LITERATURA
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Terceirão – Caderno 8 – Código: 830385813 LITERATURA ÍNDICECONTROLE DE ESTUDO Aula 51 (pág. 51) Aula 52 (pág. 55) Aula 53 (pág. 61) Aula 54 (pág. 64) AD TM TC Aula 55 AD TM TC Aula 56 AD TM TC Aula 57 AD TM TC Aula 58 (pág. 73) (pág. 79) (pág. 87) (pág. 93) AD TM TC AD TM TC AD TM TC AD TM TC Professor: CLARICE LISPECTOR Introdução © Folhapress 1 LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 51 Embora tenha nascido na Ucrânia, Clarice Lispector (1920-1977) sempre se considerou brasileira e pernambucana. Com sua família, chegou ao Brasil com um ano e dois meses de idade e fixou-se primeiramente em Maceió. Não se adaptando à cidade, mudaram-se para Recife, onde a caçula foi criada e permaneceu até os 15 anos, quando passaram a viver no Rio de Janeiro. Clarice escreveu seu primeiro romance – Perto do coração selvagem – com apenas 20 anos de idade. O livro foi publicado logo depois e recebido com surpresa e admiração pela crítica especializada. Formada em Direito – profissão que nunca exerceria – casou-se com seu colega de classe Maury Gurgel Valente, que se tornaria diplomata, com quem teve dois filhos. Juntos, viajaram pelo mundo, morando em vários países da Europa e também nos Estados Unidos, sem nunca parar de escrever. Foi, entretanto, ao se separar em 1959 e voltar ao Rio de Janeiro com os filhos, que a escritora passou a trabalhar como jornalista e desenvolveu mais sua carreira literária. Logo após a publicação de seu último livro – A hora da estrela – Clarice morreu, vítima de um câncer no ovário, em 1977, no Rio de Janeiro. 51 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:51 AM sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro. Não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe tempo e nem para eu saber sequer que estou criando porque então viverei! Só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende. E que tudo venha e caia sobre mim porque basta me cumprir e então nada impedirá o meu caminho até a morte-sem-medo. De qualquer luta ou descanso eu sempre me levantarei forte e bela como um cavalo novo. Pode-se dizer que as principais personagens de Clarice Lispector são mulheres. A escritora especializou-se em investigar os dramas internos de suas criações e acompanhá-las em seu processo de transformação. O crítico Affonso Romano de Sant’anna dividiu a estrutura dos contos da autora em quatro grandes etapas. Num primeiro momento, a personagem é apresentada em uma dada situação. A preparação de um evento que romperá essa situação corresponde à segunda etapa. A seguir, temos a ocorrência do evento (terceira etapa) e os desdobramentos que ele traz à personagem (quarta etapa). 2 LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992. O trecho anterior trata de um exemplo concreto de utilização do monólogo interior. Joana, narradora e protagonista do livro, conta sua vida em dois planos diferentes: a infância e o início da vida adulta, refletindo sobre si mesma e substituindo o tempo cronológico pelo psicológico. Sua consciência desenvolve um movimento que leva a própria subjetividade a uma crise, uma vez que seus desejos e decisões se confundem constantemente. O fluxo de consciência e o monólogo interior Fluxo de consciência é um conceito de natureza psicológica, que nomeia os múltiplos aspectos da atividade mental que, por meio de associações livres, muda de foco com frequência. Monólogo interior é a técnica literária de apreensão e apresentação desse fluxo. Por meio dela, o leitor é colocado em contato direto com o universo íntimo da personagem. Outro aspecto muito recorrente no trabalho de Clarice Lispector é a utilização do tempo psicológico em detrimento do cronológico. Isso significa que as narrativas não obedecem à cronologia porque o tempo que as organiza é aquele que transcorre no interior da personagem, de acordo com sua imaginação, seus desejos, angústias e ansiedades. Esse tempo pode se alongar ou se encurtar de acordo com o estado de espírito de cada um. Passado e futuro se fundem normalmente sem obedecer a nenhuma ordem. 3 O existencialismo é uma linha filosófica de pensamento desenvolvida entre os séculos XIX e XX, popularizada na obra do autor francês Jean-Paul Sartre (1905-1980). Para ele, "a existência precede e governa a essência". Todos possuímos uma essência que pode ser transformada e redefinida pelas experiências da vida. Em A paixão segundo G.H., obra de grande importância, Clarice exercita seu existencialismo literário ao compor uma personagem bem-sucedida profissionalmente, que não conhece profundamente a si mesma e que, numa rápida incursão pelo quarto da empregada que se demitira, vê uma barata saindo do armário. A partir desse acontecimento banal, G.H. percebe-se completamente sozinha no mundo. Perto do coração selvagem (1943) Não, nenhum Deus… Quero estar só. E um dia virá sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave. Um dia o que eu fizer será cegamente, seguramente, inconscientemente pisando em mim e na minha verdade. Tão integramente lançada no que fizer que seja incapaz de falar. Um dia virá em que todo o meu movimento será só criação e nascimento. Eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim e provarei a mim mesma que nada há a temer. Que tudo que eu for será sempre onde haja uma mulher com o meu princípio. Erguerei dentro de mim o que sou e a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas – água pura submergindo a dúvida, a consciência. E quando eu falar serão palavras não pesadas e lentas, não levemente TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 52 O existencialismo A paixão segundo G.H. (1964) Então, de novo, mais um milímetro grosso de matéria branca espremeu-se para fora. Santa Maria, mãe de Deus, ofereço-vos a minha vida em troca de não ser verdade aquele momento de ontem. A barata com a matéria branca me olhava. Não sei se ela me via, não sei o que uma barata vê. Mas ela e eu nos olhávamos, e também não sei o que uma mulher vê. Mas se seus olhos não me viam, a existência dela me existia – no mundo primário onde eu entrara, os seres existem os outros como modo de se verem. E nesse mundo que eu estava 52 LITERATURA 9/9/13 10:51 AM conhecendo, há vários modos que significam ver: um olhar o outro sem vê-lo, um possuir o outro, um comer o outro, um apenas estar num canto e o outro estar ali também: tudo isso também significa ver. A barata não me via diretamente, ela estava comigo. A barata não me via com os olhos mas com o corpo. E eu – eu a via. Não havia como não vê-la. Não havia como negar: minhas convicções e minhas asas se crestavam rapidamente e não tinham mais finalidade. Eu não podia mais negar. Não sei o que é que não podia mais negar, mas já não podia mais. E nem podia mais socorrer, como antes, de toda uma civilização que me ajudaria a negar o que eu via. Eu a via toda, a barata. A barata é um ser feio e brilhante. A barata é pelo avesso. Não, não, ela mesma não tem direito nem avesso: ela é aquilo. O que nela é exposto é o que em mim eu escondo: de meu lado a ser exposto fiz o meu avesso ignorado. Ela me olhava. E não era um rosto. Era uma máscara. Uma máscara de escafandrista. Aquela gema preciosa ferruginosa. Os dois olhos eram vivos como dois ovários. Ela me olhava com a fertilidade cega de seu olhar. Ela fertilizava a minha fertilidade morta. Seriam salgados os seus olhos? Se eu os tocasse – já que cada vez mais imunda eu gradualmente ficava – se eu os tocasse com a boca, eu os sentiria salgados? em um radinho que mantém sob o travesseiro, anúncios que não entende na Rádio Relógio. Depois de ser despedida, conhece o metalúrgico Olímpico de Jesus, também nordestino, ambicioso para se integrar à realidade do Sul e tornar-se deputado. Embora não conseguissem estabelecer um diálogo efetivo, tornaram-se namorados. Logo, porém, ele reconhece a incompetência e feiura de Macabéa, trocando-a por Glória, uma amiga dela. Aconselhada pela própria Glória, Macabéa procura uma cartomante, que resolve animar a moça com a perspectiva de um futuro sorridente, profetizando que a nordestina encontraria um estrangeiro alourado de “olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos”, muito rico e com quem se casaria. Macabéa que “nunca tinha tido coragem de ter esperança”, sai feliz da consulta, pois “a cartomante lhe decretara sentença de vida”. Na sequência, ao atravessar a rua distraidamente, é atropelada por um automóvel Mercedes. Várias pessoas observam a moribunda, o que ainda não acontecera enquanto vivia. Alguém coloca uma vela acesa junto ao seu corpo. Desta maneira, Macabéa alcança, com a própria morte, a sua hora de maior destaque, sua hora de estrela. Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar espaço. No espelho distraidamente examinou as manchas do rosto. Em Alagoas chamavam-se “panos”, diziam que vinham do fígado. Disfarçava os panos com grossa camada de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o pardacento. Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava. De dia usava saia e blusa, de noite dormia de combinação1. Uma colega de quarto não sabia como avisar-lhe que seu cheiro era murrinhento. E como não sabia, ficou por isso mesmo, pois tinha medo de ofendê-la. Nada nela era iridescente2, embora a pele do rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava. Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio. Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha aquela coisa delicada que se chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela. LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 16. ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. No excerto, ao olhar detalhadamente o inseto que encontrara, a personagem procura a si mesma e, de certa forma, passa a se confundir com a barata. Ao observá-la e defini-la em sua feiura e estranhamento, é a si mesma que observa e define. O ápice da narrativa seria a fusão dos dois seres na boca de G.H., numa atitude desesperada de compreensão de sua existência para transformação de sua essência. A hora da estrela (1977) Clarice Lispector exercita a metalinguagem em muitas de suas obras, mas é em A hora da estrela que desenvolve mais profundamente a questão da construção da narrativa. Isso se dá porque Rodrigo S.M., um narrador criado pela autora, se prepara para contar a história de Macabéa, uma datilógrafa nordestina, que tenta ganhar a vida no Rio de Janeiro. O livro acaba contendo tanto a história do narrador como a da personagem, mas destaca significativamente o processo de construção da obra. A personagem é concebida como um exemplo de insignificância e falta de glamour. Sonha, de forma pueril, em ser artista de cinema e ouve, encantada, LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 53 LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 1. Roupa íntima feminina que, numa só peça, faz as vezes de saia e de corpete. 2. Cujas cores são as do arco-íris ou que reflete essas cores. A apresentação de Macabéa em seu aspecto físico mais simples está diretamente relacionada à existência de Rodrigo S.M. Sem meias palavras, o narrador revela as fragilidades da nordestina que não se lavava, cobria as manchas da pele com pó branco e não se importava com nada. Era apenas café frio. 53 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:51 AM 2. Em A hora da estrela, o narrador apresenta a seguinte reflexão: "Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes". Com base nela, explique: a) Por que o romance leva esse título? Porque narra a história de Macabéa, que sonhava em 1. (UEL-PR – Adaptada) A questão a seguir refere-se à passagem transcrita do conto “Feliz aniversário” (Laços de família, 1960), de Clarice Lispector (1920-1977). Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou. Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a carne de seu coração. Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada, cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente, respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos, lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão. se tornar uma estrela de cinema. O clímax da obra é a morte da protagonista, o que, segundo o narrador, pode ser considerado um instante de glória, a hora em que todos nos tornamos estrelas. b) Por que é irônica a relação entre o título e a história de Macabéa? Toda a história de Macabéa é marcada pela falta de brilho e por sua insignificância. Ao contrário de seus sonhos pueris, a protagonista não desperta a atenção e nem o interesse de ninguém. Ela é, assim, o oposto do glamour indicado no título. Nessa oposição é que reside a ironia. 3. (Fuvest-SP) Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos? Mas aí é que está: esta história não tem nenhuma técnica, nem de estilo, ela é ao deus-dará. Eu que também não mancharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa. LISPECTOR, Clarice. Feliz aniversário. In: Laços de família. 28. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 78-79. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. A problemática da terceira idade é o tema principal do conto “Feliz aniversário”. Na história, sentada à cabeceira da mesa preparada para a comemoração de seu octogésimo nono aniversário, D. Anita: ➜ a) vê, horrorizada, sua descendência constituída por seres mesquinhos. b) lembra-se, saudosa, da época em que seu marido era vivo e com ele dividia as dificuldades cotidianas. c) contempla seu neto, Rodrigo, a trazer-lhe ao presente a imagem do falecido marido quando jovem. d) rememora, com rancor, sua vida de mulher, seja enquanto esposa, seja enquanto mãe, mostrando-se indignada com a atual falta de afeto de filhos, netos e bisnetos. e) mistura presente e passado, deixando emergir a saudade que há tempo domina seu cotidiano. TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 54 Em A hora da estrela, o narrador questiona-se quanto ao modo e, até, à possibilidade de narrar a história. De acordo com o trecho acima, isso deriva do fato de ser ele um narrador: a) iniciante, que não domina as técnicas necessárias ao relato literário. b) pós-moderno, para quem as preocupações de estilo são ultrapassadas. c) impessoal, que aspira a um grau de objetividade máxima no relato. d) objetivo, que se preocupa apenas com a precisão técnica do relato. ➜ e) autocrítico que percebe a inadequação de um estilo sofisticado para narrar a vida popular. 54 LITERATURA 9/9/13 10:51 AM TAREFA MÍNIMA TAREFA COMPLEMENTAR t Leia o texto da aula. Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 1 a 3. Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 4 a 6. JOÃO CABRAL DE MELO NETO 1 Construtivismo 2 O “poeta engenheiro” © Haags Gemeentemuseum, The Hague, Holanda “[...] a maior influência que sofri foi a de Le Corbusier. Aprendi com ele que se podia fazer uma arte não com o mórbido, mas com o são, não com o espontâneo, mas com o construído. [...] A partir de ‘O engenheiro’, optei pela luz em detrimento da treva e da morbidez.” Entrevista a Antônio Carlos Secchin. In: João Cabral, a poesia do menos. São Paulo: Livraria Duas Cidades; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1985, p. 301. Essas palavras de João Cabral sintetizam aspectos fundamentais de sua obra. A referência ao arquiteto suíço Le Corbusier (1887-1965) e a reafirmação de uma arte feita “com o construído”, isto é, de forma planejada, indicam o racionalismo da poesia cabralina. De fato, o poeta declarou certa vez que buscava “o predomínio da inteligência sobre o instinto”. Com isso, pretendia estabelecer o primado da lucidez na abordagem do mundo, mostrando os objetos em sua pureza conceitual, desprovida de qualquer arroubo subjetivo. Esse rigor na elaboração formal do poema, além do fato de começar a publicar nos anos 1940, permitiu uma aproximação um tanto apressada com a Geração de 45. Mas o poeta revelou desde logo que sua preocupação ia muito além da forma. Sua concepção da construção poética – que lhe fez merecedor do apelido de poeta engenheiro – incluía a sensibilidade à flor da pele, com os olhos atentos voltados para o mundo à sua volta. Contraposição de dissonâncias, de Theo Van Doesburg, 1924. João Cabral de Melo Neto (1920-1999) nasceu no Recife (Pernambuco), onde fez os estudos primários. Transferiu-se para o Rio de Janeiro nos anos 1940, período em que publica seus primeiros livros, mesma época em que inicia sua carreira diplomática, que o leva a países como Inglaterra, França, Suíça, Portugal e, por diversas vezes, Espanha, cuja cultura deixou marcas profundas em sua arte. Aposentou-se em 1990 e faleceu no Rio de Janeiro. LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 55 © Homero Sérgio/Folhapress O Construtivismo foi uma proposta artística surgida logo após a difusão das vanguardas europeias do início do século XX. Trata-se da radicalização de algumas propostas vanguardistas, na direção de uma pintura geométrica e antifigurativa que resultaria na Arte Abstrata. Os construtivistas buscavam aplicar à sua arte o mesmo rigor técnico empregado por engenheiros e arquitetos em suas obras. Em João Cabral de Melo Neto, o construtivismo se manifesta no racionalismo de uma poesia avessa a qualquer expansão sentimental. O engenheiro A luz, o Sol, o ar livre envolvem o sonho do engenheiro. O engenheiro sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo de água. 55 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:51 AM O lápis, o esquadro, o papel; o desenho, o projeto, o número: o engenheiro pensa o mundo justo, mundo que nenhum véu encobre. Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse, não ensinaria nada; lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma. (Em certas tardes nós subíamos ao edifício. A cidade diária, como um jornal que todos liam, ganhava um pulmão de cimento e vidro.) MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. A reflexão sobre a pedra conduz o poeta a um aprendizado sobre a própria arte, em seu esforço de apreensão da realidade concreta. A “voz inenfática” sugere a impessoalidade de sua poesia, que rejeita o sentimentalismo. A “resistência” da pedra corresponde à força que deve ter a palavra poética, para resistir a tudo que tenta torná-la fluida, fraca, soporífera. Mas a principal lição da pedra é a de “economia”: seu “adensar-se compacta” indica o caminho de uma linguagem concisa, seca, que será a pedra de toque da arte cabralina. A água, o vento, a claridade de um lado o rio, no alto as nuvens, situavam na natureza o edifício crescendo de suas forças simples. MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Nas duas primeiras estrofes, o poema trata mais diretamente da figura do engenheiro. A expressão “mundo justo” (verso 7) diz respeito à precisão geométrica e à exatidão matemática com que o engenheiro pensa e concebe as coisas que cria. Nas duas estrofes seguintes, o poeta se insere no texto (“nós subíamos”), para sugerir que seu trabalho artístico consiste em retirar da “natureza” as “coisas simples”, isto é, exatas, precisas, claras, transparentes. 3 4 João Cabral manteve em sua vida – e em sua obra – duas paixões: a terra natal e a condição de viajante imposta por suas atividades diplomáticas. A aparente incompatibilidade entre esses dois amores o levou a revelar, certa vez, que gostaria de que Pernambuco se tornasse independente do Brasil, para que ele pudesse servir ali como embaixador, satisfazendo seus dois desejos díspares. A verdade, porém, é que João Cabral conseguiu unir o Nordeste às culturas que conheceu, principalmente a espanhola, apreendida nas experiências vividas quando morou em Barcelona, Sevilha e Madri. Morte e vida severina (1954-1955), por exemplo, é inspirada em autos medievais ibéricos. E em muitos outros momentos de sua obra João Cabral presta homenagem explícita à Espanha. A palavra-pedra O título do primeiro livro de João Cabral, Pedra do sono, publicado em 1942, já traz a imagem da pedra, que acompanharia toda a sua obra. Nele, a expressão sono remete ao Surrealismo que marcaria o início da carreira do poeta. Com o tempo, a atmosfera onírica seria abandonada, restando a contundência da palavra agressiva e impactante, feita para despertar e nunca para anestesiar. Em 1966, ao publicar o livro A educação pela pedra, João Cabral oferece uma síntese de seu projeto poético: Lições de Sevilha Tenho Sevilha em minha cama, eis que Sevilha se fez carne, eis-me habitando Sevilha como é impossível de habitar-se. A educação pela pedra Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, frequentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; a de economia, seu adensar-se compacta: lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la. TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 56 Do Nordeste à Espanha Nada há em volta que me lembre a Sevilha cartão-postal, a que é turístico-anedótica, a que é museu e catedral. Esta é a Sevilha trianera*, Sevilha fundo de quintal, Sevilha de lençol secando, a que é corriqueira e normal. 56 LITERATURA 9/9/13 10:51 AM Falo somente do que falo: do seco e de suas paisagens, Nordeste, debaixo de um sol ali do mais quente vinagre: É a Sevilha que há nos seus poços, se há poço ou não, pouco importa; a Sevilha que dá às sevilhanas lições de Sevilha, de fora. MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. que reduz tudo ao espinhaço, cresta o simplesmente folhagem, folha prolixa1, folharada, onde possa esconder-se na fraude. * Referência a Triana, tradicional bairro sevilhano. Mais uma vez, o poeta se dispõe a aprender com o mundo. Aqui, as lições são dadas pela cidade espanhola de Sevilha. No entanto, assim como em “A educação pela pedra” a lição era dada “para quem soletrá-la”, isto é, para quem se dispusesse ao aprendizado, aqui também se exige concentração para o que só pode ser observado com atenção, por estar além da paisagem convencional (“Sevilha cartão-postal”, “turístico-anedótica”), nos “poços” da cidade, isto é, nas suas entranhas. 5 Falo somente por quem falo: por quem existe nesses climas condicionados pelo sol, pelo gavião e outras rapinas: e onde estão os solos inertes de tantas condições caatinga em que só cabe cultivar o que é sinônimo de míngua. Metalinguagem Falo somente para quem falo: quem padece sono de morto e precisa de um despertador acre2, como o sol sobre o olho: Os poemas transcritos até aqui evidenciam um traço fundamental da poética de João Cabral: a tendência a refletir sobre a arte. Esse interesse o conduziria para além de seus próprios versos, como mostram os textos que escreveu a respeito do artista plástico espanhol Joan Miró (1893-1983). Em João Cabral, o exercício da metalinguagem funcionou como reforço da inclusão de sua poesia no mundo e no tempo. Seus versos rejeitam o isolamento da torre de marfim, o distanciamento social, e buscam decididamente a comunicação, o contato com o leitor. O esforço para corresponder a esse desejo vale a pena, pois a poesia de João Cabral transmite ao leitor as lições que aprende: jamais voltar-se para o superficial, preferindo sempre a imersão vertical, para captar o que permanece, o que resiste – exatamente como a pedra. O estilo enxuto da poesia de João Cabral, que buscava evitar o sentimentalismo, tinha suas raízes na obra do escritor Graciliano Ramos, cuja herança o poeta reconhecia explicitamente. que é quando o sol é estridente, a contrapelo3, imperioso, e bate nas pálpebras como se bate numa porta a socos. MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. 1. Que usa palavras em demasia. 2. Que tem sabor amargo, ácido, azedo. 3. Desfavorável, adverso. Os dois-pontos que se seguem ao nome de Graciliano Ramos, no título do poema, insinuam que os versos se dirigem ao escritor, reproduzem uma fala sua ou, ainda, servem para defini-lo. Seja como for, o poeta afirma uma mesma coisa: ao falar do outro, está também falando de si mesmo. O poeta alinha aqui quatro fatores que condicionam tanto sua fala poética quanto a prosa de Graciliano: “com o que falo” (estrofes 1 e 2) sugere a linguagem que busca a precisão expressiva e que evita o excesso dispensável; “do que falo” (estrofes 3 e 4) indica uma temática mais forte nos dois autores, a da seca; “por quem falo” (estrofes 5 e 6) explicita a disposição de traduzir a alma sertaneja; “para quem falo” (estrofes 7 e 8) escancara a necessidade de denunciar as mazelas sociais para comover (e mover) quem entra em contato com a obra dos dois escritores. Graciliano Ramos: Falo somente com o que falo: com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol que as limpa do que não é faca: de toda uma crosta viscosa, resto de janta abaianada, que fica na lâmina e cega seu gosto de cicatriz clara. LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 57 57 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:51 AM 6 mulheres de outros tantos, já finados Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia [...] Morte e vida severina (1954-1955) Morte e vida severina tem como subtítulo: Auto de natal pernambucano. Auto por se tratar de uma peça de teatro curta (apenas um ato), e escrita em versos, seguindo uma tradição ibérica de origem medieval; natal por fazer referência a um nascimento; e, finalmente, pernambucano por ter Pernambuco como cenário. Os versos curtos remetem ainda aos textos teatrais da Idade Média, como os do português Gil Vicente. Nos anos 1960, a peça foi encenada por um grupo de jovens atores do Tuca (Teatro da Universidade Católica de São Paulo) com uma novidade: os versos de João Cabral foram musicados por um compositor iniciante, Chico Buarque de Hollanda. O título da peça chama a atenção ao promover uma curiosa inversão entre vida e morte, colocando esta última em primeiro lugar. O enredo da peça explica essa mudança. Além disso, a expressão severina é neologismo, um nome próprio transformado em adjetivo. Esse procedimento sugere que a personagem em torno do qual girará o auto, o retirante Severino, funciona como síntese de todos aqueles que migram para as cidades, fugindo às dificuldades da seca nordestina. MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Com essa fala inicial, Severino se apresenta aos leitores/espectadores. Note-se que, ao fazê-lo, tenta se particularizar, mas acaba por demonstrar que, como ele, existem muitos outros: “Somos muitos Severinos / iguais em tudo na vida”. A partir desse ponto, ele traça um perfil dos nordestinos submetidos às dificuldades de sobrevivência que acaba por levar à “velhice antes dos trinta”. Fugindo da seca, Severino busca a vida. Porém, trava, ao longo de sua jornada, uma sucessão de encontros com a morte: um defunto que é conduzido ao cemitério; mulheres que choram a morte de um morador local; o desaparecimento do próprio rio que ele segue em sua jornada rumo ao litoral, e que também é vítima da seca; e, ainda, o funeral de um lavrador. O retirante explica ao leitor quem é e a que vai – O meu nome é Severino não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 58 Assiste ao enterro de um lavrador de eito1 e ouve o que dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério – Esta cova em que estás com palmos medida é a conta menor que tiraste em vida. – É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio. – Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida. 58 LITERATURA 9/9/13 10:51 AM mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu, com sua presença viva. E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida severina. – É uma cova grande para teu pouco defunto, mas estarás mais ancho2 que estavas no mundo. – É uma cova grande para teu defunto parco3, porém mais que no mundo te sentirás largo. – É uma cova grande para tua carne pouca, mas a terra dada não se abre a boca. MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. 1. Trabalho de limpeza de uma plantação. 2. Largo, espaçoso. 3. Minguado, escasso, magro. O trecho transcrito reafirma a luta pela terra que marca a vida do sertanejo nordestino. É sugerido aqui que a seca é apenas um dos fatores a expulsá-lo de seu ambiente. A exploração do latifúndio e a batalha desigual que ele trava contra os grandes proprietários acabam também por fazer dele uma vítima: seja com a morte, seja com o abandono do lugar. O trecho traz a nota do humor amargo, ácido, que está presente na linguagem da peça, na ironia da situação do lavrador que, morto, recebe finalmente a terra pela qual tanto lutou. MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Essa é a fala final da peça, e nela se explicita a luta entre o desespero, representado pela dúvida do retirante diante das possibilidades da vida e da morte, e a esperança, consubstanciada no recém-nascido. O nascimento (que explica a classificação da peça como um auto de natal) justifica a inversão do título: depois de tantos encontros com a morte, finalmente Severino encontra a vida. A cena transmite uma mensagem de esperança: a possibilidade de vitória da resistência contra a persistência da morte. O embate entre a vida buscada e a morte encontrada continua até mesmo no destino final do retirante, a cidade do Recife. Ao descobrir que as perspectivas de vida, ali, são igualmente nulas, Severino oscila entre manter-se vivo e entregar-se à morte. José, um mestre carpina (isto é, carpinteiro) tenta demovê-lo da opção pela morte, apresentando como argumento a reafirmação da vida representada pelo nascimento de seu filho, que acaba de ocorrer. Depois de celebrar a chegada da criança, o mestre carpina se dirige a Severino. TEXTO PARA A QUESTÃO 1 Tecendo a manhã 1 O carpina fala com o retirante que esteve de fora, sem tomar parte em nada 5 Severino retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga; é difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, severina; LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 59 10 15 Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão. MELO NETO, João Cabral de. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. 59 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:51 AM a diferença é a mais mínima. Está apenas em que a terra é por aqui mais macia; está apenas no pavio, ou melhor, na lamparina: pois é igual o querosene que em toda parte ilumina, e quer nesta terra gorda quer na serra, de caliça, a vida arte sempre com a mesma chama mortiça. 1. Assinale a alternativa INCORRETA sobre o poema anterior: a) Na primeira estrofe, as rimas são formadas pela repetição de uma mesma palavra, alternada em singular/plural; essa alternância já convoca o tema da união a partir de um canto que é individual, mas que se coletiviza. b) Na segunda estrofe, temos rimas consoantes, contando ainda com a exploração da homofonia entre “todos” e “toldos”; as rimas finais em “ão”, propositadamente pobres, contribuem para criar a imagem do balão inflado. c) Trata-se de uma apologia da comunhão, aqui alegorizada na imagem dos galos que, com seus gritos anunciadores do sol, parecem tecer a manhã, até construir um toldo formado pelo cruzamento dos cantos. d) Os versos 3 a 10 formam um único período, como a representar um espaço para fazer caber todos os galos, promovendo a incorporação formal do tema da solidariedade. ➜ e) A primeira estrofe apresenta o elogio da ação individual, e a segunda indica a reação dos seguidores, formando um grupo coeso em torno do indivíduo; o poema pode ser interpretado, assim, como uma alegoria da liderança política. MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina. Neste excerto, o retirante, já chegado à Zona da Mata, reflete sobre suas experiências, reconhecendo uma diferença e uma semelhança entre as regiões que conhecera ao longo de sua viagem. Considerando o excerto no contexto da obra a que pertence, a) explique sucintamente em que consistem a diferença e a semelhança reconhecidas pelo retirante. O retirante se refere à Zona da Mata qualificando-a como terra “mais macia” e “terra gorda”, contras- 2. (ENCCEJA) tando com a secura e a magreza associadas à Caa- E se somos muitos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina, que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). tinga. No entanto, há, sob essas diferenças, uma forte identidade na mesma condição “severina”, isto é, nas mesmas dificuldades enfrentadas pelos habitantes dos dois espaços. b) Depois de chegar ao Recife, o retirante mudará substancialmente o julgamento que expressa neste excerto? Justifique brevemente sua resposta. Não. Ao chegar ao Recife, o retirante encontrará a MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. mesma falta de esperança e de perspectiva que já conhecia e enfrentava desde o início de sua viagem. As repetições de palavras e de estruturas presentes neste trecho de Morte e vida severina são recursos expressivos que pretendem mostrar que: a) a vida no sertão nordestino é diferente de pessoa para pessoa. b) Severino conhece muitas pessoas com o mesmo nome que o seu. c) há muitas mulheres com o nome de Severina no sertão nordestino. ➜ d) a fome e a miséria atingem muitos habitantes do sertão nordestino. TAREFA MÍNIMA t Leia o texto da aula. Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 1 e 2. 3. (Fuvest-SP) TAREFA COMPLEMENTAR Mas não senti diferença entre o Agreste e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui a Mata TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 60 Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 3 a 5. 60 LITERATURA 9/9/13 10:51 AM POESIA CONCRETA Concretismo novadoras para a poesia desde o lançamento, em 1952, da revista Noigandres (palavra tirada de um texto do poeta norte-americano Ezra Pound). Em pleno apogeu desenvolvimentista de São Paulo, os autores propunham uma expressão artística que significasse uma reação à poesia intimista e estetizante dos anos 1940. A poesia concreta buscava levar às últimas consequências certos processos estruturais que marcaram o Futurismo, o Dadaísmo e, em parte, o Surrealismo. A grande inspiração, porém, era o poeta Oswald de Andrade, principalmente pela economia linguística de seus poemas-pílula que marcaram época na década de 1920. O cerne das propostas dos concretistas é a superação do verso como unidade rítmico-formal, procurando estruturar o texto poético a partir de seu suporte, sendo ele a página do livro em branco ou não. Além disso, o concretismo na poesia gerou uma série de inovações que contribuíram para o desenvolvimento de uma nova maneira de se pensar poesia. © Haags Gemeentemuseum, The Hague, Holanda 1 Continuidade, de Max Bill, 1986. 2 © Eduardo Knapp/Folhapress O escultor suíço Max Bill (1908-1994) é tido como um dos mais influentes designers do século XX, conhecido também por ser um artista que abraçou o conceito de arte concreta que se desenvolveu na Europa a partir da década de 1930, em oposição às propostas de arte abstrata. A escultura acima é uma das muitas criadas pelo artista que trabalham variações da ideia do infinito, representada ali por intermédio da indeterminação do início e do fim da figura, o que sugere um movimento contínuo. Com a proposta de buscar a pureza e o rigor formal na ordem harmônica do universo, Max Bill foi muito influenciado pelas ideias da escola Bauhaus (a mais importante expressão do Modernismo no design e na arquitetura) e defendia em seu trabalho que a matemática é o meio mais eficiente para o conhecimento da realidade objetiva e que uma obra plástica deve ser ordenada pela geometria e pela clareza da forma. A vertente literária da arte concreta teve início no Brasil em 1956. A Exposição Nacional de Arte Concreta, ocorrida em São Paulo, ficou marcada como o lançamento da poesia concreta brasileira. Décio Pignatari entre os irmãos Campos (Augusto e Haroldo): os primeiros componentes do grupo concretista brasileiro. 3 Para o crítico Alfredo Bosi, os concretistas têm como ponto de partida de sua poética o simbolista francês Mallarmé, que teria sido o autor do primeiro poema em que a comunicação não se faz no nível do tema, mas no da própria estrutura verbo-visual. Depois disso, nomes como Maiakovski (poeta russo), Marinetti (idealizador do futurismo italiano), além de Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, também teriam sido importantes no desenvolvimento das inovações da poesia concreta. A poesia concreta no Brasil Os jovens intelectuais paulistas – Augusto de Campos (1931), Décio Pignatari (1927-2012) e Haroldo de Campos (1929-2003) – já buscavam possibilidades reLITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 61 As inovações propostas pela poesia concreta 61 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:51 AM Inovação semântica desejo da mudança e a perplexidade frente ao novo, que se percebe diferente e não sabe exatamente como agir. Importante observar a ambiguidade da palavra final: ao mesmo tempo em que sugere silêncio e imobilidade frente à novidade, também pode ser a conjugação do verbo mudar em primeira pessoa, o que indica a continuidade da mudança. Há, no poema concreto, a busca pela comunicação visual, não verbal, imediata. O poema funciona como um ideograma que possui um significado nele mesmo. Psiu! Inovação lexical © Augusto de Campos O poema concreto utiliza neologismos frequentemente, explorando muitas vezes também a força expressiva de palavras oriundas de outros idiomas (estrangeirismos) e termos técnicos (tecnicismos). durassolado petrificado amargamado agrusurado capitalienado massamorfado CAMPOS, Augusto de. Psiu!. In: Viva Vaia – Poesia 1949-1979. São Paulo: Brasiliense, 1986. solumano corpumano fardumano servumano gadumano desumano José Lino Grunewald A proposta gráfica do poema – associada à leitura das palavras que cercam os lábios vermelhos – transmite a ideia de circularidade e intenso movimento. Os termos sobrepostos com diferentes tipos e tamanhos de letras dão a impressão de vida e barulho. O título sugere um chamado “psiu!” e tudo parece atrair a atenção do interlocutor. Outra leitura possível é que a vida, sugerida pelo vermelho da boca, é oprimida por tanta informação e notícia. Assim, o “psiu” pode ser entendido como um alerta para que a vida não se esvaia completamente. Composto quase totalmente com palavras criadas por justaposição, o poema propõe uma reflexão sobre o peso da vida marcada pelo trabalho e pela alienação política. O termo humano é várias vezes transformado, percorrendo uma trajetória que vai de “corpumano” até “desumano”, substantivos que ganham mais força e sentido pela aproximação de neologismos como “servumano” e “capitalienado”. Inovação morfológica A desintegração das palavras, separando sufixos, prefixos e radicais, também é um procedimento comum nos poemas concretos, o que propõe uma nova leitura da palavra como unidade de significado e, consequentemente, das ideias expressas no texto. Inovação sintática Os tradicionais laços sintáticos (preposições, conjunções e pronomes, por exemplo) são eliminados do texto, o que gera uma poesia objetiva, composta principalmente de substantivos e verbos. Epitáfio para um banqueiro negócio ego ócio cio 0 © Augusto de Campos José Paulo Paes Considerando o significado da palavra epitáfio (algo que se escreve sobre um túmulo) compreende-se que o poema faz uma síntese da vida de um banqueiro. Tendo o negócio como motivação principal, a palavra do primeiro verso é desmembrada para compor os outros versos e, por isso, é chamada de palavra-valise. Dentro dela encontram-se o ego, o ócio e o cio que terminam compondo uma operação Pós-Tudo, poema concreto de Augusto de Campos. A partir dos verbos mudar e querer, Augusto de Campos constrói um texto que aborda a questão do TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 62 62 LITERATURA 9/9/13 10:51 AM aritmética que tem zero (0) como resultado, o que aponta para a conclusão de que a vida do banqueiro acabou completamente anulada. O texto faz parte de um grupo de poemas do autor intitulado “poetamenos”, em que a relação entre as cores primárias e secundárias é a base da estruturação dos textos. Neste poema, em especial, as cores azul (primária) e laranja (complementar) representam a figura do poeta e da amada. Como o poema está alinhado a partir do centro da página, pode-se dizer que os amantes possuem um eixo de força central e que o texto se estrutura, espacial e cromaticamente, na fusão dos dois elementos. Mais uma vez aparecem aqui as palavras-valise que contribuem para a sensação de fusão entre as palavras e entre os amantes. Inovação fonética A formação de jogos sonoros por meio de figuras de repetição como aliterações e assonâncias também é uma constante. Patacoada A pata empata a pata porque cada pata tem um par de patas e um par de patas um par de pares de patas. Agora, se se engata pata a pata cada pata de um par de pares de patas, a coisa nunca mais desata e fica mais chata do que pata de pata TEXTO PARA AS QUESTÕES 1 E 2 José Paulo Paes © Augusto de Campos O poema é marcado pela assonância da vogal a e pela repetição da palavra pata. Além disso, a consoante t também é repetida em palavras como empata, engata, desata e chata, o que atribui ao texto uma sonoridade muito particular. Trata-se de um exemplo de poesia para crianças e sua leitura rápida também vale como um divertido exercício de trava-língua. Pluvial, poema concreto de Augusto de Campos. Inovação tipográfica 1. Em sua fase ortodoxa, a vanguarda brasileira postulou uma poética rigorosa, na qual o poema deveria ser construído de forma sintético-ideogrâmica. A realização dessa inovadora poética se deu pela utilização do branco da página como constituinte ativo do poema e pela estruturação dos poemas por meio das formas geométricas. Explique como a proposta formal contribui para a compreensão do sentido do texto. Uma das propostas mais radicais do grupo concretista é a abolição do verso, trabalhando com a utilização dos espaços brancos como parte constitutiva dos textos. O poema concreto funciona como uma obra de arte visual e, na maioria das vezes, prescinde, inclusive, de sinais de pontuação. Eis os amantes O fato de a palavra pluvial aparecer na parte superior do texto escrita verticalmente sugere o movimento da chuva que, ao cair, transforma-se na palavra fluvial, representada na horizontal a partir do meio do poema. A forma final do texto, com a união das duas palavras, representa a transformação da água das chuvas em © Augusto de Campos rios que posteriormente evaporam e voltam a se tornar chuva. Eis os amantes, poema concreto de Augusto de Campos. LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 63 63 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:51 AM 2. À parte a inovação tipográfica, que propõe a eliminação do verso, aponte outra característica inovadora da poesia concreta que se materializa neste texto. Explique. 3. (Enem) O poema a seguir pertence à poesia concreta brasileira. O termo latino de seu título significa "epitalâmio", poema ou canto em homenagem aos que se casam. O fato de o poema ser composto apenas pelos adjetivos pluvial e fluvial já pode ser compreendido como uma inovação. Não há verbos nem sinais de pontuação no texto. A síntese absoluta é mais um dos pressupostos © Pedro Xisto/ENEM 2004 a partir dos quais se constroem poemas concretos. Considerando que símbolos e sinais são utilizados geralmente para demonstrações objetivas, ao serem incorporados no poema "Epithalamium – II", tais símbolos: ➜ a) adquirem novo potencial de significação. b) eliminam a subjetividade do poema. c) opõem-se ao tema principal do poema. d) invertem seu sentido original. e) tornam-se confusos e equivocados. TAREFA MÍNIMA TAREFA COMPLEMENTAR t Leia o texto da aula. Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 1 e 2. Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 3 e 4. ANOS 1960 MÚSICA E ARTES PLÁSTICAS 1 A Bossa Nova O projeto desenvolvimentista do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961) buscou modernizar a indústria brasileira. O Brasil foi varrido por uma sede do novo, que se manifestaria também em algumas designações de movimentos artísticos da época, como o Cinema Novo, a Nova Arquitetura e a Bossa Nova. A Bossa Nova foi o resultado do encontro de três artistas: o poeta Vinicius de Moraes, o compositor Tom Jobim e o violonista João Gilberto. Três virtuoses que estavam igualmente abertos para influências diversas – como o jazz norte-americano e a tradição musical brasileira. João Gilberto deu voz à delicadeza das composições de Tom e Vinicius, com uma execução vocal suave, minimalista, quase em sussurro, que seria a marca registrada da Bossa Nova. O primeiro álbum de João Gilberto, Chega de saudade, de 1959, trazia uma das músicas mais emblemáticas do movimento, “Desafinado”. TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 64 64 LITERATURA 9/9/13 10:51 AM Desafinado Canção veiculados por emissoras como a Excelsior e a Record tornaram-se oportunidades de extravasamento juvenil, tanto de artistas como do público, no momento em que o país vivia o forte cerceamento das liberdades civis provocado pela ação dos militares que assumiram o governo após o golpe de 1964. A composição vencedora do III Festival da Música Popular Brasileira, em 1967, transmitido pela TV Record, de São Paulo, foi “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam. Tom Jobim / Newton Mendonça Se você disser que eu desafino amor Saiba que isto em mim provoca imensa dor Só privilegiados têm o ouvido igual ao seu Eu possuo apenas o que Deus me deu Se você insiste em classificar Meu comportamento de antimusical Eu mesmo mentindo devo argumentar Que isto é Bossa Nova que isto é muito natural Ponteio* Edu Lobo / Capinam O que você não sabe nem sequer pressente É que os desafinados também têm um coração Fotografei você na minha Rolley-Flex* Revelou-se a sua enorme ingratidão Era um, era dois, era cem Era o mundo chegando e ninguém Que soubesse que eu sou violeiro Que me desse ou amor ou dinheiro Só não poderá falar assim do meu amor Este é o maior que você pode encontrar Você com a sua música esqueceu o principal Que no peito dos desafinados No fundo do peito bate calado Que no peito dos desafinados também bate um coração Era um, era dois, era cem Vieram pra me perguntar: “Ô, você, de onde vai, de onde vem? Diga logo o que tem pra contar” Parado no meio do mundo Senti chegar meu momento Olhei pro mundo e nem via Nem sombra, nem sol, nem vento João Gilberto. Chega de saudade. LP Odeon, 1959. * Marca de máquina fotográfica da época. Na canção, o emissor reclama do desprezo da amada: colocada como um dos “privilegiados” que possui ouvido capaz de perceber a afinação, a moça não consegue perceber que o que ela toma por “comportamento antimusical” é, na verdade, a proclamação de um novo estilo, marcado pela naturalidade (“Isto é Bossa Nova, isto é muito natural”), entendida como o instrumento ideal para expressar a sinceridade do sentimento (“no peito dos desafinados também bate um coração”). O novo estilo nada tem de desafinado, ao contrário do que pensa a ouvinte que o despreza: trata-se de uma elaboração melódica sofisticada. 2 Quem me dera agora Eu tivesse a viola pra cantar Quem me dera agora Eu tivesse a viola pra cantar Era um dia, era claro, quase meio Era um canto calado sem ponteio Violência, viola, violeiro Era morte em redor, mundo inteiro Era um dia, era claro, quase meio Tinha um que jurou me quebrar Mas não lembro de dor nem receio Só sabia das ondas do mar Jogaram a viola no mundo Mas fui lá no fundo buscar Se eu tomo a viola ponteio Meu canto não posso parar, não Os Festivais da Canção © Acervo UH/Folhapress Quem me dera agora Eu tivesse a viola pra cantar Quem me dera agora Eu tivesse a viola pra cantar Era um, era dois, era cem Era um dia, era claro, quase meio Encerrar meu cantar já convém Prometendo um novo ponteio Certo dia que sei por inteiro Edu Lobo vence o Festival de 1967 com “Ponteio”. O advento da televisão trouxe modificações profundas na difusão da música brasileira. Os Festivais da LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 65 65 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:51 AM Eu espero não vá demorar Este dia estou certo que vem Digo logo o que vim pra buscar Correndo no meio do mundo Não deixo a viola de lado Vou ver o tempo mudado E um novo lugar pra cantar Roda-viva Chico Buarque Tem dias que a gente se sente Como quem partiu ou morreu A gente estancou de repente Ou foi o mundo então que cresceu A gente quer ter voz ativa No nosso destino mandar Mas eis que chega a roda-viva E carrega o destino pra lá In: 3o Festival da Música Popular Brasileira. LP Philips, 1967. * Ato de tocar instrumento de corda. Em “Ponteio”, o cantador insiste em entoar seu canto, a despeito do ambiente desfavorável (“Era morte em redor, mundo inteiro”) e das ameaças que recebe (“Tinha um que jurou me quebrar”). Em seu gesto de resistência (“Meu canto não posso parar”) está a esperança da chegada do tempo de liberdade (“Este dia estou certo que vem”), que deverá ser um “tempo mudado”, isto é, diferente daquele que se vive – clara referência à situação política do país naquele momento. 3 Roda mundo, roda-gigante Rodamoinho, roda pião O tempo rodou num instante Nas voltas do meu coração A gente vai contra a corrente Até não poder resistir Na volta do barco é que sente O quanto deixou de cumprir Faz tempo que a gente cultiva A mais linda roseira que há Mas eis que chega a roda-viva E carrega a roseira pra lá MPB Roda mundo… © Editora Abril A roda da saia, a mulata Não quer mais rodar, não senhor Não posso fazer serenata A roda de samba acabou A gente toma a iniciativa Viola na rua, a cantar Mas eis que chega a roda-viva E carrega a viola pra lá Roda mundo... O samba, a viola, a roseira Um dia a fogueira queimou Foi tudo ilusão passageira Que a brisa primeira levou No peito a saudade cativa Faz força pro tempo parar Mas eis que chega a roda-viva E carrega a saudade pra lá Chico Buarque (segundo à direita) e o conjunto vocal MPB 4. Nos anos 1940, a expressão música popular brasileira designava a produção musical de raízes populares. Já nos anos 1960, o termo passou a ser sintetizado na sigla MPB e associado a uma postura de defesa do patrimônio cultural genuinamente brasileiro, contra o que se considerava uma invasão de guitarras elétricas e sonoridades oriundas do rock americano ou inglês. Embora não tenha se envolvido diretamente nesse ataque aos instrumentos modernos, o compositor Chico Buarque se transformou, ao longo do tempo, em um dos principais ícones da chamada MPB. A canção “Roda viva”, terceiro lugar no Festival de 1967 (o mesmo de “Ponteio”), foi um de seus grandes sucessos na época. TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 66 Roda mundo... Chico Buarque de Hollanda – volume 3. RGE Discos, 1968. Originalmente, a música foi composta para a peça homônima, escrita pelo próprio compositor, que narrava a história de um cantor popular engolido pelos meios de comunicação de massa que então se instalavam no país. No entanto, o alcance da música se amplia, tratando da angústia do indivíduo que não consegue ter nas mãos as rédeas do próprio destino. 66 LITERATURA 9/9/13 10:51 AM Música de protesto Não por acaso, Vandré se tornou um dos principais alvos das perseguições militares na classe artística. “Caminhando” se coloca como uma convocação geral dirigida a estudantes (“escolas”), trabalhadores rurais (“campos”) e urbanos (“construções”) e, enfim, a todos os que protestam “nas ruas”. O motivo da convocação é explicitado: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer” – brado de revolta e estímulo à ação transformadora. Uma transformação que se pretende inevitável, já que quem a promove tem “a certeza na frente, a história na mão”. A referência aos militares é feita com ironia e força: “Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição / De morrer pela pátria e viver sem razão”. Geraldo Vandré. Alguns representantes da Bossa Nova, como Carlos Lyra, defendiam um envolvimento maior do movimento com as questões sociais. Após o golpe militar de 1964, essa tendência se acentuou no meio musical, fazendo surgir um conjunto de canções que tinham como aspecto comum a temática social e a expressão de revolta contra a opressão. O maior representante dessa corrente foi Geraldo Vandré, autor da música que se tornaria um verdadeiro hino da resistência ao golpe de 1964 no âmbito da música popular, “Pra não dizer que não falei das flores”, mais conhecida como “Caminhando”. 5 A televisão também foi palco do surgimento de outro fenômeno de massa, a Jovem Guarda, de Roberto Carlos e seu parceiro Erasmo Carlos. Fundando-se em uma vertente do rock denominada iê-iê-iê, surgida a partir do pop europeu (inglês e italia- Roberto Carlos. no), o movimento obteve sucesso consagrador, principalmente após o lançamento de “Quero que vá tudo pro inferno”, no programa Jovem Guarda, da TV Record, em 1965. Pra não dizer que não falei das flores Geraldo Vandré Caminhando e cantando e seguindo a canção Somos todos iguais, braços dados ou não Nas escolas, nas ruas, campos, construções Caminhando e cantando e seguindo a canção Vem, vamos embora, que esperar não é saber Quem sabe faz a hora, não espera acontecer Quero que vá tudo pro inferno Roberto Carlos / Erasmo Carlos Pelos campos há fome em grandes plantações Pelas ruas marchando indecisos cordões Ainda fazem da flor seu mais forte refrão E acreditam nas flores vencendo o canhão De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar Se você não vem e eu estou a lhe esperar Só tenho você em meu pensamento E a sua ausência é todo o meu tormento Quero que você me aqueça nesse inverno E que tudo o mais vá pro inferno Há soldados armados, amados ou não Quase todos perdidos de armas na mão Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição De morrer pela pátria e viver sem razão De que vale a minha boa vida de playboy Se entro no meu carro e a solidão me dói Onde quer que eu ande tudo é tão triste Não me interessa o que de mais existe Quero que você me aqueça nesse inverno E que tudo o mais vá pro inferno Nas escolas, nas ruas, campos, construções Somos todos soldados armados ou não Caminhando e cantando e seguindo a canção Somos todos iguais, braços dados ou não Os amores na mente, as flores no chão A certeza na frente, a história na mão Aprendendo e ensinando uma nova lição Não suporto mais você longe de mim Quero até morrer do que viver assim Só quero que você me aqueça nesse inverno E que tudo o mais vá pro inferno In: A era dos festivais – CD que acompanha o livro A era dos festivais, de Zuza Homem de Mello. São Paulo: Editora 34, 2003. LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 67 Jovem Guarda © Teixeira/CPDOC JB © Arquivo/Agência O Globo 4 Roberto Carlos, Jovem Guarda. LP CBS, 1965. 67 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:51 AM E no joelho uma criança sorridente, feia e morta, Estende a mão Viva a mata, ta, ta Viva a mulata, ta, ta, ta, ta A canção exemplifica a simplicidade das músicas da Jovem Guarda, elaboradas a partir de conceitos básicos facilmente assimiláveis; no caso, trata-se do conquistador que se rende ao amor verdadeiro. Do ponto de vista formal, também há o recurso a lugares-comuns do vocabulário de matriz romântica, como “céu azul” e “sol sempre a brilhar”. Tropicalismo No pulso esquerdo o bang-bang Em suas veias corre muito pouco sangue Mas seu coração Balança a um samba de tamborim Emite acordes dissonantes Pelos cinco mil alto-falantes Senhoras e senhores, ele põe os olhos grandes Sobre mim Viva Iracema, ma, ma Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma © Divulgação 6 No pátio interno há uma piscina Com água azul de Amaralina Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis Na mão direita tem uma roseira Autenticando eterna primavera E no jardim os urubus passeiam a tarde inteira Entre os girassóis Viva Maria, ia, ia Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia Capa do disco Tropicalia ou panis et circencis. Oriundos dos Festivais, mas percorrendo um caminho alternativo independente, os baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil fundaram o movimento tropicalista, de que faziam parte artistas como Gal Costa, Tom Zé e os componentes da banda Os mutantes (Rita Lee e os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias). O Tropicalismo retomava a perspectiva da Antropofagia do modernista Oswald de Andrade para realizar, em palcos e apresentações repletas de simbologia e efeitos plásticos e dramáticos, a união entre a informação estrangeira do rock e a busca da expressão moderna da brasilidade. Domingo é o fino da bossa Segunda-feira está na fossa Terça-feira vai à roça Porém, o monumento é bem moderno Não disse nada do modelo do meu terno Que tudo mais vá pro inferno, meu bem Que tudo mais vá pro inferno, meu bem Viva a banda, da, da Carmen Miranda, da, da, da da, da da da Caetano Veloso. Philips, 1990 (remasterização do LP de 1967). “Tropicália” apresenta uma imagem do Brasil em que a tradição e o arcaico (“palhoça”, “fala nordestina”) se juntam ao moderno (“aviões”, “caminhões”, “piscina”, “faróis”). A letra da canção abre a possibilidade para uma leitura política. A “mão direita” figura o poder que, sob a máscara da pureza (sugerida na referência a uma cantiga infantil: “Na mão direita tem uma roseira / Que dá flor na primavera"), esconde o trágico e o grotesco (“E nos jardins os urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis”). No “pulso esquerdo”, o “bang-bang” pode ser uma referência à luta armada conduzida por setores mais radicais, cuja fragilidade é indicada no “pulso”, que contrasta com a força associada à direita, que usa a “mão”. A despeito de sua modernidade (“o monumento é bem moderno”), o país é visto de maneira negativa, pessimista, sem possibilidade de redenção – o que vem sugerido por imagens como: “urubus”, “criança sorridente, feia e morta”. Tropicália Caetano Veloso Sobre a cabeça os aviões Sob os meus pés, os caminhões Aponta contra os chapadões, meu nariz Eu organizo o movimento Eu oriento o Carnaval Eu inauguro o monumento no planalto central Do país Viva a bossa, sa, sa Viva a palhoça, ça, ça, ça, ça O monumento é de papel crepom e prata Os olhos verdes da mulata A cabeleira esconde atrás da verde mata O luar do sertão O monumento não tem porta A entrada é uma rua antiga, estreita e torta TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 68 68 LITERATURA 9/9/13 10:51 AM Artes plásticas nos anos 1960 de Roberto Carlos – ícone da música jovem nos anos 1960 – é apresentada com os contornos em lâmpadas neon, em meio a imagens religiosas. Tudo isso em um ambiente introspectivo, cercado por cortinas. Contudo, para entrar nesse espaço de “adoração”, é necessário passar por uma catraca, objeto que controla a acesso de pessoas, mediante pagamento. Isso sugere o interesse mercantil no culto às celebridades. Nas artes plásticas, os anos 1960 marcam o início da chamada era pós-moderna. Uma das principais características desse momento artístico é a exploração dos mais diversos elementos materiais para a criação artística. Isso é o que torna categorias consagradas como “pintura” ou “escultura” imprecisas quando se tenta definir a arte contemporânea. Uma das maiores influências desse período foi a chamada Pop Art, que levou os artistas a se apropriarem livremente de imagens e ideias advindas das modernas formas de comunicação, como a televisão, a publicidade, os jornais e as revistas em quadrinhos. A intenção é produzir uma arte cada vez mais próxima do grande público. Nesse sentido, o abstracionismo que predominou nos anos 1950 perde força em favor de uma retomada da figuração, em propostas contestadoras intimamente ancoradas na realidade histórica nacional. Um dos marcos da arte do período foi a mostra Nova Objetividade Brasileira, ocorrida em abril de 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), que reuniu diversas vertentes da vanguarda brasileira. A proposta mais importante era a busca de soluções autenticamente nacionais, superando a ideia do chamado “quadro de cavalete” para invocar o espectador a participar intensamente da obra de arte, de maneira não apenas visual, mas de uma forma que envolvesse toda a sua corporalidade. É o que se verifica na obra Adoração, apresentada a seguir: Hélio Oiticica e a Tropicália © Nelson Leirner/MASP Hélio Oiticica (1937-1980) foi um dos mais influentes artistas dos anos 1960. Suas obras exploravam o que ele chamava de antiarte, pois buscavam desmistificar o conceito de arte como algo afastado do mundo real e cotidiano. Para isso, o artista esperava que os espectadores tivessem uma participa- Hélio Oiticica. ção ativa na construção do significado de suas obras, abandonando a posição de observação contemplativa para vivenciar a obra de arte numa experiência multissensorial, seja penetrando-a – no caso dos ambientes –, seja vestindo-a, como no caso dos seus famosos parangolés, espécie de capas coloridas com inscrições de poesias. Oiticica foi um artista polêmico. Ele expunha suas convicções de maneira criativa, sempre despertando a curiosidade e a reflexão do público. Fascinado pelo Carnaval carioca, o artista mergulhou na cultura do samba e dos morros da cidade. Em 1965, foi expulso de uma exposição de Arte Moderna e, em represália, trouxe membros da escola de samba Mangueira –vestidos com parangolés – para protestar em frente ao Museu de Arte Contemporânea do Rio de Janeiro. Em 1968, em plena época de endurecimento das repressões na ditadura, Oiticica chocou a opinião púbica nacional com o estandarte “Seja Marginal, Seja Herói”. © Claudio Oiticica 7 © Claudio Oiticica Adoração (Altar para Roberto Carlos). Catraca de ferro, veludo, montagem de imagens religiosas, tela pintada e neon, 1966. Nessa obra, Nelson Leirner se apropria de elementos religiosos e populares de modo a questionar a relação do público com os seus ídolos. A imagem LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 69 Tropicália, de Hélio Oiticica, 1967. 69 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:51 AM Dois nomes paralelos na arte dos anos 1960: Tomie Ohtake e Frans Krajcberg Tropicália é uma instalação (ambiente artístico criado em galerias ou museus) apresentada pela primeira vez em 1967. Uma espécie de labirinto, com areia e pedras pelo chão, que remetia aos becos e ruelas das favelas cariocas. Nas passagens penetráveis de Tropicália havia diversas referências à cultura tropical brasileira, como araras, plantas, pedras, sonoridades típicas. Segundo o seu criador, tratava-se de um ambiente que “ruidosamente apresenta imagens”. Caetano Veloso compôs uma canção com o mesmo nome da obra de Oiticica, que acabou por dar nome ao movimento “Tropicalismo”. Embora os nomes de Tomie Ohtake e Frans Krajcberg não sejam associados imediatamente à arte dos anos 1960 – talvez porque continuem ativos até os dias de hoje –, seus trabalhos desenvolveram características próprias que merecem ser aqui lembradas. Tomie Ohtake Lygia Clark e a dessacralização da arte © Cleo Velleda/Folhapress A artista mineira Lygia Clark (1920-1988), depois de participar do movimento concretista, seguiu um caminho menos racionalista da produção artística. A superação dos papéis preestabelecidos entre produtor/obra/espectador é uma das bases de seu experimentalismo. Assim como Oiticica, a artista incentivava a arte a se tornar uma vivência de apropriação não apenas de caráter intelectual, mas, também, física. Para isso, criou, por exemplo, esculturas livremente moldáveis, de maneira a que cada espectador pudesse fazer, a partir de sua própria vontade e inspiração, formas novas. A razão sobre a emoção: Tomie Ohtake. © Lygia Clark © Instituto Tomie Ohtake, São Paulo Tomie Ohtake nasceu no Japão em 1913 e naturalizou-se brasileira nos anos 1940. Seu trabalho segue um caminho muito particular no quadro da arte da década de 1960, recusando a figuração e as referências ao mundo real ao explorar o abstracionismo em profundos estudos de forma e de cor. A artista também se notabilizou pela construção de grandes esculturas, que hoje enriquecem o espaço público de várias cidades brasileiras. Obra mole, de Lygia Clark. Para Lygia, a inovação deve ser um elemento constituinte do objeto artístico. A artista criava formas em materiais maleáveis e as pendurava em escadas ou paredes. A imprevisibilidade da forma final fazia parte do jogo criativo. Outra de suas composições explorava formas rígidas unidas por dobradiças. O espectador podia manipulá-las como bem entendesse, criando um jogo de invenção que diluía o conceito de autor na obra de arte. TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 70 Sem título, 1968. Ohtake explora a cor e as formas em seu estado puro, sem nenhuma intenção figurativa. A aparente simplicidade de suas telas esconde pensamentos complexos e um domínio paciente da linha e das várias camadas de cores – o que faz lembrar a arte oriental da caligrafia. Diz a pintora: “Eu nunca pintei com o emocional. Sempre pintei mais friamente. É sempre colo- 70 LITERATURA 9/9/13 10:51 AM Alegria, alegria cando camada, camada, camada. Colocando muitas cores, camada, camada até chegar onde eu quero. O gesto era bem mais calmo, caía sempre sobre a tela e seguia uma direção que era mais mental”. Muitas de suas obras nem sequer apresentam títulos, numa recusa à palavra, que indica a predominância da imagem sobre qualquer outro tipo de discurso. Caminhando contra o vento Sem lenço e sem documento No sol de quase dezembro Eu vou O Sol1 se reparte em crimes Espaçonaves, guerrilhas, Em Cardinales2 bonitas Eu vou A consciência revoltada do planeta: Frans Krajcberg O polonês Frans Krajcberg nasceu em 1921. Com 27 anos, transferiu-se para o Brasil após perder a família em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Seu trabalho esteve desde sempre ligado à defesa e preservação da natureza, mesmo quando o discurso ecológico não estava tão em voga como nos dias de hoje. Para Krajcberg, a natureza não funciona apenas como tema, mas como matéria-prima de seu processo criativo: o artista busca materiais calcinados depois de queimados e os reaproveita, incorporando neles cores e formas. Em caras de presidentes Em grandes beijos de amor Em dentes, pernas, bandeiras Bomba e Brigitte Bardot3 [...] Ela pensa em casamento E eu nunca mais fui à escola Sem lenço e sem documento Eu vou Eu tomo uma coca-cola Ela pensa em casamento Uma canção me consola Eu vou Por entre fotos e nomes Sem livros e sem fuzil Sem fome, sem telefone No coração do Brasil © Frans Krajcberg Caetano Veloso. In: <www.caetanoveloso.com.br>. Floração, de Krajcberg, 1968, feita a partir de relevo em flores e madeira pintada. 1. Jornal de vanguarda, à época. 2. Referência a Claudia Cardinale, atriz italiana. 3. Famosa atriz francesa. Em depoimentos, Frans Krajcberg afirma que a terrível experiência da guerra o desiludiu dos seres humanos, o que o levou a buscar refúgio em ambientes naturais. Mas o contato com ecossistemas brasileiros apresentou outra faceta terrível da ação humana na Terra: o desmatamento e as queimadas. A recolha de troncos queimados de madeira e o seu reaproveitamento artístico fez de Krajcberg um dos artistas mais expressivos e atuantes do cenário cultural brasileiro. Seu empenho e valor artístico são reconhecidos internacionalmente. I. “A linguagem era nova, cheia de referências visuais, e tudo estava ali, combinando temas que nem sempre precisam combinar: despreocupação, engajamento político, tecnologia, lirismo...” (Laura de Mello e Souza. Adaptado.) a) Transcreva um verso que ilustre, de modo mais expressivo, o que está destacado nesse comentário. Justifique sua escolha. O verso “Espaçonaves, guerrilhas” reúne os dois elementos destacados no comentário, isto é, tecnologia (“espaçonaves”: referência à corrida espacial que então se iniciava) e política (“guerrilhas”: uma das 1. (Fuvest-SP) Leia os seguintes versos de “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso, e, em seguida, os dois comentários em que os autores explicam por que essa canção é uma de suas prediletas. LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 71 estratégias de luta contra o regime militar instaurado em 1964). 71 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:51 AM IMAGEM E TEXTO PARA A QUESTÃO 3 II. “A canção era importante pela força mágica de afirmar a potência criativa da vida em meio à fragmentação do mundo”. (Jurandir Freire Costa. Adaptado.) b) Transcreva um verso que exemplifique, de modo mais evidente, o que está destacado nesse comentário. Justifique sua escolha. Os versos que evidenciam mais fortemente a visão fragmentada são: “Em dentes, pernas, bandeiras” e “Bomba e Brigitte Bardot”. Neles, misturam-se a referência erótica (“dentes”, “pernas” e “Brigitte © Divulgação Bardot”) e política (“bandeiras” – evidência do nacionalismo engendrado pelo golpe de 1964 – e “bombas” – referência, no plano externo, à corrida armaBandeira-poema Seja marginal, seja herói, de Hélio Oiticica, 1968. mentista e, no interno, ao enfrentamento do regime A arte contemporânea é intervenção crítica na cultura, convidando a uma experiência de subversão – e, eventualmente, de reflexão sobre o sujeito e o mundo [...]. pelas ações da guerrilha armada). 2. (Fuvest-SP) RIVERA, Tania. A criação crítica: Oiticica com Lacan. Disponível em: <www.uva.br/trivium/edicoes/edicao-i-ano-ii/artigos-tematicos /ar-tem1-oiticica-com-lacan.pdf>. Acesso em: 3 jun. 2013. [...] Num tempo Página infeliz da nossa história Passagem desbotada na memória Das nossas novas gerações Dormia A nossa pátria mãe tão distraída Sem perceber que era subtraída Em tenebrosas transações [...] 3. Considerando o comentário crítico anterior, de que maneira a obra “Seja marginal, seja herói” pode ser considerada uma “experiência de subversão” no contexto social brasileiro do final dos anos 1960? Certamente a obra de Oiticica proporcionava essa “experiência de subversão”. Propõe-se uma “intervenção crítica” na sociedade, pois Oiticica considera o marginal (entendido como um sujeito delinquente, um “fora da “Vai passar”, de Chico Buarque e Francis Hime. lei”) um herói, ou seja, um modelo de comportamento. a) É correto afirmar que o verbo dormia tem uma conotação positiva, tendo em vista o contexto em que ele ocorre? Justifique sua resposta. Não. Dormia tem conotação negativa no trecho, já Tal mensagem “subversiva” é acentuada ainda pela cor vermelha do estandarte, o que seria facilmente associado à cor do comunismo, no período da Guerra Fria. que serve para denunciar a distração da “nossa pátria mãe”, incapaz de perceber a ocorrência de “tenebrosas transações”. b) Identifique, nos três últimos versos, um recurso expressivo sonoro e indique o efeito de sentido que ele produz. Não considere a rima “distraída” / “subtraída”. A aliteração da consoante /s/ sugere a atmosfera TAREFA MÍNIMA t Leia o texto da aula. Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 1 e 2. de surdina em que ocorrem as “tenebrosas transações”. Além disso, a repetição da consoante /t/ su- TAREFA COMPLEMENTAR gere a agressividade própria do regime autoritário Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 3 e 4. que dominava o país no tempo da canção. TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 72 72 LITERATURA 9/9/13 10:51 AM ANOS 1960 CINEMA E TEATRO Nelson Pereira dos Santos Breve histórico do cinema brasileiro no início do século XX © Patrícia Santos/Folhapress Cartaz do filme O Ébrio, de Gilda de Abreu (1946). © Divulgação Nelson Pereira dos Santos (1928) é o primeiro cineasta brasileiro a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Iniciou um processo de transformação do cinema brasileiro desde seu primeiro longa-metragem, Rio 40 graus, de 1955, que apresentava a vida difícil nas favelas cariocas em contraste com a futilidade da zona sul. É o responsável pela criação de um dos filmes mais premiados de todo o cinema nacional, considerado uma obra-prima: Vidas secas, finalizado em 1963, adaptação do romance de Graciliano Ramos. © Divulgação © Divulgação Pôster do filme O descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro (1937). Baiano de Vitória da Conquista, Glauber Rocha (1939-1981) fundou, ao lado de seus amigos, em 1956, a Cooperativa Cinematográfica Yemanjá, e era visto pela ditadura militar como um elemento subversivo. Realizou três filmes fundamentais para a história do cinema nacional, nos quais uma crítica social feroz se alia a uma forma de filmar que pretendia cortar radicalmente com o estilo americano: Deus e o Diabo na terra do sol (1964), Terra em transe (1967) e O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro (1969). Embora Glauber tenha sido um cineasta controvertido e incompreendido no seu tempo, tornou-se internacionalmente conhecido pelos prêmios que conquistou: o de Crítica, do Festival de Cannes; o Luis Buñuel, na Espanha; o Melhor filme, do Locarno International Film Festival; e o Golfinho de Ouro de melhor filme do ano, no Rio de Janeiro, todos por Terra em transe. Cartaz do filme Orfeo Negro (ou Orfeo do Carnaval), de Marcel Camus (1958). A produção do cinema nacional iniciou-se nos anos 1930, mas efetivou-se nos anos 1950, com a implantação de grandes estúdios de produção cinematográfica que acompanhou a euforia de uma ideologia nacional-desenvolvimentista que acreditava na possibilidade de crescimento do cinema nacional. O ritmo de produção do cinema brasileiro atingiu então um esquema industrial, principalmente em São Paulo, em filmes que valorizavam manifestações de cunho folclórico, como O cangaceiro (1953), por exemplo. Ainda no início da década de 1950, algumas ideias com potencial transformador começaram a ganhar força nos meios de produção cinematográfica. O cineasta Nelson Pereira dos Santos defendia uma produção voltada para a reflexão em torno da realidade nacional. LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 73 Glauber Rocha 73 © Paulo Moreira / Agência O Globo 1 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:51 AM Rio, 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos, 1955. Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, 1963. 3_TERC_8_LIT.indd 74 Terra em transe, de Glauber Rocha, 1967. mo da política brasileira, anterior ao golpe onde operários e camponeses aparecem como massa de manobra, pois só podiam agir quando o espaço político lhes era oferecido de maneira paternalista. Leia a seguir um trecho do roteiro da obra de maior destaque de Glauber Rocha: Há alguns momentos históricos em que certos acontecimentos parecem convergir convenientemente para o desenvolvimento de novas tendências e manifestações artísticas, que reflitam a maneira de pensar de determinado período. O movimento do Cinema Novo, por exemplo, propunha uma fuga dos padrões luxuosos de produção norte-americanos, com a adoção do lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Além disso, adotava uma postura crítica diante da situação política brasileira. Três obras de temática marcadamente rural, que abordavam especificamente a pobreza da região Nordeste, Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos), Deus e o Diabo na terra do sol (Glauber Rocha) e Os fuzis (Ruy Guerra), são os primeiros títulos do Cinema Novo, produzidos até o golpe militar de 1964. Com o golpe de 1964, ficou cada vez mais difícil discutir explicitamente a realidade política e social do Brasil. O Cinema Novo passou então a desenvolver uma tendência autocrítica e metalinguística que colocava em foco sua própria atuação como agente social de uma classe média urbana, cuja atuação política começa a ser focalizada de forma crítica. Alguns exemplos dessa tendência são filmes como O desafio (Paulo Cesar Saraceni, 1965), O bravo guerreiro (Gustavo Dahl, 1969) e Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969). É, porém, Terra em transe, de Glauber Rocha, o exemplo mais significativo do Cinema Novo depois do golpe de 1964. Com uma narrativa completamente fragmentada, o filme trata de uma revisão crítica dos acontecimentos anteriores ao golpe. No enredo, Eldorado é um país imaginário onde os interesses do povo são manipulados por políticos demagogos. O filme faz críticas em relação à esquerda e ao populisTERCEIRÃO 8 © Divulgação © Divulgação O Cinema Novo no Brasil © Divulgação 2 Terra em transe LAMARTINE (Lamartine se exalta, o Cardeal a seu lado.) — Precisamos fundar novas cidades, abrir grandes estradas, construir escolas! Os detratores não sabem que Juscelino fez o mais importante Governo do Brasil: construiu Brasília, desfraldou a bandeira do nacionalismo, Três Marias, Furnas – a força do desenvolvimento, a aurora do nacionalismo nasceu deste homem cujos erros tinham a mesma grandeza de seus acertos... Precisamos de trezentas cidades no Amazonas, precisamos restaurar o espírito dos bandeirantes, o espírito do Pe. Antônio Vieira! As vacas começam a berrar. Os vaqueiros cercam as vacas, montando nos seus cavalos. Começa um aboio Jordan e o Piloto levam Lamartine para o helicóptero. Bisquê idem. Silvino observa ao fundo. Sanfonas, movimento – divertem-se. Paulo sente calor, alheio àquilo, bebe cerveja. Ouve o barulho do helicóptero. O helicóptero sobe, Silvino olha, Bisquê vem ao fundo, corre em direção a Silvino. BISQUÊ — Grande homem, o Dr. Lamartine! O Embaixador fixa Silvino, assustado. Silvino o abraça. O barulho do helicóptero. SILVINO — O senhor vai servir onde agora? BISQUÊ — Gostaria de servir no México... 74 LITERATURA 9/9/13 10:52 AM SILVINO — Qual sua posição política? 3 O papel do teatro BISQUÊ — Um liberal conservador, ou melhor, um conservador liberal... Silvino dá uma bruta gargalhada e bate na barriga do Embaixador. O helicóptero neste momento passa sobre eles, levanta o vento e espalha o ruído. Bisquê foi por terra, sob o vento, tenta se compor, Silvino sorri, Paulo entra em campo com o copo de cerveja, Silvino grita. © Carlo/Cedoc/Funarte SILVINO — Embaixador, pra se subir no Governo Federal é preciso ser de esquerda. Comunista não, veja bem... De esquerda! CAM sobe com música. TRAV aéreo. Os vaqueiros cercam a boiada que se movimenta. O americano, no jipe, descreve um círculo, buzinando gritando como um cowboy. CAM afasta-se, estoura uma música carnavalesca. CORTE. Sequência 6 Montagem de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, encenado pelo grupo Os comediantes. É consenso absoluto entre críticos e estudiosos do teatro no Brasil que Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, é o marco do moderno teatro brasileiro. A encenação realizada pelo grupo Os comediantes, em 1943, dirigida pelo encenador polonês Ziembinski, entraria para a história das artes dramáticas do país. Dividindo o palco em três planos (memória, alucinação e realidade), o espetáculo acompanhava o delírio de Alaíde, uma mulher casada com Pedro, por sua vez desejado pela irmã dela: Lúcia. A protagonista, após sofrer um atropelamento, se encontra em sua alucinação com a lendária prostituta Madame Clessi, que a ajuda a reconstituir sua trajetória até aquele ponto da vida. Foi necessário algum tempo para que novos dramaturgos da mesma importância de Nelson Rodrigues surgissem na cena brasileira depois do fenômeno Vestido de noiva. Com o olhar voltado para o universo das fazendas e da família tradicional do interior do Brasil, o paulista Jorge Andrade desenvolveu sua dramaturgia. A peça A moratória estreou em 1954 e também se tornou um marco no trabalho de análise da formação da sociedade paulista e brasileira, focalizando a decadência dos valores patriarcais no Brasil, principalmente durante o período do ciclo do café. TRAV. DESCONTÍNUO. Mulheres fantasiadas dançando histéricas. Estamos num baile de Carnaval, num Clube pequeno. Animação. Uma mulher loura dá um longo beijo em Paulo. Paulo fantasiado simplesmente, de marinheiro, afasta-se, um pouco bêbado e se dirige ao bar. Confusão generalizada. Consegue disputar um uísque. Subitamente atacam Paulo de lança-perfume e gritos e beijos. São Marina e Álvaro. Paulo, feliz com a descoberta, os beija. TRAVS DESCONTÍNUOS. Corre o Carnaval. Paulo, Marina e Álvaro se divertem, felizes. Detalhes de um préstito, clima de sonho. Sucedem-se os préstitos, trombetas. A Escola de Samba desfila, insólita e agressiva. Oscilam bandeiras. Estoura o Baile do Municipal. São sequências rápidas e fortes, dando a passagem de tempo do Carnaval. TRAV LATERAL, veloz, passa levando Paulo, Marina e Álvaro, alegres, confundem-se com outros foliões, cresce. ROCHA, Glauber. Terra em transe (primeiro tratamento). In: Roteiros do Terceiro Mundo. Organização: Orlando Senna. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1985. Não é difícil perceber o caráter fragmentário do roteiro de Glauber Rocha, na medida em que as falas não constituem exatamente um diálogo linear e Lamartine fala sozinho e Silvino e Bisquê parecem não se entender. Além disso, há a presença da ironia na resposta de Bisquê, que não quer se posicionar politicamente e simplesmente se declara um liberal conservador ou um conservador liberal, expressões que não esclarecem nada. As rubricas que fazem menção a um rebanho de vacas, ao calor, a helicópteros e ao Carnaval sugerem uma grande movimentação que aproxima o urbano e o rural, os homens e as vacas, como se todos fossem sempre sujeitos à manipulação de alguém. LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 75 4 O teatro brasileiro da década de 1960 – movimentos e artistas Muitas manifestações diferentes marcavam o desenvolvimento do teatro brasileiro no início dos anos 1960: novos dramaturgos, diretores que propunham uma nova visão de encenação, grupos que inovaram a expressão teatral, tanto como arte quanto como ato político. Nessa cena, dois grupos e seus trabalhos no período se destacaram significativamente. 75 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:52 AM ternacional em 1967, com a montagem do texto de Oswald de Andrade, O rei da vela. As montagens de Galileu Galilei em 1968 e Na selva das cidades, em 1969, ambas de Bertolt Brecht, coroam esse movimento ascensional e são consideradas perfeitas recriações brasileiras do universo do autor alemão. Entre tantos artistas e estudiosos de teatro surgidos no período, dois dramaturgos merecem destaque especial: Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho, também conhecido como Vianinha. Fundado em São Paulo no ano de 1953, o Teatro de Arena transformou-se, em pouquíssimo tempo, em sinônimo de teatro engajado e comprometido com questões políticas e sociais. Realizando suas apresentações em pequenos clubes, fábricas e saO diretor Augusto Boal (1931-2009). lões, o grupo conseguiu ter seu próprio teatro no final de 1954, uma pequena sala localizada à rua Teodoro Baima, no centro da cidade, onde se localiza até hoje. Augusto Boal, diretor teatral recém-chegado de uma temporada em Nova York, uniu-se ao grupo para apresentar o método de interpretação realista do russo Stanislavski, que aprendera nos Estados Unidos. Foi o trabalho com o encenador que acabou por dar à companhia um caráter de esquerda que possibilitou o desenvolvimento do método do Teatro do Oprimido, em que o público pode participar do espetáculo, abordando e buscando compreender melhor seus conflitos internos e relacionais por meio do teatro. A participação de dramaturgos como Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho foi responsável por grandes sucessos da companhia como Eles não usam black tie (1958) e Chapetuba Futebol Clube (1959). Foi, porém, em 1965, que o grupo encontrou uma maneira muito particular de expressar suas ideias acerca do cenário político brasileiro e da história do Brasil, criando o conhecido sistema “coringa”, no qual todos os atores se revezam para representar todas as personagens. O sucesso estrondoso de Arena conta Zumbi (1965) se repete em Arena conta Tiradentes (1967), ambos realizados pela parceria de sucesso entre Guarnieri e Augusto Boal. Oduvaldo Vianna Filho Filho de Oduvaldo Vianna, também figura importante do teatro brasileiro, Vianinha (1936-1974) estreou como dramaturgo em 1959, ao escrever Chapetuba Futebol Clube. Participou como ator do filme Cinco vezes favela em 1962, importante representante do Cinema Novo e, junto de Armando Costa, criou e dirigiu, na Rede Globo de Televisão, uma das séries humorísticas de maior sucesso na TV brasileira: A grande família, que voltaria a ser apresentada na mesma emissora. Sua peça mais elogiada pela crítica é Rasga coração, que ele terminou de escrever poucos dias antes de falecer, vitimado por um câncer pulmonar, com apenas 38 anos de idade. Gianfrancesco Guarnieri Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) foi criado em São Paulo, cidade onde chegou de Milão com a família no início dos anos 1950. Foi líder estudantil desde a adolescência e começou a fazer teatro amador com Oduvaldo Vianna Filho, com quem criou, em 1955, o Teatro Paulista do Estudante, que, no ano seguinte, uniu-se ao Teatro de Arena. Sua peça de estreia, como dramaturgo, foi Eles não usam black tie, em 1958, pelo Teatro de Arena. A peça, dirigida por José Renato, contou com um elenco de grandes talentos que começavam a despontar no teatro brasileiro. Programada para encerrar o trabalho do grupo, que vivia uma crise financeira, alcançou sucesso imenso, sendo um dos marcos da renovação do teatro brasileiro da época. Ao longo de sua jornada, Guarnieri escreveu outros textos importantes, como Gimba e A semente, e participou de montagens fora do Teatro de Arena Teatro Oficina Criado no diretório acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, o Teatro Oficina se profissionalizou em 1961, quando adquiriu o Teatro Novos Comediantes, onde funciona até hoje. Em 1964, durante o golpe militar, estava em cartaz a montagem realista Os pequenos burgueses, de Máximo Gorki. Depois de um incêndio em 1966, o grupo fez remontagens de antigos sucessos para levantar fundos para a reconstrução do teatro até alcançar grande notoriedade e reconhecimento inTERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 76 76 © Léo Drumond/Folhapress © Dadá Cardoso/Folhapress Teatro de Arena LITERATURA 9/9/13 10:52 AM OTÁVIO Minha gente, vocês querem dá um pulo lá fora; esse rapaz quer conversá comigo. com Maria Della Costa e também no Teatro Brasileiro de Comédia, TBC, até retornar como ator e como autor em sucessos emblemáticos na história do grupo como Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta Tiradentes (1967), textos em que utiliza uma linguagem metafórica e alegórica devido ao complicado panorama político do momento. Gianfrancesco também se tornou um ator conhecido na televisão brasileira, tendo atuado em séries e inúmeras telenovelas. ROMANA Eu preciso mesmo recolhê a roupa! JOÃO Já vou indo, então. Até logo, seu Otávio, e parabéns! OTÁVIO Obrigado! (Saem. Tião e Otávio ficam a sós.) Bem, pode falá. Eles não usam black tie – os operários em cena no teatro brasileiro TIÃO Papai… Primeira peça de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não usam black tie, de 1958, foi muito importante na revisão da forma de se fazer teatro no final da década de 1950, que influenciaria toda a dramaturgia dos anos 1960. No lugar de cenários grandiosos e figurinos luxuosos, ficaram apenas os elementos de cena indispensáveis. Ao invés de personagens ricas e nobres, operários e moradores do morro tomaram o palco. Pela primeira vez, conflitos básicos da realidade operária brasileira ganhavam espaço na dramaturgia nacional. A ação da peça se desenrola em uma favela, nos anos 1950, e tem como tema a greve de uma indústria em que trabalhavam juntos pai (Otávio) e filho (Tião). O mote principal do texto é o choque entre os dois, com posições ideológicas opostas, diante da situação de greve. O pai tem um espírito sonhador e idealista, tendo exercido várias lideranças e sofrido algumas prisões, o que o tornou um dos principais membros do movimento grevista. Já o filho, criado na cidade com os padrinhos, nunca conviveu com esse mundo de luta e reivindicação da classe operária. Depois de adulto e morando no morro com os pais, Tião vive um dos maiores conflitos de sua vida. Não quer aderir à greve, pois acha que essa é uma luta inglória, sem resultados para a classe, e pretende se casar com Maria, moça simples, porém determinada e leal ao seu povo, que está esperando um filho seu. No momento da greve, Tião está mais preocupado com o seu futuro do que com a luta de seus companheiros, que considera utópica. Leia a seguir o trecho final da obra. OTÁVIO Me desculpe, mas seu pai ainda não chegou. Ele deixou um recado comigo, mandou dizê pra você que ficou muito admirado, que se enganou. E pediu pra você tomá outro rumo, porque essa não é casa de fura-greve! TIÃO Eu vinha me despedir e dizer só uma coisa: não foi por covardia! OTÁVIO Seu pai me falou sobre isso. Ele também procura acreditá que num foi por covardia. Ele acha que você até que teve peito. Furou a greve e disse pra todo mundo, não fez segredo. Não fez como o Jesuíno que furou a greve sabendo que tava errado. Ele acha, o seu pai, que você é ainda mais filho da mãe! Que você é um traidô dos seus companheiro e da sua classe, mas um traidô que pensa que tá certo! Não um traidô por covardia, um traidô por convicção! TIÃO Eu queria que o senhor desse um recado a meu pai… OTÁVIO Vá dizendo. TIÃO Que o filho dele não é um “filho da mãe”. Que o filho dele gosta de sua gente, mas que o filho dele tinha um problema e quis resolvê esse problema de maneira mais segura. Que o filho é um homem que quer bem! OTÁVIO Seu pai vai ficá irritado com esse recado, mas eu digo. Seu pai tem outro recado pra você. Seu pai acha que a culpa de pensá desse jeito não é sua só. Seu pai acha que tem culpa... TIÃO (a Otávio) Eu queria conversá com o senhor! TIÃO Diga a meu pai que ele não tem culpa nenhuma. OTÁVIO Comigo? OTÁVIO (perdendo o controle) Se eu te tivesse educado mais firme, se te tivesse mostrado melhor o que é a vida, tu não pensaria em não ter confiança na tua gente… TIÃO (firme) É. LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 77 77 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:52 AM TIÃO Meu pai não tem culpa. Ele fez o que devia. O problema é que eu não podia arriscá nada. Preferi tê o desprezo de meu pessoal pra poder querer bem, como eu quero querer, a tá arriscando a vê minha mulhé sofrê como minha mãe sofre, como todo mundo nesse morro sofre! d) realização de produções de custos reduzidos, caracterizadas pelo uso de novas linguagens e inovações cênicas. e) descoberta de novos talentos tanto na dramaturgia como na direção de cinema e teatro no Brasil. 2. Todas as características listadas abaixo estão relacionadas ao movimento do Cinema Novo, EXCETO: a) a preocupação em pensar o Brasil subdesenvolvido. b) o desenvolvimento de uma linguagem cinematográfica própria. c) a prática de um cinema de autor. ➜ d) o aproveitamento de pressupostos criados pelo cinema americano do período. e) as produções simples e orçamentos relativamente baixos. OTÁVIO Seu pai acha que ele tem culpa! TIÃO Tem culpa de nada, pai! OTÁVIO (num rompante) E deixa ele acreditá nisso, senão ele vai sofrê muito mais. Vai achar que o filho dele caiu na merda sozinho. Vai achar que o filho dele é safado de nascença. (Acalma-se repentinamente.) Seu pai manda mais um recado. Diz que você não precisa aparecê mais. E deseja boa sorte pra você. 3. (Enem) Teatro do Oprimido é um método teatral que sistematiza exercícios, jogos e técnicas teatrais elaboradas pelo teatrólogo brasileiro Augusto Boal, recentemente falecido, que visa à desmecanização física e intelectual de seus praticantes. Partindo do princípio de que a linguagem teatral não deve ser diferenciada da que é usada cotidianamente pelo cidadão comum (oprimido), ele propõe condições práticas para que o oprimido se aproprie dos meios do fazer teatral e, assim, amplie suas possibilidades de expressão. Nesse sentido, todos podem desenvolver essa linguagem e, consequentemente, fazer teatro. Trata-se de um teatro em que o espectador é convidado a substituir o protagonista e mudar a condução ou mesmo o fim da história, conforme o olhar interpretativo e contextualizado do receptor. TIÃO Diga a ele que vai ser assim. Não foi por covardia e não me arrependo de nada. Até um dia. (Encaminha-se para a porta.) OTÁVIO (dirigindo-se ao quarto dos fundos) Tua mãe, talvez, vai querê falá contigo. Até um dia! (Tião pega uma sacola que deve estar debaixo de um móvel e coloca seus objetos. Camisas que estão entre as trouxas de roupa, escova de dentes etc.) GUARNIERI, Gianfrancesco. Eles não usam black tie. In: O melhor teatro – Gianfrancesco Guarnieri. Seleção Décio de Almeida Prado. São Paulo: Global, 1986. A grande qualidade do trabalho de Gianfrancesco Guarnieri pode ser facilmente percebida neste trecho da peça. A discussão entre o filho e o pai, que fala de si mesmo na terceira pessoa, é recheada de lirismo e profundidade que transcendem a questão política debatida. A despedida entre os dois, que percebem a impossibilidade de continuar a dividir a mesma casa, é capaz de arrancar lágrimas da plateia sem ser piegas ou exagerada. Companhia Teatro do Oprimido. Disponível em: <www.ctorio.org.br>. Acesso em: 1o jul. 2009 . Adaptado. Considerando-se as características do Teatro do Oprimido apresentadas, conclui-se que: a) esse modelo teatral é um método tradicional de fazer teatro que usa, nas suas ações cênicas, a linguagem rebuscada e hermética falada normalmente pelo cidadão comum. b) a forma de recepção desse modelo teatral se destaca pela separação entre atores e público, na qual os atores representam seus personagens e a plateia assiste passivamente ao espetáculo. ➜ c) sua linguagem teatral pode ser democratizada e apropriada pelo cidadão comum, no sentido de proporcionar-lhe autonomia crítica para compreensão e interpretação do mundo em que vive. d) o convite ao espectador para substituir o protagonista e mudar o fim da história evidencia que a proposta de Boal se aproxima das regras do teatro tradicional para a preparação de atores. e) a metodologia teatral do Teatro do Oprimido segue a concepção do teatro clássico aristotélico, que visa à desautomação física e intelectual de seus praticantes. 1. O Cinema Novo e o movimento de renovação teatral liderado pelo Teatro de Arena e pelo Grupo Oficina foram expressões artísticas, com objetivos e características comuns, afinadas com o contexto brasileiro das décadas de 1950 e 1960 do século passado. Entre as características desses movimentos culturais, NÃO se inclui a: ➜ a) vinculação a grandes estúdios cinematográficos e a companhias teatrais já estabelecidas. b) concepção da obra de arte como meio de conscientização política, influenciada por tendências de esquerda. c) crítica à realidade brasileira, aos seus problemas e contradições, com forte conteúdo social. TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 78 78 LITERATURA 9/9/13 10:52 AM 4. (Ufscar-SP) Uma peça de grande importância para o teatro brasileiro é Eles não usam black tie, escrita por Gianfrancesco Guarnieri em 1955, e montada pela primeira vez em 1958 pelo Teatro de Arena de São Paulo. É correto afirmar que a importância da peça deve-se ao fato de: a) b) ➜ c) d) e) inaugurar o Teatro de Arena como espaço de mobilização contra o poder instituído. salientar o papel da burguesia urbana no desenvolvimento econômico nacional. ter ressaltado uma dramaturgia de cunho social, que punha em cena a classe operária. mostrar a decadência da aristocracia rural diante do desenvolvimento social nas cidades. incorporar uma estética norte-americana na dramaturgia do teatro brasileiro. TAREFA MÍNIMA TAREFA COMPLEMENTAR t Leia o texto da aula. Caderno de Exercícios t Faça o exercício 1. Caderno de Exercícios t Faça o exercício 2. LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA PROSA 1 primeiros anos. Assim, algumas obras que atacavam diretamente o autoritarismo militar puderam vir à luz. Foi o caso do livro Quarup, de Antonio Callado, publicado em 1967. Nando se aproximou. Olhou pela janela. Não tinha ninguém, mas no quadro-negro se lia: As marcas da ditadura © KAORU/CPDoc JB Arara Vovô vê a arara ele vê a arara ele vê o dedo A repressão que se seguiu ao golpe civil-militar de 1964 atingiu iniciativas de difusão cultural, como as mantidas pela União Nacional dos Estudantes (UNE). A instituição organizava os Centros Populares de Cultura (CPC), que defendiam um projeto de conscientização política das classes po- Antonio Carlos Callado (1917pulares por intermédio da -1997) foi um jornalista e escritor brasileiro, cujas obras reflearte. Ainda em 1964, a UNE tiam a situação política do país. seria declarada ilegal. A despeito dessa agressão inicial, muitas manifestações contrárias ao golpe foram toleradas nos LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 79 © César Itiberê/Folhapress Oposição ao golpe de 1964. 79 As grandes palavras majestosas tinham desaparecido das paredes onde antes explodiam com uma dureza de arte nova: TIJOLO, ENXADA, JANGADA. No canto onde se pendurava um cartaz com o emblema das Nações Unidas havia agora outro de um homem com um boné de operário russo, botas tintas de sangue, andando em cima do mapa do Brasil com uma foice e um martelo. [...] Mas viu de longe o mastro com a bandeira subindo feito uma flor de ouro e verde [...]. Já bem perto procurou na base o único azulejo diferente, a inscrição em letras verdes no ladrilho branco: Terra do Centro Geográfico do Brasil. À memória de Levindo, amigo dos camponeses. O azulejo tinha sido arrancado. Tapando o buraco, apoiada contra a base do monumento, uma tábua quadrada, provisória, com os dizeres: Terra do Centro Geográfico do Brasil. Viva a Revolução, 31 de Março de 1964. Sem olhar para os lados, sem pensar em nada, concentrado a fundo no que fazia, Nando TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:52 AM abriu a braguilha das calças e mijou pausadamente em cima da placa. não ser as respostas às perguntas que fariam. Onde estava Salgado? Não sabia, não sabia onde estava ninguém. Capitão Albernaz bateu de novo na mesa e Raul, um policial que funcionava na sua equipe, exibiu o telefone de campanha e disse que iria falar com Fidel Castro. Ligaram os fios na minha mão e começaram a dar choques e perguntar por pessoas. [...] Minha reação diante dos primeiros choques foi uma reação de homem civilizado, creio: fiquei perplexo em ver que aquilo existia e que havia pessoas que o empregavam. Claro que já sabia disso por outros caminhos, mas agora estava vendo e era o mesmo que ver crianças arrancando as pernas de um passarinho. Como é que isto era possível em gente daquela idade? Enquanto pensava, ia tomando novos choques e quando passaram os fios para a ponta da orelha realmente deixei de pensar em outra coisa, exceto na necessidade de não deixar que minha cabeça se partisse. Cada vez que davam o choque, tinha uma profunda sensação de dilaceramento, da cabeça se partindo em duas, e acreditava que podia fazer alguma coisa com o corpo para mantê-la intacta. Quarup acompanha a trajetória do Padre Nando, desde seus dilemas íntimos em torno da vocação religiosa, que o levam à experiência sexual, até o envolvimento com as questões sociais, que o conduz à opção pela luta armada contra o regime que assassinara o líder camponês Levindo. Na cultura indígena, a expressão quarup designa a celebração da morte de um guerreiro. A festividade que marca o evento associa morte e vida. Da mesma maneira, o romance, por intermédio da trajetória de Nando, tenta aproximar a morte de projetos populares com a possibilidade de retomá-los na luta social. No trecho, ocorre o contraste entre a posição oficial (no cartaz de alfabetização, de cunho alienante, e nos símbolos nacionais explorados de forma a construir a apologia da Revolução de 64) e aquela assumida por Nando, de agressiva repulsa ao novo regime. Em dezembro de 1968, foi decretado o Ato Institucional no 5 (AI-5), que fechou o Congresso e concedeu ao governo poderes de perseguição e censura. A partir de 1974, pressões populares impuseram aos militares a necessidade de fazer concessões no sentido da abertura política. Foi um processo demorado e oscilante, marcado por ações dos setores mais radicais do governo, como a tortura e o assassinato do jornalista Vladimir Herzog (1975) e do operário Manuel Fiel Filho (1976) e o frustrado atentado à bomba contra a celebração do Dia do Trabalhador, no Rio de Janeiro, em 1981. A anistia aos exilados, promulgada em 1979, trouxe de volta ao Brasil boa parte dos que haviam sido perseguidos durante a ditadura. Alguns deles publicaram então uma série de relatos autobiográficos que fornecem um quadro vivo e dramático dos anos mais terríveis da ditadura. Um exemplo importante é O que é isso, companheiro (1979), de Fernando Gabeira. GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro?. Rio de Janeiro: Codecri, 1979. O depoimento chocante das torturas sofridas pelos que eram aprisionados expunha a face mais covarde do regime militar. O estilo simples e direto do narrador estabelece uma empatia forte com o leitor. Além disso, o distanciamento temporal faz com que, paralelamente aos relatos, tenhamos o desenvolvimento de reflexões a respeito de temas políticos e sociais que iam além do episódio relatado. 2 A temática da violência Com o fim da censura, algumas obras que haviam sido proibidas foram enfim publicadas. O volume de contos Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, foi recolhido por ação da censura em 1975, e o escritor só conseguiu a liberação catorze anos depois. Nele, Rubem explorava um tema que se tornaria sua marca registrada: a violência urbana. Fernando Paulo Nagle Gabeira (1941) era jornalista quando se envolveu com o movimento armado que pretendia derrubar a ditadura. Preso e exilado em 1970, retornou ao Brasil com a anistia. © Paulo Moreira/Agência O Globo © Divulgação/Companhia das Letras CALLADO, Antonio. Quarup. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. O Capitão Albernaz bateu furiosamente na mesa, mandou que me sentasse e fez um pequeno discurso. Os outros se colocaram em torno de mim enquanto ele ia falando que era muito burro, muito muito burro, de forma que com ele não adiantava conversa pois não ouviria nada a TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 80 José Rubem Fonseca (1925) formou-se em Direito e exerceu diversas atividades antes de se dedicar plenamente à literatura, tornando-se um dos autores mais lidos do país. 80 LITERATURA 9/9/13 10:52 AM Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro toda as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bem materiais, minha mulher respondeu. [...] Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio. Dalton Trevisan se destaca entre os praticantes do gênero no Brasil por seu constante esforço minimalista, com o enxugamento da narrativa, reduzida aos seus elementos essenciais. O leitor consegue apreender todos os fatos envolvidos no conto transcrito apenas com os dois parágrafos que compõe o texto. O discurso direto (primeiro parágrafo) sugere a transmissão oral que faz lembrar a maledicência da fofoca. O estilo do narrador (segundo parágrafo) incorpora alguns procedimentos próprios dessa oralidade – como o que se verifica em “fazer a barba no sargento”. 4 O Surrealismo, surgido nos anos 1920, trouxe a corrente artística da literatura fantástica, na qual acontecimentos inusitados eram narrados de forma a lhes conferir completa naturalidade. A América Latina foi um terreno fértil para obras desse tipo, como mostram os romances Cem anos de solidão (1967), do colombiano Gabriel García Márquez, e O púcaro búlgaro (1964), do brasileiro Campos de Carvalho. Entre nós, o escritor mais conhecido nesse terreno foi Murilo Rubião, com contos que mostram personagens com cotidianos banais repentinamente quebrados por circunstâncias insólitas. FONSECA, Rubem. Passeio noturno (parte I). In: Feliz ano novo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Nos contos de Rubem Fonseca, a banalização da violência, muitas vezes cometida por pessoas comuns, é utilizada para acentuar a barbárie presente na civilização moderna. No trecho transcrito, um homem se dedica a uma estranha diversão: atropelar pessoas nas ruas. A frieza do narrador-personagem se manifesta nos detalhes que fornece do atropelamento. O escritor inova ainda no estilo, ao retirar do texto as marcas gráficas próprias do discurso direto. O conto Desde os anos 1970, quando o país viveu o chamado boom do conto, a narrativa curta manteve apelo considerável junto ao público leitor, projetando nomes como os de Fernando Sabino, Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan, Luis Fernando Verissimo, Moacyr Scliar, Domingos Pellegrini, entre muitos outros. © Agência Estado 3 A literatura fantástica – O primeiro marido tem dinheiro de sobra. E ela, uma vida regalada. Até o cara ser preso como traficante. O segundo marido ganha bem, mas judia dela. Arrasta pelo cabelo, morde, tira sangue. O terceiro, sargento reformado, é manso e quieto. Só que bebe até cair. Internando-o na clínica, ela recebe uma pequena pensão. Logo se amiga com o tipo mais novo. Não se droga, não fuma, não bate, não bebe. Mas também não trabalha. Daí ela visita o marido no asilo: “Deus te mandou, minha santa. Você meio me buscar”. Com dó, leva-o para casa e vivem os três da mesma pensão. O amante não está feliz, tem de dar banho e fazer a barba no sargento. Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmente comprometida pelas absurdas discussões surgidas com a chegada deles ao lugar. Poucos souberam compreendê-los e a ignorância geral fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdêssemos em contraditórias suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer. A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário. Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e meiga, não passavam de enviados do demônio, não me permitiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa casa TREVISAN, Dalton. Conto 98. In: Pico na veia. Rio de Janeiro: Record, 2002. LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 81 Murilo Eugênio Rubião (1916-1991), jornalista e escritor, exerceu grande influência na vertente surrealista da literatura brasileira. 81 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:52 AM velha, previamente exorcismada, onde ninguém poderia penetrar. Ao se arrepender de seu erro, a polêmica já se alastrara e o velho gramático negava-lhes a qualidade de dragões, “coisa asiática, de importação europeia”. Um leitor de jornais, com vagas ideias científicas e um curso ginasial feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se, mencionando mulas sem cabeça, lobisomens. que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sentamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol ia se pondo, e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo pela insistência da pergunta que respondi “você já jantou?” e como ela dissesse “mais tarde” eu então me levantei e fui sem pressa pra cozinha (ela veio atrás), tirei um tomate da geladeira, fui até a pia e passei uma água nele, depois fui pegar o saleiro do armário me sentando em seguida ali na mesa (ela do outro lado acompanhava cada movimento que eu fazia, embora eu displicente fingisse que não percebia), e foi sempre na mira dos olhos dela que comecei a comer o tomate, salgando pouco a pouco o que ia me restando na mão, fazendo um empenho simulado na mordida pra mostrar meus dentes fortes como os dentes de um cavalo, sabendo que seus olhos não desgrudavam da minha boca, e sabendo que por baixo do seu silêncio ela se contorcia de impaciência, e sabendo acima de tudo que mais eu lhe apetecia quanto mais indiferente eu lhe parecesse, eu só sei que quando acabei de comer o tomate eu a deixei ali na cozinha e fui pegar o rádio que estava na estante lá da sala, e sem voltar pra cozinha a gente se encontrou de novo no corredor, e sem dizer uma palavra entramos quase juntos na penumbra do quarto. RUBIÃO, Murilo. Os dragões. In: O pirotécnico Zacarias. 17. ed. São Paulo: Ática, 1995. Uma das marcas da literatura fantástica é a inversão de expectativas. No trecho transcrito, o absurdo do aparecimento de dragões em uma cidade abre a narrativa de forma natural, sem nenhum questionamento prévio. O que o narrador considera “absurdas” são, na verdade, as “discussões surgidas com a chegada” dos dragões, e não a presença deles em si. O olhar inusitado lançado sobre a realidade acaba por levantar questionamento em torno do que se considera normal ou natural. Dois nomes consagrados Entre os autores brasileiros em atividade, muitos são aqueles que mereceriam uma referência. Lygia Fagundes Telles (Conspiração de nuvens, 2007) e Nelson Oliveira (Poeira – demônios e maldições, 2010), entre muitos outros, mantêm o nível de suas obras, já contando com uma carreira sólida e uma legião de leitores. Chico Buarque, reconhecido principalmente como compositor, mostra a mesma perícia no tratamento da prosa, desde Estorvo (1991). Para representar essa produção, vamos tratar aqui de dois autores que vêm obtendo especial atenção por parte da crítica especializada, que os colocam entre os grandes nomes da literatura brasileira dos últimos tempos: Raduan Nassar e Milton Hatoum. NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. 5. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. © Henrique Manreza/Folhapress © Moacyr Lopes Júnior/Folhapress Um copo de cólera narra um encontro amoroso permeado de desencontros. O amor é experimentado com forte sensualidade, mas um acontecimento banal – o aparecimento de saúvas no sítio onde estão – deflagra acessos de raiva e de acusações mútuas. O trecho transcrito relata os primeiros momentos do encontro, mas é notável como o narrador consegue sugerir o clima de tensão que domina a relação do casal, esperando apenas o momento da explosão. Raduan Nassar (1935) escreveu pouco – apenas o suficiente para evidenciar a importância de sua obra. Em 1984, o escritor declarou que abandonava a literatura, recolhendo-se para seu sítio, no interior de São Paulo. E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço, e assim TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 82 Milton Hatoum (1952) aparece constantemente na lista dos grandes escritores brasileiros em atividade. 82 LITERATURA 9/9/13 10:52 AM A viagem terminou num lugar que seria exagero chamar de cidade. Por convenção ou comodidade, seus habitantes teimavam em situá-lo no Brasil; ali, nos confins da Amazônia, três ou quatro países ainda insistem em nomear fronteira um horizonte infinito de árvores; naquele lugar nebuloso e desconhecido para quase todos os brasileiros, um tio meu, Hanna, combateu pelo Brasão da República Brasileira; alcançou a patente de coronel das Forças Armadas, embora no Monte Líbano se dedicasse à criação de carneiros e ao comércio de frutas nas cidades litorâneas do sul; nunca soubemos o porquê de sua vinda ao Brasil, mas quando líamos suas cartas, que demoravam meses para chegar às nossas mãos, ficávamos estarrecidos e maravilhados. Relatavam epidemias devastadoras, crueldades executadas com requinte por homens que veneravam a lua, inúmeras batalhas tingidas com as cores do crepúsculo, homens que degustavam a carne de seus semelhantes como se saboreassem rabo de carneiro, palácios com jardins esplêndidos, dotados de paredes inclinadas e rasgadas por janelas ogivais que apontavam para o poente, onde repousava a lua de ramadã. morta é narrada em Aracelli, meu amor, enquanto a trajetória de um bandido é o tema de Lúcio Flávio, o passageiro da agonia – ambos romances de José Louzeiro publicados na década de 1970. Mais romancistas que repórteres, autores como Plínio Marcos, João Antônio e Marçal Aquino mantiveram a temática da marginalidade com abordagem crua e direta da violência urbana, utilizando-se muitas vezes do baixo calão para dar voz às comunidades pobres das grandes cidades brasileiras. Para esses autores, não se trata apenas de focalizar a bandidagem, mas de expor as condições que a geram. Em 1997, Paulo Lins publicou Cidade de Deus, retratando o cotidiano dos moradores de um dos subúrbios mais violentos do Rio de Janeiro. Passados quatro anos, o paulista Reginaldo Ferreira da Silva, conhecido como Ferréz, lançou Capão pecado, ambientado na periferia de São Paulo, realidade que o autor conhece de perto. Assim, no início do século XXI, as populações marginalizadas assumem sua própria voz, fazendo surgir uma nova expressão literária, cujo valor fundamental está na contundência da denúncia e no esforço em se fazer ouvir. HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. © Rivaldo Gomes/Folhapress Ausente de Manaus por vinte anos, uma mulher retorna à cidade para visitar a família adotiva que a havia acolhido na infância. Presenciando as mortes de alguns parentes, resolve escrever a um irmão, para comunicá-las e, em suas cartas, resgata as experiências vividas ali. Pode-se notar a presença de certos traços biográficos de Hatoum, como a ambientação em Manaus, sua cidade natal, e a ascendência libanesa. No entanto, a visão que se tem ali é a de um certo Oriente, o que sugere a predominância da visão subjetiva da personagem que narra. Além disso, trata-se, acima de tudo, de um relato, com marcas de expressão que resgatam as tradições de uma cultura profundamente oral. Ferréz (1975) venceu todas as barreiras até se transformar em uma voz qualificada a difundir a cultura da periferia paulistana. Amanheceu, Rael levantou cedo, se arrumou e foi trabalhar; logo pela manhã ouviu um monte do seu patrão pela falta do dia anterior. O resto do dia foi tranquilo, entregou os pães nas escolas, serviu os clientes, lavou o freezer onde se colocavam os leites e foi para casa. Chegando lá, estranhou quando viu aquele monte de gente, e parecia que o movimento era em frente à sua casa. Correu, pois sabia que o povo dali só se unia assim para falar mal dos outros, ou então pra ver morto. Rael corria e preferia que se tratasse do seu primeiro pensamento; mas não foi assim, Dida estava caído em frente à sua casa: estava de costas, sem o par de tênis e com uma enorme mancha de sangue nas costas. Rael se abaixou, tocou seu rosto e começou a chorar. Sua mãe insistiu para que ele entrasse, estava com medo de que A voz da marginalidade A temática da malandragem está presente na literatura brasileira desde Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, em meados do século XIX. Com o passar do tempo, essa imagem assumiria contornos dramáticos. Muitos escritores dos anos 1970, por exemplo, cuja liberdade de expressão era cerceada pela ação da censura oficial, recorreram a narrativas baseadas em fatos – eram os chamados romances-reportagem. A marginalidade está presente neles, mas sem as cores leves do romantismo: a história de uma menina encontrada LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 83 83 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:52 AM © Paulo Fehlauer/Folhapress o assassino achasse que Rael, por ser amigo de Dida e Will, poderia servir de testemunha, ou então querer uma vingança. Insistiu, insistiu, mas Rael continuava abaixado chorando. Foi quando Zé Pedro, seu pai, o abraçou por trás, o levantou e o arrastou para dentro do barraco, sem muita resistência. Duas horas depois a Tático Sul chegou ao local, cobriu o corpo com um lençol pedido a uma vizinha. Ficaram comendo carniça por mais de seis horas quando o IML chegou e foi logo retirando o corpo. O pessoal nem estranhou o fato de os legistas não terem examinado o corpo, todos por ali já estavam acostumados com o descaso das autoridades. Daniel Galera (1979) nasceu em São Paulo, mas adotou Porto Alegre como sua cidade. Seus livros trazem reflexões contundentes e atuais. FERRÉZ. Capão pecado. 2. ed. São Paulo: Labortexto Editorial, 2000. “Lá em Ushuaia”, ela começou, “há um museu dedicado aos índios que viviam na região antes da colonização dos europeus. Museu Yámana. Por incrível que pareça, eles não usavam roupas naquele frio horrível. Parece que a gordura dos animais e a oleosidade natural da pele bastavam. Eles dormiam ao relento e mergulhavam na água congelante sem dar muita bola. Em algumas fotos, estão cobertos de peles, mas na maioria estão nus. Quando os europeus chegaram, deram roupas de presente aos índios, achando que estavam fazendo uma boa ação. Mas a maioria deles morria em pouco tempo depois de vestir essas roupas. Os tecidos ficavam molhados e eles adoeciam com a umidade. Mas enfim, não era disso que eu queria falar. É que lá no museu fiquei sabendo que a língua dos yámanas contém a palavra mais sucinta que existe. Como era mesmo? É... mapihna... não, Mamihlapinatapai. É o olhar que duas pessoas trocam quando cada uma fica esperando que a outra inicie uma coisa que as duas querem, mas que nenhuma tem coragem de começar.” Ela o encarou. “Era bom que houvesse muitas palavras sucintas desse tipo. Sei que essa não se encaixa exatamente no nosso caso, mas imaginar uma palavra bem parecia que definisse o olhar que duas pessoas trocam quando uma delas quer iniciar algo que as duas querem, mas a outra põe tudo a perder porque defende que não é o momento certo, que se puderem esperar só mais um pouquinho...” Ele desviou o olhar. “É uma pena que o português não tenha essa palavra, não acha?” Ele imaginou uma palavra que descrevesse a situação em que uma pessoa já sabe o que a outra vai dizer, mas se cala porque é essencial que a outra o diga, para que suas palavras tornem inquestionável a verdade indesejada que os dois já conhecem.“ Tarde demais, Danilo. A gente teve um problema de sincronia.” Ainda não era bem isso que ele precisava ouvir. Fingiu que não tinha entendido bem, pediu outras explicações. Só a deixaria em paz quando dissesse nos termos mais simples, sem rodeios nem palavras indígenas, que não o amava mais. A proposta literária de Ferréz e seus congêneres supõe uma identificação completa entre autor, tema e forma. Para ele, só quem pode falar da periferia é quem a vive cotidianamente. E a única maneira de contar a sua história é utilizar-se da linguagem que viceja ali, com seus palavrões e suas gírias. A criatividade está nesse registro doloroso do cotidiano marginalizado. Os nexos entre o “descaso das autoridades” e a dor de Rael pela morte do amigo são expostos no texto de forma clara, sem que isso signifique uma visão simplista dos problemas sociais – e estéticos – sugeridos ali. Novos talentos Em 2012, a revista Granta, publicada pela editora Objetiva, lançou um volume com um título sugestivo: Os melhores jovens escritores brasileiros. Deixando de lado a parcialidade inerente ao juízo do que seja o melhor em qualquer setor, chama a atenção, no título, o interesse pelo jovem escritor. A juventude dos autores pode ser a garantia de uma expressão literária renovada, arejada, cheia de vitalidade. Para chegar ao público, essa nova geração conta com os meios tradicionais: novas editoras surgem como alternativas de produção literária – é o caso da Não Editora, de Porto Alegre, responsável por títulos como Areia nos dentes, de Antônio Xerxenesky, O professor de botânica, de Samir Machado de Machado, e Pó de parede, de Carol Bensimon – todos lançados em 2008. Mas os meios eletrônicos são cada vez mais usados: surgem blogs que lançam livremente textos na rede virtual – como o Prosa caótica, de Maira Parula. Um autor que se firma cada vez mais como um nome definitivo é Daniel Galera, autor de uma obra que, mesmo em seu início, já se mostra consistente. TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 84 GALERA, Daniel. Cordilheira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 84 LITERATURA 9/9/13 10:52 AM zona de preparação, aumentam as probabilidades de, recuperado o esférico, concatenarmos um contragolpe agudo com parcimônia de meios e extrema objetividade, valendo-nos da desestruturação momentânea do sistema oposto, surpreendido pela reversão inesperada do fluxo da ação. — Ahn? — É pra dividir no meio e ir pra cima pra pegá eles sem calça. — Certo. Você quer dizer mais alguma coisa? — Posso dirigir uma mensagem de caráter sentimental, algo banal, talvez mesmo previsível e piegas, a uma pessoa à qual sou ligado por razões, inclusive, genéticas? — Pode. — Uma saudação para a minha progenitora. — Como é? — Alô, mamãe! — Estou vendo que você é um, um... — Um jogador que confunde o entrevistador, pois não corresponde à expectativa de que o atleta seja um ser algo primitivo com dificuldade de expressão e assim sabota a estereotipação? — Estereoquê? — Um chato? — Isso. Cordilheira relata os desencontros amorosos de Anita e Danilo. Os desentendimentos do casal se manifestam até mesmo no nível da linguagem: a moça se perde entre suas recordações e o que tem para dizer ao rapaz (“não era disso que eu queria falar”). A incongruência se acentua com as palavras indígenas que ela usa, tão incompreensíveis para ele quanto os sentimentos que nutrem um pelo outro. Além disso, a cena transcrita pode ser entendida quase como uma reflexão metalinguística: o que Galera e sua geração buscam é dizer as coisas “nos termos mais simples”, abordando temas corriqueiros, como o fim de uma relação íntima. Os jovens escritores – sejam eles os melhores ou não – não precisam de rótulos e não merecem ser encarcerados por eles. Mesmo assim, os autores selecionados na edição da Granta não desmentem a proposta da revista: João Paulo Cuenca, Antonio Prata, Carola Saavedra e Tatiana Salem Levy, entre outros, prenunciam grandes textos literários. Nenhum deles pretende ser o novo Guimarães Rosa ou a nova Clarice Lispector. Querem apenas ser. Enquanto isso, a literatura brasileira continuará a produzir autores, jovens ou não, mas – e é o que importa – de talento. Não é nenhum favor colocar ao lado desse elenco juvenil o nome mais maduro de Evandro Affonso Ferreira, autor de obras como Grogotó (2000) e Araã! (2003). Quer saber de quem se trata? Corra atrás! Afinal, você também é jovem. Correio Braziliense, 13 maio 1998. O texto retrata duas situações relacionadas que fogem à expectativa do público. São elas: a) a saudação do jogador aos fãs do clube, no início da entrevista, e a saudação final dirigida à sua mãe. ➜ b) a linguagem muito formal do jogador, inadequada à situação da entrevista, e um jogador que fala, com desenvoltura, de modo muito rebuscado. c) o uso da expressão “galera”, por parte do entrevistador, e da expressão “progenitora”, por parte do jogador. d) o desconhecimento, por parte do entrevistador, da palavra “estereotipação”, e a fala do jogador em “é pra dividir no meio e ir pra cima pra pegá eles sem calça”. e) o fato de os jogadores de futebol serem vítimas de estereotipação e o jogador entrevistado não corresponder ao estereótipo. 1. (Enem) Para falar e escrever bem, é preciso, além de conhecer o padrão formal da Língua Portuguesa, saber adequar o uso da linguagem ao contexto discursivo. Para exemplificar este fato, seu professor de Língua Portuguesa convida-o a ler o texto “Aí, galera”, de Luis Fernando Verissimo. No texto, o autor brinca com situações de discurso oral que fogem à expectativa do ouvinte. Aí, galera Jogadores de futebol podem ser vítimas de estereotipação. Por exemplo, você pode imaginar um jogador de futebol dizendo “estereotipação”? E, no entanto, por que não? — Aí, campeão. Uma palavrinha pra galera. — Minha saudação aos aficionados do clube e aos demais esportistas, aqui presentes ou no recesso dos seus lares. — Como é? — Aí, galera. — Quais são as instruções do técnico? — Nosso treinador vaticinou que, com um trabalho de contenção coordenada, com energia otimizada, na LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 85 2. (Enem) Texto I Logo depois transferiram para o trapiche o depósito dos objetos que o trabalho do dia lhes proporcionava. Estranhas coisas entraram então para o trapiche. Não mais estranhas, porém, que aqueles meninos, moleques de todas as cores e de idades as mais variadas, desde os nove aos dezesseis anos, que à noite se estendiam pelo assoalho e por debaixo da ponte e dormiam, indiferentes ao vento que 85 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:52 AM Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino está fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de regências verbais. Ela falava sério. Mas todo mundo riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer de uma informação um chiste. E fez. E mais: eu acho que buscar a beleza nas palavras é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento de rir. De outra feita, no meio da pelada um menino gritou: Dislimina esse, Cabeludinho. Eu não disliminei ninguém. Mas aquele verbo novo trouxe um perfume de poesia à nossa quadra. Aprendi nessas férias a brincar de palavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a não gostar de palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo que elas informam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai morena, não me escreve / que eu não sei a ler. Aquele a preposto ao verbo ler, ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro. circundava o casarão uivando, indiferentes à chuva que muitas vezes os lavava, mas com os olhos puxados para as luzes dos navios, com os ouvidos presos às canções que vinham das embarcações... AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Texto II À margem esquerda do rio Belém, nos fundos do mercado de peixe, ergue-se o velho ingazeiro – ali os bêbados são felizes. Curitiba os considera animais sagrados, provê as suas necessidades de cachaça e pirão. No trivial contentavam-se com as sobras do mercado. TREVISAN, Dalton. 35 noites de paixão: contos escolhidos. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009. Sob diferentes perspectivas, os fragmentos citados são exemplos de uma abordagem literária recorrente na literatura brasileira do século XX. Em ambos os textos, a) a linguagem afetiva aproxima os narradores dos personagens marginalizados. b) a ironia marca o distanciamento dos narradores em relação aos personagens. c) o detalhamento do cotidiano dos personagens revela a sua origem social. ➜ d) o espaço onde vivem os personagens é uma das marcas de sua exclusão. e) a crítica à indiferença da sociedade pelos marginalizados é direta. BARROS, M. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003. No texto, o autor desenvolve uma reflexão sobre diferentes possibilidades de uso da língua e sobre os sentidos que esses usos podem produzir, a exemplo das expressões “voltou de ateu”, “dislimina esse” e “eu não sei a ler”. Com essa reflexão, o autor destaca: a) os desvios linguísticos cometidos pelos personagens do texto. b) a importância de certos fenômenos gramaticais para o conhecimento da língua portuguesa. c) a distinção clara entre a norma culta e as outras variedades linguísticas. d) o relato fiel de episódios vividos por Cabeludinho durante as férias. ➜ e) a valorização da dimensão lúdica e poética presente nos usos coloquiais da linguagem. 3. (Enem) Cabeludinho Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apresentou aos amigos: Este é meu neto. Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu. Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu. TAREFA MÍNIMA TAREFA COMPLEMENTAR t Leia o texto da aula. Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 1 a 3. Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 4 a 6. TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 86 86 LITERATURA 9/9/13 10:52 AM LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA POESIA 1 Introdução Carlos Drummond de Andrade e o racionalismo da poesia de João Cabral de Melo Neto. Mas outras veias de expressão também se fortaleceram, adquirindo relevo e influência. Vejamos algumas delas. Uma das características da arte contemporânea é o experimentalismo. Essa postura visa explorar novas formas de expressão artística, que incluem os mais variados suportes. No exemplo abaixo, os grafiteiros paulistas Gustavo e Otávio Pandolfo, conhecidos como OsGemeos, usam a parede monumental de uma avenida para mostrar a sua arte, que apresenta requinte técnico, colorido e ambientações oníricas. Suas imagens estranhas, povoadas de grandes personagens amarelas, já são reconhecidas internacionalmente como uma das mais interessantes manifestações das artes plásticas brasileiras do começo do século XXI. A aceitação do grafite como forma válida de expressão artística atesta o pluralismo estético predominante atualmente. A partir dos anos 1950, a poesia brasileira foi fortemente influenciada por algumas forças motrizes: a exploração da visualidade poética, na esteira proposta pelo Concretismo; a subjetividade crítica de 2 Poesia marginal © Paul Marotta/Getty Images Nos anos 1970, com o acirramento da censura durante a ditadura militar e a dificuldade em se publicar um livro de poesia, poetas buscaram meios pouco ortodoxos de divulgar a sua arte. Poemas eram reproduzidos de maneira artesanal e os próprios autores procuravam vendê-los na boemia das grandes cidades. Esse movimento foi chamado de “poesia marginal” devido ao seu – por vezes – voluntário distanciamento dos círculos mais “oficiais” de circulação literária, como as universidades e as editoras. Há pouca unidade de temas e de estilos nos poetas chamados “marginais”, mas, de maneira geral, pode-se notar a transfiguração poética do cotidiano, e a presença de uma linguagem francamente coloquial. OsGemeos. Pintura mural em um dos parques do Rose Kennedy Greenway, em Boston, Estados Unidos. LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 87 87 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:52 AM o panfleta* que há em mim não é como o jornalista que há em ti matéria paga Post-mortem Quase morrer é assim: uma cada vez mais crescente ojeriza com a “vidinha [literária” de par com a imorredoura memória de certas linhas, por exemplo, que durante o resto de tempo que me é concedido viver e na hora H da minha morte, estampada na minha face esteja a legenda: O que amas de verdade permanece, o resto é escória. [...] Zelar pelo deus Treme-Terra que meu coração devolveu Não cortejar a morte. Não perambular pelos cemitérios nem brindar o luar patético com caveiras repletas de vinho tinto seco como um Byron-Castro Alves gótico e obsoleto. Sereno e cabeça dura – testa ruda – mirar de frente a caveira e as tropas de vermes de prontidão (como observo vermes dentro de um pêssego) Mas por enquanto gargalhar da irrealidade da morte. Gozar, gozar e gozar a exuberância órfica* das coisas em riba da terra debaixo do céu. o pateta que há em mim não é como o esteta que há em ti cana a la kant o poeta que há em mim é como o voo no homem pressentido. CHACAL. In: 26 poetas hoje. Org. Heloísa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Labor, 1976. * O termo aqui equivale a “panfletista”, ou seja, aquele que escreve panfletos, feitos com texto curto, violento e sensacionalista, geralmente sobre assuntos políticos, impresso em folha avulsa ou folheto, e de distribuição limitada. O poema de Chacal (codinome de Ricardo de Carvalho Duarte) é uma tomada de posição ante o cenário literário dos anos 1970. O poeta quer individualizar-se diante do mundo artístico e intelectual de seu tempo, por isso qualifica negativamente poetas, jornalistas, estetas. O enunciador, ao caracterizar na última estrofe o poeta que há dentro dele, se vale de uma comparação de caráter surrealista e elevado, acentuando a imprecisão e leveza na sua atividade poética. O olhar simples e pantaneiro: Manoel de Barros SALOMÃO, Waly. Lábia. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. * Relativo a Orfeu, personagem da mitologia grega associada à poesia e à música. © Marlene Bergamo/Folhapress O poeta baiano Waly Salomão explora nesse poema os desejos de quem sobreviveu depois de ter encarado a morte. Daí a ironia do título: a expressão latina post-mortem (depois da morte) nomeia o poema de alguém que agora decide o que vai fazer com o tempo que lhe resta. O eu lírico se propõe a mergulhar na “exuberância órfica das coisas”, num desejo de fruir de maneira plena o amor e aquilo que a arte e a poesia do mundo podem oferecer, sem preocupações com aquilo que ele qualifica de “vidinha literária”. O poeta carioca Chacal é outra das vozes mais significativas da poesia dos anos 1970: O poeta mato-grossense Manoel de Barros (1916) explora a poesia das coisas simples e aparentemente sem importância. Criado em intenso contato com a natureza do Pantanal, as referências a plantas e pequenos animais povoam a sua obra, marcada por versos insólitos e fascinantes, por exemplo, “o esplendor da manhã não se abre com faca” ou “nossa maçã come Eva”. A estranheza de suas expressões demonstra uma percepção atenta sobre a realidade, permitindo ao leitor a surpresa de ver como novo o mundo há muito conhecido. o poeta que há em mim não é como o escrivão que há em ti funcionário autárquico o profeta que há em mim não é como a cartomante que há em ti cigana fulana TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 88 88 LITERATURA 9/9/13 10:52 AM O catador À televisão Um homem catava pregos no chão. Sempre os encontrava deitados de comprido, ou de lado, ou de joelhos no chão. Nunca de ponta. Assim eles não furam mais – o homem pensava. Eles não exercem mais a função de pregar. São patrimônios inúteis da humanidade. Ganharam o privilégio do abandono. O homem passava o dia inteiro nessa função de catar pregos enferrujados. Acho que essa tarefa lhe dava algum estado. Estado de pessoas que se enfeitam a trapos. Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser. Garante a soberania de Ser mais do que Ter. Teu boletim meteorológico me diz aqui e agora se chove ou se faz sol. Para que ir lá fora? A comida suculenta que pões à minha frente como-a toda com os olhos. Aposentei os dentes. Nos dramalhões que encenas há tamanho poder de vida que eu próprio nem me canso de viver. Guerra, sexo, esporte – me dás tudo, tudo. Vou pregar minha porta: já não preciso do mundo. BARROS, Manoel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. Rio de Janeiro: Record, 2001. O poema pode ser considerado um verdadeiro elogio da vida simples – o que, de certa maneira, retoma o lugar-comum clássico do aurea mediocritas. O enunciador demonstra que o interesse pelas coisas inúteis esconde uma grandeza de caráter ético, já que supera a superficialidade de uma vida orientada apenas pelo desejo de possuir bens. O “catador”, por isso, é um homem livre, “soberano” de si mesmo. PAES, José Paulo. Prosas seguidas de odes mínimas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. O texto é uma ode à televisão. A ode é um gênero literário que tem como origem o canto elogioso dos poetas antigos aos vencedores dos jogos olímpicos. Embora o poema, a princípio, devesse ser um elogio à televisão, causa estranheza que o enunciador abdique do mundo para cultivar apenas os prazeres que o aparelho proporciona. A ironia é radical: preso aos simulacros de uma realidade aparentemente superior, o eu lírico isola-se em sua ilusão, satisfeito como um viciado que se afunda nos gozos de um entorpecente que acabará por levá-lo à morte. José Paulo Paes (1926-1998) iniciou a sua trajetória poética em 1947. Poeta dos mais profícuos e eruditos, Paes desenvolveu sua obra dialogando com as propostas de vanguarda e com a tradição. Um dos aspectos mais marcantes de seu trabalho é o olhar agudo e irônico a respeito da realidade. Essa percepção se manifesta por meio de poemas ora sintéticos – o que revela sua filiação à corrente modernista oswaldiana – ora extremamente visuais, como pudemos ver no poema “Epitáfio para um banqueiro”, transcrito na aula 53, sobre Poesia Concreta. Ao mesmo tempo, Paes domina com desenvoltura o verso metrificado e rimado. O autor foi ainda um dos nossos mais importantes tradutores, vertendo para o português obras de grandes poetas da tradição ocidental, dos mais variados idiomas: grego, latim, provençal, italiano, inglês, francês, alemão, espanhol, dentre outros. LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 89 Hilda Hilst: a poesia do sublime e do baixo Hilda Hilst (1930-2004) iniciou sua trajetória literária ainda ligada aos padrões da poesia metafísica da Geração de 45. Desde os primeiros livros, a poetisa abordou temas elevados como Deus, o amor e a morte, demonstrando domínio técnico e profundo conhecimento da tradição. Hilst também trabalhou com temas obscenos, considerados “baixos” por boa parte da tradição crítica. É uma das poetisas mais consagradas do século XXI. Teve sua poesia traduzida para diversos idiomas. 89 © Lenise Pinheiro/Folhapress © Claudia Guimarães/Folhapress A tradição da ironia: José Paulo Paes TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:52 AM Isso de mim que anseia despedida (para perpetuar o que está sendo) Não tem nome de amor. Nem é celeste Ou terreno. Isso de mim é marulhoso E tenro. Dançarino também. Isso de mim É novo: Como quem come o que nada contém. A impossível oquidão do ovo. Como se um tigre Reversivo, Veemente de seu avesso Cantasse mansamente. tudo por um fio tudo feito tudo estivesse no cio tudo pisando macio tudo psiu Não tem nome de amor. Nem se parece a mim. Como pode ser isso? Ser tenro e marulhoso Dançarino e novo, ter nome de ninguém E preferir ausência e desconforto Para guardar no eterno coração do outro. Transar bem todas as coisas a Papai do Céu pertence, fazer as luas redondas ou me nascer paranaense. A nós, gente, só foi dada essa maldita capacidade, transformar amor em nada. tudo em minha volta anda às tontas como se as coisas fossem todas afinal de contas. HILST, Hilda. Cantares. São Paulo: Globo, 2002. Hilst retoma, com elegância e contemporaneidade, o velho tema da definição do amor. A dificuldade em nomear as contradições sentimentais já se anuncia nos primeiros versos. Sem ter nome adequado para seu sentimento, o enunciador chama-o de “isso de mim”, e o associa a imagens ligadas à delicadeza, mas carregadas de um aspecto contraditório, estranho e sempre surpreendente, como um tigre que canta manso ou o oco de um ovo. Um dos traços mais relevantes de “isso de mim” é a disposição ao sacrifício e sofrimento, pois força o enunciador a preferir a dor e a ausência para guardar na eternidade o “coração do outro”. LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense, 1987. O poema expressa bem os valores da poesia de Leminski, como a exploração da visualidade – por meio de uma organização inusitada dos versos na página – e a linguagem simples e coloquial, cheia de trocadilhos – como já se verifica no título. Sob essa simplicidade se esconde, contudo, ecos da poesia clássica, como a apropriação da temática do desconcerto do mundo: o enunciador apresenta a dificuldade de compreender profundamente as coisas, atribuindo a Deus essa capacidade plena. Aos homens, resta-nos a capacidade nada edificante de transformar o amor – o mais sublime dos sentimentos – em nada. O curitibano Paulo Leminski (1944-1989) é um dos poetas mais influentes deste começo de século XXI. Unindo rigor técnico a uma dicção simples e precisa, ele soube tratar de temas cotidianos e profundos com lirismo denso. Vários de seus poemas são fortemente visuais, com ritmo leve e repletos de trocadilhos bem-humorados, que revelam a cada momento formas surpreendentes e significados inesperados embutidos nas palavras. Poesia em diálogo com o mundo pop: Arnaldo Antunes © Adriana Zehbrauskas/Folhapress © Luiz A. Novaes/Folhapress Um lugar à parte: Paulo Leminski Arnaldo Antunes (1960) é um artista multicultural: além de poeta respeitado, é compositor e cantor de sucesso, com participação relevante no cenário da música popular brasileira. Foi integrante do grupo de rock Titãs e segue sua trajetória musical em carreira solo com Por um lindésimo de segundo tudo em mim anda a mil tudo assim TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 90 90 LITERATURA 9/9/13 10:52 AM shows e happenings no Brasil e no exterior. Sua poesia nasce da inspiração concretista, mas, diferentemente daquela corrente de vanguarda, busca um diálogo mais próximo com o grande público, por meio de uma linguagem clara, que sutilmente aborda temas complexos, numa roupagem típica da arte contemporânea. dos, dentre outros, por artistas como Marina Lima, Adriana Calcanhoto e João Bosco. Antonio Cicero é também filósofo. Sua linguagem, marcada por uma dicção elegante e clássica, aborda temas profundos retirados ora de uma reflexão rigorosa sobre a existência, ora de um acontecimento casual, tendo como cenário a cidade do Rio de Janeiro. Os buracos do espelho Voz o buraco do espelho está fechado agora eu tenho que ficar aqui com um olho aberto, outro acordado no lado de lá onde eu caí Orelha, ouvido, labirinto: Perdida em mim a voz de outro ecoa. Minto: Perversamente sou-a. pro lado de cá não tem acesso mesmo que me chamem pelo nome mesmo que admitam meu regresso toda vez que eu vou a porta some CICERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996. Este poema breve apresenta um elemento caro à estética clássica: a maneira como o artista deve dialogar com a arte que existe previamente a ele. Pode ser considerado uma pequena Arte poética, no sentido de uma exposição dos procedimentos da criação poética. No texto, o enunciador afirma escutar uma voz que entra física e fisiologicamente em seu corpo. A incorporação da voz do outro não se dá, contudo, de maneira passiva, como um eco; pelo contrário: o poeta apropria-se ativamente dela, tornando-se a voz estranha que soava perdida em si mesmo. A paronomásia (figura de linguagem que aproxima palavras de sons semelhantes, mas de significados diferentes) entre os termos “soa” (do verbo soar) e “sou-a” acentua a indefinição do que era o outro e do que é agora o enunciador. a janela some na parede a palavra de água se dissolve na palavra sede, a boca cede antes de falar, e não se ouve já tentei dormir a noite inteira quatro, cinco, seis da madrugada vou ficar ali nessa cadeira uma orelha alerta, outra ligada o buraco do espelho está fechado agora eu tenho que ficar agora fui pelo abandono abandonado aqui dentro do lado de fora Arnaldo Antunes. In: <www.arnaldoantunes.com.br>. O poema mostra o forte desejo de autorreconhecimento. O espelho, onde cada um de nós se reflete, expulsou e abandonou o enunciador, que agora espera angustiadamente, “do lado de cá”, uma nova oportunidade para se ver e entrar novamente em íntimo contato consigo mesmo. TEXTOS PARA A QUESTÃO 1 Digitações A poética é uma máquina Há um código central Em que se digita ANULA É a máquina do nada Que anda ao contrário Da sua meta A repetição é a morte Noutro código lateral Digita-se ENTRA E os cupins invadem o quarto Poesia e filosofia: Antonio Cicero © Ana Carolina Fernandes/Folhapress O poeta carioca Antonio Cicero (1945) conjuga em sua poesia o rigor da tradição com as notas seguras de uma poesia marcadamente contemporânea. Assim como Arnaldo Antunes, ele trabalha de perto com o mundo da cultura popular, pois vários de seus poemas foram conhecidos pelo grande público por terem sido musicaLITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 91 Sebastião Uchoa Leite 1. (Mack-SP) Assinale a alternativa correta. ➜ a) O poema traz marcas da contemporaneidade tanto na forma escolhida pelo poeta (versos livres e brancos), como nas imagens utilizadas. b O texto recupera do estilo surrealista a valorização dos aspectos técnicos de composição, como os efeitos sonoros, por exemplo, em detrimento do conteúdo. 91 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:52 AM c) A sintaxe fragmentada, apoiando-se em frases nominais, é marca do estilo “telegráfico”, muito valorizado pelo modernista Oswald de Andrade. d) Ao enaltecer a subjetividade do artista, o texto recupera aspecto significativo do estilo de João Cabral de Melo Neto, poeta da terceira fase do Modernismo brasileiro. e) A idealização do progresso tecnológico, o uso de “palavras em liberdade” e a ausência de pontuação, confirmando-se, assim, tratar-se de um texto do Futurismo. 2. (UEL-PR) Com base nos textos I e II, é correto afirmar: a) Em ambos os textos, há referências explícitas a uma figura feminina como agente das ações mencionadas. b) A ênfase em uma ação tipicamente feminina revela-se com mais clareza em “Corte” através da frase “Almoça-se ao meio-dia”. ➜ c) Em “Solar”, sobressai a ideia de cumplicidade entre o sujeito lírico e a figura materna, que torna o cotidiano doméstico menos enfadonho. d) As autoras expõem posicionamentos feministas que sugerem ser a subversão a melhor resposta à opressão masculina. e) Em “Solar”, há uma espécie de perturbação do sujeito lírico com a inconstância da ação da figura materna. TEXTOS PARA AS QUESTÕES 2 E 3 Texto I Corte O dia segue normal. Arruma-se a casa. Limpa-se em volta. Cumprimenta-se os vizinhos. Almoça-se ao meio-dia. Ouve-se rádio à tarde. Lá pelas 5 horas, inicia-se o sempre. 3. (UEL-PR) Sobre o texto II, considere as afirmativas a seguir. I. O verbo cantar remete a uma prática que contrasta com o prosaico pouco expressivo do cotidiano. II. Os ingredientes enumerados – arroz, feijão-roxinho e molho de batatinhas – representam o descaso da mãe com a família. III. O último verso é introduzido por uma conjunção que expressa o sentido de oposição. IV. O texto é narrativo porque os atos de cozinhar e cantar são mostrados em uma sequência cronológica. Estão corretas apenas as afirmativas: a) I e II. d) I, II e IV. ➜ b) I e III. e) II, III e IV. c) III e IV. MELLO, Maria Amélia. Corte. Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 686, ano XIV, 24 nov. 1979. Suplemento Literário, p. 9. Texto II Solar Minha mãe cozinhava exatamente: arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas. Mas cantava. PRADO, Adélia. O coração disparado. 3. ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984. p. 28. TAREFA MÍNIMA TAREFA COMPLEMENTAR t Leia o texto da aula. Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 1 a 3. Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 4 a 7. TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 92 92 LITERATURA 9/9/13 10:52 AM LITERATURA LUSÓFONA CONTEMPORÂNEA 1 Muito além de Fernando Pessoa Depois de um início de século vigoroso, com a geração de artistas reunidos em torno da revista Orpheu, lançada em 1915, a literatura portuguesa pareceu entrar em refluxo. Na verdade, o nome forte de Fernando Pessoa funciona como ímã, impedindo, por vezes, que se veja um cenário mais amplo. Vivendo sob regime ditatorial a partir de 1926, a cultura portuguesa experimentou dois polos distintos de manifestação. De um lado, a introspecção, marca registrada da segunda geração do Modernismo luso, cujo órgão de divulgação, a revista Presença, lançada em 1927, trazia em seus primeiros números artigos de defesa de uma literatura psicologizante. De outro lado, o engajamento político, na etapa seguinte, a do Neorrealismo, que teve na publicação do romance Gaibéus, de Alves Redol, em 1939, seu ato inaugural. Capa do romance Gaibéus, de Alves Redol, cuja publicação é tida como marco inaugural do Neorrealismo português. LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 93 © Divulgação © Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Portugal Primeiro número da revista Presença (1927). 93 No entanto, esta polarização ainda não dá conta do panorama literário português, notadamente a partir da segunda metade do século XX. Ele nos reserva boas surpresas, como a poesia surrealista de Mário Cesariny, por exemplo, que buscou novos caminhos expressivos, embora sem fugir do ambiente político em que se encontrava. Outros nomes de destaque na poesia foram: Sophia de Mello Breyner Andresen, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira, Eugénio de Andrade, David Mourão Ferreira, Herberto Helder, E. M. de Melo e Castro, Al Berto, Nuno Júdice, entre outros. No terreno da ficção, alguns de seus principais representantes trilharam caminhos parecidos. Miguel Torga fez do inconformismo seu principal motivo, traduzindo-o em obras de caráter autobiográfico (Diário) e utilizando ainda o recurso da fábula (como em Bichos). Vergílio Ferreira veio do Neorrealismo, mas logo derivou para um estilo filosófico, de teor existencialista, tratando de sentimentos contraditórios, como no romance Aparição. Trajetória semelhante cumpriu José Cardoso Pires, buscando manter-se distante de programas estéticos definidos, bem como da retórica narrativa para se concentrar no trabalho com a palavra. Agustina Bessa-Luís lançou, em 1954, o romance A sibila, com o qual ganhou lugar de destaque na ficção portuguesa do século. O livro sintetiza algumas das qualidades da escritora, como a sensibilidade no registro da cultura lusitana e, acima de tudo, um notável refinamento estilístico. Da geração seguinte, destaca-se Helder Macedo, cujo romance Pedro e Paulo (1998) mantém a referência histórica ao tratar da trajetória de dois irmãos que viveram sob a ditadura salazarista. O panorama luso se amplia com nomes importantes, surgidos na virada do século XX para o XXI. O escritor valter hugo mãe, que grafa seu nome com as iniciais em letras minúsculas, lançou em 2006 O remorso de Baltazar Serapião, contendo grande teor de inovação linguística. A temática urbana é a linhagem em que se incluem Rui Zink e Inês Pedrosa, enquanto a ambientação rural mostra sua força na obra de José Riço Direitinho. Essa ampliação é ainda maior quando se considera os talentos surgidos em terras lusófonas, como os angolanos Agostinho Neto, José Luandino Vieira, Pepetela, José Eduardo Agualusa e Ondjaki, o moçambicano Carlos Cardoso e o cabo-verdiano Manuel Lopes. TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:52 AM O motorista olhou pelo retrovisor, julgou que o passageiro não ouvira, já abria a boca para repetir, Para onde, mas a resposta chegou primeiro, ainda irresoluta*, suspensiva, Para um hotel, Qual, Não sei, e tendo dito, Não sei, soube o viajante o que queria, com tão firme convicção como se tivesse levado toda a viagem a ponderar a escolha, Um que fique perto do rio, cá para baixo, Perto do rio só se for o Bragança, ao princípio da Rua do Alecrim, não sei se conhece, Do hotel não me lembro, mas a rua sei onde é, vivi em Lisboa, sou português, Ah, é português, pelo sotaque pensei que fosse brasileiro, Percebe-se assim tanto, Bom, percebe-se alguma coisa, Há dezesseis anos que não vinha a Portugal, Dezasseis anos são muitos, vai encontrar grandes mudanças por cá, e com estas palavras calou-se bruscamente o motorista. Para representar uma produção tão ampla e importante, escolhemos aprofundar o estudo dos portugueses José Saramago e António Lobo Antunes e do moçambicano Mia Couto. © Tuca Vieira/Folhapress José Saramago José Saramago nasceu na aldeia de Golegã, em 1922. De família humilde, filho de pais analfabetos, dedicou-se a diversas ocupações para ganhar a vida: foi serralheiro mecânico, desenhista, modesto funcionário do serviço de saúde e da previdência social, mas, desde a infância, revelara forte interesse pela leitura, o que o encaminhou posteriormente para o trabalho com as palavras, como editor, tradutor e jornalista. Sempre defendeu pontos de vista bastante pessoais e polêmicos, sem se preocupar em ser agradável aos poderosos. Sua consagração total como escritor só viria em 1982, com a publicação de Memorial do Convento. Desde então a obra de José Saramago tem sido muito lida e discutida, o que fez dele o escritor contemporâneo mais influente do idioma. Em 1995, Saramago foi laureado com o prêmio Camões, um dos mais prestigiados do mundo lusófono. Três anos depois, a academia sueca concedeu a ele o Prêmio Nobel de Literatura, o primeiro concedido a um autor da língua portuguesa. O prestígio não livrou Saramago de intensas polêmicas. Devido ao seu livro O evangelho segundo Jesus Cristo, foi duramente atacado por setores eclesiásticos e por críticos que acusaram o autor – um ateu militante – de ter feito uma leitura subjetiva e distante dos cânones propostos pela Igreja. Devido às consequências dessa polêmica, Saramago decidiu mudar-se de Portugal para a ilha de Lanzarote, no arquipélago espanhol das Canárias, próximo ao continente africano. Foi nessa inóspita ilha que o escritor faleceu, no ano de 2010, aos 87 anos. SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. Portugal: Círculo de leitores, 1986. * Indecisa. Nesse trecho, Ricardo Reis, o heterônimo clássico de Fernando Pessoa, retorna a Lisboa. Recém-chegado, apanha um táxi e conversa com o motorista. A maneira como o diálogo é apresentado pode causar estranhamento. O narrador introduz as vozes das personagens sem os tradicionais travessões. Mas isso não chega a causar confusão: numa leitura atenta, é possível perceber marcas nítidas de separação das vozes das personagens e do narrador. Usa-se a vírgula seguida de uma letra maiúscula, para indicar a troca das vozes. Realismo fantástico No texto anterior, José Saramago usou como personagem um poeta inventado por Fernando Pessoa. No romance O ano da morte de Ricardo Reis, o heterônimo, depois de um autoexílio no Brasil, retorna a Lisboa, onde vai assistir ao conturbado período histórico do ano de 1936, quando iniciava o período salazarista. Essa mistura entre ficção e realidade foi muito explorada pelo grande romancista. Em Memorial do Convento, fatos e personagens históricos conhecidos do século XVIII são entremeados a uma narrativa de caráter fantástico, com personagens dotadas de poderes sobrenaturais. É o caso de Blimunda, que tinha o estranho poder de ver as pessoas por dentro: Que poder é esse teu, Vejo o que está dentro dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o que está por baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo das roupas, mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a seguir, quem me dera que o não tivesse, Porquê, Porque o que a pele esconde nunca é bom de ver-se, Mesmo a alma, já viste a alma, Nunca a vi, Talvez a alma não esteja afinal dentro do corpo, Não sei, nunca a vi, Será O estilo José Saramago criou um estilo único, em que incorporou o português erudito a formas e expressões tipicamente orais. Uma das principais marcas de sua prosa é a maneira peculiar com que registra os diálogos de suas personagens, por meio do uso pouco convencional dos sinais de pontuação, e da eliminação do travessão para indicar o discurso direto. Eis um exemplo: TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 94 94 LITERATURA 9/9/13 10:52 AM porque não se possa ver, Será, e agora larga-me, tira a perna de cima de mim, que me quero levantar. riado. A mulher do médico vivencia o absurdo de enxergar quando todas as pessoas (da cidade, do país, do mundo) são jogadas na bruta luta pela sobrevivência, numa condição de animalidade total. SARAMAGO, José. Memorial do Convento. Portugal: Editorial Caminho, 1986. O diálogo se dá entre Baltazar (conhecido como Sete-Sóis) e Blimunda (conhecida como Sete-Luas) pouco tempo depois de se conhecerem. Ambos são pobres e suspeitos aos olhos da poderosa Inquisição. Em outro eixo narrativo, o leitor vai conhecer o dia a dia do rei D. João V, que, para pagar uma promessa, manda erguer em 1717, na cidadezinha de Mafra, um convento e um palácio monumentais financiados com o ouro que chegava fartamente do Brasil. Mais de 50 mil homens trabalharam em condições desumanas nessa construção. O evidente contraste entre o luxo e a miséria no século XVIII dá ao livro uma dimensão social que transcende seus limites temporais e serve de denúncia da exploração do trabalho até nos dias de hoje. O sol tinha rompido, brilhava nas poças de água formadas entre o lixo, via-se melhor a erva que crescia entre as pedras da calçada. Havia mais gente fora. Como se orientarão eles, perguntou-se a mulher do médico. Não se orientavam, caminhavam rente aos prédios com os braços estendidos para a frente, continuamente esbarravam uns nos outros como as formigas que vão no carreiro, mas quando tal sucedia não se ouviam protestos, nem precisavam falar, uma das famílias despegava-se da parede, avançava ao comprido da que vinha em direção contrária, e assim seguiam e continuavam até ao próximo encontro. De vez em quando paravam, farejavam à entrada das lojas, a sentir se vinha cheiro de comida, qualquer que fosse, depois prosseguiam o seu caminho, viravam uma esquina, desapareciam da vista, daí a pouco surgia dali outro grupo, não traziam ar de haver encontrado o que buscavam. Blimunda e Baltazar envolveram-se com o padre brasileiro Bartolomeu de Gusmão – personagem que existiu historicamente. O padre, que era um livre-pensador, sonhava em voar com um aparelho em forma de ave, a “passarola”, e precisava que Blimunda o ajudasse a recolher as “vontades” de dentro das pessoas. Segundo o padre, sem esse fluido etérico seu aparelho nunca deixaria o chão. Como se pode ver, Saramago entrelaça de maneira sutil e convincente a mais aberta fantasia com referências precisas, renovando o gênero do romance histórico. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. O narrador mostra o impressionante quadro de desolação a que chegara a humanidade após a epidemia. A doença é marcada pelo branco, que é a cor associada à razão, à luz. A cegueira branca parece indicar os exageros a que chegou a moderna sociedade racionalista. O absurdo da cegueira branca se acentua pela total ausência de explicações sobre as causas da doença ou suas possíveis curas, como a indicar que a ordem em que nós vivemos pode também ser subvertida radicalmente, transformando as pessoas, sem distinção de classe ou raça, num único conjunto de seres lutando pela sobrevivência. Basta pensar num desastre ecológico de dimensões mundiais. Saramago não se resume a um escritor que resgata tempos passados. Faz também grandes alegorias do presente, em que se esboça forte pessimismo, mas em que não se apaga a chama daquilo que há de mais elevado na condição humana: o amor e a arte. Bom exemplo disso é o romance Cartaz do filme Ensaio sobre Ensaio sobre a cegueira. Numa a cegueira, de Fernando Meirelles, inspirado no romance cidade e num tempo imprecisos, alastra-se uma estranha homônimo de José Saramago. epidemia de cegueira, em que os doentes só tinham a cor branca diante dos olhos, como se estivessem mergulhados em um “mar de leite”. Somente a mulher do médico que cuidou dos primeiros doentes não ficou cega e, assim, pôde testemunhar os mais vis horrores a que os humanos foram rebaixados. O ditado que diz “em terra de cego, quem tem um olho é rei” é gritantemente contraLITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 95 António Lobo Antunes © Eric Fougere/Kipa/Corbis/LatinStock © Divulgação As grandes alegorias da modernidade 95 António Lobo Antunes (1942) nasceu em Lisboa e seguiu a carreira da Medicina, especializando-se em Psiquiatria. Na condição de médico, serviu em Angola durante a guerra civil, entre 1971 e 1973, experiência que marcaria profundamente sua obra literária. Mesmo mantendo a dedicação à Medicina (disse certa vez que continuava a ir ao hospital apenas para não se sentir maluco), Lobo Antunes é bastante reconhecido por sua ficção. TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:52 AM Dramas humanos refere um lugar distante; de outro, um rebaixamento físico e moral – a degradação provocada pela experiência trágica da guerra de conquista e de colonização. Há, ainda, um outro sentido pertinente ao enredo da obra: entre os membros do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), um dos grupos de guerrilha organizados na luta pela independência, a expressão era usada para qualificar exatamente os traidores. Assim, o título denunciaria o estigma de quem se sente traído por seu país, e traidor dos próprios ideais. Em suas obras, António Lobo Antunes aborda preferencialmente temas relacionados à morte, à solidão, à frustração, às dificuldades das relações humanas. Tais dramas são ambientados na vida burguesa de Lisboa, da qual é originário o próprio autor. Suas influências mais evidentes são: os cinemas norte-americano e italiano, o ritmo do jazz e alguns escritores que o encantaram na adolescência, como Céline, Hemingway, Sartre, Camus, Júlio Verne, etc. A grande presença de referências estrangeiras se deve, como ele mesmo sugere, à sua origem parte brasileira (um avô) e parte alemã (uma avó). Entre suas obras, contam-se: Memória de elefante (1979), Os cus de Judas (1979), Conhecimento do inferno (1980), O manual dos inquisidores (1988), Fado alexandrino (1983), O esplendor de Portugal (1997), Exortação aos crocodilos (1999) e Não entres tão depressa nessa noite escura (2000). O que fizeram do meu povo, O que fizeram de nós sentados à espera nesta paisagem sem mar, presos por três fieiras1 de arame farpado numa terra que nos não pertence, a morrer de paludismo2 e de balas cujo percurso silvado3 se aparenta a um nervo de nylon que vibra, alimentados por colunas4 aleatórias cuja chegada depende de constantes acidentes de percurso, de emboscadas e de minas, lutando contra um inimigo invisível, contra os dias que se não sucedem e indefinidamente se alongam, contra a saudade, a indignação e o remorso, contra a espessura das trevas opacas, tal um véu de luto, e que puxo para cima da cabeça a fim de dormir, como na infância utilizava a bainha5 do lençol para me defender das pupilas de fósforo azul dos meus fantasmas. [...] Talvez a guerra tenha ajudado a fazer de mim o que sou hoje e que intimamente recuso: um solteirão melancólico a quem se não telefona e cujo telefonema ninguém espera, tossindo de tempos a tempos para se imaginar acompanhado, e que a mulher a dias6 acabará por encontrar sentado na cadeira de baloiço7 em camisola interior8, de boca aberta, roçando os dedos roxos no pelo cor-de-novembro da alcatifa9. A guerra como motivo de ficção A colonização portuguesa em Angola teve início no final do século XV. Durante a ditadura do Estado Novo, que se prolongou no país de 1926 a 1974, os órgãos de repressão interna também estendiam seus tentáculos às colônias. Muitos grupos locais de resistência ao domínio lusitano foram organizados, como o Movimento Popular Libertação de Angola (MPLA). Durante as décadas de 1960 e 1970, a manutenção da guerra colonial minava as bases do governo autoritário, cada vez mais frágeis. Com o fim da ditadura lusa, em 25 de abril de 1974, iniciou-se o processo de desmontagem do aparato colonial, e a independência de Angola foi finalmente proclamada em 1975. Em seus primeiros livros, publicados nos anos 1970, António Lobo Antunes compõe um painel brutal e ácido da guerra angolana. As feridas ainda estavam abertas entre os portugueses e esses livros se constituíram em fontes de reflexão sobre toda a sociedade lusa. ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. 19. ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997. 1. Fileira. 2. O mesmo que malária, doença aguda causada por parasitas. 3. Que produz som agudo. 4. Grupo de soldados. Os cus de Judas 5. Dobra de tecido. 6. Faxineira. © Divulgação/Editora Objetiva O romance Os cus de Judas é a transposição ficcional de uma experiência efetiva do autor: sua participação como médico militar na guerra que opôs o exército português à guerrilha de Angola, então colônia de Portugal. O título, propositadamente chulo, sugere algumas das linhas fundamentais do romance. De um lado, TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 96 7. Cadeira de balanço. 8. Camiseta. 9. Tapete. A narrativa se desenvolve como um grande monólogo do protagonista, que conversa em um bar com uma mulher cuja fala não aparece jamais. Em seu discurso, o narrador rememora a experiência da guerra, cujas marcas se estendem ao presente e determinam a visão cética que ele tem da vida e da sociedade. No trecho, percebe-se a mistura da perspec- 96 LITERATURA 9/9/13 10:52 AM Terra sonâmbula – um lugar destruído pelo colonialismo português 2 Literatura lusófona africana Há um grupo de países africanos que guardaram a língua como herança colonial e possuem uma quantidade significativa de obras e autores importantes. Esses artistas têm revelado ao mundo uma realidade muito marcada pelas consequências das lutas sangrentas travadas pela independência política e também suas guerras internas oriundas desses conflitos. © Divulgação/Companhia das Letras tiva social, na referência à guerra, com o intimismo, presente nas considerações pessoais que desenvolve. O estilo caudaloso reproduz de forma expressiva a angústia que toma conta do narrador em seu relato desesperado da experiência vivida e que impregna sua existência. © Karime Xavier/Folhapress Mia Couto É estimado que um milhão de moçambicanos tenham morrido na guerra civil em consequência dos conflitos internos posteriores à libertação do país em 1975. Terra sonâmbula é um romance que trata da necessidade de reconstrução de um local destruído pela violência. O menino Muidinga e o velho Tuahir, representantes de duas gerações, de dois tempos diferentes no mesmo lugar, andam juntos por uma estrada, acreditando que ela possa conter alguma promessa de futuro. Em um ônibus incendiado, que serve de abrigo temporário aos dois, encontram, entre os corpos carbonizados, o diário de Kindzu, que procurava os naparamas, guerreiros tradicionais abençoados pelos feiticeiros. Enquanto o menino segue em busca de suas raízes, é narrada em flashback a trajetória de Kindzu. As duas histórias acabam por fundir-se em uma mensagem de esperança. Repleta de metáforas líricas, Terra sonâmbula é uma obra otimista, na qual predominam a busca e o sonho em meio a um lugar em que impera a morte, a sujeira e o céu cinza. O que verdadeiramente se procura é a identidade moçambicana. Contista, poeta e romancista moçambicano. Naquele lugar, a Guerra tinha morto a Estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte. A estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância. Pelas bermas1 apodrecem carros incendiados, restos de pilhagens. Na savana em volta, apenas os embondeiros2 contemplam o mundo a desflorir3. Um velho e um miúdo vão seguindo pela Estrada. Andam bambolentos4 como se caminhar fosse seu único serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando o vindo por não ter ido, à espera do adiante. Fogem da Guerra, dessa Guerra que contaminara toda a sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um Filho de portugueses, Mia Couto nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Cursou Medicina até o terceiro ano, quando começou a atuar como jornalista, impulsionado pela militância na Frente de Libertação de Moçambique. Mia Couto formou-se em Biologia e trabalha atualmente na reserva de Inhaca, em Moçambique. Acredita que se manter ativo em diferentes profissões é uma forma de estar aberto para o mundo. É um dos principais escritores africanos e também um dos mais traduzidos, comparado a Gabriel García Márquez e Guimarães Rosa. Seu romance Terra sonâmbula foi considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Em 1999, o autor recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007, o prêmio União Latina de Literaturas Românicas. Um olhar sobre duas obras, de características diferentes e complementares do escritor africano, ajuda a perceber o estilo particular desenvolvido no trabalho literário de Mia Couto. LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 97 97 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:52 AM Me aproximava do prédio e já me aranhava na multidão. Coisa de inacreditar: olhavam todos para cima. Quando olhei os céus, ainda mais me perturbei: lá estava, pairando como águia-real, o Zuzé Neto. O próprio José Antunes Marques Neto, em artes de aeroanjo. Estava caindo? Se sim, vinha mais lento que o planar do planeta pelos céus. Atirara-se quando? Já na noite anterior, mas o povo só notara no sequente dia. Amontara-se logo a mundidão e, num fósforo, se fabricaram explicações, epistemologias4. Que aquilo provinha de ele ter existência limpa: lhe dava a requerida leveza. Fosse um político e, com o peso da consciência, desfechava logo de focinho. Outros se opunham: naquele estado de pelicano, o cidadão fugia era de suas dívidas. Ninguém cobra no ar. Houve até versão dedicadamente cristã. Um mirone5, longilongo, vestido como se coubesse numa só manga, bradejou apontando o firmamento: Aquilo, meus senhores, é o novo Cristo. refúgio tranquilo. Avançam descalços, suas vestes têm a mesma cor do caminho. COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 1. Passagens estreitas que separam canais, trincheiras ou fossos. 2. Árvore nativa da região tropical da África. 3. Neologismo que significa: secar, definhar, entristecer, murchar. 4. Neologismo que significa: com o corpo “bambo”, sem firmeza. O texto pode ser considerado um bom exemplo de prosa poética. Com claras influências de Guimarães Rosa, Mia Couto desenha um panorama triste e, ao mesmo tempo lírico, da situação em que se encontram suas personagens. O tom que predomina no fragmento é, apesar de tudo, esperançoso, de encontro de um refúgio tranquilo. Os andarilhos se confundem não apenas com a terra da estrada, mas com o próprio país a que pertencem. É possível identificar exemplos de neologismos como bambolentos, cujos significados se depreendem do contexto em que são aplicados, contribuindo para uma riqueza sonora que traduz de forma peculiar o universo que descreve. COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 1. Neologismo que significa: rondando insistentemente. 2. Apertava em volta, diminuía o calibre. O fio das missangas 3. Solução alcalina, detergente. Da mesma forma que o romance Terra sonâmbula, o livro de contos O fio das missangas também tem Moçambique como cenário principal. Os textos da obra abordam principalmente o universo feminino, retratando mulheres condenadas ao esquecimento ou maltratadas pelos homens que as cercam. São 29 pequenos contos em que o autor se empenha para criar um panorama da vida, dos hábitos e da cultura moçambicana. Continuando a fazer uso de neologismos, aqui as palavras inventadas funcionam também como instrumento de interpretação do ambiente das narrativas e ganham múltiplos significados que revelam aspectos da alma do país. Além disso, há ainda espaço para o realismo mágico e também para a exploração do humor de algumas situações. 4. Teoria do conhecimento. 5. Observador, testemunha. O narrador, nesse trecho, observa o amigo que, numa situação insólita, permanece flutuando ao tentar se jogar do alto de um edifício. O trecho exemplifica tanto a exploração do realismo mágico nos contos do autor, como a presença do humor. O uso de neologismos merece especial atenção, palavras como depressavam e mundidão são usadas como representação de uma oralidade específica e revelam a forma de expressão das personagens, contribuindo para apresentá-las ao leitor. TEXTO PARA A QUESTÃO 1 No trecho a seguir, do romance Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, um deficiente visual dá conta de como estava o mundo depois que todas as pessoas foram acometidas da cegueira branca: O homem cadente Quando me vieram chamar, nem acreditei: — É Zuzézinho! Está caindo do prédio. E as gentes, em volta, se depressavam para o sucedido. Me juntei às correrias, a pergunta zaranzeando1: o homem estava caindo? Aquele gerúndio era um desmando nas graves leis da gravidade: quem cai, já caiu. Enquanto corria, meu coração se constringia2. Antevia meu velho amigo estatelado na calçada. Que sucedera para se suicidar, desabismado? Que tropeção derrubara a sua vida? Podia ser tudo: os tempos de hoje são lixívia3, descolorindo os encantos. TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 98 Os que andam em grupo, como nós, como quase toda a gente, quando temos de procurar comida somos obrigados a ir juntos, é a única maneira de não nos perdermos uns dos outros, e como vamos todos, como ninguém ficou a guardar a casa, o mais certo, supondo que tínhamos conseguido dar com ela, é estar já ocupada por outro grupo que também não tinha podido encontrar a sua casa, somos uma espécie de nora* às voltas, ao princípio houve algumas lutas, mas não tardámos a 98 LITERATURA 9/9/13 10:52 AM barba é a floresta do Chalala2 a resistir ao napalm3 da gilete, um grande rumor de trópicos ensanguentados cresce-me nas vísceras, que protestam. perceber que nós, os cegos, por assim dizer, não temos praticamente nada a que possamos chamar nosso, a não ser o que levarmos no corpo, A solução estaria em viver dentro duma loja de comidas, ao menos enquanto elas durassem não seria preciso sair, Quem o fizesse, o mínimo que lhe poderia acontecer era nunca mais ter um minuto de sossego, digo o mínimo porque ouvi falar do caso de uns que o tentaram, fecharam-se, trancaram as portas, mas o que não puderam foi fazer desaparecer o cheiro da comida, juntaram-se fora os que queriam comer, e como os de dentro não abriram, pegou-se fogo à loja, foi remédio santo, eu não vi, contaram-me, de toda a maneira foi remédio santo, que eu saiba ninguém mais se atreveu, [...] ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. 1. Localidade angolana. 2. Localidade angolana. 3. Substância usada na fabricação de bombas incendiárias. Que recurso estilístico o narrador utiliza para aproximar a guerra de seu cotidiano? Cite dois exemplos. O narrador recorre a uma série de metáforas da guerra que a associam com ações corriqueiras do cotidiano, como o simples ato de se barbear relatado no trecho: SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. “um centímetro mentolado de guerra” (isto é, pasta de caso, a palavra nora designa um mecanismo composto de uma roda que faz girar a corda a que estão presos recipientes para tirar água de poços ou cisternas. Ninda”, “a minha barba é a floresta do Chalala”, “napalm dentes), “a espuma verde-escura dos eucaliptos de * Neste da gilete”. Tais metáforas criam a alegoria de uma guerra 1. O trecho apresenta um diálogo em discurso direto. Contudo, o narrador omite os verbos e sinais como travessões ou aspas para indicar a alternância da fala entre os interlocutores. Quais as marcas textuais que evidenciam a troca das falas entre as personagens? A partir desta constatação, localize o trecho onde a fala da primeira personagem é interrompida por um comentário do interlocutor. que impregna o indivíduo, tanto em suas atitudes banais como em sua própria constituição física, como mostra o trecho: “um grande rumor de trópicos ensanguentados cresce-me nas vísceras, que protestam”. 4. Uma das personagens de O fio das missangas, de Mia Couto, era desprezada pelo marido. Assinale a opção em que a passagem do texto NÃO caracteriza o estado de submissão e passividade vivido por ela: a) “Hoje será como todos os dias: lhe falarei, junto ao leito, mas ele não me escutará. Não será essa a diferença. Ele nunca me escutou.” b) “Onde vivo não é na sombra. É por detrás do sol, onde toda a luz há muito se pôs.” c) “Agora, pelo menos, já não sou mais corrigida. Já não recebo enxovalho, ordem de calar, de abafar o riso.” ➜ d) “Amanhã, tenho que me lembrar para não preparar o cesto da visita.” e) “Como a pedra, que não tem espera nem é esperada, fiquei sem idade.” As marcas textuais que evidenciam a troca de falas entre as personagens é uma vírgula seguida de uma palavra com inicial maiúscula. O comentário aposto à fala da primeira personagem é “A solução estaria em viver dentro duma loja de comidas, ao menos enquanto elas durassem não seria preciso sair”. 2. A que condição os seres humanos são rebaixados após a epidemia de cegueira branca? Os seres humanos são rebaixados a uma condição de animais lutando pela sobrevivência. Nessa fábula, os valores que orientam a atual sociedade de consumo – como o luxo e a sofisticação – são completamente irrelevantes. TAREFA MÍNIMA t Leia o texto da aula. Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 1 a 4. 3. (Unicamp-SP) Leia a seguinte passagem de Os cus de Judas, de António Lobo Antunes: TAREFA COMPLEMENTAR Deito um centímetro mentolado de guerra na escova de dentes matinal, e cuspo no lavatório a espuma verde-escura dos eucaliptos de Ninda1, a minha LITERATURA 3_TERC_8_LIT.indd 99 Caderno de Exercícios t Faça os exercícios 5 a 8. 99 TERCEIRÃO 8 9/9/13 10:52 AM TERCEIRÃO 8 3_TERC_8_LIT.indd 100 100 LITERATURA 9/9/13 10:52 AM