Aparokshanubhuti

Transcrição

Aparokshanubhuti
AUTO-REALIZAÇÃO
SHRI SHANKARACHARYA
TEXTO E COMENTÁRIOS POR
SWAMI VIMUKTANANDA
TRADUÇÃO DE
GILBERTO CAMPISTA GUARINO
EDITORA RECORD
RIO DE JANEIRO, 1999
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PREFÁCIO
“Prakarana Granthas” é a designação genérica de certos tratados,
cujo objetivo é servir de introdução ao estudo mais avançado de um
sistema filosófico. Além de fornecer as linhas-mestras do sistema, cada
um deles enfatiza esse ou aquele aspecto, dentre os principais.
Aparokshanubhuti é um desses pequenos tratados, que, além de
apresentar uma breve descrição da Vedanta, trabalha, especificamente,
com aquele seu aspecto relativo à percepção consciente (realização,
“anubhuti”) da Verdade Suprema. Tal realização, distinta do
conhecimento de objetos, que se processa por meio da percepção
sensorial ou inferência, é uma percepção imediata e direta do próprio Eu.
Isso está, aqui, indicado pelo vocábulo “aparoksha”.
O tema central do livro é a identidade entre o eu individual
(jivâtma). e o eu universal (paramâtma), percebida graças à remoção do
véu da ignorância, que oculta a verdade, o que se faz por meio da luz de
Vichâra, ou pura indagação (estância 12). Expõem-se determinadas
disciplinas, visando tornar a mente apta a investigar a verdade. Não se
trata de disciplinas peculiares à Vedanta, senão indispensáveis ao
propósito aqui indicado. Assim, o livro fornece uma descrição daquele
que atingiu essa realização, bem como da natureza de sua vida. Segue-se
uma discussão acerca do momentum das ações pretéritas. O autor
sustenta que, uma vez atingida a realização, quando a ignorância e todos
os seus efeitos desaparecem por completo, o problema da sobrevivência
do corpo, como meio de resolução de prârabdha, passa a carecer de todo
e qualquer propósito. O Shruti é algumas vezes mencionado, apenas para
explicar o comportamento ostensivo de um homem de realização, que tanto quanto possível- está imerso na Suprema Verdade.
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As estâncias de no 100 a 129 lidam, em especial, com os quinze
estágios pelos quais passa o buscador da Verdade, estágios esses que, a
propósito, assemelham-se aos experimentados por um Râja-ioguin. E,
não obstante, são ambos os processos inteiramente diversos. Segue-se a
unidade de causa e efeito -o Absoluto e o universo manifestado-,
entrelaçada com o pensamento culminante da filosofia Vedanta, segundo a
qual o visível e o invisível são, na realidade, o eterno Atman, Pura
Consciência (estância 141).
A autoria do livro é tradicionalmente atribuída a Shri
Shankaracharya, sem embargo de alguma controvérsia que, todavia, não
põe em dúvida o fato de que seus ensinamentos pertencem à Advaita.
Portanto, ele será, para aqueles que não dispõem de tempo, nem têm a
oportunidade de adentrar a obra de Shankaracharya, um guia
inestimável, na procura da verdade espiritual,
Vale lembrar que as estâncias de no 89 a 98 também incidem, com
pequenas variações, na Upanixade Madabindu (221-29), enquanto as de
no 102 a 136 e 140 a 142 são encontráveis na Tejabindu (15-51).
Já foram publicadas traduções em inglês e em vernáculo indiano.
No entanto, como alguns neófitos ainda manifestaram o desejo de obter
equivalentes vocabulares e notas naquele idioma, procedemos a uma nova
tentativa de ir ao encontro desse pleito. Por fim, destaca o autor sua dívida
para com as traduções existentes e para com o comentário de Vidyaranya.
Esperamos que o livro seja útil a todos aqueles a que se destina.
Swami Vimuktananda
Belur Math, 10 de setembro de 1938.
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Auto-Realização
01. (A) me curvo diante d'Ele, o Senhor Hari (o destruidor da
ignorância), a Beatitude Suprema, o Primeiro Instrutor, lshwara., o
oni-permeante e causa (B) de todos os Lokas (o universo).
(A) “Eu” -o ego, Jiva escravizado, que se identifica com os corpos
grosseiro, sutil e causal, padece vários sofrimentos, e luta pela libertação.
(B) “A causa” -Tanto a eficiente, quanto a material. Assim como a
aranha tece a sua teia com os materiais de seu próprio corpo, também
lshwara cria este universo a partir d'Ele mesmo.
02. Aqui, são expostos (os meios para se alcançar)
aparokshanubhuti (A) (auto-realização), com vistas à libertação final.
Somente aquele que tenha um coração puro deve, constantemente e
envidando todo o esforço, meditar na verdade aqui ensinada.
(A) “Aparokshanubhuti” - É o conhecimento direto do Atman, sempre
presente em todo pensamento. Todos possuem desse Atman ou Eu algum
conhecimento, pois negar o Eu é negar a própria existência. A princípio,
porém, a sua natureza real não é conhecida. Mais tarde, quando, através
de Upasana e Tapas, a mente se purifica, o véu da ignorância vai sendo,
paulatinamente, levantado, e o Eu começa a exibir a sua real natureza.
Num estágio mais avançado, segue-se um conhecimento superior, por
força do qual a constatação do Eu como simples testemunha é absorve
todos os outros pensamentos.
Todavia, a meta ainda não terá sido alcançada. A idéia de
dualidade, tal como presente em ‘‘Eu sou a testemunha’’ (“Eu” e
“testemunha”), ainda persistirá. Só no último estágio, quando cognoscente
e cognoscido mergulham no autofulgurante Atman -o único que sempre é
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e além do qual nada mais existe-; só então a culminância será alcançada.
Essa realização do não-dual é a consumação de aparokshanubhuti.
Desnecessário dizer que, aqui, o termo “aparokshanubhuti” pode
também significar “trabalho que lida com a própria auto-realização”.
03. As quatro pré-qualificações (A) (os meios para se alcançar o
conhecimento), tais como impassibilidade (vairagya) e semelhantes,
são adquiridas pelos homens, graças à propiciação a Hari (o Senhor),
traduzindo-se na prática de austeridades e no desempenho de deveres
próprios ao estrato social a que pertença o pretendente, bem como ao
seu estágio na vida.
(A) “As quatro pré-qualificações” - Impassibilidade, discriminação
(discernimento), seis recursos notáveis (tesouros), como sejam: controle
da mente (Sama) e semelhantes, além de desejo de libertação (do
cativeiro da ignorância).
04. “Pura vairagya” é o nome que, verdadeira e propriamente, se
dá à indiferença com que são tratados os excretos de um corpo,
aplicada a todos os objetos de gozo pertencentes ao domínio de
Brahma, bem como a este mundo (em razão da sua natureza
perecível) (A).
(A) “Pura vairagya” - Podemos ser- indiferentes aos prazeres deste
mundo apenas na expectativa de melhores gozos no outro. Este tipo de
indiferença está maculado por desejos que estorvam o caminho em
direção ao Conhecimento. Somente a indiferença resultante de uma exata
deliberação acerca da natureza evanescente, tanto deste mundo, quanto do
outro, é pura e está apta a produzir o bem supremo.
05. Somente Atman (A) (o que vê) é em si mesmo permanente; o
que é visto (B) é oposto a ele (i. e., transitório). A firmeza desta
convicção é conhecida como discriminação (discernimento).
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(A) “Atman” - Neste mundo sempre cambiante, existe um ser imutável,
que é testemunha dessas mudanças. Atman é esse ser, sempre vidente e
permanente.
(B) “O que é visto” - Compreende tudo o que não seja Atman Por
exemplo: os objetos dos sentidos, os sentidos, a mente e Buddhi.
06. Sama é o nome que se dá ao constante abandono dos desejos
(A). Chama-se Dama ao controle das funções orgânicas externas.
(A) “Abandono dos desejos” - São as impressões prévias, que jazem
adormecidas na mente, o que dá origem a desejos, podendo-se dizer o
mesmo acerca do contato da mente com os objetos exteriores. Abandonar
todos os desejos é dissociar a mente desses dois conjuntos de estímulos.
07. A culminância de Uparati (A) é o afastamento completo de
todos os objetos sensíveis. Titksha é a paciente resignação a todo
sofrimento e dor, que conduz à felicidade.
(A) “Uparati” - Aparentemente, Uparati distingue-se muito pouco de
Sama e de Dama. Na verdade, existe uma diferença: a prática de Sama e
Dama implica esforço de controle das tendências mentais em direção ao
exterior; em Uparati, todavia, o equilíbrio da mente torna-se espontâneo,
e não há mais luta pela sua conquista.
08. Shraddha é a fé implícita nas palavras dos Vedas e dos
instrutores (que os interpretam). Samadhana é a concentração da
mente em Sat, o único objeto (isto é, Brahman).
09. Quando e como, ó, Senhor, libertar-me-ei dos liames deste
mundo (ou seja, de nascimentos e mortes)?!... Mumukshuta é o nome
que se dá a um tal desejo ardente (A).
(A) “Mumukshuta” - É o quarto Sadhana. Com ele, habilita-se o
estudante a investigar a verdade suprema, vale dizer, Brahman. É hoje
um princípio aceito, mesmo no mundo científico, que um estudante à
procura do conhecimento dever-se-ia libertar de toda e qualquer
predisposição, mantendo a mente eqüidistante, pronta para receber o que
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quer que fosse verdadeiro. Os quatro Sadhanas aqui inculcados não
passam de uma disciplina metódica, objetivando alcançar um tal estado
mental.
10. Só quem estivesse de posse de tais qualificações (como meios de
chegar ao conhecimento) deveria permanecer em constante reflexão
(A), colimando o conhecimento, desejando o seu próprio bem (B).
(A) “Deveria permanecer em constante reflexão” - Depois que, por
meio dos Sadhanas, alcançamos a tranqüilidade mental, é preciso que
porfiemos na mantença desse estado, valendo-nos da constante reflexão
acerca da natureza evanescente deste mundo, e, bem assim,
permaneçamos na Verdade superior, até que tornemos um com ela.
(B)
“Bem” - O bem maior, ou seja, a libertação do cativeiro da
ignorância.
11. Só Vichara é meio de realização (A) do Conhecimento, assim
como somente a luz permite-nos perceber (ver) um objeto.
(A) “Só Vichara é meio” - Karma, Upasana e semelhantes não o são.
É a ignorância (Avidya) que nos tira a luz do Conhecimento. Portanto, é
necessário removermos avidya, para obtermos o Conhecimento. Contudo,
enquanto permanecemos ligados ao Karma, ou a Upasana, submetemonos a seu domínio. É somente quando procedemos ao estudo da
verdadeira natureza de avidya que ela gradualmente se afasta,
desaparecendo, por fim. Só então, brilha o Conhecimento.
12. Quem sou Eu (A)? Como é este (mundo) criado? Quem é seu
criador? De que material é este (mundo) feito? Esse é o caminho de
Vichara (indagação)? (B).
(A) “Quem sou Eu?” - Sabemos que existimos, porém ignoramos qual
seja a nossa real natureza. Durante a vigília, pensamos que somos o
corpo, o ser físico, e, em conseqüência, sentimo-nos fortes ou fracos,
jovens ou velhos. Durante o sono, e a despeito da existência física,
permanecemos num estado mental em que somos apenas seres pensantes,
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e nada sentimos, além da miséria e da felicidade que nossos pensamentos
criam para nós. Durante o sono profundo, entramos num estado em que
não encontramos seja ainda o menor resquício de tais atributos, por meio
dos quais possamos afirmar negar nossa existência.
Diariamente, passamos por esses estados, mas, ainda assim, não
sabemos qual deles é conforme à nossa verdadeira natureza. Daí,
permanecer a pergunta “quem sou Eu” como um enigma indecifrado, que
é mister investigar.
(B) “Esse é o caminho de Vichara” - Na estância anterior, está dito
que somente por meio de Vichara ou “estudo da verdade.” o
Conhecimento é alcançado. Aqui, inculca-se, pormenorizadamente, a
metodologia a ser seguida num tal estudo.
13. Eu não sou o corpo (A), uma combinação dos (cinco) elementos
(da matéria), nem um agregado dos sentidos; sou algo diferente de
tudo isso. Esse é o caminho de Vichara.
(A) “Eu não sou o corpo” - O corpo origina-se da matéria inanimada,
e, como tal, é privado de consciência. Se eu fosse o corpo, deveria ser
inconsciente; mas não o sou, de jeito nenhum.
14. Tudo é produzido pela ignorância (A), e tudo se dissolve no
despertar do Conhecimento. Os vários pensamentos (modificações de
antahkarana) devem ser o criador (B). Vichara é isso.
(A) “Tudo é produzido pela ignorância” - Em resposta à pergunta
formulada na estância no. 12, sobre a causa deste mundo, aqui se diz que a
ignorância é a causa de tudo.
Quando estamos numa estrada e vemos algo enroscado, às vezes
tomamo-lo por uma cobra, e recuamos com medo. Mas, depois, quando
descobrimos que se tratar apenas de uma corda, indagamo-nos sobre o
porquê do aparecimento da cobra. Estudando esse fato, verificamos que
sua causa enraíza-se em nossa ignorância a respeito da verdadeira
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natureza da corda. Do mesmo modo, a causa do mundo fenomênico visto
por nós é a ignorância ou Maya, que vela a realidade,
(B) “Os vários pensamentos (...) o criador” - Nossos pensamentos são
a única coisa que percebemos diretamente. O mundo que vemos diante de
nós é o que eles criam para nós. Entendemos isso claramente, quando
analisamos as nossas experiências oníricas. O assim chamado ‘‘mundo
material’’ fica totalmente ausente delas, e, não obstante, os pensamentos
criam, só por si, um mundo que é tão material quanto aquele que agora
está diante de nós. Sustenta-se, destarte, que, de igual modo, o universo
inteiro é uma criação dos nossos pensamentos.
15. A (causa) material de (ignorância e pensamento) é o único (A)
(sem segundo), o sutil (que os sentidos não apreendem), o imutável
Sat (Existência), assim como a terra é a (causa) material do vaso e de
outros objetos. É este o caminho de Vichara.
(A) “O único” - Porque não admite um outro, segundo, seja do mesmo
tipo, seja diferente, nem quaisquer partes dentro de si mesmo. É um todo
homogêneo.
16. Como sou também o único, o Sutil, o Conhecedor (A), a
Testemunha, o Sempre-Existente e Imutável, então, não há dúvida de
que Eu sou "Aquele" (B) (isto é, Brahman). Assim é este estudo.
(A) “O Conhecedor” - O supremo Conhecedor, sempre presente como
consciência em nossas percepções, e aquele que percebe até mesmo o
ego.
Quando digo: “Eu sei que Eu existo’’, o ‘‘Eu’’ da oração ‘‘que Eu
existo’’ integra o predicado, não podendo, como tal, ser o mesmo ‘‘Eu’’
que é o sujeito. Esse ‘‘Eu’’ predicativo é o ego, o objeto. O ‘‘Eu’’
subjetivo é o Supremo Conhecedor.
(B) “Eu sou “Aquele”” - Eu, o ego, quando despojado de todos os
seus adjuntos limitadores, tais como o corpo, etc..., torna-se um com
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“Aquele”, o Ego, isto é, Brahman. Com efeito, ele é sempre Brahman,
não passando sua limitação de uma criação da ignorância.
17. Atman é, na verdade, único e sem partes, enquanto o corpo
consiste de muitas partes. E, ainda assim, as pessoas vêem
(confundem) aquele como este, como se fossem um! Haverá
ignorância maior do que essa? (A)
(A) “Haverá ignorância maior do que essa?!” - A ignorância
caracteriza-se exclusivamente por gerar confusão no conhecimento. É por
meio da influência da ignorância que confundimos uma corda com uma
cobra, a madrepérola com um pedaço de prata, e assim por diante. O
resultado, todavia, é que o poder da ignorância não é total nestes casos.
Isto porque, quando o real e o aparente partilham algumas características
entre si, torna-se fácil encontrar um pretexto para tais confusões. É na
confusão entre sujeito (isto é, Atman) com o objeto (ou seja, o corpo),
que nada têm em comum e que são diametral e mutuamente opostos, que
a natureza da ignorância aparece em sua plenitude.
18. Atman é o senhor do corpo, e o que é interior; o corpo é o
governado, e o que é exterior. E, ainda assim, as pessoas tomam os
dois por um.
19. Atman é todo consciência, e é sagrado; o corpo é todo carne, e é
impuro. E, ainda assim, as pessoas tomam os dois por um.
20. Atman é o (supremo) Iluminador, e é pureza; diz-se que o corpo
é da natureza das trevas. E, ainda assim, as pessoas tomam os dois
por um.
21. Atman é eterno, por ser, ele mesmo, Existência; o corpo é
transeunte, porque é essencialmente não-existente (A). E, ainda
assim, as pessoas tomam os dois por um.
(A) “O corpo é ... essencialmente não-existente” - O corpo muda a
cada instante, não podendo, por isso, ser eterno. Mas, aceitando-se que
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seja não-eterno, como pode ser não-existente?... Porque, enquanto ele
dura, seguramente o vemos existindo.
À primeira vista, o corpo parece existir, não importa o quão
temporária essa existência possa ser. Portanto, é-lhe atribuída uma
existência relativa (Vyavaharika Satta). Quando, porém, se o examina, e
tenta-se descobrir sua real natureza, esse corpo, chamado de “tangível”,
gradualmente se atenua e, enfim, desaparece por completo. Assim, aqui se
diz ser ele, enquanto corpo, sempre não existente, mesmo que, , na
perspectiva daqueles que não se preocupam em examiná-lo, pareça existir
por algum tempo.
22. A luminosidade de Atman consiste na manifestação de todos os
objetos. Sua luminosidade não é (A) semelhante à do fogo, nem à de
algo parecido com este, porque (a despeito da presença de tais luzes)
a escuridão prevalece durante a noite (aqui, ali ou acolá).
(A) “Sua luminosidade não é, etc...”- A luz de Atman é diferente de
qualquer outra luz. As luzes comuns opõem-se à escuridão e têm uma
capacidade limitada de iluminar as coisas. Uma experiência trivial mostranos que, onde há escuridão, não há luz, e que aquela sempre está presente
em algum lugar, assim limitando o poder de iluminação dessas luzes. Nem
mesmo a luz do Sol é capaz de afastar de alguns lugares a escuridão. No
entanto, a luz de Atman está sempre presente, em toda a parte Ela a tudo
ilumina, e não se opõe seja ao que for, nem mesmo à escuridão. É por
estar a luz de Atman por toda e parte e através de tudo, presente em
todos, com consciência, que compreendemos a escuridão, assim como a
luz e tudo o mais.
23. Como é estranho que alguém permaneça ignorantemente
satisfeito com a idéia de que é o corpo (A), ao mesmo tempo em que o
sabe ser algo que lhe pertence (e, portanto, à parte), assim como
alguém que vê um jarro (sabe-o à parte)!
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(A) “A idéia de que é o corpo, etc...” - Esta é a opinião dos
materialistas indianos (“Lokayatikas”), que sustentam ser o homem um
concurso fortuito de elementos materiais. De acordo com eles, os cinco
elementos da matéria deram origem a este corpo, bem como à vida é à
consciência, através de permutas e combinações. Afirmam que, com a
morte, tudo voltará a ser matéria.
24. Eu sou, verdadeiramente, Brahman (A), equânime, quiescente
e, por natureza, Existência, Conhecimento e Beatitude absolutos. Eu
não sou o corpo (B), que não existe por si mesmo. A isso se chama
“verdadeiro Conhecimento”, que pertence ao Sábio.
(A) “Eu sou, verdadeiramente, Brahman” –“Eu”, o Eu ou Atman, é
Brahman, na medida em que não há, nele, uma só característica
diferenciadora. Em outras palavras, não existem duas entidades: Atman e
Brahman; antes, trata-se do mesmo Atman, por vezes chamado de
“Brahman”.
Quando alguém investiga a real natureza deste mundo exterior, é
levado a uma realidade definitiva, a que chama de “Brahman”. Contudo,
uma investigação da natureza do próprio investigador evidencia o fato de
que nada existe, além do Atman, o Eu de que o assim chamado “mundo
exterior” emanou. Destarte, quem investiga percebe que aquilo por ele por
tanto tempo chamado de “Brahman”, o substrato do universo, não passa
de seu próprio Eu. É ele mesmo. Diz-se, então: “Tudo isso é,
verdadeiramente, Brahman, esse Atman é Brahman (Upanixade
Mandukya, 2).
(B) “Eu não sou o corpo”- Eu não sou nem o corpo grosseiro, nem o
corpo sutil, nem o corpo causal.
25. Não me transformo, não tenho forma, sou livre de toda a
imperfeição e decadência. Não sou o corpo, que não existe por si
mesmo. A isso se chama “verdadeiro Conhecimento”, que pertence
ao sábio.
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26. Não estou sujeito a nenhuma doença, sou além de toda
compreensão (A), livre de todas as alternativas, e oni-impregnante.
Eu não sou o corpo, que não existe por si mesmo. A isto se chama
“verdadeiro Conhecimento”, que pertence ao sábio.
(A) “Sou além de toda compreensão” - Nenhum pensamento me
apreende totalmente, nem me compreende, porque, no supremo Atman,
nenhum pensamento --de sujeito e objeto, conhecedor ou conhecido, ou
mesmo de Eu e não-Eu-- é possível, porquanto todo pensamento implica
dualidade, enquanto o Atman é não-dual.
27. Não tenho atributo, nem atividade, sou eterno, livre para
sempre e imperecível. Eu não sou o corpo, que não existe por si
mesmo. A isto se chama “verdadeiro Conhecimento”, que pertence ao
sábio.
28. Sou livre de toda impureza, não me movimento, sou ilimitado,
sagrado, não decaio, e sou imortal. Eu não sou o corpo, que não existe
por si mesmo. A isto se chama “verdadeiro Conhecimento”, que
pertence ao sábio.
29. Ó, tu, que ignoras! Por que dizes ser o Atman absolutamente
não existente (A), Ele, que é bem-aventurado, eternamente existente,
que reside em teu próprio corpo, e é (por óbvio) diverso dele; e que é
conhecido como Purusha, e dado (pelo Shruti como idêntico a
Brahman)?
(A) “Por que dizes ... “absolutamente não-existente”? - Nas estâncias
anteriores, quando foram negados ao Atman todos os atributos que a
mente humana pode conceber, fomos naturalmente assaltados pela dúvida
acerca da real existência desse Atman. Objetivando remover essa dúvida,
aqui se diz ser o Atman um fato da experiência de todos, não podendo,
por isso, ser a sua existência desafiada. Portanto, não há razão para se o
chamar de “Sunya”, ou não-existência absoluta.
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30. Ó tu, que ignoras! Tenta, com a ajuda do Shruti (A) e da tua
própria razão, conhecer o teu próprio Eu, Purusha, que é diferente
do corpo, (não um vazio, mas) a própria forma da existência, e muito
difícil de ser percebido por pessoas como tu (B).
(A) “Com a ajuda do Shruti” - Com o auxílio de certos textos do
Shruti, como, por exemplo, este: “Mais sutil do que esse Atman (isto é,
o corpo), que é cheio de carne e sangue, existe um outro Atman."
(Upanixade Taitt., ii.2)”. Assim, afirma-se, com clareza, que o Atman,
por vezes confundido com o corpo, é, de fato, totalmente diferente dele.
(B) “Pessoas como tu” - Pessoas de tua casta mental, que, por causa
do grande apego ao corpo, passam por cima das diferenças vitais entre ele
e o Atman, cegamente lhes afirmando a identidade.
31. Conhecido como "Eu", o Supremo (Purusha) é um, enquanto os
corpos grosseiros são muitos. Então, como é possível que este corpo
seja Purusha?
32. "Eu" (Ego) está definido como o sujeito da percepção,
enquanto o corpo é o seu objeto. Sabe-se isso a partir do fato de que,
quando se fala do corpo, diz-se: “Este é meu.” (A) Então, como é
possível que este corpo seja Purusha?
(A) “Este é meu” - Ou seja, o corpo é algo que eu possuo, externo,
portanto, a mim. Logo, não há a menor possibilidade de ele ser
identificado comigo (isto é, o Atman).
33. A experiência direta mostra que o "Eu" (Atman) não se
submete a nenhuma mudança (A), ao passo que o corpo sofre-as
constantemente e sempre. Então, como é possível que este corpo seja
Purusha?
(A) “O “Eu” (Atman) não se submete a nenhuma mudança” - Seja
na alegria ou no infortúnio, na infância, na juventude ou na velhice,
Atman permanece o mesmo, a despeito das muitas transformações do
corpo. Além disso, por quais meios reconhecemos alguém como a mesma
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pessoa, inobstante a integral transformação sofrida por seu corpo e sua
mente?
34. A partir daquele trecho do Shruti (A): "(Não há nada) superior
a ele (Purusha) etc...”, sábios verificaram a real natureza deste.
Então, como é possível que este corpo seja Purusha.?
(A) “A partir daquele trecho do Shruti” - Na Upanixade
Swetaswatara (III,9), e é o seguinte: “Não há nada superior, mais sutil,
nem maior do que Purusha, que permanece na esfera luminosa,
supremamente único e imóvel, qual uma árvore, e pelo qual toda esta
criação é preenchida”.
35. Mais uma vez, o Shruti, no Purusha Sukta (A), declarou que "
Tudo isso é, na verdade, o Purusha." Então, como é possível que este
corpo seja Purusha?
(A) “No Purusha Sukta” - Trata-se de uma secção do Rig-Veda. Ali,
encontramos uma das mais vertiginosas concepções do Ser Cósmico, de
que este universo emanou. Eis o texto aqui referido: “O Purusha é
verdadeiramente todo este (mundo manifesto). Ele é tudo o que existiu
no passado e que vai existir no futuro. É o Senhor da morada da Bemaventurança, e assumiu essa forma transitória do universo manifestado,
de modo a que os Jivas possam submeter-se aos efeitos de suas ações.’’
(Rig Veda, x.90.II)
36. Assim também está escrito na Upanixade Brihadaranyaka:
“Como pode este corpo, em que há tantas e tão numerosas impurezas,
ser Purusha?”
(A) “O Purusha é totalmente não-identificado”. - Referência à
seguinte passagem: “O que o Purusha vê em sonho não o acompanha,
porque ele não se identifica, seja com o que for.” (Upanixade Brhi.,
IV.3.15.16).
37. Também ali se afirma, claramente, que “o Purusha é autoiluminado”. Como, então, é possível que o corpo, que é inerte (não
senciente) e iluminado por um agente externo, seja Purusha?
16
A)
“Também ali” - Na mesma Upanixade encontramos isto: “Aqui
(em sonho), o Purusha é auto-iluminado.” (IV.3.7)
38. Acima de tudo, o Karma-Kanda também declara (A) que o
Atman é diferente do corpo, e permanente, na medida em que dura
para além do desaparecimnto do corpo e colhe os frutos das ações
(perpetradas nesta vida).
(A) “Acima de tudo, o Karma-Kanda também declara” - O KarmaKanda é aquela parte dos Vedas que inculca a prática de atos religiosos,
sacrifícios e cerimônias, expondo, pormenorizadamente, as regras e os
preceitos que orientam seus devotos. Os seguidores do Karma-Kanda não
crêem num Deus, ou Ishwara. Mesmo assim, acreditam numa alma
individual permanente, bastante diferente do corpo, que sobrevive à
destruição deste, como suporte para o resultado durável do Karma
((Apurva).
Assim, não é apenas o Jñana-Kanda (as Upanixades) que sustenta
a diferença entre o Atman e o corpo, mas também o Karma-Kanda.
39. Até mesmo o corpo sutil (A) consiste de muitas partes, e é
instável. Ele também é um objeto da percepção, é mutável, limitado e
não-existente por natureza. Então, como é possível que seja Purusha?
(A) “O corpo sutil, etc...” - Consiste ele de dezessete partes, a saber: o
intelecto, a mente, cinco órgãos da percepção, cinco órgãos da ação e
cinco forças vitais (ou cinco elementos sutis).
40. Assim, o imutável Atman, substrato do ego, é diferente destes
dois corpos, e é o Purusha, o Ishwara (o Senhor de todos), o Eu de
todos. Está presente em cada forma, transcendendo-as, porém, a
todas.
41. Deste modo, a realidade do mundo fenomênico foi, na verdade,
(indiretamente) asserida, pela enunciação da diferença entre Atman e
o corpo, a partir do Tarkashastra (A). Contudo, a que finalidade da
vida humana serve isso? (B)
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(A) “Tarkashastra” - A ciência da lógica (Nyaya), ou tratados como
Sankhya e Yoga, bem como as Lokayatikas, que seguem,
preponderantemente, o método da inferência para chegar a suas
respectivas conclusões. Aqui, a referência é, em especial, ao Sankhya,
que, com o simples auxílio da Lógica (Tarka), tenta estabelecer a
dualidade última Prakriti/Purusha, na qual Prakriti, ou princípio
material, que constitui o mundo fenomênico, é eterno e coexiste com
Purusha, o princípio consciente.
(B) “A que finalidade da vida humana serve isso?” - Existem, grosso
modo, quatro finalidades na vida humana, a saber: dharma, ou
desempenho do dever; artha, ou obtenção da prosperidade material;
kama, ou satisfação de desejos; moksha, ou libertação final do cativeiro
da ignorância, para o que as três primeiras são secundárias, na medida em
que não passam de apoios a moksha, que é o summum bonum.
Entretanto, a libertação final do cativeiro da ignorância jamais será
alcançada, se a pessoa não perceber conscientemente (realizar) a nãodualidade e, em conseqüência, não se tornar una como esta, assim
afastando da mente até mesmo o último vestígio da dualidade. A fixação
na dualidade é, porém, apenas um obstáculo a tal percepção consciente
(realização, anubhuti), induzindo o indivíduo a afastar-se da rota de
libertação. Portanto, não serve a nenhuma das finalidades da vida humana.
O objetivo de mostrar a diferença entre Atman e o corpo não é
provar a realidade deste, estabelecendo, assim, a dualidade entre ambos;
mas, sim e apenas, encontrar os oponentes que sustentam ser o corpo
Atman. Nas estâncias subseqüentes, mostrar-se-á a inexistência de uma
tal coisa, qual o corpo; só existe Atman.
42. Assim, o enunciado da diferença entre o Atman e o corpo
indicou o entendimento segundo o qual este é Aquele. Com isso, fica
nitidamente estabelecida a irrealidade da diferença (A) entre ambos.
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(A) “A irrealidade da diferença, etc...”- Vale dizer, que o corpo não
existe independentemente do Atman, assim como as ondas não existem
independentemente da água. Com efeito, só o Atman existe, e deve-se à
ignorância o ser ele visto aparecendo como corpos e semelhantes.
43. Não se admite nenhuma divisão na Consciência, seja quando
for, porque a Consciência é, sempre, uma e a mesma (A). Inclusive, a
individualidade do Jiva deve ser conhecida como falsa, à semelhança
da forma ilusória de uma serpente numa corda.
(A) “É sempre uma e a mesma” - Os conteúdos da consciência podem
variar, mas ela, enquanto consciência, é, sempre, uniforme, assim como a
luz do Sol é a mesma, embora iluminando vários objetos.
44. Assim como, por conta da ignorância acerca da verdadeira
natureza da corda, a própria corda aparece, instantaneamente, como
uma serpente, assim também a pura Consciência surge na forma do
universo fenomênico, sem se submeter a qualquer mudança (A).
(A) “Sem se submeter a qualquer mudança” - Quando uma corda
aparece como uma serpente, ninguém pode dizer que se haja operado
qualquer modificação na primeira. Do mesmo modo, a Pura Consciência
surge como o assim chamado “universo material”, sem sofrer nenhuma
modificação.
45. Só Brahman é a causa material deste universo fenomênico,
razão por que todo ele é apenas nada mais que Brahman.
(A) “Todo ele é apenas e nada mais que Brahman” - Isto, porque o
efeito nunca é diferente da causa. Um vaso jamais é diferente da terra de
que é feito. Os nomes e formas que da causa diferenciam o efeito não
passam de convenções, revelando-se não-existentes, quando se investiga a
sua natureza.
46. "Tudo isso é Atman." De tal afirmação (A) (do Shruti) segue-se
que as noções de "permeante" e “permeado” são ilusórias. Onde
19
haveria espaço para a distinção entre a causa e o efeito, uma vez
percebida esta verdade suprema?
(A) “De tal afirmação” - Refere-se a este trecho da Upanixade
Brihadaranyaka: “Brahmins e Kshatriyas, estas Lokas (regiões), os
deuses, Vedas e seres, tudo, em resumo, é Atman. (I V.5 -7).
47. É certo que o Shruti negou, diretamente, (A) a multiplicidade
em Brahman. Sendo a causa não-dual um fato estabelecido (B), como
poderia o universo fenomênico ser diferente dele?
(A) “O Shruti negou, diretamente”, etc... - É este o trecho: “Depois
de se ouvir (isso) de um instrutor competente, deve-se, perceber, com o
auxílio de uma mente pura, que não existe multiplicidade em
(Brahman).” (Upanixade Brih., IV.4.19).
(B) “Sendo a causa não-dual um fato estabelecido” – A afirmação do
Brahman não-dual como sendo a realidade última, conforme afirmado
pelo Shruti, elimina as raízes de toda a causalidade. Isto porque uma
causa sempre pressupõe um efeito, por ela produzido, efeito esse que, sob
outro aspecto, é, a toda evidência, diferente dela. Quando, porém, existe
apenas um, como é possível uma segunda coisa vir a existir? A verdade é
que Brahman não-dual, ou Atman, jamais causa alguma coisa. É devido
à ignorância que este mundo é visto e pensado como tendo Brahman por
causa.
48. Acima de tudo, o Shruti condenou (a crença na variedade), por
meio destas palavras: “A pessoa que, iludida por Maya, enxerga
variedade em (Brahman) segue de morte em morte.” (A)
(A) “Segue de morte em morte” - Ou seja, nasce e morre repetidas
vezes. É o seguinte o texto do Shruti, acima referido: “Aquele que nisso
(isto é, em Brahman) enxerga variedade vai de morte em morte.”
(Upanixade Brih., IV.4.19) Em outras palavras, a menos que se perceba
o Atman não-dual, que é, evidentemente, sem nascimento e sem morte,
não se escapa do ciclo de renascimentos.
20
49. Posto que todos os seres nascem de Brahman (A), o supremo
Atman, devem eles ser entendidos como verdadeiramente Brahman.
(A) “Todos os seres nascem de Brahman” – Refere-se, aqui, à
seguinte passagem do Shruti: “Esse é Brahman, de onde nascem todos
os seres”, etc... ( Upanixade Taittiriya, III.I).
50. O Shruti afirmou, claramente, que só Brahman é o substratum
(A) de todas as variedades de nomes, formas e ações.
(A) “Só Brahman é o substratum” - Assim como uma corda é o
substrato da ilusão de uma serpente e de outras formas, assim Brahman é
o substrato de todos os nomes, formas e ações, sem embargo de serem
estes ilusórios. Porque até mesmo uma ilusão requer um substrato para o
seu surgimento.
51
Da mesma maneira pela qual um objeto feito de ouro tem,
sempre, a natureza do ouro, assim também um ser nascido de
Brahman tem, sempre, a natureza de Brahman.
52. Aquele que ignora (o ignorante), e que inativo permanece (A),
depois de haver estabelecido seja ainda a mais mínima distinção
entre o Jivatman e o Paramatman, este sente o medo. (B)
(A) “Que inativo permanece”, etc... - É o seguinte o texto do Shruti:
“Quando ele (o que ignora) estabelece a mais mínima diferença entre
Brahman, para ele há o medo”. (Upanixade Taittiriya, II.7)
(B) “O medo”. -Tem raízes na dualidade e na imperfeição, e só pode
ser superado por quem percebe conscientemente (realiza) a não-dualidade
e, assim, alcança a perfeição. Para tal pessoa, nada existe que temer, que
ganhar, nem que perder.
53. Quando, por conta da ignorância, a dualidade aparece (A), um
vê o outro; mas, quando tudo se identifica com o Atman, não há um
mínimo de percepção de alteridade.
(A) “Quando (...) a dualidade”, etc... - Esta estância mostra o
conteúdo do seguinte trecho do Shruti: “Pois, quando há dualidade, um
21
vê outra coisa, olfata outra coisa, etc... Quando, porém, tudo se haja
transformado no próprio Si-mesmo, como será possível ver outro,
olfatar outro, etc...?’’ (Upanixade Brihadaranyaka, IV.5.15)
54. Nesse estado (A), em que tudo é percebido como idêntico ao
Atman, não existe ilusão, nem pesar, porque não há dualidade.
(A) “Nesse estado”, etc...- Referência ao seguinte texto do Shruti:
“Quando alguém percebe todos os seres como o Si-mesmo, como pode
esse vidente da unidade sofrer ilusão ou pesar?” (Upanixade Isa, 7).
55. Declarou o Shruti (A), na forma do Brihadaranyaka, que o
Atman, o Si-mesmo de todas as coisas, é verdadeiramente Brahman.
(A) “O Shruti”, etc... - O texto é o seguinte: “Atman é Brahman.”
(Upanixade Brih., II.5.10)
56. Conquanto seja este mundo (A) objeto de nossa experiência
diária e sirva a todos os propósitos práticos, ele tem, como o mundo
onírico, a natureza da não-existência, visto ser contraditado no
momento seguinte.
(A) “Este mundo”, etc... - Não podemos chamar de “eternamente
existente” (Sat) a alguma coisa, somente porque seja objeto da
experiência e tenha algum valor pragmático. Durante o sonho,
experimentamos coisas que existem enquanto sonho dura. Todavia, tão
logo despertamos, elas desaparecem, como se nunca houvessem existido.
De igual modo, nossas experiências de vigília, para nós tão plenas de
significado, são negadas, assim que sonhamos ou dormimos
profundamente. Portanto, esse estado de vigília ocupa a mesma categoria
de existência que o mundo onírico.
57. A (experiência) de sonho (A) é irreal durante a vigília,
enquanto a (experiência) de vigília está ausente no sonho. Ambas,
contudo, são inexistentes no sono profundo, que, a seu turno, não é
experimentado em nenhuma delas.
22
(A) “A (experiência) de sonho”, etc... Aqui, o autor ilustra a estância
anterior, mostrando a irrealidade dos três estados (Avasthatraya), para o
que se apóia na mútua contradição.
58. Destarte, todos os três estados são irreais (A), posto serem
criações das três Gunas. Mas, a testemunha (B) desses estados (a
realidade subjacente a eles) é, para além de todas as Gunas, eterna,
una, sendo a própria consciência.
(A) “Os três estados são irreais”, etc... - O mundo de nossa
experiência diária, que compreende esses três estados, é produzido pela
permuta e pela combinação das três Gunas (componentes de Prakriti, ou
substância primordial, e que são Sattva, Rajas e Tamas). Mas, tudo o que
é composto tem de desintegrar-se e ser destruído. Então, já que este
mundo é um composto, está predestinado a ser destruído. Assim é o irreal,
porque o real implica indestrutibilidade. Aqui, fica provado o que a
estância no 56 introduziu como simples proposição: que este mundo,
inobstante experienciado, é irreal.
(B) “A testemunha”, etc... - Que é que percebe a mudança, quando
tudo, neste mundo, se encontra em estado de fluxo, modificando-se a cada
momento? A Vedanta afirma ser Atman, o princípio consciente que
testemunha todas as modificações, permanecendo ele próprio sempre
imutável e insensível às Gunas, que operam as modificações.
59. Assim como (uma vez superada a ilusão) não se é mais iludido
pela visão de um vaso no barro, nem pela visão da prata no nácar,
assim também, quando Brahman é percebido (como o próprio Simesmo), não mais se vê (A) Jiva em Brahman.
“Não mais se vê”, etc... - Enquanto alguém permanece na
ignorância, ela se autoconcebe como Jiva, que tem uma individualidade
própria, à parte de Brahman. Quando, porém, com a aurora do
verdadeiro conhecimento, se autopercebe um com Brahman, a noção de
23
individualidade surge-lhe como nada além de uma ilusão, semelhante
àquela consistente em ver-se prata onde há nácar.
60. Do mesmo modo por que se descreve terra como um jarro,
ouro como um brinco e nácar como prata, assim Brahman é descrito
como Jiva.
61. Assim como o azul no céu, a água na miragem e a figura
humana no desenho não passam de ilusões, assim está o universo no
Atman.(A)
(A) “Assim está o universo no Atman” - Não apenas Jiva, mas todo o
universo é uma ilusão no Atman. As estâncias no 61 e no 64 ilustram isso
de várias maneiras.
62. Tal como são ilusórias a aparição de um fantasma num ermo, a
de um castelo no ar e a de uma segunda lua no céu, também é ilusório
o surgimento do universo em Brahman.
63. Assim como a água, que aparece na forma de ondulações e de
ondas, ou, ainda, o cobre, que surge na forma de uma vasilha, assim
também é Atman que aparece como o universo inteiro.
64. Assim como é a terra que surge sob o nome de “vaso”, ou são fios
que aparecem designados por “tecido”, assim é o Atman que aparece
sob o nome de “universo”. O Atman deve ser conhecido (A) pela
negação dos nomes.
(A) “O Atman deve ser conhecido”, etc... - Conhecer o Atman
significa, apenas e tão-somente, remover os nomes e as formas que,
devido à ignorância, lhe estão superpostos.
65. As pessoas agem em Brahman e por meio dele (mas não se
apercebem disso, por causa da ignorância), assim como, em razão da
ignorância (A), não sabem que vasos e outros utensílios de barro não
passam de terra.
(A) “Assim como, em razão da ignorância”, etc... - Quando
manuseamos variados utensílios de barro, estamos, na realidade, lidando
com terra, na medida em que esta não pode, de modo nenhum, ser
24
separada de tais utensílios. Então, em todo o nosso relacionamento com o
mundo, estamos, de fato, lidando com Brahman, que não pode ser
separado do daquele.
66. Assim como sempre existe relação de causa e efeito entre a
terra e um jarro, assim também existe a mesma relação (A) entre
Brahman e o mundo fenomênico; isso foi aqui estabelecido, com apoio
no raciocínio e em textos escriturísticos.
(A) “Assim também existe a mesma relação”, etc... - Existe a mesma
relação de causa e efeito entre Brahman e o mundo. Como, porém, o
efeito jamais pode estar separado da causa, esta relação significa, apenas,
que eles não são diferentes. O Shruti também afirma: “Tudo isso é
idêntico Àquilo” (isto é, a Sat ou Brahman) (Upanixade Chhandogiya,
LXI.8.7); “Na verdade, tudo isso é Brahman”. (Idem, III.14.I)
67. Assim como, quando pensamos num jarro, (a consciência de
terra) impõe-se à nossa mente, assim também, quando meditamos
acerca do mundo fenomênico, (a idéia do) Brahman sempre brilhante
cintila em nós (A).
(A) “Assim também (...) cintila em nós”. - Nalgum raro momento,
enquanto pensamos intensamente sobre a natureza evanescente deste
mundo, tornamo-nos, quase por intuição, conscientes de Brahman, o que
é permanente e que subjaz a esses fenômenos cambiantes; porque a
mudança implica, necessariamente, algo que não muda.
68. Atman, conquanto eternamente puro (A) (na compreensão do
sábio), sempre parece ser impuro (para o ignorante), assim como
uma corda é, sempre, percebida de dois modos distintos (B): por
quem conhece e por quem ignora.
(A) “Puro” - Vale dizer, sem nenhuma modificação, ao contrário do
que ocorre com o corpo.
(B) “De dois modos distintos” - Como corda e como cobra.
25
69. Assim como um jarro é, todo ele, terra, assim também o corpo
é, todo ele, consciência. Portanto, a divisão entre Eu e não-Eu é
estabelecida pelo ignorante, e não tem nenhum propósito (A).
(A) “A divisão (...) não tem nenhum propósito” - Pensam os dualistas
que corpo e Atman são duas entidades distintas, independentes uma da
outra, no que estão errados. Nem lhes é isso de qualquer proveito,
porquanto lhes obsta a percepção do Atman, não dual, que é o summum
bonum.
70. Assim como se imagina que uma corda é uma serpente, e que
um pedaço de madrepérola é um pedaço de prata, assim o ignorante
concebe o Atman como sendo o corpo. (A)
(A) “O ignorante”, etc... - O materialista extremado, que afirma ser o
corpo, ou a matéria, a realidade suprema, e que nega a existência do
Atman em separado do corpo. [As estâncias de n.o 70 a 74 ilustram como
esse conhecimento errôneo nasce de uma confusão entre o real e o
aparente.
71. Assim como se toma a terra pelo jarro (feito com ela), e os fios
pelo tecido, assim também o ignorante concebe o Atman como sendo o
corpo.
72. Do mesmo modo por que se toma o ouro pelo brinco, e a água
pelas ondas, assim também o ignorante concebe o Atman como sendo
o corpo.
73. Assim como o cepo de uma árvore é tomado por uma figura
humana, e uma miragem o é por água, assim também o ignorante
concebe o Atman como sendo o corpo.
74. Do mesmo modo por que se toma uma porção de peças de
madeira por uma casa, e o aço por uma espada, assim também o
ignorante concebe o Atman como sendo o corpo.
[As estâncias de n.o 70 a 73 ilustram um conjunto de
conhecimentos falsos, devidos a um erro de julgamento, enquanto as
outras três estâncias lidam somente com um conhecimento imperfeito, no
26
qual as formas são privilegiadas, em detrimento da substância, que é a
realidade subjacente.
75. Assim como a ilusão de uma árvore é vista na água (A), assim,
em razão da ignorância, se confunde o Atman com o corpo.
(A) “A ilusão de uma árvore”, etc ... - A árvore não está na água. O
que nesta se vê é apenas um seu reflexo.
[As estâncias de n.o 75 a 86 descrevem, através de diversos
exemplos tomados à experiência cotidiana, como a ignorância nos faz
imaginar o Atman , que é eternamente puro, aparecendo em formas
materiais.
76. Do mesmo modo pelo qual a uma pessoa situada num barco
tudo parece estar em movimento, assim também, por causa da
ignorância, é o Atman confundido com o corpo
77. Assim como a uma pessoa portadora de uma certa doença da
visão aquilo que é branco aparece como sendo amarelo, assim
também, por causa da ignorância, é o Atman confundido com o
corpo.
78. Assim como a alguém que seja portador de defeito da visão
todas as coisas parecem defeituosas, assim também, por causa da
ignorância, é o Atman confundido com o corpo.
79. Assim como pelo simples ato consistente em girar um tição este
parece ser circular como o Sol, assim também, por causa da
ignorância, é o Atman confundido com o corpo.
80. Assim como a grande distância faz com que objetos realmente
grandes pareçam ser muito pequenos, assim também, por causa da
ignorância, é o Atman confundido com o corpo.
81. Assim como o uso de lentes faz com que todos os objetos que
sejam muito pequenos pareçam ser grandes, assim também, por
causa da ignorância, é o Atman confundido com o corpo.
27
82. Assim como, equivocadamente, uma superfície de vidro é
confundida com água, ou vice-versa, assim também, por causa da
ignorância, é o Atman confundido com o corpo.
83. Assim como alguém que contempla o fogo nele imagina ver
uma jóia, ou vice-versa, assim também, por causa da ignorância, é o
Atman confundido com o corpo.
84. Assim como quando as nuvens se movem, parece a lua estar em
movimento, assim também, por causa da ignorância, é o Atman
confundido com o corpo.
85. Assim como alguém que esteja confuso perde todo o sentido de
direção, assim também, por causa da ignorância, é o Atman
confundido com o corpo.
86. Assim como (A) a lua, (quando refletida) na água, parece
trêmula, assim também, por causa da ignorância, é o Atman
confundido com o corpo.
(A) “Assim como”, etc... - O que é trêmulo é o reflexo; não a lua.
87. Destarte, a ignorância faz brotar no Atman a ilusão do corpo
(A), que, ainda uma vez, desaparece no supremo Atman (B), por meio
da auto-realização.
(A) “A ilusão do corpo” - A ilusão da matéria, em geral. Com efeito,
esta não passa de invenção de nossa mente, não tendo, portanto,
existência real.
(B) “Que, ainda uma vez, desaparece no supremo Atman” - Quando
se percebe que o Atman --Ele, e somente Ele, e nada mais-- existe,
deixam, para sempre, de existir a ignorância e todos os seus efeitos, tais
como a ilusão do corpo e semelhantes.
88. Quando o universo inteiro, móvel e imóvel, chega a ser
conhecido como sendo Atman, assim se negando a existência de tudo o
mais, onde sobraria lugar (A) para dizer-se que o corpo é Atman?
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(A) “Onde sobraria lugar para dizer-se que o corpo é Atman?” Enquanto se permanece na ignorância, confunde-se o corpo com Atman.
Porém, com a alvorada do Conhecimento, quando tudo se dissolve e
somente Atman não-dual resta, dificilmente sobra espaço para ver-se o
corpo; quanto mais para se afirmar ser ele Atman.
89. Ó, iluminado, emprega o teu tempo na contemplação
ininterrupta de Atman, enquanto estás experimentando todos os
resultados de Prarabdha (A); porque isso faz com que não te sintas
(B) angustiado.
(A) “Prarabdha” - De acordo com a teoria do Karma, Prarabdha é
aquela parcela de nossas ações pretéritas cuja força cumulativa deu
origem a este corpo.
(B) “Isso faz com que”, etc... - Porque quem sempre vive no Atman já
está livre e acima de todos os pesares, e, não obstante viver e mover-se
como o comum dos mortais, sabe, por experiência própria, que nenhum de
seus atos tem qualquer poder de submetê-lo.
[Existem dois outros conjuntos de ações: Sanchita-karma, ou
aqueles de nossos atos pretéritos que ainda permanecem como reserva,
para a geração de futuros corpos; e Kriyamana-Karma, ou ações que
estão sendo levadas a cabo nesta vida.
90. Refuta-se agora a teoria, encontrada na Escritura (A), segundo
a qual Prarabdha não perde o seu poder (B), nem mesmo sobre
aquele que alcançou o conhecimento de Atman.
(A) “Na Escritura” - Em textos escriturísticos, à semelhança deste: “A
permanência nessa condição perdura apenas enquanto não se liberta
(do corpo), após o que alcançará Brahman” (Upanixade
Chhandogiya, VI.14.II)
(A) “Prarabdha não perde o seu poder” – Em muitos trechos, o
Shruti declara que até mesmo um jñani (5) está submetido à influência de
Prarabdha. Shankara tratou longamente dessa questão, nos seus
comentários à Upanixade Chhandogiya (VI.14.II), aos Sutras vedantinos
29
(IV.I.XV) e à Gita (IV.37) (6). Em todas estas referências, ecoou o
entendimento vulgar, segundo o qual Prarabdha constrange até mesmo o
jñani. Aqui, porém, tal como na “Vivekachudamani” (453/463), afirma,
vigorosa e intransigentemente, o verdadeiro posicionamento vedantino.
Mostra, claramente, que, para um jñani, não existe algo como “o corpo”,
e que carece de significado dizer-se que ele não mais sofre a influência de
Prarabdha, que não exerce nenhum poder sobre o Atman, incorpóreo. O
autor introduz seus argumentos a favor desta tese, nas estâncias de no 91 e
92.
91. Depois que surge o conhecimento, cessa a existência de
Prarabdha, porquanto o corpo (A) e seus semelhantes tornam-se nãoexistentes, assim como um sonho, que não existe durante a vigília.
(A)“Porquanto o corpo”, etc... - Corpo, mente, inteligência, etc..., todos
existem apenas em função da ignorância, e, portanto, não podem subsistir
quando ela é destruída pelo Conhecimento. Na ausência do corpo,
Prarabdha deixa, necessariamente, de existir, porque nada lhe resta sobre
que atuar.
92. Prarabdha (que produz a vida atual) é o nome que se dá ao
Karma gerado numa vida anterior. Contudo, um tal Karma não pode
tomar o lugar de Prarabdha (no caso de um homem de
conhecimento), porque este não renasce (estando livre do ego).
93. Assim como, durante um sonho, o corpo é superposto (sendo,
portanto, ilusório), assim também acontece com este corpo (A). Como
poderia haver qualquer nascimento do corpo superposto? E, na
ausência de nascimento (B) do corpo, onde haveria lugar para
Prarabdha?
(A) “Assim também acontece com este corpo” - O corpo peculiar ao
estado de vigília também é superposto ao Atman, pelo que é ilusório. Só o
ignorante crê seja esse corpo mais real do que aquele que aparece durante
o sonho. Mas, para um homem de conhecimento, não existe uma tal
distinção, visto não passarem ambos de criação mental da ignorância.
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(B) “Na ausência de nascimento” - Prarabdha é concebido como a
causa do corpo, e, quando não existe algo como o corpo, Prarahdha
carece de qualquer propósito.
94. Afirmam os textos vedantinos (A) que a ignorância é, de fato, a
(causa) material do mundo fenomênico, tal como o barro o é de um
jarro. Como poderia o universo subsistir, uma vez destruída (essa)
ignorância (B)?
(A) “Afirmam os textos vedantinos” - Aqui, a palavra “vedantinos”
significa “as Upanixades”, que formam a parte final dos Vedas. Eis um
exemplo dos aludidos textos: “Sabe que Maya (ignorância) é Prakriti”
(isto é, a causa material do universo) (Upanixade Svetasvatara, IV.1O).
E assim por diante.
(B) “Uma vez destruída (essa) ignorância” - Sendo a causa
completamente destruída, deve o efeito deixar de existir. Um pedaço de
pano não pode existir, uma vez queimados os fios. Do mesmo modo, uma
vez destruída a ignorância, tampouco pode o mundo continuar a existir.
95. Assim como alguém confundido percebe somente a cobra,
deixando de lado a corda, assim também o ignorante não vê senão o
mundo fenomênico, sem conhecer a realidade.
96. Uma vez conhecida a verdadeira natureza da corda, a
aparência da cobra não mais persiste. Assim também, conhecido o
substrato (A), o mundo fenomênico desaparece por completo.
A)
“Conhecido o substrato”, etc... - Esse mundo ilusório tem
Brahman como substrato oculto em razão da ignorância. Todavia,
quando esta é superada e, conseqüentemente, Brahman é compreendido,
não mais se é iludido pela visão do mundo fenomênico, que, como os
demais elementos ilusórios, desaparece por completo, ante o
conhecimento da verdade.
97. Pertencendo também o corpo ao mundo fenomênico (sendo,
portanto, irreal), como poderia Prarabdha existir? Logo, quando o
31
Shruti fala em Prarabdha, dirige-se apenas ao ignorante (ao nível do
ignorante). (A)
(A) “Ao nível (de compreensão) do ignorante” - Aqueles que não
conhecem a verdade maior argumentam assim: se a ignorância, com todos
os seus efeitos, é destruída pelo Conhecimento, como pode o corpo de um
jñani viver, e como lhe é possível comportar-se como um mortal comum?
No entanto, os que assim argumentam não logram perceber serem eles
que vêem o corpo de um jñani, e que deste falam como se comportando
dessa ou daquela maneira, enquanto o próprio jñani, que compreende o
Atman, jamais vê qualquer corpo. É para convencer tais pessoas que o
Shruti introduz Prarabdha, numa tentativa de explicar o assim chamado
“comportamento de um jñani”.
98. "E, quando alguém compreende o (Atman), que é a um só
tempo o superior e o inferior, desaparecem todas as ações (A)
praticadas." Aqui, o emprego objetivo do plural (B), pelo Shruti,
serve, também, para negar Prarabdha.
(A) “Todas as ações”, etc... - É o seguinte o texto do Shruti: “Desfazse o nó do coração, desaparecem todas as dúvidas, e perecem todas as
ações de uma pessoa, quando ela compreende aquilo que é, ao mesmo
tempo, o superior e o inferior”. (Upanixade Mundaka, II.2. VIII)
(B) “Aqui, o emprego objetivo do plural”, etc... - Empregando o termo
“ações”, o Shruti declarou, muito claramente, que todos os carmas são
destruídos pelo Conhecimento; não apenas Sanchita-karma e
Kriyamana-karma, mas, também, Prarabdha-karma. A Gita afirma,
igualmente: “Ó, Arjuna, o fogo do Conhecimento reduz a cinzas todas
as ações” (IV.37). Acima de tudo, salta aos olhos da razão que
Prarabdha, um efeito da ignorância, deve ele deixar de existir, quando
esta é destruída pelo Conhecimento. (7)
99. Se os que isso ignoram ainda, por puro arbítrio (A), persistirem
a negar o que ficou dito (B), não apenas ver-se-ão a braços com duas
32
conclusões absurdas (C), como também correrão o risco de passar ao
largo da conclusão vedantina (D). Por isso, dever-se-ia aceitar
somente os Shrutis (E) de onde promana o verdadeiro conhecimento.
(A) “Por puro arbítrio” - Pelo simples impulso das próprias
predileções; não pela força do raciocínio lógico.
(B) “O que ficou dito” - lsto é, que, quando surge o Conhecimento,
Prarabdha e sua influência deixam de existir.
(C) “Não apenas ver-se-ão a braços com duas conclusões absurdas”
- Os que, nestas condições, afirmam Prarabdha são induzidos às
seguintes conclusões, que são absurdas: em primeiro lugar, Moksha, ou
libertação dos laços da dualidade, ser-lhes-á inacessível, porquanto
Prarabdha existirá, para sempre, com Brahman; em segundo, sendo
impossível a libertação, único objetivo do Conhecimento, quase nenhuma
utilidade remanesce para este, quando, então, os que a isso forem
induzidos deverão renunciar ao Shruti, sobre o qual erigem sua teoria, e
considerá-lo inútil, porque ele tem apenas uma função: levar ao
Conhecimento. Tais são as desastrosas conseqüências de se afirmar que
Prarabdha jamais cessa.
(D) “Correrão o risco de passar ao largo da conclusão vedantina” A conclusão final da Vedanta (advaita) é a de que existe somente
Brahman ou Atman, que é não-dual, sem nascimento, sem morte, e livre
de qualquer modificação. O mundo da dualidade é a criação da
ignorância, e deixará de existir quando esta for destruída pelo
Conhecimento. Então, aqueles que afirmam a permanência de Prarabdha,
mesmo após ser conseguido o Conhecimento, assim sustentando uma
espécie de dualidade, presente até no último estágio; os que assim
afirmam sacrificam, sem a menor dúvida, a suprema verdade vedantina,
que tem como característica essencial a não-dualidade.
(E) “Somente os Shrutis”, etc... - O verdadeiro Conhecimento
consiste, exclusivamente, na compreensão do Atman não-dual, e os
33
Shrutis são o único meio para se aportar a esse Conhecimento. Então, só
devem ser aceitos como verdadeiros os Shrutis que ensinam a nãodualidade do Atman, assim nos conduzindo, diretamente, à realização
final. Enquanto todos os que afirmem a dualidade devem ser tratados
como secundários. [Ainda em relação ao tópico principal, pode-se dizer
que deveríamos aderir, tão-somente, àqueles Shrutis que, negando todas
as ações do Atman, estabelecem a sua não-dualidade; não aos que
afirmam Prarabdha, fornecendo, assim, base para a dualidade].
100. Exporei, agora, as quinze etapas conducentes ao Conhecimento
(A), e por meio das quais sempre se deveria praticar a meditação
profunda.
(A) “Exporei (...) conducentes ao conhecimento”, etc... - As estâncias
de no 24 a 28 pormenorizaram a natureza do Conhecimento, meta da vida.
Contudo, não basta saber a respeito da meta; é indispensável familiarizarse com os meios pelos quais ela será alcançada. As quinze etapas aqui
inculcadas são esses meios, os quais, perseverantemente observados,
conduzirão o iniciante, gradualmente, ao objetivo colimado.
101. O Atman, que é existência e Conhecimento absolutos, só pode
ser vivenciado por meio de constante prática. Por isso, quem estiver
em busca do Conhecimento deverá meditar longamente sobre
Brahman (A), visando alcançar o esse objetivo.
(A) “Deverá meditar longamente em Brahman” - A compreensão de
Brahman não vem com rapidez; requer anos de tenaz esforço. Logo, não
se deve desistir da prática, mesmo que, durante os estágios iniciais, se
colha o fracasso. Isso deve servir de incentivo à continuação, com vigor
renovado. Shri Ramakrishna costumava dizer: um lavrador genuíno
jamais abandona o cultivo, mesmo que, durante alguns anos, não haja
safra; ele prossegue, com zelo sempre crescente, até que colhe uma boa
ceifa. Assim deve proceder um verdadeiro aspirante.
34
102/103.
As etapas são descritas em ordem e na seguinte forma
(A): controle dos sentidos, controle da mente, renúncia, silêncio,
espaço, tempo, postura, a essência do controle (Mulabhanda),
equilíbrio do corpo, firmeza de visão, controle das forças vitais,
retraimento da mente, concentração, autocontemplação, absorção
completa.
(A) “As etapas” - Estas quinze etapas incluem as oito de Patañjali,
apenas com significado reorientado, como veremos a seguir.
104. Chama-se Yama (A) ao controle dos sentidos, a que se procede
por meio do conhecimento de que "tudo isso é Brahman", o que deve
ser sempre praticado.
(A) “Yama” - Patañjali descreve-o como "não matar, não furtar,
continência e não receber” (II.30); quando, porém, se sabe que tudo é
Brahman, isso é simples decorrência.
105. Chama-se Niyama (B), verdadeiramente a suprema bemaventurança, que o sábio pratica regularmente, ao fluxo contínuo de
apenas um tipo de pensamento (A), com exclusão de todos os outros.
(A) “Um tipo de pensamento” - Relativo à unidade do ego individual
com Brahman, pensamentos do tipo “Atman é Brahman” e “Eu sou
Brahman”.
(B) “Niyama” – Segundo Patañjali, Niyama é “purificação interna e
externa, contentamento, mortificação, estudo védico e adoração de
Deus” (II, 32). Isto, contudo, é de fácil acesso para aquele que permanece
constantemente em Brahman.
106. A verdadeira (A) renúncia, honrada pelos grandes, por ser da
natureza da libertação próxima, consiste no abandono do universo
ilusório, por meio da compreensão de que ele é o Atman todoconsciente.
(A) “A verdadeira” - Há quem explique a renúncia como o abandono de
todo o tipo de ação, seja a escriturística, seja a profana, com o que se
chegaria a um estado de inatividade. No entanto, isso está muito longe do
35
verdadeiro significado de “renúncia”, quando Atman é compreendido
como estando por toda a parte, assim não se cobiçando mais nada. O
Shruti também afirma: “Cobre com Deus a tudo neste mundo
transitório, e permanece assim, por meio da renúncia”, etc...
(Upanixade Isa, I).
107. O sábio deve, sempre, ser um com aquele silêncio (A), de onde,
junto com a mente, as palavras (B) se afastam, sem atingi-lo. Ele,
porém, é alcançável pelos iogues (C).
(A) “Aquele silêncio” - Aqui, denotando Atman, que é sempre
quiescente.
(B) “De onde as palavras”, etc... - Referência à Upanixade Taittiriya,
II.9.
(C) “Alcançável pelos iogues” - Por ser o seu verdadeiro ego.
108/109. Quem pode descrever Aquilo (ou seja, Brahman) que repele
todas as palavras? (Então, o silêncio é inevitável na descrição de
Brahman). Ainda que fosse o caso de se descrever o mundo
fenomênico, até mesmo isso estaria além das palavras. (A) Buscandose uma definição alternativa, isso (B) também pode ser denominado
silêncio, que os sábios dizem congênito. (C) A observância do silêncio,
por meio da renúncia ao discurso, é, por outro lado, determinado
pelos que instruem os ignorantes sobre Brahman.
(A) “Até mesmo isso estaria além das palavras” – Até mesmo este
mundo seria inexprimível, quando se tentasse descrevê-lo. Isso porque,
nem se o pode dizer Sat (Existente), nem Asat (não-existente). Se ele
fosse Sat, não desapareceria durante o sono profundo; se fosse Asat, nem
mesmo agora ele apareceria. Portanto, este mundo também é
Anirvachaniya (inexprimível).
(B) “Isso” - A inefabilidade de Brahman e do mundo.
(C) “Congênito” - Inseparável de Atman.
36
110. Aquela solidão (A) é conhecida como espaço, no qual o universo
não existe, seja no início, seja no fim, ou no meio, mas pelo qual
sempre é permeado.
(A) “Aquela solidão” - Aqui, indica-se Brahman, porque somente
Brahman é solitário, eis que é sempre sem segundo.
111. O Brahman não-dual, que é bem-aventurança indivisível, é
indicado pelo vocábulo “tempo”, porque, num piscar de olhos, faz
existirem (A) todos os seres, a partir de Brahma.(A)
“Faz
existirem”, etc... - A criação toda não passa de uma transformação na
mente de Deus. Quando ele a deseja, o universo é produzido em nenhum
tempo. Encontramos em nossos sonhos um exemplo semelhante, quando,
por intermédio de um simples querer, todo o mundo onírico passa,
instantaneamente, a existir.
Isso implica, não apenas o poder de criar, mas, também, os de
preservar e destruir.
112. Dever-se-ia saber que é essa (A) a verdadeira postura, na qual
a meditação em Brahman flui, espontânea e incessantemente. Essa, e
nenhuma outra que destrua a felicidade de alguém.
(A) “Essa a verdadeira postura”, etc... - Isto é,um estado sereno.
(B) “Nenhuma outra”, etc... - Nenhuma postura que cause dores
físicas e que, destarte, arrastando a mente para o plano inferior, a desvie
da meditação em Brahman.
113. Siddhasana (A), o que é imutável e no qual os iluminados
acham-se completamente imersos,é, tão-somente, a origem de todos
os seres e o suporte do universo inteiro.
(A) “Siddhasana” - É este o nome de uma postura ióguica específica.
Aqui, porém, a palavra significa, apenas o Brahman eterno. [E, a
propósito, ditas posturas são, em particular, mencionadas nesta estância e
na próxima, sendo ambas explicadas com referência a Brahman.
37
114. Aquilo (Brahman) que é a raiz de toda a existência e em que se
baseia a contenção da mente (A) é chamado “a raiz moderadora”
(Mulabandha) (B), que deveria ser sempre adotada, porque é
adequada aos Raja-iogues.
(A) “A contenção da mente”, etc... - É por meio da completa imersão
em Brahman que a mente é, de fato, moderada.
(B) “Mulabandha” - Também é o nome de uma outra postura do Ioga.
[O que de verdadeiro subjaz a tudo isso é que, durante a meditação,
não deve haver uma excessiva preocupação com as posturas. Deve-se,
isso sim, tentar, incessantemente, o comprometimento global da atenção
em Brahman, a única meta.
115. Equilíbrio dos membros do corpo (Dehasamya), eis como
deveria ser conhecida a absorção no Brahman uniforme. De outro
modo, haveria simples endireitamento do corpo, à semelhança do que
acontece a uma árvore que se resseca. E isso não é equilíbrio.
116. É pela transformação da compreensão comum naquela que o
conhecimento propicia que deveríamos ver o mundo como sendo o
próprio Brahman. É esta a compreensão mais nobre (A), e não a que
não enxerga um palmo adiante do nariz.
(A) “Compreensão mais nobre” - Porque com ela cessam as
distinções entre alto e baixo, grande e pequeno, dado que tudo imerge em
Brahman onipenetrante.
117. Ou, então, dever-se-ia focalizar a compreensão n'Aquilo (A) em
que, por ser único, cessa toda a distinção entre o que se vê, a própria
visão e aquilo que é visto. Este é o ângulo de visada (a ser escolhido);
não a ponta do nariz. (B)
(A) “N'Aquilo” - ou seja, Brahman, que é pura Consciência, único
em que cessa a distinção mencionada (o que vê, a própria visão e aquilo
que é visto, a tríade a priori de todas as percepções).
38
(B) “Não a ponta do nariz” - Diz-se que, quando em postura de
meditação, deve-se focalizar a ponta do nariz (Gita, VI. 13) (8). Contudo,
isso não deve ser entendido literalmente; do contrário, a mente pensará no
nariz, e não no Atman. Com efeito, é preciso que, pondo de lado todas as
coisas exteriores, quem medita concentre-se apenas no Atman. Esta é a
razão por que, aqui, se enfatiza a meditação em Atman, condenando-se a
mera focalização na ponta do nariz.
118. Chama-se ”Pranayama” à moderação de todas as modificações
da mente, atingida por meio da consideração de todos os estados
mentais, v.g., Chitta, como sendo Brahman.
119/120.
“Rechaka” (expiração) é o nome que se dá à negação do
mundo fenomênico; “Puraka” (inspiração) é o como se conhece o
pensamento "Eu sou verdadeiramente Brahman”; “Kumbhaka”
(contenção da respiração) é a designação da calma em que, a seguir,
se mantém aquele pensamento. Para o iluminado, é este o verdadeiro
desenvolvimento de Pranayama (A), enquanto o ignorante apenas
tortura o próprio nariz.
(A) “Pranayama” - Patañjali descreve-a como “o controle do
movimento de inspiração e expiração” (II.49). Desdobra-se em três
etapas: 1a) inspirar (Puraka); 2a) reter, por algum tempo, o ar nos pulmões
(Kumbhaka); 3a) expirar (Rechaka). Patañjali sustenta que, se, através
do controle da respiração, a mente cortar suas comunicações com o
mundo exterior, ela será naturalmente controlada. Aqui, porém, Shankara
assevera que a respiração depende, na íntegra, da mente, e não vice-versa,
de sorte que, em vez de desperdiçarmos a própria energia na tentativa de
controlar a respiração, sempre deveríamos tentar o controle da mente.
Quando essa meta for alcançada, o controle da respiração não será mais
do que simples conseqüência.
121. “Pratyahara” (A) (cessação da mente) é o nome pelo qual se
conhece a absorção da mente na suprema Consciência, por meio da
39
realização de Atman em todos os objetos. Todos os que buscam a
libertação deveriam praticá-la.
(A) “Pratyahara” - Quando, abandonando seus próprios objetos, os
sentidos assumem a forma original da mente, então se realiza Pratyahara.
(Patañjali, II.54). No entanto, a consumação disso ocorre quando também
a mente é absorvida na Consciência Suprema.
122. “Supremo Dharana” (A) (concentração) é o nome que se dá à
calma mental, por meio da realização de Brahman, vá a mente onde
for.
(A) “Supremo Dharana” - Dharana, diz Ptañjali, “consiste em
manter a mente dirigida para algum objeto em particular” (III.I).
Inobstante, só se atinge a culminância de Dharana quando a mente se
concentra por completo em cada objeto com que entra em contato,
consciente de que se trata de Brahman, e rejeitando-se os nomes e as
formas a eles superpostos pela ignorância.
123. A palavra “dhyana” (A) (meditação) refere-se bem ao processo
de se permanecer independente de tudo, como decorrência deste
pensamento incontestável: "Eu sou verdadeiramente Brahman."
Dhyana dá causa à suprema bem-aventurança.
(A) “Dhyana” - Dhyana é um fluxo ininterrupto de pensamento acerca
de algum objeto em particular” (Patañjali, III.2) Isso, porém só é
aperfeiçoado quando mergulhamos todo o pensamento em Brahman,
percebendo ser Ele o Si-mesmo de cada um.
124. “Samadhi” (conhecimento) (A) é o nome dado ao completo
olvido de todo e qualquer pensamento, começando por torná-lo
imutável, e, a seguir, identificando-o com Brahman..
(A) “Conhecimento” - Samadhi não é, de modo nenhum, um estado de
inconsciência. A pura Consciência sempre o caracteriza, sem embargo da
ausência de todo e qualquer pensamento objetivo. Negar a presença de
consciência, seja em que estado for, é uma impossibilidade absoluta,
40
porque é o próprio eu pessoal quem o rejeita. Samadhi é, portanto,
corretamente chamado de “conhecimento”.
125. O aspirante deveria praticar cuidadosamente esta (meditação),
que revela a sua natural bem-aventurança, até que, alcançado seu
total controle, ela surja espontaneamente, num átimo, sempre que
evocada.
126. Então, o melhor dentre os iogues que alcançaram a perfeição
torna-se livre da necessidade de exercitar-se (A). A verdadeira
natureza de um tal homem (B) jamais pode ser objeto da mente ou do
discurso.
(A) “Torna-se livre da necessidade de exercitar-se” - As várias
práticas aqui e alhures prescritas não passam de meios conducentes à
percepção da unidade com Brahman, podendo ser abandonadas, uma vez
obtida tal percepção. A Gita declara também: “Para aquele que bem se
preparou no Ioga, a inação é tida como sendo o caminho”. (VI.3)
(B) “A verdadeira natureza de um tal homem” - O Shruti afirma:
“Aquele que realiza o supremo Brahman torna-se verdadeiramente
Brahman” (Upanixade Mundaka, III.II.9). Sua natureza também
mergulha na de Brahman, “que é além da mente e da palavra”.
(Upanixade Taittiriya, II.9)
127/128. Durante a prática de Samadhi, aparecem vários obstáculos
inevitáveis, tais como ausência de questionamento, ociosidade, desejo
de obter prazeres com os sentidos, sono, obtusidade, distração
mental, sensação de alegria (A), sensação de vazio (B). Quem quer
que almeje o conhecimento de Brahman deve, lentamente, livrar-se
de tais e inumeráveis outros obstáculos.
(A) “Sensação de alegria” - Após algum progresso na senda espiritual,
surge na mente do aspirante um tipo de sensação prazerosa, como
resultado da concentração. Este fato é, entretanto, grande estorvo para o
41
progresso espiritual, na medida em que suprime todo o entusiasmo
relativo à continuidade da prática.
(B) “Sensação de vazio” - Trata-se de um estado de entorpecimento
mental, resultante de um conflito de desejos.
129. Na verdade, quando a mente pensa em um objeto, identifica-se
com ele. E, enquanto pensa no vazio, torna-se esse vazio; ao passo
que, pelo pensamento em Brahman, alcança a perfeição. Então,
dever-se-ia pensar constantemente (A) (em Brahman, para atingir) a
perfeição.
(A) “Dever-se-ia pensar constantemente” - O que quer que pensemos,
nisso nos tornaremos. Assim, quem quer que deseje alcançar a perfeição
ponha de lado todo o pensamento sobre a dualidade, e focalize a mente
em Brahman não-dual, o único que é perfeito.
130. Aqueles que desistem desse pensamento em Brahman,
pensamento soberanamente purificador, vivem em vão e ocupam o
mesmo nível dos animais (A).
(A) “O mesmo nível dos animais” - O homem conta com a
oportunidade única de realizar Brahman, assim se libertando do cativeiro
da ignorância. Mas, se ele não se dispõe a aproveitar essa oportunidade,
dificilmente pode ser chamado de “homem”, porque nada o estrema dos
animais inferiores.
131. Verdadeiramente abençoadas são aquelas pessoas virtuosas,
que, primeiro, alcançam a consciência de Brahman (A), e, a seguir,
desenvolvem-na mais e mais. São respeitadas em toda a parte.
(A) “Alcançam a consciência de Brahman”, etc... - Depois de longa
prática, o aspirante, enquanto em Samadhi, primeiro toma consciência da
presença de Brahman, que permeia os mundos interior e exterior. Isso,
porém, não é tudo. Deve ele, então, sustentar essa consciência de
Brahman, até experienciar, momento após momento, sua identidade com
42
Brahman, destarte se libertando dos grilhões da dualidade e da
ignorância. Essa é a consumação da prática espiritual.
132. Só aqueles em quem essa consciência (A) (de Brahman) está
sempre presente crescem em direção à maturidade e alcançam o
estado de Brahman sempre-existente. Os demais não o conseguem,
eles, os que lidam meramente com palavras. (B)
(A) “Essa consciência” - A de que só Brahman é a realidade a
permear todo o nosso ser.
(B) “Lidam meramente com palavras” - Os que se engajam em
discussões estéreis acerca de Brahman. Refere-se a quantos, para isso,
interpretam diferentemente os textos pertinentes.
133. Também aqueles que são hábeis na discussão acerca de
Brahman, mas que não o realizam, e que são muito apegados a
prazeres mundanos, também estes nascem e morrem continuamente,
por causa de sua ignorância.
134. Aquele que anseia por Brahman não deveria ficar (A) um só
momento sem pensar nele, assim como em Brahma, Sanaka, Suka,
etc...
(A) “Não deveria ficar” - O objetivo final da Raja-ioga é a imersão
definitiva na consciência brahmanica, com o que obtemos a identificação
com Ele.
[Com esta estância, termina a exposição da Raja-ioga à luz da
vedanta. Aqui, podemos rapidamente lembrar que, inobstante a não
existência de diferença fundamental entre a Raja-ioga, conforme vem de
ser exposta, e aquela apresentada nos Ioga-Sutras de Patañjali, fato é
que, ao menos no que tange a suprema realização, as práticas diferem
muito. Patañjali fez o controle do corpo e de Prana anteceder a prática
da meditação, enquanto, aqui, o autor enfatiza, desde o início, a meditação
em Brahman, com o que procura conduzir o aspirante diretamente à
meta.
43
135. A natureza da causa é inerente ao efeito; não vice-versa. Então,
através do raciocínio, descobre-se que, na ausência do efeito (A), a
causa, enquanto tal, também desaparece.
(A) “Na ausência do efeito”, etc... - A causa e o efeito são correlatos.
Enquanto persistir um efeito, haverá uma causa para ele. Mas, uma vez
ausente todo o efeito, a causa, enquanto tal, não pode mais existir, na
medida em que nada resta que possa ser chamado de “uma causa”.
136. Por isso, só aquela pura realidade permanece (Brahman), a que
está além do discurso. Isso deveria ser constantemente
compreendido, com o auxílio da imagem da terra e do vaso (A).
(A) “A imagem da terra e do vaso” - Nos seguintes termos: “Ó, meu
caro, assim como pelo conhecimento de um punhado de terra conhecese tudo o que é feito de terra, assim também as modificações não
passam de nomes originados do discurso, e somente a terra é real,”
etc.... (Upanixade Chhandogiya, VI. 1-4). Assim também, o mundo
fenomênico existe apenas como nome; só Brahman é real.
137. Somente assim (A) é que brota a consciência de Brahman
naquele que tem a mente pura, um estado que, depois, se dilui em
Brahman.
(A) “Somente assim”, etc... - É pela prática ininterrupta da
contemplação e da discriminação (discernimento) que nasce na mente do
aspirante o conhecimento de que só Brahman é real, bem como o de que
nada mais existe. Destarte, exaure-se a ignorância que, por tanto tempo, o
tem iludido, projetando o mundo da dualidade A seguir, também a mente
desaparece; ela que, tendo destruído a ignorância, conduzira o aspirante a
tão próximo de Brahman. Assim como o fogo, que se extingue após
haver consumido seu combustível, assim também a mente cessa. É então
que Brahman refulge só, em sua própria glória.
138. É pelo método da negação que primeiro se deveria (A)
procurar a causa, encontrando-a, a seguir, pelo método positivo,
considerando-o sempre inerente ao efeito.
44
(A) “É pelo método da negação que primeiro se deveria”, etc... Pode-se inferir a causa, quer por uma proposição positiva, quer por uma
proposição negativa. A primeira é a seguinte: “Onde há um efeito deve
haver uma causa.” E eis a negativa: “Onde não há nenhuma causa não
há nenhum efeito.” Qualquer das proposições leva-nos à conclusão de
que existe Brahman, a causa do mundo fenomênico. Isto porque, se não
existisse Brahman (causa), não existiria mundo nenhum. E, ainda: existe
o mundo (efeito); logo, existe Brahman (causa).
139. Dever-se-ia ver no efeito a causa, e, a seguir, descartar-se in
totum o primeiro. E o sábio tornar-se-ia, ele mesmo, o que então
remanescesse (A).
Sugere-se, aqui, o método alternativo.
(A) “O que então remanescesse” - Quando houverem desaparecido
tanto o efeito, quanto a causa, será naturalmente possível concluir-se que
nada, além de Sunya, um vácuo, terá restado. Não é, todavia, assim,
porque a negação absoluta é uma impossibilidade. Pode-se negar todas as
coisas, mas não é possível negar-se o próprio Eu. Desse modo, negada a
causalidade, o que remanesce além de toda a negação é o próprio Eu de
quem inquire, e que é a realidade definitiva.
140. Aquele que medita acerca de algo com grande freqüência e
firme convicção torna-se isso em que medita. A imagem da vespa e do
verme pode auxiliar na compreensão do que acontece (A).
(A) “A imagem da vespa e do verme”, etc... - Há uma crença popular,
segundo a qual, quando uma vespa traz um inseto para a sua toca, este,
aterrorizado, pensa constantemente em seu predador, até que se
transforma em vespa. Assim também, aquele que medita em Brahman
com toda a intensidade termina por se transformar em Brahman.
141. O sábio deve sempre pensar em tudo o que é visível e invisível
como sendo o próprio Eu, que é, ele mesmo, consciência.
45
142. Uma vez tendo reduzido o visível (A) ao invisível, o sábio deve
pensar o universo como sendo um com Brahman. Só assim entrará no
gozo na felicidade eterna, com a mente plena de consciência e bemaventurança.
(A) “Uma vez tendo reduzido o visível”, etc... - Inicialmente, pode-se
eleger um determinado objeto do mundo exterior como objeto de
meditação. A seguir, porém, deve-se pensar o objeto como existindo
apenas na forma mental, e, por fim, a própria mente também deve ser
reduzida a Brahman, que é pura consciência. Somente então se pode
dizer de alguém que haja atingido a meta mais elevada.
143. A Raja-ioga foi assim descrita, integrada por essas etapas (A)
(mencionadas acima). Deve-se com ela combinar a Hatha-ioga (B),
para (o benefício) daqueles cujos desejos mundanos estejam
parcialmente atenuados.
(A) “Dessas etapas” - As quinze referidas nas estâncias de número 100
a 134.
(B) “Deve-se com ela combinar a Hatha-ioga”, etc... - A Raja-loga
aqui exposta, de caráter puramente psicológico, é de prática extremamente
difícil para aqueles que ainda não superaram as deficiências de natureza
física, nem baniram da mente os apetites carnais, assim não tendo
conseguido purificá-la. Portanto, a Hatha-loga, ou Ioga que ensina o
controle físico, juntamente com um pouco de concentração, lhes é, de
início, muito útil. Isto porque tais pessoas podem, por meio dela, assumir
o controle de suas naturezas externa e interna, com o tempo se tornando
aptas para a prática da Raja-ioga aqui exposta.
144. Basta esta Raja-ioga para levar à perfeição aqueles cuja mente
esteja de todo purificada. Mais uma vez, a pureza da mente torna-se,
rápido, acessível àqueles que se devotam (A) ao instrutor e à Deidade.
(A) “Àqueles que se devotam”, etc... - Aqueles que têm fé nas palavras
do Guru e que se devotam, firme e resolutamente, à Deidade que
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escolham, libertando-se de todas as dúvidas, e, por esse meio, facilmente
adquirindo o grau de concentração que os conduz, diretamente, à
realização da mais alta verdade.
Notas do Tradutor
(1) Observe-se que, aqui, não se trata de Brahman, Pura Consciência,
base primeira e suprema do Universo, o Absoluto, causa eficiente e
material do mundo, o Deus impessoal na transcendência e na
imanência. Trata-se, isto sim, de Brahma, ou Deus Criador. Este é
um vocábulo do gênero masculino, enquanto “Brahman’’ pertence ao
neutro.
(2) Buddhi é um dos três princípios internos, de acordo com a
Psicologia hindu, a qual, inobstante o sistema filosófico eleito, é,
sempre, a do Sankhya Ioga. Ao lado da mente (Manas) e do ego
(Ahankara), buddhi é a inteligência intuitiva. A conclusão das
Upanixades é a de que o corpo, os sentidos, a mente, o ego e a
inteligência formam uma corrente que aprisiona a alma individual
impedindo-a
de
alcançar
a
auto-realização
(Jiva),
(Aparokshanubhuti).
(3)· Vale dizer, o mundo fenomênico é um certo grau da realidade. É
ilusório, mas não irreal. Contudo, esta sutileza do pensamento
vedantino advaita (não-dualista puro), que de modo nenhum se
confunde com o dualismo do Sankhya, é tido como um
“complicador”, no escopo deste pequeno tratado, que deseja, tãosomente, mostrar o caminho da auto-realização.
(4) Curiosíssima esta estância, que parece situar o limite da
percepção comum como a zona da relatividade, evocando-nos as
47
experiências de pensamento produzidas por Albert Einstein, que
desaguaram, em 1905, na publicação da Teoria da Relatividade
Restrita (Da Eletrodinâmica dos Corpos em Movimento).
(5) Jñani é aquele que realiza a verdade suprema através do
Conhecimento. Já o Bhakti atinge o mesmo objetivo por meio da
devoção. Ao que nos parece, trata-se de uma classificação de tipos
psicológicos, contra o pano de fundo da auto-realização. Na realidade,
ninguém é puro Jñani, nem puro Bhakti, mas sim uma mescla de
ambas as tendências.
(6) São os seguintes o texto da Gita e o comentário de Sankara:
(IV.37) “Assim como fogo reduz a madeira a cinzas, assim também, ó,
Arjuna, o fogo da sabedoria reduz a cinzas todas as ações.”
Comentário: “Exatamente como um fogo bem alimentado reduz
a madeira a cinzas, assim também o fogo da sabedoria reduz a cinzas
todas as ações, isto é, fá-las impotentes. Na realidade, não pode o fogo
da sabedoria, literalmente, reduzir as ações a cinzas. Devemos
entender que o conhecimento correto é a causa da impotência de todas
as ações. Contudo, as ações que trouxeram este corpo à existência
somente se esgotarão quando seus efeitos houverem sido integralmente
elaborados; isto porque tais ações já começaram a gerar seus efeitos.
Então, a sabedoria pode destruir somente as ações que ainda não
tenham começado a produzir efeitos, quer as verificadas nesta vida,
antes da ou concomitantemente à alvorada do Conhecimento, quer
aquelas perpetradas nas muitas vidas anteriores.” (“The BhagavadGita”, comentado por Shri Shankaracharya, tradução do sânscrito para
o inglês por Alladi Mahadeva Sastry. Samata Books. Madras).
Com efeito, interpretamos “Prarabdha” como “inércia
cármica”; “Sanchita-Karma”, como “carma estocástico” (espécie de
energia potencial cármica); “Kriyamana-Karma”, como o “carma
maduro”, traduzido, sob certa angulação, pelas características
genéticas individuais, que admitimos refletirem as tendências da
48
individualidade, sedimentadas ao longo de múltiplas reencarnações.
Acreditamos que a melhor interpretação seja a exposta no
“Vivekachudamani” (“A Suprema Jóia do Discernimento”) e aqui
mesmo, no “Aparokshanubhuti”.
(7) Elaborando o conteúdo da Nota 6, se entendermos o aqui chamado
“Prarabdha-Karma” como “inércia cármica”, concluiremos pela
modificabilidade do próprio carma maduro (“Kriyamana-Karma”),
eis que o próprio conceito de “Karma” deve ser tratado à luz da
probabilidade, e não da fatalidade.
(8) Eis o texto da Gita e o comentário de Sankara: “Mantendo o corpo
ereto e sem movimento, e firmes a cabeça e o pescoço, focalizando a
ponta do nariz, sem desviar a atenção.”
Comentário: “Um corpo ereto pode estar em movimento: daí a
qualificação “sem movimento”. Aquele que está meditando deve olhar
como se estivesse sobre a ponta de seu nariz. Aqui, é necessário
entendermos a expressão ‘como se estivesse’. Isso porque não é o
simples ato de fixar-se na ponta do nariz aquilo que o Senhor quer
prescrever, mas, sim, a fixação da visão interior (desligando-a dos
objetos externos). E é óbvio que isso depende da calma mental. Se, ao
contrário, aqui se pretendesse focalizar o simples ato de fixação na
ponta do nariz, então a mente fixar-se-ia apenas nesse lugar, e não no
Si-mesmo. Com efeito, o ioguin deve concentrar sua mente neste
último, conforme será ensinado em VI.25 (...). Deduz-se disso que a
expressão ‘como se estivesse’ induz a que o termo ‘fixar’ esteja, aqui,
empregado com o sentido de “a fixação da visão interior”. (Op. Cit., p.
191)

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