionar seus problemas cotidianos. Algumas delas, inclusive,
saíram da atividade que realizavam para se empregarem na Santa Bárbara. Em
conversas mantidas com Dona Reinalda, ela contou do grande transtorno que era
trabalhar nesse local. Pois eram pouco ventilados, e em altíssima temperatura,
devido às caldeiras que funcionavam em pleno vapor para o pré-cozimento dos siris.
Para entrar na fábrica, Dona Reinalda disse que tomava banho, e tinha que entrar
molhada para poder suportar o calor do lugar. Apesar da necessidade que tinha do
emprego, não conseguiu permanecer por muito tempo. Logo teve que sair por estar
com problemas cardíacos.
O que demarcava o ritmo habitual dessas mulheres eram as estratégias
elaboradas para conseguirem cumprir o duplo papel de operária e mãe de família,
submetidas a um tempo demarcado, em espaços insalubres e desenvolver tarefas
repetitivas, cumprir produção, estar vulnerável as investidas dos superiores. Ao
mesmo tempo essa mulher era também dona de casa e tinham que comprar, lavar,
passar, cozinhar, limpar, arrumar e amar. Cabia a elas a cada dia viabilizarem
condições para corresponderem aos compromissos os quais estavam imbuídas.
Dona Reinalda era marisqueira quando começou a trabalhar na Santa
Bárbara. Estava acostumada a trabalhar em um ambiente livre, sem paredes e
pessoas que conduzissem a sua rotina diária de trabalho, respeitava apenas as
regras da natureza. Trabalhar na fábrica significou para ela, além de um salário fixo,
direito trabalhista. No entanto, sentiu fortemente de ter que suportar uma outra
rotina, a de ser comandada por um chefe, ter que seguir um horário rigorosamente
controlado, dar conta da produção, conviver várias horas com pessoas com as quais
nem todas tinham afinidades. Ainda tinha que dar conta da dupla jornada, chegar em
casa e cuidar dos afazeres domésticos.
Essas foram algumas das dificuldades enfrentadas por ela, dentro da Santa
Bárbara. Essa narrativa foi feita com palavras e expressões de dor e fadiga, por uma
marisqueira que teve a saúde fragilizada diante desse cotidiano. Assim, depois de
115
um ano e dez meses, não conseguiu mais suportar o trabalho e se aposentou.
Afinal, como Perrot esclareceu:
As mulheres não são passivas nem submissas. A miséria, a
opressão, a dominação por reais que sejam, não bastam para contar
a sua historia. Elas estão presentes aqui e além. Elas são diferentes.
Elas se afirmam por outras palavras, outros gestos. Na cidade, na
própria fabrica, elas têm outras praticas cotidianas, formas concretas
de resistência – à hierarquia, à disciplina – que derrotam a
racionalidade do poder, enxertadas sobre seu uso próprio do tempo e
do espaço. Elas traçam um caminho que é preciso reencontrar. Uma
história outra.
Uma outra história.183
Cada mulher com a sua maneira de encarar e viver o mundo se torna
arquiteta de suas histórias e dessa forma marcam a sua trajetória de vida. Dona
Reinalda, desempenhou várias funções para manter-se e também manter a sua
família: fez de sua casa escola onde lecionou para várias crianças, adolescentes e
adultos. Havia escolas públicas em Salinas, mas ela ressalta que muitas foram às
mães e os pais que preferiram deixar aos seus cuidados os estudos dos filhos,
mesmo não sendo formada na profissão. Recebia dos pais uma remuneração pelo
serviço prestado. Com o passar do tempo, tendo os filhos para criar, e sem
paciência para continuar exercendo a profissão de professora, deixou de lecionar.
Mas, como a necessidade de ajudar na renda familiar era algo imprescindível, teve
então que buscar outras formas de trabalho e assim foi ser lavadeira, marisqueira,
funcionária pública até conseguir aposentar-se.
Longe de exercer o protótipo de fragilidade defendido pela medicina social 184,
Dona Reinalda segue a tendência de muitas mulheres que imbuídas de zelar pela
vida dela e dos seus, não mediu esforços e tentou de variadas formas se engajar em
um trabalho que a tornasse provedora do seu lar.185 Além do sentido financeiro, o
trabalho trazia para muitas dessas mulheres o interagir com o outro de forma que
poderia ser harmônica ou não; propiciava a aprendizagem e o fazer de uma
atividade; causava o diálogo, a troca de idéias, e conselhos. Não era pelo fato de
183
Michelle Perrot, op.cit. , p. 212.
Rachel Soihet. Mulheres pobres e violência no Brasil Urbano. In: Mary Del Priore (org.). História das
mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001, p.363.
185
Ver, a respeito da “mulher pública”, Cláudia Fonseca. Ser mulher, mãe e pobre. In: Mary Del Priore (org.).
História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001, p. 516.
184
116
estarem longe de casa desenvolvendo funções que não eram as domésticas, que
significasse pensar e dizer que o sentimento maternal não as acompanhava. As
orações estavam em clamor para a proteção dos filhos e da organização familiar que
delas e daqueles momentos suados dependiam.
Na ocasião da pesquisa, Dona Reinalda tinha 67 anos de idade, e seis anos
de viuvez, perdeu o marido devido a um acidente de carro. Ela teve 13 filhos e tinha
30 netos. É mãe de Rose, que muito contribuiu para a pesquisa. Rose e mais 7
irmãos conseguiram concluir o ensino médio, realizando assim, parte do grande
sonho de Dona Reinalda que era o de ver os filhos formados, mesmo alguns não
exercendo as funções correspondentes as suas formaturas.
Assim como Dona Reinalda, muitas outras marisqueiras cultivaram sonhos
para seus filhos em territórios que não fosse a maré. Dona Dilza, com emoção,
lembrou que seus filhos concluíram o ensino médio, porém continuavam suas
atividades na maré. Com tristeza e lágrimas ela narrou sobre seus anseios e
frustrações:
Ah! É um orgulho muito grande, é muito bom, a pessoa saber que
lutou pá ver aquele filho, né? Conseguir aquilo que a gente não
conseguiu... [Ela interrompe o relato com choro] É o meu sonho é
como eu já disse, é ver eles independentes trabalhano, ter um meio
de vida melhor do que a gente teve. Um trabalho pra viver, pra se
sobreviver e não viver também assim só na maré, nessa vida que a
gente já viveu sempre tudo. É isso!186
Os sonhos são parte daquilo que profundamente somos, sublimam as vidas
humanas de estados em que se encontra em desânimo, em descrença e fadiga de
frustrações. Mas quando esses sonhos não se realizam, a vida das pessoas é
marcada por tristezas e desilusões. Dona Dilza apesar de sentir-se feliz pelo
sucesso da filha em ter conseguido concluir o ensino médio, estava incompleta, pois
a totalidade dos seus sonhos em relação a sua filha não foi concretizado. Suas
lágrimas manifestam o sentimento de uma marisqueira que mesmo agradecendo a
Deus pelo presente dos recursos da natureza que o mar lhe oferece, seus sonhos,
para com a filha, são realizações em outro campo de trabalho que vão além do que
a maré lhe proporciona.
186
Dilza Spínola de Souza. Entrevistada em 31 mai. 2002.
117
A fotografia revela a alegria daquelas e daqueles que, apesar das
adversidades enfrentadas, conseguiram alcançar mais um objetivo na vida.
FIGURA 16: Formatura do curso de magistério de algumas marisqueiras e de filhas
de marisqueiras. (Fotografia de Lauro Souza, 2001)
Essa imagem expressa um momento de imensa satisfação experimentado por
pessoas que muito valorizaram e persistiram na realização de um sonho, que era a
conclusão do curso de magistério. Serem congratulados por amigos e parentes e
terem o regozijo festivo efêmero, não significa que atingiram o cume do que ainda
anseiam para suas vidas, que é poder se sustentar exercendo funções com as
habilidades das quais foram capacitadas. Muitas entre elas continuam sobrevivendo
da arte de mariscar nas praias de Salinas da Margarida.
ESPAÇOS DE SOLIDARIEDADES
A mariscagem normalmente realizava-se em grupo. As mulheres na véspera
de irem para o trabalho marcavam o encontro. Antes se informavam do horário da
maré, o momento em que a maré apresentava um volume menor de água nos locais
118
da mariscagem, deixando as areias descobertas, propícias ao trabalho. Cientes do
horário encontravam-se e dirigiam-se caminhando para a “oficina” de trabalho.
Normalmente iam a grupo de quatro, cinco, seis ou mais mulheres.
Os espaços de trabalho constituem-se como locais de sociabilidade e
solidariedade. Em geral, quando as marisqueiras chegavam à praia, lá encontravam
outros grupos de trabalhadoras da maré já em plena atividade, iniciava-se, então,
um convívio quase sempre marcado por relativa descontração. Elas conversavam
sobre os acontecimentos do dia-a-dia, contavam anedotas e cantavam, tudo isso
com o intuito de tornar o trabalho mais leve, o que fazia o tempo passar mais rápido
e o trabalho se tornar até divertido. Contudo, em alguns momentos ocorriam
conflitos gerados, por exemplo, quando alguma marisqueira pegava o produto da
outra ou quando problemas familiares eram discutidos com os próprios parentes ou
colegas no local de trabalho. Cleide fez referência a esse assunto:
Dificilmente tem atrito, dificilmente. Só tem atrito assim... Se uma
pegar o marisco da outra ou então quando tem problemas fora...
Problemas de família, problemas pessoais mesmo, ai que misturam
tudo na hora que chega na maré, começa a briga. Mas sem ser isso,
não tem atrito nenhum, é legal até às vezes tem muita gente que
brinca mesmo pra descontrair passar o tempo.187
Algumas marisqueiras quando abordadas sobre possíveis desavenças
ocorridas nos espaços das mariscagens, mostraram-se relutantes em falar sobre o
assunto. Cleide, com ponderação, deu mostras de como elas reagiam nesses
espaços de socialização quando pressionadas por algum problema. As brigas
surgiam para se defenderem, reivindicarem seus direitos, enfim expressarem suas
idéias. Apesar de ocorrerem os desentendimentos, a relutância de muitas em não
querer explicitá-los pode ser interpretado como uma vontade delas não quererem
colocá-los como uma característica marcante nos contatos durante as mariscagens.
Buscavam com isso evitar que se tenha uma visão negativa desse convívio. É
possível observar indícios da ética profissional que permeiam essas ações. Cuidam
com isso para que não haja visões que de alguma forma transgridam os espaços
“sagrados” de onde elas tiram seus sustentos.
187
Cleide França Silva. Entrevistada em 1 mai. 2002.
119
No cotidiano das mariscagens, era comum o uso de um produto que servisse
como repelente para os insetos. Elas levavam uma mistura de querosene e óleo que
passavam em seus corpos, para afastá-los. Era comum acontecer de alguma
marisqueira ter esquecido de levar esta mistura, mas logo, uma companheira ali
presente manifestava com amizade o interesse de suprir a sua necessidade,
emprestando-lhe o produto para que a mesma conseguisse trabalhar com mais
conforto.
Esse tipo de relacionamento é um dos sustentáculos de uma união que
caracteriza o cotidiano dessas pessoas. A solidariedade nesse meio social é uma
marca que o capitalismo não destruiu com a sua força feroz, de ditar o preço de
tudo. O sentimento solidário é demonstrado de várias maneiras nas experiências
diárias das pessoas comuns. Dona Reinalda trouxe um exemplo:
Se eu fizer uma coisa em minha casa um pouquinho a mais, nunca
na vida acho que isso tudo tem que ficar só pra dentro de casa. Eu
tenho que procurar um vizinho, uma pessoa assim eu tenho que
dividir, eu tenho que repartir qualquer coisa com essa pessoa, com
pessoa qualquer daqui da rua. Entendeu? Se alguém chegar em
minha casa e dizer: Oh D.Reinalda, a senhora tem isso? Por mais
que eu queira assim dizer não, mas eu não digo.188
Do ponto de vista humano, é importante que haja este espírito de doação em
qualquer segmento social, já que a vida, por mais independente que seja jamais se
encontrará dissociada de uma comunidade. Assim, “a solidariedade tem sido
também um traço muito forte entre os membros
das comunidades de
pescadores.”189 vivenciada cotidianamente pelas marisqueiras de Salinas da
Margarida. O exemplo citado por Dona Reinalda é uma indicação vigorosa.
Deve também ser destacado outra manifestação de solidariedade, é o fato
dessas mulheres terem em suas casas guardadas, em demasia, as conchas dos
chumbinhos. São montes que estão presentes em várias partes: no quintal, na
frente, no lado da casa. Em muitas ocasiões elas cedem significativas quantidades
dessas conchas para vizinhos e pessoas que elas tenham afinidade para serem
usadas no artesanato e na construção de casas, substituindo a brita. A fotografia
188
189
Reinalda Áurea da Silva. Entrevistada em 7 Jun. 2003.
Simone Carneiro Maldonado. Pescadores do Mar. São Paulo: Ática, Princípios, 1986 , p. 61.
120
revela a grande quantidade de conchas dos chumbinhos que ficam alojados nas
proximidades das residências das marisqueiras:
FIGURA 17: Criança brincando sobre cascas de chumbinhos. (Fotografia de Lauro Souza,
2001).
Entre tantas utilidades, as conchas serviam também para a recreação das
crianças, como se pode ver na Fig. 17, o lazer e o trabalho infantil parecem que se
encontram irremediavelmente unidos ao marisco.
No mesmo sentido, certamente, uma imagem que salta aos olhos, está
relacionada às múltiplas invenções dos artesanatos feitos com suas conchas, que
são produzidos também pelas marisqueiras. A imagem abaixo revela um pouco da
cultura artística dessas pessoas:
FIGURA 18: Artesanato feito com conchas de chumbinhos e de outros mariscos.
(Fotografia de pesquisa, 2003).
121
Muitas esclareceram que doam significativas quantidades das conchas, mas
quando chega alguém para comprar, elas também vendem aproveitando mais uma
forma de ganho através do marisco. Às vezes conseguem trocar determinadas
quantidades de conchas por material de construção, telha, cimento, areia e outros
produtos com comerciantes locais. A quantidade necessária para as referidas trocas
depende das negociações estabelecidas entre as marisqueiras e o comprador no
momento da troca das mercadorias.
Outra forma de burlar a crise econômica e deixar acesos os laços de amizade
é a utilização culinária com os mariscos. Rose apresentou mais uma mostra de
ajuda mútua presente na relação das marisqueiras. Em um dos encontros durante
as entrevista, para reafirmar o valor nutricional do marisco e demonstrar seus dons
culinários, ela explicou como criou uma gostosa sopa de chumbinho. Ao mesmo
tempo em que falava da sopa ela serviu uns saborosos bolinhos feitos desse
marisco. Eis a receita da sopa:
Eu peguei o chumbinho escaldei como tem que escaldar. Então, eu
escaldei o marisco escorri e fiz um tempero de sopa com cebola,
pimentão, tomate, hortelã, vinagre. Cortei umas verduras. Cortei
beterraba, cenoura, batatinha, fatiei um repolhozinho e depois
refoguei. Botei uma cebolinha pra fritar. Despejei o marisco já
temperado, envolvido nesse tempero e deixei refolgar, quando vi que
ele tava cozido eu coloquei um pouco de água e coloquei as
verduras. Depois eu coloquei um cubinho de Knor, uma pitadinha de
orégano, botei massa e tomei e achei muito gostosa.190
Rose conclui a receita da sopa com risos, e afirma ter ensinado a receita a
uma amiga que passava por grandes dificuldades financeiras que não tinha como
sustentar os filhos. Após ficar sabendo da receita, a amiga passou a prepará-la em
todas as refeições diárias para ela e para seus filhos, pois o seu custo era mais
barato do que a aquisição de outros alimentos.
Esse território de solidariedade e sociabilidade, conta também com a
presença das crianças regularmente. Vários são os motivos que as fazem
acompanhar suas mães. Vejamos no depoimento da marisqueira Cleide um desses
motivos:
190
Rosângela Áurea Caetano. Entrevistada em 15 fev. 2003.
122
Minha mãe não tinha uma boa condição, uma condição melhorzinha
pra poder manter a gente sem mariscar. A gente fazia de tudo, mas
meu pai tava desempregado. Esse período foi que meu pai tava seis
anos desempregado, sem fazer nada. Aí tinha que ir todo dia pra
maré. Aí a gente ia pra ajudar. Minha mãe não queria, às vezes. Mas
só que a gente... As maiores, como era eu e minha irmã e a outra
que vêm depois de mim. Eu tinha doze, dez a menor e a maior
quatorze, a gente achava na obrigação de ajudar a minha mãe, e
como a gente não ficava fazendo nada em casa, só fazia no período
da Escola, a gente achava melhor ir.191
Apesar de serem tão novas, o comportamento de Cleide e de suas irmãs
revelam um alto grau de conscientização da ajuda delas na manutenção familiar,
pois com o pai desempregado, o sustento da casa deveria ser mantido, e não
achavam justo que a mãe fizesse sozinha o trabalho. O pai de Cleide dava sua
contribuição através da pesca e ajudava mãe e filhas, cavando e transportando os
mariscos. São memórias de momentos compartilhados com atos de solidariedade
experimentados que revelam a compreensão e o significado da importância da ajuda
mútua.
A MARÉ TAÍ!
Lembrando o testemunho de Dona Francisca o costeiro está sempre cheio de
chumbinho para quem precisa e não tem preguiça. Esta reflexão manifesta a leitura
que faz do mar, tendo-o como bem comum e fonte de sustentação para aqueles que
assim quiserem. Nesse sentido, “a natureza é perfeita na medida em que tudo que a
ela pertence tem uma função própria e fundamental para a harmonia do todo.” 192
Com muita propriedade outro morador de Salinas, o Senhor Raimundo Nonato
reafirmou essa análise: “Deus pisou aqui, botou essa maré aqui, ninguém morre de
fome , só muita preguiça! Porém se quiser trabalhar, amanheceu o dia vai pegar seu
siri, vai pegar seu chumbinho, seu rala-coco, sua lambreta e aí por diante.”193 Esse
senhor refere-se às terras salinenses como espaços sagrados, como terras que
foram pisadas por Deus, o qual cuidou de nunca deixar faltar o pão de cada dia para
191
Cleide França Silva. Entrevista citada.
Gláucia Oliveira da Silva . Água, vida e pensamento: um estudo de cosmovisão entre trabalhadores da pesca.
In: DIEGUES, Antônio Carlos (Org.) A imagem das águas. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 30.
193
Raimundo Nonato Ferreira. Entrevistado em 7 Jun. 2003.
192
123
a população carente. O tom é o mesmo de Dona Francisca ao tentar mostrar como é
significante a riqueza do chumbinho em Salinas:
Esse chumbinho, esse chumbinho nunca falta. O pessoal fica se
queixando, mas ele nunca falta, não é uma nem duas pessoas, é
várias. Quantas mil pessoas têm aqui em Salinas? Se tira de ponta
de dedo que em uma casa não vá duas ou três pessoas e outras vai
a casa toda. Então, acha todos os dias e não tem tempo ruim pra
eles, pra o chumbinho não tem tempo ruim. Na hora que o costeiro tá
ruim, um dia, no outro dia que vai o costeiro tá melhor.194
Dona Francisca com 58 anos de idade, aposentada, conta da grande
abundância do marisco e confirma a importância deste alimento na vida das famílias
salinenses e que para consegui-los é preciso que tenham coragem para irem à
busca daquilo que a natureza com gratuidade extensivamente oferta. O costeiro,
referenciado é o local onde elas coletam os mariscos. Ela conta, no decorrer da
conversa, que no tempo em que mariscava, os mariscos por ela catados eram os
siris e ostras; o chumbinho pegava em menor quantidade. Os filhos que a
acompanhavam nas jornadas do trabalho, pegavam uma quantidade pequena, pois
eram crianças e não tinham a mesma desenvoltura dos adultos, mas mesmo assim
já ajudavam.
Quando foi entrevistada tinha dez anos que havia deixado de mariscar e seis
que havia ficado viúva. Deixou a mariscagem por apresentar problemas de saúde,
sentia fortes dores na coluna e ficava tonta ao abaixar a cabeça. Mesmo não
podendo mariscar, ela continuou extraindo o seu sustento do mar, exercendo a
função de ganhadeira, comercializava os mariscos que outras marisqueiras catavam
e os levava para vender em Salvador. Batia de porta em porta para vender os
mariscos: o chumbinho, a ostra, a lambreta, o siri e o catado de caranguejo.
Rose, ex-marisqueira com 34 anos de idade, expõe bem este aspecto:
Aqui nós temos a lambreta, tem em quantidade; o caranguejo, em
quantidade; o sururu, em quantidade. Tudo em fim de espécie de
marisco aqui nós temos em quantidade. Entendeu? E nos outros
distritos que é tão próximo não tem...Não tem. Essa região toda aí.
Esses distritos daí, todo, o único lugar que tem mesmo em
194
Francisca de Jesus Santos. Entrevistada em 31 mai. 2002.
124
quantidade é Salinas. E hoje eu, eu, eu me sinto feliz quando eu vejo
a divulgação.195
A Maricultura da Bahia S. A., que se instalou em Salinas da Margarida na
década de 1990 e que tem como fins o cultivo do camarão em cativeiro, faz
regularmente nos viveiros fertilização, e nos períodos da retirada dos camarões uma
grande quantidade de água é liberada dos viveiros e lançada na maré. Estes viveiros
estão localizados na marinha de Salinas. A água que sai dos viveiros, possui uma
determinada quantidade de adubo que se instala nos manguezais e na vida marinha
ali presente.196 Esta pode ser uma das explicações para justificar a riqueza de
nutrientes nos manguezais e o que foi apontado por Rose, a abundância de alguns
dos frutos do mar que existem em Salinas, em comparação com as demais
localidades tão próximas.
É interessante observar a relação trabalho-estudo dos filhos de marisqueiras.
Saber o nível da preocupação dos pais, se eles se importavam com a freqüência dos
filhos na escola, já que participavam tão ativamente das longas jornadas das
mariscagens. Se os pais estimulavam o interesse nos filhos para que eles
aprendessem outra profissão ou se o que predominava era o fato de saberem que
“A maré taí!”. O que poderia significar dizer que, qualquer necessidade que eles
viessem a ter, as águas salinenses estariam lá, com a riqueza extensiva desse fruto
do mar, o chumbinho, que os supriria.
A respeito do cuidado com os filhos na escola e na mariscagem, Dona
Francisca expõe sua preocupação:
Deixar em casa pra procurar confusão? Pra quando eu chegar ter
confusão? Eu levava na minha frente. Eu só deixava quando era de
noite. Quando eu saia daqui 4:00h da manhã, que eu chegava cedo,
pra ainda acordar eles pra ir pra Escola, na maré de ponta. Mas
quando não era maré de ponta era maré tardeira quem não fosse pra
escola, ou quem fosse estudar de manhã, ia pra Escola, quem
estudasse de manhã ia pra Escola, quem estudasse de tarde ia
comigo.197
195
Rosangela Áurea Caetano. Entrevista citada.
Raymond Williams, op. cit. , p. 392. Afirma que alguns dos mais antigos e notáveis efeitos ambientais, tanto
negativo quanto positivos, decorreram de práticas agrícolas: em alguns casos, a terra tornou-se mais fértil.
197
Francisca de Jesus Santos. Entrevista citada.
196
125
Dona Francisca não tinha com quem deixar os filhos e por este motivo eles a
acompanhavam durante as mariscagens. A maré de ponta é quando as águas
vazam pouco, e isto ocorre pela manhã, bem cedo. Vazando pouco só ficam um
pouco das areias descobertas propícias ao trabalho. A tardeira, é quando elas
vazam normalmente e mais tarde. Esta não atrapalhava o sono dos filhos e sempre
de acordo com o horário da escola, eles iam com ela para a maré.
Neste
depoimento é notável o cuidado da mãe com os estudos dos filhos em sintonia com
o mundo do trabalho. Aliás, como em outros tempos e outros lugares, “A criança faz
seu aprendizado das tarefas caseiras primeiro junto à mãe ou avó, mais tarde
(frequentemente) na condição de empregado doméstico ou agrícola.” 198 A
preocupação primeira era o estudo e, para que não ficassem em casa sozinhos,
acompanhar as mães nas jornadas da mariscagem tinha também o significado de
lazer para essas crianças. Nos locais do trabalho, encontravam-se com outras
crianças filhos de outras marisqueiras que juntos, além de catarem os mariscos,
brincavam nas areias e nas águas onde se divertiam.
Sobre esse assunto,são denunciadoras as memórias de Rose:
Mainha tinha essa preocupação, ela tinha essa preocupação. A
gente mariscava na fase do inverno mesmo por necessidade, porque
não tinha outra coisa pra fazer. Os meus irmãos todos
acompanhavam a carreira de painho, de pedreiro, então na fase de
inverno não tinha como conseguir trabalho porque o morador de
Salinas ele mesmo dava um jeitinho de levantar suas paredes.
Então, a gente tinha que esperar o pessoal vir de fora pra poder
contratar os serviços de painho. Então, o que é que acontecia?
Mainha tinha uma preocupação muito grande que nós só íamos pra
maré, se pudesse está em casa no horário de ir pra escola.
Entendeu? Nunca aconteceu a gente perder aula porque tinha que
está na maré. Nunca aconteceu. 199
Em momentos gritantes de ausência de recursos, quando os maridos não
conseguiam arcar com as despesas da família, elas se empenharam para darem
continuidade a vida e conseguir com zelo obter os mantimentos dos quais se
favorecia toda a família. Contudo, nas lembranças de Rose acentua a preocupação
198
Edward P. Thompson. Costumes em Comum; estudos sobre a cultura popular tradicional. Companhia das
Letras. São Paulo: 1998, p.17-18.
199
Rosângela Áurea Caetano. Entrevista citada.
126
da mãe com relação aos estudos dos filhos, e consequentemente, com o futuro
deles: aprender a fazer crochê, frequentar as aulas de catecismo e participar dos
atos da Igreja Católica. Quanto aos planos para o futuro, Rose diz que sempre
pensou junto com os irmãos nunca ter que deixar Salinas, e sim viver do que a
cidade lhes patrocinassem, pensava em crescer dentro de Salinas passando para
outras pessoas o que aprendessem. Esses são valores defendidos por Rose e que
sintetizam o pensamento comum de muitas marisqueiras. Valores que constituem o
viver dessas mulheres e seus filhos e que não são “pensados”, nem “chamados” por
quem quer que seja. Thompson disserta com minúcia este conceito de valor:
Os valores (...) são vividos, e surgem dentro do mesmo vínculo com
a vida material e as relações materiais em que surgem as nossas
idéias. São as normas, regras, expectativas etc. necessárias e
aprendidas (e “aprendidas” no sentimento) no “habitus” de viver; e
aprendidas, em primeiro lugar, na família, no trabalho e na
comunidade imediata. Sem esse aprendizado a vida social não
poderia ser mantida e toda produção cessaria.200
Os valores são produzidos e reproduzidos na prática social, emergindo nas
individualidades como conteúdo de sua historicidade. Na vida de muitas
marisqueiras e nos seus depoimentos, o valor básico da vida traz sempre à tona a
conquista do alimento e o esforço para aprender sempre algo novo, de modo a
ampliar os horizontes para além da cata de crustáceos nas praias.
Eram circunstâncias que marcaram a
vida de muitas marisqueira,
desamparadas por seus ex-companheiros, viúvas ou mesmo morando com seus
maridos, passavam por envolvimentos afetivos que muito as fizeram sofrer. Maria
José, marisqueira, muito emocionada fez um desabafo do sofrimento que viveu
quando casada.
Eu sofri muito com o casamento, muito. Eu preferi ficar sem ter onde
dormir, sem ter, o que comer. Mas eu preferi ficar só. [...] Aí eu botei
uma coisa em minha cabeça. Eu quero dormir com fome, mas quero
deitar em meu travesseiro e acordar em paz e ir pra maré. E isso
aconteceu!201
200
201
Edward P. Thompson. A Miséria da Teoria: ou um planetário de erros. Zahar, Rio de Janeiro: 1981, p.194.
Maria José Caldas Costa. Entrevistada em 4 out. 2007.
127
Maria José conseguiu se separar do marido. Tentou algumas vezes através
da justiça que ele ajudasse financeiramente na criação dos filhos, mas segundo ela,
foram tentativas inúteis. Como não tinha mais para quem apelar resolveu sozinha
assumir a família. O desabafo feito por esta marisqueira sintetiza o sofrimento de
muitas outras que sem receber o devido valor de seus companheiros e ajuda para
criação de seus filhos, encaravam na atividade de mariscar a motivação para
continuarem sua trajetória. Em trechos do poema de Ademir Cerqueira da Cruz,
morador de Salinas, essas mulheres são:
Mulheres Guerreiras
[...] Passa fome, passa sede
Um sofrimento danado
É hora de retornar
Com aquele bicho pesado
Quando ela chega em casa
Encontra o marido mamado
[...] Essa sofrida mulher
Com coração apertado
Ainda será vítima
Desse marido malvado
Bateu na pobre coitada estava
Anestesiado[...] 202
Senhor Ademir poeta, morador e professor de Salinas demonstrou, através
das conversas e do seu poema, ser um homem consciente da exploração que
muitas marisqueiras sofriam dos maridos. Essas relações estavam longe de
sinalizarem
a
essência
do
amor,
não
havia
respeito,
amizade,
afeto,
companheirismo, reconhecimento pelo que elas eram e faziam. Para Perrot viviam
“as heroínas domésticas, pelos seus sofrimentos, sacrifícios e virtude, restabelecem
a harmonia do lar e a paz da família. Elas têm o poder – e o dever – de agir bem.”203
Recaía para as mulheres o ônus pela manutenção, em largo sentido, da harmonia
202
203
Ademir Cerqueira da Cruz. Poema Mulheres Guerreiras.
Michelle Perrot, op.cit. , p.181.
128
no lar. Como mostrou o poema, apesar do esforço que muitas marisqueiras faziam
para realizar as tarefas cotidianas, elas foram vítimas da violência em seus próprios
lares. Sofriam no físico e no psicológico as dores da humilhação de não serem
respeitadas da sua condição de ser humano e de ser mulher.
No entanto, muitas marisqueiras não eram tão passivas quanto a realizarem
sozinhas as tarefas do lar, pois elas atuavam no mercado de trabalho, participavam
do orçamento familiar e, dessa forma, também se esgotavam tanto quanto seus
maridos e, além disso tinham que desempenhar as obrigações de casa sem
nenhuma ajuda. Nair Gonçalves faz uma abordagem ao que se refere à
conscientização da mulher quanto ao seu valor na família e na sociedade.
O papel da mulher já é, e continuará sendo, cada vez mais, lutar pelo
seu espaço na família e na sociedade. Lutar pelo seu espaço não
significa declarar guerra aos homens. Ao contrário, significa
proporcionar que cada um seja inteiro no espaço que ocupa e, o que
é muito importante, passar essa atitude frente à vida para as
gerações futuras. 204
Gonçalves faz um comentário ao mesmo tempo em que lança uma diretriz
conscientizadora para o homem e para a mulher. À mulher, ela estimula a não
querer ser melhor do que o homem, e sim buscar o melhor para si própria, para a
família, para a sociedade e deixar marcas positivas de um caráter sensato para o
futuro dos que virão. Ao homem ela faz uma abordagem sugerindo não temer a
aproximação e a permanência cada vez maior da mulher em espaços antes
considerados do homem. Ao que tudo indica, essa é a posição de muitas mulheres
marisqueiras salinenses que conquistam seu espaço. Elas manifestam o melhor de
suas habilidades, não com o fim de sublevar-se ao homem, e sim pelo fato de ter a
satisfação de poder contribuir financeiramente na renda familiar, ser um sustentáculo
na tradição de seu povo e participante ativo na marcha da história.
Dona Amor, apesar de ser casada, ela demonstrou não ter tido do marido
nenhuma ajuda para a criação dos filhos. O dinheiro que ele obtinha era usado para
pagamento das bebidas que consumia. Da sua vivência ela trouxe outro exemplo
forte:
204
Nair Teresinha Gonçalves . Escutando a voz das mulheres.In: STREY, Marlene Neves et al (Orgs).
Construções e perspectivas em gênero. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2001, p. 9.
129
Eu tive uma menina, essa aí que tem essa filhinha aí. Eu tive ela
dentro, quase dentro da maré. Porque eu fui mariscar numa barriga
grande [risos] quando eu cheguei lá na maré não tava sentindo nada,
marisquei a minha vontade. Quando vir, na hora de vir embora, todo
mundo veio embora eu fiquei lá sozinha pra trazer uma canoa que
vinha com marisco. Canoa foi essa que a maré veio enchendo e eu
fiquei arrastando a canoa até cá no local de ficar, da botar a canoa
no lugar. Olho pra um lado, olho pro outro, vinha um rapaz longe em
outra canoa. Aí eu esperei ele chegar. Esperei ele chegar para botar,
infincar a canoa que infica numa vara para poder a canoa ficar presa
e não sair dali com a maré encheno. Minha senhora, daqui a pouco
bateu uma dor eu com uma barrigona cheguei, assim sentei. Sentei.
Mas... Quando sentir a dor eu fiquei parada, mas... sozinha ali. Eu
disse poxa eu já tô com dor de ter menino! Aí tava com aquela dor e
com fome. Quando a dor dava, eu parava, quando a dor parava eu
corria. Quando a dor dava eu corria, corria um tanto bom. Quando
chegava uma certa quantidade do caminho a dor dava de novo,
sentava. Chegava ali ficava até ela passar. Minha senhora que
quando eu vinha correndo que dava pa correr mesmo eu chegava
aqui azuando.Quando fui chegando ali na porta eu já fui logo gritando
bota água no fogo, que eu não ia tomar banho frio. Bote água no
fogo e bote a minha comida no prato. Comi. Quando acabei de
comer tomei um banho e mandei as meninas arrumar a sacola pra ir
pra maternidade.205
A narrativa reafirma as dificuldades vividas pelas marisqueiras, inclusive nas
últimas horas antes de dar à luz a uma nova vida. Dona Amor carregava em seu
ventre o peso da barriga, as dores do parto e a angústia de estar sozinha naquela
situação. Mesmo desamparada foi capaz de reunir forças para conseguir sair da
maré e ir ganhar o seu bebê, que também já lutava para ganhar o mundo. Mesmo
com toda aflição que passava em uma situação como essa, era um alento muito
bom poder contar com a gratuidade da natureza que ofertava diariamente os
alimentos para ela e para a sua família.
Assim, ocorre também com Floraci. Em suas palavras surgem explicações de
como conseguiu burlar os costumes do mundo da pescaria onde o mar é de
primazia masculina e foi para esse espaço em busca de suprimentos.
Eu pesco siri, pesco peixe, camarão e marisco. Marisco também
ostra. É! Tudo do mar eu faço. [...] Agora o que eu mais gosto
205
Heloisa Marcelina Ramos ( Dona Amor). Entrevistada em 25 set. 2007.
130
mesmo de fazer, é pescar o siri de gaiola. Pesco peixe que eu tenho
rede, ai a gente pesca, tenho tarrafa, tenho tudo.206
A forma como Floraci buscou o seu sustento e o sustento dos seus, se
diferencia um pouco do habitual das demais mulheres da camada popular salinense.
Ela pesca desde os nove anos de idade, com o tempo preferiu desenvolver essa
atividade sozinha. Com muita dificuldade conseguiu concluir os estudos até o ensino
médio. Ingressou na faculdade, porém por dificuldades financeiras não conseguiu
concluir o curso de pedagogia. Solteira, mãe de dois filhos teve que abandonar os
estudos para poder dar sustento a casa. Floraci com orgulho de se própria falou que
além da mariscagem com o chumbinho pratica também outras pescarias. Vai ao
manguezal e para o mar e de lá traz o que é possível trazer. Consciente de sua
perspicácia com o manejo dos apetrechos que envolvem o mundo da pescaria, não
se intimida em enveredar-se por caminhos que são prioritariamente habitados pelos
homens. De posse de sua canoa e da gaiola ela rema nas águas salinenses para
fazer o que disse mais gostar, que é a pesca do siri. A gaiola a qual ela fez
referência é uma espécie de armadilha de cipó que são lançadas na maré a certa
distância da margem para capturar o siri.
Floraci confessou ter ido algumas vezes à Prefeitura Municipal em busca de
emprego. O seu interesse era conseguir um trabalho que lhe fornecesse alguns
direitos trabalhistas como um salário fixo, férias, décimo terceiro e outras vantagens.
Com o semblante calmo no momento em que conversava, relatou que suas
investidas para consegui um trabalho que lhe trouxesse tais direitos não deram
certo. Bastante a vontade disse que a funcionária da prefeitura que sempre a
recebia, costumava a lhe perguntar se realmente iria valer a pena para ela trocar a
liberdade que tinha no ambiente da pescaria, por um ambiente fechado sujeita as
intrigas de colegas, tendo que respeitar os horários impostos e a outras situações
que ela não estava acostumada.
Floraci disse que meditava sobre essas palavras e só conseguia ver a maré a
esperar por ela e por seus colegas pescadores, com os quais mantinha um
relacionamento harmonioso. Naturalmente ela obedecia aos horários das marés, a
força e o capricho da natureza quando se manifestava através dos ventos, chuvas,
206
Floraci Pereira de Souza. Entrevistada em 9 de Jun. 2007.
131
tempestades e quando a fazia voltar para casa sem o fruto da pescaria. Diante da
realidade que vivia e das desventuras que um trabalho ao modelo capitalista poderia
trazer para ela, Floraci se convencia a continuar no trabalho de pescar siri. As
palavras dela denotam possibilidades do que pode ser para essas pessoas a
vantagem de não ter um trabalho no modelo que o mercado impõe.
A vida de Floraci, Cleide, Rosangela, Francisca é como a de muitas mulheres
de Salinas da Margarida, que desamparadas por seus ex-companheiros, viúvas ou
mesmo morando com seus maridos e os seus pais, não medem dificuldades na luta
pela sua sobrevivência e de seus entes queridos. Um recorte da história de vida
dessas mulheres que anuncia reflexões sobre o lugar da oralidade ao propiciar aos
agentes históricos tornarem suas estratégias de sobrevivência conhecidas mediante
suas próprias palavras.
132
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Salinas da Margarida é abastecida de recursos naturais, os quais são em
grande escala provenientes do mar, o que propicia há bastante tempo um meio
estável de sobrevivência à população carente. Nesta localidade, muitas são as
mulheres que assumem o papel de desempenharem com sucesso a liderança de um
tipo de mariscagem, que é catar uma espécie de molusco conhecido na região como
chumbinho. Essas mulheres têm uma participação ativa e efetiva na renda familiar,
provocando um maior envolvimento na comunidade no aspecto do desenvolvimento
econômico, cultural e social. Na mariscagem do chumbinho, muitas são as crianças
que juntas com suas mães, há muito tempo, fazem esse trabalho verificando-se, aí,
a contribuição frequente do trabalho infantil, e da tradição que é passada às
gerações.
Assim, esse trabalho se caracteriza como uma atividade familiar realizada
também por alguns homens. Em conversas mantidas com marisqueiras, elas me
explicaram que a presença destes nas mariscagens se deve ao fato de eles
estarem, por algum motivo, sem condições de desempenharem a pesca de alto mar,
provocada pela falta de barco, da rede ou de outros instrumentos necessários à
pescaria.
A forma que a mariscagem se desenvolve é de maneira rudimentar, nela se
destaca o trabalho artesanal e primitivo. Através de suas atividades, as famílias
buscam com a dignidade do suor de seu briquitar o necessário para se manterem
vivas com qualidade, serem respeitadas como pessoas, atingirem a valorização e
sustentação de sua cultura. As marisqueiras e suas famílias contribuem na formação
da história local e dessa forma oferecem uma ampliação do respeito desta atividade
pesqueira. Pois a consolidação do valor de uma atividade existe a partir do momento
em que o indivíduo que a pratica reconhece e busca o reconhecimento de outrem do
valor de sua produção.
O mar, como patrimônio comum, é palco da permanência dessas famílias que
vivem dos mariscos. É no espaço das areias das praias embebidas pelas lamas dos
manguezais, que elas se lançam vivificando uma tradição que lhes foi passada por
gerações de outrora. Segundo Thompson “com a transmissão dessas técnicas
133
particulares, dá-se igualmente a transmissão de experiências sociais ou da
sabedoria comum da coletividade.”207 Não obstante os avanços contemporâneos, o
mar ainda é a referência central da sobrevivência de muitas famílias salinenses.
Nas conversas mantidas com a ex-marisqueira Rose, percebi a satisfação
desta pelo fato de ter sido marisqueira e ter conseguido no desenrolar de sua vida a
oportunidade de conquistar outros objetivos. Formou-se em magistério, realizou,
assim, seu sonho e o de seus pais, no entanto, não teve oportunidade de trabalhar
como professora, conseguiu montar o seu comércio na capital baiana e em Salinas
negociando entre outras coisas com frutos do mar.
Em contraste com essa realidade, muitas foram às filhas das marisqueiras
que tinham a mariscagem como única forma de sustento e de renda. Dona Dilza
transmitiu, com lágrimas, toda sua insatisfação ao falar sobre a filha que teve
oportunidades de concluir o ensino médio e teve que continuar trabalhando tão
ativamente na maré.
Durante o convívio que mantive com as marisqueiras, senti que o trabalho na
maré era naturalmente incorporado à vivência diária. Elas afirmavam a dificuldade
que era trabalhar na mariscagem do chumbinho, no entanto, procuravam demonstrar
que gostavam do que faziam, mas também queriam galgar outros espaços de
trabalho. A exemplo a marisqueira Cleide trabalhava em uma pousada em Salinas,
mas mesmo assim continuava mariscando, por gostar de mariscar e para ajudar no
orçamento familiar.
Uma das características básicas dessa atividade pesqueira é a noção de não
apropriação do mar, pois ele é concebido pelas pessoas que vivem usufruindo os
seus frutos, como uma dádiva da natureza. A indivisibilidade dos espaços em que
são realizadas as mariscagens flui “naturalmente” na consciência coletiva das
marisqueiras. É deste espaço que se favorecem, centenas delas que se fazem
presentes nas faixas litorâneas de Salinas há muito tempo. Mas nenhuma delas se
diz dona da maré.
A disciplina do trabalho das marisqueiras é regida pela natureza, é o tempo
natural, o tempo das marés que coordena o horário de ir para o trabalho, o horário
207
Edward P. Thompson. Costumes em Comum; estudos sobre a cultura popular tradicional. Companhia das
Letras. São Paulo: 1998, p. 18.
134
de permanência e o horário de voltar para casa onde continua a lida. Entretanto,
elas precisam criar estratégias para conciliarem em sua vida cotidiana, o tempo
natural e o tempo criado pela sociedade capitalista. Sabem que se não seguirem
esse horário, perderão o programa preferido, o horário da escola, do transporte, das
refeições dos filhos e do marido, o horário marcado do encontro com o namorado,
da conversa com amigos, da ida à festa. Enfim, é a dinâmica da pulsação do viver
que caracteriza o dia-a-dia dessas mulheres que buscam associar o tempo social ao
tempo natural para darem prosseguimento em suas vidas.
Fazer essas análises mais apuradas e cautelosas sobre o viver das mulheres
marisqueiras de Salinas da Margarida, me propiciaram a oportunidade de
desmistificar determinados conceitos, que construí durante o período em que estive
trabalhando como professora nessa cidade. Dentre esses conceitos destaco a visão
que tinha quando presenciava em muitos momentos, várias marisqueiras na sua lida
diária, enquanto muitos homens não desempenhavam função alguma; ou pior, como
me parecia, se encontravam em portas de bares se distraindo, bebendo e jogando
com amigos.
No decorrer da pesquisa, percebi que este comportamento se justificava.
Alguns homens apontaram o fato de estarem fora da lida, nos horários que as
marisqueiras trabalhavam, era por já terem desenvolvido ou ainda irem desenvolver
suas funções. Pelo fato de muitos serem pescadores trabalhavam também no ritmo
das marés, atendiam o tempo natural e por isso nem sempre o horário do trabalho
deles coincidia com o horário das mulheres. Muitas foram às que manifestaram
compreensão ao comportamento desses homens, não entrando assim, na
competitividade de funções, nem na guerra dos sexos para ver quem domina mais
em casa ou na sociedade. Nair Gonçalves faz uma abordagem ao que se refere à
conscientização da mulher quanto ao seu valor na família e na sociedade:
O papel da mulher já é, e continuará sendo, cada vez mais, lutar pelo
seu espaço na família e na sociedade. Lutar pelo seu espaço não
significa declarar guerra aos homens. Ao contrário, significa
proporcionar que cada um seja inteiro no espaço que ocupa e, o que
135
é muito importante, passar essa atitude frente à vida para as
gerações futuras. 208
Gonçalves faz um comentário ao mesmo tempo em que lança uma diretriz
conscientizadora para o homem e para a mulher. À mulher, ela estimula a não
querer ser melhor do que o homem, e sim buscar o melhor para si própria, para a
família, para a sociedade e deixar marcas positivas de um caráter sensato para o
futuro dos que virão. Ao homem, ela faz uma abordagem sugerindo não temer a
aproximação e a permanência cada vez maior da mulher em espaços antes
considerados do homem. Esse comentário de Gonçalves está de acordo com a
posição de muitas mulheres marisqueiras salinenses que conquistam seu espaço.
Elas manifestam o melhor de suas habilidades, não com o fim de sublevar-se ao
homem, e sim pelo fato de ter a satisfação de poder contribuir financeiramente na
renda familiar, ser um sustentáculo na cultura de seu povo e participante ativo na
marcha da história.
Contudo, com pesar determinadas marisqueiras me relataram experiências
vividas em suas relações afetivas que marcaram de forma dolorosa a vida delas.
Envolvimentos que vivenciaram os quais submeteram-nas a um exaustivo processo
de exploração físico e emocional, e era nas águas salinenses que choravam suas
lágrimas de dor, decepção e mágoa. Também nessas águas muitas conseguiram
enxugar as lágrimas, quando decidiram romper com os laços que as amargurava e
provocava tristeza em suas vidas. Descobriram, assim, que o poder de liberta-se e
buscarem a felicidade estava em cada uma delas e não no outro. Algumas que tive a
oportunidade de conversar, percebi que pouco a pouco restabeleceram a auto
estima e viabilizaram condições para libertarem-se daqueles que as mantinham
cativas.
Muitas foram às queixas e desabafos das marisqueiras que atentamente ouvi
e registrei. Em muitos momentos me senti como se fosse sua porta-voz, meio pelo
qual, suas reclamações, reivindicações, esperanças, crenças, tristezas, desgostos,
enfim, seu viver chegariam a determinadas pessoas, ou simplesmente podiam
desabafar. Busquei ao longo do trabalho manter-me como historiadora, num estado
de imparcialidade possível, para poder sentir o fluir de suas memórias sem interferir
208
Nair Teresinha Gonçalves . Escutando a voz das mulheres.In: STREY, Marlene Neves et al (Orgs).
Construções e perspectivas em gênero. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2001, p. 9.
136
muito na rememoração de suas vidas. Para que assim, tivessem a certeza de
estarem conversando com alguém que as respeitava acima de tudo.
O fato de ter trabalhado em Salinas e assim ser conhecida por muitos,
facilitou o meu trabalho de pesquisa, pois houve confiança e respeito mútuo nos
encontros e na convivência que mantive com os entrevistados. Notei que nos últimos
anos, as marisqueiras têm ganhado mais espaço e respeito na cidade. Mostra disso
é a realização do festival do marisco que ocorre anualmente em Salinas da
Margarida com a criação de vários pratos. São crescentes os pontos de vendas do
chumbinho e desta forma cresce a divulgação e consumo do produto. O festival do
marisco culminou na publicação de um livro de receitas, o que valorizou ainda mais
a cultura local e trouxe uma realização pessoal, engrandecendo aqueles que
trabalham diretamente com o chumbinho e os que colaboram com o festival usando
a sua criatividade ao idealizar novas receitas.
Foi possível perceber o quanto essa atividade é imprescindível na vida dessa
população e como o meio ambiente está associado a suas vidas. Apesar das fortes
investidas do poder capitalista para dominar o espaço natural salinense, as
marisqueiras não se deixaram sucumbir e buscaram, a medida que foi passível,
viabilizarem meios para assegurarem o direito de continuarem extraindo o seu
alimento da natureza. Essa atividade mostra o quanto a natureza precisa ser de
maneira prudente mantida para que a cultura da mariscagem do chumbinho prossiga
sustentando vidas.
As análises realizadas sobre as mulheres marisqueiras de Salinas da
Margarida, descortinam dimensões do cotidiano de suas vidas, possibilitando que se
adentre em suas histórias e ponha em destaque as estratégias por elas criadas para
garantirem a sua sobrevivência e a de suas famílias. São alternativas as quais
apontam que apesar de muitas portas da sociedade terem sido fechadas ao longo
de suas vidas, para elas, a descrença nos sonhos não as dominaram, e continuam a
extraírem da natureza recursos que asseguram de maneira honesta a manutenção
de suas vidas.
Um recorte da história de vida dessas mulheres anuncia reflexões sobre o
lugar da oralidade ao propiciar aos agentes históricos tornarem suas estratégias de
sobrevivência conhecidas mediante suas próprias palavras. Como diz Paul
Thompson:
137
A história oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela
lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo
de ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a
maioria desconhecida do povo. Estimula professores e alunos a se
tornarem companheiro de trabalho. Traz a história para dentro da
comunidade e extrai a história de dentro da comunidade.209
A história das classes sociais populares nos últimos tempos tem ganhado
força, respeito e espaço com a História oral. A produção historiográfica que outrora
em sua maioria apenas exaltava a história mitificada dos que se intitulavam ou eram
canonizados como heróis, agora passa a olhar para outros ângulos. Com essa nova
vertente, os silenciados hoje têm voz ativa, construindo com seus feitos, mesmo
parecendo simples em seu impacto social, são considerados importantes
contribuintes e edificadores da história. Assim, podem fornecer para as futuras
gerações, através dos registros históricos de suas vidas, orientações com exemplos
que foram por eles vivenciados para que sirvam como referencial para outras
pessoas, na busca da concretização de novas metas que poderão ser atingidas com
êxito, ainda que sejam “coisas deixadas “de lado”. Mas nesse inventário de
aparentes miudezas, reside a imensidão e a complexidade através da qual a história
se faz e se reconcilia consigo mesma.”210
Hoje, as pessoas simples aparentemente banais têm suas vidas sublimadas
pelo respeito, a sua condição de sujeito histórico, até porque “A história vista de
baixo ajuda a convencer aquele de nós nascidos sem colheres de prata em nossas
bocas, de que temos um passado, de que viemos de algum lugar.” 211 Uma lágrima
de um homem considerado comum pode ser invisível aos olhos da sociedade que
ele vive, mas pode não ser apenas uma lágrima diante dos olhos de um historiador
envolvido com a produção historiográfica contemporânea.
Muito mais ainda há para ser analisado a respeito dessas pessoas que, com
simplicidade, persistem como o tempo, vivendo o seu dia-a-dia. Marcado por um
cotidiano no qual, o briquitar com os chumbinhos lhes favorece a certeza maior
209
Paul Thompson,. A voz do passado: História Oral. Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1992. P. 44.
Mary Del Priore, História do cotidiano e da vida privada. In: CARDOSO,Ciro Flamarion e VAINFAS,
Ronaldo (Org.). Domínios da História: Rio de Janeiro: Campus, 1997. P. 274.
210
211
Jim Sharpe, A história vista de baixo. In; BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo:
UNESP, 1992, p. 62.
138
para a sobrevivência, o pão de cada dia, conquistado com a dignidade de um
trabalho que enriquece a história local e regional.
139
FONTES
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Salinas da Margarida. Entrevista em 31 de maio de 2002.
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Floraci Pereira de Souza. 28 anos de idade, marisqueira, residente em Porto da
Telha. Salinas da Margarida. Entrevistada em 9 de Junho de 2007.
140
Francisca de Jesus Santos (D.Elza), 58 anos de idade, ex-marisqueira, residente em
Porto da Telha. Salinas da Margarida. Entrevista em 31 de maio de 2002.
Gilberto Costa de Jesus, pescador, 18 anos de idade, residente em salinas da
Margarida. Entrevistado em 24 de maio de 2008.
Heloisa Marcelina Ramos ( Dona Amor), marisqueira, 70 anos de idade, residente
em Salinas da Margarida. Entrevistada em 25 de setembro de 2007.
Júlia Pinheiro dos Santos, 39 anos de idade, marisqueira, residente em Salinas da
Margarida. Entrevista em 13 de fevereiro de 2003.
Lúcia Maria Caldas Costa. 42 anos de idade, marisqueira, residente em Salinas da
Margarida. Entrevista em 24 de janeiro de 2008.
Maria José Caldas Costa. Marisqueira, residente em Salinas da Margarida.
Entrevistada em 4 de outubro de 2007.
Maria José Pinheiro, 53 anos de idade, marisqueira residente em Salinas da
Margarida. Entrevistada em 13 de fevereiro de 2003.
Raimundo Nonato Ferreira, 84 anos de idade, ex-funcionário da Companhia Salinas
da Margarida, residente em Salinas da Margarida. Entrevista em 7 de junho de 2003.
Reinalda Áurea da Silva, 67anos de idade, ex-marisqueira, residente em Salinas da
Margarida. Entrevistada em 7 de junho de 2003.
Rosangela Áurea Caetano (Rose), 34 anos de idade, ex-marisqueira, comerciante,
residente em Salvador. Entrevista em15 de fevereiro de 2003.
Serafim de Souza Conceição, militar da reserva, 83 anos de idade, residente em
Salinas da Margarida. Entrevistado em 26 de setembro de 2007.
Sofia Lima Pinheiro, 82 anos de idade, ex-marisqueira, residente em Salinas da
Margarida. Entrevista em 13 de fevereiro de 2003.
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