Anais Port.p65

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Anais Port.p65
ANAIS DO XI CONGRESSO DA ABRACOR - RIO DE JANEIRO - RJ 2002
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As transformações sofridas pelo pórtico de
Northumberland e a sua restauração.
Nelson Pôrto Ribeiro. Arquiteto historiador (D.Sc)*; Wallace
Caldas. Arquiteto restaurador.**
Resumo
Histórico
A idéia central deste artigo é demonstrar
como as prospecções e os testes laboratoriais
são fundamentais — junto com a pesquisa
histórica iconográfica — para se
entenderem os monumentos arquitetônicos e
as fases por que passaram. Só assim, poderse-á formular uma proposta coerente para a
sua restauração.
O pórtico do Jardim Zoológico da Quinta da Boa Vista é uma cópia do projetado em 1773
pelo famoso arquiteto Robert Adam para o parque da Syon House, propriedade da
família do Duque de Northumberland (Figura 1).
O objeto deste estudo é, provavelmente, a
primeira construção neoclássica na capital
da América portuguesa: um pórtico
construído na Inglaterra, montado no
Brasil e posteriormente desmontado e
reconstruído em local distinto, num processo
misto de anastiloses com reconstrução.
O duque, que tinha ligações de amizade com a Casa Real Portuguesa — pois havia estado
em Portugal por motivos de saúde em 1792, lá residindo por dois anos — encarregou seu
arquiteto particular, Thomas Hardwick, de providenciar não apenas as grades, mas também todo o conjunto do pórtico (colunatas e pavilhões) fazendo a adaptação do projeto
de Adam para as dimensões requeridas pelo príncipe, e de acompanhar, na Inglaterra, a
execução do monumento.
Figura 1: Elevação e planta do pórtico da
entrada de Syon Park
de autoria de Robert Adam (1773).
*Ópera Prima Arquitetura e Restauro Ltda.
E-mail: [email protected]
**Ópera Prima Arquitetura e Restauro
Ltda. E-mail: [email protected]
Segundo desejo expresso através de carta do embaixador inglês no Brasil ao duque, o
príncipe regente deste país e de Portugal, o futuro D. João VI, desejava, para embelezar a sua
recém-adquirida propriedade da Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro, grades semelhantes às da entrada de Syon Park — as quais o príncipe conhecia por um desenho — evidentemente, adaptadas em suas dimensões para a nova situação.
O pórtico foi, como se observou em pesquisas realizadas nos Arquivos de
Northumberland, no Castelo de Alnwick na Inglaterra, todo construído nesse país e enviado, desmontado e encaixotado, para o Brasil. Apesar de ter sido inicialmente uma encomenda e de toda a iniciativa relativa a ela ter partido do príncipe regente através do embaixador inglês, o pórtico jamais foi pago, sendo que o Duque de Northumberland assumiu
todas as despesas, inclusive as de transporte, viagem e estada, aceitando graciosamente todos
os encargos, como uma doação, malgré lui, ao príncipe.
A data da encomenda não é explicitada por Kelly em seu artigo; contudo percebe-se que
não foi antes de 1809 (de acordo com a referência dos maços de carta consultados), e que,
em 1811, o portão ainda não estava pronto porque o duque, através de carta, cobrava do
seu arquiteto a conclusão dos trabalhos, aprovando até os desenhos do brasão central com
o escudo das armas dos Braganças. Também por essa correspondência, observa-se que a
Coade & Sealy — firma que fabricou os elementos em terracotta — utilizou os moldes do
portão de Syon Park na fabricação do portão destinado à Quinta da Boa Vista.
Em dezembro de 1812, o pedreiro inglês John Johnston, enviado pelo duque, embarcou
para o Rio de Janeiro acompanhando as caixas do pórtico neoclássico, com a tarefa de
montá-lo no seu local de destino, já que, no Brasil, acreditava-se, não havia mão-de-obra
adequada para tal tarefa.
De acordo com carta recebida pelo Duque em maio de 1815, Johnston informava-lhe
que a construção do pórtico estava quase terminada e que o Príncipe encontrava-se bastante satisfeito com o resultado. Relato de Jean Baptiste Debret, pintor da missão artística
francesa, deixa claro que, em 1816, a montagem do pórtico já estaria toda concluída.
Como esse é o ano da chegada da futura Imperatriz Leopoldina ao Brasil, para se casar com
o Príncipe Herdeiro D. Pedro, talvez esteja aí a origem da confusão histórica que vê o
pórtico como presente de casamento, quando, na verdade, bem antes que se pensasse nesse
enlace matrimonial entre as duas casas reais, ele já estivesse encomendado.
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Posicionado à entrada do pátio frontal do palácio da Quinta, o pórtico permaneceu
nesse local por quase cerca de um século, quando foi desmontado e guardado. Posteriormente, na administração do Prefeito Henrique Dodsworth (1945), o monumento foi
reconstruído em outro local, que não o da sua posição original, onde se encontra até hoje
— à frente do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro.
A tecnologia construtiva
Tal como o de Adams, o pórtico enviado ao príncipe constituía-se de dois pavilhões cúbicos
nas extremidades, com urnas nas coberturas, separados por duas colunatas tetrastilas
gradeadas e um arco central, onde se situava o portão de entrada.
Enquanto os pavilhões, assim como as colunas das colunatas e, acredito, também o
grande arco central, eram de pedra lisa de material natural (gnaiss), os frisos ornamentados
das arquitraves, os capitéis das colunas, as duas urnas por sobre os pavilhões, assim como o
friso do arco central junto com as quatro grandes pilastras, eram de pedra artificial, a
famosa ‘pedra de Coade’.
Segundo as cartas do arquivo de Northumberland, pensou-se, como pedra natural a ser
utilizada nas partes lisas da construção, naquelas as provenientes das pedreiras de Birling ou
de Warksworth; esta última foi, contudo, a escolhida. Para as grades do portão e acessórios
de ferro, como as lanternas, o ferreiro Muckle foi o artesão contratado. Homem prático, o
duque pensou em enviar os elementos de serralheria pintados de forma a proteger o ferro
da oxidação do mar. A cor inicial cogitada foi “um verde claro muito brilhante”, depois
substituída, segundo Kelly, pela cor preta, solução mais elegante que teria sido usada pelo
Duque de Wellington nos portões de Apsley House .
Na fabricação do pórtico, contou-se com a participação da Coade & Sealy, empresa
doméstica que fabricava uma pedra artificial, na verdade uma louça de barro vidrada que,
após ir ao forno, assemelhava-se bastante à pedra calcária, tendo, contudo, maior durabilidade do que esta.
O uso da ‘pedra de Coade’ na Inglaterra foi muito difundido entre os anos 1796 e 1813,
tempo de atividade da empresa iniciada pelo Sr. George Coade. Após a morte deste, a
empresa continuou, agora sob a administração de sua viúva, Sra. Eleanor Coade, e de seu
primo, o Sr. Sealy.
As propriedades particulares dessa pedra artificial — seu baixo índice de retração quando em cozimento, sua maleabilidade e durabilidade — fazem-na um material ideal para a
fabricação de ornatos decorativos em arquitetura, tais como vasos e urnas. A ‘pedra de
Coade’ foi utilizada por eminentes arquitetos ingleses do período georgiano, além de Adam,
tais como Sir William Chambers, James e Samuel Wyatt, Sir John Soane e John Nash.
Também outros escultores, como Flaxman e John Bacon, fizeram uso do material: conseqüentemente, essa pedra foi usada nos mais diversos e importantes edifícios por toda a
Inglaterra. A mais impressionante peça em ‘pedra de Coade’ encontrada em Londres é o
leão situado na margem sul da ponte de Westminster.
Segundo Alison Kelly, esse material, “embora composto de vários ingredientes, pode ser descrito como uma espécie de terracotta... A fórmula usada era 10% de material vítreo, 5 a 10% de pó
de pedra, 5 a 10% de areia muito fina para reduzir a retração, 10% de uma mistura de hidróxido
de sódio e 60 a 70% de argila proveniente de Dorset & Devon. Era o cuidadoso controle e
habilidade da pessoa que manipulava o forno o segredo do sucesso”. Os rigores na fabricação
faziam com que a Coade & Sealy produzisse um material de ótimo acabamento e grande
durabilidade, tanto no aspecto físico quanto no desgaste das cores.
Segundo Kelly, o material usado, dada a falta de plasticidade, impossibilitava que um
objeto modelado fosse levado ao forno. Sendo assim, um modelo e um molde tornavam-se
necessários, o que encarecia o produto final; os moldes, porém, podiam ser guardados
cuidadosamente, por muitos anos. Eis por que o Duque de Northumberland, em uma de
suas correspondências a Hardwick, inquiria se a Coade & Sealy ainda mantinha os moldes
do pórtico de Syon Park, ou seja, uma preocupação financeira de quem estava arcando
com todos os custos.
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As análises laboratoriais
Apesar de termos, através da pesquisa histórica, indícios seguros de que se tratava de material proveniente de uma terracota, e não de uma argamassa, havia a necessidade de comprovação. Afinal, o pórtico já tinha sido objeto de muitas alterações, e as pilastras de ‘pedra de
Coade’ do arco central — sobre as quais não havia dúvida quanto a serem originais, pela
assinatura que ostentavam — estavam assentadas em um arco de concreto armado com
cimento portland (revelado por prospecções).
Assim, retirou-se uma série de corpos de prova para testes laboratoriais, pertencentes ao
conjunto escultórico (cauda do dragão) em cima do arco principal (CP1); ao friso da
pirâmide de cobertura de um dos pavilhões (CP2); e à face de um dos símios da pirâmide de
cobertura, no pavilhão oposto (CP3).
Foi utilizado um procedimento simplificado para a análise dessas argamassas. Depois de
pulverizadas cuidadosamente — para se evitar a descaracterização da granulometria —, elas
foram dissolvidas em ácido clorídrico (HCl) 1 + 1 para separação da fração aglomerante
da fração agregado, e sua conseqüente pesagem.
Os testes, curiosamente, nos revelaram dois tipos absolutamente distintos de aglomerados. Enquanto o primeiro corpo de prova mostrou ser um material basicamente sem
aglomerante algum (3.65% em peso) e alta concentração de areia fina (73.63%) e finos
(22.72%), os outros dois corpos de prova indicaram tratar-se de argamassas com alto teor
de aglomerante (cerca de 60% em peso) e de areia com baixa granulometria.
Ora, ensina-nos a experiência que um aglomerado sem aglomerante aéreo ou hidráulico
é uma argamassa fraca, de argila com areia, onde não existe cura química, e esta se dá
apenas por secagem; por outro lado, uma argamassa praticamente sem areia, com grande
quantidade de finos, ainda que com grande percentual de aglomerante hidráulico, também
é uma argamassa relativamente fraca, pouco resistente; e as argamassas do pórtico, passados mais de 180 anos, continuavam íntegras em sua maior parte, resistentes e pouco porosas. As conclusões a que pudemos chegar são:
a. O CP1 que foi retirado do grupo escultórico por sobre o arco de entrada é de verdadeira
‘pedra de Coade’, ou seja uma terracotta, um produto que foi ao forno e que possui, tal
como observado a olho nu, uma fina camada vitrificada na superfície. O baixo grau de
aglomerante encontrado, na verdade, significa quase aglomerante nenhum; a variação em
peso deve-se ao fato de que alguns dos materiais utilizados na fabricação da pedra de
Coade, tal como Kelly descreve em sua pesquisa, tem na sua composição, material carbonático
(CaCO3) —assim como também uma ínfima quantidade de cal extinta —, o qual é atacado
pelo ácido clorídrico tanto quanto a cal e o cimento portland.
b. O CP2 e o CP3 são de falsa ‘pedra de Coade’, ou seja, quando da reconstrução do
pórtico em data posterior, as pirâmides de cobertura dos pavilhões incorporaram elementos que simulavam a ‘pedra de Coade’, mas que não só não eram originais, como também
não reproduziam elementos originais, já que as pirâmides de cobertura nunca existiram nos
pórticos originais e foram uma ‘invenção’ que substituiu os telhados em telhas francesas até
então existentes, e revelados pela pesquisa histórica. Esses elementos são os frisos ornamentais e as faces de símios, que se encontram aplicados por todas as duas pirâmides, com
exceção das urnas no topo, estas sim, também originais, de acordo com as antigas fotografias (e com a assinatura que levam na base). Esses novos elementos foram feitos com uma
argamassa com alto teor de aglomerante (provavelmente cal hidráulica) e um aglomerado
de granulometria fina. Isso explica sua significativa fragilidade.
Os testes laboratoriais não foram executados em todos os elementos do pórtico possíveis
de serem em ‘pedra de Coade’ — o que teria sido bastante desejável no tocante à pesquisa.
Os corpos de prova foram escolhidos em pedaços de argamassa que estavam fragmentados,
pois a retirada de corpos de prova são, em geral, — sob o aspecto da conservação do
monumento — prospecções destrutivas. Evitou-se, assim, retirá-los em locais onde a ‘pedra
de Coade’ estava intacta e coesa.
Dessa forma, não tivemos amostras nem das grandes pilastras do arco central e dos
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ornatos do entablamento do mesmo arco, nem das argamassas da arquitrave, nem das
urnas do cimo dos pavilhões. Contudo, as pilastras e as urnas estão “assinadas” (levam a
marca “Coade & Sealy” gravadas); são, portanto, indiscutivelmente originais. Quanto aos
ornatos do entablamento do arco central, assim como o próprio entablamento e a moldura do arco, e também os ornatos das arquitraves das colunatas (triglifos e bucranios) e os
ornatos de portadas, resta-nos a possibilidade de confronto com a única fotografia com
bom nível de detalhes existente. Esse confronto é positivo e mostra que esses ornatos eram
existentes à época, sendo, portanto, anteriores à reconstrução do pórtico à frente do
Jardim Zoológico.
Um bom indício de que esses ornatos eram originais é justamente o estado de integridade
em que se encontravam e que impossibilitou a retirada de corpos de prova para os testes
laboratoriais. De maneira geral, tudo que era ‘pedra de Coade’ estava em muito bom
estado, ao passo que tudo que era simulação da ‘pedra de Coade’ se encontrava num nível
bem maior de degradação, faltante, ou mesmo solto, já tendo, até, passado por uma
‘restauração’ mal-executada, como a feita na face dos símios (em geral nos focinhos), onde
foram colocadas próteses em cimento portland escuro, sem preocupações em se utilizar uma
argamassa similar em cor e textura. Considerando-se que o que é em falsa ‘pedra de Coade’
tem apenas cerca de 55 anos e o que é em verdadeira ‘pedra de Coade’ tem cerca de 188
anos, pode-se imaginar que a Coade & Sealy não fazia propaganda enganosa quando
divulgava as características excepcionais de resistência da pedra artificial que fabricava.
Com as características desses materiais definidas de forma tão diametralmente oposta,
foi relativamente fácil distinguir o que era ‘pedra de Coade’ do que era ‘falsa pedra de
Coade’.
O confronto dos resultados obtidos nos testes laboratoriais com a pesquisa históricoiconográfica nos possibilitou elaborar uma cronologia do pórtico e suas modificações,
descritas a seguir.
Com base na iconografia e nos dados históricos arrolados, é possível supor a
reconstituição das transformações sofridas, através da história, pelo pórtico do Duque de
Northumberland, e apresentar o resumo a seguir:
Reconstituição das transformações sofridas pelo pórtico
Figura 2: Litografia (c. 1830) mostrando
que o pórtico a época não servia de entrada,
pois não só o portão estava atravancado
por pedras como também não existia uma
alameda que conduzisse ao portão.
• até a reforma Glaziou, iniciada em 1869 no parque da Quinta da Boa Vista, o pórtico
provavelmente manteve-se intacto na frente do pátio do palácio, em uma posição lateral,
não sendo utilizado como pórtico de entrada (Figura 2);
• Glaziou deu ao pórtico uma posição central na remodelação do paisagismo da Quinta,
fazendo com que a alameda de entrada passasse por baixo dele. Contudo, retirou os
elementos metálicos do portão, tanto as lanternas que ornavam o topo da arquitrave
quanto as que ladeavam o brasão central. Retirou, ainda, as grades e o portão de ferro que
cerravam os vãos entre as colunas (Figura 3);
• no início do século XX, provavelmente durante as reformas Nilo Peçanha (1907) na
Quinta, o pórtico foi desmontado e guardado;
Figura 3: Fotografia de autor desconhecido,
mostrando o pórtico após as transformações
de Glaziou no jardim da Quinta da Boa
Vista.
• em 1945, durante a administração do Prefeito Henrique Dodsworth, o pórtico foi
reconstruído no local em que se encontra hoje, à entrada do Jardim Zoológico. Como com
toda a certeza, faltavam peças estruturais — provavelmente peças em cantaria que formavam o Arco Central —, que foram reconstruídas através de uma armação em concreto
armado com o uso de cimento portland do tipo como é conhecido nos dias de hoje (cinza
escuro). Também os telhados de madeira e telha francesa dos pavilhões laterais foram
retirados e, em seu local, foram colocadas coberturas piramidais de argamassa de cimento
portland armado. Nessas pirâmides das coberturas foram acrescentados ornatos, inexistentes
até então (cabeças de símios, rosetas e frisos com folhagens), e no mesmo estilo dos demais
ornatos do pórtico. Esses ornatos foram executados com uma argamassa hidráulica, provavelmente de cimento branco, cal e pigmento, e, por buscarem uma semelhança com os
demais ornatos sem serem contudo de terracota, podemos chamá-los de falsa ‘pedra de
Coade’. O objetivo a que se propuseram esses reconstrutores do pórtico em 1945, foi
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alcançado. Embora menos resistente, essa falsa ‘pedra de Coade’ é muito similar em coloração e granulometria à ‘pedra de Coade’ original e, sem a ajuda dos testes laboratoriais, não
teria sido possível distinguir uma da outra. A administração Dodsworth devolveu elementos em ferro ao pórtico que tinham sido retirados por Glaziou: as grades e o portão. Essas
grades, provavelmente, e em especial, o portão do arco central, não são mais os originais. Os
lampiões outrora existentes não foram recolocados, possivelmente porque, tal como os
portões originais, ou não mais existiam, ou estavam em péssimo estado.
• em data posterior a 1945, o portão sofreu obras de manutenção. Os elementos ornamentais em falsa ‘pedra de Coade’ já se encontravam deteriorados e receberam próteses
mal-executadas em cimento portland, aplicadas em especial nos focinhos dos símios nas
pirâmides de cobertura. Também foram acrescentadas próteses mal-executadas nas duas
portadas das entradas dos pavilhões — nesse caso, pelo fato de ter sido trocado todo o
módulo, não se sabe se a troca foi de peças anteriormente originais ou também de peças em
falsa ‘pedra de Coade’. Talvez, por não deterem habilidade suficiente para aproximar, em
textura, e granulometria, as argamassas das próteses, das terracotas originais, esses ‘restauradores’ pós-1945 resolveram pintar todos os elementos ornamentais, tanto os em ‘pedra
de Coade’ como os em falsa ‘pedra de Coade’, com cal, de forma a igualar a coloração
deles. Também o Arco Central recebeu novas camadas de tinta na sua parte estrutural, que
é recente. Foi nesse estado que o pórtico Northumberland chegou aos nossos dias.
Procedimentos da restauração
Estes procedimentos foram iniciados com a retirada da pintura em caiação, através de
decapagem cuidadosa. Em seguida, decidiu-se levar em conta a qualidade das argamassas
elaboradas em 1945, que, de acordo com o nosso ponto de vista, cumpriram muito bem a
sua função, pois alcançaram compatibilidade visual com as terracotas originais, ao mesmo
tempo em que, apresentando menor resistência mecânica do que estas, não corriam o risco
de ameaçar a integridade do material original. Nossa diretiva era a de trabalhar com um
material no qual as propriedades mecânicas sendo relativamente reduzidas, o risco de
concentração das solicitações sobre o material antigo resultava reduzido também.
O critério para a remoção das próteses foi a sua não-originalidade, associada a sua
incompatibilidade visual e ao seu estado de desintegração física. Tomou-se o cuidado de
não se removerem jamais peças originais, ainda que deterioradas, assim como também não
se removeram próteses que, ainda que díspares, visualmente encontravam-se muito bem
integradas, e a sua remoção causaria estragos nas terracotas originais próximas — como era
o caso de algumas consolidações antigas de fissuras. Não foi removido também nenhum
módulo que se supôs não ser original (como é o caso de uma métopa pertencente ao friso
do entablamento traseiro), mas que possuía uma fatura de boa qualidade assim como se
mostrava íntegro.
O procedimento para a remoção foi o mais cuidadoso possível, para não fraturar partes
íntegras e originais. Para os módulos e as peças grandes, utilizou-se de maquita com disco
rotativo. Em pequenas próteses que já estavam deterioradas — tal como no focinho dos
símios —, utilizou-se de pequeno ponteiro.
Os testes laboratoriais foram úteis não como um traço a ser seguido à risca, mas como
um indicador de uma argamassa que já havia sido utilizada com razoável sucesso em pequenos reparos e em novos ornatos. O ideal para composição dessas argamassas seria a utilização de um aglomerante à base de cal hidráulica (pozzolânica ou com argila reativa). Na
impossibilidade da obtenção de um aglomerante com essas características (não existe cal
hidráulica no Brasil), foi utilizado, de acordo com uma sugestão usual no campo da tecnologia
das argamassas, uma reconstituição de cal hidráulica na base de uma mistura de cimento
branco estrutural, com cal hidratada comum, na proporção de 1 : 2 (cimento : cal) em
volume.
Trabalhou-se com uma granulometria fina, similar à da ‘falsa pedra de Coade’, no traço
de 1 : 2, de cal hidráulica (reconstituída) e argila refratária (utilizada na fabricação de
cerâmica), o que elevava de certa forma o teor aglomerante da argamassa já que essa argila
também é reativa. A essa mescla foram acrescentados cerca de 10% em volume de Primal
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AC33, no sentido de aumentar a plasticidade final do material, evitando trincas quando de
próteses no material cerâmico original, sensivelmente mais rígido — pois, de acordo com
autores como Kanan, é desejável que a nova argamassa a ser enxertada seja mais fraca que
a original. Foi utilizado pigmento Terra de Siena para aproximar a coloração da argamassa
com a original, nos casos em que a argila não foi suficiente para isso.
Utilizou-se, como protetivo final das argamassas, o hidrofugante fabricado pela Fosroc
chamado Nitoprimer 40, à base de silano/siloxano. Foi feito um teste em área pequena e
observou-se que os resultados de hidrorrepelência se fizeram sentir desde que o produto
secava, e eram notáveis, assim como também, depois do produto seco, não se observou
formação de película nem alteração significativa da coloração da argamassa. Os testes
foram aprovados pela fiscalização do IPHAN. O produto foi aplicado em uma demão,
após lavagem e secagem para retirada de poeira e demais resíduos. A aplicação se fez com
trincha embebida generosamente.
Os elementos pétreos que compunham o pórtico — pavilhões laterais e colunas — estavam em razoável estado de conservação e sofreram, da nossa parte, apenas procedimentos
de limpeza e de proteção final, usuais no tratamento de pedras metamórficas de origem
magmática (gnaiss). Por falta de espaço, torna inviável a explanação desses procedimentos
neste artigo.
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TILLER, Teel Patterson. “The preservation of historic glazed architectural terra-cotta”. ICCROM.
OBS: Agradecimentos à arquiteta Marisa Assumpção do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, que nos forneceu parte da pesquisa iconográfica.
Notas
1 KELLY. 1984
2 BRENNA. 1987, p. 31.
3 KELLY. 1984, p.25.
4 KELLY (s/d)
5 TEUTONICO. 1988, p.113.
6 KANAN. 1988.

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