Direito, cultura e ritual

Transcrição

Direito, cultura e ritual
Direito, cultura e ritual
Sistemas de resolução de conflitos
no contexto da cultura comparada
Oscar G. Chase
processo e direito
oscar G. chase
direito, cultura e ritual
Sistemas de resolução de conflitos
no contexto da cultura comparada
Tradução
Sergio Arenhart
Gustavo Osna
Marcial Pons
MADRI | BARCELONA | BUENOS AIRES | São Paulo
Coleção
Processo e Direito
Direito, cultura e ritual. Sistemas de resolução de conflitos no contexto da cultura comparada
Oscar G. Chase
Título original: Law, culture and ritual: disputing systems in cross-cultural context
Tradução
Sergio Arenhart e Gustavo Osna
Capa
Nacho Pons
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Ida Gouveia / Oficina das Letras®
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C436d
Chase, Oscar G.
Direito, cultura e ritual : sistemas de resolução de conflitos no contexto da cultura
comparada / Oscar G. Chase ; Tradução Sergio Arenhart, Gustavo Osna. - 1. ed. - São
Paulo: Marcial Pons, 2014.
Tradução de: Law, culture and ritual: disputing systems in cross-cultural context
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-66722-15-4
1. Direito processual 2. Direito processual civil. 3. Direito e antropologia. I.
Título. II. Série
14-08211
© Oscar G. Chase
© Sergio Arenhart / Gustavo Osna
© MARCIAL PONS EDITORA DO BRASIL LTDA.
Av. Brigadeiro Faria Lima, 1461, conj. 64/5, Torre Sul
Jardim Paulistano CEP 01452-002 São Paulo-SP
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www.marcialpons.com.br
Impresso no Brasil [02-2014]
CDU: 347.91/.95(81)
Para
Oliver Gottfried Chase
e Arlo Monell Chase.
Advogados para um mundo melhor.
Apresentação
Os conflitos são, logicamente, inevitáveis. Não há cultura que em algum
momento atinja a harmonia utópica que seria necessária para superar este
dado. Toda cultura em qualquer localidade, para sobreviver, depende de
meios aceitáveis de resolução de conflitos capazes de impedir que os derrotados se vinguem ou sejam excluídos. E para alcançar tal aceitação a «justiça
deve satisfazer a aparência de justiça», citando uma das famosas expressões
de Felix Frankfurter.
Para solucionar conflitos sob estes moldes é necessário não apenas um
espírito de justiça, mas também um acordo sobre os procedimentos utilizados
para julgar as alegações dos litigantes – o que costumamos chamar nas sociedades ocidentais de «sistema jurídico». Porém, os meios pelos quais o conflito
é findado assumem formas distintas em diversas sociedades, e o seu estudo
comparativo nos alerta para o fato de a «aparência de justiça» não ser a mesma
em todas as localidades.
Estamos hoje habituados a afirmar que os mecanismos de resolução de
conflitos refletem a cultura em cujo âmbito se desenvolvem. Mas o Professor
Chase afirma que também estas formas resolutivas exercem um importante
papel no delineamento da cultura em que operam. Entretanto, como os mecanismos de pacificação poderiam tanto refletir a cultura quanto participar de
sua estruturação?
Em seu trabalho voltado a decifrar este dilema o Professor Chase segue
duas trilhas, uma conjectural e a outra empírica, a imagem ampla e os detalhes sutis. Seu exame clarifica rapidamente que para compreender qualquer
peculiaridade processual é preciso entender tanto o sistema de resolução de
conflitos em que ela se apresenta quanto, simultaneamente, a forma como este
sistema alicerça e amplifica a cultura em que se insere. Por que os Azande
africanos utilizam a promessa benge para solucionar conflitos – um sistema
8
oscar g. chase
em que uma pequena dose de veneno é dada a um filhote de galinha, e a
sua sobrevivência ou a sua morte determinam qual parte da disputa deve ser
exitosa? Não seria possível entender esta situação aparentemente bizarra sem
que se compreendesse o papel exercido nesta sociedade, em seu todo, pelos
rituais de feitiço ou bruxaria. Este ritualismo é central à vivência Azande, e
suas diferentes formas se influenciam de maneira recíproca e interpenetrada.
Alguém poderia encontrar uma explicação mais ou menos convincente a
respeito de como as diferenças processuais existentes no campo jurisdicional
são ajustáveis à cultura em que predominam – graças a investigações acadêmicas de habilidosos antropólogos, por mais variadas que suas próprias justificativas possam ser. Porém, é mais árduo discernir como formas específicas
de resolução de conflitos, após instauradas, tanto se ajustam à cultura quanto,
no fluxo oposto, acentuam ou modificam um estilo de vida.
Oscar Chase explora este percurso de duas mãos não apenas entre os
Azande, mas também na cultura norte-americana. O que nos prende à análise
é a combinação entre a riqueza conferida aos detalhes procedimentais e as
observações amplas dos mecanismos culturais. Sua investigação dos Azande
possui alicerce em valiosas fontes encontradas no célebre trabalho de E.E.
Evans-Pritchard, sendo E.P (como é conhecido entre seus estudantes) o mais
talentoso antropólogo de nossos tempos. Mas é na observação de nosso próprio
sistema jurídico que o Professor Chase traz à obra sua grandiosa expertise.
Seu debate a respeito da ascensão de importância dos meios alternativos de
resolução de conflitos, por exemplo, investiga uma vasta gama de possibilidades – fatores políticos, práticos e (com grande originalidade) elementos
culturais como o avanço da privatização na sociedade norte-americana e a
perda de sua segurança em geral quanto aos seus valores culturais.
O que enalteço especialmente em relação a este livro não é apenas a
ampla perspectiva cultural que apresenta, mas também sua destacada sensibilidade diante da natureza e dos limites do processo judicial onde quer que
seja praticado. Qualquer que seja o âmbito de incidência do Direito ou o seu
grau de formalismo, ele não pode ser compreendido sem referência aos seus
processos. É através da sua pertinência e dos seus detalhes que o Direito
obterá sucesso ou fracasso. Nosso autor introduz neste debate a questão dos
profissionais jurídicos altamente treinados, assim como leituras revigorantes
de nossas próprias formas culturais. Ele nos auxilia a notar não apenas a racionalidade que dá tônica a sistemas como os benge Azande, mas também ao
nosso próprio sistema jurídico – suscitando presunções como nossa instigante
afinidade com o sistema adversarial e, após, com os meios alternativos de
resolução de conflitos! Sua ajuda é acentuada para tornar os conflitos culturais
mais compreensíveis!
apresentação
9
Uma última palavra a respeito da experiência que tive ao observar
o desenvolvimento deste livro. Eu tive a grande sorte de lecionar na New
York University Law School o seminário «Culture and Law» conjuntamente
com o Professor Chase. Nossos estudantes leram alguns trechos da presente
obra enquanto seu desenvolvimento se resumia a rascunhos. Suas reações
foram reveladoras, refletindo a própria lógica proverbial de que «o peixe será
o último a descobrir a água». Ler e discutir a obra ainda em curso pareceu
alertá-los a respeito da água em que estão inseridos: a forma de resolução
de conflitos não se limita ao papel de pacificação, também modificando as
opções e expectativas daqueles que vivem sob sua égide – não apenas entre os
Azande na África, mas também aqui, nos Estados Unidos contemporâneo. O
«outro lugar» os ajudou a reconhecer mais adequadamente a própria situação
do nosso aqui e do nosso agora.
O estudo do Direito passou por uma série de modificações nas últimas
décadas. Tornou-se menos hermético, e mais aberto a outras formas de
compreensão dos espaços sociais em que vivemos. Posso pensar em poucas
obras de nossa doutrina jurídica que reflitam estas mudanças de maneira tão
criteriosa quanto a presente.
Jerome S. Bruner
Prefácio
Após anos estudando, lecionando e escrevendo sobre o processo civil
estadunidense, minha curiosidade me levou a investigar em lugares gradativamente mais exóticos a questão «como os outros fazem isto?» – com o
«isto» equivalendo a «pacificam conflitos». Isto me levou inicialmente ao
estudo do direito comparado, em que os «outros» são vários estados modernos
com sistemas jurídicos de cariz ocidental, e então à antropologia, em que a
questão dos «outros» pode fazer menção a povos que se organizam de maneira
bastante diversa dos contemporâneos. Pouco surpreende que quanto mais me
afastava das minhas fronteiras originais, melhor compreendia o local que
havia deixado. Não se tratava tanto de perceber mais adequadamente os detalhes desta ou daquela regra ou prática. Mais que isto, através da exposição
à variedade dos meios processuais eu pude perceber com maior clareza a
profunda conexão existente entre a ordem social e os sistemas resolutivos.
Como acentuado por Clifford Geertz, «necessitamos, ao final, algo mais que o
conhecimento local. Precisamos de alguma alternativa para transformar suas
diversidades em comentários recíprocos, com um iluminando o que o outro
escurece».1
Esta obra é, em parte, uma tentativa de desenvolver este fluxo – iluminar
a nossa compreensão e as nossas práticas em um lado do mundo examinando
«como os outros fazem», e por qual motivo. É mais fácil constatar a profunda e
recíproca conexão entre as instituições de resolução de conflitos de uma população e a sua cultura quando percebemos não apenas suas diferenças diante
de nós, mas também o próprio grau de comprometimento que possuem com
suas práticas que nos pareçam estranhas. É este o objetivo da minha tentativa,
realizada no capítulo 2, de compreender como o modelo de ordália faz perfeito
1
Geertz, Clifford. Fact and law in comparative perspective. Local Knowledge. 3. ed., New
York: Basic Books, 1983, p. 167.
12
oscar g. chase
sentido para os Azande da África central. Após o estudo nos libertar da nossa
visão em parte preconceituosa de que há apenas uma forma correta de encontrar a verdade e a justiça, a qual seria exatamente a nossa, podemos desvelar
mais adequadamente a cultura subjacente à nossa própria forma de resolução
de conflitos. Do capítulo 3 ao capítulo 6 identificamos o resultado desta espécie
de escavação arqueológica no processo contemporâneo. Posiciono-me firmemente contra aquela escola de pensamento que ainda acredita que as técnicas
processuais resultam exclusivamente dos técnicos. Também argumentarei em
favor da reflexividade, através da qual acredito que as formas de pacificação
utilizadas, ritualizadas e comumente enaltecidas em cada sociedade exercem
um importante papel na transmissão de suas metafísicas, de sua moral e de
seu sentido de propriedade, tanto sobre as relações hierárquicas quanto sobre
outras de caráter pessoal.
Considerando que este livro se desenvolveu a partir das minhas aulas na
NYU School of Law, obtive importante contribuição dos colegas com quem
dividi a docência. Suas percepções e observações me auxiliaram a elaborar o
presente trabalho, e os agradeço fortemente. Jerome Bruner, Paul Chevigny,
David Garland e Fred Myers lecionaram ao meu lado alguns dos seminários
de Cultura e Processo e auxiliaram na minha condução pelas maravilhas e
pelos mistérios da abordagem interdisciplinar. Andreas Lowenfeld, Linda
Silberman e Vincenzo Varano, com quem eu lecionei a cadeira de Processo
Civil Comparado, ofereceram-me novas e valiosas perspectivas dos sistemas
jurídicos ao redor do mundo. Nossos estudantes nos trouxeram orientações
diversas e representaram uma série de nações e de culturas. Aprendi muito
com suas questões e com seus comentários.
Neil Andrews do Clare College, Cambridge, Paul Carrington da Duke
Law School, Arthur Rosenthal, e meus colegas da NYU Jerome Bruner, David
Garland e James B. Jacobs foram leitores críticos e sensíveis dos rascunhos e,
com importância ainda maior, fontes valiosas de apoio e de estímulo. Também
devo agradecimentos aos meus excelentes pesquisadores assistentes Michael
Bolotin, Seth Gassman, Laura Kilian, Sagit Mor, Francisco Ramos Romeu,
Benyamin Ross e Bryant Smith.
Agradeço fortemente ao Filomen D’Agostino and Max E. Greenberg
Research Fund of New York University Law School por seu apoio financeiro; à Rockefeller Foundation pelo apoio que permitiu um mês contínuo
de trabalho em seu Bellagio Center; e ao Institut of Comparative Law da
Universidade de Florença pela hospitalidade que serviu de incentivo inicial e
determinante para o meu interesse no Direito Comparado. Uma versão prévia
do capítulo 5 foi publicada em Discretionary Power of the Judge: Limites and
Control, coordenado por M. Storme e B. Hess. Sou grato aos coordenadores
e à Kluwer, a editora, pela permissão para reproduzir algumas de suas partes.
prefácio
13
Sou igualmente grato ao Cardozo Journal of International and Comparative
Law por me permitir reproduzir partes do meu artigo «Legal Processes and
National Culture»; ao American Journal of Comparative Law pela permissão
para utilização de parcelas dos meus artigos «American “Exceptionalism” and
Comparative Procedure» e «Some Observations on the Cultural Dimension in
Civil Procedure Reform»; e ao Tulane Journal of International and Comparative Law pela permissão para o uso de parcelas do meu artigo «Culture and
Disputing».
Acima de tudo, agradeço à minha família. Arlo M. Chase e sua noiva,
Susanna L. Kohn, leram um rascunho completo e fizeram comentários e
sugestões aprofundados. Oliver G. Chase e Rashmi Luthra me fizeram desafiar muitos de meus preconceitos a partir de sua experiência multicultural
ampla e de seus estudos interdisciplinares. Jane Monell Chase tem sido fonte
de um estímulo intelectual maravilhoso e da grande coragem que é necessária.
Obrigado pelo amor sem limites, pela paciência e pelo apoio.
Sumário
Apresentação............................................................................................... 7
Prefácio....................................................................................................... 11
Capítulo 1
1.Introdução............................................................................................... 19
1.1 A questão da «cultura»................................................................... 25
1.2O poder explicativo da cultura....................................................... 27
1.3 Os limites do «litígio».................................................................... 29
1.4 Normas de conduta ou normas de processo?................................. 31
1.5Olhando adiante............................................................................. 34
Capítulo 2
1. A lição dos Azande................................................................................ 37
1.1 O sistema de convicção dos Azande: bruxaria, oráculos e mágica
39
1.2 As profecias nos litígios zande...................................................... 44
1.3 As formas de resolução de litígios zande e a sua influência nas
relações sociais............................................................................... 46
1.4Classe............................................................................................. 46
1.5 Gênero............................................................................................ 48
1.6 As formas de solução de litígio zande e a metafísica.................... 50
16
oscar g. chase
1.7 Síntese: a influência da forma de solução de litígios no estilo
zande.............................................................................................. 51
Capítulo 3
1. Meios «modernos» de resolução de litígios ........................................... 55
1.1 «Oráculos» nos mecanismos modernos de solução de litígios...... 60
1.2 O oráculo do direito....................................................................... 61
1.3A prova como profecia................................................................... 65
1.4 O direito e a prova como «construtivos»....................................... 69
Capítulo 4
1. O «excepcionalismo» americano nos litígios civis................................. 75
1.1A cultura norte-americana.............................................................. 79
1.2O julgamento norte-americano no contexto comparado................ 83
1.3Algumas características do excepcionalismo processual norteamericano....................................................................................... 85
2. O júri civil............................................................................................... 86
3. O controle da instrução pelas partes: o Pretrial Discovery.................... 91
4. O papel do Juiz........................................................................................ 95
5. O papel dos peritos.................................................................................. 99
6. O excepcionalismo norte-americano e as «Faces da Justiça»................. 101
7. A «característica da autoridade» em Damaška: hierárquico vs. coordenado.................................................................................................... 102
8. As «disposições do Governo» em Damaška: reativo vs. ativista............ 103
9. A síntese de Damaška............................................................................. 104
10. Provas empíricas ligando os valores processuais e a cultura................ 105
Capítulo 5
1. O poder discricionário do julgador sob o contexto cultural.................... 109
1.1 A discricionariedade e a sua relação problemática com o Estado de
Direito............................................................................................ 111
1.2O elemento cultural........................................................................ 120
1.3 A discricionariedade a serviço da eficiência.................................. 121
sumário
17
1.4 A discricionariedade como uma resposta à «Era da Ansiedade» no
Direito ........................................................................................... 126
1.5 Discricionariedade e «excepcionalismo norte-americano»........... 133
Capítulo 6
1. A ascensão dos meios alternativos de resolução de litígios sob o con texto cultural........................................................................................... 135
1.1 O avanço da ADR no final do século XX ..................................... 137
(1) O papel do Judiciário na ascensão dos meios alternativos........ 139
(2)O papel do Legislativo no desenvolvimento dos meios alternativos....................................................................................... 141
1.2Os meios alternativos sob a perspectiva histórica.......................... 143
1.3 A tendência não se deve a um crescimento da litigância............... 145
1.4 A «crítica à hiperlegislação».......................................................... 149
1.5O movimento da contracultura e os meios alternativos................. 153
1.6 Privatização.................................................................................... 155
1.7A perda de segurança..................................................................... 156
Capítulo 7
1. A função do ritual................................................................................... 159
1.1 Sobre o ritual e a cerimônia........................................................... 160
1.2O ritual no julgamento norte-americano........................................ 164
1.3O poder ritual do processo............................................................. 168
Capítulo 8
1. Como a resolução de litígios influencia a cultura................................... 171
1.1 O poder das práticas processuais................................................... 176
Capítulo 9
Conclusão.................................................................................................... 187
Epílogo – A sala de aula e o terror do relativismo...................................... 190
Bibliografia................................................................................................. 195
Capítulo 1
1. Introdução
Nenhuma sociedade está livre de conflitos. Mas como esses litígios serão
resolvidos? Aqui encontramos miríades de manifestações da imaginação e do
engenho humanos. «As respostas institucionalizadas ao conflito interpessoal,
por exemplo, vão desde duelos musicais e feitiçaria, a debates e mediação, a
terapias de autoconhecimento e a Cortes profissionais hierarquizadas.»1 Nós
encontramos todos esses «meios de resolução de litígios» e mais.2 Independentemente do objeto do litígio, ou das espécies de pretensões que serão acolhidas
pela sua sociedade, um povo precisa decidir como processar esses pleitos e
queixas. As partes poderão (ou deverão) autorizar um terceiro à resolução
de suas desavenças (a chamada resolução triádica)? Ou o litígio será deixado
para os litigantes («diádica»), cabendo-lhes combatê-lo, negociá-lo, ou deixá-lo apodrecer? Se triádica, o terceiro será um intermediário, um mediador ou
um árbitro? Neste último caso, a decisão do árbitro será final, ou estará sujeita
a revisão? E o julgador terá algum status oficial (incluindo o poder estatal de
efetivar decisões) ou se assemelhará a um árbitro privado – um sujeito neutro
cujo poder deriva do consentimento das partes? Onde as normas relevantes
serão encontradas? Como o julgador resolverá as questões de fato e decidirá
o que «realmente» ocorreu? Uma tarefa reiterada nas sociedades ao redor do
1
William L. F. Felstiner et alii. «Influences of social organization on dispute processing». 9
Law and Society Review 63, 1974.
2
Uma ampla pesquisa e descrição das muitas variedades de métodos e instituições de solução
de litígios encontradas nas sociedades pré-industriais é oferecida por Simon Roberts, Order
and dispute, New York: St. Martin’s Press, 1979. Ver especialmente 53-79. Este livro também
contém uma bibliografia útil e uma revisão temática do desenvolvimento dos estudos sobre
ordem e litígios em sociedades em pequena-escala. V. idem, p. 184-206.
20
oscar g. chase
mundo é separar o verdadeiro do falso. Como? Qualquer modo de solução
de litígios aprovado pelas sociedades é o resultado de escolhas conscientes e
inconscientes feitas nos limites do conhecimento, das crenças e da estrutura
social disponíveis.
Entre os Centro-Africanos Azande, o oráculo benge seria consultado.
Uma pequena dose de veneno seria dada a um pintinho enquanto a questão é
submetida ao oráculo: «Se o requerente diz a verdade, que o pintinho morra,
que o pintinho morra, que o pintinho morra…». O pintinho morre (ou vive).
O oráculo dá a resposta.3 Em outro tempo e lugar (Estados Unidos) um juiz
ordena que um júri seja consultado. Um grupo de desinteressados é convocado para uma sala especial, usada só para debates. Eles ouvem o requerente,
o requerido e as testemunhas do conflito. Os desinteressados se retiram para
uma sala privada e deliberam. Eles retornam com um veredito.4 Ainda em
outro tempo e lugar (maioria da Europa Continental e América Latina), os
fatos são determinados por um juiz especialmente treinado cuja decisão
é baseada primeiramente em documentos, podendo sequer deixar as partes
em litígio depor.5 Cada um desses métodos é considerado no lugar em que é
(ou foi) usado como o melhor modo de se atingir a verdade sobre o passado
desconhecido.6 Cada um desses povos descritos possui a mesma capacidade
inata de raciocinar e observar o mundo ao seu redor. Por que eles chegaram a
conclusões tão diferentes? Como os seus métodos favoritos de resolução de
litígios refletem o seu mundo? As suas formas de «resolução de litígios», de
outro lado, afetam as suas crenças sobre o mundo em que habitam?
O fato de que sociedades tão diferentes encontraram soluções diversas
para o objetivo humano comum de resolver litígios enquanto mantêm uma
vida coletiva agregadora depõe em favor do estudo das formas de resolução
de litígios no contexto cultural e social.7 Neste livro eu exploro a conexão
Veja capítulo 2, infra.
Veja capítulo 4, infra.
5
Sobre o papel do depoimento pessoal em julgamentos de países de civil law, v. Mirjan R.
Damaška, Evidence Law Adrift. New Haven, Conn.: Yale University Press, 1997, p. 114, n. 79.
6
Isso não significa que não haja críticas ou que aperfeiçoamentos não sejam buscados. Em
sociedades modernas, v. Adrian A. S. Zucherman, «Justice in crisis: comparative dimensions of
civil procedure», in Adrian A. S. Zuckerman, Civil justice in crisis: comparative perspectives
of civil procedure. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 3-52: «Uma noção de crise na
administração da justiça não é, de forma alguma, universal, mas é difundida. A maioria dos
países representados neste livro experimentam dificuldades no funcionamento de seu sistema
de justiça civil». Idem, p. 12.
7
Trabalhos úteis sobre aspectos particulares da relação entre a sociedade e os sistemas de
solução de litígios incluem Richard L. Abel, «A comparative theory of dispute institutions in
society», Law and Society Review 217 (Winter 1974); Paulo Schiff Berman, «An Observation
and a Strange but True «Tale»: What Might the Historical Trials of Animals Tell Us about
the Transformative Potential of Law in American Culture?» 52 Hastings Law Journal 123-79
3
4
capítulo 1
21
profunda e reflexiva entre cultura e processos resolutivos de conflitos, uma
conexão que é encontrada mesmo em estados modernos, caracterizados por
regras processuais técnicas e elaboradas. O reconhecimento e a compreensão
desta relação enriquecerá nossa capacidade de examinar recomendações para
mudanças – particularmente quando elas envolvem empréstimos de outras
sociedades. Após esboçar meus argumentos principais um pouco mais detalhadamente, eu discutirei alguns temas inevitáveis de definição e teoria. Essa
introdução se encerrará com um guia dos capítulos subsequentes.
Os processos de resolução de litígios são, em grande medida, um reflexo
da cultura em que estão inseridos; não se trata de um sistema autônomo que
seja, predominantemente, o produto de especialistas e experts isolados. Mais,
eles são instituições através das quais a vida social e cultural é mantida,
provocada e alterada, ou como a mesma ideia foi expressa, «constituída»
ou «construída». Essas práticas institucionais influenciam importantemente
uma sociedade e sua cultura – seus valores, pensamentos, hierarquias sociais
e símbolos – tanto quanto essas práticas também refletem a sociedade à sua
volta. Adotando a expressão «influenciar importantemente», eu sigo Melford
Spiro, que usa o mesmo termo, opondo-o à afirmação de que alguma ideia ou
prática seja «determinada» pela herança cultural.8 A cultura é tão complexa
que seria extravagante concluir que algum conjunto de práticas institucionais
pode «determiná-la». Eu, então, trato da velha questão de como as convenções e as regras sociais que fazem a vida social possível se desenvolvem e se
sustentam. Meu rol de processos de resolução de litígios a serviço da resposta
a essa questão se amolda confortavelmente, se não perfeitamente, à moderna
«empreitada de realmente traçar a conturbada relação entre o direito e a cultura
[que] começou a sério».9 Como eu explico adiante neste capítulo, entretanto,
(2000); Mirjan R. Damaška, The faces of justice and state authority (1986); Mirjan R. Damaška,
«Rational and Irrational Proof Revisited», 5 Cardozo Journal of International and Comparative
Law 25 (1997); William L. F. Felstiner, supra nota 1; Rebecca Redwood French, The Golden
Yoke (1995); Clifford Geertz, «Fact and law in comparative perspective», Local Knowledge
(1983); K. N. Llewellyn e E. A. Hoebel, The cheyenne way: conflict and case law in primitive
jurisprudence (1941); Laura Nader e Harry F. Todd, Jr., eds., The disputing process: law in
ten societies (1978); Katherine S. Newman, Law and economic organization (1983); Simon
Roberts, Order and dispute, supra nota 2 (1979).
Conquanto grato a todos esses estudiosos, eu me baseei em seus trabalhos para extrair minhas
próprias conclusões para a relação mutuamente construtiva entre cultura e meios de solução de
litígios.
8
Melford E. Spiro, Culture and human nature. New Brunswick, N. J.: Transaction Publishers,
1994, p. ix. Spiro faz esta distinção no contexto de sua discussão sobre as formas pelas quais
a «herança cultural» influencia as «psiques e as ações» das pessoas naquela sociedade. Neste
livro, estou buscando uma variação daquele tema no sentido de que pretendo olhar para o efeito
de um conjunto particular de práticas e sua influência sobre a sociedade.
9
Robert Post (ed.), Law and the order of culture. Berkeley: University of California Press,
1991, v. «Introduction, The relatively autonomous discourse of law», p. vii.
22
oscar g. chase
minhas preocupações são tanto mais amplas como mais estreitas que a «lei»:
mais amplas, porque há muitas sociedades cujos processos de resolução de
litígios não envolvem a lei como a entendemos; mais estreitas, precisamente
porque minha obsessão pelo processo permite-me negligenciar as normas
substantivas que afetam o conflito. Eu aplico a «perspectiva constitutiva», tão
valiosa para compreender como a «lei» é incorporada na vida social, para a
gama mais ampla de práticas de resolução de litígios.10
A famosa metáfora de Clifford Geertz ajuda-nos a compreender a perspectiva constitutiva. «O homem», ele observa, cria o controle «sujeitando-se
a um conjunto de formas significativas, “redes de significados que ele mesmo
teceu”…».11 Porque nós habitamos um universo desprovido de significado e
carente de estruturas sociais intrínsecas, nós precisamos criar ambos. Eles são
um produto de processos mentais que incluem observação, cálculo e imaginação. A teia é tecida com nossas combinações, nossos sistemas simbólicos,
nossa epistemologia, nossa psicologia e nossas práticas. Ademais, cada um
deles informa os outros. A rede que nos une é composta em parte destas instituições que fazem a vida social possível e em parte pelo sistema de ideias e
crenças internamente coerente que torna o universo tolerável. Cada um de nós
deve engajar-se nessa tarefa. Mas, porque nós somos animais sociais, nós nem
somos livres para, nem devemos, tecer cada teia novamente. Somos socializados em uma rede que ao menos em parte foi tecida para nós e nos é transmitida por instrução paterna, por educação, pelo funcionamento de instituições e
por papéis e rituais. Os procedimentos que utilizamos para resolver conflitos,
ao mesmo tempo, são fios da rede e estão entre as formas que utilizamos para
transmitir seus contornos para outros membros da nossa sociedade.
Uma compreensão do significado de determinado processo de resolução
de litígios por seus participantes é essencial. Para atingir essa compreensão
é necessária uma aproximação interpretativa. Precisamos usar as ferramentas relacionadas de descrição densa e de «contextualização cultural do
incidente».12 Ou seja, precisamos observar rigorosamente as práticas relevantes e colocá-las dentro da cultura em que operam. A tarefa de contextualização é dependente de comparação e contraste; olhamos o que é particular
a uma sociedade ao confrontá-lo com aquilo de que difere. Ao desenvolver
meus argumentos, portanto, eu empregarei tanto o estudo comparativo de
10
Sobre a perspectiva constitutiva, especialmente em contraste com uma visão do Direito mais
tradicional e instrumental, v. Austin Sarat e Thomas R. Kearns (eds.), Law in everyday life.
Ann Arbor: University of Michigan Press, 1993; Sarat e Kearns, Beyond the great divide:
forms of legal scholarship and everyday life, p. 21-61.
11
Geertz, Fact and law in comparative perspective, supra nota 7, 167, 182.
12
Geertz, supra nota 7, p. 181.
capítulo 1
23
regimes legais modernos quanto as descrições antropológicas de sociedades
em pequena escala.
Uma abordagem interpretativa das práticas de resolução de conflitos é
sugerida e ajudada pelos rituais empregados a serviço da legitimidade, cerimoniais que expressam em metáforas amáveis (ou terríveis) os anseios e paixões
que são centrais para as culturas que os produzem. Por vezes, relevam necessidades silenciosamente compartilhadas por todos os indivíduos, externalizadas
de maneira diversa em outras culturas. Talvez, é por ser tão importante e
ainda tão difícil que a criação de instituições de resolução de litígios evoca
frequentemente as artes visuais. Um exemplo maravilhoso é a máscara usada
por adivinhos Benin quando anunciam um veredicto. Uma fotografia aparece
na capa deste livro. Os olhos fechados sugerem desapego, do mesmo modo
que a venda tradicionalmente usada pela figura da Justiça,13 enquanto o rosto
belamente composto também sugere um sentido de confiança tranquila que o
julgador pretende transmitir (ou que a sociedade pretende experimentar).
Mas a explicação interpretativa não é suficiente. A solução de conflitos
dificilmente diz respeito apenas a fazer sentido. Pelo fato de litígios serem
encontrados em todas as sociedades, encontrar um meio efetivo de lidar com
eles é uma tarefa essencial da vida social. Precisamos explorar a maneira como
as representações funcionais e culturais se interpenetram. A prática de resolução de conflitos será melhor entendida quando virmos como ela funciona
simbólica e funcionalmente. Podemos entender o júri norte-americano, por
exemplo, interpretativamente, como uma representação por ações do ideal
social do julgamento populista, igualitário. E podemos compreendê-lo funcionalmente como uma forma geralmente aceita de escolha entre versões de fato
contrastantes. Cada entendimento isolado seria inadequado.
O poder, também, é sempre um problema quando os processos de resolução de conflitos são desenvolvidos, empregados, provocados e reformados.
Modos de resolução de litígios nunca são neutros em relação a grupos sociais
concorrentes, mesmo que eles de fato sejam neutros com relação aos indivíduos em disputa. Quem decide litígios, e os mecanismos que eles usam para
decidir, privilegiará ou prejudicará diferentes setores da sociedade. Veremos
quando voltarmos aos Azande da África Central como o controle ritual do
oráculo sustenta as suas distinções sociais críticas. E essa mesma dinâmica
não é também ilustrada pelas lutas em curso no sistema legal norte-americano
sobre o âmbito do poder do júri? Como sustenta Laura Nader, as elites se
Por uma história da iconografia da Justiça no ocidente, ver Dennis E. Curtis e Judith
Resnik, «Images of Justice», 96 Yale Law Review 1727-72, 1987; e Judith Resnik, «Managerial
Judges», 96 Harvard Law Review 374-448, Appendix, 1982.
13
24
oscar g. chase
esforçarão para restringir o acesso aos Tribunais quando eles se tornarem uma
arena para a efetiva mudança social.14
Já que a cultura não é, no entanto, meu interesse principal, leitores familiarizados com os estudos sócio-legais poderão situar meu argumento de que
processos de resolução de conflitos «refletem» a cultura no contínuo debate
sobre se o direito «espelha» a sociedade. A noção de que o direito rudemente,
mas invariavelmente, reflete a cultura em que se localiza, enquanto virtualmente
axiomática para alguns observadores, não recebe unanimidade.15 Uma crítica
ampla e substancial à tese do espelho foi recentemente oferecida por Brian Z.
Tamanaha,16 que aponta para a globalização do comércio e a transplantação
das práticas legais e dos conceitos como razões para duvidar da capacidade
de persuasão da tese. Somente em parte é correto situar meu livro no meio
deste debate. Como afirmei, o «direito» é relevante aqui apenas porque é um
produto e uma fonte da regulação do conflito. Minha discussão não se limita
ao direito; é sobre sistemas oficiais de resolução de litígios, possam ou não
ser identificados como «legais». No entanto, como os processos de resolução
de litígios muitas vezes assumem a forma de instituições jurídicas, e como eu
argumento meu argumento se funda em uma conexão cultural estreita, devo
considerar as objeções à tese da reflexividade. Caso eu tenha sucesso, este
livro minará um argumento particular dos teóricos contrários à reflexividade,
i.e., o de que instituições oficiais de resolução de litígios são compostas em
grande medida por elites profissionais atuando em um espectro virtualmente
ilimitado de poder técnico. Ainda que ninguém afirme que essas instituições
sejam completamente o produto de um sacerdócio profissional totalmente
isolado da sociedade em que habitam, e mesmo que eu não sustente que esses
sacerdotes estejam colocados nas mãos da «cultura», eu chamo a atenção para
aspecto cultural. A metafísica, os valores, os símbolos e a hierarquia social de
qualquer coletividade determinarão os limites dentro dos quais ela organizará
suas instituições de resolução de conflitos.
Esta análise tem implicações para os vários projetos atuais de reforma
processual, especialmente aqueles que enfatizam a harmonização das regras
para além das fronteiras nacionais. Não é exagero afirmar que «[o] debate
sobre direito e cultura pode parecer possuir a chave para a natureza do direito
Ver Laura Nader, The life of the law: anthropological projects, supra nota 7.
Por uma análise útil e perspicaz deste debate, ver David Nelken, Towards a Sociology of
Legal Adaptation; David Nelken e Johannes Feest, eds., Adapting Legal Cultures. Oxford:
Hart, 2001, p. 3-15; ver também Brian Z. Tamanaha, A general jurisprudence of law and
society. Oxford: Oxford University Press, 2001, capítulos 3-5.
16
Tamanaha, supra nota 15, p. 107-132. Críticas relevantes sobre a teoria do espelho são
encontradas no trabalho de Alan Watson, ver, p. ex., The evolution of law. Oxford: Blackwell,
1985, e em William Ewald, «Comparative jurisprudence (II): the logic of legal transplants», 43
American Journal of Comparative Law 489-510, 1995.
14
15
capítulo 1
25
comparado como um campo científico e também para seu potencial como
uma fonte de orientação prática para políticas jurídicas – como, por exemplo,
em relação a transplantes legais… e harmonização de direitos entre sistemas
jurídicos».17 Como a globalização conduziu à homogeneização do direito
substantivo, não é surpresa que um movimento no sentido da uniformidade
dos procedimentos de resolução de litígio também se siga.18 Minha abordagem mostra porque este último movimento encontrou mais dificuldades
do que a harmonização substantiva – o que poderia surpreender ainda mais
por envolver «apenas» o processo. Finalmente, a influência recíproca entre a
escolha dos métodos de resolução e a cultura em que estão situados levanta
uma preocupação que deve ser considerada por aqueles engajados nessa tentativa de harmonização. Pode-se apontar para a conservação de práticas como
o júri civil norte-americano, em razão do seu papel na manutenção de valores
importantes, mas pode-se também apontar para o encontro de novas soluções.
Por exemplo, a introdução do júri em uma sociedade em transição do totalitarismo poderia ser profundamente expressiva da nova era de participação
popular no governo. Simbolizaria a realocação da autoridade e poderia até
mudar a forma como indivíduos conceituam a sua relação com a autoridade.
Mesmo aqueles que não estão persuadidos pelos meus argumentos
estarão, espero, enriquecidos pela exploração detalhada das conexões que
estão em seu bojo.
1.1 A questão da «cultura»
Meu uso da cultura como uma variável explicativa (meios de resolução
de litígios refletem a cultura e por sua vez afetam a cultura) invoca um termo
que exige definição e alguma defesa. «A construção de uma definição para um
conceito central da antropologia sempre foi difícil, mas nunca tanto como no
presente».19 As maiores dificuldades nascem da vagueza natural do conceito,
sua mensagem potencialmente ilusória de imutabilidade das práticas e das
crenças, e sua falha em reconhecer desvios individuais a partir de, e até mesmo
em oposição a, uma ortodoxia social.20 Esses problemas devem ser compreendidos e trabalhados para evitar suas armadilhas, mas eles não superam a
utilidade do conceito. Concordo com Amsterdam e Bruner: «nós parecemos
precisar da noção de cultura que toma sua integridade como um complexo –
Roger Cotterrell, «Law in Culture», 17 Ratio Juris 1, 2, mar.-2004.
Para uma ampla discussão de desenvolvimentos relevantes, ver Gerhard Walter e Fridolin
M. R. Walther, International litigation: past experiences and future perspectives. Bern:
Stampfli Verlag AG, 2000.
19
Sally Engle Merry, «Law, culture, and cultural appropriation», 10 Yale Journal of Law and
the Humanities 575, 579, 1998.
20
Veja, p. ex., Merry, supra nota 19, p. 578-588.
17
18
26
oscar g. chase
como um sistema em tensão única para um povo, não em perpetuidade, mas
em um lugar e tempo».21
Por que motivo «precisamos» desta noção de cultura? Eu avento que
nós precisamos dela porque ela serve como um atalho para se referir a pontos
comuns em práticas, valores, símbolos e crenças de grupos particulares de
pessoas. Precisamos da «cultura», também, por seu poder de explicar por qual
motivo instituições tão diferentes nascem em diversas sociedades para lidar
com problemas que são essencialmente os mesmos. Eu adoto um conceito de
cultura que vincula pontos comuns que persistem no tempo, mas dificilmente
são eternos, e que são largamente, mas não uniformemente, compartilhados
por uma coletividade determinável.22 Para citar Kroeber e Kluckhohn, «o
núcleo essencial da cultura consiste em ideias tradicionais (i.e., derivadas
e selecionadas historicamente) e especialmente em seus valores agregados;
sistemas culturais podem, de um lado, ser considerados como produto de
ação, e, de outro, como elementos condicionantes de ações futuras».23
Mais especificamente, a definição de cultura usada aqui inclui «ideias,
valores e normas tradicionais» que são amplamente compartilhados em um
grupo social.24 A cultura inclui proposições sobre crenças que são tanto
normativas («matar é errado exceto quando autorizado pelo Estado») como
cognitivas («a Terra é redonda»).25 A cultura também incluiu os símbolos que
representam aquele espírito de seu povo (a figura da Justiça com sua balança;
um globo de mesa). A cultura adequadamente definida também inclui as instituições e os arranjos sociais que são particulares a uma sociedade (tribunais;
faculdades de astronomia)? A resposta deve depender dos propósitos da defi21
Anthony G. Amsterdam e Jerome S. Bruner, Minding the Law. Cambridge, Mass.:
Harvard University Press, 2000, p. 231. Os autores adotam uma visão de cultura que combina
concepções de cultura «social-institucionais» e «interpretativo-construtivistas». «O primeiro
serve para remarcar a importância das formas de institucionalização e legitimação que todas as
sociedades exigem para o estabelecimento e a manutenção da canonicidade; o último ressalta
a pressão ubíqua exercida pelas construções de mundo-possível tanto solitária como comunal
sobre a canonicidade institucionalizada». Idem.
22
Sobre a utilidade da cultura como conceito embora suas dificuldades, ver também Roger
Cotterrell, «The Concept of Legal Culture», in David Nelken, ed., Comparing Legal Cultures,
Brookfield, Vt.: Dartmouth Publishing Co., 1997, 13,29: «Em alguns contextos, entretanto, a
ideia de uma massa indiferenciada de elementos sociais, co-presentes em certo tempo e lugar,
pode ser útil e mesmo necessária na pesquisa social. Esta ideia é expressa convenientemente
pelo conceito de cultura».
Cotterrell também argumenta com a desagregação do conceito de cultura em quatro tipos ideais
de comunidade weberianos, Roger Cotterrell, «Law in Culture», 17 Ratio Juris 1-14, mar.
2004.
23
A. L. Kroeber e Clyde Kluckhorn, Culture: A Critical Review of Concepts and Definitions.
New York: Vintage Books, 1952, p. 357.
24
Spiro, supra nota 8, p. VIII.
25
Idem, p. 32.
capítulo 1
27
nição. No contexto deste trabalho, as práticas e as instituições de resolução de
conflitos são uma variável. Afirma-se que esta variável tanto explica como é
explicada em parte pela cultura (ideias, valores, normas e símbolos). Ambos,
portanto, não podem ser reunidas nesta empreitada. As instituições de resolução de conflitos são ao mesmo tempo um produto, um colaborador e um
aspecto da cultura. Suas formas podem ser evidência de alguma qualidade
inerente de uma sociedade, contudo, para evitar a armadilha da tautologia,
sustentarei qualquer dessas assertivas com outra prova da mesma qualidade
alhures nas crenças e práticas da sociedade em questão. É então coerente argumentar que as formas de resolução de litígios são reflexivamente entrelaçadas
tanto com a intelecção como com a prática: «[a] cultura assim consiste de
significados, conceitos e esquemas interpretativos que são ensejados, construídos ou ativados através da participação em instituições sociais normativas
e práticas rotineiras…».26 A resolução de conflitos é uma dessas «práticas
rotineiras».
Qualquer um que contrastasse uma cultura com outra encontraria
o difícil problema de encontrar limites, de identificar a unidade social que
caracteriza uma cultura diversa. Com respeito a uma sociedade em pequena
escala e isolada geograficamente, como os Azande descritos no capítulo 2, isto
apresenta dificuldades apenas modestas, especialmente se o período de tempo
é circunscrito, embora ainda assim podem existir diferenças na «cultura»
entre subgrupos. Muito mais problemática é a análise da cultura em povos
modernos cuja identidade comum principal é a cidadania em uma nação
de muitos milhões de pessoas. Neste ponto, só pretendo levantar a questão.
Retornarei a ele no capítulo 4 quando discuto o caso particular do «excepcionalismo» norte-americano. Como veremos, tanto a forma de investigação
interpretativa quanto o modo empírico apoiam a tese de que mesmo esta nação
das mais heterogêneas, os Estados Unidos, tem uma cultura particular, e que
é profundamente conectada às suas práticas de resolução de litígios oficiais.
1.2 O poder explicativo da cultura
A invocação da «cultura» como uma ferramenta para compreender os
processos de resolução de litígios não é apenas defensável; é também necessária. Ela preenche lacunas abertas por outros estudos da relação entre resolução de litígios e sociedade. Simon Roberts, por exemplo, explorou a intrigante variação na aceitabilidade da autotutela violenta em diferentes sociedades de pequena escala.27 Soluções violentas serão encontradas, afirma-se,
26
Richard A. Shweden e Jonathan Haidt, «Cultural psychology of emotions: ancient and
new», in Richard A. Shweden, Why do men barbecue? Cambridge, Mass.: Harvard University
Press, 2003, p. 136.
27
Ver a discussão em Roberts, supra nota 2, p. 154-167.
28
oscar g. chase
onde os arranjos sociais existentes não permitem ou facilitam o aparecimento
de terceiros que possam mediar ou então dirigir a controvérsia para longe da
violência. Isto pode ocorrer porque as condições de vida, os grupos de parentesco, entre outros, não permitem a qualquer do grupo ser neutro quando uma
disputa ocorre. Roberts reconhece a utilidade limitada dessas explicações para
descrever as práticas de todas as sociedades observadas, atribuindo o grau
de resolução violenta de litígios (ou, alternativamente, do discurso dirigido à
composição) em última análise a «valores e crenças mantidos pela sociedade
interessada».28
A vida econômica, i.e., a forma como as pessoas sobrevivem no mundo,
seja em bandos pequenos de caçadores-coletores, seja em modernos estados
complexos, certamente afeta as formas de resolução de litígios, porém mais
uma vez não pode explicar todas as diferenças observadas.29 A dispersão é um
método comum de lidar com as desavenças em curso entre pequenos bandos,
mas é menos provável que seja encontrada onde a severa ecologia local condicione a sobrevivência de cada membro a uma cooperação contínua.30 Contudo,
há também frequentes diferenças entre os meios de resolução de litígios em
sociedades com sistemas econômicos e sociais semelhantes. É interessante o
relatório de Roberts de que «[u]m aspecto em que sociedades de caçadores e
coletores diferem em muito de outras é na medida em que o medo de entes
sobrenaturais parece importante na prevenção e condução de conflitos».31 São
estes casos que mostram a profunda conexão entre as ferramentas simbólicas
de um povo e seus instrumentos preferenciais para lidar com litígios. Prossigo
com detalhes neste tema no próximo capítulo, usando os Azande como objeto
de estudo.
Uma discussão detalhada da relação entre organização econômica e
formas de resolução de litígios é dada por Katherine S. Newman.32 Ela apresenta uma tipologia das sociedades pré-industriais baseada em oito tipos de
«sistemas jurídicos», por si classificados de acordo com seu nível de «complexidade» a ser determinado conforme o preenchimento fático de cinco características (como o uso de terceiros julgadores). Newman examinou uma amostra
de sociedades a partir de textos antropológicos para testar suas hipóteses.33 Ela
concluiu que nas sociedades pré-capitalistas uma «abordagem materialista» é
Roberts supra nota 2, p. 54. V. também idem, p. 166.
Felstiner, «The influences of social organization», supra nota 1.
30
Roberts, supra nota 2, p. 86-87.
31
Idem, p. 94.
32
Katherine S. Newman, Law and economic organization: a comparative study of preindustrial
societies. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
33
Ver Newman, supra nota 32, p. 117-121 para sua metodologia.
28
29
capítulo 1
29
útil para «explicar a distribuição das instituições jurídicas...».34 Mas apesar de
sua investida no materialismo, Newman reconhece que a completa compreensão dos processos de resolução de litígios em uma sociedade exige mais do
que uma dimensão econômica: «De fato, o “idioma” do direito, a linguagem
em que seus conceitos e conflitos são expressos, é indubitavelmente uma
questão de determinação cultural… Muitos tabus rituais, práticas religiosas
e valores normativos incorporadas em códigos jurídicos parecem ter poucas
conexões com relações econômicas».35 Meu interesse inclui os assuntos que
a abordagem econômica obscurece, questões bem resumidas, na expressão de
Newman, como o «idioma» dos meios de resolução de litígios. Isso necessariamente requer o conceito de cultura e demonstra sua contínua utilidade.
1.3 Os limites do «litígio»
Meu segundo elemento fundamental, o conflito, também coloca um
desafio conceitual. Sua elasticidade se estende por uma série de desavenças
humanas, de brigas conjugais a guerras mundiais.36 Conflitos podem surgir
de atos supostos ou reais de irregularidades ou de pretensões conflitantes
sobre bens desejados.37 E, é claro, o método de resolução de conflitos pode
tomar várias formas, do diálogo racional ao combate armado e fatal. Algumas
prescrições a respeito do escopo são úteis no interesse da gestão. Já que meu
objetivo é examinar a relação entre os mecanismos de resolução de litígios
socialmente admitidos e a cultura em que eles são encontrados, eu focarei
nos litígios intragrupais. Embora a conduta de guerrear seja ela mesma sujeita
à regulação de cada cultura, estas regras refletem considerações muito diferentes daquelas aplicadas aos conflitos dentro de um grupo. Buscarei deter-me
principalmente a litígios que sejam sérios o bastante para gerar o uso daquilo
que pode ser amplamente chamado de meios institucionais de resolução de litígios. Contudo, esta autolimitação não pode ser absoluta, pois as categorias são
elas mesmas porosas. A capacidade do oficial e do informal em mesclarem-se
é ilustrada pelo entusiasmo do Judiciário norte-americano em acolher formas
de resolução de litígios ainda chamadas de «alternativas». Isto é abordado no
capítulo 6, «A ascensão dos meios alternativos de resolução de litígios sob o
contexto cultural».
34
Newman, p. 214. Newman usa «materialista» como uma abreviação para «a abordagem
histórico-materialista desenvolvida por... Karl Marx e seu colaborador Friedrich Engels». Idem.
35
Idem, p. 210.
36
Uma taxonomia útil dos tipos de litígios que se pode encontrar e dos métodos de solução de
conflitos é dada por Simon Roberts, ver Order and dispute, supra nota 2, p. 45-79.
37
Sobre os fatores culturais que afetam o processo pelo qual os litígios são gerados, ver
William L. F. Felstiner, Richard L. Abel, e Austin Sarat, «The emergence and transformation
of disputes: naming, blaming, claiming …», 15 Law & Society Review 631, 1980-1981.
30
oscar g. chase
Na maioria das sociedades há mais de uma forma aprovada para lidar
com conflitos. E algumas pessoas podem levar seus litígios a mecanismos
reprovados socialmente, mas não raros, como a violência doméstica nos
Estados Unidos. O método usado em uma situação particular dependerá da
relação entre as partes, da natureza do litígio, e dos custos das várias possibilidades. Com isto, alguém poderia questionar os motivos pelos quais escolho
determinado processo particular como objeto de análise. Por que focar nos
processos oficiais como o oráculo benge ou o julgamento por jurados? Eu não
contesto que o estudo de mecanismos informais ou ilegais de resolução de
conflitos ofereceria muito interesse para estudantes de cultura, mas argumento
que o estudo das formas mais proeminentes, públicas e oficiais de resolução
de litígios também expressa temas culturais e sociais. E, por causa de sua
situação privilegiada, para não dizer santificada, elas terão grande impacto na
sociedade em geral. Essas práticas não são apenas instrumentos de solução de
litígios; são instrumentos de sinalização de valores, crenças e papeis sociais.
É certo que, como os teóricos contrários à reflexividade indicariam,
enfocar instituições e práticas oficialmente constituídas traz como risco o fato
de se tratarem de espaços cativos de elites políticas, profissionais ou econômicas de suas sociedades e por essa razão serem um veículo pobre para o estudo
da relação entre cultura e processo. Em parte, este livro é em si mesmo um
grande esforço em refutar essa abordagem. Na minha ótica, qualquer análise
que separe totalmente as elites profissionais da cultura em que elas estão inseridas é irrealista. Mesmo Pierre Bourdieu, que sustenta que é a monopolização
ritualizada da linguagem e das práticas que dá parcialmente ao domínio, ou ao
«campo», do direito e a seus operadores o poder e o privilégio de que gozam,
aponta também para a interconectividade do direito (uma peculiar forma de
prática de resolução de litígios) com a «ordem social em si mesma».38
As elites profissionais dos processos de resolução de litígios se interconectam com a sociedade em que operam de duas formas: na maioria dos
casos, elas mesmas serão o produto dessa cultura, e compartilharão em geral
sua metafísica e seus valores. Elas inevitavelmente afetarão sua visão daquilo
que é correto e bom na escolha entre métodos concorrentes de identificação
dos fatos verídicos e das normas justas. Em segundo lugar, mesmo caso as
elites não creiam na validade das normas e das crenças comumente aceitas,
há um incentivo para criar procedimentos que ressoem de forma eficaz em
relação àqueles que a elas se sujeitam, de modo que estão mais propensos à
aceitação.39 Isso requer uma conexão cultural.
Ver amplamente Pierre Bourdieu, «The Force of Law: Toward a Sociology of the Judicial
Field». Trad. Richard Terdiman, 38 Hastings Law Journal 805-53, p. 851, 1987.
39
Sobre a dificuldade de alterar os sistemas jurídicos em face das normas culturais, ver K.
Rokumoto, «Law and culture in transition», 49 American Journal of Comparative Law, 545,
559, 2001.
38
capítulo 1
31
O vínculo entre a cultura e a solução de litígios é visto de modo mais
robusto em culturas que não diferenciam fortemente as práticas de solução
de litígios da vida cotidiana, como pequenas sociedades tecnologicamente
simples. Nas sociedades modernas, tecnologicamente complexas, esta relação
é condicionada pela própria estabilidade da democracia existente no espaço
estatal. Nesse caso, a elite dominante tende a emergir do público geral,
compartilhando seus valores. Sua legitimidade, ademais, dependerá da satisfação coletiva com os mecanismos de resolução de conflitos que constrói.
Não é surpreendente, por outro lado, que instituições impostas por governos
coloniais podem diferir significativamente das práticas populares antes
empregadas. O domínio britânico sobre os Azande foi um bom exemplo – a
força das armas permitiu a imposição do modelo britânico de tribunais para
assuntos importantes, apesar de não lograr internalização pelos indivíduos. As
elites pós-coloniais podem, por suas próprias razões, manter instituições de
resolução de litígios importadas. Aqui, novamente, a falha dessas instituições
em refletir os valores culturais ainda latentes não apresenta um desafio grande
para minha tese geral da conectividade. Após um tempo suficiente, a ordem
imposta e a cultura geral podem atingir uma acomodação que envolve alguma
interpenetração mútua.40
1.4 Normas de conduta ou normas de processo?
Examinando as formas de resolução de conflitos transculturalmente,
encontramos uma variedade de normas (regras de comportamento adequado)
bem como de processos (regras para lidar com violações de normas e outros
litígios). O elo entre normas de comportamento e valores culturais frequentemente é notado. Entretanto, pretendo na medida do possível explorar o lado
dos processos. Isto faz com que tenha relativamente pouca importância para
minha tarefa o fato de os Azande, um povo africano examinado em profundidade no capítulo 2, considerarem o adultério um ilícito grave. É muito mais
interessante e importante para este projeto que eles consultem oráculos para
determinar se esse fato ocorreu.
A distinção entre as duas dimensões – normas e processos – não é fácil,
em parte porque ela mesma é produto de uma construção social.41 Em algumas
Veja, p. ex., Marc Galanter, «The Aborted Restoration of «Indigenous» Law in India», 14
Comparative Studies in Society and History 53-70, 1972.
41
Veja John L. Comaroff e Simon Roberts, Rules and processes: the cultural logic of
dispute in an African context. Chicago: University of Chicago Press, 1981, por uma análise
do papel dos processos de solução de litígios na criação de normas sociais. Eles argumentam
que é dentro do contexto dos processos de solução de litígios que as normas são reveladas,
negociadas e modificadas. Concordo com sua tese de que «a lógica do conflito está, em última
análise, situada no sistema que o abrange e pode ser compreendida apenas como tal [e que] é no
contexto da confrontação – quando pessoas negociam seu universo social e entram em discurso
40
32
oscar g. chase
sociedades de menor escala, não há a categoria explícita de normas legiformes;
elas parecem estar permeadas no costume e invocadas implicitamente nas
formas como os litígios são resolvidos e como a vida é vivida.42 Mesmo em
sociedades tecnologicamente sofisticadas, processos e normas são às vezes
inseparáveis. Deste modo, tomando um exemplo que nos é similar, vemos
que a natureza elusiva dos limites entre procedimento e substância é elemento
típico do processo civil de algumas localidades, como os Estados Unidos.
A Suprema Corte dos Estados Unidos ocasionalmente explorou esta
fronteira porque o tribunal tem o poder regulamentar «para prescrever
regras gerais sobre prática e procedimento» para feitos perante os Tribunais
norte-americanos, mas não pode promulgar regras ou diplomas legais que
governem o direito substancial.43 Manter esses dois campos separados se
mostrou complicado.44 A Suprema Corte reconhece que uma regra que afete
direitos «normativos» importantes pode ainda assim ser procedimental em sua
natureza.45 Alguém pode pensar, por exemplo, que o poder do tribunal em
compelir um litigante a submeter-se a um exame médico involuntário seria
«substantivo», ou uma questão de norma, no sentido aqui usado. Não obstante
a importância da inviolabilidade do corpo nos Estados Unidos, a Corte considerou que a questão poderia ser considerada procedimental no contexto da
litigância, representando um terreno legítimo para a regulação judicial.46
O aspecto cultural da construção de normas/processos é evidenciado pelo
ensaio de Christopher Stone, Should Trees Have Standing? Toward Legal
Rights for Natural Objects.47 O standing é uma das doutrinas norte-americanas
que regula o acesso aos tribunais. Uma demanda trazida por uma parte que
não tem legitimação será extinta sem apreciação, mesmo se a pretensão deduzida seja viável. Já que as regras sobre legitimação não pretendem examinar a
sobre ele – que o caráter de um sistema é revelado». Idem, p. 249. Minha abordagem é diferente
daquela de Comaroff e Roberts no sentido de que eu foco nos procedimentos usados na solução
de controvérsias como significações que refletem e constituem os valores culturais, antes das
(ou além das) normas efetivamente envolvidas no litígio iminente.
42
Ver Roberts, Order and Dispute, supra nota 2, p. 170-171, por exemplos.
43
Rules Enabling Act, 28 U.S.C. § 2072 (a), 1934.
44
V. Guaranty Trust Co. vs. York, 326 W.S. 99, 109; Byrd vs. Blue Ridge Rural Electric
Cooperative, 356 U.S. 525, 1958; Hanna vs. Plummer, 380 U.S. 460, 1965.
45
Sibbach vs. Wilson, 312 U.S. 1, 14, 1941. Aqui, o tribunal concluiu que um exame físico
da parte é questão procedimental, e assim que a elaboração de regras sobre o exame físico é
permitida.
46
Sibbach, supra nota 47. (A questão surgiu porque as Federal Rules of Civil Procedure
permitem ao réu de uma demanda civil exigir um exame físico do autor que pretende a
indenização de danos pessoais do réu; o autor objetou, alegando que a regra era nula porque
não era uma regra sobre «procedimento»).
47
Christopher Stone, «Should Trees Have Standing? Toward Legal Rights for Natural
Objects», 45 Southern California Law Review 450-501, 1972.
capítulo 1
33
legalidade da conduta do réu, elas são neste sentido regras de procedimento. O
artigo de Stone, como seu título provocativo sugere, reexamina a aproximação
jurídica com a natureza. Os objetos naturais têm pretensões jurídicas diversas
de seus «proprietários»? Colocar essa questão em termos de legitimação é
intrigante e muito útil para meu argumento. Mesmo se fosse dada legitimação
às árvores, a questão sobre se elas têm direitos substanciais ainda remanesceria
aberta. Stone observa que «dizer que a natureza deveria ter direitos não é dizer
algo tão simplório como que ninguém deveria poder cortar uma árvore».48
Porém, ele também reconhece que a decisão procedimental implicaria uma
profunda mudança na relação entre humanos e a natureza e teria muitas
ramificações na conduta primária, «porque até que a coisa sem direito receba
seus direitos, não podemos ver nela nada a não ser uma coisa para o “nosso”
uso – daqueles que possuem direitos no momento».49 Assim, uma mudança
procedimental pode ter efeitos profundos nas hipóteses culturais e mesmo na
compreensão da natureza da realidade.50 A questão da legitimação das árvores
de pronto ilustra a dificuldade em manter uma rígida separação entre normas
e processos e sugere algo da profunda conexão entre ideias sobre processo e
hipóteses culturais.51
Essa tentativa de desenhar alguns limites entre normas e processos
convida à exploração de como o conceito de «direito» se encaixa na minha
tese. Obviamente, para grande parte do mundo do século vinte e um, as instituições de resolução de litígios estão incorporadas em um sistema usualmente
alcunhado como Estado de Direito. Mas enquanto a «lei» não existe sem essas
instituições formais, meios de resolução de litígios são encontrados mesmo
onde a legislação, nos moldes com que normalmente a concebemos, está
ausente.52 Essa distinção é importante. Focar nas práticas de resolução de litígios, ao invés de nos sistemas legais criados por algumas sociedades para lidar
com conflitos, expande o espaço do debate. Se os métodos de solução de litígios
de sociedades tecnologicamente simples constituem sistemas legais não é tão
Christopher Stone, p. 457.
Idem, p. 455.
50
Hanne Petersen, «Gender and nature in comparative legal cultures», in David Nelken,
ed., Comparing Legal Cultures, supra nota 22 (afirma que um reconhecimento crescente da
conexão entre humanidade e natureza conduzirá a mudanças na cultura jurídica e na doutrina
jurídica).
51
Em sua profunda análise do papel cultural da acusação e do julgamento de animais no mundo
medieval, Paul Schiff Berman sugere que estes julgamentos podem também ser explicados
em parte como uma tentativa de validar uma visão particular da relação entre a natureza e a
humanidade, ver Berman, supra nota 7, p. 159-162.
52
«Apesar da ampla gama de formas organizacionais que podem ser encontradas em sociedades
em pequena escala, os mecanismos para a manutenção da continuidade e da condução de litígios
tendem quase universalmente a ser diretamente inseridas na vida cotidiana, indiferentemente da
diversidade dos sistemas jurídicos.» Simon Roberts, Order and dispute, supra nota 2, p. 27.
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simples de afirmar. A resposta depende tanto da definição de Direito quanto
da observação atenta do povo em questão. Então, com Roberts,53 acredito que
é melhor não limitar a discussão a práticas e crenças estritamente consideradas
como «jurídicas». Eu busco, antes, saber como as pessoas litigam, e o que as
suas formas de resolução de litígios dizem a respeito delas e de seu mundo.
Ironicamente, uma abordagem católica dos meios de resolução de litígios implica que eu não possa evitar inteiramente o conceito de «direito».
Trata-se de uma noção demasiadamente importante para os sistemas de resolução de litígios de muitos povos. Os sistemas legais também são meios de
solução de conflitos construídos socialmente e, nesse particular, deve-se ter
atenção. Alguém pode afirmar que «direito» e «oráculos» servem a funções
semelhantes em povos diversos. O direito é considerado como uma construção
cultural no capítulo 3.
1.5 Olhando adiante
Nesta introdução eu ofereci ao leitor os sentidos de propósito e de importância do meu projeto. Desenhei a utilidade – ou melhor, a necessidade – de
uma compreensão cultural dos processos de resolução de litígios. E lidei com
problemas nodosos de escopo e de definição. No capítulo 2 eu uso uma etnografia dos Azande para mostrar em detalhes como as instituições de resolução
de conflitos cumprem um papel na construção e na transmissão de arranjos
sociais, de sistemas de crenças e de valores. Longe de ser uma peça irrelevante
de exotismo, eu acredito que pela clara revelação do lugar dos procedimentos
de resolução de litígios nas suas vidas sociais um estudo desses povos nos
ajuda a melhor entender a conexão entre as culturas concorrentes. A atenção
aos Azande sugere deste modo uma forma de olhar as resoluções de litígios
culturalmente nas sociedades modernas.
O capítulo 3 aplica a lição dos Azande – de que as práticas de solução de
litígios são tanto refletivas quanto construtivas da cultura. Tomo o difícil passo
atrás necessário para ver as práticas de solução de litígios que prevalecem nas
nações desenvolvidas em um contexto mais amplo. Para elas, como para os
Azande, as práticas resolutivas são construções culturais. Foram concebidos
processos que são em parte rituais que validam as transformações sociais que
seguem a sua aplicação. Essas formas de solução de litígios comunicam algo
do que o povo acredita sobre o universo e sobre uma ordem social adequada.
Para esclarecer meu argumento, ingresso em uma extensa análise metafórica
dos meios em que o direito e a prova funcionam como oráculos.
Roberts, Order and dispute, supra nota 2, p. 28-29, 203-204.
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capítulo 1
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O capítulo 4 vai das características gerais dos regimes de solução de
conflitos usados nos Estados modernos à consideração comparativa e cultural
das práticas resolutivas institucionalizadas nos Estados Unidos. Eu foco nas
regras formais do processo civil norte-americano e mostro que elas são reflexivas de valores e crenças profundamente arraigadas.
O capítulo 5 trata de um aspecto peculiar dos métodos de resolução de
litígios norte-americanos, a ascensão da doutrina da «discricionariedade» nos
procedimentos estadunidenses, e mostra como uma compreensão interpretativa dessa doutrina lança luzes sobre seu crescimento e sobre a natureza do
sistema que o emprega. Este capítulo também considera a inter-relação dos
objetivos e necessidades das elites que operam o sistema legal, e dos desenvolvimentos sociais e culturais exógenos a ele.
No capítulo 6, examino outro fenômeno intrigante, a transformação dos
meios alternativos de resolução de litígios (ADR) nos Estados Unidos do final
do século vinte. Apresento evidências da troca da intervenção jurisdicional
por formas alternativas de arbitragem e de mediação, e esboço os atos doutrinários, judiciais e legislativos que a facilitaram. Uma análise da história dos
métodos de solução de litígios nos Estados Unidos mostra que a busca por
alternativas aos tribunais há muito é o pano de fundo do domínio da litigância,
embora comumente em subculturas particulares. O vigor com que a busca
foi conduzida no passado é perceptível com uma combinação de forças institucionais, políticas e culturais, que são ali explicadas. Alguns defensores da
mediação argumentam que a sua ênfase na mutualidade e na construção de
relações (no lugar da disputa adversarial) nutriria estes sentimentos e permitira
uma melhoria da sociedade como um todo. Essa intrigante noção reconhece
implicitamente a natureza construtiva das instituições de resolução de litígios,
fazendo-me utilizar o capítulo para começar um exame deste processo.
O capítulo 7 explora o papel dos rituais nos processos de resolução de
litígios. Eu sustento que os rituais que evocam outras práticas sociais são
usados para legitimar os meios de solução de litígios e são, então, outra
conexão com a cultura. Também argumento que com o tempo as próprias
práticas resolutivas tomam uma qualidade de tipo ritualista que lhes permite
efetivar transformações sociais que são o resultado final dos processos de
solução de conflitos.
No capítulo 8 eu volto diretamente ao argumento constitutivo e construtivista: a controvérsia sobre se os processos de solução de litígios são importantes para a manutenção e a criação da cultura, entendida de forma ampla.
Olho, então, de perto os processos psicológicos e sociais através dos quais as
crenças são internalizadas coletiva e individualmente.
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A conclusão sugere a utilidade de minhas observações transculturais.
Sustento que os formuladores de políticas que ponderam sobre mudanças
relacionadas a um processo de solução de litígios não devem desconsiderar
a capacidade de suas práticas de ressoar um sistema mais amplo de valores,
de símbolos, de crenças e de instituições. Este não é um argumento contra a
reforma, mas um apelo para a sabedoria em seu desenvolvimento.
Um breve posfácio divide a experiência extraordinária que adquiri em
sala de aula, desafiando as crenças entre alunos e professores já estabelecidas
e familiarizadas.
Agora estamos prontos para passar algum tempo com os Azande.
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