Anais Port.p65
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ANAIS DO XI CONGRESSO DA ABRACOR - RIO DE JANEIRO - RJ 2002 103 As transformações sofridas pelo pórtico de Northumberland e a sua restauração. Nelson Pôrto Ribeiro. Arquiteto historiador (D.Sc)*; Wallace Caldas. Arquiteto restaurador.** Resumo Histórico A idéia central deste artigo é demonstrar como as prospecções e os testes laboratoriais são fundamentais — junto com a pesquisa histórica iconográfica — para se entenderem os monumentos arquitetônicos e as fases por que passaram. Só assim, poderse-á formular uma proposta coerente para a sua restauração. O pórtico do Jardim Zoológico da Quinta da Boa Vista é uma cópia do projetado em 1773 pelo famoso arquiteto Robert Adam para o parque da Syon House, propriedade da família do Duque de Northumberland (Figura 1). O objeto deste estudo é, provavelmente, a primeira construção neoclássica na capital da América portuguesa: um pórtico construído na Inglaterra, montado no Brasil e posteriormente desmontado e reconstruído em local distinto, num processo misto de anastiloses com reconstrução. O duque, que tinha ligações de amizade com a Casa Real Portuguesa — pois havia estado em Portugal por motivos de saúde em 1792, lá residindo por dois anos — encarregou seu arquiteto particular, Thomas Hardwick, de providenciar não apenas as grades, mas também todo o conjunto do pórtico (colunatas e pavilhões) fazendo a adaptação do projeto de Adam para as dimensões requeridas pelo príncipe, e de acompanhar, na Inglaterra, a execução do monumento. Figura 1: Elevação e planta do pórtico da entrada de Syon Park de autoria de Robert Adam (1773). *Ópera Prima Arquitetura e Restauro Ltda. E-mail: [email protected] **Ópera Prima Arquitetura e Restauro Ltda. E-mail: [email protected] Segundo desejo expresso através de carta do embaixador inglês no Brasil ao duque, o príncipe regente deste país e de Portugal, o futuro D. João VI, desejava, para embelezar a sua recém-adquirida propriedade da Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro, grades semelhantes às da entrada de Syon Park — as quais o príncipe conhecia por um desenho — evidentemente, adaptadas em suas dimensões para a nova situação. O pórtico foi, como se observou em pesquisas realizadas nos Arquivos de Northumberland, no Castelo de Alnwick na Inglaterra, todo construído nesse país e enviado, desmontado e encaixotado, para o Brasil. Apesar de ter sido inicialmente uma encomenda e de toda a iniciativa relativa a ela ter partido do príncipe regente através do embaixador inglês, o pórtico jamais foi pago, sendo que o Duque de Northumberland assumiu todas as despesas, inclusive as de transporte, viagem e estada, aceitando graciosamente todos os encargos, como uma doação, malgré lui, ao príncipe. A data da encomenda não é explicitada por Kelly em seu artigo; contudo percebe-se que não foi antes de 1809 (de acordo com a referência dos maços de carta consultados), e que, em 1811, o portão ainda não estava pronto porque o duque, através de carta, cobrava do seu arquiteto a conclusão dos trabalhos, aprovando até os desenhos do brasão central com o escudo das armas dos Braganças. Também por essa correspondência, observa-se que a Coade & Sealy — firma que fabricou os elementos em terracotta — utilizou os moldes do portão de Syon Park na fabricação do portão destinado à Quinta da Boa Vista. Em dezembro de 1812, o pedreiro inglês John Johnston, enviado pelo duque, embarcou para o Rio de Janeiro acompanhando as caixas do pórtico neoclássico, com a tarefa de montá-lo no seu local de destino, já que, no Brasil, acreditava-se, não havia mão-de-obra adequada para tal tarefa. De acordo com carta recebida pelo Duque em maio de 1815, Johnston informava-lhe que a construção do pórtico estava quase terminada e que o Príncipe encontrava-se bastante satisfeito com o resultado. Relato de Jean Baptiste Debret, pintor da missão artística francesa, deixa claro que, em 1816, a montagem do pórtico já estaria toda concluída. Como esse é o ano da chegada da futura Imperatriz Leopoldina ao Brasil, para se casar com o Príncipe Herdeiro D. Pedro, talvez esteja aí a origem da confusão histórica que vê o pórtico como presente de casamento, quando, na verdade, bem antes que se pensasse nesse enlace matrimonial entre as duas casas reais, ele já estivesse encomendado. 104 ANAIS DO XI CONGRESSO DA ABRACOR - RIO DE JANEIRO - RJ 2002 Posicionado à entrada do pátio frontal do palácio da Quinta, o pórtico permaneceu nesse local por quase cerca de um século, quando foi desmontado e guardado. Posteriormente, na administração do Prefeito Henrique Dodsworth (1945), o monumento foi reconstruído em outro local, que não o da sua posição original, onde se encontra até hoje — à frente do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro. A tecnologia construtiva Tal como o de Adams, o pórtico enviado ao príncipe constituía-se de dois pavilhões cúbicos nas extremidades, com urnas nas coberturas, separados por duas colunatas tetrastilas gradeadas e um arco central, onde se situava o portão de entrada. Enquanto os pavilhões, assim como as colunas das colunatas e, acredito, também o grande arco central, eram de pedra lisa de material natural (gnaiss), os frisos ornamentados das arquitraves, os capitéis das colunas, as duas urnas por sobre os pavilhões, assim como o friso do arco central junto com as quatro grandes pilastras, eram de pedra artificial, a famosa ‘pedra de Coade’. Segundo as cartas do arquivo de Northumberland, pensou-se, como pedra natural a ser utilizada nas partes lisas da construção, naquelas as provenientes das pedreiras de Birling ou de Warksworth; esta última foi, contudo, a escolhida. Para as grades do portão e acessórios de ferro, como as lanternas, o ferreiro Muckle foi o artesão contratado. Homem prático, o duque pensou em enviar os elementos de serralheria pintados de forma a proteger o ferro da oxidação do mar. A cor inicial cogitada foi “um verde claro muito brilhante”, depois substituída, segundo Kelly, pela cor preta, solução mais elegante que teria sido usada pelo Duque de Wellington nos portões de Apsley House . Na fabricação do pórtico, contou-se com a participação da Coade & Sealy, empresa doméstica que fabricava uma pedra artificial, na verdade uma louça de barro vidrada que, após ir ao forno, assemelhava-se bastante à pedra calcária, tendo, contudo, maior durabilidade do que esta. O uso da ‘pedra de Coade’ na Inglaterra foi muito difundido entre os anos 1796 e 1813, tempo de atividade da empresa iniciada pelo Sr. George Coade. Após a morte deste, a empresa continuou, agora sob a administração de sua viúva, Sra. Eleanor Coade, e de seu primo, o Sr. Sealy. As propriedades particulares dessa pedra artificial — seu baixo índice de retração quando em cozimento, sua maleabilidade e durabilidade — fazem-na um material ideal para a fabricação de ornatos decorativos em arquitetura, tais como vasos e urnas. A ‘pedra de Coade’ foi utilizada por eminentes arquitetos ingleses do período georgiano, além de Adam, tais como Sir William Chambers, James e Samuel Wyatt, Sir John Soane e John Nash. Também outros escultores, como Flaxman e John Bacon, fizeram uso do material: conseqüentemente, essa pedra foi usada nos mais diversos e importantes edifícios por toda a Inglaterra. A mais impressionante peça em ‘pedra de Coade’ encontrada em Londres é o leão situado na margem sul da ponte de Westminster. Segundo Alison Kelly, esse material, “embora composto de vários ingredientes, pode ser descrito como uma espécie de terracotta... A fórmula usada era 10% de material vítreo, 5 a 10% de pó de pedra, 5 a 10% de areia muito fina para reduzir a retração, 10% de uma mistura de hidróxido de sódio e 60 a 70% de argila proveniente de Dorset & Devon. Era o cuidadoso controle e habilidade da pessoa que manipulava o forno o segredo do sucesso”. Os rigores na fabricação faziam com que a Coade & Sealy produzisse um material de ótimo acabamento e grande durabilidade, tanto no aspecto físico quanto no desgaste das cores. Segundo Kelly, o material usado, dada a falta de plasticidade, impossibilitava que um objeto modelado fosse levado ao forno. Sendo assim, um modelo e um molde tornavam-se necessários, o que encarecia o produto final; os moldes, porém, podiam ser guardados cuidadosamente, por muitos anos. Eis por que o Duque de Northumberland, em uma de suas correspondências a Hardwick, inquiria se a Coade & Sealy ainda mantinha os moldes do pórtico de Syon Park, ou seja, uma preocupação financeira de quem estava arcando com todos os custos. ANAIS DO XI CONGRESSO DA ABRACOR - RIO DE JANEIRO - RJ 2002 105 As análises laboratoriais Apesar de termos, através da pesquisa histórica, indícios seguros de que se tratava de material proveniente de uma terracota, e não de uma argamassa, havia a necessidade de comprovação. Afinal, o pórtico já tinha sido objeto de muitas alterações, e as pilastras de ‘pedra de Coade’ do arco central — sobre as quais não havia dúvida quanto a serem originais, pela assinatura que ostentavam — estavam assentadas em um arco de concreto armado com cimento portland (revelado por prospecções). Assim, retirou-se uma série de corpos de prova para testes laboratoriais, pertencentes ao conjunto escultórico (cauda do dragão) em cima do arco principal (CP1); ao friso da pirâmide de cobertura de um dos pavilhões (CP2); e à face de um dos símios da pirâmide de cobertura, no pavilhão oposto (CP3). Foi utilizado um procedimento simplificado para a análise dessas argamassas. Depois de pulverizadas cuidadosamente — para se evitar a descaracterização da granulometria —, elas foram dissolvidas em ácido clorídrico (HCl) 1 + 1 para separação da fração aglomerante da fração agregado, e sua conseqüente pesagem. Os testes, curiosamente, nos revelaram dois tipos absolutamente distintos de aglomerados. Enquanto o primeiro corpo de prova mostrou ser um material basicamente sem aglomerante algum (3.65% em peso) e alta concentração de areia fina (73.63%) e finos (22.72%), os outros dois corpos de prova indicaram tratar-se de argamassas com alto teor de aglomerante (cerca de 60% em peso) e de areia com baixa granulometria. Ora, ensina-nos a experiência que um aglomerado sem aglomerante aéreo ou hidráulico é uma argamassa fraca, de argila com areia, onde não existe cura química, e esta se dá apenas por secagem; por outro lado, uma argamassa praticamente sem areia, com grande quantidade de finos, ainda que com grande percentual de aglomerante hidráulico, também é uma argamassa relativamente fraca, pouco resistente; e as argamassas do pórtico, passados mais de 180 anos, continuavam íntegras em sua maior parte, resistentes e pouco porosas. As conclusões a que pudemos chegar são: a. O CP1 que foi retirado do grupo escultórico por sobre o arco de entrada é de verdadeira ‘pedra de Coade’, ou seja uma terracotta, um produto que foi ao forno e que possui, tal como observado a olho nu, uma fina camada vitrificada na superfície. O baixo grau de aglomerante encontrado, na verdade, significa quase aglomerante nenhum; a variação em peso deve-se ao fato de que alguns dos materiais utilizados na fabricação da pedra de Coade, tal como Kelly descreve em sua pesquisa, tem na sua composição, material carbonático (CaCO3) —assim como também uma ínfima quantidade de cal extinta —, o qual é atacado pelo ácido clorídrico tanto quanto a cal e o cimento portland. b. O CP2 e o CP3 são de falsa ‘pedra de Coade’, ou seja, quando da reconstrução do pórtico em data posterior, as pirâmides de cobertura dos pavilhões incorporaram elementos que simulavam a ‘pedra de Coade’, mas que não só não eram originais, como também não reproduziam elementos originais, já que as pirâmides de cobertura nunca existiram nos pórticos originais e foram uma ‘invenção’ que substituiu os telhados em telhas francesas até então existentes, e revelados pela pesquisa histórica. Esses elementos são os frisos ornamentais e as faces de símios, que se encontram aplicados por todas as duas pirâmides, com exceção das urnas no topo, estas sim, também originais, de acordo com as antigas fotografias (e com a assinatura que levam na base). Esses novos elementos foram feitos com uma argamassa com alto teor de aglomerante (provavelmente cal hidráulica) e um aglomerado de granulometria fina. Isso explica sua significativa fragilidade. Os testes laboratoriais não foram executados em todos os elementos do pórtico possíveis de serem em ‘pedra de Coade’ — o que teria sido bastante desejável no tocante à pesquisa. Os corpos de prova foram escolhidos em pedaços de argamassa que estavam fragmentados, pois a retirada de corpos de prova são, em geral, — sob o aspecto da conservação do monumento — prospecções destrutivas. Evitou-se, assim, retirá-los em locais onde a ‘pedra de Coade’ estava intacta e coesa. Dessa forma, não tivemos amostras nem das grandes pilastras do arco central e dos 106 ANAIS DO XI CONGRESSO DA ABRACOR - RIO DE JANEIRO - RJ 2002 ornatos do entablamento do mesmo arco, nem das argamassas da arquitrave, nem das urnas do cimo dos pavilhões. Contudo, as pilastras e as urnas estão “assinadas” (levam a marca “Coade & Sealy” gravadas); são, portanto, indiscutivelmente originais. Quanto aos ornatos do entablamento do arco central, assim como o próprio entablamento e a moldura do arco, e também os ornatos das arquitraves das colunatas (triglifos e bucranios) e os ornatos de portadas, resta-nos a possibilidade de confronto com a única fotografia com bom nível de detalhes existente. Esse confronto é positivo e mostra que esses ornatos eram existentes à época, sendo, portanto, anteriores à reconstrução do pórtico à frente do Jardim Zoológico. Um bom indício de que esses ornatos eram originais é justamente o estado de integridade em que se encontravam e que impossibilitou a retirada de corpos de prova para os testes laboratoriais. De maneira geral, tudo que era ‘pedra de Coade’ estava em muito bom estado, ao passo que tudo que era simulação da ‘pedra de Coade’ se encontrava num nível bem maior de degradação, faltante, ou mesmo solto, já tendo, até, passado por uma ‘restauração’ mal-executada, como a feita na face dos símios (em geral nos focinhos), onde foram colocadas próteses em cimento portland escuro, sem preocupações em se utilizar uma argamassa similar em cor e textura. Considerando-se que o que é em falsa ‘pedra de Coade’ tem apenas cerca de 55 anos e o que é em verdadeira ‘pedra de Coade’ tem cerca de 188 anos, pode-se imaginar que a Coade & Sealy não fazia propaganda enganosa quando divulgava as características excepcionais de resistência da pedra artificial que fabricava. Com as características desses materiais definidas de forma tão diametralmente oposta, foi relativamente fácil distinguir o que era ‘pedra de Coade’ do que era ‘falsa pedra de Coade’. O confronto dos resultados obtidos nos testes laboratoriais com a pesquisa históricoiconográfica nos possibilitou elaborar uma cronologia do pórtico e suas modificações, descritas a seguir. Com base na iconografia e nos dados históricos arrolados, é possível supor a reconstituição das transformações sofridas, através da história, pelo pórtico do Duque de Northumberland, e apresentar o resumo a seguir: Reconstituição das transformações sofridas pelo pórtico Figura 2: Litografia (c. 1830) mostrando que o pórtico a época não servia de entrada, pois não só o portão estava atravancado por pedras como também não existia uma alameda que conduzisse ao portão. • até a reforma Glaziou, iniciada em 1869 no parque da Quinta da Boa Vista, o pórtico provavelmente manteve-se intacto na frente do pátio do palácio, em uma posição lateral, não sendo utilizado como pórtico de entrada (Figura 2); • Glaziou deu ao pórtico uma posição central na remodelação do paisagismo da Quinta, fazendo com que a alameda de entrada passasse por baixo dele. Contudo, retirou os elementos metálicos do portão, tanto as lanternas que ornavam o topo da arquitrave quanto as que ladeavam o brasão central. Retirou, ainda, as grades e o portão de ferro que cerravam os vãos entre as colunas (Figura 3); • no início do século XX, provavelmente durante as reformas Nilo Peçanha (1907) na Quinta, o pórtico foi desmontado e guardado; Figura 3: Fotografia de autor desconhecido, mostrando o pórtico após as transformações de Glaziou no jardim da Quinta da Boa Vista. • em 1945, durante a administração do Prefeito Henrique Dodsworth, o pórtico foi reconstruído no local em que se encontra hoje, à entrada do Jardim Zoológico. Como com toda a certeza, faltavam peças estruturais — provavelmente peças em cantaria que formavam o Arco Central —, que foram reconstruídas através de uma armação em concreto armado com o uso de cimento portland do tipo como é conhecido nos dias de hoje (cinza escuro). Também os telhados de madeira e telha francesa dos pavilhões laterais foram retirados e, em seu local, foram colocadas coberturas piramidais de argamassa de cimento portland armado. Nessas pirâmides das coberturas foram acrescentados ornatos, inexistentes até então (cabeças de símios, rosetas e frisos com folhagens), e no mesmo estilo dos demais ornatos do pórtico. Esses ornatos foram executados com uma argamassa hidráulica, provavelmente de cimento branco, cal e pigmento, e, por buscarem uma semelhança com os demais ornatos sem serem contudo de terracota, podemos chamá-los de falsa ‘pedra de Coade’. O objetivo a que se propuseram esses reconstrutores do pórtico em 1945, foi ANAIS DO XI CONGRESSO DA ABRACOR - RIO DE JANEIRO - RJ 2002 107 alcançado. Embora menos resistente, essa falsa ‘pedra de Coade’ é muito similar em coloração e granulometria à ‘pedra de Coade’ original e, sem a ajuda dos testes laboratoriais, não teria sido possível distinguir uma da outra. A administração Dodsworth devolveu elementos em ferro ao pórtico que tinham sido retirados por Glaziou: as grades e o portão. Essas grades, provavelmente, e em especial, o portão do arco central, não são mais os originais. Os lampiões outrora existentes não foram recolocados, possivelmente porque, tal como os portões originais, ou não mais existiam, ou estavam em péssimo estado. • em data posterior a 1945, o portão sofreu obras de manutenção. Os elementos ornamentais em falsa ‘pedra de Coade’ já se encontravam deteriorados e receberam próteses mal-executadas em cimento portland, aplicadas em especial nos focinhos dos símios nas pirâmides de cobertura. Também foram acrescentadas próteses mal-executadas nas duas portadas das entradas dos pavilhões — nesse caso, pelo fato de ter sido trocado todo o módulo, não se sabe se a troca foi de peças anteriormente originais ou também de peças em falsa ‘pedra de Coade’. Talvez, por não deterem habilidade suficiente para aproximar, em textura, e granulometria, as argamassas das próteses, das terracotas originais, esses ‘restauradores’ pós-1945 resolveram pintar todos os elementos ornamentais, tanto os em ‘pedra de Coade’ como os em falsa ‘pedra de Coade’, com cal, de forma a igualar a coloração deles. Também o Arco Central recebeu novas camadas de tinta na sua parte estrutural, que é recente. Foi nesse estado que o pórtico Northumberland chegou aos nossos dias. Procedimentos da restauração Estes procedimentos foram iniciados com a retirada da pintura em caiação, através de decapagem cuidadosa. Em seguida, decidiu-se levar em conta a qualidade das argamassas elaboradas em 1945, que, de acordo com o nosso ponto de vista, cumpriram muito bem a sua função, pois alcançaram compatibilidade visual com as terracotas originais, ao mesmo tempo em que, apresentando menor resistência mecânica do que estas, não corriam o risco de ameaçar a integridade do material original. Nossa diretiva era a de trabalhar com um material no qual as propriedades mecânicas sendo relativamente reduzidas, o risco de concentração das solicitações sobre o material antigo resultava reduzido também. O critério para a remoção das próteses foi a sua não-originalidade, associada a sua incompatibilidade visual e ao seu estado de desintegração física. Tomou-se o cuidado de não se removerem jamais peças originais, ainda que deterioradas, assim como também não se removeram próteses que, ainda que díspares, visualmente encontravam-se muito bem integradas, e a sua remoção causaria estragos nas terracotas originais próximas — como era o caso de algumas consolidações antigas de fissuras. Não foi removido também nenhum módulo que se supôs não ser original (como é o caso de uma métopa pertencente ao friso do entablamento traseiro), mas que possuía uma fatura de boa qualidade assim como se mostrava íntegro. O procedimento para a remoção foi o mais cuidadoso possível, para não fraturar partes íntegras e originais. Para os módulos e as peças grandes, utilizou-se de maquita com disco rotativo. Em pequenas próteses que já estavam deterioradas — tal como no focinho dos símios —, utilizou-se de pequeno ponteiro. Os testes laboratoriais foram úteis não como um traço a ser seguido à risca, mas como um indicador de uma argamassa que já havia sido utilizada com razoável sucesso em pequenos reparos e em novos ornatos. O ideal para composição dessas argamassas seria a utilização de um aglomerante à base de cal hidráulica (pozzolânica ou com argila reativa). Na impossibilidade da obtenção de um aglomerante com essas características (não existe cal hidráulica no Brasil), foi utilizado, de acordo com uma sugestão usual no campo da tecnologia das argamassas, uma reconstituição de cal hidráulica na base de uma mistura de cimento branco estrutural, com cal hidratada comum, na proporção de 1 : 2 (cimento : cal) em volume. Trabalhou-se com uma granulometria fina, similar à da ‘falsa pedra de Coade’, no traço de 1 : 2, de cal hidráulica (reconstituída) e argila refratária (utilizada na fabricação de cerâmica), o que elevava de certa forma o teor aglomerante da argamassa já que essa argila também é reativa. A essa mescla foram acrescentados cerca de 10% em volume de Primal 108 ANAIS DO XI CONGRESSO DA ABRACOR - RIO DE JANEIRO - RJ 2002 AC33, no sentido de aumentar a plasticidade final do material, evitando trincas quando de próteses no material cerâmico original, sensivelmente mais rígido — pois, de acordo com autores como Kanan, é desejável que a nova argamassa a ser enxertada seja mais fraca que a original. Foi utilizado pigmento Terra de Siena para aproximar a coloração da argamassa com a original, nos casos em que a argila não foi suficiente para isso. Utilizou-se, como protetivo final das argamassas, o hidrofugante fabricado pela Fosroc chamado Nitoprimer 40, à base de silano/siloxano. Foi feito um teste em área pequena e observou-se que os resultados de hidrorrepelência se fizeram sentir desde que o produto secava, e eram notáveis, assim como também, depois do produto seco, não se observou formação de película nem alteração significativa da coloração da argamassa. Os testes foram aprovados pela fiscalização do IPHAN. O produto foi aplicado em uma demão, após lavagem e secagem para retirada de poeira e demais resíduos. A aplicação se fez com trincha embebida generosamente. Os elementos pétreos que compunham o pórtico — pavilhões laterais e colunas — estavam em razoável estado de conservação e sofreram, da nossa parte, apenas procedimentos de limpeza e de proteção final, usuais no tratamento de pedras metamórficas de origem magmática (gnaiss). Por falta de espaço, torna inviável a explanação desses procedimentos neste artigo. Bibliografia BRENNA, Giovanna Rosso del. “Ecletismo no Rio de Janeiro – séc. XIX-XX” in: FABRIS, Annateresa. Ecletismo na arquitetura brasileira. São Paulo : Nobel; EDUSP, 1987. CARASEK, Helena & CASCUDO, Oswaldo. “Técnicas auxiliares no diagnóstico de manifestações patológicas e na restauração das argamassas de revestimento”. Anais do IV Congresso Ibero Americano de Patologia das Construções. Porto Alegre, 21 a 24 de outubro de 1997. FERREZ, Gilberto (org.).The Brazil of Eduard Hildebrandt. Rio de Janeiro, Record, s/ d. KANAN, Isabel. “Panorama dos trabalhos de restauração com materiais a base de cal em Santa Catarina”. Anais do IX Congresso da ABRACOR. Salvador, 25 a 30 de outubro de 1998. KELLY, Alison. “Um presente dispendioso: o portão de Adam no Rio de Janeiro” in: Boletim do Museu Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: n° 9 e 10, set/dez 84 e jan/abr 85. ___ “Mrs. Coade’s Stone; Coade Stone and its History” (taken from the book on the subject Mrs. Coade’s Stone. By Alison Kelly) http: //www.churchmousewebsite.co.uk. QUARCIONI, V. A; CINCOTTO, M. A. & CHOTOLI, F. F. “Caracterização da composição de argamassas de assentamento e de revestimento”. Anais do III Simpósio Brasileiro de Tecnologia das Argamassas. Vitória, 22 e 23 de abril de 1999. Vol. II pp: 593607. TEUTONICO, Jeanne Marie. A laboratory manual for architectural conservators. Rome, ICCROM, 1988. TILLER, Teel Patterson. “The preservation of historic glazed architectural terra-cotta”. ICCROM. OBS: Agradecimentos à arquiteta Marisa Assumpção do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que nos forneceu parte da pesquisa iconográfica. Notas 1 KELLY. 1984 2 BRENNA. 1987, p. 31. 3 KELLY. 1984, p.25. 4 KELLY (s/d) 5 TEUTONICO. 1988, p.113. 6 KANAN. 1988.