o mAis ANtiGo voCAbuláRio DA
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o mAis ANtiGo voCAbuláRio DA
O MAIS ANTIGO VOCABULÁRIO DA INSÂNIA Sondagem na alma dos antepassados nas palavras para “insano” DOUDO, o possesso LOUCO, o iluminado TOLO, o vazio TROSMA, o grave denegrido O MAIS ANTIGO VOCABULÁRIO DA INSÂNIA (DOUDO, LOUCO, TOLO, TROSMA) De “insano” as palavras mais velhas julgam-se de origem ignota. Visíveis são os étimos das latinas, os das eruditas ou expressivas, o que nada nos diz das épocas mais recuadas e ricas. Ficam fora daqui os latinos bobo, demente, imbecil, parvo, o incerto pateta, os mais recentes maluco e palerma e o expressivo tonto. Num breve elenco tento ver através da etimologia, o que os avós viam nas alterações mentais, noções que não são só do passado, pois que hoje vivem nas estruturas profundas da língua, nas relações de sinonímia1. DOUDO, O POSSESSO Hoje está substituído por doido na mor parte do domínio, primeiro onde OU monotongou. A comutação, sabe-se, teve por intuito manter oposições. Na Galiza, que não monotonga, Sarmento registou doudo no Morrazo, e Sobreira no oeste de Ourense, sem muitos rastos posteriores. Voz expressiva, documentada tarde (inícios do séc. XVI), sói ser declarada de origem obscura. Etimologizaram nela H. Meier, Y. Malkiel e Coromines, sem resultados. Parece certo que nos casos desesperados se impõe mudar o rumo. Creio-a voz pré-romana, talvez do céltico hespérico final *DÓWITO- “cativo, possuído”, que antes fora “servo, escravo”. Contêm-na os hispanos Dovido -onis, Doveto -onis, Dovida, Dovetos, Doviterus, Doviderus, Doiderus, Dovidena, Dovidona, Doidena, etc. E também Dovilo -onis. Coromines viu serem sempre antropónimos de servos familiares2, próximos logo do gr. δοØλος “escravo”, que pelo micénico sabemos vir de *dowelo-. A δοØλος não se lhe dá origem indo-europeia, decerto por não ter em conta a palavra gaélica para “servo”, que era claramente doír, adjetivo em -O- e -Ā, que recua a *DOWIRO-. Vendryes-Lambert viam aí o prefixo pejorativo *DU- e o nome WIROS, “homem”. Mas o conceito “sub-homem” para nomear o escravo carece de paralelos velhos, e é certamente anacrónico. Os nomes do “servo” andavam outras vias, os mais sinónimos de “moço”. Holder (depois Tovar) isolara o tema dowi-, que traduzia “forte”, sem muito eco. Quadra insistir na semântica para orientar-se nas trevas. Parece indo-europeu. Em Pokorny vê-se a raiz *deu- “fazer, realizar; honrar, reverenciar” (Pokorny 218). Para integrar as aceções, bom é pensar qual os antigos. Da raiz são vozes tão várias como bom, bonito, belo, beato, do grau zero e valor “útil, eficaz”3. Noção básica é “ação eficaz (ao serviço desse a quem se deve)”. Há grau pleno, acréscimo I; parece um tema verbal do qual *DÓWITO- será particípio. Nos 1 A linguística profunda, em tanto estudo insinuada, nomeadamente em Chomsky, ainda dista de ter plena autonomia epistemológica. Além da sintática, é decerto a semântica, o que pede uma verdadeira psicologia lingüística. Precária e a par forte, a disciplina sonhada pede multiplicar as pesquisas parciais e dispensa ser exaustivos. 2 3 Actas del I Coloquio sobre Lenguas y Culturas Prerromanas de la Península Ibérica, Salamanca, 1976, p. 381 e ss. De *dw-enos veio bonus, e deste bom. Bonito vem de bom. Belo de bellus, que foi o diminutivo *duellos, de *dw-enelo-. Beatus, de beare “ser bento”, de *dweyeto-. Todos estes casos apresentam a raiz no grau zero. nomes há outros sufixos, simples e complexos: -TERO-, -TON-, -TĒNO- e -LON-. No Império já sofria *DÓWITO- a lenição da oclusiva intervocálica, que passou ao românico que a par nascia: *DÓWITO- > *DÓWIDO. A proparoxitonia robora-a o topónimo galego Dodro, de *DÓWITERO-. *DÓWIDO deu *DOUDO ainda no céltico, como se deduz da sorte do uau. Os baixo-latinos Mauri-captus e mente captus traduzem doudo. Maurī captus “possesso do Mouro”, noutras palavras, “enfeitiçado; possesso do Escuro (demonificação tradicional dos deuses pagãos)”, na prática aplicado aos imbecis4. Mentecapto (mente captus “possesso na mente”) é voz erudita do tempo baixo-latino. O doudo era um sujeito diminuído na sua capacidade mental pela posse morbosa de um espírito ou demo. LOUCO, O ILUMINADO Coromines descarta louco vir de uluccus “coruja, moucho”, pelo ditongo e outras razões. Ou de Glaucos e glaucus, por razões semânticas. Do étimo arabigo que o seduz no mesmo árabe não há certeza de ter existido. Português e castelhano supõem *laucu-, cuja estrutura, tirado o árabe, pede buscar no campo indo-europeu. Aí só cabe *leuko- “claro; luzente, luzidio”, registado em todos os ramos com várias especializações, do que surgem três questões: a) existiu no céltico e no céltico hespérico?, b) como é que *leuko- mudou para *laucu-?, e c) qual o processo semântico pelo que chegou a significar “insano”? a) Leuko- foi de todos os dialetos célticos. Vê-se em Hispânia, nas Gálias transalpina e cisalpina e na Panónia. César, Estrabão, Plínio, Tácito e Ptolomeu falam-nos dos Leuci, tribo que tinha por centro Toul, no norte francês, o Tullum Leucorum (< *TULLON LEUKON “o buraco dos Leucos”). E houve na Panónia o topônimo Leucono-, de lugar incerto, que antes terá sido teónimo. Cabe adir o baixo-latim leuca-leuga, de origem gaulesa, que seria primeiro “(distância) vista (de um alto)”. Na Hispânia abunda o antropónimo Loucios, que já mostra a confusão do ditongo EU em OU, generalizada no séc. II. Uma inscrição do Berzo fala-nos numa centúria Louciocelo. As neocélticas têm rastos claros. O gaél. lóchet “relâmpago” já fora o gaulês Leucetius, Loucetius, epíteto do deus assimilado a Marte, que se dono do lampo era Táranis5. O galês llug “luz” substantiva *LEUKO-; têm-no am-lug “óbvio” (< *AMBI-LEUKO-) e go-lug “vista, visão: olhar” (< *WO-LEUKO-). b) Caído EU com OU, *LOUKO- tomaria rumos diversos nas neocélticas e no nosso céltico final. No céltico P remanente (o britónico), *LOUKO- passou no séc. I para *LÜGO-, de rápido curso ao llug atual. No gaélico, pelo 400, *LOUKO- passara para *LŌKO-. A ter subsistido, teria ditongado em *luach. O céltico hespérico chegou aos arredores do ano 10006 –dado ainda não registado na história da nossa língua–, com um grau de arcaísmo difícil de ver. Por caso, o célt. LOUSĀ do séc. I permanece quase igual nos falares galegos. *LOUKO- também. A ter ficado 4 Tem originado o étnico leonês maragato, num princípio nome denegridor dado por vizinhos hostis. 5 6 Cf. gót. liuhaþ “luz”. Ver a etimologia de Orraca no meu livro As Tribos Calaicas, Edições da Galiza, 2008, Barcelona, p. 525 e ss. *LEUKO-, assim teria passado ao latim, mas *LOUKO- não podia entrar com tal ditongo, que no séc. II já não era latino. O latim tivera-o, mas reduzira-o a Ū. O latim imperial substituía 7 OU pelo seu AU . Tanto se passou ao latim na 1ª metade do 1º milênio (*LOUKO- > *laucu> louco), quanto se passou ao românico desde o último céltico (*LOUKO- > louco), o fruto é o mesmo. c) O dito seriam vãs piruetas neogramáticas se não topássemos com adequadas aceções metafóricas de *LEUKO- e com a ideia antiga da loucura (e da epilepsia, hoje separada, mas dantes intimamente unida). Nas línguas indo-europeias antigas a cor branca, a da luz, tinha conotações hoje difíceis de entender, no mundo céltico reforçadas. “Branco” era a par “belo, formoso” e também “santo, sagrado, numinoso, cheio de divindade”. A raiz do último valor está precisamente em que os indo-europeus concebiam o divino como luz. *Dyeus “céu”, *dyēs “dia”, *deiwós “deus”, *deiwes “divino; bento pelo divino”, vêm todos de uma raiz cuja cifra flutua pela quantia de variantes em que se apresenta. Pokorny (183-187) assim o traz 1. *dei-, *deiə- e *dēi-, *dī- “brilhar; dia, sol; Deus”, mas outros autores enunciam-na também *dyeu- e *deiw-. Os historiadores da cultura dizem que a loucura (insânia agitada) antes não era julgada patologia, mas uma forma de conhecimento e mesmo de felicidade. Breve, o louco era um possesso possuído por um deus. A tal deus, tal loucura. A epilepsia, na que o corpo parece movido por outrem, deu a idéia de as alterações mentais serem fruto de posses de deuses (ou demos). Hoje distinguimo-las; daquela a epilepsia era parte da loucura e lhe fornecia a mais óbvia das imagens. No mundo bíblico, os deuses são decerto demos, mas a ideia não difere. O editor italiano Roberto Calasso cita Jung: “Os que eram deuses viraram em doenças”. E diz: “E não é que os modernos saibam mais, mas porque sabem menos.” Foucault notou a estima dos pagãos pela loucura. Alguns assertos de Calasso induzem respeito para o delírio, ao menos como sintoma. Ainda na Idade Média, o bobo de paço –ao cabo um louco– tinha da “liberdade do bobo” que lhe permitia ficar impune ao declarar a verdade dos poderosos, que escutando-o se apuravam, se lhes tocava, ou se divertiam se tocado era outrem, mas que o respeitavam pela condição sagrada, melhor, santa, da insânia. Rasto disso é a expressão castelhana “de burlas veras”, que alude ao dizer cousas certas que ferem sob o saio protetor da brincadeira emoliente. Desde aí, a função do bobo pode ver-se noutra luz. Não diversão do senhor, mas obriga a sofrer. Além de inviolável, tinha a aceita vantagem de terapêutica. Em suma, o indo-europeu *leuko- “claro, branco, cheio de luz” também era “cheio de divindade”. Era céltico e hispano-céltico. Nos inícios da era, ao confundir-se o ditongo EU em OU, passou a *LOUKO-, forma que durou no céltico residual da cornija cantábrica. Quer de uma adaptação latina *laucu-, quer do resto de céltico montanhês (provavelmente deste, pelo arcaísmo semântico), a língua recebeu louco, que ainda é “insano agitado, delirante, movido por uma força”, com notas de paixão, imoderação, exagero, rastos do sentido etimológico “iluminado, possuído, por um deus”. Louco nunca foi “tolo”. A prol da etimologia árabe, Coromines tentou provar que o cast. loco era, além de “amens, furiosus, vesanus”, também “tonto, estulto”8. Bem que diferença algo apagada em castelhano9, nenhum dos casos aduzidos o justifica. 7 Cf. lapides lausiae na Lex metalli Vipascensis, do séc. II. Lausia latiniza o adj. céltico *LOUSIĀ, antes *LEUSIĀ, do indo-europeu *pleus- “depenar; cindir” (Pokorny 838). 8 9 DCECeH, III, loco, p. 683. Às vezes, louco deve traduzir-se loco de atar ou loco furioso. TOLO, O VAZIO Dito de etimologia obscura ou controversa, tal caracterização já não se justifica. Há tempo que se sabe vir do céltico *TULLO-, adjetivo que significava “oco, vazio, vão”, e cujo neutro substantivado *TULLON significava “buraco, cavidade”. No caso atual é claro que cumpre interpretar “vazio (de miolos)”, e que se opõe às palavras anteriores. Sempre foi sinónimo de néscio, tonto, parvo e similares, bem que sem a carga acusatória de néscio. *TULLO- também aparece na toponímia como feminino substantivado. *TULLĀ foi nome de rios na Suíça (J. U. Hubschmied). Aí aludia à deusa céltica figurada nos rios, qualificada de “cava”. A etimologia indo-europeia de *TULLO- apresenta alguma obscuridades e não é necessária para o intuito deste estudo. TROSMA, O GRAVE MONTANHÊS DENEGRIDO Hoje só galego. Estraviz sintetiza: “pasmado, estonteado, alelado; aparvalhado, pateta, inábil, torpe, sem jeito; muito ignorante; sem inteligência”. Como em tantas palavras expressivas, nem é antigo na tradição léxica, nem lhe conheço estudos. Aparece em Valadares e é Carré que lhe dá a definição generalizada. C. Garcia regista-a nas falas locais de todos os rumos (Feais, Cúrtis, Santiago, Sobrado dos Monges, Burão, Codesseda, Ramirães) e cita as formas tosmo e trurma. A primeira, de Codesseda, insinua um *trosmo anterior, com secundária flexão de gênero. Trurma, de Nove Fontes, Arçua, com trivial rotacismo, robora na definição “tonto” o caracter epiceno e, o que é mais importante, o timbre fechado da vogal tónica. Mais comum é o sinónimo prosma, que é também português europeu dialetal. Estraviz define-o: subst. “condição de pesado, fleuma; léria, lábia”; adj. “lento, pesado no atuar e falar; babiolo, papaleisão”. E há prosmada e prosmeiro. Este é “pesado, enfadonho, estólido”; e também, invertido o rumo, “chocarreiro, taimado, dissimulado, velhaco”, explicável desde “pessoa que ri dissimuladamente do prosma”. Muito cismei em prosma sem fruto. Não se vê elo semântico com proximus. Ora creio-o cruzamento de trosma com pesado e pesadume. A condição difficilior de trosma é certa. Volvendo a trosma, pois que tanto as línguas modernas quanto o latim nada dão, busco étimo no fundo pré-romano e topo o célt. *TRUDSMIĀ, étimo do gaél. ant. trummae “peso, pesadume”, nome abstrato do adj. tromm “pesado” (*TRUDSMO-), ao que substituía metonimicamente. *TRUDSMO- ecoa nas outras neocélticas e por substrato nas românicas. A raiz *treud- (Pokorny 1095), indo-europeia ocidental10, valia “sobrecarregar, agravar” e “pôr em aperto”. O lat. trudō “empuxar” irá de “pesar rechaçando” a “rechaçar”. No céltico era só “carregar” > “pesar”. Outro rumo há no eslavo (“odiar”) e no germânico (“causar ódio”). 10 Latina, céltica, germânica e eslava. Câmbios fonéticos. As formas do adjetivo vêm de *TRUDSMO- (> *TRUSMO-), com raiz no grau zero e sufixo -smo-. Com alongamento compensatório da vogal passou a *TRŪMO- em britónico e no provençal trum. Às avessas, o protogaélico guardou o O breve e grupo -sm-: *TRUSSMO- > *TRUSMO- > *trummo- > *tromm(ĕ). A estranha preservação de -sm- (na verdade -dsm-) também se deu em calaico. *TRUDSMIĀ “pesadume” passaria logo a *TRUSSMIĀ já no céltico. Em românico o iode postónico caiu sem fechar a vogal tónica breve por metafonia do -A. Variações semânticas O britónico consuma precocemente o câmbio semântico “pesado” > “triste”: galês trwm, córn. trom, bretão troum “gravis, tristis”. Coromines provou daí vir o provençal antigo trum “escuro, lôbrego”, substantivado “trevas”, que pede o curso “pesado” > “triste” > “escuro, lôbrego”. Não é de notar aí a deriva, espontânea e universal (cf. pesadume, pesar), sim a precocidade e solidez. O gaél. trom(m) difere. É “pesado”, com harmónicos “severo; penoso” e “poderoso, enorme”, às vezes “difícil”. Nas neocélticas não há a denegrição geral das românicas (“pesado” > “lento” > “parvo, pasmado, tonto”). Logo –a dar certa esta etimologia– o câmbio de significado produziu-se em contexto plena ou dominantemente românico. É ousado tirar consequências destes processos semânticos? Não ocultarei o que insinua o mero cotejo. No mundo gaélico soberano, de “pesado” saíram harmónicos graves, sempre respeitosos. No britónico, arraigado mas já ferido da transculturação, “pesado” virou objetivamente para “triste” e ainda “escuro”, com perdas objetivas de valor que não entranham imediato desrespeito social. No mundo galego “pesado” carregou-se de míngua, e foi útil para discriminar socialmente os que apareciam culturalmente diferentes, os rudes “montanheses” inábeis na língua latina ou românica. CONCLUSÕES O doudo era o diminuído na capacidade mental pela posse morbosa de um espírito ou demo. Cunhou-se no período do céltico final, no tempo do predomínio latino e da religião cristã. O louco era o possuído e iluminado por um deus, que o tornava santo, logo intocável. Concepção de origem remota, pagã, perdurou adaptada aos tempos posteriores, em campo que permaneceu subliminal por perigoso. O tolo era o diminuído na capacidade mental por ausência de miolos, julgado inocente e inócuo. Provavel é que tenha pertencido a todas as épocas, as soberanas e as do céltico crepuscular. O galego trosma documenta um processo longamente doloroso, o da transculturação secularmente arrastada, que se inicia com a conquista.
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