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DIÓGENES COMO UM TRANSGÊNERO: O KINISMO QUEER
INCOMODANDO O CINISMO ATUAL
Alice Maria Vasconcelos Lara (UnB)
Resumo: Este artigo visa comparar o kinismo antigo na forma como ele é apresentado pelo
autor alemão Sloterdijk as vivências dos sujeitos considerados queers (aqueles que transgridem
normas impostas para seus gêneros) na atualidade. No livro Crítica da razão cínica (1983) o
autor analisa momentos históricos que demonstram como o cinismo se tornou o principal
espírito de nossos tempos, onde a tão prometida escolarização se tornou claramente incapaz de
promover felicidade e bem estar. Em contraste, ele nos apresenta o kinismo grego da
antiguidade traduzido na figura de Diógenes um filósofo que promovia seus ensinamentos na
zombaria da sociedade e em uma busca pela felicidade no nomadismo, sem nenhuma
acumulação de bens materiais. Em sua análise de como este personagem se adaptaria a
contemporaneidade Sloterdijk acredita que o kinismo se perderia em nossa infeliz sociedade
cínica. Discordando deste pensamento, este artigo propõe que o kinismo ainda está vivo nas
ações dos sujeitos queers. Sujeitos que mesmo oprimidos e excluídos dos processos
educacionais ainda podem modificar a sociedade cínica.
QUEER KINISMO
“eram, quase no sentido antigo, corpos desnudados kinicamente, corpos como
argumento, corpos como armas.” (Sloterdijk,1983, p156)
Nossos tempos são cínicos!1 E os sujeitos principalmente nas esferas urbanas
partilham desse sentimento de forma massificada e homogênea, distantes do caráter de
diferenciação que o termo “cinismo” teve outrora. Infelizes, cumprimos nossas tarefas
cotidianas vivendo nossas naturezas e desejos nos intervalos que intercalam nossa
confortável realidade do desprazer. Não estamos assim por estupidez ou alienação, pois
somos conscientes, ou “falsamente conscientes”.
1
Não fica claro se o tempo de Sloterdijk é a modernidade, a contemporaneidade (o livro foi escrito em
1983) ou a um período anterior a estes. Minha proposta e relacioná-los a eventos que classifico como
contemporâneos.
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Não há esperanças e não nos preocupamos com isso. Todos os esclarecimentos
que nos prometiam libertações foram apenas uma troca por novas doutrinas por nós
escolhidas/aceitas como um tratado de paz entre nossos grupos sociais. A educação que
nos prometia bem estar trouxe o contrário disso2.
Se hoje o cinismo é assim vivido, em sua provável origem ele foi muito
diferente. Para explicar isso Sloterdijk evoca a figura de Diógenes “Homem-cão,
filósofo, Zé-ninguém” (p.209). Desapegado de bens materiais, este kínico vagava pelo
mundo antigo carregando apenas o que lhe era necessário, nos apresentando “a aliança
originária entre a felicidade, a ausência de necessidades e a inteligência” (p.212). Não
era uma ode à pobreza (como no cristianismo primitivo), mas uma rejeição daquilo que
nos prende. Como filósofo a riqueza de seu pensamento está mais em sua vida do que
nos escritos. Em uma existência bastante política, fazia chacota com os colegas filósofos
e diminuía os poderosos.
Sua acidez era vista por alguns como cura e por outros como remédio. A politica
de corpo que adotava era de negação: tinha uma barba longuíssima, sem cuidado algum.
O que não impelia Laís e Frineia, consideradas as melhores prostitutas de Atenas, de lhe
fazerem favores sexuais especiais numa relação de desapego incompreensível e
inacessível para quem só vivencia relações de troca comercial. Ao redor deste kínico
não há qualquer vestígio da tristeza do existencialismo contemporâneo.
A partir dessa apresentação de Diógenes, Sloterdijk reflete sobre o que
aconteceria a Diógenes no mundo contemporâneo. Vindo para incomodar Diógenes
veria tudo o que aconteceu com a sociedade nesses séculos como as guerras mundiais,
os campos de concentração e a mídia. Acabaria com vontade de parecer sábio, de
ensinar. A simplicidade do que tem para dizer precisaria dar diversas voltas para ser
2
Sendo alemão o autor tem uma realidade de educação formal muito diferente da educação brasileira.
Mas mesmo diante de nossa realidade é importante refletir se de fato a educação brasileira é capaz de
promover aos seus alunos além de ascensão social (o que a experiência demonstra que sim) felicidade.
2
aceita3. Seriam escritas teses dialéticas e ontológicas para que seu pensamento fosse
aceito e seu vigor corporal seria ignorado nesse processo. Teria o kinismo perdido sua
força? Existiria alguém que pudesse ser realmente ter uma força kínica nesta
contemporaneidade. Essa força teria poder politico? Seriam esses novos kínicos os
hippies, os mendigos, os viajantes?
Proponho que são os transgêneros os melhores representantes do kinismo na
contemporaneidade. Lésbicas, gays, travestis, transexuais, drag queens e kings,
crossdressers entre outros embora tenham feito importante conquistas politicas não
esperaram a aceitação da sociedade para viverem suas vontades.
KINISMO NA CONTEMPORANEIDADE É UMA QUESTÃO DE LUGAR
Embora em alguns contextos eles já estejam aceitos e vivam condutas
consideradas normativas, o termo queer vai nos traduzir melhor como se dá sua conduta
kínica. Originário da cultura anglo-saxônica, este termo era usado para falar de gays e
lésbicas de forma depreciativa. Sua tradução seria algo como deslocado, estranho,
esquisito. E para evidenciar a própria agressividade do termo alguns movimentos a
favor da liberdade sexual desses indivíduos o adotaram como termo guarda-chuva para
englobar todas as ações e momentos que dentro de seu contexto social são estranhas e
transgressoras. Um beijo entre homens em uma boate gay não é necessariamente
transgressor enquanto provavelmente o mesmo ato em uma igreja católica teria uma
conotação completamente queer.
É nesse ponto que os trans se encontram com o kinismo no sentido em que sua
transgressão depende do meio em eu vivem. Se Diógenes teve atitudes que espantavam,
e seduziam seus contemporâneos, seus atos se perderiam na atualidade. Enquanto as
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Neste trecho me ocorreu que Sloterdijk pela sua posição social (filosofo, acadêmico, midiático) se
identifica profundamente com este Diógenes perdido na atualidade.
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práticas sexuais entre homens eram regra na Grécia antiga, nos mundo contemporâneo
se revelam escandalosas. Kinismo é uma questão de contexto.
Revela-se então outro caráter do cinismo atual: sua capacidade de absorver e
enfraquecer os atos kínicos que o desafiam. Primeiro (na impressa, na Mass media, na
sociedade) é criado um espanto em torno desses atos que, diante de todos os outros atos
igualmente espantosos nos fazem míopes. É assim com as paradas gays, com a morte de
travestis, com o amor queer, com a violência contra homossexuais... Tudo e todos já
estão em catalogações do sujeito: o louco, o depravado, o aidético, a sapatona, a bicha, o
viado... São nomenclaturas indicadoras de que posição o kínico vai ocupar dentro desse
discurso.
Se já existe este espaço pré-determinado no discurso fica evidente que apesar de
ameaçar o kínico também reforça o discurso cínico. Despreocupados com verdades o
cínico fala (geralmente de seu local de poderoso) aquilo que bem quer sobre o kínico
que não tem aonde se defender (não tem poder, por que não quer, ou por que não
conseguir alcançá-lo).
Traçando o limite da heterossexualidade cínica, o queer kínico acaba por
reforçá-la, afirmando o que é ou não normal e criando uma fronteira sensual, que os
cínicos irão aproveitar como uma polêmica.
O CORPO VERDADEIRO E A PRÓTESE
Ao contrário de Diógenes, que aparentemente se descuidava de seu corpo e
parecia buscar sua natureza, o projeto de corpo que alguns transgêneros realizam
consiste exatamente em uma criação bastante complexa, um produto da tecnologia para
artificializar este corpo, deixando ele mais próximo de suas vontades. Silicones,
hormônios, cortes, apertos e modelagens podem gerar extrema ojeriza social, mas
podem também ser o cúmulo da lascívia e a maior representação da originalidade do
indivíduo.
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A travesti Agrado do filme Tudo sobre minha mãe em uma cena que descreve em público todas as
intervenções plásticas pelas quais passou: “porque se é mais autêntica quanto mais se parece com o que
sonhou para si mesma”
CU, O REI DO CORPO
Na parte intitulada de “Secção fisionômica” (p.187) Sloterdjk faz uma análise de
como partes específicas do corpo humano significam e importam dentro de nossa
cultura cínica. E há uma análise especialmente dedicada ao cu, “o órgão kínico
elementar” (p.199). O cu é a periferia mais sórdida do corpo, da mente e do mundo. Mas
é ao mesmo tempo internacional; todos em seu estado de saúde o utilizam, e para ele
não há “estatutos, ideologias e quotas” (p. 199)
Existe uma piada popular que diz explicar por que o cu é o rei do corpo: o corpo
humano tinha acabado de ser inventado e então os órgãos decidiram conversar sobre
qual deles deveria ser escolhido como o chefe do corpo. O cérebro disse que era ele já
que ele era o responsável pelos pensamentos. Então a boca se manifestou e disse que era
ela, pois era quem trazia energia ao corpo. As mãos alegaram que deveriam ser elas já
que trazia comida à boca. Os pés reclamaram serem os que sustentavam o corpo e o
levavam até a comida e por isso deveriam ser os reis do corpo. Surpreendentemente o cu
se manifestou e disse que ele deveria se o rei do corpo, e todos os outros órgãos riram
dele, pois como “aquilo” poderia se considerar a parte mais importante do corpo. Então
enraivecido, o cu decidiu fazer greve: o cérebro começou a doer, a boca ficou seca, as
mãos tremulavam e os pés não se sustentavam. E desde então o cu é o rei do corpo.
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Como aponta Sloterdijk “o cu ultrapassa todas as fronteiras, ao contrário da cabeça, à
qual muito importam as fronteiras e as propriedades” (p. 199).
As bonecas Barbies, símbolos em nossa cultura da beleza feminina, não têm esse
esfíncter: o hétero cínico o negou infinitamente, enquanto este músculo é praticamente
em alguns casos a própria identidade do trans. É o rei de seu discurso, e é também o
foco do discurso a ele destinado: queima-rosca, pau-no-cu... E se tolos vão usar isso
como ofensa: -vai dar o cu, viado! O queer vai assumi-las kinicamente: -não me venha
com agradinhos!
O cu é um órgão que vai servir ao trans de diversas modalidades para além
daquela limitada. E neste corpo ele terá também um tratamento especial que não é nem
imaginado no mundo hetero: passará pela xuca, será depilado, e em caso de uso
prolongado pode até passar por plásticas e cirurgias. O cu do transgênero é um cu das
técnicas e dos conhecimentos.
MERDA
“Diógenes é o único filosofo ocidental do qual sabemos
que fazia suas necessidades naturais conciente e publicamente e temos motivos para
interpretar isso como um elemento constitutivo de uma teoria pantonimica. Essa
teoria remete-nos para uma consciência da natureza que avalia positivamente o lado
animal e não permite que se isole o que é baixo ou penoso. (...) O filosofo kínico é
alguém que não sente nojo. Nisto é aparentado com as crianças que não sabem
ainda nada da negatividade de seus excrementos” (Sloterdijk, p 204, 1983)
Essa descrição de um ato comum de Diógenes remete a duas cenas do filme
trash Pink Flamingos, em que a drag queen usa a merda como elemento principal: em
uma ela caga em público, e em outro ela come cocô de cachorro. Neste filme de
baixíssimo orçamento realizado por diversão entre um grupo de amigos, a personagem
vivencia “a inutilidade do inútil, a produtividade do improdutivo” (p.204) e choca tão
profundamente a sociedade cínica que é quase impossível não gorfarmos ao assisti-las.
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Divine na cena de Pink Flamingos, em que come cocô de cachorro.
XANTIPAS, LAÍSES E FRINEIAS
Se as prostitutas serviam aos filósofos lhes fazendo favores sexuais exclusivos,
ou lhes cavalgando como cavalos, os transgêneros são nossas Xantipas, Laises e
Frineias servindo a todas as camadas da sociedade. Deitam-se com poderosos e
ameaçam seus status enquanto também são ameaçados fisicamente. Gerar desejos
proibidos é ainda bastante arriscado. Como as prostitutas, os transgêneros estão
confinados em seus guetos onde há permissividade para suas vontades.
Como o nômade Diógenes são os viajantes que saem de suas cidades. No lugar
do barril que ele carregava levam sua pequena mala4 transgênera, e excluídos de
qualquer privilégio social não se prendem a nenhum espaço e se tornam cidadãos do
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Ouvi o conceito das malas transgêneras durante as aulas do professor Belidson Dias, que nos
questionava diante de diversas representações cinematográficas de sujeitos queers que carregavam uma
mala em suas viagens: O que carregam o trans dentro dessas malas? Acredito que o principal conteúdo
dessa mala seria a artificialidade do corpo queer: vibradores, maquiagens, próteses, roupas...
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mundo. Como no trecho “o kínico sacrifica a sua identidade social e renuncia ao
conforto psíquico da pertença incontestada a um grupo político, para salvar sua
identidade existência e cósmica”.
São
os
agentes
duplos,
os
verdadeiros
vigaristas
sobreviventes
a
contemporaneidade das fachadas do poderoso colarinho branco; se aproveitam da beleza
e dos prazeres que podem oferecer, transitam por meios sociais bastante exclusivos,
onde encontram riqueza financeira e cultural
Sem inocência é claro deve-se admitir que os trans ocupam este gueto não por
opção mas como uma das poucas designações sociais que podem ocupar ao assumirem
suas sexualidades.
Uma das histórias mais cínicas que circularam na impressa: o jogador Ronaldo, considerado um dos mais
importantes do futebol brasileiro, aparece na companhia de travestis, entrando em um motel, mas afirma
não saber que eram travestis. Misteriosamente uma das travestis que apareceram no caso morre um ano
após o ocorrido. Ronaldo apenas separou sua imagem do fato e continua garoto propaganda de diversas
marcas consideradas familiares.
A LICENÇA ARTÍSTICA PARA O KINISMO
Se a arte nos nossos dias, de acordo com Sloterdijk esta “confinada pela ficção”,
a performance artística queer ainda não goza totalmente deste mesmo confinamento.
Em toda a sua historia este grupo foi associado à arte e à representação: pintores, atores,
escritores, músicos; é raro não se julgar a sexualidade dos virtuosos. E personalidades
trans povoam todo tipo de representação, se projetando no imaginário popular.
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Existe a representação do homossexual que se origina dentro do discurso
heterossexual, e que não ameaça ninguém. Geralmente servindo a um humor de
gargalhadas já “pré-ensaiadas”.
A grande ameaça acontece quando a representação surge de forma realista:
lésbicas que são simplesmente mulheres reais e não ninfas insaciáveis, beijos entre
homens, atrações pelo vestuário do sexo oposto incomodam duramente. Em um mundo
que vive em sonhos hollywoodianos, esses personagens se materializam na mente do
outro que nega da mesma maneira que nega a realidade. Diante dessa constatação é
estranho que seja a representação o espaço na qual os trans conquistaram seu maior
espaço nos últimos tempos. Talvez seja o kinismo presente nestas representações que
façam com que mesmo diante de tanta negação elas tenham força.
SEM EDUCAÇÃO, COM FELICIDADE?
Inúmeros são os que já não estão dispostos a acreditar que começar a <<aprender qualquer
coisa>> levará mais tarde a melhorar sua situação. Neles, creio, cresce um pressentimento que no
antigo kynismós era certeza: que uma pessoa tem que começar a ter uma vida melhor para depois
poder vir a aprender qualquer coisa razoável. (Sloterdijk, p.15, 1983)
Se a educação não foi a chave na busca por trazer alegria aos cidadãos alemães,
ainda não tivemos oportunidade de ver o que ela poderia se fosse realmente acessível
aos brasileiros, mesmo que já possamos acompanhar outros processos como a
massificação das universidades. A questão aqui é: se educação formal não garante
felicidade, os transgêneros não recebem essa educação, pois são marginalizados assim
que decidem se assumir. Sofrendo tanto preconceito e violência nesta área da sociedade
onde eles não estão presentes em nenhum momento como sujeitos do discurso o
abandono escolar por parte deste grupo é imenso. Sendo recente a comemoração do
primeiro travesti que conseguem atingir seu doutorado em uma universidade brasileira
questiono se é essa deseducação a explicação para tanta felicidade trans?
O RISO KÍNICO AINDA RESSOA
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Enquanto o cínico sorri com melancolia e desprezo, do alto de seu poderio e da sua
desilusão o que caracteriza o kínico é rir-se forte e desbragadamente a ponto das pessoas
educadas abanarem a cabeça. (Sloterdijk, p 195, 1983)
Como já foi dito acima o transgênero aparece no discurso cínico heterossexual
para motivo de humor. Mas distante deste discurso talvez seja mesmo o humor uma das
principais forças deste grupo. A própria sátira que seus corpos fazem dos corpos
heterossexuais “verdadeiros” acaba por desconstruir essas verdades e mostrar que todos
os seres humanos estão aprendendo continuamente a viver seus gêneros supostamente
naturais. Como um travesti que aprende a adocicar sua voz ou uma drag que se maquia,
somos todos falsos.
O ARMÁRIO CÍNICO
Todos sabem ou jugam saber o que é a homossexualidade, este é um dos
conhecimentos formadores de nossa sociedade e todos têm que se posicionar diante
dele. A existência da heterossexualidade provem de uma sexualidade que é oposta a ela.
As atitudes afirmativas que tem acontecido nos últimos tempos não resgataram uma
separação entre o que são os sujeitos e suas práticas, mas definiram os homossexuais
como uma frágil minoria.
Em nossa sociedade, uns acreditam que há cura para essas práticas
incessantemente afirmando que são as piores práticas possíveis. Há ainda outro grupo
que diz não se incomodar com elas desde que sejam exercidas sem serem expostas para
a sociedade, não fazendo as mesmas exigências as condutas heteronormativas. Diante
disso os sujeitos trans jogam o jogo do “armário”, uma estrutura analisada por Eve
Kosofsky Sedgwick. Ela nos diz serem raros os sujeitos trans que em alguma instância
da vida não tiveram que manter seus desejos em segredo, sejam nas relações pessoais ou
trabalhistas, devido às retaliações que essas revelações poderiam provocar.
Movimentando toda a localização do sujeito essas revelações modificam também a
posição de todos aqueles que com eles estão ligados, que passam a ter também poderes
e culpas sobre o conteúdo deste armário.
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Estranhamente o fato do grupo trans ter feito diversas conquistas inclusive na
sua representatividade nos objetos de cultura visual, parece ter aumentado a atmosfera
de “surpresa e prazer” seguidora da revelação homossexual ao invés de sua estimada
diminuição. E ao contrário de muitos discursos que anunciavam essa revelação como a
própria libertação, vimos que em certas instancias ela conseguiu sim grandes
conquistas, mas também gerou ondas reacionárias tão fortes quanto ela.
Há nesse jogo uma série de peculiaridades que não se aplicam outras questões
identitárias. Não se revela a raça, por exemplo, pois ela geralmente está na superfície,
enquanto os desejos se encontram no intímo dos seres, e não são sólidos, podem ser
emulados. A sociedade ainda questiona sua legitimidade, mesmo sem um crivo para
isso. Como coloca Sedgwick
“Como você sabe que é realmente gay? Por que a pressa de chegar a
conclusões? Afinal, o que você diz se baseia apenas em poucos sentimentos e
não em ações reais [ou, alternativamente, em algumas ações e não
necessariamente em seus verdadeiros sentimentos]; que tal falar com um
terapeuta e descobrir?” Tais respostas – e sua ocorrência. A epistemologia do
armário nas pessoas que se assumiram pode parecer um eco retardado de sua
ocorrência na pessoa que se assume – revelam quão problemático no presente é
o conceito mesmo de identidade gay, e também quão intensa é a resistência a
ela e o quanto a autoridade sobre sua definição se distanciou da própria pessoa
gay – ele ou ela. (Sedgwick, p. 37,2007)
Por essas argumentações defendo o armário a estrutura mais cínica de nossa
sociedade.
O HERÓI, O COVARDE, E O EXERCITO
Renegando o “heroísmo de massas” o transgênero (que transvia do masculino
para o feminino principalmente) é a exata figura do covarde que foge da guerra (que não
é dele, nem vai lhe trazer qualquer beneficio) para se salvar. Um ato totalmente kínico
de acordo com Sloterdijk que é bastante recorrente nas representações queers. Em um
episódio do programa humorístico de rádio virtual Las bibas from Vyscaia, cujos temas
são todos relacionados aos travestis, uma das locutoras, a travesti Marisa, descreve o dia
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em que teve que se apresentar para o serviço obrigatório do exército, mesmo contra sua
vontade. Decidida a ser dispensada, ela vai “montada” como travesti usando roupas em
estampa militar. Chegando ao quartel, lugar que ela vai chamar desejosamente de
Necolandia (Neca=pênis), a cada exame que passa ao mesmo tempo em que é xingada
seduz todos os homens supostamente heterossexuais que ali estão. E todos os superiores
lhe questionam: “Um homem! Não deveria ter vergonha de se vestir assim?” e ela
responde debochadamente com seu sotaque nordestino “U senho que qui eu cite
nomes?” No mesmo momento ela é dispensada de cada teste. No final do processo ela
seduz tantos homens que diz ter ficado morando no quartel mais de dois meses. É uma
narração que expõem como a covardia kínica queer é comum, e como o heroísmo
hétero não é tão heróico nem tão hétero assim.
O BUDA, A BOMBA E AIDS
Em um dos trechos mais poéticos e tristes de Critica da Razão Cínica, intitulado
“Meditação da bomba” (p. 179), Sloterdijk nos descreve um dos espíritos presentes na
exata época que o livro foi escrito, durante a guerra fria, em que as bombas atômicas
geravam ao mesmo tempo uma esfera de medo e paz. Para tamanha destruição não
haveria heróis, poderosos ou fracos ela traria enfim igualdade aos seres humanos.
Gorda, pesada, parada, sentada e redonda a bomba atômica era a própria representação
do Buda ocidental que com sua simples presença nos diria tudo que há para ser dito.
“Sua calma e ironia são infinitas” (p.183).
Se houve em alguma bomba no mundo queer foi com certeza o vírus da AIDS.
Sua descoberta foi marcada por uma associação aos homossexuais. Houve muitas
mortes que expuseram o grupo e as relações de desigualdade aos quais ele estava
exposto e que acabaram por mobilizar politicamente diversas ações. O vírus parecia um
resultado e acima de tudo uma punição as suas práticas sexuais. Mas
surpreendentemente ele acabou se tornando ao mesmo tempo uma bomba matadora e
salvadora que transita e marca todos os corpos, que mostra que este muro que separa o
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mundo hetero do mundo homossexual simplesmente não existe. Não há heróis para a
AIDS que não vê gênero, sexo, classe, ou cor.
E embora seja clara essa relação de “igualdade” que o vírus causa isso parece
deixar o cinismo que o cerca mais cínico, pois que são muitos os que negam este fato
matem suas práticas sexuais acreditando que estão imunes a esta relação e culpando os
homossexuais pelo vírus.
Deputado Jair Bolsonaro pretende fazer projeto de lei para separar o sangue “gay” do sangue “hetero”.
Se a bomba atômica era resultado de uma guerra, a AIDS é a originadora da
guerra das indústrias farmacêuticas pela venda de remédios caríssimos para a
amenização da doença. Sem contar os bilhões gerados pela venda de camisinhas. Sendo
essa bomba já detonada seus principais efeitos podem ser vistos no continente africano
onde jogos de poder extremamente cínicos fazem com que a população nunca tenha
acesso à informação, proteção de qualidade, e medicação. O continente parece ser o
próprio campo de testes desta bomba mais silenciosa que o Buda, mas que mata tanto
quanto a outra.
PORNOGRAFIA É KÍNICA? É QUEER?
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Tendo a pornografia perdido a surpresa que teve em outro momento, e se
tornado mais um espaço da sexualidade cínica, talvez o mesmo possa se dizer da
pornografia trans. Estamos vivendo graças à internet um momento de fácil acesso ao
“circo de horrores” onde todas as curiosidades do “como” e das “formas” podem ser
sanadas em alguns segundos. A pornografia virou o território da liberdade do desejo. E
não é necessário fazer qualquer revolução para o acesso e a fabricação desses prazeres.
É um período que pode nos trazer conhecimentos sexuais nunca acessíveis em outras
épocas que proporcionaram mais liberdade, como também pode nos trazer apenas mais
obrigações sexuais e novas doutrinações sobre o que é ou não permitido. Tem se
observado isso no aumento da procura por cirurgias para a “melhoria” da estética de
órgãos sexuais: o que antes nunca era visto, agora é visto, é comparado, é metrificado.
O amor parece ser o elemento menos necessário nesse processo que alem de pronta
satisfação não garante alegria.
CONCLUSÕES
Se as próteses significaram em outros contextos massificação e desnaturalização,
no corpo trans elas são a própria manifestação da originalidade e associadas à uma série
de significações podem chegar a se tornam naturais.
Esta originalidade do corpo também será alcançada pelos trans no deslocamento
das evidenciações que partes do seu corpo sofreram. O corpo queer parece mesmo mais
rico em suas vivencias.
A prostituição é o lugar destinado a alguns trans e o local aonde podemos
observar o seu poder e onde verificamos também a ausência de outras oportunidades de
trabalho e estudo obrigando-os a se manterem na marginalização.
Se a arte queer está em certo confinamento, assim como os sujeitos que
representa, também ultrapassa espaços, e atinge com muita força toda a sociedade
mesmo que negada.
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Sem acesso a educação, os trans riem e têm sua imagem associada à alegria. Fica
verificado que não é a educação que trás alegria a um grupo.
Analisada a estrutura do armário e suas violentas incoerências concluiu-se que
não pode haver estrutura mais cínica dentro da vida trans.
A associação do covarde kínico que foge do exercito para se salvar se adequou
perfeitamente a do gay que simplesmente por assumir sua sexualidade não pode assumir
o cargo no exército brasileiro demonstrando o quanto essa veia kínica ainda esta viva.
Conclui-se que a bomba atômica do mundo queer foi a AIDS. Além de seus
efeitos devastadores ela trouxe identidade e união ao grupo demostrando que não existe
a tão construída separação com o mundo hétero.
Constatou-se que embora a pornografia tenha trazido conhecimentos sexuais
nunca antes acessíveis também pode servir como mais uma obrigação social sem muita
alegria.
Sendo o mundo cínico, não acredito na isenção do grupo trans: certas condutas
típicas deste grupo são bastante cínicas. Mas como aponto este novo kinismo é questão
de lugar.
BIBLIOGRAFIA
SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemologia do Armário. Cadernos Pagu. Campinas,
v.28, p.19-54. 2007. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010483332007000100003&l
ang=pt>. Acesso em 16 de novembro de 2010.
SLOTERDIJK. Peter. Crítica da razão cínica. Lisboa. Editora Rélogio d’Água. 1983.
669 p.
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