Untitled - Composição - Revista de Ciências Sociais/UFMS
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1 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil) Composição : revista de ciências sociais / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. – a. 7, n. 12 (Janeiro – Junho de 2013)- Campo Grande, MS : A Universidade, 2013. . Semestral Revista eletrônica: http://www.revistacomposicao.ufms.br/index.php ISSN 1983-3784 1. Ciências Sociais - Periódicos. 2. Ciências Humanas – Periódicos. I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. CDD (22) 300.5 2 Conselho Editorial Antonio Elizalde – Universidade Bolivariana de Chile Brian Ferreiro – Universidade Nacional de Missiones Célia Aparecida Ferreira Tolentino – UNESP (Marília) Ethel Volfzon Kosminsky - UNESP (Marília) Felipe de Alba – Universidade do Quebec Francisco Ther Rios – Universidade de Los Lagos Gilton Mendes - Universidade Federal de Amazonas Helena de Carvalho Lorenzo – UNIARA José Zanardini – Universidade Católica de Assunção Laerte Fernandes – O Estado de São Paulo Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio – UFSCar Normas e Critérios para publicação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Reitora: Célia Maria da Silva Oliveira Composição, Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul ISSN 1983-3784 Conselho de Redação Aparecido Francisco dos Reis Ana Maria Gomes Iracema Cunha Costa Manoel Rebelo Junior Coordenação Geral: Aparecido Francisco dos Reis Editoração eletrônica: Aparecido Francisco dos Reis Ismael Rodrigues Ibrahim Revisão: Os próprios autores Distribuição eletrônica Revista indexada em: Descrição dos procedimentos de seleção de trabalhos para publicação Critérios para publicação: Revista Composição Art. 1 – Composição, Revista de Ciências Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, destina-se à publicação de matérias que, pelo seu conteúdo, possam contribuir para a formação de pesquisadores e para o desenvolvimento científico, além de permitir a constante atualização desconhecimentos nas áreas de Antropologia, Ciência Política, Sociologia e afins. Art. 2 - A periodicidade da Revista será, inicialmente, semestral, podendo alterar-se de acordo com as necessidades e exigências do Curso de Ciências Sociais; o calendário de publicação da Revista, bem como a data de fechamento de cada edição, serão, igualmente, definidos por essas necessidades. Art. 3 - A publicação dos trabalhos deverá passar pela supervisão de um Conselho de Redação composto por quatro professores do curso de Ciências Sociais da UFMS, escolhidos pelos seus pares. Art. 4 - Ao Conselho Editorial caberá a avaliação de trabalhos para publicação. 3 Parágrafo 1º - Os membros do Conselho Editorial serão indicados pelo corpo de professores do curso de Ciências Sociais, com exercício válido para o prazo de quatro anos, entre autoridades com reconhecida produção científica em âmbito nacional e internacional. Parágrafo 2º - A publicação de artigos é condicionada a parecer positivo, devidamente circunstanciado, exarado por membro do Conselho Editorial. Parágrafo 3º - O Conselho Editorial, se necessário, submeterá os artigos a consultores externos, para apreciação e parecer, em decorrência de especificidades do assunto tratado. Art. 4 - Composição publicará trabalhos da seguinte natureza: I - Artigos originais, de revisão ou de atualização, que envolvam, sob forma de estudos conclusivos, abordagens teóricas ou práticas referentes à pesquisa em Antropologia, Ciência Política, Sociologia e afins e que apresentem contribuição relevante à temática em questão. II - Traduções de textos fundamentais, isto, é daqueles textos clássicos não disponíveis em língua portuguesa que constituam fundamentos da área específica da revista e que, por essa razão, contribuam para dar sustentação e densidade à reflexão acadêmica, com a devida autorização do autor do texto original. III - Entrevistas com autoridades reconhecidas na área temática da revista, que vêm apresentando trabalhos inéditos, de relevância nacional e internacional, com o propósito de manter o caráter de atualidade do periódico. IV - Resenhas de obras inéditas e relevantes que possam manter a comunidade acadêmica informada sobre o avanço das reflexões na área temática da revista. Art. 6 - A entrega dos originais para Composição deverá obedecer aos seguintes critérios: I - Os artigos deverão conter obrigatoriamente: a) título em português e inglês; b) nome do(s) autor(es), identificando-se em rodapé dados relativos à produção do artigo, ao(s) seu(s) autor(es) e filiação institucional completa, bem como a auxílios institucionais, endereço institucional, telefone institucional e endereços eletrônicos; c) resumo em português (máximo de 6 linhas, ou 400 caracteres) e abstract fiel ao resumo, acompanhados, respectivamente, de palavras-chave e key words, ambos em número de 3, para efeito de indexação do periódico; d) texto com as devidas remissões bibliográficas no corpo do próprio texto; e) notas finais, eliminando-se os recursos das notas de rodapé; f) referências bibliográficas. II - Os trabalhos devem ser encaminhados dentro da seguinte formatação: a) uma cópia anexada ao endereço eletrônico no padrão Microsoft Word 6.0 ou superior; b) uma autorização para publicação devidamente assinada pelo autor também anexada ao endereço eletrônico; c) a extensão do texto deverá se situar entre 10 e 20 páginas redigidas em espaço duplo; d) caso o artigo traga gráficos, tabelas ou fotografias, o número de toques deverá ser reduzido em função do espaço ocupado por aqueles; e) a fonte utilizada deve ser a Times New Roman, tamanho 12; f) os caracteres itálicos serão reservados exclusivamente a títulos de publicações e a palavras em idioma distinto daquele usado no texto, eliminando-se, igualmente, o recurso a caracteres sublinhados, em negrito, ou em caixa alta; todavia, os subtítulos do artigo virão em negrito; III - Todos os trabalhos devem ser elaborados em português ou inglês, e encaminhados para o email com o texto rigorosamente corrigido e revisado. IV - Eventuais ilustrações e tabelas com respectivas legendas devem ser contrastadas e 4 apresentadas separadamente, com indicação, no texto, do lugar onde serão inseridas. V - As referências bibliográficas e remissões deverão ser elaboradas de acordo com as normas de referência da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT - 6023). VI - Os limites estabelecidos para os diversos trabalhos somente poderão ser excedidos em casos realmente excepcionais, por sugestão do Conselho Editorial e a critério do Conselho de Redação. Art. 7 - Não serão aceitos textos fora das normas estabelecidas, com exceção dos casos previstos no artigo anterior, e os textos recusados serão devolvidos para os autores acompanhados de justificativa, no prazo máximo de três meses. Art. 8 - Uma vez publicados os trabalhos, Composição reserva-se todos os direitos autorais, Inclusive os de tradução, permitindo, entretanto, a sua posterior reprodução como transcrição, e com a devida citação da fonte. 5 Editorial É com muita alegria que apresentamos à comunidade acadêmica o número 12 de Composição, Revista de Ciências Sociais da universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Neste número, estão publicadas as seguintes colaborações: A feira e os vendedores de cds e dvs “piratas”; Imolação do corpo e “santificação” das mulheres assassinadas no Ceará: uma análise sob a perspectiva foucaultiana; O beco e a arte Esquizo em Natal-RN; O reisado do Cipó: resistência de uma sociabilidade tradicional; O ringue escolar: as meninas no tatame; A morte da esquerda comunista e a perspectiva histórica da revolução social; Conhecimento: desafio para as exportações brasileiras; “Do agronegócio!”: O trabalho de tratadores de gado, peões de manejo e peões de rodeio em feiras de pecuária; O homem negro no cururu paulista: apontamentos etnográficos; Antonio Gramsci e o tema da nação: o caso italiano. Destaca-se que a contribuição de pesquisadores de diversas universidades brasileiras, reforçando a proposta de ser um periódico que procurar intercambiar as diferentes produções da pesquisa em ciências humanas e sociais. Boa leitura. Prof. Dr. Aparecido Francisco dos Reis – Editor 6 SUMÁRIO A feira e os vendedores de CDs e DVDs “piratas”. José Julierme Furtado dos Santos e Carmem Izabel Rodrigues..........................................................................................8 A morte da esquerda comunista e a perspectiva histórica da revolução social. Claudinei Cássio de Rezende.............................................................................................................................................23 O homem negro no cururu paulista: apontamentos etnográficos. Elisângela de Jesus Santos.................................................................................................................................................45 Imolação do corpo e “santificação” das mulheres assassinadas no Ceará: uma análise sob a perspectiva. foucaultiana. Daniele Ribeiro Alves, Clara Maria Holanda Silveira e Maria Helena de Paula Frota.....................................................60 O reisado do Cipó: resistência de uma sociabilidade tradicional. Luciano de Melo Sousa......................................................................................................................................................73 Conhecimento: desafio para as exportações brasileiras. Silvana Schimanski............................................................................................................................................................92 Antonio Gramsci e o tema da nação: o caso italiano. Claudio Reis.....................................................................................................................................................................108 O beco e a arte Esquizo em Natal-RN. José Marcilio de Sousa Façanha......................................................................................................................................124 Do agronegócio!”: O trabalho de tratadores de gado, peões de manejo e peões de rodeio em feiras de pecuária. Natacha Simei Leal..........................................................................................................................................................150 O ringue escolar: as meninas no tatame. Maíra da Cunha Darido, José dos Santos Reis Filho e Jéssica Silva...............................................................................165 7 A feira e os vendedores de CDs e DVDs “piratas”1 The fair and sellers of CDs and DVDs "pirates José Julierme Furtado dos Santos2 Carmem Izabel Rodrigues 3 Recebido em 06/01/2013; aceito em 01/06/2013 Resumo: O objetivo deste artigo é levantar questões concernentes à venda de CDs e DVDs “piratas” na Feira Livre do Guamá, bairro periférico de Belém-PA. Com base em estudos anteriores sobre feiras livres e mercados populares no contexto da economia atual, buscamos refletir sobre essas vendas, vistas por muitos como prática de pirataria, a partir de uma visão antropológica sobre informalidade/pirataria. Palavras-chave: Vendedores de CDs/DVDs, Pirataria, Feira do Guamá. Abstract: The aim of this article is to raise issues concerning the sale of CDs and DVDs "pirates" in marketplace in Guamá, suburb of Belém-PA. Based on previous studies about fairs and popular markets in the context of the current economy, we reflect on those sales, seen by many as a practice of piracy, from an anthropological vision about informality / piracy. Keywords: Vendors of CDs / DVDs, Piracy, Fair Guamá. Introdução Neste artigo busca-se apresentar um outro olhar sobre a pirataria de CDs e DVDs, incitando um debate que pretende enfatizar a importância sociológica que a venda de CDs e DVDs “falsificados” traz para a população menos favorecida da sociedade. Não se trata de fazer uma apologia à pirataria, mas apenas de levantar algumas questões para pensarmos juntos como os trabalhadores (os vendedores de CDs e DVDs) tentam sobreviver, de maneira alternativa, nas margens ou interstícios do sistema capitalista formal. A metodologia utilizada nesta pesquisa foi de cunho etnográfico, incluindo visitas em intervalos regulares à Feira, para aplicação de formulários, tanto de naturezas quantitativa (com 1 Este artigo é um produto do Projeto de Pesquisa sobre Mercados Populares em Belém: sociabilidades, práticas e identidades ribeirinhas em espaço urbano, coordenado pela Profa. Carmem Izabel Rodrigues, PROPESP/UFPA (20092011). 2 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará. Bolsista PIBIC/FAPESPA/UFPA (2010-2011). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará (2013-2015). Faz parte do Grupo de Estudos sobre Mercados Populares (GEMP), PROPESP/UFPA. [email protected] 3 Doutora em Antropologia, docente da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais-PPGCS da Universidade Federal do Pará. [email protected], [email protected] 8 levantamento de dados estatísticos sobre a renda, escolaridade, estado civil, sexo, idade etc., dos trabalhadores) quanto de natureza qualitativa (suas opiniões, auto-representações e identificações no mundo da informalidade e da ilegalidade de suas praticas comerciais e suas formas de vendas). O Conceito e a Definição de Feira Livre Considera-se ‘feira livre’ o local previamente designado para a administração pública municipal, dotado de equipamento padronizado removíveis ou não, destinados às atividades comerciais a nível de varejo, voltada para o abastecimento de gêneros alimentícios à população, especialmente os de origem hortigranjeira (Decreto Municipal n° 26. 579, de 14/04/1994. Cap. I. Art. 1°- Conceito e Finalidade). O conceito acima se refere à definição legal (jurídica) interposto pela Secretaria Municipal de Economia (SECON) da cidade de Belém (PA). E, nessa perspectiva, podemos pensar que a feira livre, para a SECON, somente existe se o poder público municipal ordenar/fiscalizar o local, pelo qual se constituirá a feira. Contudo, autores como Ferretti (2000), Sato (2007), Leitão (2010), Mascarenhas e Dolzani (2008), apresentam outros olhares sobre a Feira Livre e seus significados. Para Luis Mott (2000), por exemplo, as feiras livres e mercados possuem dinâmicas e leis próprias, especificidades que podem ou não se distinguir culturalmente uma das outras. Segundo este autor, as feiras livres são instituições do sistema econômico, tendo o papel social de distribuição dos bens de primeira ordem para a cidade, funcionando em tempo parcial, geralmente, pela parte da manhã, por causa dos seus produtos perecíveis. Para Sato (2007), a feira livre é uma “organização” social muito peculiar, porque nela há trabalho, há lazer, há comércio, há divertimentos tudo mesclados nas suas relações sociais. Segundo a autora, a “Feira livre” tem origem no século IX, na Europa medieval. As feiras cumpriam (e cumprem) uma função de abastecimento dos mercados locais com gêneros de primeira necessidade. Leitão (2010) tenta compreender “feira livre”, buscando na origem da palavra o seu significado. Para esta a autora, a palavra “feira” vem do latim feria – dia de festa. Daí muitos autores fazerem menção com as feiras da idade média, que eram grandes reuniões de mercadores 9 que trocavam produtos ao som de festas e festejos religiosos. Ainda segundo esta concepção, Mascarenhas e Dolzani (2008) procuram definir e explicar “feria livre” partindo do pressuposto de que a feira “[...] constitui modalidade de mercado varejista ao ar livre [...] organizada como serviço de utilidade pública pela municipalidade e voltada para a distribuição local de gêneros alimentícios e produtos básicos. [...]” (p. 75). Nesse contexto, fica compreensível explicarmos que as feiras livres são, antes de tudo, relações sociais de cunho economicamente explícito cumprindo o papel eficaz de abastecimento local, com gêneros alimentícios, na maioria das vezes. O Bairro e a Feira do Guamá A Feira Livre pesquisada neste trabalho está localizada em Belém (PA), no bairro do Guamá. Por conta disso, será oportuno fazer menção sobre esse bairro, antes mesmo de falar sobre a Feira. Marlene Cruzinha (2003), mestre em sociologia pela UFPA, explica o bairro do Guamá buscando compreendê-lo através do crescimento populacional e da popularidade do bairro. A autora faz um pequeno escorço histórico do bairro, superficial, segundo ela, no qual busca em documentos e depoimentos de familiares e moradores antigos, informações relevantes sobre a história deste bairro, considerado tradicional da cidade de Belém do Pará. Conforme Cruzinha (2003), no Guamá já houve, no final do século XIX até 1930, uma “colônia” de segregação de Hansenianos, onde hoje está localizada o Campus da Universidade Federal do Pará (UFPA). As autoridades sanitárias, com a finalidade de separar as pessoas sadias das pessoas com hanseníase, levavam as pessoas enfermas para este espaço da cidade, alegando que tal doença era contagiosa. Para a socióloga, nesse momento, houve muita tristeza de famílias que tinham membros infectados por tal doença, porque as autoridades usavam de violência física para arrancá-los de seus lares e levá-los para a “colônia”. Nessa perspectiva, muitas famílias que tinham parentes nessas condições, resolveram construir moradias (residências) próximas a “colônia”, 10 aumentando, portanto, o número de moradores no bairro. Outro ponto igualmente importante para a popularidade do Guamá é o fato de ter abrigado, até as primeiras décadas do século XX, o único cemitério da cidade: o Cemitério Santa Isabel, na Avenida José Bonifácio. Tal cemitério foi desativado em 1960 e hoje mantém jazigos perpétuos. No dia de “finados”, segundo a autora, há um enorme afluxo de pessoas e veículos em frente ao cemitério, vindos de todos os bairros da cidade, causando interdição no trânsito. Outro ponto a se salientar refere-se aos investimentos públicos no bairro. Segundo Cruzinha, tais empreendimentos contribuíram para a popularidade do Guamá, como, por exemplo, a construção do Campus da UFPA, na década de 1960, que fez com que migrassem, para o bairro, pessoas e empresas ligadas a serviços e comércios, somadas com as já existentes Madeireiras e Serrarias ao longo da Av. Bernardo Sayão. Em decorrência das intensas “invasões” de pessoas “sem teto” em frente à UFPA, mais tarde intitulada “invasão do Riacho Doce”, espaço sem infraestrutura e sem saneamento básico, com parcos investimentos do poder público, a UFPA demandou, para esta parte do Guamá, projetos assistenciais que sanassem ou amenizassem um pouco os problemas sociais e urbanos desta parte do bairro, segundo Cruzinha. Outro empreendimento, agora da esfera estadual, também contribuiu para que houvesse uma procura pelo bairro do Guamá: a construção do SACI - Serviço de Atendimento ao Cidadão 4, que oferece à comunidade serviços referentes à emissão de documentos (RG, CPF, Titulo Eleitor etc.), além de oferecer atendimento de demandas jurídicas de pequenas causas para a parcela mais carente do bairro. Em nível municipal, a autora não hesita em ressaltar a construção importante (e necessária) do Pronto Socorro do Guamá. Outro ponto que contribuiu para o aumento da popularidade (e também do crescimento do bairro) concerne ao Rio Guamá, que serviu, durante muito tempo, segundo Cruzinha, como o único 4 Atualmente, no governo Jatene, essa esfera estadual está conhecida como SEAD- Secretaria de Estado de Administração, cujo emblema que está na frente da Secretaria chama-se Tá na mão! 11 meio (fluvial) para as pessoas que moram do outro lado da cidade de Belém se locomoverem. Até hoje, este rio é importante, pois traz cotidianamente ribeirinhos e nativos para a cidade, seja em busca de trabalho, seja em busca de educação, etc. Portanto, com base no trabalho de Marlene Cruzinha (2003), tentou-se contextualizar alguns pontos que contribuíram para o crescimento populacional e popularidade do bairro do Guamá, na cidade de Belém (PA). A Feira, espaço da referida pesquisa, está localizada no cruzamento das Avenidas José Bonifácio e Barão de Igarapé-Miri, na cidade de Belém do Pará, no bairro do Guamá. Ela é composta por dois prédios: o Mercado Municipal e o Mercado de Farinha, além da “Feira informal”, isto é, os espaços socialmente construídos (e não cadastrados pela SECON) que vão sendo ocupados e ressiginificados por outros vendedores que produzem, de certa forma, uma territorialidade no entorno desses estabelecimentos e, especialmente, daqueles que estão ao longo da Avenida Barão de Igarapé-Miri. À época da pesquisa (começo de 2011), o Mercado Municipal do Guamá ainda não estava em reforma, isto é, o prédio era antigo, velho e alguns permissionários estavam insatisfeitos com a estrutura desse prédio. Contudo, na metade do ano de 2012, a Prefeitura da cidade resolveu realizar uma reforma no mercado. Desse modo, o número de boxes, mercearias, permissionários, etc., aumentaram nesse estabelecimento, além de terem melhorado bastante as condições de trabalho dos feirantes, segundo informações deles próprios. O Mercado de Farinha é outro prédio que faz parte da feira. Lá os feirantes comercializam produtos importados, roupas (réplicas), vários tipos de bijuterias, há boxes de lanches, e é claro, nesse estabelecimento, comercializam-se diversos tipos de farinhas. Nas partes laterais desses prédios é comum observar pessoas (ou seja, a “feira informal”) vendendo (trocando, comercializando) produtos, mercadorias, alimentos, importados etc..., ao longo da Av. Barão de Igarapé Miri, notando-se nesses espaços a presença constante de vendedores 12 ambulantes de CDs e DVDs piratas. Portanto, falar em Feira do Guamá é fazer alusão a esses três elementos que a formam: o Mercado Municipal, o Mercado de Farinha e a “feira informal” ao longo da Av. Barão de Igarapé Miri, especialmente. Sobre a Pirataria, especialmente a de CDs/DVDs Existem muitas produções a respeito do tema pirataria, não obstante a maioria delas criticando tal prática social. É o caso, por exemplo, do deputado federal Luiz Antônio de Medeiros. Medeiros (2005), que foi o presidente da CPI da pirataria que houve em 2004, no Congresso Nacional. Medeiros (2005) alerta que as falsificações de produtos (sejam estes remédios, produtos eletrônicos, roupas, CDs e DVDs, etc) são extremamente prejudiciais a todos. As pessoas morrem ao comprarem remédios falsificados, ficam prejudicadas com mercadorias falsas e de má qualidade, e o Estado, para completar, deixa de arrecadar os impostos que seriam revestidos em políticas, obras e investimentos públicos. Segundo ele, todo mundo perde. Para o autor, a definição de pirataria refere-se à “[...] atividade ilícita de copiar, reproduzir e utilizar sem autorização do autor ou do fabricante original, qualquer produto, com o objetivo de lucro” (Medeiros, 2005, p. 21). Medeiros observa que toda pirataria (falsificação) é prejudicial para a economia de um país. O Deputado comenta que: A compra de produtos piratas faz com que a indústria legal, aquela que dá empregos e paga os impostos, não venda. E se a indústria legal não vende, fica sem recursos para investir no seu crescimento. E aí, além de não crescer, ela definha e morre, o que equivale ao fechamento de muitas postos de trabalho (Medeiros, 2005, p. 28). A grande preocupação de Medeiros, portanto, está em torno de que a pirataria causa sérios prejuízos às indústrias nacionais, à sociedade e ao Estado brasileiro. Nessa perspectiva, o deputado da CPI da Pirataria não hesita em propor para o Estado a criação de leis mais rígidas e punições 13 severas para quem pratica a pirataria. No que se refere às falsificações de CDs/DVDs, o deputado alega que as indústrias que mais perderam com essa nova modalidade de pirataria foram as indústrias fonográficas e as cinematográficas. Houve pirataria de músicas e filmes em quantidades em série. Medeiros (2005) elucida que músicas e filmes são copiados em CDs- ROMs (CDRs), CDs virgens, cujo grande centro produtor é Taiwan. Vale frisar que a CPI constatou, ainda, que o Paraguai é um dos maiores importadores de CDs virgens do mundo, e grande parte dessa mercadoria é exportada para o Brasil. No país, o produto é copiado e vendido nos mercados populares, nas ruas e feiras das cidades. Para ilustrar esta discussão, podemos fazer menção a Jon Lech Johansen5, um nerd e hacker norueguês nascido em 1983, que tinha apenas 15 anos de idade quando descobriu como quebrar (burlar) o código de proteção do DVD e, a partir daí, impulsionando (e facilitando) a pirataria desse produto. DVD Jon, como é mais conhecido, foi contratado aos vinte um anos de idade pela empresa MP3 Tunes, para desenvolver softwares de violação de dispositivos, com a finalidade de melhorar os programas de computadores. Atualmente, DVD Jon reside em San Francisco, Estados Unidos da América. Outra visão sobre Informalidade/Pirataria Autores como Santos (2008), Cruzinha (2003), Ribeiro (2009), Pinheiro-Machado (2008) explicam que a informalidade (ou mercado informal) complementa o capitalismo, gera empregos para milhões de pessoas que estão à margem do sistema formal de emprego. E, a pirataria seria uma consequência social do desemprego. Santos (2008) pontua que a informalidade passou a ser uma face característica do mercado 5 Jon Johansen: bandido ou herói? Publicado no caderno “internet” do Jornal do Brasil, em 20/04/00. Prof. Pedro Antonio Rezende, Departamento de Ciências da Computação da Universidade de Brasilia, 10 de abril de 2000. Site http://www.cic.unb.br/~pedro/trabs/dvd.htm 14 de trabalho brasileiro. Em virtude do desemprego, ampliou-se o excedente estrutural da força de trabalho, e a parte da sociedade excluída do emprego formal procurou criar meios alternativos de sobrevivências, com destaque especial, por exemplo, à informalidade. Todavia, para a socióloga, outros meios também são consequências do desemprego como, por exemplo, os intensos sequestros, o tráfico de drogas, a prostituição, os assaltos, o contrabando, a pirataria etc. Meios estes que são considerados “crimes” pela ótica do Estado e também pela maioria da sociedade. Segundo Santos, esse fenômeno, chamado pela autora de “mercado ilegal de trabalho”, é uma consequência do excedente estrutural da força de trabalho (o desemprego). Cruzinha (2003) explicando o desenvolvimento do setor primário, secundário e terciário na região amazônica, confirma que a atividade econômica predominante em Belém é aquela ligada ao setor terciário, tanto no mercado formal quanto no informal. Conforme a autora, com o advento da reestruturação produtiva do capital, na década de 1990, e a flexibilização do trabalho, somados ao desemprego em massa de trabalhadores, em Belém as atividades informais cresceram exorbitantemente. Nesse contexto “na capital do Estado – Belém – os reflexos da reestruturação produtiva, em curso no país, aumentaram ainda mais os efeitos do processo de informalização das atividades econômicas”. Nessa perspectiva, a informalidade tornou-se a única alternativa para os trabalhadores desempregados (p. 65-66). Gustavo Ribeiro (2009) discute alguns pontos concernentes à comercialização de produtos “pirateados”, através da “globalização econômica que vem de baixo para cima” – ou globalização popular – que é estabelecida à margem da economia e coagida, comumente, pelas normatizações do Sistema Mundial Hegemônico. O autor procura explicar que o Sistema Hegemônico (o sistema normativo), conforme suas incessantes operações policiais, intenta destruir, muitas vezes, uma gama enorme de criatividade empreendedora que funciona nas fímbrias da “informalidade” e “ilegalidade” e, quiçá, não se dá conta de que este tipo de Globalização, com o advento do 15 capitalismo eletrônico-informático, só tende a crescer, e que uma atitude mais sensata do sistema normativo seria uma liberalização econômica dessa criatividade popular. O antropólogo elucida que existem muitas pessoas envolvidas, direta ou indiretamente, com “a globalização que vem de baixo para cima”. Ao crescimento notório dos bens falsificados de produtos como, por exemplo, roupas, calçados, produtos eletrônicos, bugigangas, etc., e o acesso (e venda) dessas mercadorias tão comuns nas feiras e mercados populares das cidades, Ribeiro chama de Globalização Popular. Nessa perspectiva, o antropólogo ressalta que, atualmente, as cópias de superlogomarcas de sapatos, de roupas, de acessórios etc., estão perdendo seu lugar de principal fonte de lucro para os produtos “pirateados” de CDs/DVDs e softwares de computadores, em decorrência exclusivamente do capitalismo eletrônico-informático hoje vigente. Desse modo, os downloads de músicas, de textos, de filmes etc., não se restringem mais aos adolescentes trancados em seus quartos, pois muitas outras pessoas, interessadas em fazer deste novo universo uma fonte de renda, procuram baixar músicas e filmes, por exemplo, e vendê-los nas fímbrias do Sistema Mundial não Hegemônico, nas Feiras e ruas das cidades (Ribeiro, 2009, p.520). O autor pondera que tem que haver uma liberalização dessas “práticas” econômicas ilegais, uma vez que o Sistema Mundial Hegemônico incrimina e estigmatiza as pessoas que estão comercializando produtos na Globalização Popular. Para Ribeiro (2009), o sistema normativo não se dá conta de que existe uma gigantesca energia empreendedora e criativa, em todo o globo, não só no Brasil, funcionando nas franjas da “informalidade” e da “criminalidade”, e que coerção, repressão, não vai adiantar (Ibid., p.521). Pinheiro-Machado (2008) intenta desconstruir a ideia de “informal” e ilegal. Para PinheiroMachado, os conceitos de “formal/ informal”, “legal/ ilegal”, “lícito/ ilícito”, são tênues, fluidos. Isto é, em cada Estado-político, a noção de informal e ilícito sofre uma metamorfose, na qual uma dada mercadoria ora terá face da legalidade, ora da informalidade/ ilegalidade, ao ser transportada 16 para outros países. Para contextualizar tal ideia, a antropóloga dá o exemplo dos brinquedos fabricados na China (made in China), encontrados, muitas vezes, entre os camelôs brasileiros, os quais vendem por R$ 1,99 no mercado. De acordo com a autora, as fábricas que produzem tais mercadorias são estabelecimentos legais e cumprem, de certa forma, com as leis trabalhistas vigentes desse Estado. Não obstante, é comum e habitual observar práticas informais atravessando as legalidades correntes: os excessos de carga horária (extrapolando dez horas diariamente), o trabalho infantil, a ausência de carteira assinada (nem todos têm a carteira assinada etc.). Em outros termos, práticas informais e ilegais mergulhadas na formalidade lícita estatal e, muitas vezes, com o consentimento e legitimidade do próprio Estado. Nessa perspectiva, o comércio das falsificações e da “pirataria” é mais legítimo e tolerado na China e no Paraguai, enquanto no Brasil, o Estado reprime e coage fisicamente a informalidade econômica da sociedade. É exatamente a partir deste contexto que a autora desconstrói a noção de informal e ilegal. Segundo Pinheiro-Machado, cada Estado-nação tem uma convenção jurídica particular. Continuando nessa mesma linha, para complementar, a pesquisadora dá o exemplo da cidade de Foz do Iguaçu e de algumas cidades próximas da fronteira Brasil-Paraguai, relacionadas com os “sacoleiros”. Quando houve, um dia, uma mega operação da Polícia Federal e da Receita Federal, nessa região, com o fim de “acabar” com a informalidade neste local, essa ação teve consequências sociais, pois os maiores prejudicados foram os proprietários de hotéis e restaurantes dessa região, para os quais os maiores consumidores eram os “sacoleiros” que vivem intermitentemente nas idas e vindas na fronteira. A partir desse quadro, a autora diz que a informalidade é importantíssima para o capitalismo, pois o complementa, no geral. Segundo Pinheiro-Machado, o mercado informal é responsável, ainda, por criar novos consumidores para as lojas regularizadas da cidade. Vale lembrar, porém, que 17 alguns estabelecimentos comerciais e, muitos Bancos já têm o costume de abrirem sistema de crédito e financiamentos para a maioria dos camelôs. Sem contar, todavia, que a informalidade é responsável, em grande parte, em levar bens de consumo às classes de baixa renda. Segundo Pinheiro-Machado, este fenômeno representa a dependência econômica notória entre o setor formal e legal para com a informalidade e ilicitude. “O mercado dominante se beneficia da pirataria” (p. 128). Portanto, a autora conclui que “o informal [...] é parte constitutiva do Estado, do capitalismo e dos ditos mercados formais” (p. 129). Pinheiro-Machado, diante disso, tentou tratar o fenômeno da informalidade e da “pirataria”, buscando contextualizar as faces e as metamorfoses pelas quais os produtos, juntamente com as noções de informal e ilegal, se alteram de país para país, frisando também a complexidade existente para identificar e separar as práticas legais (lícitas) das práticas informais e ilegais. Os Vendedores de CDs/DVDs “piratas” Os vendedores de CDs/DVDs pirateados 6 que participaram da pesquisa estão dispersos ao longo da Feira Livre do Guamá, mas especificamente alocados (mas não fixos) na Avenida Barão de Igarapé Miri. Os vendedores dessas mídias montam pequenas barracas em caixotes de madeiras, que servirão de suporte para os CDs e DVDs, e sobre os quais colocam um pano para expor os produtos. Outros utilizam um carro de mão de madeira e o empurram ao longo da Avenida Barão de Igarapé-Miri, oferecendo seus produtos. A criatividade desses trabalhadores é refletida, ainda, na organização das suas mídias nas barracas: eles organizam os filmes, documentários, músicas etc., em blocos enfileirados chamados por eles mesmos, de “Lotes”. Por exemplo, o “Lote” dos filmes de sexo, o “Lote” dos filmes evangélicos, o “Lote” dos filmes de terror etc.. Toda essa organização permite que as pessoas (os consumidores) possam escolher o conteúdo do que querem comprar. Além desta disposição das 6 Aqui, neste trabalho, esses vendedores também são chamados de Feirantes, pois trabalham diariamente na feira do Guamá. 18 mídias “falsificadas”, há outra, igualmente importante: os instrumentos que os trabalhadores levam para as barracas como, por exemplo, tevês, aparelhos de DVDs e caixa amplificadora, os quais são meios de chamar a atenção dos seus fregueses e também de testar as mercadorias. Esses feirantes têm o costume, já comum entre muitos deles, de assinar uma rubrica nos CDs e DVDs que estão sendo comercializados. Quando perguntados por que eles assinavam as mercadorias, eles disseram que era uma forma de garantia que eles davam para seus consumidores (fregueses), caso houvesse defeitos nas mídias. Desse modo, o comprador podia trocar o objeto por outro, em boas condições de uso. Considerações Finais Neste artigo buscou-se discutir conceitos e definições de feiras livres para, a partir dessa definição, contextualizar a Feira Livre do bairro do Guamá e os feirantes que comercializam CDs/DVDs “piratas”. O artigo ainda tratou de polemizar as ideias e opiniões do deputado federal Luiz Antônio de Medeiros (2005) no que tange à pirataria. O deputado e mentor da CPI da Pirataria critica veemente a prática da pirataria no Brasil e no mundo, que estaria contribuindo para o avanço visível do desemprego. Em contraposição à opinião de Medeiros, buscamos outros caminhos para perguntar se a pirataria, de fato, reduz tanto os empregos formais do país, ou seria, de certa forma, a reestruturação produtiva do capital e os e os seus novos modelos produtivos de trabalho, hoje vigentes, que estariam contribuindo para a redução drástica dos empregos, no Brasil? Segundo Medeiros (2005), a pirataria prejudica todo mundo... Prejudicial, para quem? Para as grandes e médias empresas do país, que querem especialmente elevar os seus lucros? Ou para os trabalhadores (vendedores ambulantes e outros) que tentam os mais variados meios, para sobreviver numa sociedade de modo de produção capitalista? Para o deputado a pirataria não tem escrúpulos. Mas o sistema capitalista, que tornou-se um sistema mundial, até que ponto valoriza os seres 19 humanos, o bem-estar de todos, a humanidade entre as pessoas? No século XVI, por exemplo, quando havia o capitalismo comercial, era comum (e legítimo) a comercialização de negros escravos da África para as Colônias nas Américas, o Estado Absolutista e a Igreja católica, à época, legitimavam tal prática, era legal (lícito) este tipo de comércio. Ainda nesse contexto, o deputado argumenta que a pirataria prejudica o Estado e a sociedade, porque desse modo o poder público não arrecada os impostos e não pode, portanto, investir em obras, programas e políticas públicas. Contudo, na Amazônia, por exemplo, houve na década de 1980 a efetivação dos Grandes Projetos de Polos Industriais, Carajás foi um deles. O Estado brasileiro, visando desenvolver a região, isentou totalmente algumas empresas de quaisquer formas de impostos, de modo que essas empresas não pagavam nada ao Estado, ainda que obtendo lucros grandiosos. Se a discussão da CPI gira em torno do pagamento ou não de impostos que a pirataria deixa de “dar”, por que, então, o próprio Estado isenta as grandes indústrias, já que é através dos impostos que o governo pretende investir em obras/políticas/projetos públicos? Talvez os deputados da CPI da Pirataria e os empresários não percebam a pirataria (assim como a informalidade) como mais uma consequência do modo de produção capitalista atual, ou seja, uma consequência da estruturação produtiva do capitalismo. No entanto, tal fenômeno não pretende acabar com capitalismo, mas dele desfrutar. Para isso, buscou-se em autores como Ribeiro (2009) e Pinheiro-Machado (2008), antropólogos que pesquisaram a Globalização Popular, para compreendermos que a pirataria (e a informalidade) complementa o capitalismo. Porque leva bens de consumo para grande parcela da sociedade menos favorecida – no caso aqui analisado, os CDs/DVDs “piratas” –, além de transformar os vendedores dessas mídias “falsificadas” em consumidores potenciais, no capitalismo. Referências ANUÁRIO ESTATÍSTICO DO MUNICÍPIO DE BELÉM, v. 15, 2010 – Belém: Secretaria Municipal de Coordenação Geral do Planejamento e Gestão, 2011. 20 BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Comissão Parlamentar de Inquérito da Pirataria BRASIL. CPI da pirataria: relatório. Brasília DF: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2004. 342 p (Ação parlamentar). CRUZINHA, Marlene Nascimento; Universidade Federal do Pará. Precarização das condições de trabalho independente e informalidade faces e disfarces: o caso dos Jovens Feirantes do Bairro do Guamá. 2003, 131f. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Departamento de Sociologia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará, 2003. 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Revista Psicologia e Sociedade: 19, Edição Especial 1:95-102: 2007, p. 95-102. 22 A morte da esquerda comunista e a perspectiva histórica da revolução social The death of communist left and historical view of social revolution. Claudinei Cássio de Rezende1 Recebido em 30/03/2012; revisado e aceito em 15/02/2013 Resumo: Este artigo trata das conclusões de minha pesquisa sobre a esquerda brasileira dos anos 1958-1974; pesquisa publicada em livro pela editora Unesp – Suicídio Revolucionário (2010). Seu foco central tece o conjunto teórico do qual a esquerda brasileira se valeu no embate contra a ditadura militar, o que determinou decisivamente nas ações que culminaram com o genocídio da esquerda comunista que mantinha em seu programa um estatuto de revolução social. Palavras-chave: Esquerda comunista. Luta armada. Revolução social. Abstract: This article discusses the conclusions of my research about the Brazilian left between 1958-1974; research published in a book by Unesp: Suicídio Revolucionário (2010). The central focus of this article weaves complex theory wich drew the Brazilian left the clash against the military dictatorship, which ruled decisively in the actions that culminated in the genocide of communist left that maintained in his program a status of social revolution. Kweywords: Communist left. Armed struggle. Social revolution. Em nenhum outro momento da história, as contradições geradas pelo capital e seu caráter anti-humano estiveram tão expostos quanto estão agora, com a inflexão do capital pelas suas vias de mundialização. Se pensarmos em alguns dos avanços técnicos e tecnológicos alcançados ainda no século XX, da descoberta dos antibióticos em 1928 à clonagem de mamíferos em menos de setenta anos depois, percebemos que o nível atual do desenvolvimento das forças do trabalho está em nítida contradição com as relações sociais de produção engendradas pela lógica da propriedade privada em sua forma histórica mais evoluída. De maneira direta, conforme anunciada por Chasin (2000 a), a capacidade humana alcançada para a produção de seu mundo próprio é potencialmente superior à organização social que os homens permanecem obrigados a suportar. No aflitivo início do século XXI nos deparamos com a crise estrutural do capital. A crise no mercado financeiro, com seu cume em 2008, reflete diretamente na economia européia; a Espanha tem hoje mais de 4 milhões de desempregados. Apesar disso, em nenhum momento dessa crise 1 Professor do Centro Universitário Fundação Santo André. Pesquisador do Núcleo de Estudos de História: Trabalho, Ideologia e Poder (PUC/SP). Mestre e Doutorando em Ciências Sociais pela Unesp-Marília. Contato: [email protected] 23 algum grupo influente no cenário político apresentou um horizonte de resolução pela perspectiva do trabalho, a fim de superar a lógica globalizada do capital; superação fundamental para a efetividade da autoconstrução humana. Nessa reordenação do capital por sua própria dinâmica, a esquerda pósstalinista esteve diluída pela crença na eficácia da política, não apresentando nenhuma saída para além do capital e da perfectibilização do Estado, porque esteve, em parte, arrimada na postura da “democracia como valor universal”, de talhe eurocomunista. Problemas evidenciados, portanto, desde muito antes da derrocada do Estado soviético – observados no arrefecimento do marxismo ocidental, na filosofia do “pensamento 68” de talhe pós-estruturalista 2 –, perdurando depois de assentada a poeira de seu entulho. Diante disso, o movimento operário não tivera resposta para a globalização transnacional do capital. Sobretudo porque o movimento operário sempre se comportara de forma setorial e defensiva. Por sua característica defensiva, o movimento operário esteve impossibilitado de romper com as restrições setoriais paralisantes advindas da dependência da pluralidade dos capitais. Por esse motivo, entrara num círculo vicioso em que sua setorialidade defensiva legitimou a ordem sociometabólica do capital; pois, por omissão, essa postura representou tacitamente a aceitação da ordem política e econômica estabelecida – a democracia liberal – como sendo a estrutura ineliminável, fazendo o movimento operário lutar dentro dos liames políticos, mantendo intacta a forma econômica desse sociometabolismo; como foi o caso do movimento operário no ABC paulista, ressurgido após a esquerda ter sido ceifada pela ditadura militar. De modo que a esquerda tradicional organizada entrou num momento tão peculiar que acabou entendendo as conquistas da democracia como o mais elevado patamar atingível pela radicalidade operária. Isso se reflete de modo semelhante nos âmbitos nacional e internacional. Como a história nos demonstra, esse não é um problema exatamente novo: ainda no final 2 Entendemos por pensamento 68 o conjunto de formulações expostas, cronologicamente, da refutação da teoria de Marx à enxurrada de obras vinculadas ao movimento de Maio de 1968, no qual se decreta a “morte do homem” pela trajetória foucaultiana inscrita em As Palavras e as Coisas, pelas obras de Jacques Derrida – a filosofia da desconstrução –, bem como pelo pressuposto filosófico de talhe nietzsche-heideggeriano, donde se almeja uma ruptura formal com o humanismo dialético hegeliano – e, por via de conseqüência, com a propositura revolucionária marxiana. Não foi sem razão que Luc Ferry afirmou que essa corrente promove a morte do sujeito nas estruturas. Para uma reflexão acerca deste tema, Cf. Ferry e Renaut (1988). 24 dos anos 1930, a teoria do “socialismo em um só país”, decretada por Stalin no momento de declive dos movimentos operários, emasculava qualquer possibilidade de realização de uma revolução nãoorquestrada pela União Soviética; se não bastasse, essa teoria desencontrava a tese marxiana exposta na Ideologia Alemã (2007), a saber, a de que os povos dominantes, todos de uma só vez e simultaneamente teriam de embarcar no processo de revolução socialista como forma de assegurar a positividade de seu resultado, o que sucederia somente com o desenvolvimento universal das forças do trabalho e o intercurso mundial a elas articulado. Portanto, o que estava em jogo – e que permanece em jogo, a despeito da morte da esquerda – não era a questão do subdesenvolvimento ou, no seu limite, a questão nacional, mas a viabilidade da estratégia revolucionária. Simultaneamente à inexistência de uma estratégia revolucionária global que atue de maneira ameaçadora às atuais estruturas sociometabólicas, a não-resistência formal da esquerda atual ao mundo do capital se fortalece pela reprodução do marxismo vulgar por toda uma casta da intelectualidade internacional, que por simples ignorância ou por interesse de classe, propaga o marxismo vulgar para criticá-lo como se esse fosse o autêntico pensamento marxiano. Interpretações vantajosas para a execração da esquerda, que pretendem demonstrar que não resta outra opção senão o descarte da revolução social. Descarte da revolução, que significa o descarte in limine da emancipação humana: a esquerda hoje está prostrada, impossibilitada de apresentar alguma estratégia revolucionária unificada e organizada para a superação da propriedade privada. A propriedade privada trouxe consigo um avanço das forças produtivas nunca antes presenciado na história. Por esse motivo, não podemos considerá-la um retrocesso histórico, mas uma forma de avanço que elevou qualitativamente a condição produtiva da humanidade e que, paradoxalmente, ao mesmo tempo criou o entrave para a emancipação humana. Marx (1995 b) apresenta a questão da essência da transição socialista não como um fenômeno que nega simplesmente a propriedade privada mas como um movimento que a transforma em um supra-sumir de toda a sociabilidade que se baseia na forma da propriedade privada, transmutando-a em 25 propriedade social. Ainda de acordo com Marx (2007), o momento possível da transição é quando há uma existência efetiva material e espiritual de um mundo com possibilidade produtiva em esfera global. Quando então, contraditoriamente, os benefícios desse avanço não atingem a todos os homens, a necessidade de uma revolução social urge. A possibilidade material para a transformação social está posta hoje mais do que na época em que Marx fazia essas reflexões; aliás, mais hoje do que em qualquer outro momento da história; pois, a revolução social, a tentativa do homem, como um ser genérico, de recuperar sua condição humana, depende do aparato tecnológico desenvolvido pelas forças do trabalho. A supra-sunção dessa contradição do capital não será alcançada dentro da lógica do capital, exceto pelo fato de que essa supra-sunção parte do mundo existente do capital a fim de atingir um estágio superior de humanização que ultrapasse o capitalismo. Essa condição de supra-sunção do capital, embora já materialmente viável, jamais se efetivou na história; nem mesmo anunciou elementos de superação quando da existência da sociedade soviética ou pós-capitalista. De acordo com Chasin (1988) e Mészáros (2002), no transcurso da fase pós-capitalista, mesmo quando essa se compreendia no quadro mais favorável possível para a transição socialista, não se operou o desaparecimento completo da lógica do capital. O que significa dizer que nas sociedades póscapitalistas o trabalho, regido pelo capital coletivo/não-social, manteve-se sujeito às determinações da lógica do capital, apesar das formas diferenciadas que assumiram o Estado e a propriedade. Essa urgente revolução social, ipso facto, é ainda historicamente inédita. Retornando ao seu principal formulador, Marx (1969; 2005 a), percebemos que ela não é a afirmação de uma classe universal mas a afirmação universal do homem. Não é a afirmação do proletariado ou de alguma outra classe como classe universal, como quer Mészáros (2002, p. 568 e p. 1051), mas a determinação de uma universalidade humana que não reivindica nenhum privilégio ou título histórico senão a condição humana. Se a revolução social, pois, não é a afirmação de uma ou de outra classe, mas a negação das classes na afirmação universal do homem, fica evidente que o 26 processo soviético não chegou ao termo da emancipação humana, pois o proletariado não conseguiu realizar o seu processo de dupla negação, dissolvendo todas as classes. Esse processo nos remete a pensar a capacidade do proletariado que agora se encontra prostrado e superado como agente tecnológico de ponta, de coordenar o processo contemporâneo de emancipação humana, isto é, o processo da revolução social que irá supra-sumir a propriedade privada e a política – porque se tornarão obsolescências – com base na lógica objetiva do trabalho, ou seja, tomando como princípio seu centro nervoso. De sorte que a ilação do proletariado como portador desse papel nos dias atuais depende de uma profunda análise acerca do novo patamar técnico-produtivo do capital. O que não significa, em hipótese alguma, impugnar o proletariado como agente histórico da verossímil revolução que não ocorreu, mas chegar à compreensão de que a [...] revolução – a desobstrução e o recentramento da atividade crítico-prática nos processos de autoconstrução humano-societária, culminando na reconversão por inteiro do metabolismo social – é infinitamente mais importante que qualquer categoria social, ou seja, dito com todas as letras: a revolução universal ou emancipação humana é mais importante que qualquer um de seus agentes reais ou imaginários, inclusive mais importante do que aquele que até aqui foi mais reconhecido e valorizado – o proletariado, em especial quando evidências largamente acumuladas apontam que sua esperada função histórica não se cumpriu, nem mais poderá ser cumprida na forma e sob a encarnação que, no passado e com razão, lhe foi conferida. (CHASIN, 2000 a, p. 64) O proletariado possuía a possibilidade de ser a negação da negação apenas pela sua situação vital na lógica onímoda do trabalho. Essa potência ou propriedade, como explica Chasin (2000 a), não é uma particularidade exclusiva do proletariado ou de qualquer contingente temporário do trabalho alienado. Os contingentes de ponta em geral podem ter a possibilidade de encarnar essa potência, mas não a realizam obrigatoriamente. Todavia o fracasso ou a impossibilidade de um desses agentes, em seu momento histórico, de realizar sua tarefa – até onde pudemos determinar, o proletariado – não significa o desaparecimento dessa potencialidade revolucionária. Por esse motivo, observar essa incapacidade do proletariado não significa sepultar a perspectiva histórica da esquerda, tampouco negar a centralidade do trabalho no processo de ultrapassagem da forma de sociabilidade do capital, mas, pelo contrário, significa dizer que 27 O proletariado, estritamente como a classe dos trabalhadores urbano-industriais, não foi propriamente vencido em seus 150 anos de lutas, mas simplesmente não foi capaz de se realizar como a dupla negação prevista por Marx. Materializou-se apenas enquanto primeira negação, enquanto expressão da pobreza e da opressão, só como figura da exploração capitalista, lutou apenas como vítima da miséria. Jamais se materializou como negação da negação, aquele que, ao negar a própria negatividade e se auto-suprimir, suprime a miséria espiritual e material de modo universal. Foi simplesmente incapaz de lutar como a negação da negação. (CHASIN, 2000 a, p. 66-67) Com a reordenação do capital, após seu processo de mundialização, o âmbito nacional continuou sendo o palco das mazelas e das palpitações dos problemas sociais, sem, contudo, continuar a ser palco da dinâmica da resolução desses problemas. Diante disso, uma pergunta se impõe: o movimento de vanguarda do trabalho abandonara sua postura defensiva para começar a agir internacionalmente? Há algum grupo realmente organizado com grande contingente em torno da preocupação da emancipação humana, em escala internacional? A resposta é negativa às duas perguntas. Não há um grupo com contingente significativo, ou que tenha de fato inserção no movimento de vanguarda, organizado com base na perspectiva do trabalho, nacional ou internacionalmente. Por isso, há uma grande valia na elucidação da história da esquerda; mais precisamente, na de como se processou a idéia de revolução na última esquerda comunista que manteve em seus programas a revolução social como tônica. E como essa esquerda, organizada e com inserção sindical, pensando a revolução socialista, foi vencida pela reação no Brasil. A ofensiva internacional do capital e da extrema-direita no Brasil se beneficiou do raquitismo teórico e prático da esquerda comunista – fraqueza emanada desde a tentativa de qualificação da anatomia do capitalismo brasileiro até a elaboração de prospectivas de ações mais imediatas após o golpe de 1964. Especialmente porque, no Brasil, a burguesia jamais engendrou um projeto revolucionário que rompesse com sua condição subordinada, e essa não-realização de um processo modernizador com base numa ruptura revolucionária – burguesa – com a estrutura colonial lançou o Brasil tardiamente no processo de industrialização. De acordo com Chasin (2000 d), a industrialização subordinada ao capital externo, capitaneada pela produção de bens de consumo duráveis, conciliada com a estrutura agrária herdada da colônia e assentada na superexploração do trabalho, portanto na exclusão econômica dos trabalhadores, marcou a política28 econômica da burguesia brasileira. Classe essa que se revelou incapaz de dominar sob forma efetivamente democrática – porque esteve impossibilitada de lutar ou sequer perspectivar sua autonomia econômica e, assim, de se pôr à frente de um projeto de cunho nacional, apto a incluir, embora nos limites do capitalismo, as classes a ela subordinadas. Assim, a burguesia tinha duas formas possíveis de ação, caso pretendesse a superação de tal condição ainda em sua protoformação: ou ocupar a radicalidade do gradiente burguês completando o itinerário da burguesia européia para formar uma unidade burguesa nacional, desenvolvendo rapidamente as forças produtivas a fim de edificar o capitalismo verdadeiro – o que chamamos de revolução burguesa; ou a radicalidade operária, lutando em termos ou princípios gerais do trabalho por uma sociabilidade que ultrapassaria o capital numa dupla transição – numa revolução permanente –, perspectiva incomum, inclusive, às burguesias revolucionárias européias. A verificação do histórico da burguesia brasileira, seja por sua não-revolução burguesa resultando no acordo com o historicamente velho, seja por sua contra-revolução bonapartista resultando no agrilhoamento das classes subalternas, revela o fato de que em nenhum momento essa burguesia almejou alguma dessas duas alternativas. Decorrente dessa inação, a burguesia brasileira exerceu seu poder político sob a forma de uma autocracia. Portanto, como verificou Chasin (2000 b), a via colonial de entificação do capital se caracterizou pela ausência de processos revolucionários para a objetivação do capitalismo industrial, gerando um capitalismo atrófico, de natureza ainda mais perversa que a entificação do capital pela via prussiana. Pois a burguesia brasileira, caudatária desde o início da via colonial até a sua completude com a inflexão da mundialização do capital no final dos anos oitenta do século XX, não procurou estabelecer um desenvolvimento autônomo que objetivasse o ingresso do país no panteão dos países centrais; tampouco buscou cortar seus laços de dependência econômica que a ligava ao imperialismo. A esquerda brasileira, por sua vez, nasceu umbilicalmente ligada a essa debilidade burguesa. 29 Ou seja, a esquerda brasileira não nasceu do combate a um antigo corpo burguês revolucionário, nasceu, isto sim, do inacabamento de classe. Atinando com a finalização da revolução burguesa de feto natimorto, a esquerda principiou sua atuação no Brasil de maneira muito aquém da esquerda européia; sobretudo, por não se deparar com uma entificação histórico-social integralizada. Resultantes de uma interpretação não-equivalente das vias de objetivação do capital no país, na qual se procurava os resquícios feudais para a efetivação da revolução antifeudal, todas as tentativas de uma revolução ordenada pela conduta pecebista frustrara-mse. Todas as possibilidades de resolução pela via do trabalho, como o processo de resistência ao golpe de 1964 ou como a resolução política adotada na Declaração de Março de 1958, foram frustradas em detrimento de um paradigma previamente estabelecido para guiar o movimento comunista internacional: a teoria da revolução em etapas. A esquerda brasileira, desse modo, não principia sua atuação a partir donde parou a atuação do horizonte burguês, mas principia a partir da tentativa de formar esse próprio horizonte. Todavia, a ausência da empresa da revolução burguesa pela burguesia fez com que a esquerda sucumbisse à tentativa de realização dessa revolução com base na mesma planta. Enquanto a nova esquerda3 surgida da distensão da ditadura militar, já despojada de qualquer intenção de revolução social, almeja a perfectibilização do capital e da política, o debate entre 3 Utilizamos o conceito “nova esquerda” para determinar a esquerda que nasce despojada da idéia da revolução social, ou seja, a esquerda após os anos 1970, incluindo aqui a esquerda não-comunista nascida do movimento grevista dos anos 1978–1980 – o Partido dos Trabalhadores (PT) e suas dissidências. [Atenção! Daniel Aarão Reis Filho (1990) utiliza o conceito de “nova esquerda” para descrever os grupos que romperam com o PCB, ou seja, a esquerda armada]. Diluída no pensamento neocontratual e liberal, essa esquerda não-comunista teve seu apoio na analítica paulista. Analítica paulista é a expressão com a qual é referida a vertente teórica produzida desde a virada da década de 1950 por destacados intelectuais acadêmicos de São Paulo; vertente que se difundiu por todo o país como tributária e melhor intérprete do legado científico de Marx. Chasin tece pesadas críticas à analítica paulista (ao marxismo adstringido) e à sua característica gnosiológica. Escreve: “Germinada, segundo seus próprios mentores, a partir do agora afamado Seminário sobre O Capital, que os mesmos levaram a efeito em fins dos anos 50, a analítica paulista se afirmou, desde o princípio e daí por diante, como uma modalidade epistêmica de aproximação e apropriação seletiva da obra marxiana de maturidade. Isso compreendeu, pela mesma via, a exclusão praticamente completa dos textos de Marx dos anos quarenta, sob o entendimento de que eram caudatários da antropologia feuerbachiana. Por efeito, foram ignoradas as críticas ontológicas, a primeira das quais voltada à política, com as quais foi instaurado e teve continuidade a elaboração do corpus teórico marxiano. Operações redutoras que perfilaram uma versão do marxismo circunscrito à condição de lógica ou método analítico e de ciência do capitalismo, para a qual ficou irremediavelmente perdido o centro nervoso do pensamento marxiano, – a problemática, real e idealmente inalienável, da emancipação humana ou do trabalho, na qual e somente pela qual a própria questão radical ou crítico-revolucionária encontra seu télos, identificando na universalidade da trama das atividades sociais seu território próprio e resolutivo, em distinção à finitude da política, meio circunscrito dos atos negativos nos processos reais de transformação” (CHASIN, 2000 a, p. 7). 30 alguns intelectuais livres, atualmente isolados por força da quebra da coluna vertebral do movimento operário mundial, aspira determinar quem é o novo proletariado e, por conseguinte, o agente capaz de levar a cabo a revolução social. Entretanto, essa determinação categorial – proletariado – por vezes incorre no impasse de ou entender por proletariado (i) todos os trabalhadores, isto é, “a classe que vive do trabalho”, apresentando um conceito vazio uma vez que toda a humanidade vive do trabalho – trabalhando ou se apropriando dele; ou (ii) somente aquele trabalhador que transforma diretamente a natureza, como os trabalhadores manuais. Enquanto na primeira determinação se encaixa todo o contingente da humanidade – e, logo, não há determinação concreta por ser muito abrangente –, na segunda, por sua vez, restringe-se o conceito de proletariado a um momento histórico anterior ao de Marx, pois ignora o desenvolvimento da tecnologia. A advertência de Chasin é imperiosa no sentido de expor o fato de que o agente que possui a potencialidade nuclear da revolução social será sempre a do contingente que trabalha com a tecnologia de ponta: Assim, se quiserem chamar de proletariado os novos contingentes de ponta da lógica onímoda do trabalho, paciência, não são os nomes que decidem a natureza das coisas, mas não é uma idéia propriamente feliz, nem como homenagem a um lutador vencido. Se os mais renitentes ou saudosos assim o quiserem, o termo pode ser conservado, contanto que retenha a noção fundamental de significar trabalhador que opera por meio das forças produtivas de ponta. (CHASIN, 2000 a, p. 68) O agente capaz de efetivação da revolução social é aquele locado no centro nervoso do trabalho. Essa constatação impugna a imputação, realizada por alguns grupos da esquerda anã atual, de um potencial revolucionário a alguns grupos sociais desvinculados do trabalho de ponta, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Independentemente se o MST mantém em seu programa um estatuto revolucionário, esse movimento não possui a capacidade de realização e coordenação de uma revolução social, sobretudo pela ausência de uma posição estratégica dentro do processo produtivo do capital. É importante observar que o século XX tomou de forma direta e unilateral seções discursivas do pensamento marxiano e o converteu apenas num autor político, consentindo a defesa 31 do estado pela esquerda vulgar e depois pela esquerda adstringida. Essa derrelição – a suposição indefectível de uma ontopositividade da política nos escritos marxianos – não se deveu simplesmente ao fato de que Marx tenha sido malcompreendido, mas, sim, à ocorrência de eventos históricos que forçaram a ablação de sua filosofia. Visto dessa perspectiva, esse foi o século da derrota do movimento comunista internacional como tragédia política. Ao se concentrarem na luta política, os partidos do movimento operário não puderam elaborar uma alternativa viável à ordem sociometabólica do capital, pois eram completamente dependentes do objeto que negavam. A dimensão que os partidos do movimento operário não puderam suprir não era a da negação política do capital, mas a do próprio capital como regulador sociometabólico do processo de reprodução material. Como detém o controle efetivo de todos os aspectos vitais do sociometabolismo, o capitalismo tem condições de definir a esfera de legitimação política separadamente, constituída como um assunto estritamente formal, excluindo assim, a priori, a possibilidade de ser legitimamente contestado em sua esfera substantiva de operação reprodutiva socioeconômica. Empurrados para a resolução apenas da emancipação política de seus grupos isolados, aliás, pendendo pesadamente para o descarte da revolução social, os movimentos sociais nesta fase da depleção da vanguarda do trabalho mantêm a idéia de resolução dos conflitos por esferas independentes: as chamadas “questões de gênero”, as questões ambientais e a luta pela conquista de direitos políticos das “minorias”; que deixam intocada a forma atual da sociabilidade. Em outras palavras, descartam a possibilidade de uma revolução social. A revolução social passa a ser vista como retrocesso histórico, como se o processo revolucionário fosse descartar as conquistas do desenvolvimento do trabalho, como a rede mundial de computadores ou outros eventos fundamentais que, pelo contrário, tornam possíveis os passos para frente rumo à superação desse metabolismo social. Quando não vista como um retrocesso, o tema da revolução é simplesmente ignorado como estratégia ultrapassada e inverossímil. E os movimentos sociais, desamparados de uma teoria estratégico-revolucionária, acabam por estabelecer a ordem sociometabólica atual como 32 natural e intransponível; não conseguindo negar o capital como regulador sociometabólico do processo de reprodução material4. Justamente por esse motivo, somente o movimento do trabalho, dotado de um agente no centro nervoso da lógica onímoda do trabalho, possui a capacidade da transformação radical do metabolismo social, transformando a possibilidade de emancipação política de cada grupo isolado em possibilidade de emancipação humana completa. No Brasil, o último momento em que a esquerda esteve organizada pela perspectiva do trabalho, programando uma revolução social e mantendo, concomitantemente, uma substantiva inserção sindical e um valioso apoio das classes subalternas foi nos anos 1960. Essa esquerda ainda servia, de uma maneira geral, de barra condutora dos movimentos sociais. Os movimentos sociais tinham seu eixo gravitacional na perspectiva do trabalho, apesar dos problemas teóricos da esquerda comunista de então – o seu nascimento no limbo: “entre o inacabamento de classe do capital e o imperativo meramente abstrato de dar início ao processo de integralização categorial dos trabalhadores” (CHASIN, 2000 b, 230). A partir do golpe de 1964, momento em que a esquerda 4 Perry Anderson elabora um conjunto explicativo preciso sobre a centralidade do trabalho na luta pela emancipação humana. Historicamente mais antiga do que a divisão de classes, a diferenciação entre as duas partes do gênero humano é um fator natural. Qualquer luta pela emancipação feminina encontrará pela frente os pilares do capital e a existência da sociedade de classes, de tal modo que o governo do capital e a emancipação das mulheres são praticamente irreconciliáveis. A pergunta realizada por Anderson circundaria o como abolir a divisão de gêneros sem abolir a divisão internacional do trabalho que divide a sociedade em classes: “Por universal que possa ser a causa da emancipação feminina, tão radical que, com ela, também os homens sejam libertados de suas condições existentes, ela é ainda insuficientemente operacional, como ação coletiva, real ou potencial, capaz de eliminar a economia e a política do capital. Para tal, é necessário uma força social dotada de alguma força estratégica. Apenas o ‘trabalhador coletivo’ moderno, os trabalhadores que constituem os produtores imediatos de qualquer sociedade industrial possuem tal força – devido à sua ‘capacidade de classe’ específica ou à posição estrutural no processo geral de maquinofatura capitalista, que só eles podem paralisar ou transformar, assim como só eles, em razão de sua coesão e massa potencial, podem fornecer os contingentes centrais do exército potencial da vontade e aspiração populares requeridos para tal confronto decisivo com o Estado burguês”. (ANDERSON, 1987, p. 108). De forma alguma isso significa afirmar que o movimento feminista não tenha que lutar por sua emancipação política, mas significa afirmar que essa não alterará a forma básica da sociabilidade do capital, não alterando, por conseguinte, radicalmente as formas de exploração sexual do trabalho. Do mesmo modo, os legítimos temores do movimento verde acabam por decretar como permanente a ordem sociometabólica do capital, procurando soluções para a incontrolabilidade do capital, e de sua forma destrutiva – atenção!, não confundir a forma destrutiva do capital com autodestrutividade; do contrário, suporia-se que o capitalismo ruiria por si mesmo –, do próprio ponto de vista do capital. Por isso, o fracasso das tentativas de protestos que não ferem a lógica do capital por sua dinâmica central. Aqui, ainda, a centralidade do trabalho é a única medida para a superação dessa lógica destrutiva desta fase superior do capital. Nesse sentido, também somente o movimento do trabalho seria capaz de dar uma resposta satisfatória, por estar no centro nervoso do capital. István Mészáros (2002) dedica parte de suas reflexões a este tema: ao afirmar que o movimento verde não discute a causa sui dos problemas ambientais, o autor demonstra que a perspectiva do trabalho “representa a necessidade gritante da humanidade de discutir as causas como causas no modo de controle sociometabólico estabelecido, para erradicar, antes que seja tarde demais, todas as tendências destrutivas do capital, já bastante visíveis e cada vez mais preponderantes”. (MÉSZÁROS, 2002, p. 133). 33 pecebista – a mais importante e significativa esquerda comunista até então – se fratura em uma constelação enorme de agremiações, a ofensiva dos gestores do capital atrófico destrói toda e qualquer mobilização nacional em torno do trabalho. A esquerda pecebista, a partir disso, acaba perdendo definitivamente sua hegemonia no cenário da esquerda comunista e dos movimentos sociais. Esse fator foi significativo; pois a luta operária, que também foi derrotada de chofre com a esquerda, passou a não ter mais uma vanguarda política organizada; ainda que as vicissitudes do partido somadas com a trajetória do capitalismo verdadeiro no Brasil e com o refluxo do socialismo mundial emperrassem um processo autêntico de revolução social. A esquerda que empunha armas a partir de 1968 – que deixa de ser a esquerda para se tornar as esquerdas – esteve despojada do movimento operário. Sua inserção sindical fora praticamente nula e seu apoio social, minúsculo. Sua inserção no movimento dos trabalhadores rurais foi, no mínimo, desastrosa. O que implica dizer que a luta armada não conseguiu sequer corporificar uma tentativa de atuar enquanto vanguarda do trabalho. Daniel Aarão Reis Filho afirma que essa fragmentação orgânica da esquerda não constituiu um fator negativo; mas, antes de tudo, constituiu uma positiva “derrubada do mito do monolitismo da representação política das classes populares, ou seja, a derrota do mito do partido único” (REIS F. & SÁ, 2006, p. 24). Em verdade, ocorreu a quebra do monólito pecebista. Todavia, o fato de todas as esquerdas agirem de maneira completamente desligada umas das outras e num abandono teórico pulsante – com uma pesada carga estratégica legada pelo seu passado recente – faz de suas derrotas um processo de dupla falência: sua falência física, a saber, o desmantelamento da esquerda pela opressão; e sua falência teórica, impossibilitando a apreensão da realidade imediata para uma prospecção resoluta. Antes de significar uma quebra do monolitismo pecebista, a esquerda do pós64 significou a depleção da esquerda comunista, resultando num sucessivo fracasso completo do seu movimento de aproximação com as massas, iniciado nos anos 1950. Ao contrário do que propõe Daniel Aarão Reis Filho, a “derrubada do mito do monolitismo” não representou um avanço, porque 34 não veio acompanhada de uma ascensão popular, mas, pelo contrário, representou um recuo, porque veio por um golpe militar que objetivava destruir a esquerda, representando uma quebra definitiva da esquerda comunista, isto é, uma corrosão da – antes aglutinada – esquerda que mantinha a revolução social em seu programa e que estava ligada aos movimentos do trabalho. Ainda nessa época, apesar da dissolução do Komintern durante a Segunda Guerra Mundial, o PCB continuava a exercer seu papel de umbrícola do Partido Comunista da União Soviética, a exemplo da grande maioria dos partidos comunistas no mundo todo. O impacto do cataclismo das ameaças nucleares da Guerra Fria, que fez com que Nikita Khrushchev atenuasse os conflitos – divulgando a via pacífica da revolução mundial –, incumbiu o PCB de ser um propagador prático dos soviéticos, gerando sua crença na possibilidade de alianças com a burguesia por uma solução revolucionária pacífica. Ainda que não percebessem uma parcial subordinação do PCB à política soviética, muitos militantes do PCB criticaram o comportamento do partido no tocante à idéia da revolução pacífica e, acima de tudo, no tocante à idéia da revolução orquestrada pela burguesia. Carlos Marighella foi um desses críticos; seus conflitos dentro do próprio partido o empurraram para a criação de uma outra agremiação. Não obstante, não é equivocada a afirmação de que a esquerda armada, sobretudo sua parcela mais significativa – a que girava em torno da figura de Carlos Marighella –, tenha ficado aquém do limite possível da consciência revolucionária de sua época. Essa fraqueza facilitou o massacre perpetrado pela opressão nessa dupla morte da esquerda aqui exposta. Com métodos científicos de repressão e tortura, a ditadura, especialmente após 1968 (exatamente quando há uma imersão geral na luta armada), consegue promover a aniquilação física da esquerda comunista. Essa morte física não esteve completamente desligada de sua morte teórica. A opção pela luta armada talvez não fosse a única saída, embora concluir isso em post festum seja tarefa muito mais fácil e sem implicações de vida ou morte. Assim sendo, a ditadura militar massacrou violentamente toda a esquerda. O Dossiê Brasil Nunca Mais revela que pelo menos um terço dos que pegaram em armas 35 contra a ditadura foram mortos – isso tudo sem que calculemos o número de afetados diretamente pela tortura e pela morte de amigos, de familiares e de companheiros –; os estudos de Jacob Gorender demonstraram que a vida de um guerrilheiro urbano durava, depois de seu ingresso na luta armada, uma média de dois anos. Soma-se a isso o despreparo teórico da esquerda, a subserviência pecebista à política soviética – herança que suas dissidências jamais conseguiram abandonar – e a eficiência do aparato repressivo; os homens que resistiram através das armas, sem outra alternativa aparente, caminharam para o suicídio iminente. Daniel Aarão Reis Filho (1990) lembra mais um fator importante no fracasso da luta armada: a inexperiência dos seus atores – evidentemente, aqui não se inclui Carlos Marighella. Em sua grande maioria, os revolucionários eram recém-ingressantes na luta política. A luta armada, encabeçada por Marighella, foi seguida por um grupo de estudantes. Os militantes comunistas que abandonavam o PCB para reordenar a esquerda em outras novas agremiações, não conseguiram, pois, abandonar o princípio da inexorabilidade da revolução. Ainda que houvesse uma confusão sobre a etapa da revolução em marcha, toda a esquerda armada acreditava que o momento era favorável. Apesar de figurar um grande herói da resistência por sua physique du rôle, Carlos Marighella não considerou dois aspectos importantes em sua batalha romântica contra a ditadura militar5. O primeiro aspecto, o movimento de massas. Marighella dizia que a propaganda armada não significava que o esforço da Ação Libertadora Nacional seria dispensado a fim de ganhar o apoio das massas, mas que “bastava ganhar o apoio de uma parte da população”. A ALN não ganhou apoio das massas, nem sequer de uma parte da população, de tal modo que não agiu como vanguarda do trabalho. Para Marighella, seriam necessários vários grupos armados para que ocorresse a revolução que derrubaria a ditadura, dita autoritária e fascista, admitindo-se um partido 5 Estas conclusões são parte de meu livro intitulado Suicídio Revolucionário (ed. Unesp, 2010) e caminham em sentido oposto à maioria dos estudos monográficos sobre a trajetória da resistência armada à repressão da ditadura militar que são, de um modo geral, românticos e apologéticos. Ainda que esses estudos apologéticos tenham a importância documental de demonstrar que a violência desferida pela esquerda não foi mais nada do que revide à opressão e uma imposição do momento – e não o contrário, como tentou impor a ditadura militar por meio de uma propaganda massiva – esses estudos caem na armadilha de cultuar figuras consagradas de nossa história, com a intenção de celebrar a memória dos imolados. Reconhecimento justo e humanamente merecido para com esses atores de nossa história, mas que acabam por celebrar os erros por eles cometidos. 36 de massas como vanguarda num segundo momento, como ocorre na Revolução Cubana. Marighella abandonou toda e qualquer volição de aproximação com as massas no decorrer da luta armada. O segundo aspecto, a impossibilidade da completação do incompletável embrião do capital no Brasil por meio de uma revolução de libertação nacional. Marighella acreditou que a revolução antifeudal fosse imprescindível. Ao fazer isso, Marighella não conseguiu reconhecer a particularidade histórica do capitalismo no Brasil, trazendo de modo mecanicista a teoria que Caio Prado Júnior havia denominado como “consagrada”, a saber, a do resquício feudal no campo brasileiro; daí a necessidade da revolução antifeudal e da libertação nacional. O improviso teórico e a excitação pela ação imediata fizeram com que a esquerda armada não possuísse uma formulação original e coerente sobre a revolução brasileira, acabando por incorporar por osmose a teoria etapista. Diante de um impasse histórico e da aniquilação da esquerda radical promovida pela repressão ainda nos dez primeiros anos da autocracia burguesa bonapartista, a esquerda tradicional brasileira estava com as mãos atadas; pois não lhe cabia, uma vez fragmentada e isolada dos trabalhadores como um todo, guiar um projeto de modernização para tentar completar o capitalismo, tampouco intentar a revolução socialista. Do ponto de vista político, a esquerda estava, portanto, vencida. O período 1964–1968 esgotou os elementos fundamentais da substância pecebista, mas não fez o partido se dissolver por completo. Se a revolução burguesa não fora realizada nem pela burguesia nem mutatis mutandis pelo conjunto dos trabalhadores, e se a propositura pecebista – maculada pela sua trajetória de debilidade analítica congênita e de subordinação ao movimento comunista internacional – não conseguira dar conta do projeto de modernização da economia, a possibilidade histórica de uma guerrilha, acossada pela repressão militar e sem nenhum apoio popular, de realizar o papel que caberia historicamente à burguesia era praticamente nula e imprópria à gravidade do momento. A idéia da revolução burguesa através das armas parte do absurdo de que a guerrilha poderia despertar per se a modernização capitalista. A análise de J. Chasin, nesse sentido, revela-nos que a forma mais adequada de ação da 37 esquerda naquele momento era a da “dupla transição”. A esquerda deveria ordenar uma aproximação implacável com os movimentos do trabalho – a despeito das dificuldades impostas pela ditadura militar através de seus sofisticados instrumentos de repressão das classes subalternas – a fim de reordenar o conjunto das relações sociais sob a perspectiva do trabalho, abrindo caminho para a superação do capital pela própria estrutura produtiva. A classe trabalhadora, premida por carências básicas e organizada em torno de um programa de transformação das raízes geradoras dessas carências, ao mesmo tempo que reordenaria o processo produtivo alterando sua produção para fins de suprimento das classes subalternas, possibilitaria o desenvolvimento nacional centrado no progresso social, acumulando forças, objetivas e subjetivas, para a superação do sociometabolismo do capital. A proposta da “dupla transição” exposta por J. Chasin se baseava, especialmente, no processo de greves após 1978. Depois de 1968 a imersão da esquerda na luta armada foi enorme, ficando de fora somente os trotskistas e o que restou do PCB. Vale lembrar que uma fração de trotskistas ainda tentou dispor de uma organização armada chamada Movimento Revolucionário Primeiro de Maio, que foi desmantelada pela repressão no fim do ano de 1969. Uma característica comum entre todos os grupos que embarcaram na luta armada foi a falta de uma análise da realidade conjuntural. A luta armada se configurou, objetivamente, como resistência democrática. Isso não significa, de modo algum, que a esquerda armada mantivesse as guerrilhas ativas para garantir um certo conjunto de liberdades democráticas, ou, ainda, que esses guerrilheiros tivessem apenas a intenção de agirem como resistência democrática. Pelo contrário, a esquerda comunista almejava a revolução, mas, dado o seu fracasso, funcionaram parcamente como movimentos de resistência à ditadura. A luta armada serviu, pelo menos, para demonstrar que a aceitação da ditadura militar pela sociedade não era plena e pacífica. No entanto, como resistência democrática, a funcionalidade da luta armada foi insignificante, especialmente porque não atingiu as massas. De qualquer modo, a opção pela luta armada não chegou a representar uma ameaça real à ditadura militar. Enquanto ação prática de 38 enfrentamento da ditadura, os guerrilheiros comunistas tiveram poucos trunfos estratégicos, como a onda de seqüestros de 1970, o assassínio de um militar americano, Charles Chandler, e a execução do presidente da Ultragaz, Henning Boilesen, ativo colaborador da tortura. E o episódio mais impressionante da luta armada fora o caso do seqüestro do embaixador americano em 4 de setembro de 1969. O embaixador fora trocado por 15 presos políticos. Entretanto, o seqüestro do embaixador atesta a veracidade da análise de Florestan Fernandes (1999), a de que a ditadura utilizou as pequenas ações armadas da esquerda a fim de justificar os assassínios e as torturas, isto é, o terror e a intensificação da repressão contra toda a sociedade e mais especificamente contra o movimento operário. A prova disso veio na seqüência: logo após o assassínio do oficial americano fora criada a OBAN; e cinco dias depois do seqüestro do embaixador dos Estados Unidos fora publicado o Ato Institucional nº 13, que permitia o banimento do território nacional dos brasileiros que se tornassem “perigosos” para a Segurança Nacional; e, na seqüência, em 10 de setembro de 1969 é instituída a pena de morte no Brasil através do Ato Institucional número 14. Dentro de dois meses, o GTA – a mais alta patente na hierarquia militar da agremiação – da Ação Libertadora Nacional era desmantelado e Carlos Marighella era assassinado. A Ação Libertadora Nacional, a partir disso comandada por Joaquim Câmara Ferreira, acabou destruída antes de praticar a guerrilha rural. O novo líder da organização fora assassinado na seqüência, em bárbaras torturas. As greves e o movimento operário estavam num beco sem saída. A ditadura militar aumentou seu apoio popular quando os índices adulterados de crescimento econômico chegaram a público; demais, a ditadura não se colocava como regime de exceção: toda a institucionalização da ditadura militar fora composta por decretos-leis, atos institucionais e emendas na Constituição – com exceção do Ato Institucional nº 5 e dos “decretos secretos”. A ditadura encontrava dura resistência dos populares até 1968. Todavia, alguns fatores simultâneos acabaram afastando os populares de qualquer mobilização social, ao longo dos anos 1964–1968, a saber: a Lei de Greve, de junho de 1964; a extinção dos tradicionais partidos 39 políticos, em outubro de 1965, com o Ato Institucional nº 2; a criação do FGTS, em setembro de 1966, possibilitando as demissões em massa; o emprego sistemático da tortura; a Lei de Segurança Nacional, permitindo que cidadãos fossem presos sem acusação e ficassem incomunicáveis, sem direito ao hábeas corpus; o controle geral dos meios de comunicação pela brutal censura; as altas taxas de exploração da força de trabalho; e o assassínio dos principais líderes da esquerda comunista armada depois de 1969. As passeatas nas ruas, o embate da mídia, a participação popular em greves e outros movimentos sociais foram jugulados por essa seqüência de atrocidades que se completa com o Ato Institucional nº 5. A esquerda depois disso, acreditando estar impossibilitada de se organizar de outra maneira, embarca na luta armada. Historicamente, podemos perceber que a intensificação da ditadura militar não ocorrera para a efetivação do embate contra os movimentos revolucionários, mas para derrubar as últimas manifestações populares de esquerda. Somente a partir disso a esquerda opta pela luta armada, como última alternativa aparente. Jacob Gorender (1987) delimitou acertadamente o problema da luta armada ao afirmar que a esquerda, não se armando para resistir ao golpe, arma-se tardiamente e num momento de isolamento dos movimentos de base. Exatamente ao contrário do suposto pelas organizações armadas, sobretudo pela facção de Carlos Marighella, o país não atravessava uma “situação-limite” de uma revolução proletária, em que se esgotavam as instituições burguesas. Longe disso, após 1964, a ditadura estabeleceu um esforço na manutenção das instituições, inclusive do próprio Estado, quebrando o padrão de representação política que as lutas sociais haviam conquistado durante as duas décadas anteriores ao golpe de 1964. A luta armada nem sequer conseguiu reconstruir – ainda que não fosse seu objetivo direto por ter como certa a possibilidade da revolução – a representação social burguesa perdida com o golpe, e a construção de uma nova representação mostrou-se completamente ineficaz. Até 1968, ainda foram possíveis algumas representações trabalhistas na esquerda, mas a partir desse ano exauriu-se a base de sustentação dos movimentos sociais. De 1968 a 1974, as organizações 40 clandestinas foram perdendo a representatividade nos sindicatos, marginalizando-se socialmente, rumo ao seu iminente desaparecimento. De tal sorte que a dinâmica social, maculada pela agudização da repressão ditatorial, não permitiu a aproximação da esquerda com as bases da sociedade. Como vimos, o golpe militar foi antes de tudo um golpe na esquerda, tratando de acabar com as organizações sindicais e com os movimentos de massa em torno da perspectiva do trabalho. A revolução social não sucedeu porque ela se ausentou do encontro, como quer Daniel Aarão Reis Filho (1990)? De fato, a revolução social foi impossibilitada pela dinâmica imposta pela ditadura militar. A ditadura, por esse motivo, foi um bonapartismo contra-revolucionário. Para Reis (1990), a possibilidade da revolução era iminente, e somente o acaso fora responsável pelo desencontro, aliás, o mesmo acaso responsável pela revolução onde elas ocorreram. A despeito da tese de Reis (1990), não foi o acaso que impossibilitou a revolução social, mas foi o desligamento dos grupos revolucionários com sua base, ou seja, com os movimentos sociais e com os movimentos dos trabalhadores. Desenraizando-se, esses grupos se tornaram marginais à dinâmica da realidade social, passando a sobreviver como facção armada clandestina de uma esquerda que teve seu pilar esfacelado6. Sem experiência histórica de lutas operárias, a esquerda armada agiu desordenadamente e sem estratégia previamente estabelecida, e, por isso, buscou um posterior arrimo paradigmático exógeno a fim de justificar a sua prática – o que se vê na busca classificatória da luta armada no Brasil como sendo uma “guerra popular prolongada” ou um castro-guevarismo –, ao invés de ter um corpus teórico parti pris para guiar as suas ações, estabelecido numa profunda análise da realidade brasileira e na experiência da luta operária. Portanto, a esquerda – arrastada pela violência da ditadura militar – empunha armas e parte para a ação revolucionária através da violência, como 6 Escreveu Daniel Aarão Reis Filho: “Não se trata, porém, de atribuir a derrota a debilidades de percepção, de concepção ou de formulação, como se os acontecimentos revolucionários pudessem ter tido lugar se outro fosse o ‘nível’ teórico, ou outro fosse o ‘conhecimento’ da realidade. Características intrínsecas predispunham as organizações comunistas num determinado sentido de ação e de pensamento: elas estavam preparadas, coesas e mobilizadas, em uma palavra, prontas – mas a revolução faltou ao encontro...”. Adiante, escreve: “Mas a comparação das experiências sugere a hipótese de que os comunistas brasileiros foram derrotados pelas semelhanças que os aproximam (e não pelas diferenças que os separam) das organizações e partidos vitoriosos” (REIS Fº, 1990, p. 186). 41 resposta aos ataques sofridos e somente depois tenta adaptar uma teoria, externa ao movimento e descolada da realidade brasileira, à sua prática. A única teoria que se apresentou formada e que se manteve, malograda, na esquerda armada esteve desconectada da análise da realidade nacional, procurando sustentação na idéia da revolução burguesa imprescindível, aliás, na crença dos estágios inexoráveis de desenvolvimento das forças produtivas. O etapismo foi a herança negativa que a esquerda carregou para a luta armada; inclusive Carlos Marighella. As outras esquerdas clandestinas que não possuíam obrigatoriamente o preceito nacional-libertador em seus projetos não estavam totalmente imunes à herança etapista. Vejamos: se, por um lado, as organizações da esquerda clandestina que intentavam a completação da revolução burguesa acreditavam que haveriam de passar primeiro pela revolução democrático-burguesa para somente depois batalhar pela revolução socialista; por outro, os grupos crentes na possibilidade da imediata revolução socialista tãosomente assim estruturavam suas lutas por acreditar que a etapa da revolução burguesa já havia sido anteriormente completada. Como já afirmado, a quimera do etapismo não havia sido superada em nenhuma dessas esquerdas mais significativas que combateu nas trevas – uma feliz expressão de Gorender – a ditadura bonapartista, especialmente porque essas esquerdas mantinham sua antiga filiação à cartilha do Komintern. As divergências no campo da organização necessária entre essas frações da esquerda armada também eram miúdas: todas as guerrilhas pensavam em instalar a guerrilha rural, porém todas agiram primeiro na cidade – exceto a guerrilha do PCdoB, no Araguaia, pioneiramente maoísta. Todas estavam descoladas da massa e do movimento operário e acreditavam dirigir uma vanguarda poderosa, por uma inapropriada alusão à conspiração vanguardista bolchevique. Todas possuíam um desapreço enorme à teorização e à aproximação com o trabalhador de ponta. Todas rejeitavam a noção de que um partido pudesse guiar uma revolução naquele momento, sobretudo a partir do exemplo da Revolução Cubana. Subestimando a força repressiva do Estado, essas esquerdas se isolaram das massas com uma imprecisa idéia de que estariam na vanguarda política da revolução – ignorando o fato de que a vanguarda política da 42 revolução deveria ter como ponto fulcral o centro nervoso do sociometabolismo, a saber, o trabalho – de tal sorte que caminharam ao implexo suicídio revolucionário. Referências ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). 5ª ed. Tradução de Clóvis Marques. Petrópolis: Vozes, 1989. ANDERSON, Perry. A Crise da Crise do Marxismo: introdução a um debate contemporâneo. 3 ed. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Brasiliense, 1987. BEIGUELMAN, Paula. O Pingo de Azeite: A Instauração da Ditadura. Coleção Khronos nº 19, São Paulo: Editora Perspectiva, 1994. BRASIL NUNCA MAIS. Perfil dos Atingidos. Petrópolis: Vozes, 1988. ______. Um relato para a História. Petrópolis: Vozes, 1985. CHASIN, J. Marx: da razão do mundo ao mundo sem razão. In: _____. (org.) 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São Paulo: UNESP, 1993. 44 O homem negro no cururu paulista: apontamentos etnográficos. The man black in cururu paulista: ethnographic notes Elisângela de Jesus Santos1 Recebido em 01/04/2013; revisado e aceito em 07/06/2013 Resumo: O trabalho consiste na apresentação dos resultados parciais de etnografia integrante de nossa pesquisa de doutorado acerca do cururu do Médio Tietê. O cururu é forma de canto popular e de sociabilidade do caipira paulista, modalidade específica de desafio/peleja no repente acompanhado da viola como principal instrumento. É vivência que se estrutura por meio da oralidade e tem a memória dos envolvidos como principal “recurso” de difusão de conhecimentos. As questões delineadas têm o cururu como fazer coletivo que aproxima e contrapõe dualidades como sagrado-profano, cristão-pagão, feminino-masculino, rural-urbano, popular-erudito. Palavras-chave: cururu paulista; cantoria de improviso; desafio entre duplas. Abstract: This paper is the presentation of partial results of ethnography and parcel of our doctorade about the Middle Tietê cururu. The Cururu is a form of popular song and sociability ‘caipira’ in São Paulo, a specific form of outburst /impromptu accompanied by the viola as the main instrument. All the issues outlined here allow an approach that has the collective cururu how to do that now approaching, now opposes important dualities as sacred-profane, paganChristian, male-female, rural-urban, popular, classical, among others. Key words: cururu from São Paulo; singing impromptu; challenge between doubles. Apresentação O artigo em questão pretende iluminar algumas situações vivenciadas em trabalho de campo e em outros aspectos de nossa pesquisa de doutorado. Neste sentido, mais do que esgotar concepções relativas a um pretenso estereótipo ou representações sociais sobre o homem negro no cururu paulista, partiremos das observações das rodas e de gravações em áudio das cantorias onde cururueiros brancos se referiram de modo pejorativo aos cururueiros negros com o intuito de desqualificá-los junto à plateia, um dos principais objetivos do cururu enquanto brincadeira masculina realizada como desafio em duplas cantado e acompanhado de viola caipira. O objetivo deste enfoque é verificar como são construídas ou reproduzidas representações sobre o negro no imaginário e cotidiano caipira e, principalmente, dentre o grupo realizador do cururu no Médio Tietê, atentando ainda para os contextos de derrisão nestes processos. 1 SANTOS, Elisângela de Jesus. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNESP, Araraquara. É membro do NUPE/CLADIN/LEAD onde coordena as atividades do grupo de estudos Catavento: Redes e Territórios de Culturas e Identidades. Bolsista de Doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP. Faculdade de Ciências e Letras, UNESP-Araraquara: Rodovia Araraquara-Jaú, Km 1. Telefones: (16) 3334-6218/6490. [email protected] 45 Introdução A consolidação de um processo civilizador (ELIAS, 1994) no Brasil contribuiu para que noções morais difundidas pelas classes dominantes forjassem representações das práticas socioculturais populares como se fossem desqualificadas historicamente. As tentativas de negativizar práticas culturais de grupos humanos portadores de atitudes que destoam de comportamentos prescritos pelo ordenamento socialmente estabelecido aponta para a importância das práticas culturais como campo de luta constituinte das relações de poder em nossa sociedade. Levando em consideração este atributo de (des)ordem, tratamos das formas de reprodução de estereótipos negativos atribuídos à população negra dentro do grupo caipira que estudamos2. Este trabalho dialoga ainda com as diferentes gradações ou diferentes níveis que estes processos de subalternidade e inferiorização atingem no meio estudado, apontando para aspectos que denotem tentativas deliberadas de submeter referências culturais populares, sejam de grupos negros ou brancos pobres, à inferioridade de suas produções estéticas e culturais quando inseridas no todo social. Como já pudemos esboçar, trataremos destas contradições no caso do grupo caipira que acompanhamos em nossos trabalhos de campo durante pesquisa etnográfica acerca do curur paulista em cidades como Sorocaba, Votorantim e Porto Feliz. O cururu é modalidade de desafio no repente ou cantoria de improviso acompanhado pela viola caipira que acontece na região paulista conhecida como Vale do Médio Tietê. Prática de cultura popular caipira paulista o cururu consiste, entre outros elementos, num ritual de desafio entre cantadores. Neste duelo poético realizado entre duplas de cururueiros3, são 2 Em pesquisa de doutoramento acerca do cururu paulista concluída em 2013 e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP (2009-2013). 3 Termo “nativo” para tratar do realizador do cururu, o cantador, o poeta popular que também é muitas vezes referido como “trovador”. 46 cantados versos na forma de trova improvisada e ritmada ao som da viola. As origens deste diálogo entre cantador e violeiro parecem resultar de uma síntese entre práticas culturais de diversos grupos étnicos forjadas durante o período colonial brasileiro 4. Seu forte vínculo com a oralidade dificulta qualquer tentativa de fixar um momento datado para seu surgimento, mas por conta de sua realização no contexto da festa do Divino Espírito Santo na região5, presume-se de que o cururu exista há aproximados duzentos anos. O processo de colonização e de transfiguração das cosmologias ameríndia e africana são elementos importantes neste contexto, uma vez que o cururu guarda em sua forma elementos relacionados ao universo mítico de grupos tupis e suas narrativas carregam ambivalências que nos permitem associá-las a rituais de grupos pagãos, mesmo quando associado às práticas de louvor e devoção católica. Os planos profanos estão contidos no sagrado e o âmbito religioso está intimamente relacionado ao cotidiano e vice-versa. Além disso, elementos lendários e atemporais são acionados para explicar essas mesmas origens no tempo histórico e muitos realizadores atribuem à categoria “dom”6 como elemento definidor do que é um bom cururueiro ou do que é preciso para se fazer um “cururu bão”. Do encontro civilizatório entre diferentes grupos étnicos indígenas com europeu-ibérico, os grupos negros brasileiros foram acolhidos no cururu ainda que em minoria. No momento histórico posterior à situação de colônia e em decorrência das imigrações europeias para São Paulo, enquanto projeto nacional de mestiçagem com fins de garantir mão-de-obra assalariada para o cultivo sistemático de café, a população imigrante também passa a incorporar as práticas rituais cotidianas do caipira, ao menos no que tange ao gosto pelo cururu enquanto forma de sociabilidade identitária no Médio Tietê e à lide com o trabalho agrícola7. 4 O cururu também é realizado no estado do Mato Grosso apresentando, no entanto, forma muito diversa do cururu realizado em São Paulo. 5 Embora ainda seja realizado em contextos de devoção articulados à lógica do catolicismo popular (Brandão, ) o cururu possui uma dimensão de brincadeira ou jogo, podendo também ser elogioso realizado em contextos de sociabilidade dos grupos caipiras no Médio Tietê. Para além dessa dimensão de sociabilidade ou divertimento do grupo, pode comportar também uma dinâmica de espetáculo. 6 Elemento de dádiva recebida do plano celeste e para o qual já se nasce qualificado. 7 Antonio Candido (1982) vai nos dizer que não é possível pensar o termo “caipira” para caracterizar grupos étnicos 47 O cururu como conquista de prestígio As estratégias discursivas acionadas nos desafios de cururu pressupõem uma igualdade compartilhada pelos homens participantes. Nos desafios realizados fora do contexto litúrgico, são tratados temas cotidianos do grupo, tais como o trabalho, a família, política e religião. O ritual do desafio que caracteriza o cururu como brincadeira, quando é feito em duplas resulta também num riso ritual com objetivo de desqualificar os adversários simbolicamente. No entanto, quando se trata de uma peleja entre brancos e negros, os temas jocosos acionados no discurso para desqualificar o negro, remetem-se à atributos físicos como o cor/po, como representações que remetem ao negro submetido, no passado, a condição de escravizado. Neste sentido, o cururu comporta uma dimensão ritual que pode ser vista como espécie de “guerra com hora marcada” (EVANS-PRITTCHARD, 1978) sendo ele mesmo um modo de enfrentamento de questões incômodas da vida grupal, momentos em que o riso e a zombaria estabelecem movimentos que delimitam o espaço do conflito e do prestígio. Trata-se de uma ocasião coordenada para resolver, ainda que pontual e simbolicamente, questões delicadas relativas à própria masculinidade grupal, contemplando questões de enfrentamento do machismo e da sexualidade do outro; questões de status social, como a situação econômica dos participantes; ou de status cultural que pode contemplar desde o grau de instrução, a cor da pele ou ainda, a roupa que se veste ou a casa em que se mora. As narrativas improvisadas e cantadas podem ser construídas a partir de fatos retirados da realidade do grupo ou de situações imaginadas que enquanto representações são tornadas reais apenas quando proferidas. No entanto, mesmo que tal poética seja produto forjado na cabeça do per se. Neste sentido, os parceiros são não apenas um tipo racial, mas um tipo social (CANDIDO, 1982, p. 22). A questão da miscigenação neste sentido, não é de fundamental importância para Antonio Candido que caracteriza o grupo caipira. Para o autor, é a forma de organização social do caipira marcada por uma relação de vínculo forte com o campo e por uma dieta alimentar que prevê o mínimo necessário para a subsistência do grupo. Este mínimo para sobrevivência do grupo, o autor chamou de "mínimo vital" e disso resultaria o "mínimo social" (idem, p. 48) que caracteriza as relações mais fechadas do grupo em seu território ou “bairro rural” no contexto dos anos 1950. Atualmente, ainda que tenhamos que rever essa interpretação, preferimos notar que o autor trata do cururu como marca identitária importante do caipira no Médio Tietê paulista. 48 inventor e no calor da disputa têm repercussão no âmbito coletivo. Em termos narrativos, deparamo-nos com diversas ambigüidades que compõem os termos do discurso do cururu e que conduzem ao riso da plateia e dos cantadores. Uma delas nos permite pensar nas hierarquias sociais praticadas pelo grupo. Os gracejos realizados no cururu podem ser indicativos de relações de conflito suspenso e indicar relações sociais permeadas por tabus entre brancos e negros. O contexto da derrisão provocada pelas narrativas construídas de modo satírico é importantes para que possamos entender este conflito suspenso com mais propriedade. Assim, transcrevemos alguns trechos de gravações do desafio realizado entre “Parafuso” e Horácio Neto. Primeiro, transcrevemos o trecho gravado em áudio onde improvisa o cantador negro. Parafuso faleceu em 1973 com 56 anos de idade: Vô cantá o primero verso na carrera do Sagrado meu amigo Horácio Neto eu piso firme lá pra seu lado Este tar de Horácio Neto ele é um causo complicado ele é muito invejoso é o que eu acho engraçado depois vê o Pelé jogá e vortô entusiamado ele quis fazê iguar eu fiquei envergonhado pegô a bola de pano foi um causo complicado jogô a bola pra cima deu um pulão desagerado ô minha moçada alerta o tar pulô de perna aberta carça largo no quadrado Pra cantá com Parafuso você precisa prestá cuidado tenho dó de Horácio Neto este é um, pobre coitado quando vai cantar comigo ele fica encorujado com a mim até representa fêmea de pardá moiado 8 8 Parafuso, carreira do Sagrado. Trecho. CD Os Reis do Cururu. 49 Em resposta ao negro Parafuso, segue Horácio Neto9: Quero vê se eu tamém canto é na carrera do Sagrado pra respondê ao Parafuso porque a hora tá chegado eu não sei o que que tem que o pretinho tá entusiamado meu colega Parafuso já vô ino pra seu lado uma fêmea de pardá que tinha me comparado por você falô pro povo no seu verso improvisado que o cabocro tatuiano ia iguar pardá moiado por você falô pro povo que sô iguar pardá moiado você é uma fêmea de chupim que nóis anda acumpanhado meu colega Parafuso você iscuta o resurtado largue mão de fazê graça que'hoje cê vai tentá trocado esse feição de macaco que vive empulerado esse feição de macaco de que vive empulerado eu sô cabocro caçadô sempre eu sô apreparado na copa de perobera fica co' rabo embolado mas na hora que'u dô tiro o tar vem de atravessado Horácio Neto, carreira do Sagrado CD Os Reis do Cururu O “homem com aparência de animal” é uma das formas de comicidade onde o “objeto de confronto é tomado do mundo cirscuntante” (PROPP, 1992, p. 61). A comparação do homem com animais só tem conotação cômica quando alude a algum defeito e pretende desvendá-lo. No texto da cantoria aqui reproduzida tanto o primeiro quanto o segundo cantador, pretendem “rebaixar” o outro tornando-o não-humano. Ao forjar representações que pretendem animalizar o humano, o cantador expõe o outro à plateia que, por sua vez, reconhece os defeitos deste outro animalizado e por causa disto, ri. 9 Considerado um dos cururueiros mais antigos em atividade recente, Horácio Neto começou a cantar em 1962, levado à Sorocaba por influência de Parafuso de quem foi parceiro por muitos anos. Faleceu em agosto de 2009 aos 86 anos de idade. 50 Como já pudemos verificar, em algumas das rodas que presenciamos, de um modo geral expressões como estas que acabamos de destacar provocam muitos risos e aplausos por parte da plateia. Isso não significa dizer que o cururueiro, ao responder através de elementos narrativos racistas, esteja deliberadamente contribuindo para forjar manifestações sociais de cunho racista. O objetivo aqui é desqualificar o outro e obter prestígio pessoal por fazer isto, algo que não pode ser feito sem diálogo com valores compartilhados num contexto social mais ampliado. Neste sentido, o cururueiro é um tradutor dos valores que pautam as relações estabelecidas no mundo em que vive e no qual está inserido culturalmente. O que o cururueiro branco faz é se apropriar de um discurso racista, que embora ele não tenha criado, cabe como luva para desqualificar o outro que, neste caso, é um cantador negro. Assim, o cururueiro estabelece um diálogo com o contexto social mais ampliado de onde retira elementos que estão de acordo com este mesmo ordenamento racista, onde o ideal seria que o negro não existisse. Não podemos esquecer que o cururu, embora reproduza os discursos da prática cotidiana e os valores da sociedade ampliada, constitui momento de suspensão deste mesmo ordenamento e seu caráter de brincadeira pressupõe o palco como um campo de batalha, lugar onde são acionados elementos ofensivos que não são expressos no dia-a-dia, que é o lugar da polidez e da disciplina necessárias para se viver o convívio. Em síntese, podemos verificar que tanto no cotidiano vivido, quanto no contexto festivo de suspensão da ordem, existe uma relação importante entre as práticas sociais polidas e elevadas com as práticas consideradas vulgares, vinculadas ao baixo corporal, à animalização e à indisciplina em grupo (BAKHTIN, 2008). O intervalo que permeia o plano celeste e o plano terrestre é híbrido, mas não uniforme. Fosse esse mesmo discurso proferido num contexto fora da roda de cururu, seria considerado 51 prática racista. A derrisão neste caso específico é indicativa de conflitos entre brancos e negros tanto no contexto caipira, quanto na sociedade mais ampliada. É justamente este movimento de contrários que provoca o riso. O ato de rir não existe num espaço harmônico. É apresentando outros ordenamentos pautados na articulação e tensão entre os planos alto e baixo, celeste e terrestre, religioso e lúdico, sério e cômico, cotidiano e festivo que o cururueiro, manipula com habilidade poética, as palavras que pronuncia. Os valores compartilhados dentro e fora do grupo são expressos pelo cururueiro que, como contador de histórias, apenas alude aos diferentes contextos e os ouvintes entendem por si o que ele propõe de forma insinuada, interagindo e explodindo em risos, aplausos, assobios entre outros gestos de euforia. Ao relatar uma porfia contra um cururueiro negro, observemos o que diz Cido Garoto (2003) a partir do trecho da narrativa e da reflexão que ele mesmo faz sobre o que considerou expressão de cunho racista: Esse negão africano Tá pensando que é campeão Aqui chegou declarando Que os pretos têm instrução Só que eu tive pesquisano E cheguei numa conclusão Que os pretos não são sabidos A metade são bandidos A outra parte é ladrão. (GAROTO, 2003, p.14). Após ter dito isso, a plateia reagiu rindo muito. Mas o próprio Cido garante que jamais deveria ter cantado este verso e o fez, à época, por falta de experiência. Tanto que o cururueiro negro cantou, em resposta: Os preto são inocente O Garoto se enganô O Brasil de antigamente Os preto que levantô Já mataro um presidente Não foi preto que atirô Também quero dizê isto Foi branco que mato Cristo 52 E foi branco que condenô. (GAROTO, 2003, p.15). Mesmo que Cido Garoto não tivesse feito a reflexão posterior que fez, foi no momento da peleja que percebeu que correu grande risco em desqualificar o cantador a partir de sua cor/poralidade. Ao fazer isto, deu brechas para que o cantador atacado reagisse acionando o caráter de branquitude contraposto à negritude, questionando até que ponto a cor da pele é determinante para emitir juízos de valor ou para avaliar o caráter do outro. De “lambuja”, o desafiante ainda exalta o negro de um modo geral, dizendo que foram “os preto” que “levantaram o Brasil”. Por sua vez, embora Cido Garoto perceba o mote como falta de experiência, sua vivência societária permitiu-lhe atentar para tensões que pautam as relações entre negros e brancos. É deste lugar e a partir deste pressuposto padrão, enquanto portador de branquitude que Cido Garoto fala. Partindo deste lugar, questiona o desafiante que, não poderia se comportar ou “se pensar” como campeão do cururu porque, sendo negro, não teria instrução que lhe qualificasse para isto. O que está em jogo aqui não é apenas um fato inventado pelo cantador para abater o desafiante, mas algo que faz parte do contexto social ampliado, pois historicamente e em termos comparativos a grupos brancos, são desiguais as condições de efetiva escolarização e de inclusão social da população negra brasileira. Tal narrativa denuncia, entrelinhas, questões de (in)justiça cognitiva presentes em nossa sociedade. Portanto, o cururu enquanto ritual de combate funciona como uma espécie de suporte das relações sociais do grupo caipira. A disputa poética travada entre os participantes constitui um confronto de identidades masculinas forjado simbolicamente para que o cantador alcance algum destaque perante o outro, seu desafiante. Esse modo de se expressar por meio identitrio preza pela singularidade, mas é também um movimento que dá sentido e reforça a vivência coletiva. Alcançando a vitória sobre seu adversário, o ganhador tem a extensão dessa conquista simbólica ampliada na totalidade do grupo em que está inserido. 53 Para alcançar notoriedade, o cantador de cururu profere versos repletos de malícia. A capacidade inventiva de improviso também chama atenção para o grau de criatividade do cururueiro atentando para a dimensão da subjetividade e de sua prática enquanto prática poética. Este elemento criativo é valorizado e atribui positividade ao comportamento social deste cantador. A rivalidade entre cururueiros é efetivada sob forma de performance. Neste caso, a ofensa e o insulto expressões associadas à violência, comumente vinculada à masculinidade, são elementos acionados na constituição da identidade masculina dos cururueiros. No cururu, a brincadeira ganha estatuto de masculinidade. De acordo com a linha argumentativa com a qual costuramos este texto, podemos estender essa mesma noção para entender que proferir expressões capazes de desqualificar socialmente o outro não cabem no comportamento padrão de mulheres e crianças. Limitando-se ao universo masculino, essas práticas marcam comportamentos inseridos em práticas culturais específicas, atribuídas somente aos homens do grupo. Assim, mulheres e crianças são parte integrante da plateia que, embora interaja nas dinâmicas dos desafios, têm espaço e comportamentos diferenciados do “padrão” masculino. O conhecimento do que é comportamento padrão é transmitido oralmente, daí a importância de haver uma plateia10. O código oral é reconhecido e, portanto, legítimo enquanto instrumento mediador da transmissão do conhecimento efetuado pelo grupo. Sob um tom de brincadeira, os principais valores morais e padrões aceitáveis de comportamento social são difundidos. Ao riso, neste sentido, pode ser articulada outra faceta: a derrisão como medida de correção e de enquadramento. Caminhando no sentido de finalizar nossas reflexões, apontaremos uma situação de trabalho de campo, que nos permite pensar em dadas representações da condição do negro na sociedade de um modo geral e, em especial, no contexto de sociabilidade caipira. 10 Denominada também “assistência” ou “apovado” dos desafios de cururu. 54 Em Porto Feliz11, ao acompanhar uma roda de cururu realizada num palco montado em frente à praça do coreto que abriga a belíssima igreja que ostenta o nome da padroeira, Nossa Senhora Mãe dos Homens, ao longe já poderíamos avistar a diversidade de pessoas que compunham a plateia do desafio. O público era composto por famílias, inclusive crianças pequenas e havia grande o número de homens idosos. A assistência foi abrigada embaixo de uma tenda para olhar e escutar atenta ao cururu e ao protegida da fina chuva que caía. O evento foi organizado pela prefeitura da cidade no dia primeiro de maio, dia do trabalhador. Enquanto o primeiro cantador, residente em Sorocaba, cantava durante a segunda volta 12 do cururu, ele mencionava o tempo da escravidão negra perguntando em tom de provocação a um dos cantadores negros se ele tinha lembranças daquele período, fruto de imensas dificuldades. O cantador em questão, ao adotar a escravidão como tema, sugeria ser interessante aos negros que atentassem às suas atuais condições materiais de vida, infinitamente melhores. Este passado, marcado pelo processo de escravização do negro, quando representado no presente, trata do homem negro livre ainda na condição de ser escravizado. O cantador negro, em resposta, cantou o seguinte: É no toque da viola, de novo eu voltei cantar/toca viola caipira porque eu gosto de escutar/e no som desta viola pra vocês quero contar/quando escuto o som da viola da vontade de cantar/até dos tempos passados, eu começo recordar... Tô com 60 anos de idade/ não me canso de falar/eu estou com 60 anos, meu povo pode escutar/que o Carrara aqui falou, meu distinto pessoal/ que eu não conheci (consegui) casa de barro, o senhor enganado está... Eu morei em casa de barro, pro senhor posso aprovar/ e diga se tá certo ou não tá/eu nasci na casa de barro, foi pelas bandas de lá/ só que não tinha buraco, que nós sempre ia tapar/ só porque não tinha... quando o tempo tava chovendo, não dava pra trabalhar/o meu pai reunia a turminha e nós começava sapatear/ que’ra pra fazer o barro, diga lá meu pessoal/ que’era pra reformar a casa que era pra gente morar. Não precisava de pedreiro, sua ideia onde é que tá?/Em caso sério e complicado, eu não me canso de falar/ a idade vai chegando, a idade avançada tá/e o cantador de idade, já começa a caducar. E entrando propriamente na zombaria pessoal, prosseguiu: 11 Cidade do interior do estado que dista aproximados 120 km da capital paulista, conhecida por seu importante papel durante o período das monções paulistas do século XVIII e por sua inserção na dinâmica cultural caipira. 12 Uma volta é o nome que se dá à cada vez que o grupo de cantadores realiza a sua narrativa improvisada, relativo à uma rodada. 55 Ditão vai surrar eu co’Zé, sua ideia onde é que tá?/ quando o Carrara era novo, era bamba pra cantar/eu conheci Dito Carrara, escutava’ele improvisar/hoje ele tá mais velho, cantador taracaca... Prezado Dito Carrara, a razão explico já pro povo, não tem jeito dele falar/e no bairro do Varejão, um dia eu fui passear/lá na casa do Carrara, ele convidou pra entrar/venha ver minhas criação, que eu tenho aqui no quintal. Eu tenho um monte de coelho que eu comprei pra criar/a casa tudo esburacada, meu pessoal escute lá/onde eu vi as criação correndo pra todo lugar/era um monte de rato esparramado no quintal/ai tinha um monte de rato esparramado no quintal. No buraco da parede a rataiada começaram a entrar/compadre Dito Carrara, ele começou rezar/tinha rato pra todo lado, meu pessoal que aqui está/e tinha um gato vagabundo deitado em cima do sofá. Ao ouvir isto, a plateia se manifesta numa gargalhada geral. Como num contínuo ao riso e enquanto prolongamento dessa situação de êxtase em que a plateia rompe o silêncio que lhe permitia escutar o que era dito, o público passa a exclamar o nome do cantador, a aplaudir e assobiar gritando palavras de ordem e impulso. Pela manifestação da plateia, podemos pressupor o prestígio que o cantador negro obteve ao problematizar ainda mais a questão levantada pelo primeiro cantador, respondendo a todas as demandas impostas por ele e inventando que a casa do cururueiro branco era cheia de ratos. Para piorar o constrangimento do primeiro cantador, o segundo diz que a casa é habitada por um gato que, ao invés de acabar com a festa dos ratos, não faz nada além de dormir sobre o sofá – numa nítida analogia à postura pretensamente preguiçosa do dono da casa. Apontamentos finais Mais uma vez, o contexto de derrisão no cururu não está descolado do plano cotidiano e da realidade vivida. Ainda que as situações propostas como narrativas poético-cantadas sejam imaginadas, tais brincadeiras estão contidas num plano real mas que está suspenso enquanto tempo cotidiano e do ordenamento civilizatório “padrão”. Não à toa muitas dessas rodas onde acontecem episódios como os que acabamos de narrar são realizadas aos sábados, domingos ou feriados. O domingo além de ser um dia dedicado à folga do trabalho, é também dia de missa para os católicos. Em todos os casos aqui ilustrados seja na fala de Cido Garoto, no trecho da gravação em 56 áudio ou no relato de Porto Feliz, percebemos um contexto para o riso e verificamos que, mesmo em se tratando de temas delicados como o racismo contra a população negra, não basta reproduzir valores para condicionar os participantes a um comportamento enquadrado, ainda que elementos educativos também estejam em jogo na sociabilidade. Há, sobretudo, uma imensa capacidade de transformar o ordenamento social em brincadeira, em tiração de sarro. No plano individual, os cantadores dispõem de diversos elementos narrativos retirados da vivência coletiva (sociocultural) a fim de conquistar seu objetivo maior que é zombar do outro e obter prestígio por meio dessa zombaria. Com uma infinidade de temas possíveis, o cururu também trata do negro, de quem se fala sobre e através de adjetivações. Os cantadores manipulam tais adjetivos, não como dado para reproduzir comportamentos racistas dentro do grupo, mas para rebaixar e impor ao outro uma condição depreciada perante uma plateia que ri destas mesmas condições – ou para marcar o lugar da depreciação, educando para que comportamentos desviantes sejam valorizados e reproduzidos. Trata-se de uma prática reveladora da consciência que se tem dos conflitos e do ordenamento social como um todo. É justamente essa consciência que permite a manipulação deste ordenamento, tornando-o burla do sério: brincadeira passível de riso. Sendo inegável a difusão de concepções e teorias raciais e de branqueamento que contribuíram para reforçar, nos planos prático e imaginário, a exclusão dos negros do processo de consolidação do estado republicano brasileiro até os dias de hoje, o que pretendemos neste artigo é contemplar a dimensão da poesia oral realizada como desafio ritual entre homens negros e brancos para problematizar efetivas questões do cotidiano do grupo em sua sociabilidade e em sua vida social ampliada, destacando as relações familiares, de parentesco, compadrio, amizade e religiosidade bem como as relações de trabalho, este último entendido como produção da vida material e simbólica. Para que possamos ampliar o entendimento da construção dos saberes populares, 57 necessitamos reformular radicalmente nossas concepções científicas, revendo uma infinidade de noções historicamente construídas para, enfim, propor investigações aprofundadas sobre estes mesmos saberes. Longe de negligenciar a complexidade dos elementos que resultam em práticas racistas em nossa sociedade, enfatizamos apenas um aspecto da riquíssima prática do cururu do Médio Tietê paulista, manifestação identitária do grupo caipira, enquanto realização artístico-poética dos cantadores e violeiros individualmente e como expressão popular e coletiva de mundo. E neste último plano percebemos o cururu como meio pelo qual o grupo caipira se apropria das lógicas que regulam o ordenamento social para imprimir outra ordem, isto é, para viver ritualmente uma (des)ordem mediada pelo riso e possibilitada por ele. E faz isso muito antes de simplesmente reproduzir mecanicamente o ordenamento social a fim de reforçá-lo. Trata-se de uma forma singular de entendimento do mundo, e uma forma específica de produzir e transmitir conhecimentos. É com este sentimento, proveniente da necessidade de aprofundar nosso entendimento sobre os saberes provenientes das concepções populares do mundo, que finalizamos este artigo. Referência BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec / Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993. BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ____. Os Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Duas cidades, 1982. CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1994. EVANS-PRITTCHARD, E.E. Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e das instituições políticas de um povo nilota. São Paulo: Perspectiva, 1978. 58 FONSECA, Dagoberto José. 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Daniele Ribeiro Alves1 Clara Maria Holanda Silveira2 Maria Helena de Paula Frota3 Recebido em 30/03/2013; aceito em 20/05/2013 Resumo: O presente artigo objetiva compreender, sob a perspectiva foucaultiana, o assassinato e a “santificação” de mulheres no estado do Ceará. A discussão converge para o entendimento de que esse fenômeno se origina de uma cultura machista marcada pela dominação masculina e pela submissão do feminino, onde o aniquilamento da mulher representa a necessidade de controle do macho e da manutenção de seu poder. Palavras-chave: santificação, imolação dos corpos, assassinato de mulheres. Summary: This article aims to understand the perspective of Foucault, about the murder and the "sanctification" of women in the State of Ceará. The discussion converges to the understanding of this phenomenon originates from a culture marked by male domination and female submission where the annihilation of the woman represents the need of male control and maintenance of his power. At the same time, the ordeal suffered by the women killed, make them closer of the martyrs of the Catholic Church, who populate the popular imagination, contributing to his acceptance as sacred entities. Keywords: sanctification, immolation of the bodies, the murder of women. Introdução A violência contra a mulher ocorre em nível mundial, em todas as camadas da sociedade. Tem por base a herança oriunda de uma cultura de honra, de dominação masculina e de subordinação do feminino que separa de forma misógina os lugares ocupados por homens e mulheres, assim como suas funções na sociedade e na família. Esses papéis são consolidados ao longo da história e reforçados pela ideologia patriarcal, induzindo relações violentas entre os gêneros. 1 Mestranda em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (bolsista CAPES). Pesquisadora do Observatório da Violência contra a Mulher-OBSERVEM. [email protected] 2 Mestranda em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (bolsista CAPES). [email protected] 3 Doutora em Sociologia pela Universidade de Salamanca- Espanha. Líder do Grupo de Gênero, Família e Geração vinculado ao CNPq. Coordenadora do Observatório da Violência contra a Mulher- OBSERVEM. Professora Adjunta do Curso de Serviço Social e do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará. [email protected] Endereço institucional: Av. Paranjana, 1700, Campus do Itaperi. Fone/Fax: (85) 3101-9600 / 9601 60 O assassinato de mulheres, por questões de gênero, é a manifestação mais atroz da violência contra a mulher. Origina-se na intrínseca relação entre poder e masculinidade que constitui a matriz relacional hegemônica das relações sociais de gênero. (BANDEIRA, 2008). É nesse viés que pretendemos compreender quais as contribuições de Foucault para a análise do assassinato e veneração de mulheres no estado do Ceará. A partir da técnica análise de documentos, inquirimos a materialidade da documentação, conforme Frehse (2005) e coletamos informações sobre histórias de mulheres cearenses “canonizadas” de forma espontânea pela população, no jornal “O Povo”, um dos principais meios de circulação diária de Fortaleza, que lançou cadernos especiais com o tema “Santificados”. Nessa averiguação, obtivemos os seguintes resultados: dezesseis histórias de mulheres cearenses mortas e “santificadas”, com idade entre 12 e 47 anos, eminentemente da zona rural, protagonistas dos episódios que tiveram como característica principal o martírio e o crime passional. O que nos chama atenção é a característica comum a todos esses delitos: a imolação do corpo, o sacrifício, pois não basta matar, mas se faz necessário a aniquilação, desfigurar o corpo feminino como sinônimo de honra e controle. Tal aspecto contribui de forma decisiva para a “santificação” dessas mulheres. Portanto, agregando todas essas informações, realizaremos nossas reflexões baseadas nas ideias de Foucault. Os questionamentos que nortearão esse estudo serão: Qual a função do suplício para a “santificação” dessas mulheres? Como se estabelece a relação Igreja Católica e a produção da imagem feminina, ora profana, ora sagrada? Há micropoderes e resistências femininas nesse fenômeno? 1. Relações de gênero e o conceito de poder em Foucault As relações desiguais de gênero são engendradas a partir da transformação das diferenças biológicas entre homens e mulheres em desigualdades sociais. Sobre essa questão, 61 Osterne (2001) afirma que o gênero dos indivíduos é definido pelas relações sociais, pela cultura e pelo sistema simbólico no qual os seres humanos estão inseridos, e não pelas diferenças biológicas entre os sexos. Para Scott (1995), as formas de representação do ser homem e do ser mulher na sociedade, transmitidos por meio de símbolos, conceitos e metáforas, contribuem para que o indivíduo, desde criança, assimile as normas, os costumes e as regras sociais e incorpore a visão naturalizada do domínio masculino em detrimento do feminino. Consideramos também que o conceito de gênero comporta a interpretação de que as relações entre homens e mulheres estão baseadas em relações de poder, onde o sexo feminino encontra-se em desvantagem. Scott (1995) destaca que o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder, utilizada de maneira recorrente nas tradições judaico-cristãs e islâmicas. De acordo com Foucault (1996), o poder deve ser analisado como algo que circula e que não se localiza em um ponto específico da estrutura social. Funciona como uma rede de dispositivos que se exerce de maneiras diversas, de acordo com técnicas e táticas próprias, perpassando todas as relações sociais e atingindo todos os indivíduos. Resulta dessa acepção, a ideia de que o poder não existe, o que existe são relações de poder nas quais todas as partes o exercem, porém, não de forma igualitária. O autor ainda diferencia o poder e a violência ao afirmar que esta age sobre os corpos e os objetos, quebrando, destruindo, minando as possibilidades de resistência. As relações de poder, ao contrário, dizem respeito a dois sujeitos que podem tanto exercer como ser alvo dos efeitos do poder, havendo espaço para a luta, a resistência e a resposta. Mesmo que o poder seja distribuído de maneira desigual entre os sexos, tanto os homens se utilizam dele para a manutenção da dominação masculina como as mulheres utilizam o mesmo para a sustentação ou combate as desigualdades e a submissão feminina. Queiroz (2008) 62 ressalta que o poder não se estrutura de forma rígida, na oposição binária entre opressor e oprimido. Em uma relação de poder ora um, ora outro pode estar em posição de comando. Reforça que seu exercício se constitui como manobras e técnicas que são contestadas, aceitas ou transformadas. Não existem aqueles que detêm e os que não detêm o poder, este não é algo concreto, mas sim se manifesta por meio de práticas, de relações. Onde há poder, haverá resistência dentro de sua própria teia relacional. Por essa razão, não há um local próprio de resistências, mas sim diversos pontos de resistência espalhados pelo corpo social. O poder não aprisiona. Porém, para modificar a dominação exercida por ele, são necessárias técnicas e estratégias tão móveis e inventivas quanto o próprio poder. (FOUCAULT, 1996). Consideramos que a mulher apresenta meios de resistência dentro de uma relação conjugal violenta. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que as mulheres “santificadas” no imaginário social se aproximam dos ideais católicos pela crueldade sofrida e o controle do desejo da carne, por outro lado, no âmago das narrativas, são explícitas as resistências do feminino ao modelo de submissão. Muitas delas não acataram as normas estabelecidas pelo companheiro, opuseram-se ao casamento ou não cederam seus corpos. Tais resistências culminaram no assassínio. É notório destacar algumas dessas narrativas: Isabel, 28 anos de idade, foi assassinada, em outubro de 1929, na cidade de Guaraciaba do Norte, a facadas e seu corpo foi jogado ao abismo pelo companheiro que ficou enciumado com o corte de cabelo da mesma; Maria de Bil foi morta a facadas no ano de 1926, na cidade de Várzea Alegre-Cariri, pelo ex- companheiro que não aceitava o fim do relacionamento; Regina de Fátima, 12 anos de idade, ao não ceder às tentativas do tio de manter relação sexual foi estuprada e morta, em outubro de 1982, na cidade de Fortaleza-CE. Nestes casos, é explícito que a desigualdade de gênero, que consiste em valores culturais hierárquicos e machistas, marca o extermínio das mulheres. Portanto, tais práticas de crimes passionais ocorrem no momento que o homem não tem a posse da mulher, é desprezado, sente-se lesado na sua masculinidade e assim, busca reaver a sua honra. Age acreditando que é seu 63 direito ter a posse da morte. Essas mulheres assassinadas, no entanto, tornam-se figuras sagradas da modernidade a partir da morte e da crença de que são milagrosas, gerando respeito e devoção. Transformam-se num emblema na região e atraem a coletividade. 2. O poder disciplinador da igreja católica e a produção da imagem feminina, ora profana, ora sagrada Para Foucault, o poder tem uma face positiva, produtora e, dessa maneira, incide sobre os corpos dos indivíduos com o objetivo de aprimorá-los, adestrá-los. Entra em questão aqui, o conceito de poder disciplinar utilizado por esse autor, como sendo um tipo específico de poder que permite o controle minucioso do corpo humano, o adestramento de suas ações, a produção de corpos dóceis, de maneiras de agir, sentir e pensar nos seres humanos. Osterne (2008) acrescenta que a disciplina contribui para a aceitação da dominação masculina, raiz do fenômeno da violência de gênero. Segundo Foucault (1996), a disciplina é um conjunto de técnicas que tem como objetivo criar a singularidade dos indivíduos. Dessa forma, a distribuição dos corpos em um espaço individualizado é fundamental. A “Casa” representa o espaço simbólico do feminino, uma vez que é associada ao confinamento e ao doméstico; a “Rua” é o âmbito masculino, de desbravamento, do político, (DAMATTA, 1997). Essa separação entre o público e privado tem uma intensa conotação de gênero e reforça as divisões de papéis entre o homem e a mulher. O poder se exerce através das interrelações entre os saberes, articulando conhecimentos teóricos (filosóficos, médicos, psiquiátricos) e as instâncias sociais, como a família, a escola e a justiça, na construção de discursos que se centram nos espaços institucionais e objetivam o controle do corpo feminino, (FOUCAULT, 1996). Nesse sentido, as ideias foucaltianas apresentadas nos fornecem reflexões quando estudamos a história das mulheres e as elaborações de múltiplos 64 discursos ao longo do tempo que vinculam o feminino ora ao sagrado, ora ao profano. O inventário das representações dessa feminilidade foi realizado pela arte, a filosofia, a medicina e a igreja católica. Esta, por sua vez, contribuiu e contribui de forma decisiva para a elaboração da imagem ambígua da mulher. Segundo Perrot (2002), as mulheres, durante longas épocas, foram educadas conforme os princípios da igreja. Seu habitus era a piedade, a virgindade era vigiada excessivamente, já que a igreja consagrava Maria, virgem e mãe, como modelo a ser seguido. O casamento de branco simbolizava a pureza, elas deveriam se manter silenciosas em público e cobrir os cabelos, símbolo da carne, da tentação e sedução. Na cultura judaico-cristã, o monoteísmo é masculino, reforçando a hierarquia do domínio patriarcal no sistema religioso, Deus-Homem-Mulher. O feminino torna-se secundário e com uma identidade negativa, (RUETHER, 1993). Anterior ao século XVII, o feminino aparece atrelado à figura de Eva pecadora, encarnação do mal do antigo testamento. Imortalizou-se, assim, a idéia da mulher frívola, responsável pelos severos castigos divinos infligidos aos homens. “Como na grande maioria das religiões antigas orientais, essa parte da bíblia reitera uma visão patriarcal e autoritária do mundo, na qual a mulher tem um papel equívoco” (COSTA, 2002, p.66-67). Observa-se que os dispositivos de poder que impõem limites e proibições sempre existiram em diversas sociedades. No entanto, o que há de novo no século XVIII? São as novas técnicas que buscam controlar os corpos minunciosamente, deixando-os disciplinados de forma dócil e útil. O corpo dócil é aquele que pode ser manipulável, transformado e aperfeiçoado. Na verdade, são técnicas mais sutis de manipulação calculada de gestos e de comportamentos. É, portanto, a disciplina, “uma anatomia política do detalhe”, segundo Foucault (1993a, p.128), que se atenta para o controle das mínimas partes da vida. São os novos mecanismos de poder e saber, totalmente imbricadas, que penetram nos atores sociais, introjetando práticas discursivas nos corpos, adestrando-os e controlando os comportamentos. (FOUCAULT, 1996). A 65 força e a coragem não fazem parte dos elementos principais dessa nova forma de dominação, mas outros conjuntos de elementos, como, lugar, tempo, regularidade, codificação das atividades, tática, disposição anatômica e a moral da obediência, para não haver nenhum questionamento. Nesse novo contexto, o dispositivo da sexualidade prolifera, inventa, penetra nos corpos com práticas sociais, técnicas de poder, mecanismos de conhecimentos específicos centrados no sexo. Sabe-se que as construções sociais e históricas se direcionam aos corpos através de discursos que produzem “verdades” e normatizações. Várias instituições, como a igreja católica e algumas ciências (a medicina, a psiquiatria e a sexologia) direcionaram seu olhar para o controle dos corpos femininos, assim, era visto como anomalia qualquer comportamento, contrária, a representação imaginada de esposa e mãe. Surgem as “scientia sexualis” com o conjunto de técnicas e disciplinas relativas ao comportamento sexual, objetivando adestrar corpos e produzir subjetividades. Esse saber- verdade, de controle da população consolida-se, no século XIX, através do Estado. Foucault (1993b) analisa a sexualidade como dispositivo de poder que acarreta o disciplinamento, a normatização do corpo feminino e constrói, dessa forma, diversos projetos políticos através das práticas discursivas. Dessa forma, os papéis de gênero são construídos em cima dos corpos sexuados. A religião e seus textos sagrados lançam sistemas simbólicos que perpassa as subjetividades dos indivíduos e influenciam nas relações de gênero, definindo papéis masculinos e femininos, sustentando, muitas vezes, a violência sexista. Como se nota, as produções discursivas da sexualidade e dos corpos foram fundamentais para estabelecer relações de poderes e falas que controlam os sexos, pois expressam conceitos, valores e ideologias. Por muito tempo, as mulheres foram “naturalizadas” através do amor materno, do romantismo, sendo transformadas em objetos de prazer e inferiorizadas. 66 3. A passagem do profano para o sagrado e a santificação. O sacrifício para Mauss; Hubert (2005) é uma passagem do domínio comum para o religioso, do profano para o sagrado, a vítima torna-se sagrada apenas quando é morta. A coisa consagrada é o intermédio entre os atores sociais e a divindade. Girard (1990) argumenta que a violência desempenha um papel fundamental nos sacrifícios, uma vez que desvia da sociedade o ato violento entre seus membros e o canaliza apenas para uma vítima relativamente indiferente. Além disso, no ritual sacrifical a violência e o sagrado são inseparáveis. Diante dessas considerações, podemos nos remeter a história bíblica sobre a agonia de Cristo, que se sacrificou a favor da humanidade, foi uma noção que auferiu forças quando o cristianismo se tornou “religião oficial”. A parir de então, ao sofrer, os seres humanos participavam do sacrifício expiatório de Cristo, assim, a passividade, a resignação virou um ethos cristão, (NEUENFELDT ET AL, 2008). Diante disso, a penitência, a flagelação e a renúncia sexual eram modos de alterar a realidade de pecado. Controlar o corpo, até mesmo mortificá-lo, controlar os desejos da carne transformou-se num ideal de moral cristã, pois ao negar o corpo estaria se elevando a alma. O aniquilamento é o ato essencial para as vítimas separarem-se do mundo profano, santificando-se. A pureza é assegurada nesse momento. A imolação do corpo feminino, ou seja, o sacrifício é uma das principais causas para a “santificação” das mulheres, pois o grande teor de violência repercute e comove a população. O sofrimento, a agonia, a imolação do corpo e a morte tem o viés de purificar o feminino e aproximar do divino, (re) significando o “papel” da mulher submissa em sujeito capaz de resolver e interceder por problemas terrenos. No imaginário social a “santificação” é relacionada à morte trágica, porque evoca a memória os temas religiosos valorizados pelo universo cristão, como o sacrifício, a “via crucis” e o sofrimento purificador. Segundo Woodward (1992, p.64) “O mártir cristão clássico é uma vítima inocente que morre 67 por causa da fé, mas nas mãos de um tirano que se opõe a ela”. O termo santo, no inicio do cristianismo, era reservado apenas ao mártir, o que morria pela fé cristã, mas depois, essa concepção foi ampliada, incluindo, os que faleciam de doenças graves ou mortes violentas. (ANDRADE, 2010). Associam-se ainda, no catolicismo, a mulher à passividade, ao sacrifício e à dor, sendo este o ideal máximo de feminilidade. Maria simboliza todos os valores femininos: virgem e mãe. Coincidentemente ou não, na história de várias mulheres “santificadas”, é explicito nas narrativas dos atores sociais que consideram essas mulheres “santas”, enfatizar a morte (sacrifício) e a veneração devido à questão da virgindade, da esposa submissa que vivia apenas em função do marido e dos filhos. Na modernidade, a mãe transformou-se em mártir, devendo sacrificar seus direitos civis, políticos em nome do filho e do marido, sendo santificada pelo sofrimento e renúncia. A igreja católica acolhe o modelo de mulher bondosa, ou seja, Maria com o menino Jesus é o protótipo da feminilidade santa, é o marianismo, o culto da superioridade espiritual feminina, que representa sua capacidade infinita de humildade e sacrifício. (ARY, 2000; NUNES, 2000). Mas esses valores católicos ainda refletem na nossa realidade atual? Exemplo marcante, na contemporaneidade, é o caso do Juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, da cidade de Sete LagoasMG que argumentou, ao se referir à lei Maria da Penha, como "um conjunto de regras diabólicas": Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (…). O mundo é masculino! A idéia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem! Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões. A vingar esse conjunto de regras diabólicas, a família estará em perigo, como inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras, porque sem pais; o homem subjugado. O mundo é masculino... (Folha de São Paulo, Domingo, Outubro 21, 2007). Na pesquisa “Assassinatos de mulheres no ceará: antes e depois da Lei Maria da Penha” do Observatório de Violência contra a Mulher - Observem¹, que buscou investigar a incidência de 68 assassinato de mulheres por seus maridos e/ou companheiros no Ceará, tendo por referência o período anterior e posterior à publicação da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), observamos que o elemento religioso permeia alguns discursos dos indiciados. Exemplo disso é a explicação de um dos autores do crime, que justifica a morte da esposa porque, segundo ele, a mesma estava envenenando-o com água e óleo que trazia da igreja. Em outro episódio, o assassino escolheu a data de uma festa religiosa para matar. No outro caso, após assassinar a mulher e os filhos, o autor da violência colocou os corpos com os pés virados em direção à porta, costume que integra os rituais fúnebres em algumas tradições religiosas. Notamos, dentre outras questões, que valores machistas atrelados a dogmas clericais são justificativas de vários autores do assassinato. Essas ideologias religiosas permeiam leis, mentalidades e sustentam estereótipos de gênero. Destaca-se ainda em tal pesquisa, que as mulheres assassinadas estavam na faixa etária entre 18 e 42 anos de idade; companheiros, maridos e ex-maridos foram os que mais mataram as mulheres, além do que, as armas mais utilizadas para o cometimento dos atos delituosos foram armas de fogo e/ou armas brancas. Esse perfil é revelador, pois comparando com a investigação mulheres “santificadas” percebemos que ainda prevalece o crime passional e os maiores algozes são pessoas que mantém uma relação afetiva com a vítima. Segundo Osterne (2005, pág. 150) “As mulheres são assassinadas quase sempre em consequência da desigualdade de gênero”. Considerações Finais Os discursos elaborados pela Igreja Católica contribuem, decisivamente, na formação, conformação e transformação da mulher. Imagens e símbolos criados por tal instituição agem sobre o imaginário social como categorias de discursos que explicam os significados do que é ser mulher numa determinada época, revelando nas entrelinhas os reversos utilizados para constituir um padrão feminino. Arquétipo este baseado numa moral cristã, como a virgindade, a castidade e os códigos rígidos de uma conduta universal. Tais dispositivos de poder (imagens, símbolos do profano e do 69 sagrado) legitimam discursos e constroem a história de “santificação” das mulheres assassinadas. É certo e não podemos deixar de salientar que a história das mulheres não é linear, mas descontínua, haja vista as peculiaridades de cada mulher em diferentes contextos históricos, culturais, de classe e etnia. É bem verdade, entretanto, que essa representação ambígua da mulher e o controle dos seus corpos são uma expressão religiosa, de ocultação do corpo e do prazer, levando toda uma percepção diferente de como devem ser os comportamentos masculinos e femininos, o que interfere de forma desigual nas relações entre os gêneros. Notas finais 1. É um espaço de monitoramento das condições de vida da mulher cearense e da violência que se abate sobre as mesmas. Referências Bibliográficas BANDEIRA, L. M. Prefácio. In: Eva Alterman Blay. (Org.). Assassinato de Mulheres e Direitos Humanos. São Paulo: 34, 2008. p. 7-13. COSTA, Cristina. A imagem da mulher: estudo de arte brasileira. Rio de janeiro: Senac Rio, 2002. DAMATTA, Roberto. Carnavais, paradas e procissões. In: DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Racco, 1997. Cap.1, p.45-84. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 12 ed. 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A leitura feita procura ressaltar a processualidade da brincadeira que navega entre a permanência e a transformação. Este artigo faz uma contextualização social da comunidade que dialoga com a história de vida do dono do reisado, Raimundo Milú: figura forte que, juntamente com suas redes familiares, de compadrio e amizade, luta pela resistência da brincadeira. Palavras-chave: reisado; tradição; memória Abstract: This research studies the tradition of epiphany in the community of Cipó de Baixo, which belongs to the city of Pedro II, in the state of Piauí. Readings were made seeeking to emphasize the processivity of the play that navigates between permanence and change. This article does a social context of the community, in dialogue with the life history of the owner of the epiphany, Raimundo Milú: strong figure who, along with his family networks, as well as networks of patronage and friendship, struggles for the resistence of the play. Key words: epiphany; tradition; memory 1) Apresentação A pesquisa que originou este artigo avalia, a partir de um estudo de caso do reisado da comunidade Cipó de Baixo (município de Pedro II, Piauí), como se comporta uma tradição cultural e seus atores envolvidos: passeamos pelas relações sociais vividas pelos atores do reisado, caracterizamos a brincadeira de Reis e perquirimos sobre que transformações e permanências aqueles atores sociais e a prática cultural do reisado vêm passando. Ano após ano, a brincadeira de Reis, como um sistema de redes sociais que vai bem mais longe do que as fronteiras da comunidade, vem interagindo com fatos novos que passam a fazer parte daquele sistema de redes sociais. O elemento mais emblemático de suas transformações é a redução do número de casas por onde os brincantes circulam, logo, uma limitação das redes sociais em movimento. Alguns dos laços sociais que impulsionavam as rodas de brincadeira do reisado vêm fragilizando-se ou extinguindo 1 Artigo proveniente de pesquisa de doutoramento junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (UFRN), com orientação do professor Luiz Assunção. O autor ([email protected]) é professor adjunto dedicação exclusiva de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Piauí (Rua João Cabral, 2231, bairro Matinha, Teresina – PI. Telefone: (86) 3213-7524. Endereço eletrônico: www.uespi.br). Pesquisa subsidiada pela FAPEPI (Fundação de Amparo à Pesquisa do Piauí) e UESPI. 73 enquanto outros resistem apesar de todas as pressões externas. A brincadeira do reisado faz parte de um mundo antigo que resiste por meio de redes sociais de solidariedade (família, compadrio e amizade), a vida religiosa dos festejos, leilões e novenas, as memórias de vida daquelas pessoas, os trajes, o transporte a pé, animal ou bicicleta etc. Em meio a essas permanência surgem novas práticas sociais: monetarização das relações, o transporte de motocicleta e carro, a extensão da escolaridade, mudanças nos trajes e modos de entretenimento, a presença da tv, a individualidade, expansão das políticas públicas (assentamentos rurais, eletrificação, projetos de geração de renda, bolsa-família, distribuição de água encanada etc.). O novo é protagonizado pelas pressões da modernidade que, paulatinamente, passam a fazer parte do cotidiano das comunidades rurais piauienses. Nesse universo complexo e mútiplo, o presente artigo ressalta as permanências do reisado. Analisa como o reisado dialoga com práticas e tradições culturais resistentes na comunidade Cipó e como a figura de Raimundo Milú, o “dono” do reisado, personifica esse mar de relações, valores e significados sociais. Em outras palavras, apesar de todas as pressões modernizantes, como o reisado resiste pela atuação do griô Raimundo e pelas relações estreitas que mantem com a sociabilidade viva da comunidade Cipó de Baixo. 2) Reisado: uma breve revisão conceitual Segundo Luís da Câmara Cascudo, no Dicionário do Folclore Brasileiro, o reisado: É denominação erudita para os grupos que cantam e dançam na véspera e dia de Reis (6 de janeiro). Em Portugal diz-se reisada e reiseiros, que tanto pode ser o cortejo de pedintes, cantando versos religiosos ou humorísticos, quanto os auto sacros, com motivos sagrados da história de Cristo (...) O auto popular profano-religioso, pertencente ao ciclo natalino, é formado por grupos de músicos, cantadores e dançadores que vão de porta em porta anunciar a chegada do Messias e homenagear os três Reis Magos (...) O Reisado pode ser apenas a cantoria como também possuir enredo ou série de pequenos atos encadeados ou não. (2001, p. 581 – verbete Reisado) Grupos que brincam e dançam, às vésperas do dia de Reis ou no próprio dia, compostos por músicos, cantadores e dançadores que desenvolvem uma cantoria ou um auto dramático que narra o fato particular da história de Cristo, que é o seu nascimento e a visita dos três Reis Magos. Ou na 74 forma de cortejos ou como autos sacros, os brincantes de Reis reinventam a memória do nascimento de Cristo bem como dos credos e valores daqueles sujeitos. Daniel Bitter, em seu trabalho de doutoramento “A bandeira e a máscara: a circulação de objetos rituais nas folias de reis” (2010), apresenta um quadro geral de estudos brasileiros sobre as “folias de reis”. Destaca, inicialmente, a perspectiva geral dos folcloristas que priorizam a “descrição formal” da folia e “se esforçam continuamente na pesquisa das origens dessa prática, apontando, particularmente, para seus antecedentes ibéricos” (p. 10). Estes estudos se voltam para a descrição dos “traços culturais” e de como se dá a “difusão” de seus elementos na sociedade brasileira. Ainda estão muito preocupados com o risco do desaparecimento de tais práticas no complexo cadinho cultural brasileiro. Em seguida, Bitter pontua o olhar diferenciado de Carlos Rodrigues Brandão sobre o reisado, ao tratá-lo como “sistema de prestações totais”, sustentado no pensamento de Marcel Mauss sobre o sistema de trocas de dons. “Essa abordagem permite deslocar o olhar objetificado sobre uma determinada manifestação cultural para as relações sociais, interações e alianças concretas que, por meio dela, se constroem” (BITTER, 2010, p. 11). Nosso estudo toma essa orientação como pressuposto teórico-metodológico. Ao percorrer algumas das conclusões desses pesquisadores, pode-se constatar o quanto são múltiplas as formas de ritual/festa/brincadeira do reisado. Na dissertação de mestrado de Paloma Sá de Castro Cornélio (2012), há uma reflexão relevante sobre a multiplicidade de compreensões sobre o reisado. Entre elas, destaco a do pesquisador Oswald Barroso: “... um folguedo tradicional do ciclo natalino, que se estrutura na forma de um cortejo de brincantes, representando a peregrinação dos Reis Magos à Belém, e se desenvolve em autos, como uma rapsódia de cantos, danças e entremeses incluindo obrigatoriamente o episódio do Boi” (BARROSO apud CORNÉLIO, 2012, p. 31). Contudo, Paloma Cornélio identifica que, em reisados do Maranhão, o boi não ocupa posição central no folguedo, tampouco há sua morte ao final: “... é o careta velho que morre e ressuscita no 75 meio da brincadeira” (p. 31). Seu inventário registra concepções de outros pesquisadores que apresentam visões diferenciadas acerca do reisado. Por fim, opta por uma conceituação mais genérica e que abre margem para apreender a diversidade social das brincadeiras de Reis: “uma brincadeira do período natalino, com música, canto, coreografia e poesia” (p. 32). Entre as pesquisas consultadas, há também o trabalho da professora Eloísa Brantes, “A espetacularidade da performance ritual no Reisado do Mulungu (Chapada Diamantina – Bahia)”. Seu objeto é ler no reisado a dimensão espetacular do corpo na interação entre brincantes/donos de casa/santos sob a batuta da Antropologia Teatral. Conforme Bitter (2010), esse artigo é bem representativo das mudanças de abordagem verificadas nos estudos sobre o reisado no Brasil, a partir da década de 70: Muitos estudos sobre os Reisados e as Folias de Reis foram feitos no campo do folclore até a década de 1960. A partir dos anos 1970/80, esta manifestação religiosa foi analisada no contexto do catolicismo popular pelos cientistas sociais que focalizaram as relações de trocas sociais no meio rural brasileiro. Os Reisados, Folias de Reis e festas de Santo saíram do campo das sobrevivências culturais traçadas pelo folclore, para serem pesquisados em seus contextos sócio-culturais através de estudos de casos desenvolvidos no campo da sociologia e da antropologia. (BRANTES, 2007) É neste escopo de um estudo de caso que se situa o trabalho ora apresentado. Avaliamos o reisado da comunidade Cipó de Baixo como experiência cultural em processo ou como prática cultural em movimento. Procuramos descrever “a” brincadeira do reisado a partir de múltiplos cipó de sua configuração cultural. Faz parte de nossa orientação metodológica considerar as construções da cultura não somente como coisas estabelecidas como tal, mas que, apesar de seu caráter de permanência social, há trançados constantes de tensão histórica que os levam a distensões, movimentos ou paroxismos nas suas existências. Os brincantes do reisado fazem parte de uma trama complexa de vivências sociais: o seu mundo não é simples como aparenta ser ao primeiro olhar; participar da tradição do reisado do Cipó não é um exercício singelo de moradores do campo; resistir com a brincadeira não implica somente na vontade propositiva de um grupo de pessoas. Há mais cipós nessa trama social do que geralmente as outras pessoas querem ver: muito mais do que uma “expressão do folclore pedrossegundense”, ou “algo típico da região”, ou a “forma passada de 76 divertir-se”, ou o “jeito pitoresco de ser de um povo”. Além dessas realidades aparentes, os brincantes do reisado experimentam o drama de suas existências como homens e mulheres do campo pedrossegundense. Em suas idas e vindas revivem os dramas sociais de suas existências. O reisado do Cipó não é uma tradição alheia ao tempo que gira velozmente. Na roda do reisado, são encenados dramas pretéritos e recentes num continuum temporal denso e contraditório. Homens encenam e re-encenam um drama tragicômico de suas experiências cotidianas. O reisado não existe em si: ele sobrevive por meio dos dramas de seus expectadores e das comunidades que o acolhem. 3) A comunidade rural Cipó de Baixo, o brincante Raimundo Milú e os significados subjacentes ao “movimento” do Reisado Descrever a comunidade rural Cipó de Baixo a ponto de caracterizar o espaço social onde está fincada a tradição do reisado e seus principais atores sociais bem como suas relações com a resistência da tradição é a trama central de seu artigo. Outros fios significativos dessa trama está na figura do “dono” do reisado, Raimundo Milú, e como sua história reflete a rica conexão que a brincadeira de Reis mantém com uma rede de solidariedade social (DURKHEIM, 1995) muito particular às comunidades onde acontece o “movimento” (expressão que empregam para referir-se ao reisado). A comunidade Cipó de Baixo está localizada a aproximadamente dezoito quilômetros da sede do município de Pedro II; três quilômetros e meio dessa distância são compostos por estradas de terra. À medida que o inverno intensifica-se, um trecho desse percurso fica bastante deteriorado, somente entre os meses de julho e setembro que a prefeitura autoriza obras de raspagem com um trator para efetuar a melhoria da estrada. Diariamente, há uma picape que realiza o transporte das pessoas que desejam ir à cidade; parte às seis horas da manhã e retorna às onze e meia. As pessoas são transportadas na carroceria do 77 veículo onde levam, por vezes, animais, feijão, arroz ou farinha para vender na feira: estes são os principais bens produzidos pelos habitantes da comunidade Cipó de Baixo. Essas pessoas buscam o centro urbano também para realizar consultas médicas, exames e operações bancárias (recebimento da aposentadoria ou benefícios como o bolsa-escola). Na comunidade, há somente uma pequena escola que oferece de modo multisseriado os cinco primeiros anos do ensino fundamental: um salão de alvenaria coberto, de aproximadamente 50 metros quadrados, que reúne uma turma não superior a vinte crianças. A professora é funcionária pública municipal e ministra aulas no turno da manhã. Em uma licença médica dessa professora, Francisco Milú, filho de seu Raimundo, sanfoneiro, careta e grande colaborador do pai, a substituiu (esses são os únicos funcionários públicos da comunidade). Chiquinho, como carinhosamente é denominado por muitos, desenvolveu a mesma versatilidade do pai: além de professor, é responsável pelo poço da comunidade (para prestar este serviço que é contratado pela prefeitura); é também mecânico, marceneiro, metalurgista, agricultor, criador de animais, capoeirista, motorista, pedreiro, sanfoneiro, brincante e possui uma picape com a qual realiza pequenos transportes. No ano de 2010, a população da comunidade Cipó de Baixo era composta por cento e sessenta pessoas. Fora esta, há uma população migrante, na sua grande maioria, composta por homens (solteiros ou casados) que passam temporadas fora ou, diferentemente, já se fixaram em algum grande centro. Estes últimos vêm periodicamente no período de férias: no caso do Cipó de Baixo, preferencialmente, entre os meses de dezembro e janeiro (período do festejo da padroeira da cidade, Nossa Senhora da Conceição, do reisado e tempo de maior número de festas por se tratar também das férias escolares dos jovens). Aqueles migrantes sazonais, quando retornam, além das atividades agrícolas e pecuárias tradicionais (quando não as abandonam), investem em pequenos negócios (mercearias, bares, oficinas para motos, marcenaria ou metalurgia) ou priorizam profissões autônomas (pedreiro, marceneiro, carpinteiro, eletricista, bombeiro etc.). Os 160 habitantes da comunidade Cipó de Baixo estão distribuídos entre quarenta e duas 78 famílias e trinta e sete casas. Todos possuem, entre si, alguma espécie de parentesco: irmãos, primos e sobrinhos de seu Raimundo Milú são seus vizinhos. Essa rede de relacionamentos e compromissos sociais serve como liga que aglutina os moradores de comunidades rurais tanto para o trabalho (plantio, colheita, farinhada, construção de casas) como para uma diversidade de vivências e festas comunitárias (organização e participação de festejos, leilões e novenas, assistir as famílias nos momentos de perda de entes queridos, festas de aniversário, batizado e casamento, e, a própria brincadeira do reisado). Este cipoal de compromissos sociais oxigena e garante seiva doce para a vida social das comunidades e do reisado. Ainda sobre a manutenção das famílias, observamos que as mesmas sobrevivem por meio de roças de subsistência (plantio de milho, feijão, mandioca e arroz), criação de animais (galinhas, porcos e caprinos) e a comercialização desses produtos (ou na própria comunidade, em comunidades vizinhas ou na feira da cidade na manhã de toda sexta-feira). Outra fonte de renda é a prestação temporária de trabalho, identificada na região como “diária”: no ano de 2010, com o salário mínimo de quinhentos e dez reais, custava quinze reais. Não podemos esquecer da contribuição da renda dos aposentados e programa social “Bolsa-Família”. Um pequeno comerciante da comunidade possui uma casa de farinha que cede a parentes e compadres para realizar farinhadas, no segundo semestre, para produção de farinha e goma (ambos servem para o consumo das famílias e para a comercialização na cidade). Da goma, faz-se tapioca, beiju, mingau e bolos. Dada a grande necessidade de mão-de-obra para o beneficiamento da mandioca e os pequenos valores obtidos pela farinha e goma, a farinhada tem-se demonstrado uma atividade de pequena rentabilidade – o que vem desmotivando a sua realização. Outras profissões exercidas por alguns de seus moradores são: pedreiro, marceneiro, mecânico de motos e automóveis, motorista (transporte coletivo e de cargas) e artesão. Esta última é domínio feminino. O artesanato local consiste principalmente na produção de redes e peças em crochê. A matéria-prima do crochê tanto pode ser o fio beneficiado como o fio cru de algodão. Este 79 último é mais comum, mas não é produzido na região como fora outrora. As artesãs recorrem ao comércio da cidade para obter novelos de linha de algodão. Com eles, são produzidos centros de mesa, babados para panos de prato, tapetes, varandas para redes as quais são identificadas pelas artesãs das comunidades de Pedro II como “grades” e outras peças de ornamentação doméstica. Com a venda descontínua, as mulheres (na sua grande maioria, casadas) contribuem com a aquisição de mantimentos e outros bens para o consumo familiar (café, açúcar, sal, escova e creme dental, sabonete etc.). Também constatamos que, nesse mundo dominado pelo homem provedor, o trabalho artesanal, para as mulheres, além de ser uma ocupação cotidiana da qual obtém pequeno retorno financeiro, agrega (esporadicamente) as mulheres em meio a fios, conversas, sorrisos e brincadeiras. Muitas das mulheres que têm seus maridos ausentes, pela migração, aproximam-se de outras para conversar, cuidar da casa, fazer crochê, costurar ou simplesmente passar o tempo. Pode ser sua mãe, sua sogra, vizinha, irmã ou comadre. De modo semelhante, elas acompanham os brincantes do reisado: se, em alguns poucos momentos ajudam a se arrumar (especialmente, as “damas” – homens disfarçados como mulheres), na maior parte do tempo, estão entretidas com suas conversas e brincadeiras. Aquele espaço é um universo eminentemente feminino costurado por linhas de cumplicidade, amizade e de um tempo surpreendente como um cacto. Com a eletrificação rural e a progressiva apropriação dos meios de comunicação, além de outros meios da tecnologia moderna, têm estimulado a população a formar novos interesses e preocupações. Os brincantes e pessoas que prezam o reisado se ressentem pelo fato de que os moradores das comunidades da região dedicam-se a “coisas novas”. Essa dualidade entre a tradição e o novo, tanto na comunidade Cipó de Baixo como nas comunidades circunvizinhas, tem perpassado a continuidade não somente do reisado, mas de outros “movimentos” tradicionais como os festejos e leilões. Identificamos que a melhoria da qualidade de vida da população, motivada pela maior apropriação de papel-moeda e os bens sociais modernos que podem ser adquiridos pelo mesmo 80 (saúde, informação, educação, alimentação, vestuário, habitação, saneamento etc.), motiva novos interesses, hábitos sociais e projetos individuais, principalmente entre as crianças e jovens. Desde os novos interesses de consumo e status social (aquisição de motocicleta, vestuário em consonância com as tendências da moda que se renovam constantemente, substituição das velhas casas com tijolos de adobe por tijolos de barro queimado, posse de celulares com variados recursos etc.), passando por hábitos novos (usufruto de seu tempo livre em clubes sociais com piscinas, bares e festas com grandes bandas, incorporação do frango na alimentação cotidiana e a progressiva rejeição do caprino e dos pratos guisados, recusa do trabalho “pesado” da roça, formação de famílias menores de um a três filhos etc.) aos novos projetos de vida (dedicação de maior tempo à formação escolar, substituição do trabalho na roça por outras profissões como servidor público, mecânico de motocicletas, pedreiros, carpinteiros e comerciantes etc.). A análise da história de vida do ator social Raimundo Milú apresenta-se como estratégia de compreensão do reisado do Cipó de Baixo como fato social intimamente associado a sua vida. Nosso percurso analítico é considerar elementos de sua história que dialogam com a conformação peculiar do reisado do Cipó. Para tanto, partimos dos depoimentos dele, de seus filhos e amigos. Logo que iniciamos nossas visitas na comunidade, verificamos que a pessoa desse velho brincante era peça fundamental para compreender o que é o reisado do Cipó de Baixo e como ele resistia às pressões da modernidade (BAUMAN, 2001; GIDDENS, 2002; HARVEY, 2007). Sua pessoa é emblemática de um padrão de sociabilidade que dá sustento a tradições como o reisado, os festejos e os leilões das comunidades rurais de Pedro II. Seu trabalho na roça o aproxima de suas origens familiares (desde criança trabalhou para ajudar a criar seus irmãos) e da sua identidade de trabalhador rural que não foi capaz de abandonar o campo: por essas condições, verificamos na vida de seu Milú um forte liame com os hábitos antigos das comunidades rurais piauienses. Este homem, com inúmeros parentes espalhados pelas comunidades da região, não se vê distante desse nicho de afeto e reconhecimento familiar. Essa 81 vida, orientada conforme os padrões tradicionais de vivência no campo, reforça a resistência cultural do reisado. Em outras palavras, se a brincadeira de Reis ainda persiste na comunidade rural Cipó de Baixo, deve-se fortemente ao fato de ser encaminhada e defendida por homens afeitos aos costumes tradicionais dessa e de outras comunidades rurais. O reisado é uma prática cultural familiar: apesar dele ser o “dono” da brincadeira, a mesma é feita com a participação dos filhos que moram ainda no município de Pedro II (ele possuía, na época da pesquisa, três filhos morando em São Paulo) além de contar com a participação de um irmão, um cunhando e compadres (todos são agricultores e/ou aposentados). Assim como quem recebe os brincantes em suas casas são o “capitão” e sua família. A brincadeira depende da associação de esforços entre as famílias; não é uma iniciativa exclusiva dos indivíduos que negociam a realização do “movimento”. Podemos constatar que a figura de um sujeito individual anda distante das vivências do brincante Raimundo Milú e de uma parte significativa de sua família (e de tantas outras da zona rural de Pedro II). Ainda é Roberto DaMatta que lança luzes sobre essa figura do “indivíduo” consagrada pela sociedade ocidental moderna: “... repositório de sentimentos, emoções, liberdade, espaço interno, capaz portanto de pretender a liberdade e a igualdade, sendo a solidão e o amor dois de seus traços básicos (...) e o poder de optar e escolher, um dos seus direitos mais fundamentais” (1990, p. 181). Diferentemente, Milú é um homem fortemente marcado pelas “redes de sociabilidade” tradicional: a família faz parte de um desses campos de pertencimento social. Nosso personagem é uma pessoa fortemente entranhada nos cipós de solidariedade social familiar. Roberto DaMatta explica-nos o significado da noção de pessoa: “o indivíduo contido e imerso na sociedade (...) a entidade capaz de remeter ao todo, e não mais à unidade, e ainda como o elemento básico através do qual se cristalizam relações essenciais e complementares do universo social” (1990, p. 182). Assim como observamos no reisado, os passos dados por Milú e seus parentes são, em 82 grande parte, condicionados por sua inserção familiar. É no jogo das interações entre as famílias que muitas das escolhas e comportamentos são tomados pelos indivíduos. A família é uma espécie de segunda identidade que localiza a pessoa num universo de valores e potencialidades. Ser ou não trabalhador, ser ou não justo, ser ou não correto e tantas outras possibilidades de caráter ou de comportamento podem ser medidas pelo pertencimento familiar. Se não é um princípio absoluto, por sua vez serve como parâmetro que orienta determinadas escolhas, negócios e até casamentos. Sobre sua juventude, o próprio Raimundo Milú faz questão de diferenciá-la da juventude atual. Um comportamento que singulariza essa juventude contemporânea é sua postura passiva, como quando senta um grupo de jovens numa mesa para beber e despender muito dinheiro: a banca se fecha entre eles. Seja um pequeno grupo, seja uma grande roda, eles se colocam alheios às demais pessoas que estão no espaço a sua volta. Tive oportunidade de constatar essa postura juvenil nos “movimentos” feitos no terreiro de seu Raimundo Milú: os jovens sempre se posicionam em uma ou duas bancas distantes dos demais participantes. Diferentemente, as outras pessoas posicionam suas cadeiras ou mantem-se em pé, de modo a não fechar-se num círculo: o posicionamento delas sempre permite ver e comunicar-se com as demais. Um “movimento” (leilão, ensaio do reisado, bingo, festa de aniversário, reisado etc.) é uma oportunidade para rever parentes, compadres, afilhados e amigos, atualizar as informações, matar saudades, recordar, conversar, de um modo que todos circulem livremente e possam sair de uma roda de prosa para outra. A abertura para a interação com todos é uma característica forte desses encontros coletivos. Importante ressaltar que o sentido de festa e brincadeira, para Milú, está intimamente associado ao mundo social do qual faz parte. Brincar, divertir não se realiza num desejo de fuga ou esquecimento temporário dos compromissos sociais a que todos estão sujeitos. Pelo contrário, quando se brinca ou se diverte, reafirmam-se suas posições sociais como pessoa de família, trabalhador que ajudou a criar os irmãos, aquele amigo de todos. A brincadeira do reisado também apresenta esse caráter de festa reafirmadora de uma determinada moralidade comunitária. 83 Como bem realça o brincante, sua condição de dono do reisado começou muito cedo: “eu recebi eu tinha doze anos. E de doze anos pra cá eu venho enfrentando”. Se o mesmo não se recorda quando iniciou o seu interesse pela brincadeira, lembra-se, no entanto, quando recebeu do “velho” que brincava o reisado na comunidade – aos doze anos. Antes mesmo de casar já conquista o reisado o que lhe é motivo de grande dedicação e profundo orgulho. No ano de 2010, comemorou cinquenta anos como “dono” do reisado. Além de demonstrar desde muito jovem identificação com a brincadeira, importante por em relevo a sua afirmação “de doze anos pra cá eu venho enfrentando”: enfrentar significa estar continuamente lutando pela tradição. Tradição não é algo dado e inatacável. Para sua manutenção, é necessária a dedicação de seus atores associada à luta constante. Por outro lado, suas palavras traduzem também o caráter desse homem: Raimundo Milú é um homem dedicado e perseverante nas coisas que faz. Tenacidade e capacidade de articulação e motivação dos parceiros, famílias e comunidades levam à resistência do reisado. No depoimento de sua filha que acompanha o reisado, constata-se que a “empolgação” e “prazer” de Milú contagiaram muitos de seus filhos: da festa de Reis realizada anualmente participam filhos, esposa, genro, noras e alguns, netos além da colaboração de outros parentes e vizinhos. “A gente, assim, faz as coisa tudo aqui em casa”: a casa é o espaço privilegiado para as festas (seja o reisado, seja a “festinha dos pais” ou a “festinha das mães”). A casa é também lugar de reunir todos, pois fazem parte de uma só família. Sentir-se parte de uma mesma família contribui para que o espaço da casa seja vivido como extensão daquela determinada rede de relações comunitárias. Seu filho Francisco recorda-se de como era a antiga casa de seus pais onde atualmente está construída sua casa: “era um galpão já apropriado pra ele fazer as festa dele, né? Tinha uns batentezim aqui, um bocado de batente. Mas quando ele fazia festa aqui era lotado”. Sua antiga residência era também seu local de festas: desde festas movidas ao som das velhas radiolas e dos vinis de outrora ou por pequenos grupos musicais de forró ou seresta. Importante reconhecer na 84 memória de seu filho o fato de não haver distância entre o espaço doméstico e o das festas. Essa conjunção de espaços mostra bem o caráter desse homem amante de festas (das quais também advinha uma parte do sustento de sua família). Se sabemos que “prazer” e “empolgação” são expressões recorrentes para explicar o vínculo entre Milú e as festas, por outro lado, identificamos que o mesmo obtém uma determinada renda, não somente pelas festas que realiza, mas também pelos leilões que “grita”. No entanto, essa associação entre a realização de festas e a remuneração advinda das mesmas não é destacada pelas falas de seus familiares e amigos. Pelo contrário, em muitos momentos, é elogiado o desapego do brincante em relação ao acúmulo de pecúlio, principalmente quando se referem à brincadeira do reisado. Sobre este, há mais citações de “prejuízos”, “despesas” do que obtenção de alguma renda. Termos como dinheiro e lucro são evitados. Não que sejam pessoas desinteressadas ou que não possuam necessidades materiais. O que verificamos, além das reservas de escrúpulo em tornar públicas suas movimentações econômicas, é a relevância dada ao ato em si de festejar e brincar: “é prazer mesmo”. Sua satisfação pessoal reside muito mais fortemente nas inúmeras espécies de reconhecimento social que ele conquistou do que em qualquer outra coisa: o maior gritador de leilão da região, um negociante honesto, organizador de grandes e animadas festas onde toda família pode frequentar, uma pessoa amiga e solidária, um bom pai, esposo e avô, o “homem do reisado”, um homem batalhador e determinado, um homem de boa prosa e fácil relacionamento etc. Uma espécie de honra social conquistada por seus posicionamentos, valores e ações em sua família e nas comunidades. Essa dignidade social o faz ser o que é. Seus relatos sempre nos levam a contemplar esse conjunto de atributos que o torna respeitado por sua família, comunidade e região. Apesar do menor ou maior retorno pecuniário, sua maior recompensa está na continuidade daquelas inúmeras formas de reconhecimento social conquistadas durante toda sua vida: as festas que organiza refletem também essa postura frente ao mundo. E o que são essas festas? Além de colocar-se como um momento de diversão – desde o ato 85 de divertir-se com o(a) namorado(a) ou com um grupo de amigos ao exercício de jogos de sedução, ou, simplesmente beber e conversar com os colegas –, a festa mostra-se como uma oportunidade de relacionar-se (principalmente os festejos, as serestas, os leilões ou as festas pretéritas). Esses “movimentos” festivos são oportunidades singulares de interação e reconhecimento social. Por um lado, aqueles que vão às festas têm uma oportunidade singular de rever e interagir com pessoas simplesmente conhecidas ou com aquelas que mantêm alguma relação de afeto e/ou de parentesco. Nessas interações, reforçam-se os laços de proximidade, afeto e companheirismo. Do mesmo modo, são momentos nos quais suas identidades também são reforçadas. Os registros sociais de cada pessoa (pai, agricultor, estudante, mãe, gritador de leilão, comerciante, criador de animais, presidente da associação, homem de farinhada, jogador de futebol, artesã, revendedora de cosméticos etc.) são reafirmados por meio da interação com as pessoas conhecidas das comunidades. São ocasiões para as pessoas reanimarem suas identidades sociais: ao revigorarem suas personas sociais, confirmam para si e para todos o que elas são. Ir a uma festa pressupõe disponibilizar-se para a interação social entre pessoas simplesmente conhecidas ou muito próximas, graças aos laços de parentesco ou amizade. Diferentemente dos grandes centros urbanos, os “movimentos” nas comunidades rurais são frequentados por pessoas que guardam entre si algum grau de afinidade – o que leva os seus participantes a comportarem-se de uma forma bem própria. Uma festa é um momento oportuno para animar suas referências de identificação social. Crianças e jovens solteiros colocam-se relativamente alheios a esse processo continuado de reafirmação de identidades. Mas, à medida que esses jovens se casam, passam a animar essas trocas sociais. Podemos afirmar que a identificação de Milú com a organização de festas desde criança e o fato dos “movimentos” acontecerem no seu quintal, levam-no a tratar as festas com certa pessoalidade. Ali não está acontecendo tão somente um evento que visa ao entretenimento de seus participantes e que, para o seu organizador, não passa de uma fonte de obtenção de renda. Milú 86 organiza festas, pois sente prazer em reunir as pessoas e divertir-se com elas. Como já explicamos, a recompensa financeira é necessária, mas não é uma condição imprescindível. No dia de Reis, há, na parte da tarde, a matança do boi – é o último dia de brincadeira – e, à noite, há o que sua filha Conceição denomina “festa dançante”, com uma grande banda de forró de um município vizinho. Sobre esta festa dançante recai a cobrança de uma entrada que serve para custear as despesas, mas a brincadeira da tarde, até poucos anos atrás, não onerava quem quisesse participar: “à tarde, até uns três anos atrás, era tudo liberado, sabe, as porta tudo de graça. As pessoas vinham, assistiam a brincadeira e tudo”. Para aqueles que se estendiam na brincadeira ou que desejavam ficar para a “festa dançante”, sempre era oferecida uma refeição: “a gente faz a comida e tudo assim. Se, no dia, o pessoal não quiser esperar pra jantar e tudo, aí fica as coisas aí. Às vezes, à noite, vende na festa, na madrugada, às vezes, chega uma pessoa pedindo comida”. O importante é receber bem a família dos “capitães” que já havia acolhido os brincantes em suas casas, bem como todos os demais convidados (parentes e amigos de Raimundo Milú). Ao tempo que a festa de Reis serve para aquele homem retribuir a gentileza dos outros em terem-no acolhido junto com os demais brincantes, ela promove aquele momento de alegria e prazer para todos. Raimundo Milú não associa o reisado ao cumprimento de uma promessa: “isso é um trabalho que eu gosto e não é promessa”. Não constatamos nenhum momento de devoção ou oração entre os brincantes, à exceção do hino de Santo Reis e o terço rezado no dia vinte e oito de dezembro, antes do “ensaio geral” do reisado, realizado no quintal de sua casa à noite; oração esta aclamada somente pelas mulheres (sua esposa, filha, cunhadas e demais convidadas). Tampouco na festa de Reis, realizada na tarde do último dia, é feita alguma oração. O que se constatou foi um ato profano onde expressões como “prazer”, “diversão”, “felicidade”, “realização”, “trabalho”, “serviço” são empregadas inúmeras vezes para explicá-lo. Por outra vez, é um “serviço pesado” porque “dá trabalho demais!”. É um trabalho a serviço da “diversão” e do “prazer” de todos. Ele sai 87 de banca em banca cumprimentando os amigos e parentes, relembra histórias e atualiza os últimos acontecimentos em suas andanças e de seus convidados. E assim vai urdindo com seus convidados os fios que unem a trama social de suas vidas. Durante esses encontros, a memória desses sujeitos e de suas comunidades é rememorada por meio de suas narrativas e causos. Raimundo Milú é essa pessoa profundamente vinculada aos códigos de vivência comunitária. A totalidade de Raimundo Milú está presente tanto nas festas como no convívio cotidiano nas comunidades. Sua pessoa não se cinde em “especialidades” que são interpeladas conforme o ambiente ou a atribuição social que esteja exercendo: no momento em que realiza uma festa, não se comporta tão somente como um organizador que deve cuidar da segurança e tranquilidade de seus clientes e almeja lucrar. Aqueles tempo e espaço da festa continuam comunicando-se com os tempos e espaços da não festa: ele permanece sendo o velho Milú, parente de muitos dos participantes, uma pessoa que acompanhou o crescimento de grande parte daqueles jovens, padrinho de alguns deles e “... que o pessoal respeita muito”. Não se trata de um respeito racional devido àquele proprietário do clube. Diferentemente, é um respeito relacional (DAMATTA, 1990) movido pela convivência com aquela pessoa conhecida por todos e que há décadas organiza festas naquela comunidade. Diferentemente das demais festas onde “os dono da festa não tão nem aí não”, Raimundo Milú “vai lá, conversa com a pessoa”. Novamente verificamos que, para ele, a festa é mais que um negócio: há também um conjunto de responsabilidades sociais com as quais ele se sente à vontade para arcar além de sentir prazer pelo que está fazendo. Amabilidade, generosidade, persistência, firmeza, sabedoria, bom humor são outros tantos ingredientes dessa figura carismática que somente pela convivência com a comunidade fomos observando e identificando-os. Não é somente uma pessoa, é um homem singular. Essa figura generosa e sempre disposta a retribuir os favores dos amigos e conhecidos são características desse homem: “nada pra ele vale nada”. Seu desprendimento e capacidade de corresponder aos favores e 88 gentilezas recebidos é fato reconhecido por todos. Assim, esse homem vai conquistando admiração e respeito. Sua forte figura social foi construída paulatinamente no decorrer de tantas festas, de sua integração ao cotidiano comunitário, de atos de solidariedade, de posturas dignas etc. Todos reconhecem a sua “autoridade” na comunidade. Certamente que sua posição como “dono” do reisado, uma tradição da comunidade, projeta-o como figura representativa da localidade. É um homem que “não abre”: ao receber um convite ou um pedido, sempre está disposto a aceitar. Mesmo que lhe custe uma forte rouquidão. Certamente que todo leilão tem sua recompensa financeira (ou um valor fixo, ou um percentual sobre o valor arrecadado) e ele é a principal figura provedora de sua família. No entanto, o maior motivador para sua dedicação são sua paixão e orgulho pelo que faz. Raimundo Milú demonstra forte orgulho sobre suas habilidades e sobre tudo o que realiza. Além de seu vigor físico (apesar do corpo franzino), demonstra uma personalidade forte e tenaz. Em suas posturas e escolhas, constatamos uma positividade bastante evidente. Em seus discursos, não se ressaltam as dificuldades e obstáculos; pelo contrário, destacam-se resoluções e realizações. Por esse motivo, seu discurso é envolvente e persuasivo. Impossível não acreditar em suas palavras e não se sentir motivado para acompanhar suas festas e tudo o mais que ele faz. Sua sabedoria ressalta que “ajuda-se quem tem precisão”. Associada a ela, soma-se um pungente senso de generosidade: “porque eu tenho pena quando eu vejo uma pessoa com necessidade acolá e, se eu puder ajudar, eu ajudo. Não sei por que é não, mas, se eu puder ajudar eu ajudo”. Esta disposição interior de colaborar com um amigo ou parente está nele como uma de suas grandes virtudes. O sentido de solidariedade é o que mais caracteriza sua condição de “homem público”: não tem envolvimento com política sindical, partidária ou comunitária. Quando incluíamos essa temática em nossas conversas, desconversava ou expressava abertamente a sua reprovação a esses matizes da política. Se seu filho Francisco o denominou como “homem público”, deve-se às suas práticas de solidariedade e as suas qualidades como figura comunitária excepcional. Por essas razões, construiu, com a ajuda dos filhos, a casa do pandeirista Luís, um homem simples e 89 muito calado que o acompanha nas brincadeiras de Reis. Os brincantes não são somente companheiros de pândegas e outras troças: são homens moralmente comprometidos uns com os outros. Importante ressaltar também que suas experiências de solidariedade sempre contam com a participação de algum filho: a família sempre se envolve com os atos de generosidade do pai. Essa pessoa eminentemente vinculada pelas teias sociais das quais faz parte (pai, parente, amigo, negociante polivalente, pedreiro, gritador de leilão, promotor de festas e brincante de reisado) a projeta como pessoa “pública” capaz de aconselhar, “ajudar”, negociar, brincar e viver intensamente seus vínculos familiares e comunitários. E os habitantes da região reconhecem suas iniciativas: Essa figura com forte representatividade social, de grande credibilidade e capaz de ajudar amigos e parentes é o “dono” do reisado do Cipó de Baixo: uma pessoa, desde tenra idade, marcada por valores de responsabilidade, generosidade, alegria, solidariedade, positividade e apreço familiar. Reflete fortemente os valores e atitudes esperadas pelos moradores da comunidade. Por essa razão, as festas de Reis ainda hoje permanecem graças às relações de parentesco, amizade e liderança comunitária compartilhadas por aquelas pessoas e suas famílias. O reisado do Cipó resiste pois ainda mantem-se firme uma sociabilidade comunitária que o sustenta. 4) Referências BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. BITTER, Daniel. A bandeira e a máscara: a circulação de objetos rituais nas folias de reis. Rio de Janeiro: 7Letras; Iphan/CNFCP, 2010. CASCUDO, Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2001. CORNELIO, Paloma Sá de Castro. Reisado careta: brincadeira para louvar Santo Reis. Disponível em: http://www.tedebc.ufma.br//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=376. Acesso em julho de 2012. DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Guanabara, 1990. 90 DURKHEIM, Émile. Sociologia. José Albertino Rodrigues (org.). São Paulo: Ática, 1995. _________________. Educação e Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2011. GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2007. SOUSA, Luciano de Melo. Perfil sócio-político da juventude de Lagoa do Sucuruju (Pedro II). Teresina: mimeo, 2011. 91 Conhecimento: desafio para as exportações brasileiras Knowledge: challenge to brazilian exports Silvana Schimanski1 Recebido em 24/4/2012; revisado e aceito em 12/03/2013 “Com o tempo, tudo virará commodity” Steve Heyer Resumo: Este trabalho apresenta o conhecimento como um desafio para as exportações brasileiras. Entende-se que o desafio seja aplicá-lo na transformação de algo que a princípio não é considerado em termos econômicos, em algo que possa ser comercializável. A abordagem é qualitativa baseada em fontes secundárias e com finalidade analítica. Conclui-se que o país tem apresentado um retorno às características de “país agroexportador” e uma alternativa viável, seria investir mais em conhecimento a fim de diversificar a inserção internacional. Palavras-chave: Comércio. Exportações. Conhecimento. Abstract: This article presents knowledge as a challenge to Brazilian exports. Is here considered as the challenge to transform something that, at first is not considered in economic terms, in something that can be marketable. This paper has qualitative approach, based on secondary sources with analytical purposes. It is possible conclude that the country has shown a return to the characteristics of "agro-export country" and a viable alternative, would be invest in knowledge in order to diversify the international insertion. Key words: Trade. Exports. Knowledge. INTRODUÇÃO O comércio é, em essência, uma das forças capazes de promover o desenvolvimento econômico e o bem-estar nos países. Entre os defensores do livre comércio, há o entendimento de que essa prática oferece insumos para equilibrar o balanço de pagamentos, a possibilidade de troca de tecnologias e que seus ganhos podem ser utilizados em melhorias das condições sociais, ambientais, de infra-estrutura, entre outros. No debate moderno sobre comércio e desenvolvimento, merece destaque Raúl Prebisch2. Em seus textos, o autor ensina que a solução não está em crescer à custa do comércio exterior, mas saber extrair do comércio exterior cada vez maior, os elementos propulsores para o 1 Graduada em Administração com Habilitação em Comércio Exterior pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutoranda do Curso de Relações Internacionais da UNB. Bolsista do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). ([email protected]). Versão preliminar deste artigo foi apresentada como avaliação da Disciplina Relações Internacionais no Pós II Guerra Mundial, do Curso de Doutorado em Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UNB), ministrada pelo Prof. Dr. Argemiro Procópio, no primeiro semestre de 2011. 2 Economista argentino, que foi um dos mais destacados intelectuais da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). 92 desenvolvimento econômico (PREBISH, 2000, p.73). Na década de sessenta, autor preocupava-se com a relação de dependência que se estabelecia nas relações comerciais internacionais. Os países em desenvolvimento e de menor desenvolvimento relativo dependentes das exportações produtos primários, cujos preços se depreciavam ao longo das décadas, em virtude da utilização de novas tecnologias e produção em escala 3. Esses por sua vez, importavam produtos manufaturados dos países desenvolvidos, cujos preços eram cada vez mais elevados, em virtude da alta tecnologia e das pesquisas realizadas para desenvolvê-los. Prebisch assim, sugeria que para romper com essa dependência seria necessário uma uma mudança na estrutura produtiva, tornando-a mais diversificada e complexa, com o fim de incorporar na atividade econômica e social, o conhecimento. A obtenção do desenvolvimento, de uma maneira geral não poderia se dar com a exploração exclusiva de produtos primários, uma vez que que os avanços tecnológicos de conhecimento, abrangem todos os tipos de atividades industriais e cadeias de valor agregado (FERRER, 2010). Nesse sentido, este trabalho discute a primarização da pauta de exportação brasileira na última década, que vem impulsionada pela alta dos preços dos prudutos primários no mundo, bem como os parcos esforços no sentido de buscar a comoditização, ou seja, novos elementos comercializáveis, como alternativas viáveis para gerar ingressos financeiros e um desenvolvimento sustentável para o país. A hipótese central é que mesmo com os preços dos produtos primários em alta, o Brasil deve atentar para a criação de alternativas ao modelo agroexportador. Entende-se que o país não está cuidando devidamente de áreas que podem representar ganhos maiores para o país, a médio e longo prazo, como é o caso do setor de serviços e o rico conhecimento tradicional que o vasto território possui. Assim, na primeira parte do trabalho, é realizada uma breve abordagem das características 3 Demonstrou a deterioração do poder de compra da principal fonte de renda dessas economias: os produtos primários, em geral. Do contrário, os bens industrializados, com maior valor agregado, importados dos países mais desenvolvidos, não deixavam de valorizar-se (PREBISCH, 1964). 93 das exportações brasileiras. Na segunda parte, são apresentados os elementos considerados ainda desafiadores para a inserção internacional do país: o setor de serviços e a administração do conhecimento tradicional. 1 A PRIMARIZAÇÃO DAS EXPORTAÇÕES BRASILEIRAS É necessário um breve olhar sobre as estatísticas do comércio exterior brasileiro do ano de 2011 para compreender a situação do país no contexto internacional. No ano, registrou-se corrente de comércio (soma em valores das exportações e importações) recorde: US$ 482,3 bilhões. As exportações encerraram o período com valor de US$ 256,0 bilhões e as importações de US$ 226,2 bilhões (BRASIL, 2012). Tais números acenam para a recuperação do comércio do país no período pós crise financeira do ano de 2008 e um saldo positivo na Balança Comercial. Estados Unidos, China e Argentina são respectivamente os três principais fornecedores, com 37% de tudo que é comprado pelo país. Os mesmos países, são os principais compradores de mercadorias brasileiras, com 36,3% de tudo o que é vendido, havendo apenas uma inversão para a China como principal comprador, seguido dos Estados Unidos e Argentina (BRASIL, 2012). Os Bens de Capitais e Bens Intermediários representam mais da metade da pauta importadora. Já nas exportações, os produtos básicos alcançaram 47,8% do total de produtos exportados (BRASIL, 2012). Um dos grandes desafios das relações comerciais internacionais é manter em valores, o equilíbrio entre o que se exporta e o que se importa e pelo que aponta o resultado da Balança Comercial, que é positiva em US$ 29,8 bilhões isso está ocorrendo e representa um desafio às premissas de Prebish. A Figura 1 apresenta o Gráfico das exportações brasileiras, por fator agregado, considerando a participação dos produtos básicos, semimanufaturados e manufaturados no volume total das exportações da década de 1960 até 2010. É possível observar que os produtos básicos sofreram um declínio como principais elementos da pauta de exportações até o ano 2000. Os semimanufaturados 94 não tem sofrido grandes variações ao longo das décadas. Ao contrário dos produtos manufaturados, que viveram o período áureo de crescimento e participação na pauta até os anos 1980, mantiveramse relativamente no mesmo patamar até o ano 2000, quando, começa a ocorrer um considerável declínio da sua participação nas exportações. Figura 1: Exportação Brasileira por Fator Agregado. Fonte: BRASIL (2011a). Essa situação preocupa, pois estratégico para um país com proporções continentais como o Brasil, seria justamente buscar a aproximação de parceiros que favorecessem a ascensão tanto a curva dos produtos básicos quanto a dos manufaturados, além de prover as outras formas de inserção rentáveis, baseadas na vocação local: serviços, conhecimento tradicional baseado na biodiversidade local, etc. Considera-se que a industrialização é o processo socioeconômico que visa transformar uma área da sociedade em fonte de maior riqueza e lucro. Isso se dá por meio da implantação de máquinas em processos produtivos que substituem a força humana, aumentando a produtividade e a escala diminui os preços. A preocupação em agregar valor ao que se produz é constante, já que tem 95 estreita relação com a saúde econômica, tanto da sociedade quanto do país. Portanto é preocupante a observação das estatísticas comerciais que apontam uma tendência à primarização4 das exportações brasileiras, ou seja, o aumento da participação dos produtos primários ou com baixo grau de industrialização. Uns diriam que não é uma situação preocupante, pois esta é uma tendência mundial, impulsionada por países como a China e India, que estão em processo acelerado de urbanização e ao mesmo tempo, não são capazes de produzir todos os alimentos e energia que consomem nesse processo5. Ambos tem contribuído para o aumento dos preços internacionais dos produtos primários e para o crescimento da participação destes produtos no comércio mundial. Por isso vale destacar o estudo realizado por Negri e Alvarenga (2011) sobre a participação dos produtos de diferentes intensidades tecnológicas nas exportações mundiais (2000-2009), que aponta para o gradual incremento da participação de produtos primários e um leve declínio dos bens de alta intensidade tecnológica. Os produtos primários no ano 2000 participavam com 11,6% e os produtos com alta intensidade tecnológica com 30,4%. Em 2009, os primários representavam a maior escala do período, com 13,4%, enquanto os de alta intensidade, 28,8%. Mas, para Negri e Alvarenga (2011) esse aumento de participação dos produtos primários no mercado mundial não foi tão intenso quanto o que está acontecendo na pauta de exportações brasileira. Desde os anos 1990 sua participação nas exportações brasileiras oscila ao redor de 40%. Mas entre 2007 e 2010, esta participação alcançou 51%. Esse movimento de primarização da pauta de exportações brasileiras se acentuou com a crise econômica internacional e com o fato de que a China, continuou crescendo, cerca de 80%. O 4 Observa-se que a primarização dos serviços ou mão-de-obra é a denominação dada a inversão do processo de terceirização. Este conceito surgiu no ínicio do século XXI como vertente contrária aos efeitos negativos da proposta de terceirização de mão-de-obra. As principais referências são as de Peter Drucker, Michael Porter, Eugene Brigham e Luciano Trindade. 5 Buscar a entrevista da Secretaria de Comércio Exterior, Tatiana Lacerda Prazeres, para o Programa Agenda Econômica da TV Senado. Exibido em 16/09/2011 e Disponível em: <http://www.senado.gov.br/noticias/TV/programaListaPadrao.asp?ind_click=6&txt_titulo_menu=Agenda Econà ´mica&IND_ACESSO=S&IND_PROGRAMA=S&COD_PROGRAMA=6&COD_VIDEO=115903&ORDEM=0& QUERY=&pagina=2>. 96 Brasil aumentou seu nível de exportações de minérios (principalmente de ferro) em relação a 2009 e este produto foi o principal responsável pelos 51% do total de exportações de produtos primários em 2010. (NEGRI; ALVARENGA, 2011). Entre 2006 e 2009 o Brasil perdeu market share mundial em todos os grupos de produtos, exceto commodites e petróleo. Ou seja, nos últimos três anos, a primarização da pauta de comércio do país não é apenas resultado do bom desempenho das exportações brasileiras de commodities, mas também reflete a perda de competitividade do país no comércio internacional em todos os outros grupos de produtos especialmente os mais intensivos de tecnologia BRASIL (2011b). Em 2000, o Brasil respondia por 0,88% do comércio mundial de bens e chegou a 2010 com uma participação de 1,3% (BRASIL, 2012). Apesar disso, observa-se que o aumento esteve concentrado nas commodities enquanto perdeu mercados em industrializados de baixa, media e alta intensidade tecnológica, movimentos os quais merecem atenção6. Apesar de Negri e Alvarenga (2011) não concordarem com a tese da desindustrialização, há sim o risco do deslocamento produtivo para áreas com crescimento da demanda e rentabilidade e isso tem impactos sobre as decisões de investimento na economia brasileira. Porque embora as exportações de commodities tenham desempenhado um papel importante na sustentação do saldo comercial recentemente, os efeitos da primarização da pauta de exportações podem acarretar efeitos danosos para a estrutura produtiva montada, no longo prazo. De acordo com dados da CNI (2011) a indústria brasileira iniciou o ano de 2011 em ritmo moderado e com os níveis de atividade abaixo do usual. Tal ritmo repercute negativamente nas condições financeiras das empresas, sobretudo as de menor porte. Para IPEA (2011), o aumento dos preços nos mercados de commodities tem sido o principal 6 “Quaisquer que sejam as causas para a primarização da pauta, o fato é que esse tipo de inserção comercial e seu aprofundamento no período recente certamente trazem preocupações para o desempenho futuro da economia brasileira. Ao observá-la, alguns economistas tem falado em uma suposta desindustrialização. Parece prematuro, todavia defender a tese da desindustrialização em um cenário de crescimento econômico que é duradouro quando comparado com a história recente do país, e que só foi brevemente interrompido em 2009, em virtude da crise. Ao que tudo indica, o crescimento da demanda doméstica tem sustentado, até o momento, o aumento da produção industrial do país, mesmo em face da perda de market share internacional em produtos de maior valor agregado” (NEGRI; ALVARENGA, 2011, p. 11) 97 responsável pelo bom desempenho da Balança Comercial. Negri e Alvarenga (2011) apontam que os fatores que conduziram ao ciclo de valorização das commodities podem se sustentar por um tempo ainda relativamente longo uma vez que este ciclo está associado com o desequilíbrio na oferta mundial de alimentos que tende a se manter nos próximos anos. Além disso, a China, o maior parceiro comercial do Brasil, ainda tem um longo processo de urbanização pela frente. Tal realidade preocupa porque, se mesmo em tempos de preços baixos, os produtores rurais pouco fizeram para buscar alternativas à agricultura, com a alta dos preços “[...] o modelo exportador abocanha florestas e cerrados numa compulsiva sede por superávits na balança comercial” (PROCÓPIO, 2011, p.57). Além disso, o país que não produz tecnologia de forma competitiva, também não poderá exportar tecnologia. Por isso, políticas de inovação são fundamentais para agregar valor à estrutura produtiva. Negri e Alvarenga (2011) apontam que é necessário fazer apostas ousadas na produção de conhecimento e de inovações na economia brasileira, estimulando setores e/ou tecnologias nas quais o país teria condições de se tornar um ator relevante. Acredita-se que, acima de tudo, é preciso que as políticas sejam capazes de fomentar novos setores, novas atividades e novos negócios. 2 COMODITIZAÇÃO: alternativa estratégica para as exportações Embora alguns autores7 optem pelo termo de comoditização, numa referência a commodity (produtos primários), para este trabalho, optou-se utilizar o termo comoditização para a transformação de “conhecimento” ou coisas consideradas sem valor, em algo comercializável. Segundo a Enciclopédia de Marxismo, comoditização (ou comodificação) é a transformação coisas que podem não ser normalmente percebidos como bens e serviços (a exemplo de seres humanos, meio ambiente) em algo com valor no mercado. Segundo D’Aveni, (2011) a comoditização ocorre quando há um aperfeiçoamento constante com relação à qualidade ou outras vantagens do produto. O mercado consumidor é ávido por 7 Souza;Borges e Neto (2010, p.1); Procópio (2011, p. 63). 98 novidades e a subjetividade é um elemento importante e deve ser explorado, como o desejo de adquirir algo que faz bem à natureza, a exclusividade no acesso a algo produzido com base no conhecimento específico de uma tribo distante, o atendimento personalizado, etc. D’Aveni defende que as novas idéias são geradas pela mistura de experiências, culturas e conhecimentos, portanto a commodity depende de visão para apreender o que cada local, cada cultura e cada especificidade tem a oferecer. Nesse contexto, acredita-se que o Brasil precisa investir no desenvolvimento de áreas como Serviços e Conhecimento Tradicional. 2.1 Serviços Este é um setor bastante favorável, pois custa menos a criação de um emprego em serviços do que na indústria, por exemplo. Além disso, enquanto a indústria tende a automação, reduzindo a participação humana, o setor de serviços não consegue facilmente prescindir o elemento humano, sua inteligência e conhecimento: agências de propaganda, escolas, consultorias, clínicas médicas são fortemente dependentes das pessoas que ali trabalham. Os serviços representam uma importante atividade econômica e estes podem ser comercializados internacionalmente, caracterizando o comércio internacional de serviços, que é definido como “[...] movimento transfronteira de invisíveis ou de pessoas que os executam, sem envolver mercadorias” (MERCADANTE, 2000, p. 106). A comoditização dos serviços, nesse sentido, consiste em agregar algum diferencial para a customização e diferenciação: e as pessoas são essenciais nesses processos, bem como sua formação e por isso representam um desafio para o Brasil. Por meio da publicação Panorama do Comércio Internacional de Serviços (BRASIL, 2012b) a Secretaria de Comércio e Serviços, divulga o desempenho do setor. Verifica-se que o país está na 31º posição nas exportações mundiais de serviços e os principais fornecedores mundiais são: Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França e China. O Saldo Comercial do Setor de Serviços no Brasil ainda é negativo, apontando que a 99 dependência de prestadores de serviços internacionais tem sido significativamente maior que nossas prestações de serviços para o exterior. O país vem acumulando, crescentes déficits na Conta de Serviços: de US$ 7,6 bilhões em 2005 para US$ 29,4 bilhões em 2010 (BRASIL, 2012b). As exportações brasileiras de serviços são fortemente concentradas o que evidencia outro desafio: a necessidade de diversificação de parceiros. Os EUA importam 42,1% e os outros 57,9% estão pulverizados entre diversos importadores, dos quais os mais significativos são países da União Européia (31,2%). Segundo dados do mesmo relatório, no que se refere à importação de serviços a concentração é um pouco menor, ainda que bastante elevada: os EUA correspondem a 28,2%, a União Européia a 49,6% e os demais a 22% (BRASIL, 2012b). E por meio dos saldos da conta de Serviços, é possível verificar que o Brasil tem acumulado gastos consideráveis especialmente com aluguéis de equipamentos, viagens, serviços de transportes, computação, Royalties e Licenças (BRASIL, 2012b). Os desafios para o Brasil nesse contexto seriam: em primeiro lugar, investir na formação humana e capacitação técnica, (uma vez que serviços empresariais, profissionais e técnicos dependem de Engenheiros, Arquitetos, Profissionais Liberais, Publicidade, Atletas, Projetos, etc). Em segundo lugar, diversificar os seus parceiros comerciais, por meio de parcerias verdadeiramente estratégicas. Em terceiro lugar, estimular, por meio de políticas, empresas de todos os portes e pessoas físicas a comercializarem internacionalmente os seus serviços e por último, mas não menos importante, prospectar internamente novas fontes de recursos de Royalties e Licenças, como aquelas oriundas do conhecimento tradicional. Uma recente iniciativa que pode ser citada como exemplo, nesse sentido, é a adotada pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que simplificou os procedimentos para Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro (SICAB), (que simplifica o cadastro dos trabalhadores e permite a emissão da Carteira Nacional do Artesão e da Carteira Nacional do Trabalhador Manual) e está realizando diversas atividades como o Programa do 100 Artesanato Brasileiro (PAB), com vistas a consolidar o artesanato brasileiro como setor econômico de desenvolvimento das comunidades, a partir da consideração de que a atividade é disseminada em todo território nacional, possuindo variações e características peculiares conforme o ambiente e a cultura regional (BRASIL, 2011c). Esse tipo de iniciativa contribui para a inclusão de atividades locais na geração de emprego e renda além de valorizar o que o país tem de característico na sua inserção internacional. 2.2 Conhecimento tradicional Conhecimento tradicional consiste na informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local8, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético9. Para Santos (2011) o "conhecimento tradicional" constitui-se de práticas, conhecimentos empíricos e costumes passados de pais para filhos e crenças das comunidades tradicionais que vivem em contato direto com a natureza; ou seja, é o resultado de um processo cumulativo, informal e de longo tempo de formação. Constitui-se, assim, patrimônio comum do grupo social e tem caráter difuso, pois não pertence a este ou aquele indivíduo mas a toda comunidade. O Brasil é especialmente favorecido com tais conhecimentos, dada a sua extensão territorial, biodiversidade e multiplicidade étnica. Historicamente, o uso dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais têm sido apropriados de forma injusta, muitas vezes agravada pelo uso das patentes. A isso se dá o nome de Biopirataria 10. Ao longo dos séculos, inúmeros são os exemplos: no século XVI, o uso das propriedades corantes do Pau Brasil na Europa; no século XIX, o envio de mudas de seringueira para a Ásia determinando a ruína econômica da cultura no norte do país; e recentemente, o uso do veneno da jararaca como base para um dos fármacos anti8 São os pescadores artesanais, os seringueiros, a comunidade quilombola formada pelos negros e índios remanescentes de quilombos, a população ribeirinha, entre outras. 9 Art. 7º, II, da Medida Provisória 2186-16/2001. 10 O termo "biopirataria" não existe juridicamente; fala-se, na verdade, em "acesso não autorizado a recursos genéticos presentes na biodiversidade e a conhecimentos tradicionais associados". 101 hipertensivos mais comercializados no país, com faturamento anual de milhões de dólares (BRASIL, 2011c). O combate à biopirataria, nesse contexto, é mais um desafio que o Brasil deve enfrentar como uma estratégia para seu comércio exterior, tendo em vista que podem representar ganhos financeiros e acima de tudo, preservação. Ela representa um claro exemplo de como os recursos de países em desenvolvimento podem ser acessados sem consentimento e transformados em direitos proprietários de fortes grupos econômicos, os quais passam a vendê-los aos próprios detentores originais desses materiais biológicos. A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), de 1992, prevê o acesso ao patrimônio genético, proteção e acesso ao conhecimento tradicional, repartição de benefícios, transferência de tecnologias para sua conservação e utilização. Em linhas gerais, propõe regras para assegurar a conservação da biodiversidade, o seu uso sustentável e a justa repartição dos benefícios provenientes do uso econômico dos recursos genéticos. Importante sublinhar que a referida Convenção, em seu preâmbulo reconhece a “estreita e tradicional dependência de recursos biológicos de muitas comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais”. Estabelece também em seu artigo 8, “j”, que “os países signatários devem preservar o conhecimento e práticas das comunidades locais e encorajar a repartição dos benefícios oriundos da aplicação destes conhecimentos". As críticas à Convenção são que ela notadamente privilegia os aspectos econômicos em detrimento da proteção. O Brasil instituiu um órgão governamental, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), responsável por autorizar e dar anuência ao Contrato de Repartição de benefícios que se estabelece entre a comunidade e empresas interessadas. E uma Legislação nacional 11 para regular o acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado, bem como a repartição dos benefícios derivados do seu uso. Por meio da Legislação, resguardou-se para o detentor do conhecimento tradicional, o 11 Medida Provisória 2.186-16, de 23 de Agosto de 2001. 102 direito de decidir sobre o acesso de terceiros à informação e de participar da repartição dos benefícios derivados de sua utilização, além de se regular a transferência de conhecimentos a respeito do patrimônio genético brasileiro. O sistema estabelece que atividades com potencial comercial, dependem de autorização como para os casos pesquisa científica e bioprospecção. No caso da bioprospecção, exige-se um Contrato de repartição de benefícios. Segundo divulgado pelo Ministério do Meio Ambiente (BRASIL, 2011c), os benefícios monetários ou não, são negociados diretamente com os proprietários das áreas (públicas ou privadas) onde se encontram os recursos genéticos ou com as comunidades detentoras de conhecimentos tradicionais associados. Enzo Roppo critica: [...] a MP que disciplinou o acesso ao conhecimento tradicional, transformou a comunidade em Sujeito de Direito, o conhecimento tradicional associado à biodiversidade em mercadoria, negociado mediante contrato de repartição de benefícios. Tais processos encontram-se de acordo com as exigências da expansão do capital, que centra a sua ação estratégica na eliminação de todo e qualquer obstáculo que possa se opor à livre e segura circulação dos bens. (ROPPO, 1988, p.29-31) Em verdade, esse direito, no seu aspecto prático, visa precipuamente a evitar a exploração das tradições das comunidades, sem que lhes reverta qualquer benefício; tutelando-se o uso deste conhecimento. Mas a verdade, é que a exploração muitas vezes continua ocorrendo por outras vias, já que os grupos sociais detentores desse conhecimento são presas fáceis aos interesses das grandes indústrias. As demoradas discussões para a regulamentação doméstica e internacional 12 sobre aspectos relacionados ao conhecimento tradicional, favorecem as grandes indústrias que se utilizam de diferentes estratégias para a compra do conhecimento tradicional. Neto e Dantas (2010, p. 4519) observam que os investimentos das indústrias tem se dirigido no sentido de compor um “estoque de conhecimentos tradicionais” para utilização posterior e criticam o tratamento da questão como um negócio. Afora as posturas idealistas e críticas sobre o fato de transformar a natureza em mercadoria, 12 Um dos conflitos entre a CDB e o tratado internacional Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS) é que, enquanto a CDB, estabelece princípios de repartição justa e equitativa dos benefícios, valorização dos conhecimentos tradicionais entre outros, o sistema de patentes do TRIPs protege, assegura monopólio e propriedade àquele que detém e desenvolve novas tecnologias e produtos, inclusive os oriundos da biodiversidade acessada por meio de conhecimento tradicional 103 a grande preocupação está em repartir esses benefícios de forma justa, com aquelas populações e de orientá-las que seu conhecimento tem valor incomensurável. Os ideais de preservação e conservação do meio ambiente que compõe as campanhas publicitárias das empresas que vendem os produtos, cujas origens remontam ao conhecimento tradicional, transformam-se em excelentes recursos a serem incorporados à marca. Esses lucros sequer são objeto de negociação dos contratos de repartição dos benefícios, mesmo que esse rendimento resulte do acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade (NETO, DANTAS, 2010, p. 4331). Segundo dados disponibilizados pelo Ministério do Meio Ambiente (BRASIL, 2011c), mesmo após duas décadas da CDB, a situação ainda pouco se alterou. Uma análise sobre patentes concedidas a produtos ou processos elaborados à partir de espécies de plantas brasileiras revela a dimensão desta problemática, já que em nenhum destes casos houve solicitação de acesso para o uso destes recursos genéticos, conforme demonstra a Tabela 1, cujos países usuários são, Estados Unidos, Japão, França, Alemanha, Suíça, Polônia, Países Baixos e Áustria. Espécie No. De Patentes após a CDB Unha de Gato 26 Copaíba 09 Jaborandi 22 Andiroba 6 Tabela 1: Patentes concedidas a produtos ou processos elaborados à partir de espécies de plantas brasileiras sem solicitação de Licença Fonte: BRASIL, (2011c). Há que atentar para essa área e proteger o conhecimento tradicional do povo brasileiro, pois estes têm sido utilizados e pesquisados como uma via rápida de se alcançar resultados para a indústria. Coloca Procópio (2011, p. 32) que “[...] preconceitos e ausência de erudição ensinam ser inútil receber lições do povo. Camadas e camadas de verniz cultural e pouco conteúdo relegam ao esquecimento línguas ouvidas na fronteira brasileira, como o guarani, o aimará e o quíchua”. Particularmente, é possível contribuir com o Professor e complementar que além das línguas, ao conhecimento tradicional por muito foi guardado o rótulo de crendice e agora vale correr atrás do prejuízo e tentar resgatar o que ainda resta dessa commodity tão preciosa que guarda o povo do país: 104 o conhecimento. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Já que o comércio é uma das vias para atrair recursos para o desenvolvimento econômico, o ideal seria que estratégias de exportações fossem pensadas de forma a incrementá-lo usufruindo o que se tem em abundância e que melhores resultados gerassem, especialmente no médio e longo prazo. Se o interesse é pensar a curto prazo e manter a Balança Comercial com saldo positivo, a estratégia das exportações de produtos primários é adequada, pois está aproveitando a recente onda de aumentos dos preços internacionais. Mas a médio e longo prazo não se pode afirmar, uma vez que os preços dessa categoria de produtos variam muito no cenário internacional. Se o interesse é ampliar as possibilidades de inserção internacional do país, valorizando aspectos que permitam maior inclusão social e as características únicas do seu povo, é chegada a hora de estabelecer mecanismos que estimulem a expansão do conhecimento para estimular o setor de serviços e por sua vez, proteger o conhecimento tradicional. Não há apenas como pensar que as parcerias externas serão a solução para as dificuldades comerciais se o país não realizar um investimento massivo em educação e pesquisa. Como apontado, a comoditização requer identificação de vantagens, peculiaridades e a inclusão de elementos subjetivos nos produtos finais. Assim, o desafio para o país é estabelecer mecanismos de inserção internacional que permitam ao país vender de uma maneira equilibrada e sustentável, o que tem de melhor e não aquelas relações que perpetuam a lógica do país “celeiro do mundo”. 105 Referências BRASIL. MEDIDA PROVISÓRIA nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001 . Regulamenta o inciso II do § 1o e o § 4o do art. 225 da Constituição, os arts. 1o, 8o, alínea "j", 10, alínea "c", 15 e 16, alíneas 3 e 4 da Convenção sobre Diversidade Biológica, dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização, e dá outras providências. _____. Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Secretaria de Comércio Exterior. Departamento de Desenvolvimento e Planejamento do Comércio Exterior (Depla). 2011a. ______. Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Secretaria de Comércio Exterior. Anuário Estatístico 2011. Brasília: Maio, 2011b. ______. Ministério do Meio Ambiente. Acesso e repartição de benefícios no Brasil: Brasil, um país megadiverso e sociodiverso. 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Palavras-chave: Antonio Gramsci. história italiana. questão nacional Abstract: The approach developed in this text corresponds to a reflection of Antonio Gramsci in relation to understanding the origins of the Italian national question. For the author of Prison Notebooks the starting point to discern the matter involving the Italian nation should be the Roman Empire. In the present discussion will be demonstrated precisely the Gramsci's analysis for the long historical movement between ancient Rome and the Renaissance, emphasizing the key elements of the later construction of the Italian nation. Keywords: Antonio Gramsci. Italian history. national issue. Gramsci definindo o tema Segundo Gramsci, a vida nacional italiana somente se torna uma questão político-cultural sistematizada e publicizada, a partir de Nicolau Maquiavel (século XVI). Além disso, somente com o pensamento maquiaveliano é que a construção da nação italiana passa a ser problematizada e refletida de um modo progressista e popular. Todavia, o autor sardo, em algumas passagens dos Quaderni del carcere identifica que, como problema concreto e histórico, o início da questão nacional italiana é ainda mais antigo. Isso fica evidente, quando ele analisa certos aspectos do Império Romano. Como o próprio pontua: A mudança da condição da posição social dos intelectuais em Roma, do tempo da República ao Império (de um regime aristocrático-corporativo a um regime democráticoburocrático), está ligada a César, que conferiu a cidadania aos médicos e aos mestres das artes liberais, a fim de que habitassem com mais satisfação em Roma e de que outros fossem para lá atraídos (...) César, portanto, se propõe: 1) estabelecer em Roma os intelectuais que já residiam nela, criando assim uma categoria permanente deles, pois sem a permanência não se podia criar uma organização cultural. Havia antes uma flutuação, que era preciso deter, etc.; 2) atrair para Roma os melhores intelectuais de todo o Império Romano, promovendo uma centralização de grande alcance. Tem assim início aquela 1Doutor em Ciências Sociais pelo IFCH/UNICAMP. Professor de Ciência Política da FCH/UFGD. Endereço: Rodovia Dourados – Itahum, Km 12, Dourados – MS, CEP: 79.804-970. Email: [email protected] 108 categoria de intelectuais “imperiais” em Roma, que continuará no clero católico e deixará muitas marcas em toda a história dos intelectuais italianos, com sua característica de “cosmopolitismo” até o século XVIII. (GRAMSCI, Quaderno 8, 2001, p. 954) No entanto, de acordo com o pensamento gramsciano, o “cosmopolitismo”, fenômeno bastante prejudicial à vida nacional italiana e muito forte entre seus intelectuais, ainda exercia influência e poder em sua época. Um bom exemplo era Benedetto Croce que foi uma importante influência para os intelectuais e para o Estado da Itália (BUCI-GLUCKSMANN, 1990), mas, em vários momentos, sentia-se descolado dos conflitos existentes na realidade (MORDENTI, 2007). Na verdade, em praticamente todos os temas presentes nos Quaderni é possível notar a preocupação do autor em inserir a questão nacional no interior do amplo processo histórico da península. As questões do presente são constantemente ligadas às heranças do passado. Sobre a nação, essa forma de análise foi corrente, ou seja, Gramsci, partindo da necessidade de pensar um projeto nacional progressista para sua realidade contemporânea, lança-se ao desafio de compreender a complexa história italiana. Como se sabe um dos principais momentos históricos da Itália, relacionado diretamente à questão nacional, corresponde ao Risorgimento. Aliás, a análise feita por Gramsci sobre esse processo de unificação do Estado-nação italiano, merece um espaço especifico de reflexão, o que não é o caso da presente abordagem. O que de fato interessa agora é o planejamento de pesquisa feito pelo autor, no início do caderno 19 – responsável pelo Risorgimento. Nele, são destacados alguns momentos da história da península, com o intuito de se entender a formação político-social da vida nacional dos italianos. Segundo sua leitura, era necessário desenvolver uma dupla série de investigações: uma sobre a Era do Risorgimento e uma segunda sobre a precedente história que teve lugar na península italiana, por ter criado elementos culturais que tiveram uma repercussão na Era do Risorgimento (...) e também continuam a operar (ainda que como dados ideológicos de propaganda) na vida nacional italiana... (GRAMSCI, Q. 19, 2001, p. 1959) Neste seu plano de pesquisa, o autor seleciona algumas discussões centrais da história anterior ao Risorgimento. Para ele, a série de investigações sobre o longo processo histórico que antecedeu a unificação nacional, ocorrida somente no final do século XIX, deveria ser orientada por 109 um “conjunto de ensaios sobre as épocas da história européia e mundial que tiveram um reflexo na península.” (Idem) Os temas privilegiados deveriam ser: 1) Os diversos significados que teve a palavra “Itália” nas diferentes épocas (...); 2) O período da história romana que marca a passagem da República ao Império, por criar o quadro geral de algumas tendências ideológicas da futura nação italiana. (...) Este nexo histórico é da máxima importância para a história da península e de Roma, porque é o início do processo de “desnacionalização” de Roma e da península e de sua transformação em “terreno cosmopolita”. A aristocracia romana, que, com os modos e os meios adequados ao tempo, tinha unificado a península e criado uma base de desenvolvimento nacional, é sobrepujada pelas forças imperiais (...); 3) Idade Média ou Era das Comunas, em que se constituem molecularmente os novos grupos sociais urbanos, sem que o processo atinja a fase mais alta de maturação, como na França, na Espanha, etc; 4) Era do mercantilismo e das monarquias absolutas, que na Itália, precisamente, tem manifestação de escasso alcance nacional porque a península está sob a influência estrangeira, ao passo que nas grandes nações européias os novos grupos sociais urbanos, inserindo-se poderosamente na estrutura estatal de tendência unitária, fortalecem a própria estrutura e o unitarismo, introduzem um novo equilíbrio nas forças sociais e criam para si as condições de um desenvolvimento rapidamente progressivo. (GRAMSCI, Q. 19, 2001, pp. 1959-60). Portanto, o quadro de pesquisas sobre a história e a vida da nação italiana deveria dar conta de várias questões. Em sua opinião, esse conjunto de investigações tinha que ser desenvolvido e difundido para um público determinado, com o objetivo de se contrapor a certas concepções antiquadas, escolásticas e retóricas, fontes de idéias nacionalistas e naturalistas sobre a história nacional italiana, absorvidas passivamente em razão do predomínio do “senso comum” existente num dado ambiente de cultura popular. Com isso, pretendia-se suscitar um interesse científico pelas questões abordadas, as quais mesmo situadas no passado deveriam ser tratadas como vivas e operantes também no presente, como forças em movimento, sempre atuais (GRAMSCI, Q. 19, 2001). Império Romano e o cosmopolitismo Ainda que a discussão sobre a nação seja iniciada no mundo antigo, especificamente no Romano, Gramsci não pretende defender a presença de um “sentimento nacional” já nesta época. Para ele, afirmar a existência de uma “nacionalidade” na península na época do Império Romano era ser anti-histórico, “pois era impossível falar nessa época de fenômeno ‘nacional’, mas somente de romanismo que unifica juridicamente a Itália (e uma Itália que ainda não corresponde ao que 110 hoje entendemos por Itália...)” (GRAMSCI, Q. 17, 2001, p. 1935) Dialogando com o autor Augusto Rostagni – defensor da existência de uma literatura latina como expressão de um sentimento nacional, no período das Guerras Púnicas – Gramsci argumentará: Que Rostagni tenha razão ao falar de “autonomia” da literatura latina, ou seja, de sustentar que esta é autônoma com relação à literatura grega, é algo que pode ser aceito; mas, na realidade, existia mais “nacionalidade” no mundo grego do que no romano-itálico. Ademais, mesmo que se admita terem as primeiras guerras púnicas modificado algo nas relações entre Roma e a Itália, que tenha ocorrido uma maior unidade até mesmo territorial, isso não altera o fato de que este período é muito breve e tem escassa importância literária: a literatura latina floresce após César, com o Império, isso é, precisamente quando a função da Itália torna-se cosmopolita, quando não mais se coloca o problema da relação entre Roma e a Itália, mas entre Roma-Itália e o Império. Não se pode falar de nacional sem o territorial: em nenhum desses períodos, o elemento territorial teve uma importância que não fosse meramente jurídico-militar, isto é, “estatal” em sentido governamental, sem conteúdo ético-passional. (GRAMSCI, Q. 17, 2001, pp. 1935-36). Aqui fica evidente a preocupação do autor em conectar as questões que o incomodavam no presente ao passado, mas sem criar uma história natural da nação italiana. Como já foi possível perceber, para Gramsci, somente seria possível compreender a questão nacional de seu país uma vez recuperado o passado. E dentro dos quatro pontos ressaltados, referentes ao período anterior ao Risorgimento, apenas o primeiro não teve maior desenvolvimento. Entender certos elementos de Roma Antiga se colocava como fundamental para o reconhecimento de aspectos importantes do período posterior dominado pela Igreja Católica. Eram nessas duas grandes épocas que se encontravam os fundamentos da “nação” moderna italiana. Para o autor, um dos possíveis vínculos entre uma e outra, poderia ser visualizado por meio da forma de relacionamento existente entre imperador/súdito e o papa/fiéis. Como o respeito e o culto ao Imperador significavam o fim das diversas diferenças morais, culturais e políticas – entre os mais variados povos conquistados, isto é, a igualdade na obediência e na reverência para com um indivíduo – Gramsci argumenta que: “o culto do imperador liga-se ao império universal e ao cosmopolitismo, cuja expressão necessária é o império.” (GRAMSCI, Q. 5, 2001, p. 668) Dessa forma, o autor sugere a seguinte questão: Seria interessante ver se se tentou encontrar um vínculo entre o culto do imperador e a posição do papa como vigário de Deus na terra. Decerto, tributam-se honrarias divinas ao 111 papa e ele é chamado de “pai comum”, como Deus. O Papado teria feito uma mistura entre os atributos do Sumo Pontífice e os do Imperador divinizado... (GRAMSCI, Q. 5, 2001, pp. 668-69) Gramsci, então, parece acreditar na absorção de uma certa herança imperial na Igreja romana. E esta, por sua vez, foi difundida pela Igreja durante a Idade Média. Assim, por meio do “Papado, deve ter nascido também o direito divino das monarquias, reflexo do culto imperial.” (GRAMSCI, Q. 5, 2001, p. 669) Portanto, a Igreja, ao que tudo indica, absorveu profundamente importantes princípios da cultura dos romanos, por ela negados quando do seu momento originário. Por exemplo, um dos principais motivos das perseguições sobre os cristãos, na Roma imperial, deuse justamente por eles negarem o culto tanto ao Imperador quanto a qualquer divindade pagã. Então, a incorporação de certas tradições romanas pode ser uma das explicações do predomínio do caráter “cosmopolita” dos intelectuais italianos, tão prejudiciais ao desenvolvimento das bases iniciais de uma nacionalidade na península, durante a Idade Média e mesmo no chamado Renascimento. A “romanização” do “mundo clássico promovida por Cesar foi obra da ação dos chamados intelectuais “imperiais”, substituídos após a queda do Império pelo clero católico e pela difusão do catolicismo enquanto cosmovisão da medievalidade, que perdurou até a emergência do movimento renascentista, espécie de “internacional espiritual” que, favorecida pelo cosmopolitismo humanista e laicizante de intelectuais sobretudo italianos e franceses, desenvolveu e cristalizou um novo tipo de cultura transnacional, agora de conteúdo mais profano e secularizado, adaptado às exigências de uma nova era de transformações econômicas e políticas que estava a exigir padrões de comportamento mais racionalizados. (MELLO, 1996, p.59) Os impactos dos cenários sócio-econômicos e político-culturais do Império Romano, foram decisivos para a futura organização nacional italiana. E será partindo deste contexto que Gramsci analisará o Renascimento. Renascimento, Igreja e Intelectuais O Renascimento é um período fundamental para o pensamento gramsciano e que certamente tem centralidade em suas pesquisas acerca da história italiana. Recorrendo a outro autor, Gramsci expõe: 112 Para Rossi, corretamente, o reflorescimento dos estudos em torno das literaturas clássicas foi um fator secundário, um indício, um sintoma, e não o mais visível, na formação da essência profunda da época que traz o nome de Renascimento. ‘O fato central e fundamental, a partir do qual todos os outros germinam, foi o nascimento e o amadurecimento de um novo mundo espiritual, que, a partir da enérgica e coerente virtude criativa que se libera, após o ano Mil, em todos os campos da atividade humana, foi então trazido à cena da história não somente italiana, mas européia’. Depois do ano Mil, inicia-se a reação contra o regime feudal, ‘que deixava sua marca em todos os aspectos da vida’ (através da aristocracia fundiária e do clero): nos dois ou três séculos seguintes, transformase profundamente a ordem econômica, política e cultural da sociedade: revigora-se a agricultura, reanimam-se, ampliam-se e organizam-se as atividades industriais e comerciais; surge a burguesia, nova classe dirigente...(GRAMSCI, Q. 5, 2001, pp. 640-41) Então, o Renascimento significou um movimento muito mais amplo do que aquele de recuperação da literatura e da arte clássicas. Todavia, diferentemente de outros países, neste momento, as Comunas burguesas da península não foram capazes de romper com a sua fase político-social corporativa de interesses imediatos. O que facilitou o predomínio da anarquia feudal sobre a nova situação burguesa contribuindo para a dominação estrangeira (GRAMSCI, Q. 5, 2001). Portanto, a não projeção “nacional” das Comunas, durante o período renascentista, acabou possibilitando a invasão na península de forças externas. Para o autor, era importante compreender a função histórica das Comunas e da primeira burguesia italiana, que teve um papel desagregador da unidade existente, sem saber ou sem poder substituí-la por uma nova e própria unidade: o problema da unidade territorial não foi nem sequer colocado ou suspeitado e este florescimento burguês não teve continuação: foi interrompido pelas invasões estrangeiras. O problema é muito interessante do ponto de vista do materialismo histórico e, ao que me parece, pode ser relacionado com o problema da função internacional dos intelectuais italianos. (...) por que Cristóvão Colombo serviu à Espanha e não a uma república italiana? Por que os grandes navegadores italianos serviram a outros países? A razão disso tudo deve ser buscada na própria Itália (...) A burguesia se desenvolveu melhor, nesse período, com os Estados absolutistas, isto é, com um poder indireto, e não quando tinha todo o poder. Eis o problema, que deve ser relacionado com o dos intelectuais: os núcleos burgueses italianos, de caráter comunal, tiveram condições de elaborar uma categoria própria de intelectuais imediatos, mas não de assimilar as categorias tradicionais de intelectuais (particularmente o clero), as quais, ao contrário, mantiveram e acresceram seu caráter cosmopolita. Já os grupos burgueses não italianos, através do Estado absolutista, alcançaram esta finalidade muito facilmente, pois absorveram os próprios intelectuais italianos. Esta tradição histórica explica, talvez, o caráter monarquista da burguesia italiana moderna e pode contribuir para uma melhor compreensão do Risorgimento. (GRAMSCI, Q. 5, 2001, pp. 568-69) Portanto, a preocupação em encontrar as raízes da questão nacional italiana, fez o autor analisar de perto a particularidade da formação social e política da península. Sem descartar, ao mesmo tempo, o contexto internacional do período histórico analisado. De certo modo, foi sobre essa frágil base político-social “nacional” legada pelas Comunas que o movimento renascentista se colocou como “tradutor” da antiga Roma. 113 Sobre esse vinculo à cultura românica, argumenta-se: A arquitetura românica. Rossi tem muita razão ao afirmar que todas estas manifestações, desde 1000 até 1300, não são fruto de artificiosa vontade imitadora, mas manifestação espontânea de uma energia criativa, que vem de dentro e torna aqueles homens capazes de sentir e de reviver a antiguidade. Esta última proposição, porém, é errônea, porque aqueles homens, na realidade, tornam-se capazes de sentir e de viver intensamente o presente, mas, em seguida, forma-se um estrato de intelectuais que sente e revive a antiguidade e que se afasta cada vez mais da vida popular, porque a burguesia, na Itália, decai ou se degrada até o fim do século XVIII. (GRAMSCI, Q. 5, 2001, p. 644) Essa é uma passagem central para se entender a questão nacional italiana, pois aqui Gramsci identifica no processo de formação do Renascimento, o momento em que os intelectuais passam a se distanciar do “povo”, em decorrência da debilidade da principal classe progressista e popular da época: a burguesia. O retorno ao mundo antigo, principalmente ao romano, fez os renascentistas incorporarem além da literatura e das artes em geral, também uma forma de relacionamento distante para com o “povo”. Ao ser o palco de Roma e do Império, a península italiana acabou sendo um ponto de encontro das classes cultas de todos os territórios imperiais. Assim, os “quadros dirigentes” se tornavam “cada vez mais imperiais e cada vez menos latinos”, ou seja, tornavam-se “cosmopolitas: mesmo os imperadores não” eram “latinos, etc.” Existe, portanto, Uma linha unitária no desenvolvimento das classes intelectuais italianas (que operaram no território italiano), mas esta linha de desenvolvimento não é de modo algum nacional: o fato leva a um desequilíbrio interno na composição da população que vive na Itália, etc. (GRAMSCI, Q. 3, 2001, p. 371) Esta é uma indicação importante para se entender os intelectuais e as conseqüências de sua formação na península. Como exemplo do “espírito anti-nacional” dos renascentistas, a língua falada pelos grandes artistas e pensadores não se popularizou, criando mais um obstáculo para o surgimento de uma unidade nacional. Sobre a existência de um “bilingüismo” entre os intelectuais da época, isto é, o “latim” e o “vulgar”, Gramsci questiona a interpretação de Rossi. Segundo a análise gramsciana, este autor não soube explicar o bilingüismo dos intelectuais. Não quis admitir que o “vulgar”, para os humanistas, era como um dialeto, isto é, não era visto como uma expressão nacional. Por isso, os 114 humanistas acabaram sendo os continuadores do universalismo medieval, certamente sob outras formas, desconsiderando os elementos potencialmente nacionais. Para o autor sardo, os intelectuais do Renascimento podem ser considerados como uma “casta cosmopolita” que via a Itália simplesmente como um lugar sem vida própria. Por isso, não se interessavam pelos problemas políticos e “nacionais” da península (GRAMSCI, Q. 5, 2001). Ainda sobre a trajetória da língua na relação intelectuais/“povo-nação”, ressalta-se o seguinte: Latim literário e latim vulgar. Do latim vulgar, desenvolvem-se os dialetos neolatinos, não só na Itália, mas em toda a área européia romanizada; o latim literário se cristaliza no latim dos doutos, dos intelectuais, o chamado “latim médio” (...) que não pode ser comparado absolutamente com uma língua falada, nacional, historicamente viva, ainda que não possa tampouco ser confundido com um jargão ou com uma língua artificial como o esperanto. De qualquer modo, existe uma fratura entre o povo e os intelectuais, entre o povo e a cultura. Também os livros religiosos são escritos em latim médio, de modo que mesmo as discussões religiosas escapam ao povo, embora a religião seja o elemento cultural predominante: da religião, o povo vê os ritos e ouve as prédicas exortativas, mas não pode acompanhar as discussões e os desenvolvimentos ideológicos, que são monopólio de uma casta. (GRAMSCI, Q. 3, 2001, pp. 353-54) Um dos elementos que motivaram o nascimento da Reforma Protestante foi justamente a crítica a esta elitização da língua e do conhecimento. Assim, a partir da defesa de uma língua falada e escrita “nacionalmente”, os reformadores acabaram estabelecendo um vínculo estreito entre intelectual/povo. Na Itália, a falta de uma produção literária voltada às massas populares fazia com que elas não tivessem nenhum acesso ao universo da política. A utilização do latim, enquanto língua erudita estava intimamente ligada ao cosmopolitismo católico. E essa distinção, quase que originária, entre intelectual/“povo-nação”, será sentida fortemente séculos mais tarde. De um modo sintético, pode-se dizer que na Itália – de 600 d.C., quando se pode presumir que o povo não mais compreenda o latim dos doutos, até 1250, quando começa o florescimento do vulgar, isto é, durante mais de 600 anos – o povo não compreendia os livros e não podia participar no mundo da cultura. O florescimento das Comunas faz com que as línguas vulgares se desenvolvam, e a hegemonia de Florença empresta unidade ao vulgar, isto é, cria um vulgar ilustre. Mas o que é esse vulgar ilustre? É o florentino elaborado pelos intelectuais da velha tradição: é florentino no vocabulário e também na fonética, mas é um latim na sintaxe. De resto, a vitória do vulgar sobre o latim não era fácil: os doutos italianos, com exceção dos poetas e dos artistas em geral, escreviam para a Europa cristã e não para a Itália, eram uma concentração de intelectuais cosmopolitas e não nacionais. A queda das Comunas e o advento do principado, a criação de uma casta de governo separada do povo, cristalizam esse vulgar, do mesmo modo que se havia cristalizado o latim literário. O italiano é 115 novamente uma língua escrita e não falada, dos eruditos e não da nação. (GRAMSCI, Q. 3, 2001, p. 354) Nesta passagem, fica evidente a profundidade social na qual o distanciamento entre intelectuais e classes populares foi submetido. Aqui também fica explicito a complexidade e o alto grau de dificuldade para qualquer movimento político-cultural que tivesse como meta a superação desse tipo de ligação. Afinal, foram muitos séculos baseados numa relação estranhada entre um e outro, com avanços e retrocessos. Por muito tempo, praticamente não houve qualquer construção de uma “subjetividade histórica” coletiva e “nacional-popular” fundamental para a península. Ao fim de todo esse processo, restaram duas línguas eruditas na Itália: o latim e o italiano, e este último termina por preponderar e por triunfar completamente no século XIX, com a separação entre os intelectuais laicos e os eclesiásticos (os eclesiásticos continuam ainda hoje a escrever livros em latim, mas hoje até o Vaticano usa cada vez mais o italiano quando trata de coisas italianas; e assim terminará por fazer em relação aos outros países, em concordância com a sua atual política das nacionalidades). De qualquer modo, pareceme que se deva estabelecer o seguinte ponto: que a cristalização do vulgar ilustre não pode ser separada da tradição do latim médio e representa um fenômeno análogo. Após um breve parênteses (liberdades comunais), no qual ocorreu um florescimento de intelectuais saídos das classes populares (burguesas), houve uma reabsorção da função intelectual na casta tradicional, onde os elementos singulares são de origem popular, mas onde o caráter de casta prevalece neles sobre suas origens. Em suma: não se trata de um estrato da população que, chegando ao poder, cria seus intelectuais (o que ocorreu no século XIV), mas de um organismo tradicionalmente selecionado, que assimila aos seus quadros indivíduos singulares (o típico exemplo disto é dado pela organização eclesiástica). (GRAMSCI, Q. 3, 2001, pp. 354-55) Em outras palavras, mesmo quando houve o surgimento de alguns intelectuais originados dos setores populares, logo suas forças foram absorvidas pelos estratos superiores de casta. Esse processo impedia a existência de um vínculo entre intelectuais/povo, mesmo quando aqueles tinham como origem este. Recorrendo a um outro autor (G. Toffanin), Gramsci reforça a idéia de que “o fato verdadeiramente característico do Humanismo ‘é a paixão pelo mundo antigo, através da qual, quase subitamente, mediante uma língua morta, tenta-se suplantar uma língua popular...’” (GRAMSCI, Q. 7, 2001, p. 905) E a Igreja desempenhou um papel importante neste processo, pois ela “favoreceu a separação entre cultura e povo iniciada com o retorno ao latim, considerando-a como uma sadia reação a toda indisciplina mística.” (GRAMSCI, Q. 7, 2001, p. 906) De maneira 116 geral, a Igreja foi “uma organização intelectual cosmopolita.” (PORTELLI, 2002, p.114) Como forma de justificar suas preocupações com a história da língua no território italiano, afirma: parece-me que, entendida a língua como elemento da cultura e, conseqüentemente, da história geral, e como manifestação precípua da ‘nacionalidade’ e ‘popularidade’ dos intelectuais, este estudo não é ocioso e puramente erudito. (GRAMSCI, Q. 3, 2001, p. 355) O autor dos Quaderni, diz ainda: Toffanin nega que o Humanismo desemboque vivo na Reforma, já que esta – com sua separação da romanidade, com a desforra rebelde dos idiomas vulgares e com muitas outras coisas – renova as agitações da cultura comunal (...), contra a qual surgira o Humanismo. (GRAMSCI, Q. 7, 2001, p. 906) Aceitando as argumentações deste seu interlocutor, Gramsci afirma que o Humanismo não esteve em oposição à Igreja Católica. Na verdade, o movimento humanista foi o primeiro fenômeno ‘clerical’ no sentido moderno, uma Contra-Reforma por antecipação (de resto, era Contra-Reforma em relação à época comunal). Eles (os humanistas) se opunham à ruptura do universalismo medieval e feudal que estava implícita nas Comunas e que foi sufocada no nascedouro, etc. (GRAMSCI, Q. 7, 2001, p. 907) Segundo argumenta, a “Comuna era uma heresia em si mesma, pois devia entrar tendencialmente em luta com o papado e tornar-se independente dele.” (Q. 7, 2001, p. 906) Na verdade, existiu uma relação significativa entre o êxito político das forças restauradoras (culminando na Contra-Reforma) e o caráter cultural antipopular do Humanismo (FROSINI, 2007). As forças oriundas do Vaticano desempenharam “um papel muito significativo nesse processo, pois desenvolveram uma política voltada para o atendimento de seus interesses na Europa, deixando em segundo plano a Itália.” (BEIRED, 1998, p. 126) Ainda sobre esse diálogo é possível ver o seguinte: Estas teses de Toffanin coincidem freqüentemente com as notas que já redigi em outros cadernos. Só que Toffanin se mantém sempre no campo cultural-literário e não põe o humanismo em conexão com os fatos econômicos e políticos que se desenvolviam na Itália no mesmo período: passagem aos principados e às senhorias, perda da iniciativa burguesa e transformação dos burgueses em proprietários rurais. O Humanismo foi um evento reacionário na cultura porque toda a sociedade italiana estava se tornando reacionária. (GRAMSCI, Q. 7, 2001, p. 906) Por esses e outros motivos que para o autor, Maquiavel e Lutero podiam ser situados fora do movimento humanista, afinal eles lutaram contra as tradições mais atrasadas da época e buscaram 117 uma ligação com as massas populares. O “humanismo do Renascimento foi um movimento cultural essencialmente elitista sem conseqüências para além das classes dominantes.” (CREHAN, 2004, p.106) Na história da península os exemplos de tentativas de unificar “intelectual” e “povo”, por meio da língua, de acordo com a reflexão do autor sardo, deu-se precisamente até o século XVI, quando Florença exerce uma hegemonia cultural ligada à sua hegemonia comercial e financeira (o papa Bonifácio VIII dizia que os florentinos eram o quinto elemento do mundo), há um desenvolvimento lingüístico unitário a partir de baixo, que vai do povo às pessoas cultas, desenvolvimento reforçado pelos grandes escritores florentinos e toscanos. Após a decadência de Florença, o italiano torna-se cada vez mais a língua de uma casta fechada, sem contato vivo com uma fala histórica. (GRAMSCI, Q. 23, 2001, p. 2237) Em outras palavras: os italianos possuíam uma língua literária normativa e padronizada desde o fim da Idade Média ou começo do Renascimento. Pode-se reconhecer que essa variação normativa da língua talvez só fosse usada por uma minoria (na Itália, afirmou-se que essa minoria continuou minúscula pelo século XIX adentro), não havendo penetração nas camadas inferiores da sociedade ou das regiões periféricas. (GELLNER, 2000, p. 137) Ainda no início do século XIV, Dante representou essa tentativa de se construir uma língua unitária para a península, o que não se transformou em movimento cultural amplo. Justamente pelo caráter predominantemente elitista das origens da cultura moderna italiana que o Humanismo e o Renascimento foram considerados “essencialmente reacionários do ponto de vista nacionalpopular”, mesmo apresentando certos elementos progressistas no âmbito da alta cultura, restrita aos “grupos intelectuais italianos e europeus.” (GRAMSCI, Q.29, 2001, p. 2350) Na verdade, a “questão da língua”, foi uma reação dos intelectuais ao esfacelamento da unidade política que existiu na Itália sob o nome de “equilíbrio dos Estados italianos”, ao esfacelamento e à desintegração das classes econômicas e políticas que se vinham formando após o século XI com as Comunas, e representa a tentativa, que em grande parte pode-se dizer exitosa, de conservar, e mesmo de reforçar, uma camada intelectual unitária, cuja existência devia ter um significado não insignificante nos séculos XVIII e XIX (no Risorgimento). (GRAMSCI, Q.29, 2001, p. 2350) Em parte, a destruição desta “unidade” ocorreu porque as “cidades-Estado italianas nunca 118 tentaram – individual ou coletivamente – uma transformação deliberada do sistema de governo medieval.” (ARRIGHI, 2007, p. 239) De maneira ampla, Gramsci ao identificar os intelectuais de toda uma época com a expressão “anacionais”, na realidade está afirmando, em termos políticos, que eles não participaram ativamente do processo histórico concreto, em curso na península. Não se preocuparam com os problemas centrais da península – como, por exemplo, a exploração de seu território por potências estrangeiras (BURGIO, 2002; 2007). Um dos motivos que poderia explicar, segundo Gramsci, o caráter tardio da unificação nacional italiana estaria justamente na configuração cosmopolita dos intelectuais (COUTINHO, 2003). Existiam duas correntes político-sociais em luta no século XVI, sendo a de caráter conservadora mais poderosa e por isso vitoriosa sobre a progressista. Este ganho não se fundamentou, obviamente, em elementos político-nacionais, mas exclusivamente em aspectos culturais abstratos, isto é, como fenômeno de uma aristocracia separada do “povo-nação”, enquanto, no povo se preparava a reação a este esplêndido parasitismo, com a Reforma protestante (...) e outros movimentos que seria interessante registrar e analisar, pelo menos, como sintomas indiretos. O próprio pensamento político de Maquiavel é uma reação ao Renascimento, é uma referência à necessidade política e nacional de se aproximar do povo, como o fizeram as monarquias absolutistas da França e da Espanha... (GRAMSCI, Q 5, 2001, p. 648) Foi isso, então, o que o Renascimento significou para a Itália, em termos políticos, ou seja, distanciamento entre intelectuais e “povo-nação”. Diferentemente da Reforma protestante (BERMANI, 2007) e de Maquiavel (PORTANTIERO, 2003). – este no âmbito interno. Contrariando certas interpretações, o autor argumenta que apesar dos humanistas terem estendido a produção cultural da Itália a praticamente toda Europa, não houve qualquer avanço concreto e histórico para a península. Todo o desenvolvimento da cultura, neste momento, deu-se sem a presença do caráter nacional, aspecto garantido pela configuração cosmopolita dos intelectuais. Como afirna Gruppi: “a ausência de uma cultura nacional e popular é conseqüência do fato de que não se verificou na Itália uma verdadeira reforma intelectual e moral (...) A Igreja Católica não só 119 não podia guiar uma reforma intelectual e moral, como mesmo a impediu com a Contra-Reforma. ” (GRUPPI, 2000, p. 86) Portanto, o conteúdo ideológico do movimento renascentista italiano não se desenvolveu na Itália, mas na Alemanha e na França, principalmente, sob as formas cultural, política e filosófica. No caso da península, o que houve foi a necessidade de importar o Estado e a política modernos, “porque nossos intelectuais eram a-nacionais e cosmopolitas, como na Idade Média, sob formas diversas mas nas mesmas relações gerais.” (GRAMSCI, Q. 5, 2001, p. 653) Enquanto os pensadores italianos forneciam à Europa um novo olhar sobre as artes e sobre o homem, a vida concreta da Itália se esvaziava de auto-compreensão histórica. Daí a dimensão de o Príncipe de Maquiavel que didatizou as relações de poder, tão fundamentais para a construção de um Estado unificado (Monarquia Absoluta), resgatando as massas populares da península da anarquia feudal. Isso, a partir do que Gramsci chama de “grande política” (BIANCHI, 2008). No entanto, durante a Contra-Reforma católica, com o afastamento da Igreja em relação aos “humildes” para se aproximar dos “poderosos”, determinados intelectuais do Humanismo pensaram em inverter esse movimento. Tentaram criar um nexo com o “povo”, e, por isso, podem ser considerados como os primeiros precursores históricos da Revolução Francesa e do jacobinismo. Em outras palavras, contribuíram para processo que pôs fim à Contra-Reforma, difundindo a heresia liberal, muito mais eficaz contra a Igreja do que o protestantismo (GRAMSCI, Q. 25, 2001). De qualquer forma, sendo a Contra-Reforma uma saída reacionária para os problemas não apenas morais, mas também político, social e cultural, da Igreja Católica, Gramsci a identificou como uma força que sufocava o “desenvolvimento intelectual” (GRAMSCI, Q. 5, 2001, p. 614), quer dizer, impedia também o aprimoramento científico na Itália. Nos países em que a força contrareformadora era menor, maior era a liberdade científica (GRAMSCI, Q. 6, 2001). Esta saída contrapopular frente aos problemas sociais, culturais e políticos, sempre esteve presente nos momentos decisivos da história italiana. 120 A Igreja na península sempre se colocou como um problema a ser resolvido pelos movimentos político-intelectuais preocupados com a unidade nacional. Essa instituição contribuiu para a desnacionalização dos intelectuais italianos de duas maneiras: positivamente, enquanto organismo universal que preparava pessoal para todo o mundo católico; e, negativamente, obrigando os intelectuais que não queriam se submeter à disciplina da Contra-Reforma a emigrarem. (GRAMSCI, Q. 6, 2001, p. 809) Para Gramsci, o único autor renascentista importante preocupado com a necessidade de unificação político-cultural entre dirigentes e dirigidos, intelectuais e “povo”, foi Nicolau Maquiavel. Ele, na leitura gramsciana, foi o primeiro a expor em linguagem política a questão nacional da península. Considerações finais No interior das reflexões feitas por Gramsci, sobre esse longo e importante período da história italiana, existe o objetivo de compreender o seu próprio momento histórico. Todo o desdobramento político-cultural das relações sociais construídas na sociedade romana, no contexto imperial, para os italianos, não servia apenas para compreender o Renascimento e o pensamento de Maquiavel, mas também o processo de unificação nacional do século XIX – conhecido do Risorgimento. Até mesmo no século XX era possível, segundo o seu olhar, sentir a força dessa tradição cosmopolita e anti-nacional dos intelectuais italianos. Em certo sentido, Benedetto Croce expressava esse movimento, em sua época. De qualquer maneira, o período destacado aqui, entre o Império Romano e o Renascimento, coloca-se como chave para entender, por exemplo, os motivos que levaram os italianos a não construírem a sua Monarquia Absoluta, tal como fizeram os franceses e os espanhóis. Como foi demonstrado, na leitura gramsciana, o papel da Igreja foi decisivo para tal fato. A sua influência cultural e política sobre os intelectuais deu continuidade ao processo iniciado pelos romanos. Esse trabalho historiográfico de Gramsci, não tinha como objetivo a erudição, ao contrário, a sua preocupação era como, a partir de tal herança, poder-se-ia criar uma força realmente nacional na 121 península. Isso não no sentido do nacionalismo que acabou caracterizando o fascismo, por exemplo, mas na tentativa de fomentar um movimento nacional progressista partindo das classes populares, isto é, rompendo com o distanciamento entre nação/povo (BARATTA, 2004). O seu projeto original de nação, fundado no nacionalpopular (REIS, 2009), era a principal motivação para se compreender o longo e complexo processo histórico italiano. A luta que Gramsci trava contra o cosmopolitismo, ou seja, “contra a subestimação da importância de pertencer a uma comunidade nacional”, sinaliza que “a nação lhe parece uma passagem dificilmente contornável na longa marcha para a ‘reunificação do gênero humano’.” (LIGUORI, 2007, p. 70) E foi graças a esse seu esforço intelectual que pôde contribuir, de maneira singular, sobre a possibilidade de se pensar e construir uma nação partindo do popular. Referências ARRIGHI, Giovanni. As três hegemonias do capitalismo histórico. In: GILL, Stephen. (Org.) Gramsci, materialismo histórico e relações internacionais. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007, p. 227273. BARATTA, Giorgio. As rosas e os cadernos – o pensamento dialógico de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. BEIRED, José Luís Bendicho. A função social dos intelectuais. In: AGGIO, Alberto. (Org.) Gramsci: a vitalidade de um pensamento. São Paulo: UNESP, 1998, p. 121-132. BERMANI, Cesare. Gramsci gli intellettuali e la cultura proletaria. 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Tese (Doutorado), Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, SP, 2009. 123 O beco e a arte Esquizo em Natal-RN The alley and the Squizo art in Natal-RN José Marcilio de Sousa Façanha1 Recebido em 14/02/2013; revisado e aceito em 22/05/2013 Resumo: Realizamos pesquisa na cidade do Natal-RN onde buscamos compreender o ressoar de manifestações inventivas de artistas oriundos das “periferias” do campo “estabelecido” das artes plásticas na reflexão a respeito do cotidiano na cidade. Tratasse de perceberos os efeitos das criações de sujeitos-artistas de uma determinada “trama": o complexo cultural conhecido pelo nome de Beco da Lama. Palavras - chave: Arte, periferia, cotidiano. Abstract: Research conducted in the city of Natal-RN where we seek to understand the resounding demonstrations of inventive artists from the "periphery" of the "established" in the visual arts reflection on everyday in the city. Perceberos were dealing with the effects of subject-creations of artists from a particular "plot": the cultural complex known as the Beco da Lama. Key words: Art; periphery; everyday. Seja com pincel, giz de cera, lápis ou caneta, artistas da Cidade do Natal-RN transformam o complexo boêmio conhecido popularmente como Beco da Lama 2 em um espaço de exposição e criação de arte e vida. Aproveitando qualquer superfície plana, uma parcela de artistas trazem para as telas sentimentos de batalhas em um ritmo que não se podia alcançar sem a emergência de um espaço poético que cintila a verve do acontecimento da arte-esquizo que virtualmente ocorre às bordas dos campos referendados das instituições de fomento a arte e cultura. Trazemos determinada probematização a partir de nosso contágio com as práticas de alguns artistas do espaço artístico do complexo - Beco da Lama – Natal RN. Escavamos sociologicamente àquele terreno e encontramos, junto às obras, ditos e não ditos de uma poética das formas. Observamos nessa zona de contágio artístico uma emergência de si em práticas espontâneas de personagens que passaram a ser sujeitos de sua própria arte. 1 José Marcilio de Sousa Façanha é estudante do programa de Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte( Fone : 32153613), sob orientação da Prof. Dra. Norma Missae Takeuti. Atualmente é bolsista do programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI. 2 A Rua Doutor José Ivo e a Rua Cel. Cascudo - Bairro Cidade Alta\ Natal são a referencia geográfica do que seria o Beco da Lama, porém o termo Beco da Lama ganhou efeito de referência maior e agora ruas circunvizinhas também carregam esse nome extraoficialmente. Um exemplo disso é que a maioria dos eventos que ocorrem no bairro Cidade Alta levam o nome do Beco: Festival Gastronômico do Beco; MPBECO etc. 124 Deparamo-nos com um complexo artístico que parece se atualizar diariamente, e logo acreditamos estar também em meio a um cenário da emergência dos possíveis, a emergência do tempo em devir, do tempo da arte em movimento, para além de qualquer disciplinamento institucional, para além de um tempo técnico promovido por galerias, institutos oficiais, academias etc. Tratamos de uma arte que aqui chamamos arte-esquizo em alusão ao termo “esquizo” proposto por Gilles Deleuze e Félix Guatarri (1995). São formas de pensar que consideram comportamentos desviantes (semelhantes aos apresentados em um quadro clínico de esquizofrenia) como parte importante para compreende as sociedades em seus movimentos subterrâneos. O esquizo escoa por caminhos multilineares, errantes, repletos de linhas de fuga que escapam principalmente aos aprisionamentos de organizações hierárquicas. Dessa forma, surgiria também para nossa proposta a busca por um olhar – esquizo – voltado para determinados acontecimentos sociais, em nosso caso, as práticas artísticas ocorridas no Beco da Lama – Natal\RN. Seria um espaço que se aproximaria de: uma arte esquizo onde temos: obras dispostas em um universo caótico; personagens artistas das mais diversas tribos; um mundo de afetações onde a loucura é brindada, onde não existem heróis nem zona de conforto. Arte esquizo seria um conjunto de coordenadas que devem nos levar por trilhas desconhecidas, por telas sinalizando para todas as direções. Telas, esculturas, espaços de recepção e promoção se misturando a bares; sebos e oficinas; espaços boêmios; espaços marginais; poetas; bêbados; viciados; personagens de levantes artísticos que passam a ocorrer sem o intermédio das burocracias de institutos e museus. Encontramos uma arte que se alastra tal qual um rizoma que define sua própria geografia. A arte esquizo. Em sua condição de “multitude” e ocorrendo num circuito paralelo aos dos centros de controle estético ( institutos nacionais e internacionais, museus, universidades etc. ), a arte-esquizo é também aquela que encontramos ali em meio aos afazeres comuns dos frequentadores, artistas em geral(reconhecidos e anônimos), passantes. Observamos manifestações de potência de vida que 125 cintilam nos sebos e nas paredes de praticamente todos os bares e estabelecimentos do complexo do Beco da Lama. Acreditamos se tratar de um espaço de prática artística que emergiria com força de acontecimento propondo determinadas formas de agir e criando resistências a vida cotidiana da cidade. Re-esculpindo olhares nas inventividades de Jordão3 A entrada do Edifício Kefrem4 em Natal - RN nos convida para um passeio por conexões artísticas moldadas em suas paredes, onde podemos ver emergir o mirmidão Aquiles 5 em sua carruagem, após ter vingado a morte de Pátrocolo seu sobrinho, matando o maior guerreiro do lado troiano, o príncipe Heitor. Fig. 1 - Guerreiro Aquíles no mito da guerra de Troia . Foto Marcilio Façanha. 3 Em um dos nossos últimos encontros com José Jordão de Arimatéia, esse artista informou seu afastamento do espaço das galerias do Beco do Lama, lugar boêmio da cidade do Natal. Para esse autor o espaço deixou de ser um atrativo para suas artes e Jordão diz preferir trabalhar agora diretamente com os compradores sem deixar mais seus quadros e esculturas naquelas galerias do Beco. No entanto, muitas de suas obras ainda ilustram a paisagem das galerias do daquele espaço sendo facilmente encontradas nos Sebo Galerias de Severino Ramos e Jotó por exemplo. Além disso, suas andanças naquela atmosfera boemia, também segundo depoimento de outros personagens artistas daquele espaço, ajudaram a construir o que é hoje um dos principais espaços das artes em Natal, o Beco da Lama. 4 Referimo-nos ao edifício localizado na avenida salgado filho em um bairro nobre da cidade. O local é de propriedade particular e funciona como albergue para estudantes recém-ingressos na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O local é repleto de obras do artista Jordão. Todas as obras construídas utilizando como matéria prima o cimento comum encontrado em lojas de construção. 5 Aquiles é um dos personagens míticos apresentado por Homero (Poeta grego que viveu nos séculos VIII ou VII antes de Cristo) como um dos principais guerreiros da batalha de Troia. 126 Essa6 é uma das muitas obras que o artista José Jordão Arimateia, 58 anos, esculpiu na cidade do Natal. Em um de nossos primeiros encontros, Jordão disse-nos sempre ter tido vontade de ser artísta, mesmo não tendo certeza da especialidade em que iria atuar. Ainda criança, brincando de desenhar em chão de terra, esse personagem diz ter percebido em seus traços, algo que lhe satisfazia, e isso o fazia querer cada vez mais se dedicar a arte de desenhar. Seus primeiros elogios foram dados pelos que passavam por ele, e viam suas práticas de desenho em ação. Sim, os desenhos eram na terra, não deveriam durar até a próxima chuva ou até a próxima rajada de vento, mas se territorializavam no imaginário daquele garoto que reiventava sua realidade e resistia às condiçoes adversas com o que tinha em mãos. Jordão informa-nos ser: pintor; desenhista; escultor e entalhador. Em nosso primeiro contato, Jordão informou que gosta de trabalhar com material que seja de fácil acesso para ele. A obra descrita anteriormente e que retrataria a figura mitológica do guerreiro Aquiles, além de muitas outras, foi feitas apenas com tinta de parede comum, verniz, cimento e massa de construção. Jordão revelou ainda não ter conhecido outro artísta que faça uso da mesma técnica. Em uma exposição na cidade de Fortaleza,-CE no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, promovida pelo Governo do Estado do Ceará, onde haveria premiação para o melhor trabalho artístico em diferentes categorias, Jordão relatou que teve que ensinar um outro artísta, sua técnica para que houvesse ao menos um candidato concorrendo com ele, na mesma categoria. Esse foi um dos primeiros episódios marcantes para nosso olhar sobre a arte da Cidade do Natal. Esse encontro nos incitou a descobrir mais sobre esse universo da arte, aqui interpelada inicialmente pelas falas e obras de Jordão. Era dele o Anjo Azul 7, escultura erguida na Avenida Hermes da Fonseca que parecia nos avisar: aqui tem arte! Isso pelo menos era a intenção do dono da galeria à época. Atualmente, a galeria depois de já estar desativada há alguns anos, foi vendida para um empresário do ramo de tapeçaria e o destino do anjo ficou incerto. 6 7 Ver Figura 1 em anexo. Ver figura 2 em anexo 127 Fig. 2 - O Anjo Azul. Imagem disponível no endereço eletrônico: jornaldasartes.blgspot.com/2010_07_01_archive... Fig. 3 - O anjo Azul sendo removido da Avenida Hermes da Fonseca, Natal RN. Foto Marcilio Façanha 2012. A expressão da arte de Jordão é apregoada em qualquer superfície. Em um de seus quadros que encontramos nos ateliês do Beco da Lama vimos retratada uma dança de capoeira em que 128 Jordão nos apresenta as sensações que teve em seu encontro com aquela u arte marcial. Jordão a pintou em uma tábua tirada de um móvel usado8. São capoeiristas sem rosto e com os corpos retorcidos dançando ao som do berimbau e atabaque. Onde mãos se tornam pés e os pés são o prolongamento do chão. Os corpos não estão nem de frente nem de costas, não há referencia para o corpo, porém Jordão parece preocupar-se mais em colocá-los no compasso e no ritmo dos berimbaus e atabaques. As velas das jangadas, o cenário de oceano ao fundo e o próprio jogo de capoeira são caracteres que poderiam levar a obra para a esfera da arte figurativa, mas Jordão, ao trazer quase que para fora do quadro os dois personagens de destaque, chama o figurativo para o terreiro, onde ele, é quebrado e retorcido no movimento dos corpos. O figurativo fica para trás. Jordão com seu jogo de cores e deformações apresenta o movimento que faz o cenário fluir junto, se misturar. A ideia se rende ao ritmo e o olhar é convidado a dançar junto com a obra. Fig. 4 - Obra de Jordão pintada em um compensado de madeira. A obra estava junto a outras obras também pintadas sobre outras restos de madeira de moveis usados. . Foto: Marcilio Façanha. Foto tirada no espaço de Angelus Desmoulins- Jotó. Abril 2012. A esquizo oficina de Jotó Aqui, apontamos para a “ré-existência” de agrupamentos que, mesmo coexistindo no cotidiano com o saber personificado dos institutos, tanto do campo estabelecido das artes plásticas, como também de outras esferas sociais, consegue, em pequenos movimentos, procriar em seus 8 Ver figura 4 em anexo 129 novos espaços, fomentando cada vez mais, possibilidades que ultrapassam imposições de campos de saber hegemônicos. Fig. 5 - Obra de Jotó exposta em sua Galeria. Foto Marcilio Façanha 2011. Partem dali efeitos signatários que constitui em seus desdobramentos o imediato de uma vida resistente em inventividades ao presente. Presente esse, repensando ou “re-existindo” em práticas artísticas nesse território. Nessa proposta de vida e arte anunciamos um personagem que é ao mesmo tempo artista plástico, agenciador de obras de arte e marceneiro: Ângelo Desmoulins, o Jotó, que, dentre outras características, é divulgador artístico e conhecedor, tanto do modo como são produzidas as telas, como de aspectos biográficos dos artistas que as produziram. Esse território de Jotó é na verdade uma mistura de oficina de fabricação de molduras e galeria de arte, além de outros desdobramentos possíveis. Seria Jotó quase um marchand, mas, mais que isso, é também artista e crítico em seu maquinário, seu sistema, que é não necessariamente seu, mas o envolve nessa relação de produção mútua. É o mundo de Jotó que parece ser também de uma parcela da arte potiguar que se pretende autônoma, “periférica”, aquela que “acontece” fora dos museus, resistente aos “panoptismos”9 dos palácios e de seus institutos. Foi nesse ambiente que encontramos todos os artistas que deveremos citar nos tópicos seguintes. 9 Termo referente ao conceito de “olhar panóptico” trabalhado por Foucault em Microfísica do Poder e outros Textos. 130 Fig. 6 - Obra de Fabio Eduardo exposta na Galeria de Jotó em Abril de 2012. Foto Marcilio Façanha. Em alguns momentos, conversando com Jotó, esse personagem astuto do território das artes “periféricas”, captamos o desdobramento de novas histórias, de micro-histórias re- cotidianizadas, contadas, não somente pelos registros gerais da história das artes, mas agora, por aqueles que sentem os efeitos do fenômeno dessa produção antropológica “re-territorializante”. Na fala de Jotó: “...aqui na verdade rapaz é uma comunidade(...) pra expor aqui basta a gente se conhecer... Eu recebo qualquer artista: novo; velho; bom, porque aqui a gente não tem esse negócio não(...) e ao contrário,se precisar de alguma ajuda tem Eu, tem Fábio, agente dá uma mão. Não é dizer que a gente vai ensinar... mas a gente ensina também. Já aparecerem muitos aqui(...) aqui é uma oficina como uma galeria também...”( Ângelo Desmoulins – Jotó 2010.) Diferente de como, por ventura, ocorre em museus ou galerias, onde obras ficam expostas de forma bem calculada para dar destaque e/ou distinção aos quadros, em luzes adequadas, o ateliê de Jotó surge-nos mais como uma espécie de “oficina”, onde, seu mundo estaria em construção e essa construção não cessaria. Os quadros ficam amontoados no chão ou em estantes e mesas, todos dispostos sem hierarquia e de forma aleatória. 131 O “acontecimento” da arte potiguar pincelada no beco da lama e em suas adjacências, passa, como já descrevemos anteriormente, a ocorrer também, como é o caso do ateliê de Jotó, à margem dos grandes centros promotores de distinção política e artística. Centros que tem como um de seus pontos importantes de representação o museu, pois, o museu seria: “um lugar onde visitantes solitários e passivos vêm encontrar a solidão e a passividade de obras despojadas de suas antigas funções de ícones da fé, de emblemas do poder ou de decoração da vida dos Grandes”.( RANCIÈRE, 2011 p. 03) Apesar dessa aparente “não organização” de seu espaço, Jotó identifica com precisão, onde está cada obra e até a ocasião em que lhe foi entregue. Tudo isso, como observamos, sem o cuidado de reproduzir as maneiras estéticas tecnicistas dos salões de obras de arte tradicionais 10. Assim, numa espécie de “oficina viva”, ocorrem também produções autônomas em passos nômades, soltos, “esquizos”11. São potências não ramificadas por correntes unívocas, mas sim, advindas de territórios múltiplos que, nesse tipo de organização, parecem ganhar força para resistir às adversidades de um presente disciplinarizante em nossa sociedade. Os quadros e os personagens corriqueiros nos sebos galerias nos dão pistas de seus desvios. Trazem relações outras que para contemplarmos devemos chegar bem mais perto do que chegamos quando estamos nos espaços determinados pelas linhas que separam a arte dos freqüentadores de galerias convencionais. Acreditamos que nos contatos com esses artistas e seus respectivos espaços ultrapassamos barreiras que nos separavam dos artista da arte e talvez da vizualização de uma vida criativa em vias de desenvolvimento. Pensamos enxergar aqui esses personagens como artífices de si e do mundo. Vislumbramos a possibilidade de os artistas do Beco escaparem a captação instrumental dos institutos e, promoverem, com sua disposição nômade, no popularmente nomeado “Beco da Lama”, um maquinário de guerra apontado contra as centralidades dos Institutos. Para Deleuze, a máquina de 10 Não há livros de assinatura, não há luzes específicas, não há nada que se assemelhe à estrutura de um salão tradicional de artes plásticas. 11 Sobre o termo “esquizo” conferir Deleuze e Guattari 1995. 132 guerra: Faz valer um furor contra a medida, uma celeridade contra a gravidade, um segredo contra o público, uma potência contra a soberania, uma máquina contra o aparelho (Deleuze 1997, p.08) Edvaldo Correia - Catarrô e a plástica da rua. Um de seus poucos quadros12 considerado por outros artistas de lá do Beco como uma obra Naif, estava em destaque na sala principal da oficina de Jotó até o momento de nossa última passagem por lá.13 Sua obra encontrava-se em posição privilegiada em meio à quadros de artistas premiados e consagrados do Beco da Lama e do estado do Rio Grande do Norte como Assis Marinho e Tiago Vicente. Mas, o que dizer desse personagem que já dormiu nas calçadas da Cidade Alta, vive dia após dia com o pouco de dinheiro que consegue, pequenos favores aos comerciantes e frequentadores do lugar, e que, no interstício formado entre a urgência de garantir sua sobrevivência e os enfrentamentos para com aqueles que, a ele menosprezam, consegue desdobrar sua vida em momentos de arte lançados sobre telas? Obras que, por mais que sejam cinco ou seis e não tenham daquele lugar saído para enfeitar um salão de algum nobre comprador, obtiveram respeito e consideração entre demais artistas, apreciadores e alguns agenciadores de arte que frequentam as galerias do beco? Voltando à imagem do quadro, o que dizer da imagem de um rio que poderia ser o que está há alguns metros dalí? Perguntamos a Catarro, que em depoimento, diz ter o sentido o efeito do em sua intimidade, tomando-o de empréstimo junto ao voar de pássaros e a passividade de um farol que parece só olhar para Catarrô, quadro que parece que lhe dirigir o olhar. O quadro dele está lá apregoado na Oficina-Galeria de Jotó. Lá ele obteve um espaço que potencializou sua arte, sua extensão artística de vida, rizomas de sua existência. Sua força criadora chutou então para longe a necessidade de um título de artista ou mesmo alguma idéia que o julgasse 12 Ver figura 7 em Anexo. 13 Meados do mês e Março de 2012. 133 incapaz por viver como mendigo, pois, mesmo enfrentando o que poderíamos considerar serem adversidades advindas da prática de mendicância ( ao menos em certos aspectos), preservou e manifestou sua força vital, deu voz e cores a sua vida que parece cintilar agora o momento eterno de seu infinito apregoado na parede do atelier de Jotó. Edvaldo Corrêa ou simplesmente “Catarrô”, natural de Recife-PE, nascido no ano de 1974, já teve dois quadros participando de amostras coletivas na Suíça. Veio para Natal em 1992, mas ainda não fixava residência aqui à época, pois acompanhava movimentos anarco-punks 14 pelo nordeste Brasileiro. Declara-se fã das obras dos artistas Van Gogh e Basquiat. Tem o Beco da lama como uma de suas escolas e sua atual casa. Em um rápido encontro perguntamos se, ao enfrentar essa situação de morar na rua, havia nele algum sentimento de solidão, Catarrô respondeu-nos: “nunca senti solidão, sempre tem algo ao meu lado”. Falando sobre a sua condição de artista, Catarrô ressalta que a vida do artista na batalha do cotidiano para sobrevivência é como um jogo de perda e ganho: “ele sempre perde; ganha; perde; isso é a história dele, passa para o dia a dia dele. Tanto faz ele perder ou ele ganhar, é o outro preço da vida e o artista sempre mete as caras”. 14 Agrupamentos caracterizados por seguirem ideais anarquistas e comportamentos da cultura punk. Em aproximadamente seis anos de aproximação que tive com os grupos denominados anarco-punks posso descrevê-los brevemente como grupos de resistência política e cultural que ganharem força no Brasil dos anos de 1980 munidos de ideais anarquistas remanescentes de movimentos nacionais e internacionais que lutavam e ainda lutam por liberdade. O comportamento nômade, à critica a cultura ocidental ou qualquer forma de organização hierárquica, as musicas de protesto embaladas pela melodia do hardcore e o visual punk copiado dos punks da Inglaterra (jaqueta de couro, botas, corte de cabelo estilo moicano) fazem um pouco do perfil histórico desse grupo. 134 Figura 7. arte de Edvaldo Correia exposta na galeria de Jotó. Foto Marcilio Façanha 2012. Fig. 8 - A lenda do bicho de revelação exposta no Bardall’os. Autor: Cícero Marques. Foto Marcilio Façanha 2010 135 Fig. 9 - Henri Rousseau: A Guerra, 1894. Imagem disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Henri_Rousseau. Acessada em dezembro de 2010. Fig. 10 - A lenda do Boi e seu Capitão. Autor: Newton Avelino, exposta np Bardallós, 2010. Foto Marcilio Façanha. A Disposição primitiva em Djalma Paixão “eu sou artista popular, eu vim do popular eu pinto o popular” Djalma Paixão – Abril 2011 Djalma Paixão, em depoimento revela-nos sua disposição em pintar a cultura popular ligada a festas religiosas: a “lapinha”, o “pastoril”15, o profano dos cordéis, boi de reis – “mascarados e 15 O pastoril e a lapinha são representações cênicas em festejos de cunho religioso que tem parte de suas origens localizados na Península Ibérica e que no Brasil, por meio de setores sociais mais populares agregou-se características novas, apontando novas formas para a apropriação das tradições, onde o sagrado e o profano são representados, e nesse contexto de festejo, ao mesmo tempo também entra em cena puxando os grupos a figura do “Bedegueba”, também chamado bufão( e que pode receber outras denominações). Ver mais informações na página: 136 enfeitados”. Os quadros de D. Paixão16, ainda segundo informação colhida com esse Artista, carregariam lembranças de expressões populares. Resgates de sensações de manifestações populares mais remetentes ao centro oeste, norte e nordeste brasileiro. Apesar de podermos encontrar traços culturais de outras regiões e nações17, esses traços “primitivos” de Paixão, mesclam-se aos adereços dos festejos nas telas de Djalma Paixão, dando-nos, assim como ocorre também nas próprias danças do pastoril e lapinha, margem para pensarmos em ações mais inventivas, do que miméticas em relação a outras culturas. E é justamente no “engodo” dessas “linhas difusas” que justamente surgem composições desse artista norte rio-grandense. Com suas andanças pelo sertão brasileiro e á bordo de uma trupe circense, assim como Djalma Paixão nos informou, pensamos a possibilidade de esse artista ter sido afetado por diversas representações de figuras arquetípicas, desdobradas em festejos religiosos ditos “populares”. Fig. 11 - Pastoril, tela de Djalma Paixão exposta no ateliê de Jotó. Foto Marcilio Façanha, 2011 O sujeito-artista, Djalma Paixão diz ter encontrado seu território nas diretrizes do que, http://www.recife.pe.gov.br/especiais/brincantes/8a.html Acessado em 12 de junho de 2011. 16 Ver figura 11 em anexo. 17 Seria em Portugal que encontraríamos reminiscências desses festejos, mas, com outro formato. http://www.recife.pe.gov.br/especiais/brincantes/8a.html. Acessado em 12 de junho de 2011. Cf. 137 depois de Rousseau18, ganhou notoriedade como sendo arte naif, termo que carrega consigo o lugar para onde devem ir os que não obedecem aos padrões técnicos da pintura clássica das escolas europeias, não obedecem ao que chamam de noções de “profundidade” ou outros termos que, por vezes, passam quase despercebidos como sendo verdades “naturais” em arte. Se, a pintura clássica, o realismo, hiper-realismo e os outros estilos que seguem e se orientam por técnicas de desenho e pintura, lançam para o interior da tela, essências que buscam revelar, por quê não dizer que o artista naif , lança para a superfície: o interior, o que, por “fora” se perdia em sua mente? Daí, a saber: qual discurso poderia afirmar que o artista naif seria ingênuo? Pablo Picasso foi um dos primeiros artistas a reconhecer o alcance desse tipo de manifestação artística do que se chamou arte ingênua, essa ação que deveras se esforça para tirar a imagem de seu alcance e pô-la em perspectivas distanciadas, em adorná-la com outras imagens ao fundo. Essa arte a que procuram chamar “popular” associando-as ao estilo naif é posta bem “chapada”(sem a impressão de profundidade). Mesmo sendo por meio de deformações ou de formas fantásticas do imaginário criativo, a arte naif é lançada à superfície nos atingindo. D. Paixão vive da arte naif ou, ainda segundo ele, da arte “popular”. Nas palavras desse artista, e isso podemos procurar também em suas obras, esse “popular” pode indicar algo mais relacionado ao “imediato” das manifestações folclóricas, das danças e figuras do imaginário arquetípico de um tempo agora “redescoberto” na mente de D. Paixão, nas formas e cores das paisagens sociais que afetaram seu olhar. Em conversa com D. Paixão, nas proximidades do Beco da Lama em meados de abril de 2011, esse artista revelou-nos ainda esperar reconhecimento de seu trabalho por parte dos institutos de cultura do estado do Rio Grande do Norte. Em maio desse mesmo ano, D. Paixão ministrou um curso sobre historia da arte naif , evento organizado pela Fundação Cultural Capitania das Artes, e 18 Henri Rousseau obteve reconhecimento de seus trabalhos em exposição organizada Salon des Independents [Salão dos Independentes], de 1886, em Paris. A boa impressão que seus quadros causaram a pintores como Pablo Picasso (1881 – 1973), Odilon Redon (1840 - 1916), Paul Gauguin (1848 - 1903) rendeu lugar especial para arte naif no salão de arte moderna de Paris. Conferir mais informações sobre arte naif no sítio: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/arte-naif/arte-naif.php 138 que fez parte das comemorações do Dia do artista Plástico em Natal. Assis Marinho: da Paraíba à consagração artística nos Terrítorios do“Beco da lama”. “viram que eu não pinto por pintar, que eu pinto com minha alma, e isso me deixou muito feliz para que eu pudesse pintar cada vez mais” Assis Marinho 01/10/2011 Natural de Cubati, sertão da Paraíba, Assis Marinho 19 veio ainda criança para o Rio Grande do Norte com a família. Filho de escultor de imagens sacras, Walfredo Marinho, Assis enveredou pelos caminhos do desenho e pintura ainda na infância. Seu nome é prontamente reconhecido no meio das artes plásticas potiguares. Suas obras também já ilustraram exposições em grandes centros culturais do estado do Rio Grande do Norte e demais estados brasileiros. Suas desenhos nos levam à imagens sacras, imagens do cotidiano sertanejo, cenas corriquieras de pescadores natalenses e até quadros em homenagem a personagens da literatura mundial como “Dom Quixote de la Mancha”, personagem da Obra de Miguel de Cervantes que encantou Assis Marinho, e que, para demonstrar seu amor , segundo Assis, ele pintou mais de 1500 obras retratando a figura do famoso “cavaleiro andante”. Fig. 12 - Assis Marinho expondo uma de suas obras. Imagem disponível em: http://www.portalunep.com.br/noticia.php?id=3483 Acesado em 04/04/2011 19 Ver figuras 12; 13; 14. 139 Fig. 13 - Obra de Assis Marinho. Imagem disponível em: http://www.geraldo2006.com/producao/interna_noticia.php?cds=100&cdn=651# Acessada em 04/04/2011 Fig. 14 - Obra de Assis Marinho. Foto Marcilio Façanha 2012 140 Além de participar de importantes exposições no Estado do Rio grande do Norte, Assis Marinho já expôs suas obras no: Museu de Arte Contemporânea - MAC - São Paulo/SP - 1983; Mostra livra da Praça da República – São Paulo/SP 1979; Casa da cultura de Votuporanga Votuporanga/SP 1979. Nosso encontro com esse artista se deu no primeiro semestre do ano de 2010, no que é hoje um lugar que abriga encontros de novos artistas, artistas da década de 1980, 1970, artistas plásticos potiguares, músicos, poetas, atores - o “Bardallo`s Comida e Arte”. Foi um encontro repentino que rendeu uma conversa longa que nos levou a investigar e nos debruçar sobre os passos desse “sujeito-artista”. Nesse primeiro encontro, Assis Marinho contou-nos um pouco de sua trajetória desde a infância no sertão da Paraíba até os dias atuais. Na ocasião de nosso primeiro contato Assis andava de mesa em mesa tentando vender uma de suas mais recentes obras em giz de cera. Era uma imagem da Santa Ceia. A Fama de Assis Marinho no estado é constatada facilmente, bastam algumas visitas ás galerias de arte particulares, sebos, alguns estabelecimentos de pequeno porte da cidade e também em blogs da internet destinados aos trabalhos de artista potiguares, porém, reportá-lo como artista referência, como figura reconhecida institucionalmente como é o caso dos já consagrados Newton Navarro e Doryan Gray Caldas talvez, ainda não sabemos ser possível. Para o atual diretor da Pinacoteca do Estado – Novenil Barros 20, Assis Marinho, apesar de ser considerado um talentoso artista, permanece no “semi-anomimato” que, ainda segundo Novenil Barros, devido em parte, à falta de políticas direcionadas ao campo das artes plásticas, que venham a dar maior amplitude ao trabalho de artistas como Assis e, em parte também, a postura do Próprio Assis Marinho, que, ainda de acordo com Novenil, detém um comportamento muito “anárquico” e por vezes “auto-destruidor” que estaria prejudicando sua própria promoção frente aos aparelhos políticos de fomento cultural e artístico. Demais artistas potiguares como Newton Navarro e Dorian Gray Caldas já tem seus quadros em exposição permanente na pinacoteca do estado. Newton Navarro, por exemplo, dá 20 Entrevista cedida à pesquisa em setembro abril de 2011 141 nome a uma das maiores obras arquitetônicas da Cidade de Natal: a ponte “Newton Navarro”, uma obra de grandes proporções arquitetônicas que liga zona norte à zona sul da cidade. Assis Marinho, Jordão Arimatéia, No entanto Tiago Vicente, Djalma Paixão( e mais artistas que são localizáveis nos desvios do Beco da Lama) são ainda figuras marginais à propostas de institucionalização de suas artes. São situações como essas anteriormente descritas que nos levam a observar esses personagens e seus respectivos territórios em seus signos visuais, e, buscamos sim, percepções que trasbordam dessas obras e se espalham para além das galerias, invadem a subjetividade de ruas e becos deixando rastros . A cena “undergroud” das artes plásticas potiguares parece ser ao mesmo tempo, mãe e filha da continua atuação desses artistas. Arte Esquizo, Erotismo e Subversão nos subúrbios ocultos da Cidade Alta Mais uma vez a arte esquizo nos leva agora para o giro em seu agenciamento maquínico, seu “corpo sem orgãos”21, que se reiventa na resistência aos parâmetros organizacionais de massa, propostos pelos mecanismos disciplinarizantes da geopolitica capitalística. Suas conexões múltiplas e rizomáticas afrontam e penetram nas especificidades do solo, invadem os terrenos mais do que em suas extensões, adentrando em seus conteúdos substanciais. A arte se esparrama por territórios que são terra, globo, esfera e gente. Nós a localizamos em sua trajetória nômade expressa por mãos, pés, vozes e corpos de esquizo artístas. A arte que encontramos contextualizada em “centralidades”, museus, centros culturais, pinacotecas; se está nesses locais é porque passa por caminhos diversos (mesmo que estes possam estar territorializados em situações urbanas). Lembremos que se a encontramos na “periferia” de estruturas objetivas e subjetivas da sociedade, ela também passeia e não se desconecta completamente de territórios circulares - esferas sociais estabelecidas, pois, assim como escrevem 21 Conceito de Antonin Artaud também trabalhado por Deleuze e Guatarri que deverá ser esclarecido em nossos escritos posteriores. Para mais esclarecimentos Conferir Galeno, Alex: Antonin Artaud – Cartógrafo do Abismo. Material online, acessado em 19/11/2011, disponível em: www.eca.usp.br/nucleos/filocom/alex.doc 142 Deleuze & Guatarri “as árvores tem linhas rizomáticas, mas os rizomas tem pontos de arborescência”(Deleuze, Gatarri, 1995 p.47). A arte do beco nos lembra o caminho circular, é o sair, voltar, se esquivar, o projetar-se em linhas de fuga e perceber de forma inteligível o mundo que o circundante, o sensível. Conversamos com Tiago Vicente, artista local que já tem seu nome reconhecido em lugares contenedores de práticas artísticas, mais precisamente das artes plásticas da Cidade do Natal. Encontramos em seus relatos, indícios de um percursso criativo guiado por percepções reflexivas, voltadas para o sentimento, impresões cognitivas, suas impressões de pele, seu cotidiano. Fomos a uma exposição de obras de artistas naifs, na cidade do Natal no dia 19 de agosto do ano de 2010. Conversamos com os organizadores do evento, fotografamos algumas obras. O espaço da exposição é também um bar frequentado por artistas e demais pessoas envolvidas de alguma forma com o território da arte Potiguar. Quando passeávamos e flertávamos o lugar da exposição, chamou-nos a atenção um jovem que bebia com amigos e segurava em suas mãos uma tela com a imagem de mulheres nuas jogando baralho 22. No primeiro momento poderiamos acreditar que o quadro que vimos era apenas uma reprodução de uma prática comum de um lugar “moderno” ou cena clichê de comportamentos que já preenchem cenas de uma sociedade burguesa. Talvez uma propaganda de cigarro? Ou de um cassino? O fato é que para nós não bastaria conhecer a obra em uma das partes, a outra parte ou as outras, o artista, seu território e os agenciamentos circundantes complementariam o corpo da obra. 22 Ver figura 15 em anexo. 143 Fig. 15 - Obra de Tiago Vicente exposta no Bardall’os. Foto Marcilio Façanha 2010 O quadro foi feito com um papel especial para pintura (papel cansôn) e uma cêra resultante do derretimento e mistura de diversas tonalidades de cêras. O nômade: Tiago Vicente, natural do estado da Bahia, residente em Natal, Bairro de Mãe Luiza, trinta anos de idade. Seu rosto parecia refletir seu desejo naquilo que estava em suas mãos. Quando perguntamos sobre “gosto artístico”, Tiago revelou ser aquele seu tema preferido, o lado agressivo do mundo “suburbano marginal”. Misturado a esse “prato” vem a sobremesa dark do imáginário de Tiago, seu muno fantástico adquirido em trajetórias errantes. Tiago com 7 anos de idade, ainda no estado da Bahia, descobriu seu talento através do reconhecimento de seus colegas de mesma idade e de seus professores do ensino escolar. Buscou aprimorar seus desenho e na adolescência, na cidade de Natal buscou inspiração para continuar produzindo pinturas que o destacariam e o colocariam em evidência à partir dáquela atmosfera do Beco da Lama . Tiago percebeu que sua arte lhe mostrava diversas trilhas de vida, outras possibilidade de visão. Não tardou para Tiago encontrar outros seres semelhantes em disposição e potência. Na adolescência conheceu Assis Marinho, já premiado pintor residente em Natal –RN com exposições por várias partes do território brasileiro, porém, não menos esquizo por isso, pelo 144 contrário, bem dentro da trilha que buscamos investigar, esse artista se tornou importante no caminhar de Tiago. Tiago aos 20 anos de idade seguiu viagem com Assis Marinho, aprendendo e percebendo, construindo algo e destruindo também. Aplausos, portas abertas, e por vezes fechadas, a fama e o “Beco da Lama”, são caminhos dos quais Tiago decide percorrer tal como “o louco” do Tarô de Marselha, onde o “louco é um andarilho enérgico, ubíquo e imortal. É o mais poderoso de todos os Trunfos do Tarô, como não tem número fixo, está livre para viajar à vontade, perturbando, não raro, a ordem estabelecida com as suas travessuras”(Nichols, 2007, p.39). Tiago, em nossa conversa, demonstrou muito apego aos momentos passados com Assis Marinho. Em exposições de Assis, como ajudante, como amigo, houveram momentos de grande aprendizagem para esse artista que diz nunca ter frequentado uma escola de arte, seu aprendizado foi no dia a dia, nos caminhos da arte pulsante nas veias das ruas. Segundo Tiago, Assis pinta o triste dos traços de figuras tradicionais do imaginário social como a Santa Ceia, a Familia Cristã, etc. Tiago também diz pintar o triste, mas o triste do submundo urbano em que vive. Tiago diz que Assis Marinho pinta a miséria em que viveu, a fome que passou no sertão nordestino e a ausência de perspectivas que Assis perpassou. Tiago diz ainda que tinha tudo aqui, mas também por outro lado, muito lhe faltava, ou ainda lhe faltava o que seria importante: seu caminho livre e seu pensar liberto, sua arte como propulsora de suas vontades e a vida vestida de possibilidades e devires. Tiago pinta mais que os fantasmas que lhe assombram e os lobos que o libertam. Sua arte se mostrou esquizo e o seu pensamento apontou rastros nômades. Suas demais obras nos aparecem como corpos sem orgãos que poderiam ser o que Deleuze nos diz: tanto biológico quanto coletivo e político; é sobre ele em que os agenciamentos se fazem e se desfazem; é ele o portador das pontas de desterritorialização dos agenciamentos ou linhas de fuga. O corpo sem órgãos varia (o da feudalidade não é o mesmo do capitalismo)23. Se o denomino corpo sem órgãos, é porque ele se opõe a todos os estratos de organização, tanto aos da organização do organismo quanto aos das organizações de poder. (Deleuze1994, p.07). 23 Parêntese do Autor. 145 Na imagem das mulheres jogando baralho24, encontramos três mulheres semi nuas, jogando baralho em uma sala. Há ainda uma quarta mulher que parece querer participar do quadro. A parede, ao fundo é preta, a fumaça do cigarro de uma das mulheres lembra traços de tatuagens de estilo tribal. Essa mesma mulher que fuma, foi retratada sem rosto . Uma outra que está de pé, com os seios à mostra, mostra a carta que tem na mão anunciando seu trunfo ou sua perdição. As garrafas de vinho na mesa e a disposição das personagens parecem rememorar rituais dionisíacos tratados nos discursos mitologicos. O erotismo do quadro parece ser também profano e de disposição selvagem. A sutileza se reinventa nos jogos de azar, cigarros e bebidas, assim como nas noites boêmias do Natal. No fim de nossa conversa, perguntei a Tiago o valor daquela obra. Tiago diz que ela já havia sido vendida e até chamou o comprador para que eu pudesse conhecê-lo. A obra foi vendida pela quantia aproximada de quinhentos reais. Essa é a média de preço das obras nàquelas proporções com a assinatura de Tiago Vicente. As tramas do Beco- uma micropolítica de resistência esquizo-artística “Incitar, induzir, desviar, tornar fácil ou difícil, ampliar ou limitar, tornar mais ou menos provável... essas são as categorias do poder” (Foucault 2005, p.78;79). O conceito de poder foi tratado por Michel Foucault como uma relação de forças, e, as relações de forças tem um poder-saber entrelaçando-as e externando-se em diversas manifestações. É uma relação que não é identificada como se identificam objetos físicos, mas sim, sentida, em relações móveis e não localizáveis, onde, um “exercício de poder aparece como um afeto, já que a própria força se define pelo seu poder de afetar outras forças”. (Gilles Deleuze,1998, p. 79) O poder quando dobrado, ou seja, quando reinvestido, retrabalhado à parti de si, para si e apara além de si e não mais em prol de alguma forma disciplinar induzida por alguma organização centralizante, essa força, esse poder-saber, poderia incitar manisfestações de “resistência”. As 24 Conferir figura 15. 146 relações de poder e os seus efeitos passam a ser investidas em potenciais de resistência e ações que operam como “máquinas de guerra” apontadas contra as facetas das instituições e demais estratos disciplinantes. Aqui em nossa pesquisa acreditamos tratar de uma máquina de guerra em operação: o território da produção artística periférica autoprodutora de si. Sobre essa autonomia nos terrenos das artes, Félix Guattari nos lembra que, só tardiamente a arte se separou do cotidiano da vida dos agrupamentos sociais. O autor observa que: na história do Ocidente só tardiamente a arte destacou-se como atividade específica, da ordem de uma referência axiológica particularizada. Nas sociedades arcaicas, a dança, a música, a elaboração de formas plásticas e de signos no corpo, nos objetos, no chão, estavam intimamente mescladas às atividades rituais e às representações religiosas(Guatarri, 1992, p. 127) Após a ruptura, ou mais precisamente, a retirada, dos rituais de dança, canto, musica, e demais manifestações, do que hoje conceituamos como práticas artísticas, de um contexto de vida nos agrupamentos sociais, com o fim de classificá-los e isola-los em salões, museus pinacotecas, studios, etc., mudamos também a maneira de percebermos essas práticas. Dessa forma, poderíamos percebê-las distantes das ações mais comuns da vida. Ainda, passamos do momento em que nossa sociedade não distinguia o que era arte e o que era vida, para o momento da racionalização dessas práticas inventivas ritualisticas ou até mesmo elementares para os povos que a continham. Assim, ainda nesse pensamento, indagamos se restaram apenas fragmentações(especializações) de arte, no interior também de nossas próprias sociedades, onde : arte A, arte B, arte do povo C, foram separadas do dia a dia. Pensamos se as práticas de arte, após processos históricos de disciplinarização, anunciariam seus campos estabelecidos para nos guiar ou nos sujeitar? No entanto, dentre as ações sociais contemporâneas, algumas manifestações inventivas, criativas de povos, ainda pediriam seu retorno em forma de resistência frente às coerções de um formato mass media25 da qual nos acostumamos utilizar para fins comunicativos. Chegamos 25 O termo mass media é formado pela palavra latina media (meios), plural de medium (meio), e pela palavra inglesa mass (massa). 147 novamente a um dos aspectos da arte esquizo que procuramos. possibilidades que, Apontamos então para as espaços de pequenos sebos, bares culturais, salões “menores’ onde o saber disciplinarizante ainda não ganhou terreno suficiente para servir de guia, resistem e buscam reestruturar algo como: uma autonomia individualizante sobre práticas inventivas do, agora, personagens sujeitos de suas práticas de arte e das práticas artísticas fomentadas nos territórios de uma arte micropolítica. A arte marginal do Beco da Lama, reterritorializando-se em espaços “menores”, percebidos aqui como não institucionalizados e que apresentam poucos recursos se comparados aos espaços institucionais ou grandes galerias privadas, esses espaços também funcionariam como galerias de arte com público cativo, porém, um público mais próximo do contato com a arte e o artista, àquele público que não teve necessariamente seus passos guiados até a tela, mas incitados até o território artístico por vias múltiplas. Lá surgem também sujeitos-artistas que, por entre “micro-processos” de subjetivação, podem lançar olhares para o “lado de fora” das percepções guiadas, levando-nos assim, talvez, para uma nova maneira de pensar a vida não mais relegada somente ao que foi posto nos processos de padronização e disciplina. Referências DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2010 a. ______________ Desejo e Prazer. Magazine Litteraire. 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Resumo: Este artigo apresenta reflexões, a partir de uma pesquisa em Antropologia, acerca do cotidiano e ofício de peões no contexto de eventos agropecuários ( feiras, rodeios, exposições) que ocorrem por todo Brasil. Para pensar a questão, discute a dicotomia campo X cidade e a idéia de agronegócio. O termo, acionado no discurso desses peões, funciona como um mediador, que constrói hierarquias, prestígio e dá significado ao seu universo de sociabilidade e de trabalho. Palavras- chave: agronegócio, feiras agropecuárias, peões. Abstract: This article discusses, from a research in anthropology, about the everyday life of cowboys in the context of agricultural events (fairs, rodeos, exhibitions) that occur throughout Brazil. To think about the issue, discusses the dichotomy city X countryside and the idea of agribusiness. The term, engaged in the discourse of those cowboys , acts as a mediator, which constructs hierarchies, prestige and gives meaning to their universe of sociability and work. Key-words: agribusiness, agricultural fairs, cowboys. O presente artigo apresenta parte das reflexões de meu mestrado, defendido em 2008 pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. De título: “É de agronegócio!”: Circuitos, relações e trocas entre peões de manejo, peões de rodeio e tratadores de gado em feiras de pecuária, teve como pano de fundo pensar os sentidos do rural e do urbano na contemporaneidade. Na literatura e nas ciências sociais brasileiras a figura do homem do campo é tema clássico. Estudiosos e romancistas como Guimarães Rosa, Câmara Cascudo e Antônio Cândido descreveram o cotidiano e o modo de vida de vaqueiros, sertanejos e caipiras. Minha dissertação pretendeu, de certo modo, pensar os sentidos que essas personagens ganham na atualidade a partir de uma etnografia do trabalho que vaqueiros e peões (tratadores de gado, peões de manejo e peões de rodeio) realizam em feiras de pecuária. Uma certa antropologia rural brasileira, especialmente aquela inspirada pelos estudos de comunidade da Escola de Chicago, ocupou-se em pensar os limites e extensões do campo e da 1 Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo ( USP). Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo ( FAPESP). Endereço profissional: Departamento de Antropologia FFLCH- USP. Caixa Postal: 72042. Rua Professor Luciano Gualberto, 315. Cep: 05508-010. São Paulo- SP. E-mail: [email protected] 150 cidade. A intensa migração aos centros urbanos do Brasil, intensificada a partir de meados do século vinte, sugeriu que pesquisadores tais como Maria Isaura Pereira de Queiroz (1979), Eunice Durham (2004) e o próprio Antônio Cândido (2003) realizassem não só trabalhos de campo e descrições etnográficas em bairros rurais, sítios e em pequenas e grandes cidades, mas que organizassem e propusessem metodologias e conceitos para analisar o cenário que se constituía. Mais contemporaneamente, autores brasileiros como José Eli da Veiga (2005) e José Graziano Silva (1999) tem se esforçado para pensar o rural. Seriam as atividades próximas à agricultura ou pecuária que definiriam o campo? Os autores apostam que não. Tanto as definições espaciais, quanto àquelas vinculadas à economia e ao trabalho (ligadas às atividades estritamente agrícolas ou pastoris) são incompletas para pensar os sentidos do rural na contemporaneidade, porque para esses autores pensar o campo é pensar a cidade. O título desse artigo (Do agronegócio!) recupera uma fala nativa utilizada por muitos peões e vaqueiros no contexto das feiras de pecuária. Para esses atores a dicotomia rural X urbano não era uma questão. Suas preocupações vinculavam-se mais a um outro tema: agronegócio. As atividades que realizavam e mesmo o modo de se auto-analisarem eram sempre mediados por duas categorias: “ser do agronegócio” ou “não ser do agronegócio”. Tais categorias nativas (ser ou não ser do agronegócio) vinculam-se em parte ao conceito acadêmico do termo: pensar a produção agrícola e pastoril para além do contexto das propriedades rurais, de forma mais sistêmica, englobando a soma de todas as operações e participantes da produção – processamento, marketing, compra e venda dos produtos do campo. Muitos peões conhecem, utilizam e incorporam em seu cotidiano a idéia de ver a economia do campo partir de um sentido mais sistêmico 2, mas o que torna um vaqueiro “ser de agronegócio” 2 O termo agrobusiness surge no ano de 1957 em um texto publicado pelos professores John Davis e Ray Goldberg da Universidade de Harvard. O artigo “The Genesis and Evolution of Agribusiness” destaca que a produção agrícola e pastoril deveria ser vista a partir de um prisma mais sistêmico. Os especialistas dessa área costumam utilizar as expressões “antes da porteira”, dentro da porteira” e “pós-porteira” para cunhar todas as etapas que constituem as atividades de agronegócio. Os setores “ antes da porteira” são fornecedores de insumos e tecnologia para a produção do campo (implementos, máquinas, medicamentos, sementes, defensivos, conhecimentos da genética). O setor “ dentro da porteira” opera com as atividades que ocorrem dentro das propriedades rurais (criação de animais, plantio) e os setores pós-porteira lidam com a industrialização, distribuição, marketing e armazenamento e comercialização dos produtos. 151 é lidar e conhecer tecnologias (especialmente as de aprimoramento genético). O agronegócio (em suas amplas conceituações) é fio condutor das feiras agropecuárias. Não só porque esses eventos são espaços de mostra das atividades agrícolas e pastoris, mas porque neles há uma atmosfera que o celebra como a principal atividade econômica do país. Além de exporem animais, máquinas, insumos agrícolas, as feiras agropecuárias são ponto de encontro de empresários, fazendeiros, políticos, veterinários, zootecnistas. E no Brasil ganham um outro sentido: são comemorações, festas para pequenas e grandes cidades. Juntamente com os negócios (compras e vendas de insumos, leilões e exposições de gado), realizam-se grandes shows, bailes e rodeios. Eventos agropecuários O sociólogo João Marcos Além (1996) desenvolveu uma tese sobre os alcances da celebração dos eventos agropecuários. Atento aos sentidos que a ruralidade ganhava na década de noventa, realizou vários trabalhos de campo em feiras agropecuárias e rodeios nos estados de Minas Gerais e São Paulo. Na época, uma série de telenovelas tinham o campo como cenário (Ana Raio e Zé Trovão, Pantanal, O Rei do Gado), as festas de peão ganhavam grande popularidade e uma certa valorização da “ qualidade de vida” sugeria um retorno ao universo rural. No mesmo ano, 1996, também foram publicados dois outros trabalhos sobre feiras de pecuária e festas de peão. O antropólogo Sidney Pimentel defendeu uma tese pela Universidade de Brasília sobre a festa do peão da cidade de Pirajuba- GO. E a historiadora Dulce Pamplona Guimarães publica um doutorado pela Universidade de São Paulo sobre feiras agropecuárias do nordeste paulista. Todos esses trabalhos, muito bem elaborados, diga-se de passagem, estavam atentos aos sentidos que a ruralidade ganhava no Brasil e à descrição do funcionamento desses eventos. Preocupados em registrar as lógicas de organização das feiras e festas agropecuárias, pensaram como as populações das cidades se apropriavam desses eventos do campo. 152 Acontecem no Brasil mais de 1500 eventos agropecuários por ano. Todos os estados da federação possuem ao menos uma feira ou festa que celebra a produção agropecuária. As vocações econômicas de cada região, no entanto, fazem com que esses eventos apresentem atividades mais vinculadas à agricultura ou mais próximas da pecuária. Documentos oficiais tratam todas essas festas da mesma maneira3 (todas são feiras agropecuárias), mas os participantes e organizadores desses eventos, durante os trabalhos de campo que realizei, faziam questão de separá-los. Não só porque existem diferenças entre eles, mas porque o trabalho realizado por certos atores ganha sentido e maior ou menor importância se pensado (e vivenciado) no contexto específico de cada um desses eventos. Essas feiras e festas são tipificadas de quatro maneiras: existem as “festas temáticas”, os “agrishows”, as “festas de peão” e as “feiras de pecuária”. Tal classificação, nativa, é um tanto complexa. Não só para aqueles que desconhecem esse contexto, mas também porque certas atividades (especialmente as de entretenimento) podem acontecer com uma relativa intensidade em todos os eventos agropecuários. O dono de uma barraquinha de churrasquinho, durante o trabalho de campo na feira de Campo Grande-MS, explicou a diferença entre todas essas feiras e festas: “A feira de pecuária é uma feira de amostras pra negócio. Quando os criadores mostram o plantel, vêm pessoas que mexem com genética de animal, vem venda de sêmen, vem trator, vem camionete. Esse povo vem pra vender, é pros fazendeiros...envolve a grana, o dinheiro, o agronegócio. A festa de peão é um evento mais pobre! Ela não tem esse movimento financeiro, festa de peão é um evento de montaria de boi. Pra mim, pro meu comércio é bom porque as pessoas vão lá se divertir, vão comer... Eu também faço festa temática, tipo a Festa da Lingüiça de Maracajú em abril. Daqui faço a Festa da Uva em Primavera, faço a Festa da Soja em Rondonópolis... No agrishow eles são mais reservados, é mais pra negócio. Não tem esse tipo de coisa, não tem pé-sujo, lanchonete, esse tipo de coisa lá eles não permitem...Lá é só restaurante. Porque o público que eu tenho aqui vem à noite, eles não, não vão lá pra ver nada, vão comprar, vender, vão almoçar... Os negócios são feitos de dia, quando dá cinco, quatro 3 Categorizar todas essa feiras e festas da mesma maneira não é errôneo, de alguma maneira, todas elas compartilham a celebração do agronegócio e da ruralidade. Mas existem algumas diferenças, sutis em alguns casos, que merecem desdobramentos. Tais diferenças são marcadas por um conjunto de atores que conhecem muito de perto todos esses eventos. São peões, donos e funcionários de barraquinhas de comes e bebes, vendedores de insumos e tecnologias agrícolas, fazendeiros e empresários rurais, trupes de parques de diversões que circulam durante todo ano ,com muita intensidade, por todos esses eventos. Tais atores são os grandes conhecedores das atividades que ocorrem em cada uma dessas feiras e festas e por isso são os personagens que categorizam, tipificam e de algum modo, nomeiam, esses eventos. Para freqüentadores ocasionais e mesmo para o poder o público as diferenças existentes entre os eventos agropecuários não são evidentes. 153 horas da tarde não tem ninguém no parque...” Para os peões, atores privilegiados nessa pesquisa, tal tipificação ganhava especial sentido. Primeiramente porque parte deles (especialmente tratadores de gado, peões de manejo) não participava de certos eventos: as festas temáticas são comemorações de algum fruto ou produto específico e não incluem em sua programação a mostra de gado. E os agrishows, que são feiras de máquinas e tecnologias, são contextos voltados, exclusivamente, a fazendeiros e empresários. Depois, porque no discurso desses peões havia uma especial ênfase em diferenciar as festas de peão das feiras de pecuária. Como os rodeios são eventos mais conhecidos e populares, muitos freqüentadores desconhecem o trabalho que tratadores de gado e peões de manejo executam. Elton, um tratador de gado, explicou a diferença entre o trabalho que realiza daquele que é realizado por peões de rodeio: “O peão de rodeio não trata um animal, nada. Ele vem só pra fazer a montaria no dia do rodeio e vai embora da feira e o tratador de gado tem o convívio todo o dia com o animal...O peão de rodeio vem participar do show, não trata o gado. Tem um pessoal que mexe com boiada de rodeio que nem é peão. Porque na exposição a gente vêm pra expor tecnologias... A festa de peão é esporte!” Muitas feiras de pecuária possuem em sua programação atividades de lazer, que incluem provas de laço ou montaria, mas esses eventos de entretenimento ocupam uma posição e significado “menor” diante de outros acontecimentos. Nas feiras realizam- se encontros de grandes criadores, leilões e julgamentos de vacas e touros que chegam a custar mais de um milhão de reais, além da apresentação e comercialização das mais novas tecnologias genéticas (clonagem, inseminação artificial, vertilização in vitro). Segundo os peões com que conversei as feiras de pecuária são “mais de agronegócio” do que as festas de peão4. Enquanto nas primeiras as principais atividades são negócios e exposição de 4 É necessário ressaltar essa questão. Festas de peão são muitas vezes confundidas com feiras de pecuária. Algumas feiras possuem provas de montaria bastante prestigiadas em sua programação, que compõem os grandes circuitos de rodeio. Tanto as feiras, quanto as festas de peão são eventos que atraem muitos visitantes (seja para ver os animais expostos, comer quitutes, brincar em parques de diversões e assistir aos rodeios e leilões), mas apesar de incluírem em suas programações atividades coincidentes, esses eventos têm finalidades distintas: as primeiras são eventos de negócios, as segundas eventos de entretenimento. 154 tecnologias, nas segundas a celebração é protagonista exclusiva, são festas que reúnem populações para participar dos eventos de lazer e entretenimento. Mas tanto peões de rodeio, quanto tratadores de gado e peões de manejo circulam durante todo ano por uma série de feiras agropecuárias. Como uma trupe circense viajam por várias cidades. Tal fato se dá porque essas feiras e festas não são eventos isolados, organizam circuitos 5 (de comercialização, no caso dos julgamentos e leilões de gado, de competição no caso dos rodeios). As provas de laço e montaria podem acontecer tanto em uma feira de pecuária como em uma festa de peão. Elas funcionam como etapas de um grande campeonato. Um bom peão de rodeio é aquele que ganhou os primeiros lugares de muitas provas. Vale acrescentar que as pontuações ganhas em alguns rodeios compõem um ranking mais amplo, que inclui a somatória dos pontos adquiridos em várias provas, por isso a necessidade desses peões em participar durante o ano de uma série de festas de peão e feiras de pecuária. São os julgamentos de bovinos que propiciam o trânsito de tratadores de gado. Anualmente, as associações de ruralistas promovem uma série de julgamentos que avaliam características genotípicas e fenotípicas de vacas e touros. Estabelece-se que animais devem participar de um conjunto de avaliações (que ocorrem nas feiras de pecuária) para compor o ranking anual das melhores reses. Os tratadores de gado são os profissionais responsáveis pelo trato, zelo e apresentação desses bovinos nessas competições, por isso viajam durante todo ano por uma série de feiras agropecuárias. Os touros e vacas mais apreciados do país são comercializados em leilões que acontecem nas feiras de pecuária. Esses eventos são promovidos por fazendeiros, mas organizados por 5 José Guilherme Cantor Magnani (2000) utiliza a categoria circuito para descrever de que maneira certos atores sociais se apropriam de determinados equipamentos e acabam por efetuar deslocamentos entre pontos de encontro marcados por agregar sujeitos que compartilham os mesmos gostos, orientações sexuais e até mesmo religiões. Tal categoria, pensada para a cidade de São Paulo permite muitas analogias com o contexto das feiras de pecuária que acontecem em todo o Brasil. No decorrer de um ano há um calendário de feiras, que incluem em sua programação julgamentos, leilões e rodeios. Os peões organizam seus trajetos a partir da ocorrência desses eventos, organizando assim, circuitos de circulação e trabalho. 155 empresas leiloeiras. Os peões de manejo são funcionários dessas empresas leiloeiras, por isso seu trânsito e deslocamento também é uma constante: leilões ocorrem em feiras de diversas cidades do país. Os cenários escolhidos para realização da pesquisa de campo foram feiras de pecuária nas cidades de São Paulo – SP, Londrina- PR e Campo Grande-MS. Foi necessário realizar observações e entrevistas em mais de um desses eventos não só porque o trabalho dos vaqueiros estudados por mim (peões de manejo, tratadores de gado e peões de rodeio) só consegue ser descrito se mediado pelas lógicas do trânsito e da circulação. Mas porque certas regras desses eventos, de sociabilidade, reciprocidade e de comércio, ganham forma se pensadas no contexto das várias feiras que acontecem por todo o Brasil. Os personagens privilegiados pela minha pesquisa foram profissionais cuja trajetória está vinculada ao boi. Como vaqueiros que trabalham em fazendas são responsáveis por separar, alimentar, vacinar, domar, transportar e banhar o gado. Mas diferentemente dos peões tradicionais, que realizam atividades no campo, trabalham em cidades, nas feiras de pecuária. Os peões A maioria dos peões que realiza trabalhos nessas feiras tem vínculo com universo rural, são filhos ou netos de vaqueiros e aprendeu nas fazendas a lidar com o gado. Nem sempre moram no campo, muitos tem suas residências nas cidades. E apesar de estarem bastante atentos às tecnologias (de insumos, genética), freqüentaram pouco a escola. O tipo de atividade que realizam organiza entre eles uma espécie de gradação (sempre valorativa), existem aqueles que são “mais de agronegócio” e aqueles que são “menos de agronegócio”. Entre esses atores saber lidar com o gado é uma prática constitutiva e muito valorizada. O trabalho com bovinos na cidade não exige menos aptidão ou destreza (como apresentarei a seguir) do que exige no contexto das fazendas. Pretendo, no entanto, mostrar que o cenário das feiras 156 agropecuárias ajuda a organizar uma série de laços e vínculos, que sugerem uma nova roupagem ao vaqueiro tradicional. Os peões de rodeio são os personagens mais conhecidos porque as provas de laço e montaria têm muito apreço entre a população brasileira. Certos rodeios, inclusive, como os das festas de Barretos e Jaguariúna, são transmitidos por redes de televisão. Por esse motivo, para muitos freqüentadores de feiras agropecuárias, os peões de rodeio são os únicos vaqueiros a realizarem tarefas nesses cenários. A montaria em touros, apesar de muitíssimo apreciada, é recente no Brasil. Somente a partir da década de sessenta do século vinte, através de uma iniciativa de vaqueiros do interior do estado de São Paulo, os rodeios, inspirados no modelo norte-americano, ganharam caráter de competição. Ser peão de rodeio é muito compensador, não exatamente por questões financeiras. Esses atores são astros, os protagonistas das provas de laço e montaria. Diferentemente de peões de manejo ou tratadores de gado que permanecem nos bastidores das exposições, as atividades realizadas pelos peões de rodeio são sempre vistas e reconhecidas. Vale acrescentar que permanecer no lombo de touros indômitos, segundo meus interlocutores, exige não somente força, mas um certo talento quase inato ( que pode não ser conquistado com técnicas ou treinamentos intensivos). No contexto das feiras agropecuárias são sempre narradas estórias de peões de rodeio que estão milionários, que por conta das provas de montaria conhecem o mundo todo e possuem várias casas, carros e motos. Pouquíssimos peões de rodeio atingem esse status econômico no Brasil, mas é impossível negar que alguns deles conseguiram, de fato, constituir patrimônio e riqueza. Situação econômica semelhante não é encontrada entre tratadores de gado ou peões de manejo, se esses vaqueiros estão ricos, não é em virtude da remuneração6 ganha pela lida com o gado. O reconhecimento e valorização dos peões de rodeio nas feiras de pecuária se dá por motivos que estão pouco vinculados com a categoria nativa “ser de agronegócio”. Entre os próprios 6 Tratadores de gado recebem de um a dois salários mínimos. Já os peões de manejo recebem pelo dia de trabalho (uma diária). 157 peões de rodeio e, especialmente, entre peões de manejo e tratadores de gado há um consenso: rodeios estão mais próximos da indústria do entretenimento do que do agronegócio. Como os grandes shows de música sertaneja e bailes, os rodeios são parte da festa, ganham sentido porque atraem um público pouco vinculado à cadeia produtiva da pecuária para essas feiras. Ao participar dessas atividades de entretenimento a população das cidades7 entra em contato com a produção do campo e juntamente com fazendeiros, peões e empresas “celebra” a importância do agronegócio. “Ser menos de agronegócio” não quer dizer que peões de rodeio não saibam lidar com o gado nas exposições ou que desconheçam técnicas reprodutivas de bovinos, mas que seus caminhos profissionais são distintos dos de seus colegas tratadores de gado ou peões de manejo, mas não menos vinculadas com a pecuária. Leilões, diferentemente de rodeios, são atividades “de agronegócio”. Os profissionais responsáveis pelos animais nesses cenários são os peões de manejo. Esses vaqueiros são freelancers, apesar de estarem lidando mais diretamente com o comércio da pecuária (que nesse contexto confere certo status), são pior remunerados. O trabalho como peão de manejo é visto pelos próprios vaqueiros que realizam tal atividade como transitório e “menor”: menos glamouroso que o dos peões de rodeio e mais incerto que o dos tratadores de gado. É um serviço temporário 8, que emprega tratadores e peões de fazenda desempregados ou mesmo ex-peões de rodeio que por conta de acidentes não podem mais participar de montarias. Tal caráter “transitório”, no entanto, não os deslegitima enquanto bons vaqueiros ou conhecedores das lógicas do agronegócio, muito pelo contrário. Tratadores de gado, por exemplo, 7 Tais estratégias de atração de um público externo são promovidas por associações de ruralistas, os organizadores das feiras. Essas associações de classe, congregam pecuaristas, para coletivamente, pensarem em ações que os beneficiem, tanto economicamente, como polticamente. A promoção destes eventos e ,principalmente, a atração de um público urbano, é estratégica para a manutenção do poder dessas associações. Há nesses eventos uma ênfase na pecuária e no agronegócio enquanto atividades fundamentais para a economia do país. O público pouco vinculado à pecuária, ao participar desses eventos, ir aos rodeios, frequentar leilões, assistir os julgamentos de gado ou ao shows de duplas neosertanejas, pode não só incorporar, como promover o discurso das associações de ruralistas e fazendeiros. 8 Um peão de manejo ( free-lancer) da feira de Londrina, trabalhava “ fixo” de motoboy em sua cidade de origem. No passado tinha atuado como peão de fazenda, por isso sabia lidar com o gado e pegava serviços temporários nas feiras de pecuária do interior do Paraná. 158 reconhecem que as tarefas que os peões de manejo realizam podem ser bastante árduas. O trabalho de receber, apartar, separar e apresentar o gado que irá ser comercializado nos leilões requer muita destreza, força e habilidade porque as compras e vendas ocorrem durante todo dia numa feira de pecuária e os peões de manejo têm que estar aptos a permanecer em um constate vai-e-vem entre pista e bretes9. Um peão de manejo, Anderson, explicou como funciona seu trabalho: “Eu trabalho com manejo. Trabalho pra leiloeira e eu ando na exposição inteira. O manejo mexe com o gado, ele aparta, marca, pesa, é a gente que coloca o boi pra dentro da pista pra vender. A gente que faz o serviço pesado do lado de fora...” Peões de manejo são também considerados “do agronegócio”, mas lidam no seu cotidiano com menos tecnologia (já que trabalham mais indiretamente com os adventos da genética). Eles são “mais do agronegócio” do que seus colegas peões de rodeio e “menos do agronegócio” do que os tratadores de gado. Já os tratadores trabalham cotidianamente com tecnologias reprodutivas porque são funcionários de fazendas de pecuária bovina que produzem animais de genética “altamente qualificada”10. Tais propriedades rurais criam vacas e touros reprodutores, caríssimos, utilizados para aprimorar a genética de gado comum. São esses animais que são expostos, julgados e leiloados nas feiras de pecuária. Tratadores são uma espécie de “cuidador”: banham, alimentam, escovam, vacinam, domam e transportam animais. Quase sempre são responsáveis pelo tratamento de uma única rês e isso os torna muito próximos dos animais que cuidam. Não é incomum, por exemplo, que essas vacas ou touros só aceitem carinho ou se alimentem na presença de seus tratadores. Ou que esses vaqueiros 9 Leilões de gado são atividades que ocorrem com bastante intensidade em uma feira de pecuária. Geralmente acontecem durante todo o dia e noite. Nesses encontros comerciais, animais ou suas células reprodutoras (doses de sêmen ou embriões) são comercializados. São eventos de muito requinte, são servidos almoços e jantares suntuosos com muita bebida para estimular os compradores a dar lances para a aquisição das reses. Mas nos bastidores desses eventos, os locais onde os peões de manejo trabalham, não há qualquer luxo ou glamour. Imensos currais, localizados atrás das pistas onde os touros e vacas são apresentados, organizam a entrada e saída de touros e vacas que serão comercializadas. Os peões de manejo devem domar esses animais, marcá-los, pesá-los, apresentá-los nas pistas do leilão e encaminhá-los para caminhões que os transportarão para as fazendas. 10 Genética altamente qualificada é uma categoria nativa utilizada para caracterizar vacas e touros com pedigree, cujos ascendentes e descendentes possuem caracteres fenotípicos e genotípicos considerados únicos, especiais. 159 comemorem, veementemente, a premiação ganha em um julgamento por um animal de que tratam como se fosse seu. É difícil a gente entrar com o animal na pista do julgamento, rodar lá e perder pra outro, é custoso... É o trabalho da gente que foi em vão. A gente trabalha com o gado o ano inteiro, o mês inteiro e perde pra outros animais (Bola, tratador de gado) O trabalho que realizam não está restrito ao contexto das feiras de pecuária (que é o cuidado com o gado para apresentação nos julgamentos, exposições e leilões). Nas fazendas de que são empregados, para além de tratar animais, contribuem com procedimentos de coleta de sêmen ou inseminação artificial. Tratadores de gado são considerados “mais do agronegócio” do que seus colegas peões de rodeio ou peões de manejo. Os efeitos da tecnologia no cotidiano de tratadores de gado é constante. Não só porque esses vaqueiros durante a carreira realizarão ou participarão de procedimentos de coleta ou inseminação artificial, mas porque são as misturas genéticas certeiras (o cruzamento entre touros e vacas reprodutoras) que conferem preço aos animais. Vale acrescentar que as feiras agropecuárias, locais onde tratadores realizam a maior parte de seu trabalho, são os espaços de apresentação e comércio das vantagens e alcances da genética (via insumos ou mesmo através da apresentação ou venda das vacas, touros e bezerros). Os avanços do agronegócio e das tecnologias reprodutivas são as principais mercadorias trocadas nestas feiras. Os animais corporificam os efeitos das misturas certeiras, da “boa genética”, do pedigree, do uso acertado da inseminação artificial, fertilizaçào in vitro e clonagem. E são esses efeitos, que geram os preços milionários destas reses reprodutoras nos leilões. “ A exposição seria assim uma maneira de mostrar o que a gente produz, entendeu? Porque muita gente imagina que a gente põe o boi lá e põe a vaca lá e vai nascer o bezerrinho. E não é! Em cima do acasalamento a gente tem várias ferramentas, pra se virar um produto bom. Pra isso acontecer a gente tem vários técnicos trabalhando, então não é um negócio simples assim...Tudo graças ao trabalho de pesquisa...É um trabalho investido, né? Que vai ter resultado depois, pra mostrar que a gente tá conseguindo. Todas essas exposições são mostras de ferramentas que podem melhorar o seu custo-benefício do agronegócio”. (Sandro, tratador de gado) 160 Um certo discurso sobre genética, mas principalmente sobre o agronegócio 11 é compartilhado entre peões. Tal discurso valoriza o trabalho desses vaqueiros os colocando no mesmo patamar de veterinários ou pesquisadores que estão por trás das misturas genéticas realizadas em laboratórios para produzir animais exemplares. Porque por trás de todas estas técnicas, está o trato adequado, os banhos, a alimentação, o uso de remédios e vitaminas, realizado pelos tratadores . A idéia de agronegócio, de entender as atividades “antes da porteira, “dentro da porteira” e “depois da porteira” como parte de um mesmo processo produz efeitos – apropriados, especialmente, por tratadores no contexto das feiras – que tenta desfazer algumas hierarquias, enfatizando a idéia de que o serviço realizado por todos os atores envolvidos – sejam eles mais ou menos estudados ou pior ou melhor remunerados – são essenciais para que essa cadeia funcione e gere lucros. Mas esse mesmo discurso que tenta desconstruir hierarquias organiza outros arranjos classificatórios. Como tentei pontuar a categoria nativa “ser de agronegócio” tem um sentido valorativo. Estar mais próximo “do agronegócio” confere certo status aos vaqueiros. Ser um tratador de gado é mais prestigioso que ser um peão de manejo e mesmo um peão de rodeio, cujo trabalho ultrapassa os muros dos parques de exposição e as arenas de montaria. No início da pesquisa, inspirada pela literatura clássica que ressaltava um certos ethos do vaqueiro rústico, que lida com as adversidades do tempo e da natureza para tratar e domar touros e vacas, imaginava que as relações entre os peões que realizavam tarefas nas feiras de pecuária fossem mediadas pela categoria rural x cidade. Na época, estava certa de que o fator que consagrasse peões no contexto das feiras de pecuária fosse o vínculo com campo. Como se houvessem diferenças que valorizassem aqueles que 11 É necessário destacar, todavia, que o “agronegócio” enquanto categoria nativa é apropriado por atores que compõem os cenários das feiras de pecuária. Vaqueiros ou peões que atuam em outros contextos (em plantações, fazendas de gado de animais comuns) e que, como os tratadores de gado, peões de rodeio e peões de manejo, executam trabalhos que também fazem parte de cadeias produtivas, certamente não estabelecem a mesma relação com o termo. 161 habitassem, crescessem e trabalhassem em fazendas em detrimento dos peões da cidade, das feiras de pecuária. Reflexões finais: campo, cidade, tecnologia e agronegócio Durante os trabalhos de campo realizei uma série de entrevistas. Uma das perguntas era se as feiras agropecuárias eram do campo ou da cidade. Chiquinho, um dos meus informantes privilegiados, deu a seguinte resposta: “Acho que é coisa da cidade e do campo também. Porque isso aqui melhora pro povo da cidade ver o pessoal do campo...É as duas coisas junto, eles vão ver que o pessoal do campo tá trabalhando realmente pra que ele tenha o conforto da cidade, sem o campo não ia ter alimentação pro pessoal da cidade, não teria carne, não teria nenhum tipo de alimento...Cê vê que o PIB brasileiro é mais pelo campo, né? Então tem uma importância muito grande o campo na cidade e a cidade no campo. Campo e cidade são pensados em conjunto no contexto das feiras de pecuária. A celebração do agronegócio presente nesses eventos, no entanto, instiga a celebração e valorização do campo, mas de um “campo modernizado”, tecnológico, atento às inovações da economia e da genética. Tal pauta, não é discurso exclusivo dos organizadores ou empresários desses eventos, mas também dos peões, que também vivenciam essa realidade. Essa idéia de um “campo moderno”, em certa medida, teria no termo agronegócio a possibilidade de romper a velha dicotomia rural X urbano, especialmente, se estas categorias forem pensadas, exclusivamente, em termos espaciais, já que cadeia produtiva do agronegócio não é de uma paisagem específica. Como aponta o discurso dos peões, a produção e o comércio gera efeitos tanto nas fazendas, como nas cidades. A categoria nativa “agronegócio”, no entanto, não é exatamente o substituto (simbólico, semântico) de “economia do campo”. Ganha uma amplitude maior, está mais próxima de um sentido de tecnologia do que propriamente do universo rural. Ser mais ou menos do agronegócio, nesse sentido, vincula-se ao controle (de tecnologias). Entre os peões das feiras de pecuária, as relações de prestígio estão relacionadas com a 162 possibilidade de um domínio do aprimoramento genético. Um tratador de gado é reconhecido não somente por suas habilidades com as reses, mas por trabalhar em uma fazenda que lida com tais tecnologias e por isso se consagra nos julgamentos e leilões. Tal busca pelo controle de tecnologias não é o oposto do controle da natureza 12. Se os vaqueiros dos sertões consagravam-se pelo controle de animais indômitos, rústicos, os peões das feiras de pecuária querem dominar os mecanismos genéticos que tornam as reses que tratam raras, únicas, caríssimas. O que os diferencia não é o espaço em que realizam suas atividades (o campo ou a cidade), tampouco sua bravura ou habilidade para lidar com vacas e touros, mas um enunciado: do agronegócio. A ideia de agronegócio, no contexto das feiras de pecuária, é de um tom específico. Vincula-se aos conhecimentos da genética, da economia, da gestão. Anseia eficiência, produtividade. Em certa medida, relaciona-se aos preceitos dos teóricos dos administradores e economistas que cunharam o termo agribusiness, mas nem por isso deixa de ter um significado nativo: está no cotidiano e no discurso de peões e outros trabalhadores (que compõem a base da cadeia). Este artigo dá algumas pistas sobre os múltiplos sentidos da ideia de agronegócio e sobre seus efeitos. Apesar de ser, indubitavelmente, pernicioso ao meio ambiente e às populações tradicionais, dá sentido ao cotidiano e ao universo de trabalho e de sociabilidade de muitos agentes, como os peões privilegiados nessa pesquisa. Se a antropologia é de fato, como aponta Claude LéviStrauss, a ciência do observado e se a ideia de agronegócio tem alcançado diversas instâncias, a disciplina deve estar atenta aos alcances e significados que ela tem ganhado. 12 Roy Wagner aponta que a Cultura opera ao organizar e mensurar o mundo natural. Para o autor todo esse conjunto de conhecimentos, um “arsenal de técnicas produtivas” (123), no entanto, são dispositivos para a invenção do mundo natural. Mas quando assumimos que estamos apenas mensurando esse mundo natural e fenomênico ocultamos que o criamos. A tecnologia, nesse sentido, combina mecanismos e técnicas complexas diante dos quais a natureza se impõe. Sua eficiência ou capacidade de previsão está na nossa percepção de que a natureza sempre é maior e se impõe à nós. Tal discussão vai ao encontro das técnicas do agronegócio, a genética e os conhecimentos da economia, anseiam a produção de uma pecuária mais eficiente ( roduzir vacas e touros geneticamente raras, especiais). Mas o investimento em toda essa tecnologia pode não gerar os resultados esperados e esse é o jogo do agronegócio: dominar tais tecnologias para controlar o que não é facilmente domável, a natureza. 163 Referências ALÉM, João Marcos. “Caipira e country: a nova ruralidade brasileira”. Tese de doutorado apresentada ao departamento de Sociologia da FFLCH/USP, 1996 BANDUCCI JR, Álvaro. A natureza do Pantaneiro – Relações sociais e representação de mundo no Pantanal de Nhecolândia. Campo Grande: Editora UFMS, 2007. CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. 9 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2003. DAVIS, J and GOLDBERG, R. The Genesis and Evolution of Agribusiness. In: DAVIS J; GOLBERG, R. A concept of Agribusiness. Harvard University, 1957. DURHAM, Eunice. A dinâmica da cultura: ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2004. EVANS- PRITCHARD, E. E. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1999 GUIMARÃES, Dulce Pamplona. “Celebração da modernidade: a feira e a festa nas exposições agropecuárias no nordeste paulista”. Tese de doutorado em História Social, USP, 1996. LEAL, Natacha Simei. “A Festa da Cidade: Exposição Agropecuária como palco de celebração da sociedade e cultura campo-grandense”. Monografia de Graduação (UFMS). Versão do autor (2004). 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Diante disso, este projeto propõe analisar a relação existente entre as questões de gênero e a violência escolar, a partir da investigação da percepção que os alunos de uma turma do ensino médio, de uma escola pública da cidade de Rio Claro, possuem sobre o tema. Além disso, buscou-se contextualizar historicamente as relações de gênero ao longo da história; identificar em qual gênero há a maior ocorrência de brigas; assim como elencar os motivos identificados pelos alunos para a ocorrência de violência no ambiente escolar. Os resultados encontrados demonstraram que a violência escolar praticada pelo gênero feminino está se sobressaindo à realizada pelo gênero masculino. E que em síntese, os motivos identificados para a ocorrência da violência escolar estão relacionados a desrespeito, preconceitos, desentendimentos, questões afetivas e conflitos pontuais ocorridos no cotidiano. Palavras-chave: Violência; escola; gênero. Abstract: Whereas acts of violence in the school environment reflect cultural changes and social developments experienced by contemporary society, an important aspect to be studied with regard to gender issues, specifically those related to the new role assumed by women in contemporary society. Thus, this project aims to analyze the relationship between gender and school violence from the investigation of the perception that students in a class of high school, a public school in the city of Rio Claro, have on the subject. In addition, we attempted to contextualize historically gender relations throughout history; identify which gender is the highest occurrence of fights, as well as list the reasons identified by students for violence in the school environment. The results showed that school violence committed by females is performed by the towering male. And that in a nutshell, the reasons identified for the occurrence of school violence are related to disrespect, prejudices, misunderstandings, emotional issues and conflicts occurring in everyday spot. Key words: Violence; school; gender. INTRODUÇÃO Por toda a história da sociedade sabemos o quanto à violência tem se apresentado marcante. Violência sempre existiu, e segundo Minayo (1994, p.7) “é um dos eternos problemas da teoria social e da prática política e relacional da humanidade”. A violência de forma simbólica, psicológica e real vem sendo desenvolvida por uma cultura de agressões, tanto física quanto emocional e moral. Tanto a violência urbana quanto as diversas formas de violência estão se alastrando por toda 1 2 3 Mestranda do programa em Educação Escolar pela Faculdade de Ciências e Letras – UNESP Araraquara, SP. Brasil. CEP: 14800-901, Araraquara, SP, Brasil. [email protected] Docente do Departamento de Sociologia pela Faculdade de Ciência e Letras – UNESP Araraquara, SP, Brasil. CEP: 14800-901, Araraquara, SP, Brasil. [email protected] Especialista em “Ética, Valores e Cidadania” pela USP, Universidade de São Paulo, SP, Brasil. [email protected] 165 a sociedade. Apesar de melhores condições de vida, diminuição das desigualdades sociais e o fortalecimento da democracia, esse processo de aumento da criminalidade em todas as esferas da sociedade é, no mínimo, paradoxal. (GONÇALVES; SPOSITO, 2002). Assim, é pertinente a análise do fenômeno da violência dentro do ambiente escolar, onde há a necessidade de reflexão sobre os acontecimentos sociais para uma possível transformação cotidiana. Se a violência habita até mesmo a instituição que deveria preparar cidadãos para combatê-la, torna-se inquestionável a necessidade de averiguação desse fenômeno dentro da escola. Quando nos referimos ao âmbito educacional nos remetemos às instituições escolares de ensino. Na concepção de Marriel (2006, p.36), para a sociedade, a escola é um lugar privilegiado para refletir sobre as questões que envolvem crianças e jovens, pais e filhos, educadores e educandos, bem como as relações que se dão na sociedade. É também nesse universo onde a socialização, a promoção da cidadania, a formação de atitudes, opiniões e o desenvolvimento pessoal podem ser incrementados ou prejudicados. Sendo assim, por todas essas e demais características advindas do espaço escolar, torna-se difícil, apesar de visível, tomarmos o conhecimento de que a violência tem ocupado também as escolas, e, portanto, denominando tal modalidade de ação como “violência escolar”. Considerando que as ações de violência no ambiente escolar refletem as mudanças culturais, sociais e econômicas vivenciadas pela sociedade contemporânea, ao analisarmos os aspectos da violência nas escolas é importante não estudarmos de forma isolada, mas sim a partir de uma ótica global que não discrimine quaisquer fenômenos ou elemento da sociedade. Nesse sentido, um aspecto relevante a ser estudado, no que diz respeito às atuais mudanças vivenciadas pela sociedade é a violência escolar, mais especificamente, as que correspondem às questões de gênero, que estão relacionadas ao novo papel assumido pela mulher na contemporaneidade. Partindo do pressuposto de que as mudanças ocorridas no papel empenhado pela mulher na sociedade interferem direta e indiretamente nas relações existentes e demarcadas pelo gênero; e, 166 considerando o ambiente escolar como um local em que há um reflexo e continuidade do que se acontece na sociedade; é plausível dizer que a violência escolar também possui influências nas questões de gênero. Diante disso, este projeto possui como problemática o seguinte questionamento: Qual a relação existente entre as questões de gênero e a violência escolar? Ao nos depararmos com um questionamento tão amplo, optamos por trabalhar o tema a partir da ótica daqueles que estão diretamente envolvidos: os alunos. Por isso, este projeto tem como objetivo principal analisar a relação existente entre as questões de gênero e a violência escolar, a partir da investigação e da percepção que os alunos demonstram. Além disso, buscaremos contextualizar historicamente as relações de gênero ao longo da história; identificando em qual gênero há a maior ocorrência de brigas; assim como, elencar os motivos identificados pelos alunos para a ocorrência de violência no ambiente escolar. Pensando em atingir os objetivos propostos, a metodologia utilizada em síntese se resume em três etapas: a primeira consiste na realização de um levantamento do referencial teórico existente sobre o tema; a segunda etapa compreende na pesquisa de campo que se constitui na coleta de dados, a partir da realização de uma aula expositiva a respeito do tema da pesquisa será aplicado um questionário semi-estruturado; a terceira e última etapa consistiram na tabulação dos dados coletados com consecutiva análise qualitativa e quantitativa dos mesmos, no intuito de respaldar as análises realizadas referentes a relação existente entre as questões de gênero e a violência escolar. Aplicou-se os questionários a todos os alunos do 2º ano noturno do Ensino Médio. Optou-se por entregá-los para meninos e meninas visando à importância de compreender a forma com que eles entendem a violência como uma totalidade e não somente em uma visão unilateral quando focada em um dos sexos. 167 UM BREVE PANORAMA SOBRE AS DIFERENÇAS ENTRE GÊNEROS É observado por diversos profissionais da educação uma mudança no lócus da violência escolar. Se antes era nítida uma subcultura criminosa marcada pela atuação masculina (ZALUAR, 1992) hoje é significativo salientarmos o aumento das brigas entre meninas dentro do ambiente escolar. Para que possamos elencar as causas e tecer observações acerca de pesquisas empíricas realizadas, é preciso recorrer à História para entendermos em qual contexto as diferenças entre gêneros moldaram a construção de diferentes atores sociais (GOFFMAN, 1975) que interagem e se socializam na escola. A história da nossa sociedade evidencia que a mulher foi por muito tempo, foco da opressão e, atualmente, vem conquistando seu espaço na sociedade em busca da igualdade em diferentes aspectos da sociedade. Segundo Bobbio (1992) o advento do Iluminismo, datado do início do século XVIII, trouxe ao cenário de discussão política a necessidade de ampliação dos direitos civis a todos. A noção de cidadania foi reconstruída e expandida a diversos grupos emergindo a discussão de direitos iguais entre homens e mulheres. Na esteira da história, se o Iluminismo pregava que todos os homens são iguais por natureza havia a extrema separação entre a esfera pública e a esfera privada. Segundo Scavone (1991) a esfera pública perpassava pelas discussões políticas engendradas no governo onde a participação das mulheres era restrita. A esfera privada era compreendida a da família e do lar, na qual homens e mulheres tinham papéis sociais completamente distintos, assim, a chamada teoria da complementaridade sexual, soava natural. Dizia-se que as mulheres não eram iguais aos homens, e sim, opostos complementares (DEUTSCH, 1987), teoria esta que se adaptou facilmente aos moldes da época e fez a desigualdade parecer algo inerente às relações entre homens e mulheres. Assim sendo, as mulheres não eram vistas somente como inferiores a eles, mas 168 incomparáveis, por diferenças fundamentais. Elas eram diferentes; física, moral e intelectualmente. Scott (1990) afirma que pesquisadoras feministas com uma visão política mais global apelavam regularmente às categorias de classe, raça e gênero para “a escrita de uma nova história”. A utilização do termo “gênero” pelas feministas americanas objetivava enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra indicava uma rejeição do determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”. Há um marco então entre as conceitualização de sexo e gênero. O termo “gênero” enfatizava igualmente o aspecto relacional das definições normativas da feminilidade. Passou-se, através desta visão, a descentrar a mulher, única e exclusivamente, como o foco de estudos, e a analisar homens e mulheres como definidos em termos recíprocos, não se podendo compreender qualquer um dos sexos de maneira separada. Para Scott (1990, p. 68): A partir do gênero pode-se perceber a organização concreta e simbólica da vida social e as conexões de poder nas relações entre os sexos; o seu estudo é um meio de decodificar e de compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana. O surgimento do conceito de gênero e, mais especificamente, a formação da identidade de gênero, se deu no bojo da trajetória do movimento feminista que conjuntamente com as Ciências Sociais procurou encontrar uma explicação, seja ela teórica ou prática, para a situação social das mulheres. Segundo Blay (2003) é a partir da segunda metade do século XIX que há uma reconfiguração do cenário da instituição família, o panorama econômico e cultural sofreu drásticas mudanças quando se atribuiu a mulher novos papéis sociais. A industrialização e a urbanização alteraram a vida cotidiana, particularmente das mulheres, que passaram a, cada vez mais, ocupar o espaço das ruas, a trabalhar fora de casa, a estudar, entre outras atividades em âmbito social. Para Giddens (1991), é com a modernidade e os constantes processos de industrialização, em especial a partir dos anos 60, que se observam profundas transformações sociais, políticas, econômicas e culturais que modificam toda a estrutura da sociedade (SCAVONE, 1991), a começar pela noção de família. A inserção da mulher no mercado de trabalho reorganizou e desconstruiu 169 padrões tradicionais de família e transformou o papel da mulher na sociedade. As profundas transformações ocorridas no cenário social no século XX, oriundos principalmente do movimento feminista vão resignificar todos os pilares e valores de uma sociedade gerando novos problemas e desafios à contemporaneidade (BAUMAN, 2001). Ainda que validemos as profundas transformações em que passou nossa sociedade, principalmente a estrutura da família e o papel da mulher não se pode esquecer que ainda encontramos a discriminação social das mais variadas ordens. Segundo Londa Shinbierger (1995), podemos observar que a estruturação das instituições científicas e o contexto histórico em que elas estão inseridas podem encorajar ou desencorajar a participação das mulheres nesse novo contexto do mercado de trabalho. No entanto, pela divisão de trabalho, as mulheres têm que geralmente optar ou pela carreira profissional, ou pela manutenção da dita família tradicional. Via de regra, não podem optar por dedicação exclusiva a uma e outra esfera e são obrigadas a uma dupla jornada de trabalho. São provedoras e responsáveis pelo funcionamento do lar. No quadro das mudanças sociais mais recentes, o que se espera das mulheres é que além de mães e esposas exemplares, sejam boas profissionais. Nas últimas décadas o papel da mulher foi revisto e sua função na sociedade passa por alterações importantes, assim, a maternidade pode ser vista como um desvio social na medida em que a realização pessoal feminina poderá ser alterada com a chegada dos filhos. Atualmente, embora a maternidade seja “aparentemente” opcional, ela continua a definir a identidade feminina, e é aceita como uma situação inexoravelmente ligada à situação social das mulheres. Partindo de uma perspectiva de gênero transmitida pelo modelo familiar a maternidade aparece como um referencial definidor da feminilidade. Ainda na esteira de Scott (1990) se evidencia a necessidade de se entender o gênero enquanto a relação entre os sexos, de como é assegurado um significado para os conceitos de 170 homem e mulher e as práticas pelas quais os significados da diferença sexual são definidos. Segundo Torrão Filho (2002, p. 186), o gênero dá significado às distinções entre os sexos, e “transforma seres biologicamente machos e fêmeas em homens e mulheres, seres sociais”. Se há diferenças biológicas entre os sexos, não são elas que determinam as desigualdades entre eles. Pois as mulheres não são obedientes, castas, perfumosas e caprichosamente enfeitadas já por natureza. Só podem conseguir essas graças, sem as quais não lhes é dado desfrutar nenhuma das delícias da vida, mediante a mais enfadonha disciplina. No entanto, mesmo reconhecida pela academia, a história das mulheres passou a ser entendida muitas vezes, como um assunto especificamente feminista, ou como uma história que diz respeito aos aspectos privados da casa, da família, da reprodução e do sexo, em oposição ao que realmente importaria à História, que é o domínio público da existência. A guerra, a economia, a política e outros temas nobres não teriam assim nenhuma relação com as questões de gênero. Para Scott (1990), essa visão da história das mulheres coloca um desafio teórico, que questiona: Como o gênero funciona nas relações sociais? Como o gênero dá sentido à organização e à percepção do conhecimento histórico? As respostas dependem do gênero como categoria de análise. A VIOLÊNCIA ESCOLAR RELACIONADA À QUESTÃO DE GÊNERO A escola foi entendida, por muito tempo, como uma instituição protegida, neutra e distante das manifestações sociais transformadoras. Atualmente, não entendemos que a escola seja considerada de forma apartada de sua comunidade e da realidade em que está inserida; pois está imersa na cultura, na comunidade, na representação social e política, em contínua interação com o seu contexto. Assim, a escola ganha na modernidade um papel importante de difusão de valores e reprodução de crenças e aspectos culturais que nortearão toda a estrutura de uma sociedade. Para Castells (2003, p. 380), a escola é: 171 [...] um dos principais agentes de difusão de inovações sociais porque gerações após gerações de jovens que por ali passam, ali conhecem novas formas de pensamento, administração, atuação e comunicação e se habituam com elas. É na escola que coexistem inúmeras relações de poder, reformulando as estruturas hierárquicas internas a todo mundo. Logo, é preciso compreender as estruturas de poder de uma sociedade para que se possa entender a dimensão da reprodução social (BOURDIEU, 1997) que existe no espaço escolar. É difícil pensarmos nos múltiplos problemas sociais, sem entendermos o seu reflexo na escola. Diante desta dimensão onde optou-se por compreender a violência escolar dentro de uma esfera mais ampla ou seja, a relação de poderes e a microfísica do poder existente na sociedade moderna capitalista. Não podemos falar em violência na escola sem recorrermos a uma análise das relações presentes dentro do âmbito escolar. Para tanto, é fundamental basearmos nossas discussões em Michel Foucault. Por ser seu maior interesse de estudo, o sujeito. Foucault foca-se neste sujeito, enquanto detentor de conhecimentos e saberes, principalmente, em como é formada a figura do sujeito. Buscou então, diretamente na formação dos indivíduos, através de dados recortes da História o que nos faz sujeitos. Encontrou, com apoio em posições de Friedrich Nietzsche, o chamado processo que faz os homens serem capazes de cumprir com suas obrigações. Através de simples práticas disciplinares, de mecanismos de poder, forjamos um sujeito que é consciente de seus pensamentos e atos, responsável por suas decisões e que cria sua vida social calcada em promessas, feitas e a serem cumpridas. Este sujeito, coagido, atua não por necessidade pessoal, mas por medos e receios, por culpa e angústia, por arrependimento e temor de punição. Assim, nossa subjetividade é preenchida por práticas disciplinares e o êxito da sociedade moderna está apoiado na disciplinação dos corpos e mentes, que garante um pensamento unitário. Sobre a punição e estruturas hierárquicas, Foucault diz: 172 A divisão segundo as classificações ou os graus tem um duplo papel: marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e as aptidões; mas também castigar e recompensar... a disciplina recompensa unicamente pelo jogo das promoções que permitem hierarquias e lugares; pune rebaixando e degradando. O próprio sistema de classificação vale como recompensa ou punição. (FOUCAULT, 1987, p.151) A partir desta constituição, a relação entre poder e educação é muito aproximada, uma vez que os moldes escolares modernos têm suas bases em modelos disciplinares. Assim, ao invés de considerar que existe a construção do saber somente na ausência dos poderes coercitivos, Foucault faz o caminho reverso e considera que é justamente com a relação de poder que se produz o saber. Ao mesmo tempo, inexiste saber que não construa relações de poderes e não pressuponha um campo de conhecimento. Baseado no disciplinamento, na vigilância, nas práticas de controle e poder, nas provas e exames é possível construir um retrato das estruturas escolares. Desde a disposição das carteiras, da construção dos corredores até a postura dos professores em sala de aula e na construção do currículo escolar. Tudo isso refletem hierarquias e relações de poderes que impõem uma multiplicidade de indivíduos condutas unificadas, que formam sujeitos disciplinados, obedientes que respondem às necessidades das instituições geradas pela sociedade moderna. Desta maneira, é possível dizer que a escola possibilita a realização da modernidade da maneira como ela está. É nessa multiplicidade de indivíduos que podemos focar a importância da mídia para a constituição de uma relação hierárquica de poder, sendo necessário a reprodução das desigualdades e da violência dentro da escola. A violência escolar entre as meninas está permeada de simbologia que vai além da análise do senso comum, sendo pautada na reprodução de habitus (BOURDIEU, 1999) e de padrões de beleza e comportamento permeada por uma esfera da microfísica do poder (FOUCAULT, 1987). Foucault ainda aborda as questões dos corpos dóceis. A domesticação dos corpos estaria baseda na ideia de que a disciplina molda o corpo para aceitação dos acontecimentos cotidianos, sem questioná-los, mantendo-se no senso comum. 173 A disciplina auxilia na formação de sujeitos cujos corpos são submissos, dóceis. Ela intensifica a utilidade corporal, de produtividade econômica e ao mesmo tempo em que diminui esta força quando se tem obediência. Foucault explica que o poder é dissociado do corpo: ao mesmo tempo em que o torna capaz, potente, restringe estas potencialidades pelas normas e limites que impõe, direta ou indiretamente. O corpo, então, se manipula, se modela, é hábil. Os corpos disciplinados permitem que se tenha um controle minucioso de suas ações, sua docilidade é o que permite forçar também uma utilidade, é o tanto mais obediente quanto é mais útil. Sobre este corpo docilizado, a manipulação é simples, se consente o cálculo de suas atitudes e comportamento. Os corpos dóceis ficam suscetíveis, em uma ordem capitalista permeada pela microfísica do poder, ao consumo. A ideia de consumo está hoje inteiramente ligada ao desejo de posse, como explica Freire (2004, p.77): Consumismo, portanto, é o modo que o imaginário econômico encontrou de se legitimar culturalmente, apresentando as mercadorias como objetos de necessidades supostamente universais e pré-culturais, e ocultando, por esse meio, as desigualdades econômico-sociais entre os potenciais compradores. O consumismo ligado à moda está cada vez mais sendo exaltado. A marca puramente estética da moda faz com que a criação, não responda a nenhuma finalidade objetiva, mas favorece a reunião, o particular das emoções; sendo assim, há o caráter irrealista da moda. A comunicação exacerbada, a globalização, não remete simplesmente ao desenvolvimento tecnológico; também tem outras conotações. Podemos notar como há a massificação da cultura, do lazer, do turismo, do consumo e é evidente que são causa e efeito de um tribalismo exacerbado. Bauman (1998) afirma que a marca da pós-modernidade é a “vontade de liberdade”, capaz de acompanhar a velocidade das mudanças econômicas, tecnológicas, culturais e do cotidiano. Neste mundo não há como se sentir seguro e estável; pois é tudo muito incerto e porque não dizer: assustador. Isso porque, as questões pós-modernas não encontram utilidade para a “certeza”, para a “segurança”, ou mesmo para a “estabilidade”. Como afirma Bauman (1999a), aquele desejo imenso 174 de poder que animou a busca do definitivo desperta agora pouco entusiasmo. Já o que desperta grande paixão é o que a sociedade atual incita-nos a fazer, que é desempenhar o papel de consumidor. Contrera (2003, p.105) faz a seguinte pergunta: “Por que a necessidade aparentemente exagerada de pertencer ao grupo, mesmo que isso signifique consumir, consumir, consumir?”. É através da posse dos objetos que muitas pessoas se expressam hoje, portanto o desejo é realizado na compra, posse e descarte das coisas. Enfatizamos aqui a dimensão simbólica do consumo como prática de representação das estruturas de significação da sociedade capitalista. Consumir torna-se, sob o ponto de vista antropológico, verdadeira prática ritual que representa a organização social e o universo simbólico dessas sociedades. O consumo, pelo fato de possuir um sentido, é uma atividade de manipulação sistemática de signos. O indivíduo não consome a materialidade do produto, mas os significados que, por intermédio do produto, geram uma série de valores compartilhados pela sociedade capitalista. Tendo como base Foucault para a explicação das relações de poder e a importância de um aparelhamento disciplinador para a propagação das desigualdades sociais da violência na escola, podemos refletir de que forma a indústria cultural ou a cultura de massa influência no cotidiano das estudantes. As origens da violência contra a mulher são diversificadas e aqui cabe a nós apenas fazermos alguns apontamentos sobre os desdobramentos desta para a violência escolar. É, também, importante ressaltarmos que a luta por equidade de gêneros é uma luta ainda recente e resquícios de desigualdades ainda estão por todas as partes da sociedade. Ao levantar a literatura sobre violência escolar percebe-se que quando a mesma é analisada a partir do gênero de seus agressores e vítimas, há uma tendência em se polarizar a situação, colocando os meninos como os principais agressores e as meninas como suas possíveis vítimas. 175 Percebe-se que, freqüentemente, esta violência é dirigida às meninas. Por culturalmente terem sido representadas como frágeis tornam-se alvos preferenciais dos meninos que as agridem utilizando os diversos tipos de linguagem da violência desde a ameaça, aos socos e tapas. Em geral as meninas são tratadas com pouco respeito, de modo jocoso, a partir de apelidos e palavras grosseiras de cunho sexual. (COUTO, 2007, p. 208) Há diversas razões pelas quais as meninas briguem na escola. Estes fatores perpassam por várias dimensões: familiar, social, midiática, cultural entre outros, nas quais as marcas de gênero estão presentes e relacionam-se com outros fatores, tais como a violência na escola, a fofoca e a ausência de outra prática de solução de conflitos. As meninas se defendem e são capazes de intimidar também os meninos, como uma forma de garantir respeito a elas. Como as estudantes passam a maior parte do tempo na escola, refletem essas práticas se confrontando por interesses diversos e construindo estereótipos de gênero, para romper a invisibilidade. Elas também agem assim como forma a alcançar a popularidade e reconhecimentos: as brigas na escola garantem bom público para aquelas que buscam popularidade. Ao aumento da violência masculina, Assis e Constantino (2001) observaram e associaram mudanças e influências que as jovens estão tendo também em relação à violência. A linguagem da violência tem ocorrido de forma tão cruel entre as meninas quanto ocorre normalmente entre os meninos (NJAINE; MINAYO, 2003). Segundo Neves (2008), podemos dizer que a violência na questão de gênero , muitas vezes é vista como “coisas de garotos” ou seja, em nossa sociedade é considerado “normal”, pois culturalmente os garotos utilizam essa prática para solucionar conflitos. No entanto, estamos encontrando meninas que afirmam poder enfrentar e solucionar conflitos no mesmo patamar de violência e agressões que os garotos. Como vimos então, parte dessa violência está ligada à mudança no papel feminino. Ziemkiewicz, Mendonça e Guimarães (2011) mostram que em um levantamento com 320 adolescentes entre 10 e 19 anos, feito pelo Centro de Atendimento e Apoio ao Adolescente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sugeriu que 22% das meninas atendidas têm 176 comportamento violento contra outras pessoas (como meninos, amigas, pais ou professores), enquanto esse padrão só aparece em 12% dos meninos. Essas autoras, também colocaram os apontamentos de Miriam Abramovay, explicando que ano a ano, a agressividade entre as meninas está aumentando, e em um estudo coordenado por ela com 13 mil estudantes das capitais brasileiras, 10% das meninas afirmaram já ter batido em alguém na escola. Ainda na reportagem feita por Ziemkiewicz, Mendonça e Guimarães (2011), o psicanalista Davis Leo Levisky explica que o comportamento agressivo das jovens estudantes também se dá devido os fatores de instabilidade emocional, mudanças biológicas, hormonais e emocionais característicos da adolescência. Por isso, para mostrarem mais independência, diante das pressões dos grupos de amigos, as jovens sucumbem até às atitudes violentas se for necessário. Em um artigo de jornal, escrito por Miriam Abramovay e Jorge Werthein (2009), vemos como tem sido cada vez mais frequente esses episódios relacionados à violência envolvendo adolescentes do gênero feminino em vários municípios e não é só nos grandes centros. Por exemplo, em meados de outubro de 2009, na cidade de Ribeirão Preto (interior do estado de São Paulo), 13 meninas com idade entre 11 e 15 anos prestaram depoimento no Ministério Público por serem suspeitas de integrar o “Bonde do Capeta”, um grupo de alunas da sétima série do ensino fundamental de uma escola estadual na periferia. As jovens se reuniam para ameaçar e estapear colegas mais bem vestidas e com notas melhores. Esses episódios realmente já fazem parte do cotidiano das escolas, envolvendo estudantes do sexo feminino em atos de violência física, microviolencia e violência símbólica. ANÁLISE DOS RESULTADOS Tabela 1. Existe ou não violência na escola Existe Não existe Às vezes 50 01 01 177 É possível observarmos que quase todos os entrevistados confirmam a existência da violência, sendo apenas dois que contrapõem, e destes apenas um afirma existir violência “às vezes”. Nos possibilitando acreditar que atualmente tem sido “comum” convivermos com atos de violência. Certamente a história da humanidade demonstra fatos que denotam a sociedade convivendo com a violência por diferentes aspectos. Dentro ou fora da escola, tanto a violência vivida como a testemunhada surtem efeitos na vida dos estudantes adolescentes. As formas de violência afetam seus desempenhos e relações, além de contribuírem com a ampliação da violência social geral. E a escola passa a ser parte desse problema, apesar de ao mesmo tempo ser uma das possibilidades para sua solução (CARDIA, 1997). Tabela 2. Presenciou algum ato de violência na escola Sim Não 50 02 Diante das respostas da questão 4, está cada vez mais nítida a presença da violência, pois dos 52 participantes da pesquisa, 50 afirmam terem presenciado atos de violência e apenas 2 dizem que não. Identificaram como os principais motivos para a ação de atos violentos situações envolvendo futilidades e falta de diálogo, como por exemplo: as pessoas brigam por motivos que não existem; são pessoas que não sabem conversar. Podemos pensar que a geração atual está se formando diante de atos de violência e que talvez estejam legitimando a ideia de normalidade para esta temática. 178 Tabela 3. Presenciou mais brigas entre: Meninas/meninas Meninos/meninos Meninas/meninos 37 13 02 Nesta questão é importante, em especial, para esta pesquisa quando observarmos o percentual alto da presença de brigas entre meninas, sendo 37 dentre os 52 questionários respondidos. Em pesquisas sobre violência escolar, realizadas por Njaine e Minayo (2003), também constataram que, apesar dos atos considerados como mais violentos serem cometidos por meninos, suas manifestações estão cada vez mais envolvendo as meninas, principalmente quando os assuntos envolvem relacionamentos de namoro. Deste modo, sobre essa perspectiva de violência entre meninas, Neves (2008, p. 55) expõe que “ao recorrerem à agressão, as jovens recusam um determinado modo de ser garota e feminina e podem expressar uma agenda de mudanças que problematizam a associação da identidade feminina como necessariamente avessa à agressão.” CONSIDERAÇÕES FINAIS Atualmente a violência se faz presente em todos os ambientes permeados por relações sociais, atingindo até mesmo o reduto escolar, espaço que até então era notório como responsável pela aprendizagem, educação e formação do aluno e de cidadãos. Ao considerar que a escola reflete as mudanças culturais, sociais, políticas e econômicas da sociedade contemporânea, a violência escolar tem se tornado cada vez mais um fenômeno preocupante; pois, como apresentado na mídia, vivemos um momento de considerável aumento da violência praticada no ambiente escolar; assim como de banalização desses atos, que muitas vezes são desencadeados por motivos triviais e até mesmo irrelevantes; e pela constante sensação de que a violência já é algo natural à sociedade. 179 Sendo a escola um ambiente em que há o encontro da repercussão das atuais mudanças vivenciadas pela sociedade e da perpetuação de práticas sociais históricas; ao se trabalhar a temática da violência escolar sob a ótica do gênero, percebeu-se que muitas das pesquisas realizadas, ao identificar o gênero dos agressores e vítimas tinham a tendência de polarizar a situação, baseandose em construções históricas em que a mulher era vista como recatada, dona do lar e submissa ao marido; e os homens como provedores do lar, o “sexo forte”; destacando assim, as mulheres como vítimas e os homens como seus possíveis agressores. Buscando analisar a relação existente entre as questões de gênero e a violência escolar, a partir de investigação da percepção que o aluno tem acerca da violência presente no ambiente escolar nos deparamos com a forte influência que a mídia possui na construção da identidade dos adolescentes. Diante do poder de manipulação da mídia e do retrato que esta construiu ao novo papel social da mulher na sociedade, observou-se que houve uma reviravolta na imagem de valorização da mulher, um feminismo distorcido; em que as mulheres não mais são vistas pela ótica familiar, em que ocupavam o papel de donas do lar; mas sim, como provedoras sexuais, evidenciando o corpo em prol da escolaridade, e que através dele buscam a ascensão na vida. Essa empobrecida imagem vendida pelos meios de comunicação influencia diretamente a vida das adolescentes, que a todo o momento buscam afirmar tal identidade, fomentando ainda mais o sentimento de posse nas relações afetivas; o que justifica o resultado encontrado nessa pesquisa, o qual identifica como o principal motivo para a prática de atos violentos pelo gênero feminino questões de cunho amorosas, como namoro e ciúmes. Nesta pesquisa ao se deparar com o dado de que o gênero feminino é o que mais se envolve com ações de violência no ambiente escolar, empenhando muitas vezes o papel de agressoras, percebemos que a violência escolar não deve ser trabalhada de forma a corroborar com a produção e reprodução das desigualdades de gênero, em que se analisa uma situação apenas a partir dos 180 estereótipos de feminilidade e masculinidade. É importante que as construções históricas referentes às relações de gênero sejam utilizadas como meio para se entender as atuais mudanças evidenciadas na sociedade e pela mídia sobre o papel da mulher contemporânea; e não apenas como justificativas para a existência de uma imagem vitimizadora baseada em um passado de opressão e submissão do sexo feminino. No que diz respeito à violência, embora saibamos da complexidade e multiplicidade deste fenômeno, e que seus fatores externos geram impactos sobre o âmbito escolar; propomos que dentro da própria escola seja possível lidar com as diversas modalidades de violência de forma diferente, construindo estratégias de educação e cultura de paz, sob o desafio de uma ótica multidimensional, pluricausal e transdisciplinar. (ABRAMOVAY, 2003) É por isso que consideramos ser de suma importância que as escolas trabalhem como mediadoras, incentivando uma reflexão crítica dos alunos a respeito das mudanças vivenciadas na sociedade e de tudo o que a mídia apresenta como realidade. Referências ABRAMOVAY, Miriam et al. Violências nas escolas: versão resumida. Brasília: UNESCO Brasil, 2003. ASSIS, S. G.; CONSTANTINO, P. Filhas do mundo: infração juvenil feminina no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BOURDIEU, Pierre. “A dominação masculina.” Rio de Janeiro, BCD União de editoras, 1999. BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro, 1983. Marco Zero. COUTO, M. A. S. Violência e representações de gênero no cotidiano escolar. Scientia Plena, Sergipe, v. 3, n. 5, 2007. DURKHEIM, Émile. Definição de educação. In:. Educação e sociologia. 3. ed. Tradução de Lourenço Filho. São Paulo: Melhoramentos, 1952. FOUCAULT, M. 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