Preview - Entrelugares

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Preview - Entrelugares
Entre AVATAR e UM ESTRANHO NO NINHO, ou:
como se virtualizar transculturalmente
O mundo do filme AVATAR de James Cameron é um mundo virtual. Tudo é real, os
avatares tanto quanto os nativos Na´vi ou os colonizadores, cientistas e militares querendo se
apossar do mineral unobtánio. Produzido por Hollywood, AVATAR re-significa miticamente a
história do Império americano, em primeiro lugar a derrota US no Vietnã, para essa história se
tornar sustentável para a esquerda democrata que trouxe Obama ao poder. Os heróis são um
deficiente físico paraplégico (antigo marine, soldado de elite do exército US), um negro, uma
“chicana” (pilota de helicóptero), uma branca loura, ou seja, o melting-pot que constituiu a
América e possivelmente está em processo mítico de renascença e re-significação a partir do
baixo (de pessoas estigmatizadas como deficiente, negro, mulher, chicana), frente ao mundo
do passado Reagan-Bush, guerreiro, machista e racista personalizado pelo coronel Quaritch.
Por que escrevo isso? Pois aprendi com alguns bons teóricos e pela minha experiência de
vida que quando falamos do outro, primeiro falamos de nós. A projeção do nosso inconsciente
é a atitude mais comum que existe e, se não nos conscientizarmos nem analisarmos essa
projeção, produzimos um fantasma de objetividade e neutralidade: a verdadeira objetividade
depende da aceitação crítica da nossa subjetividade. No próprio filme AVATAR, os brancos
americanos são os “aliens” dos indígenas, conforme estes dizem. Por hibridização genética, os
avatares são espíritos brancos americanos colocados em corpos indígenas e andando na
floresta nativa. No meu ver, se eu deslocar a minha vista e tomar um virtual olhar indígena1,
eles são realmente os aliens dos próprios indígenas; são eles, os indígenas mesmos, quando
alienados nas nossas escolas e igrejas.
A paisagem lembra as belíssimas montanhas do Norte do Vietnã e Sul da China, com a
natureza massacrada pelo napalm, e a presença das aves encantadas, os Ikran lembrando o
dragão e a fênix oriental, símbolo de iluminação, beleza e felicidade. Os helicópteros, que
lembram tanto o instrumento do poder americano no Vietnã, têm aparência de monstros
híbridos com animais, como se fossem o espelho negativo dos animais monstruosos e
perigosíssimos da floresta que lutarão, no fim do filme, pela salvação da floresta e libertação
do povo - numa nova derrota do exército dos Estados-Unidos. Um amigo meu Pankararu me
disse: “Não existe animal ruim ou que não seja útil; todos são necessários pelo equilíbrio da
natureza, podem ser ruins somente do ponto de vista seu, limitado.”
Os nativos Na´vi são do clã Omaticaya. São humanóides de cor azul, de até três metros de
altura, com cauda e trança; eles não são organizados por uma Frente Nacional de Libertação
ou por um Partido Comunista Nativo e sim são mentalmente bem parecidos – pelo menos para
1
Como Muniz Sodré toma um olhar negro sobre, respectivamente, o território e a cultura em O terreiro
e a cidade e em A verdade seduzida.
1
quem2 leu os livros dos antropólogos - com os indígenas que os colonizadores que criaram os
Estados-Unidos (e o Brasil) quase exterminaram. Rezam pelos animais que matam,
comunicam-se com as energias espirituais de vida e morte da natureza, usam adornos
corporais e possuem rituais iniciáticos extremamente exigentes.
Quem é mestre de iniciação é uma mulher, Neytiri, futura xamã, iniciando um homem, o
herói, nos mistérios da natureza. Ela é uma interface entre duas culturas em luta, que soube
decifrar os signos místicos da natureza mostrando o quanto angélico (!) era o espírito do seu
protegido e futuro amante.
Jake Sully, o iniciado, o Avatar-Herói, outro interface e mediador cultural, é considerado
como um duplo traidor, do seu exército, logo, do seu país, e em certo momento do filme, do
próprio povo nativo que o aceitou no seu seio.
As interfaces habitam entrelugares. São potentes tradutores em comunicações
interculturais. Traduttore tradittore? Nem tanto: estou tentado em teorizar um pouco o
tradutor como potencializador e virtualizador de um texto. Pois não se pode traduzir sem criar
um intertexto, com múltiplas dimensões que nem o texto original nem a tradução tem. Em
AVATAR como no filme de animação O CASTELO NO CÉU de Hayao Miyazaki, pedras gigantes
flutuam no ar: outras dimensões, outra métrica 3 do espaço. Potencialização da vida. Assinatura
da tradução; transdução e abdução.
Re-escrever a História, renascer numa forma de iniciação simbólica como cidadão da
miticamente purificada América pós-Bush, como feminista, anti-colonialista e anti-militarista,
protetor do meio ambiente, certo; mas sempre como imperialista: o herói, cidadão dos
Estados-Unidos, é o Salvador, é para ele que se voltam os indígenas desesperados. Certo
equilíbrio ameniza essa posição de oniciência e onipotência, pois, por um lado, ele é salvo duas
vezes pela sua amante indígena e, por outro lado, ele aprende dos indígenas e da natureza.
Além disso, a própria natureza, aves e animais terrestres, participam da salvação comum. Mas
só ele, o “bom” branco, nesses tempos de grande perigo, consegue domar o Toruk (“Última
2
Nunca pretendo falar de verdade, e sim de imagens mentais de uns sobre outros, as quais participam
da construção social da realidade.
3
Para quem gosta de física (o que é pertinente ao considerar um filme como AVATAR): na Teoria da
Relatividade Geral, a densidade de massa e energia condiciona a estrutura do espaço-tempo – chamada
de “métrica” do espaço-tempo, a qual determina e a dinâmica e a trajetória dos objetos contidos no
Universo e a velocidade do passar do tempo. Mudar a métrica da nossa experiência físico-espiritual do
espaço-tempo é entrar em outras densidades mentais, em outros sistemas energéticos e em outras
durações. Quem pratica a ioga tântrica ou experimenta plantas enteógenas geradoras de transes sabe
do que estou falando. Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, chamam isso de desterritorialização. Para
continuar a metáfora física, a interculturalidade crítica seria como a Relatividade Restrita e a
espiritualidade transcultural seria como a Relatividade Geral. A diferença é que na Geral, a densidade
local da matéria curva o espaço-tempo e contribui na sua definição. Metaforizando: “A tua densidade e
potencialização energética, mano, determina a estrutura do espaço-tempo em que estas vivenciando e
interpretando tuas experiências humanas!” Por essa razão há de praticar regularmente rituais.
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sombra”, em língua Na´vi), ave gigante rainha do céu, honrada e temida dos indígenas e das
aves que cavalgam. A superioridade branca é claramente afirmada nos altíssimos céus.
Interessante deste ponto de vista é a comparação com outro Salvador, McMurphy,
interpretado por Jack Nicholson, no filme UM ESTRANHO NO NINHO, de Milos Forman. Aqui, o
Hospital Psiquiátrico é a metáfora da civilização eurodescendente das décadas de 60 e 70, e o
indígena “Chief Bromden” faz de conta de ser surdo e mudo, pois o colonizador silenciou e
matou simbolicamente seu povo - “como ela está fazendo com você” - diz o Chefe ao herói
McMurphy. Quando este, herói branco, macho, marginal e insubmisso, foi lobotomizado por
fomentar a libertação dos internados (sua salvação da instituição externa e interna – da
normalidade internalizada), a única opção para Chief Bromden é matá-lo, libertando seu
espírito de um corpo agora impotencializado, antes de fugir em direção à natureza. De fato,
McMurphy é um despertador ou conscientizador, marginal na sua cultura. Quando o
conscientizador/despertador se despotencializa, a opção do espírito desperto é matá-lo,
abafando-o: eis uma moral bem interessante, para todos os filhos e filhas espirituais de Paulo
Freire!
Teria gostado tanto de ver Jake Sully morto pelos próprios nativos do planeta Pandora!
“Produtores, salvemo-nos nos mesmos, decretemos a salvação comum” – canta com justeza a
Internacional. Chega de salvadores! Importante meditarmos isso, nós brancos que
trabalhamos com indígenas em projetos comuns. Ou talvez, simplesmente, um bom futuro
para Jake e para nós seria termos a honra de sermos comidos, pois ao comer sua presa, o
indígena se apropria das suas virtudes. Neytiri salva Jake e o ama tal como é, com seu corpo
branco quase duas vezes menor que ela: ela descobriu e desvelou os mistérios da alteridade,
conhece Jake o Branco Pequeno e daí torna-se possível, no final do filme, a passagem, ou
morte simbólica do colonizador branco – o que ameniza o lado imperial-hollywoodiano do
filme: com a ajuda da divindade da natureza Eywa, os Na´vi transferem definitivamente o
espírito de Jake no corpo do seu Avatar: nova atualização de uma virtualidade. Perda do corpo
branco mutilado (como foram mutilados nossos corpos pela ideologia cristã e, talvez também,
pelas guerras coloniais e imperialistas), ganho de um corpo capaz de se comunicar com os
espíritos da natureza. Fantasma de completude, o melhor do branco com o melhor do
indígena, ressurreição da onipotência branca.
No Brasil, um branco que entra no candomblé renasce com um nome africano e um
espírito africano. Agora, segundo o que me disseram amigos de vários povos indígenas, os
brancos não são autorizados, aqui no Brasil, a participarem dos seus rituais secretos. Branco
pode se tornar espiritualmente negro; se tornar indígena, nunca. A não ser pelos mistérios da
Ayahuasca?
Metodologicamente, a base da interculturalidade crítica, para nós brancos, é a convicção
oposta à de James Cameron, ou seja: “Tornar-me-ei indígena, nunca”. É só pelo apagamento
do eu e de seus fantasmas que podemos conseguir, ao contato de outras culturas, certa
transculturalidade espiritual. No esvaziamento, na vacuidade, e não no enchimento, na
completude. Apesar de todos os discursos e escritos sobre o tema, nunca saberemos
exatamente o que está em jogo no contato dos indígenas com as plantas-doutoras,
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enteógenas. Pois excede a lógica: é uma experiência íntima.
No nosso caso, o
compartilhamento das plantas-doutoras não permite uma identificação com os nativos, e sim
uma perda de identidade, uma desidentificação, uma desterritorialização, o que,
espiritualmente, é um bem precioso 4. Jake, ao perder seu corpo branco ao contato com os
nativos, atinge uns 3m de altura. Contraditoriamente, pretendo me tornar cada vez menor até,
se for possível, desaparecer. Como corpo e como espírito.
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Uma maneira de entrar conceitualmente na transculturalidade é pensar a partir da
distinção atual/virtual/real. Essa reflexão vem de Leibniz. As pessoas, geralmente, confundem
o virtual com o possível. Mas as redes conceituais são diferentes: o virtual é tanto real quanto
o atual, enquanto o possível opõe-se ao real. O possível não é real no momento em que estou
falando, enquanto o virtual é totalmente real, só que não atualizado nesta dimensão do real.
É a coisa mais fácil do mundo para quem mexe um pouco com matemática. Quando uma
realidade física corresponde a uma solução dada de uma equação matemática que possui
várias soluções, podemos dizer que estamos lidando com uma realidade atual. Agora, as
outras soluções da equação, não atualizadas, não são soluções possíveis, são soluções reais,
mas não presentes no caso que nos interessa.
Outra maneira de entrar na transculturalidade é ver filmes como AVATAR. Pois o que os
heróis, tanto americanos como indígenas, descobrem, é o virtual dentro deles. Eles aprendem
a atuar potencialidades que ignoravam ter. Jake aprende, graças à trança do seu avatar, a se
comunicar com os animais e as plantas pelo pensamento. Isso é chamado Tsaheylu, ou seja,
« fazer a ligação ». Lembra muito o tabaco nativo, a ayahuasca ou o peiote dos indígenas
americanos. O próprio James Cameron (James/Jake), para criar os personagens dos nativos,
inspirou-se num sonho que sua mãe fez bem antes que ele idealizasse o filme – da mesma
maneira que os indígenas das Américas se comunicam, através do sonho e de plantas
enteógenas, com o mundo espiritual, realidade mais real que a realidade5.
Nós, atores das pesquisas e das escolas interculturais, aprendemos a nos virtualizar.
Abrimos nossa mente para outras virtualidades, que não são atualizadas nas nossas culturas de
origem. Como vivenciamos verdadeiras iniciações (às vezes, dolorosas) para outros olhares,
outras dimensões da realidade, com a ajuda dos nossos parceiros de outra cultura,
internalizamos essas dimensões. Ganhamos novos olhos (por exemplo, posso dizer que ganhei
com indígenas de vários países meu terceiro olho, intuitivo – mas existem tantos outros olhos
com os quais cobrirmos nossos corpos), andamos em outros espaços, espirituais, ganhamos
4
Essas perdas espirituais são totalmente diferentes das perdas dos colonizados impostas pelos
colonizadores.
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Ou seja: com o virtual.
4
outros corpos, vivenciamos outros tempos, outras durações, como as do sonho espiritual e do
despertar.
Para mim, isso é uma experiência transcultural. Tanto para nossos parceiros e parceiras
indígenas como para nós. Até, é possível que eles e elas ganhem algo na convivência conosco
brancos bons de comer, não sei, só eles e elas podem dizer – não sei, mas é provável, pois na
minha lógica, o contato com qualquer diferença heterogeneizadora é potencializadora e
virtualizante. Ao pesquisar, educar, cuidar, amar, intercultural e criticamente, vivenciamos
processos transculturais de virtualização dos nossos seres. Descobrimos ou criamos espaços
virtuais, tempos virtuais, diferentes dos que normalmente nossas culturas de referência
atualizam. Crescemos espiritualmente.
Mas existem dois obstáculos, dois perigos nessa iniciação mútua:
- O primeiro é leibniziano, barroco: acreditar que existe uma entidade suprema que cuida
para nós da harmonização dessas iniciações. Da convergência dos olhares heterogêneos no
teto da igreja, da comunidade, da humanidade. No céu. Não é bem assim: a convergência é
sempre uma luta onde está em jogo nosso próprio devir-humano, frente às forças que
hierarquizam, burocratizam, racializam e infernalizam a existência. Somente nós, atores vivos,
podemos tentar, experimentar (com o risco óbvio de fracassar) o convergir das perspectivas na
geração de uma humanidade espiritualizada. O transcultural não é transcendência nem
transcendental. É obra comum e libertária. Grato a Cameron e Forman por tentarem,
experimentarem e nos alimentarem. Pessoalmente, minha única fé é na pedra de luz que jaz
em cada um de nós e que, apesar de todos os Coronéis do mundo, pode ser desperta.
Prudentemente, budistas e espíritas dizem: se não for nessa vida, será numa outra!
- O segundo perigo é o medo: temos de viver intensamente para descobrirmos até onde
aceitamos nos desprendermos e despedirmos de nós. Cada um tem seu limite, em diferentes
idades de sua vida ou, quem sabe (o que é incrivelmente otimista), em diferentes vidas suas.
Alguns, desde o início do processo, têm medo de se expor, de se alterar, alienar
provisoriamente, de ex ou implodir, de se perder; outros atingem essa saborosa sabedoria de
querer se desintegrar, abafar seu eu - como Chief Bromden abafou a vida de McMurphy com
um travesseiro. É meu momento. Outros, ainda mais sábios, não querem nada, mas já não
existem mais como eu. São os mestres. Os iluminados.
De fato, e para concluir essa pequena nota de rodapé no intertexto da vida cultural
presente, existem duas redes, fora daquela onde descansamos, namoramos e sonhamos:
- A rede da floresta (real e metafórica), onde todos os seres, do mineral ao humano, são
interligados. Nessa rede, quem sabe, apesar de não podermos entrar como brancos pela
iniciação direta em rituais sagrados indígenas, podemos entrar através do pensamento
ambientalista intercultural crítico (penso, por exemplo, na conhecida hipótese Gaia), ou, com
ainda mais facilidade, ao aprendermos os mistérios da vida através de plantas-professoras
como a ayahuasca. Com as mirações, descobrimos outras dimensões da realidade e
aprendemos; vivenciamos uma iniciação que atualiza nossos potenciais espirituais. Ou seja:
cada um/a do seu jeito, cada um/a no seu ritmo, aprendemos o despertar.
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- Outra rede é a rede cibernética, que cria os múltiplos mundos virtuais dos jogos da
Internet. No caso, assumimos identidades de avatares. Mas cuidado, esse mundo é como o
mundo de Exu, Mpoonba Nzila em língua de família banta – o que significa “o mensageiro”.
Não há moral nele. De maneira parecida, o Hermes grego é deus dos comerciantes, dos
ladrões e das comunicações. Além do Bem e do Mal.
Mais uma vez, os produtos eurodescendentes e hollywoodeanos devem ser resignificados pela ética indígena: precisamos de Mãe Natureza para nos dar orientações sobre o
bom uso das redes. Não é preciso ser indígena para afirmar tal sentencia. É um aspecto do
nosso devir-transcultural, do nosso devir-humano.
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