IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de
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IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de
IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste. 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE. Grupo de Trabalho: Antropologia das práticas musicais A música e a cidade: práticas sociais e culturais na cena da canção popular de Belém do Pará (1980 - 1990) Nélio Ribeiro Moreira [email protected] Mestrando em Ciências Sociais - Antropologia/PPGCS/UFPA A música e a cidade: práticas sociais e culturais na cena da canção popular de Belém do Pará (1980 - 1990) Nélio Ribeiro Moreira [email protected] Mestrando em Ciências Sociais - Antropologia/PPGCS/UFPA Resumo Percorrer a cidade de Belém do Pará em seu campo musical, como experiência histórica, e os discursos construídos sobre esse cenário é o que pretende o trabalho de investigação que se encontra em desenvolvimento e do qual apresento, neste texto, um incipiente e sucinto debate teórico e metodológico, bem como elementos do material já levantado. A proposta contida no projeto é proceder ao acompanhamento do desenvolvimento das relações de sociabilidade no meio musical belemense e fazer uma cartografia do que chamo de “lugares da canção” na cidade – bares, casas de show, teatros. O subsídio teórico da pesquisa se encontra nos conceitos de cena musical (STRAW; STHAL) e rede social (BOISSEVAIN; BARNES). A partir das possibilidades informativas (jornais, relatos orais, fotografias) coligidas e submetidas a análise por uma etnografia histórica (SAHLINS; FREHSE), a discussão se dará em torno das práticas sociais e culturais realizadas no ambiente da cidade num recorte temporal que abarca o decurso da década de 1980. Palavras-chave: Cena musical; canção popular; Belém do Pará; etnografia histórica. Introdução Neste texto exponho o embasamento teórico, as possibilidades metodológicas e uma curta discussão sobre os materiais, elementos estes que compõem o trabalho que estou desenvolvendo 1 acerca das práticas socioculturais e das relações de sociabilidade no campo da música popular na cidade de Belém do Pará no decurso da década de 1980. 1 Trata-se da pesquisa de mestrado intitulado “A música e a cidade: práticas sociais e culturais na cena da canção popular de Belém do Pará (1980 - 1990)”, pesquisa que está em curso no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais/Antropologia - Linha de Pesquisa: Populações Amazônicas: ideias e práticas sociais, na Universidade Federal do Pará sob a orientação do Profº. Drº. Antonio Maurício Dias da Costa. O objetivo é reconstruir a cena da canção popular 2 paraense em sua dimensão pretérita na perspectiva analítica de uma etnografia histórica. Assim, recorro a meios informativos como relatos de memória de interlocutores que vivenciaram o período (muitos dos quais são ainda atuantes no cenário musical local contemporâneo) e a um repertório de pesquisa formado por material escrito e iconográfico. Para a pesquisa utilizo, fundamentalmente, como categoria analítica, a noção de “cena musical” por entender que este conceito sustenta a forma como pretendo trabalhar o tema, haja vista que se trata de uma abordagem global, no sentido de que envolve várias questões que estão ligadas ao tema. De antemão, para fins de esclarecimentos de questões atinentes ao estudo, cabe destacar duas características basilares da noção de cena que subsidiam a opção por mim adotada. A primeira é que uma “cena musical” é caracterizada por redes de sociabilidade que ocorrem na cidade – portanto, trata-se de algo específico do contexto cultural urbano. A segunda justificativa está no fato de que ela possibilita a apreensão de vários pontos que compõem as relações sociais, bem como as várias formas de circulação das atividades musical, de produção e de consumo desse produto (JANOTTI JR, 2012). Essa perspectiva de abordagem subsidia o que pretende a pesquisa: verificar como se formaram as redes de sociabilidade, os pontos de contato de práticas socioculturais em Belém do Pará no campo da música popular. A idéia central do trabalho é demonstrar a relação entre o contexto histórico sociocultural e os arranjos criativos, as táticas (DE CERTEAU, 1994) praticadas e as seleções estéticas e ideológicas que ampararam a produção musical belemense do período. É dessa forma que sustento a perspectiva de abordagem que almejo traçar no trabalho: verificar como se formaram as redes, os pontos de contato de práticas culturais na cidade, as relações de sociabilidade e os vínculos de trocas artísticas e de compromisso no meio musical. Concomitante a isso, é interesse da pesquisa 2O trabalho trata especificamente de um gênero de música popular, que é a canção. Essa pode ser definida, rudemente, como a somatória de música e uma letra com recursos poéticos. Contudo, mais sofisticada é a definição dada pela historiadora Mariana Villaça. Para ela, a canção é um intricado conjunto formado pelos elementos estritamente musicais (como harmonia, ritmo, melodia, arranjo, instrumentação) somados a outros elementos de ordem formal (interpretação e a imagem do intérprete, a performance, os recursos sonoros utilizados na gravação) mais a letra da canção e toda sua complexidade estrutural. Assim, na cultura musical brasileira a canção popular é elemento de destaque, pois se trata de uma referência cultural bastante presente no cotidiano, atuando como “construtora e veiculadora de representações sociais” (VILLAÇA, 1999, 330). a feitura de uma cartografia dos “lugares de canção” na cidade de Belém do Pará, haja vista que a música, assim como as outras modalidades de arte, depende da disponibilidade de lugares para ser realizada (BECKER, 2004). O período estabelecido para ser estudado tem sua justificativa em dois motivos. Primeiro, aventa-se a possibilidade de que no ano de 1980, no mês de janeiro, com a realização da “Feira Pixinguinha” em Belém do Pará, ocorre uma movimentação no meio musical local que possibilitou o surgimento de uma perspectiva de ajuntamento.3 Esse momento acabou por fazer eco e veio se tornar um motivador para práticas musicais posteriores. Ainda que a ocorrência desse evento não possa ser tomada como um fator determinante para o estabelecimento de uma música paraense, idéia que de fato tem sua origem em anos anteriores, 4 certamente foi um evento fundador de outro momento na trajetória da canção popular paraense. O que legitima o uso da mostra “Feira Pixinguinha” 5 como limite demarcatório para o início da pesquisa é, tão somente, a idéia de tomá-lo como marco temporal e espacial que deu ensejo a experiências sociais assumidas pelos participantes. Referenda essa perspectiva analítica o material documental que foi levantado preliminarmente, procedimento cujo objetivo era formatar um quadro informativo para que eu pudesse delimitar os ângulos da pesquisa. Posteriormente, no contato com os interlocutores - parte deles retirados a partir da recorrência de 3 Contudo, não se tratou da ocorrência de um movimento, termo que no seu sentido sociológico se trata de um projeto coletivo que conta com programas e manifestos. Inspira essa assertiva a leitura traçada por Santuza Cambraia Naves quando analisa a bossa nova e o movimento Tropicália. (NAVES, 2001). 4 Segundo Tony Leão da Costa, a MPB de feições regionais, cuja origem rememora aos anos 1960 e 1970, propôs um discurso que legitimava o popular e as manifestações do povo como “alicerces autênticos” sobre os quais seria erigida a “moderna música popular paraense” (COSTA, 2008). Para a satisfação desse propósito, o carimbó foi a manifestação musical eleita como a matéria-prima sobre a qual os artistas e mediadores culturais locais se lançaram numa perspectiva etnográfica com o objetivo proceder a um levantamento, revisão e incorporação da cultura popular a fim de subsidiar a modernização da tradição musical paraense. Essa atitude, além de legitimar a “originalidade” na invenção da música paraense moderna, ou seja, enquanto moderna tradição (ORTIZ, 1988), também contribui para que essa música fosse o meio pelo qual a região, pela sua produção musical, ingressasse no debate nacional sobre a formação da “moderna música popular brasileira”. 5 A “Feira Pixinguinha” foi um evento musical idealizado pelo músico Maurício Tapajós. Era atrelado ao “Projeto Pixinguinha”, este organizado pela Sociedade Musical Brasileira – SOMBRAS – e pela Funarte. Inspirado na série de shows “Seis e Meia”, que ocorria no Teatro João Caetano, na cidade do Rio de Janeiro, com espetáculos às 18h30 e ingressos a preços populares, o “Projeto Pixinguinha” tem seu início em 1977. O objetivo era percorrer várias regiões do Brasil com espetáculos de grandes nomes da música popular brasileira em shows que fossem acessíveis às camadas populares. seus nomes na imprensa no período -, que por sua vez me “indicaram” outros, esse evento veio à tona no mar memorial e, assim, pude explorá-lo com mais acuidade. Esse contato proporcionou, inclusive, consulta a acervos particulares mantidos por essas pessoas. Assim justifico que a ocorrência da “Feira Pixinguinha” possa ser utilizada e apresentada como marco inicial para a execução da pesquisa: trata-se de um tópico recorrente e, portanto, importante no processo de constituição da cena musical local nos idos anos 1980. A segunda justificativa, esta de ordem conjuntural, está assentada no fato de que o contexto do início dos anos de 1980 – o processo de abertura do regime militar em curso desde o final da década anterior e a ainda recorrente idéia dos procedimentos políticos que viam a região como uma área de “fronteira” 6 – teve conseqüências no campo da música popular. É sob esta situação que tem começo um processo de sistematização do campo musical local. Ainda que seguisse à senda da tradição musical das décadas anteriores, esse novo momento da música se encontrava mais estruturado em termos de agency 7 e, consequentemente, sociação 8. Integrada ao Brasil por uma “prática modernizadora centralista, autoritária e com preocupante processo de descaracterização” (BARBOSA, 2010, p. 111), a região Amazônica entrou na década de 1980 tendo suas perspectivas de desenvolvimento frustradas. Isso gerou um agravamento para as questões de ordem 6 Entendendo fronteira como processo, e não apenas em termos de lugar. Nos termos do antropólogo Ulf Hannerz (1997): fronteira é um espaço de troca, de interação, mas também de indefinição. Nesse sentido, Hannerz nos dá como exemplo possuidor dessas características as cidades onde há grande fluxo de imigrantes. Assim, fronteira acaba por remeter à idéia de descontinuidade. De outro lado, Hannerz, agora na esteira de Frederik Barth, pensa a fronteira como processo cultural e não apenas em sentido espacial, de maneira que ela acaba por configurar-se como algo volátil. Então, o que encontramos é cultura somando-se a cultura, e não cultura sobrepondo-se à cultura, pois utilizar uma definição nesta última formulação implicaria dizer que há uma cultura de cada lado. 7A noção de agency aqui é tomada como um conceito que faz referência a ação dos indivíduos – suas experiências pessoais - quando inseridos nos contextos sociais, aquilo a que Ortner (2006) chamou de “jogos sérios”. Portanto, agency não é algo que se esgota em si mesmo, mas é um componente de processos mais amplos que concorrem para a estruturação do campo social. 8Segundo o sociólogo Georg Simmel, a sociação existe a partir do momento em que os indivíduos interagem entre si, estabelecendo formas de cooperação e colaboração. Assim, quanto mais interação existe no interior do mesmo grupo, mais ele se torna sociedade. Em suma, a sociação é a forma pela qual os indivíduos formam uma unidade para satisfazerem seus interesses, de maneira que forma e conteúdo são elementos inseparáveis na experiência concreta (SIMMEL, 2006). Segundo Cecília McCallum, “[s]ocialidade é um estado momentâneo na vida social de um grupo, definido pelo sentimento de bem-estar e pelo auto-reconhecimento como um grupo [...]”(McCALLUM, 1998, p. 4). socioeconômica local. Dito de outra forma, a partir desse momento as políticas econômicas do Estado interventor direcionadas para a região entram numa fase de esgotamento, de maneira que as práticas desenvolvimentistas sustaram, o que implicou, de certa forma, em um abandono da região. Então, é ai que se coloca um mote que viria perenizar-se no campo da música popular paraense: a fomentação de uma demanda de fortalecimento da identidade regional em confrontação às premissas instituídas pelo Estado nacional brasileiro para a região naquele contexto. Essa leitura é corroborada por uma rápida vista sobre o cancioneiro produzido naquela conjuntura. A produção musical da época estava assentada sobre uma situação social dada pelo momento. Era ela, portanto, resultado da prática de leitura dos artistas locais sobre a realidade amazônica que a eles se apresentava. Nesse sentido, é defensável a ideia de que as formas como esses artistas se relacionavam, entre si e com a cidade, é resultado das suas experiências socioculturais efetivadas nesse cenário. O marco de término da pesquisa é o final dos anos 1980 e início da década seguinte. Isso se justifica porque ai que se processaram mudanças fundamentais nas atividades musicais em Belém do Pará que foram geradoras de tensão entre o local e o translocal - assim como em outros locais do Brasil – dadas pelo processo de globalização. Assim, variadas práticas tangenciaram as relações no meio musical local, pressuposição corroborada, inclusive, por alguns relatos e opiniões coletadas nas entrevistas já realizadas. É a partir desse momento que o campo da música popular em Belém do Pará passa a uma nova conjuntura. Esse fator repercute tanto no que diz respeito à produção de música – seja no âmbito estético e/ou temático - como na forma pela qual essas produções passaram a ser trabalhadas pelos meios de comunicação. As formas de veiculação (gravações, festivais, etc.) e de utilização – por uma política de Estado, inclusive - acabaram por dar à canção popular local nesse contexto o caráter de elemento constitutivo uma identidade regional. Nesse sentido, cabe lidar com as perspectivas de Ruben Oliven (1992) e Renato Ortiz (2005) acerca da questão do regionalismo frente ao Estado nacional. Estes autores propõem que o debate sobre a identidade regional está relacionado às questões de ordem político-ideológicas que orbitam em torno da idéia de construção de uma identidade brasileira. Assim, pelo campo da música – mas não apenas por esta via 9 - é que, em grande medida, se forjou uma trilha para o escoamento da idéia de uma identidade regional paraensista, o que se exasperou mais ainda com a situação de redefinição das fronteiras ideológico – culturais. Então, como produto que legitima a marca simbólica de uma “regionalidade” como “quididade”, a canção popular paraense - e as relações de sociabilidade por ela forjadas com o objetivo de ser uma prática de comunicação do local com o nacional, da periferia com o centro 10 - estava imersa nesse contexto de redefinição. Neste texto, como se trata aqui de apresentar elementos de uma pesquisa que ainda está em curso, procurei construí-lo em partes que contenham informações sobre o aporte teórico e o material que já foi levantado, visando relacioná-lo às escolhas teóricas com a intenção de uma apresentação sintética. Assim, o primeiro momento é destinado a lidar com os temas cena musical e Antropologia Urbana imbricados com o uso instrumental de uma etnografia histórica. Na segunda parte demonstro as possibilidades procedimentais, materiais e os elementos preliminares da pesquisa. 1. Antropologia, cidade e cena musical: notas sobre a teoria e a pesquisa A grande cidade é o local por excelência da ocorrência de trocas de informações e o lugar onde se efetivam variadas formas de comunicação entre os diferentes grupos sociais que no seu interior estão localizados. Tomando esse argumento para lidar especificamente com um grupo social - a categoria musical 9 Segundo o sociólogo Fabio Fonseca de Castro (2011), a cultura popular paraense contemporânea é resultado de uma intersubjetividade – a experiência estética como experiência social - dos artistas locais que se conformou como uma reação às políticas imposta pelo Estado brasileiro para a inserção da região amazônica. Assim, os artistas locais buscaram em suas produções reagir a esta situação, o que se pode ler, segundo Castro, nas várias maneiras de utilização das artes na construção de uma identidade regional como processo social. Essa reação, então, se efetivou pela utilização do discurso de uma identidade regionalista “como o produto de uma memória social fundada na sobrevivência de uma experiência social híbrida” (CASTRO, 2011, p. 321). 10 O conceito referencial “centro-periferia” é oriundo dos estudos do âmbito da economia política. O termo “centro” pode ser usado em seu sentido geográfico, mas também no sentido metafórico (BURKE, 2002). Como no Brasil se processou um acúmulo demográfico na região Sudeste, esta passou a ser definidora do estado político, econômico e cultural do restante do Brasil, ainda que a capital federal, Brasília, se situe no “centro” geográfico do território. Aqui a construção “centroperiferia”, portanto, atende a premissa geográfico-cultural, concomitantemente. 11 - o meu interesse em fazer essa pesquisa é perquirir a cidade como experiência histórica nos discursos sobre ela construídos pelos atores sociais tornando-a portadora de sentidos (ECKERT; ROCHA, s/d). Essa afirmação serve de justificativa do porque é profícuo analisar as práticas socioculturais no interior do campo da música popular em sua relação com as experiências sociais no espaço urbano de Belém do Pará. Entendo que é recorrendo à leitura dessas práticas que se pode fazer um levantamento das movimentações e das ações – individuais e coletivas - como organizadoras da vida cotidiana da cena musical. Portanto, acredito que estudar as relações de sociabilidade, troca e compromisso ensejadas pela música popular na cidade de Belém do Pará é uma investigação que possibilita, a partir de uma etnografia das relações e das práticas culturais citadinas, entender e caracterizar tais relações. A questão das práticas socioculturais efetivadas no espaço urbano é uma temática que envolve questões de ordem objetiva e subjetiva em confrontação num processo de interação (SIMMEL, 2005). Destarte, como já foi dito, para a realização da pesquisa utilizo o conceito de “cena musical” para a abordagem do contexto sociocultural da canção popular em Belém do Pará porque esse conceito se mostra operacionalmente pertinente, haja vista que se encontra embutido no seu interior uma perspectiva de totalidade que permite lidar com a amplitude contida na proposta da pesquisa. Mas, vejamos alguns pormenores. Ainda que seja um termo que remete a sua utilização iniciada pelo meio jornalístico estadunidense dos anos 1940 para lidar com o campo musical do jazz (BENNETT; PETERSON, 2004), a noção de “cena musical”, tal como é utilizada no âmbito acadêmico, é resultado de uma articulação dos conceitos de campo, de Pierre Bourdieu, de lógica social das mercadorias culturais, de Bernard Miège, e da noção de práticas cotidianas de Michel De Certeau. Estes conceitos foram 11 Uso o termo “categoria musical” por entender que este atende a proposta de classificação de um tipo de grupo social. Ainda que os agentes em questão ocupem uma mesma região e partilhem, de certa forma, uma cultura comum, opto por não submetê-los à noção de “comunidade musical” porque, sob a perspectiva teórica de Will Straw, comunidade conflita com a noção de “cena musical”, haja vista que uma “comunidade musical” pressupõe a existência de um grupo com relativa estabilidade, cujos componentes necessariamente se conhecem, num processo contínuo de exploração da música. Já “cena musical” remete à existência coetânea de trajetórias variantes e mutáveis que ocupam um mesmo espaço cultural no qual diversas práticas musicais coexistiam. Contudo, cabe destacar que é sob esse ponto que incide grande parte das críticas à construção teórica de Straw. sistematizados por Will Straw no texto Systems of articulation, logics of change: communitie and scenes in popular music, publicado em 1991. O objetivo de Straw era mostrar que essa noção podia ser um modo diferencial de se lidar com a circulação de música em contextos urbanos (JANOTTI JR, 2012). Assim, seguindo Straw, me aproprio da noção de cena musical como a ferramenta interpretativa que possibilita um exame da relação dos atores sociais com os espaços culturais da cidade e com a própria cidade. E, também, procedo a uma leitura de como o local se relaciona com a música que nele se produz e por onde ela circula, haja vista que local interfere na produção de música, pois “[o] conteúdo físico de um lugar é importante para a compreensão dos padrões de atividade das pessoas e das interconexões e modificações entre estas e os lugares que elas ocupam e modificam” (CARNEY, 2007, p. 126). Tomando a cidade de Belém do Pará como um lugar – portanto, portadora de atributos físicos e culturais específicos -, é premente a realização de uma cartografia do espaço social da canção popular – mapeamento dos bares, casas de shows, teatros, dos locais de produção, de apresentação e reunião musical, das práticas de boêmia e das relações de sociabilidade múltiplas e transitórias em suas diversas motivações. Este é um elemento a mais que possibilita entender as interações, as redes sociais que se estabeleceram no espaço urbano da cidade. O procedimento é construir descrições detalhadas que remontem à forma dos prédios, seja pelos enunciados ou mesmo por uma leitura de registros imagéticos. Assim, essa proposta de cartografia dos espaços de música da cidade é para tornar mais compreensível as atividades musicais decorridas em determinados “lugares de canção”, da cadeia de práticas musicais. Considerando as circunstâncias e conjunturas dadas pelo processo histórico, o que se propõe é percorrer Belém do Pará como um lugar onde se pretende verificar os espaços intersticiais (NADEL, 2010) existentes no meio musical da sua estrutura social. O conceito de espaços intersticiais refere-se às “relações interpessoais entre os seres humanos que formam a sociedade e, também, as interações e comunicações cotidianas por meio das quais instituições, associações e maquinarias legais operam” (NADEL, 2010, p. 492). Ainda, Nadel assevera que o real objeto do antropólogo é ver os pormenores da estrutura social (NADEL, 2010). Ao adotar um evento sociocultural como a “Feira Pixinguinha” como baliza inicial do período proposto para o estudo não quero atribuir apenas a esse evento a gênese da constituição da cena musical da canção popular em Belém do Pará. Isso porque o surgimento de uma cena não é resultado de – apenas isso - ações intencionais que visem a sua constituição. A cena musical é, também, resultante da ocorrência de outras lógicas, inclusive de ações atinentes à produção e ao consumo (STHAL, 2004). Quando proponho iniciar a pesquisa pelo evento apontado, isso se justificativa, tão somente, por vê-lo como um marco referencial no processo de incorporação da produção musical local ao cenário nacional, o que reverberou de distintas formas no cenário local à época. Assim, a meu ver, lendo-a através de lentes sócio-antropológicas, a “Feira Pixinguinha” era parte de uma política de integração cultural portadora de um ideal missionário, cujo objetivo era a incorporação de uma parcela da cena musical regional ao circuito nacional da música popular brasileira moderna. Contudo, essa mostra musical, quando favorece a reunião dos atores sociais componentes do campo musical belemense, acaba por forjar uma perspectiva comum para o estabelecimento de uma prática musical local mais abalizada. A noção de “ator social” é aqui utilizada tal como propõe a “teoria da ação” 12: uma pessoa ou grupo que toma parte de alguma forma do campo social, sendo possuidor de um projeto. De certa forma, o “ator social” é aquele que controla algum recurso que seja relevante no jogo social. Na “teoria da ação” interessa desenvolver o estudo a partir do comportamento concreto dos indivíduos, o que enseja uma observação e uma reconstrução das situações vividas pelos atores sociais, ainda que as conjunturas destas ações se apresentem sob condições estruturadas (FELDMAN-BIANCO, 2010). Contudo, a análise das representações se configura como um complemento da teoria da ação, haja vista que o primordial é que haja uma interseção entre a perspectiva microssociológica e a interpretação, o que já havia sido apontado pelo 12Teoria da ação é um posicionamento epistemológico que se diferencia da mera análise das representações das informações que já foram processadas pelos interlocutores. Malinowski, em Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de 1922, já alertava para a distinção que o pesquisador deve fazer entre “o que as pessoas fazem” (atores sociais) e “o que as pessoas dizem” (informantes). O termo Teoria da ação foi proposto por Abner P. Cohen, em O homem bidimensional, 1974 (FELDMANBIANCO, 2010). Contudo, originalmente o desenvolvimento desta teoria está ligado ao conceito de Verstehen (“compreensão”), proposto por Max Weber em “Economia e Sociedade”. Para o sociólogo alemão, só pode haver compreensão do que as pessoas fazem se tivermos uma idéia de como elas, de forma subjetiva, interpretam seu próprio comportamento (CIARALO, 2004). antropólogo Clifford Geertz. Assim, é preciso salientar que a separação entre análise da “ação” e da “representação” é uma construção artificial que se mostra inócua na execução do trabalho antropológico (FELDMAN-BIANCO, 2010). É a partir dessas premissas que se pretende garantir um exame da interconexão entre os atores sociais e os espaços culturais da cidade. Como se pretende um estudo das relações de sociabilidade é forçoso que se faça referência ao elemento formador da teia de relações sociais, o indivíduo e da possibilidade de estabelecimento de “projetos” individuais de trajetória dentro do campo abordado. Louis Dumont (1985) já havia detectado que a categoria indivíduo é dominante no Ocidente desde o século dezessete. Essa idéia tem a ver com a noção de que o indivíduo escolhe ou pode escolher. Assim, a noção de indivíduo fornece duas possibilidades de leitura: ser um dado da natureza, e assim haveria a possibilidade da existência de projetos individuais; e a de ser um produto cultural, o que levaria a uma relativização da noção de “projeto” (VELHO, 2008). Portanto, a noção de indivíduo está associada à noção de projeto. Valendo-se das reflexões de Alfred Schutz, Velho (1994) propõe seu construto teórico sobre a noção de “projeto”: trata-se de alguma ação que tenha um objetivo predeterminado, constituído em função de experiências socioculturais e interações, e que é formulado dentro de um campo de possibilidades, circunscrito e historicamente determinado. Sendo assim, o “projeto” é uma dimensão da cultura, sua expressão simbólica, de maneira que alguns indivíduos têm mais possibilidades de divulgar suas idéias devido à posição que ocupam no campo social. Ainda segundo Velho, “na abordagem fenomenológica de Schutz e no interacionismo de Simmel enfatiza-se a distinção e a autonomia de diferentes mundos e “províncias de significado”, níveis e dimensões do real” (VELHO, 1994, 22). Assim, os projetos são elaborados no interior de um campo de significados, no qual as experiências são interpretadas. Ou seja, os campos de possibilidades são espaços para formulação e implementação de projetos. A intenção, ao usar essa perspectiva de projetos para relacionar os indivíduos circunscritos ao campo musical belemense dos anos 1980 se deve ao fato de que o contexto influenciou nas trajetórias de vida dos músicos, pois no interior da “cena” pretendida para estudo, ocorreu a reunião de indivíduos com o propósito de estabelecimento de projetos coletivos distintos. Acatando a assertiva de que numa sociedade complexa as trajetórias individuais são afetadas por uma infinidade de dimensões (VELHO, 2008), podese interpretar sob esse prisma a fala do cantor e compositor Mário Moraes quando diz que “nos anos 1980 havia um interesse maior do nosso grupo [do qual era integrante] em fazer a nossa música, [pois] estávamos imbuídos da perspectiva de constituição de uma música regional de maneira que quase não ouvíamos outros tipos de música, como o rock, por exemplo, apesar de [que havia] pessoas do meio musical naquela época tinham esse material”.13 Então, a noção de projeto de Gilberto Velho bem atende quando solicitada para subsidiar a análise: os projetos são elaborados e constituídos em função de experiências socioculturais e estão em relação aos círculos culturais em que o agente se inclui ou participa (VELHO, 2008). Ainda usando o relato, embora houvesse a possibilidade de acesso a “outros tipos” de música, isso era renunciado por uma parcela do conjunto, cujo “projeto” era fazer uma música que atendesse aos seus próprios anseios. Assim, proponho que é nesse contexto que se intenta a afirmação de “grupos de interesse” no interior do conjunto mais amplo do campo musical. E, certamente, nas relações e práticas sociais no interior da cena canção popular a questão do propósito de uma produção musical ancorada na perspectiva do regionalismo musical era basilar. 2. Delineamento metodológico e material para a pesquisa Para a construção do campo a ser pesquisado utilizo o argumento de Pierre Bourdieu. Segundo o sociólogo francês, é o pesquisador que define o seu tema de pesquisa e, na senda dessa definição, o problema da pesquisa se conforma a partir da teoria e não da realidade social empírica, haja vista que esta só tem sentido ao fornecer os dados em sua forma abstrata (BOURDIEU, 1974). Assim, os dados fornecidos pela realidade devem ser submetidos a uma discussão com a teoria. Baseado nesta argumentação para delimitar o tema que estou pesquisando, a seguir exponho um apanhado teórico que serve como estrado metodológico para a realização da pesquisa. 13Relato informal concedido para mim pelo músico. Sobre esta forma de obtenção de dados há uma explanação mais esclarecedora no tópico sobre o esboço metodológico do trabalho. Estudar a cena musical pretérita pelo instrumental da antropologia requer especificações em prol do clareamento do procedimento metodológico. Isso porque se trata, efetivamente, de um trabalho que remete a temas e conceitos que estão em região de fronteira entre disciplinas. Assim, o primeiro ponto a ser desvelado é sobre a prática de obtenção de dados informativos a partir do uso de uma etnografia histórica. Se a etnografia é baseada na pesquisa de campo, o “campo de atividade” circunscrito para análise pode ser definido assim: uma conjunção de informações que se encontram em “arquivos físicos”– redutos de documentos escritos e audiovisuais - e “arquivos mentais”- ou seja, relatos memorialísticos de atores selecionados para a pesquisa. Acerca da primeira possibilidade informativa, por se tratar de um trabalho que trilha numa perspectiva antropológico-histórica citada acima, cujo objetivo é verificar um recorte de um contexto social pretérito em seus processos de interação, é importante ressaltar o aporte teórico que subsidia esta perspectiva teórico metodológica. Neste sentido, ainda que seja uma discussão bastante densa sobre a questão 14, tomo como basilar a perspectiva teórica do antropólogo estadunidense Marshall Sahlins. Sobre a relação entre história e cultura, Sahlins defende que o passado é ele próprio uma alteridade cultural, de maneira que os eventos que ocorrem em determinadas sociedades são ordenados pela cultura dessas formações sociais. Consequentemente, a cultura é reordenada nesse processo, o que ele denomina de “estrutura da conjuntura” – ou seja, a forma como as culturas reagem a um evento, fazendo o contexto dialogar com estruturas anteriores (SCHWARCZ, 2005). É sobre essa premissa básica que Sahlins assenta sua pretensão de conjugar cultura e história com o objetivo de mostrar a importância do passado na investigação antropológica. Assim, a questão “de que maneira a antropologia pode contribuir positivamente para o estudo da história [e] como, por outro lado, o estudo da história pode enriquecer a antropologia?” (FREHSE, 2008, p. 9) é indispensável ao trabalho ora proposto. Sobre a possibilidade de utilização da etnografia no arquivo como campo (FREHSE, 2005; CUNHA, 2005; COSTA, 2010), um objetivo é que os dados 14Sobre a relação entre Antropologia e História, ver importante análise em: SCHWARCZ (2005). documentais ali contidos pudessem ajudar a formatar, de antemão, um traçado que delimitasse os parâmetros da pesquisa – a construção de uma visão de conjunto do campo sociocultural a ser estudado. Esse procedimento possibilita a consecução dos contatos preliminares com os componentes da cena a ser pesquisada, bem como da “estrutura física pretérita” do campo – a cidade em seu conjunto, as transformações, o circuito de bares, casas de shows, enfim, dos espaços de música da/na cidade. Aqui cabe uma argumentação a mais no sentido de esclarecer essa questão do trabalho no arquivo. Ao considerar o arquivo como campo deve-se levar em conta a existência de especificidades que requerem que as atividades de pesquisa sejam efetivadas de maneira peculiar, distinta daquelas que se processam no campo “tradicional”, da proposta malinowskiana do contato direto do pesquisador com os sujeitos estudados (FREHSE, 2005). Isso porque várias interferências externas ocorrem no trabalho no campo-arquivo (horário de funcionamento, forma como está organizado o material, entre outros). Dessa maneira, a propósito dos “arquivos físicos” elencados para a coleta de material informativo, o primeiro a ser sondado e sobre ele já realizado um levantamento prévio do potencial informativo foi o Setor de Jornais da Biblioteca Pública “Arthur Vianna”, instalada no Centro Cultural Tancredo Neves, o CENTUR. Assim, a primeira investida incidiu sobre os jornais que ali se encontram disponíveis para a consulta, haja vista que os “textos de jornais podem ser entendidos como produção cultural, prenhe de valores e do repertório simbólico da sua época” (FREHSE, 2005, p. 23). Em outras palavras, o texto jornalístico localizado no arquivo é portador de idiossincrasias do contexto mesmo no qual foi escrito – formas de expressão escrita, apelo emotivo expresso na construção textual, etc. Assim, os textos dos jornais se adaptam como informantes15 de grande importância, pois possibilitam detectar as nuances e detalhes que expõe os sentidos dos eventos, os 15 A idéia aqui é trabalhar com a proposta de Fraya Frehse de que os informantes são uma construção do antropólogo, cujo subsídio retira de Malinowski se valendo da utilização deste das “perguntas insidiosas” nas pesquisas com os nativos da ilha Kiriwina, Nova Guiné, para o detalhamento da vida tribal, informações que ele poderia checar pela observação posteriormente. Assim, o informante não é tido apenas um repositório de dados que se encontram prontos para utilização do pesquisador, mas como um construto do pesquisador, cujas informações podem ser cruzadas com outras formas de obtenção de informação. Ainda segundo a antropóloga, quando o campo é o arquivo, é preciso uma detida reflexão sobre como construir o informante, como este pode ser definido pelo antropólogo como tal, pois é nesse ponto que reside “um indício da complexidade antropológica” no trabalho de pesquisa no arquivo (FREHSE, 2005, p. 138). significados das dinâmicas socioculturais da cena musical observada. Como um arquivo institucional – é gerido pela Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Pará -, portanto, portador de um poder que lhe fora instituído socialmente tornando-o detentor do poder da sociedade sobre a memória do futuro (LE GOFF, 2003) o arquivo acima tratado possui um coleção de jornais do período recortado para a pesquisa. A seguir, apresento os que atendem ao interesse da pesquisa. Primeiro, o jornal “O Estado do Pará”, cujas edições cobrem o ano de 1980, de janeiro a dezembro, é o que interessa para a pesquisa. O segundo jornal utilizado é “A Província do Pará”, que se encontra disponível dos anos de 1982 a 1986. Disponível em microfilme, o terceiro jornal é “O Liberal”. As edições desse periódico disponíveis que interessam para a pesquisa se estendem de 1980 a 1990. Assim, por se pretender estudar as transformações e comportamentos ao longo do tempo, o estudo desse tipo de material localizados nos arquivos é especialmente importante, ressaltando, entretanto, a possibilidade de lê-los como componentes de uma rede de compromissos. Outro importante reduto constituído de documentos é o acervo da “Coleção Vicente Salles” 16, que reúne mais de 70.000 recortes de jornais e revistas que tratam do assunto música e que atualmente está sob a guarda do Museu da Universidade Federal do Pará. Sobre o período que abarca a pesquisa há um elevado número de material potencialmente informativo, além de discos em vinil e CDs e fitas K-7. Por fim, dois outros acervos são importantes para a pesquisa porque contêm material audiovisual que pretendo utilizar para recolher informações. Um é o acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS-PA), órgão também subordinado à Secretaria Executiva de Cultura do Estado do Pará. Nele estão registros de shows de festivais e projetos capitaneados pelo poder público estadual como elementos de fomentação da política cultural do Estado para a cultura local, como registros de festivais e projetos culturais. O outro é o arquivo da Rede Cultura de Rádio e Televisão, órgão da Fundação de Telecomunicações do Pará – FUNTELPA17. 16 Este acervo é resultado do material que foi coligido durante vários anos pelo historiador, pesquisador, folclorista e musicólogo paraense Vicente Salles (1931-2013) e que por ele foi doado para a Universidade Federal do Pará. 17 Contudo, devido a questões de ordem burocrática, sobre o material contido nesses lugares foi realizado apenas um levantamento mais geral. O segundo passo é verificar e coletar sistematicamente o material ali contido. Mais um recurso para levantamento de dados para a pesquisa é a recolha de informações a partir da história oral. Por entender que todo indivíduo vive uma biografia dentro de uma seqüência histórica (ALBERTI, 2005), ainda que as ações praticadas no plano individual não necessariamente exerçam uma influência que determine o curso de determinados fatos numa sociedade, de certa forma essas ações acabam por contribuir para a configuração final do campo social no qual o sujeito está inserido. Assim, essa “vivência individual” é constituída e constituinte da sociedade no seu processo histórico. Tomando essa assertiva como embasamento é que considero a perspectiva de que é preciso atrelar a biografia do indivíduo, como um componente informativo e analítico da pesquisa, ao contexto histórico-social mais amplo. Assim, sigo a perspectiva de estabelecer interligações, interconexões entre os atores sociais com o intuito de ver cada situação como portadora de interesses particulares – interesses esses que podem ter se espraiado e instituído conflitos e/ou ações interativas no grupo estudado. Como meio de se trabalhar com a memória, a história oral, o que aqui neste trabalho se coloca como uma conseqüência lógica do levantamento das informações do arquivo, é o recurso aqui utilizado. Assim, os relatos orais se impõem como um meio fundamental para a obtenção de informações a serem trabalhadas. Isso porque, como um método qualitativo de análise que ocupa um lugar proeminente no campo de pesquisa das ciências sociais (DEBERT, 1988), a história oral se afirma como uma possibilidade de que se possa incorporar à “história oficial” o ponto de vista de agentes diretos sobre os acontecimentos (THOMPSON, 1992), possibilitando o “acesso a histórias dentro da História” (ALBERTI, 2005, p. 155). É subsidiado pelos relatos da experiência concreta das vivências dos indivíduos que nos pautaremos para a formulação das perspectivas sobre as quais embasamos as nossas conjeturas, tomando o cuidado de não proceder a uma violência que possa estar incutida no procedimento, pois isso pode implicar na “imposição, aos interlocutores, de categorias que não lhe dizem respeito” (DEBERT, 1988, p. 142). Assim, a entrevista é usada como ação interativa, no sentido de que pesquisador e interlocutor estabelecem uma relação. Contudo, tomando cuidado para não tornar essa relação, como diz Thompson (1992), em uma mera conversação, descartando ou escamoteando possíveis conflitos, o que é inerente ao jogo de memórias. Nesse sentido, Viveiros de Castro (2002), assevera que a entrevista, ela em si, já é uma relação social portadora de idiossincrasias que se refletem na produção do conhecimento antropológico, pois é na relação que se “constituem reciprocamente o sujeito que conhece e o sujeito que ele conhece, e isso é a causa de uma transformação na constituição relacional de ambos" (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 113). Então, a partir da entrevista como fonte informativa, o objetivo fundamental é proceder a uma descrição analítica do significado do que é relatado. Ainda que não tenham ocorrido por meio de uma recolha de dados informativos de maneira “formal” – o que entendo como sendo o registro da entrevista por meio da gravação em áudio -, alguns pontos iniciais da pesquisa me foram fornecidos de maneira sucinta em contatos curtos com pessoas elencadas para a pesquisa. Tais informações serviram para formatar questões a serem levantadas para posterior tratamento na entrevista. Isso se mostrou de grande valia porque possibilitou delimitar os assuntos para serem trabalhados mais pormenorizadamente. Todavia, ao cotejá-las, algumas informações se mostraram portadoras de imprecisão e/ou contradição, o que dá o ensejo para que sejam problematizadas. Essa forma de obtenção de dados se deve ao fato de que acompanho a cena atual da música popular em Belém do Pará. Neste campo, vários músicos, jornalistas, artistas, produtores e outros profissionais que eram atuantes no período que abarca a pesquisa, ainda estão atuando, tocando, produzindo, compondo. É essa forma de inserção no campo que possibilita o contato com os agentes no cenário atual e a consecução de informações. Completando o quadro de potenciais e efetivos dados informativos, recorrerse-á às fontes iconográficas. Toma-se por essa definição aqui, especificamente, a imagem fotográfica. Por se tratar de um campo de exposição, há uma quantidade considerável de registros fotográficos que são fontes informativas passíveis de tratamento descritivo-interpretativo, haja vista que se trata produtos resultados de uma construção social e cultural. Todavia, a imagem fotográfica pode fornecer dados para a reflexão e interpretação sobre mudanças. Uma possibilidade de uso antropológico das imagens fotográficas no trabalho está na “fotoetnografia”, termo criado pelo antropólogo Luis Eduardo Achutti (1997), que pode ser definido como a utilização da imagem como instrumento narrativo-etnográfico, ou seja, como um apontamento imagético que traz consigo dados culturais numa perspectiva etnográfica. Entendendo que o discurso antropológico é representacional, logo, passível de interpretações variadas, cabe ressaltar que a utilização de imagens como recurso informativo é, também ela, eivada de implicações, pois “toda e qualquer fotografia é um olhar sobre o mundo, levado pela intencionalidade de uma pessoa, que destina sua mensagem visível a outro olhar, procurando dar significação a este mundo” (SEMAIN, apud. ACHUTTI, 1997, p. 36). Ainda que seja uma unidade selecionada, a imagem fotográfica como memória é um instrumento valioso para se obter informação a partir da sua observação (COLLIER, 1973). Portanto, reiterando a perspectiva da estratégia a ser utilizada para a obtenção de dados, as informações colhidas, a fim de estabelecer o cenário etnográfico, serão complementadas por outras fontes. Os recursos informativos obtidos no campo serão, então, tratados com sob uma das finalidades da antropologia, ou seja, fazer “interpretações mais amplas e análises mais abstratas a partir de um conhecimento muito extensivo de assuntos extremamente pequenos” (GEERTZ, 1978, p.31) a partir do referencial teórico aplicado. Assim, a partir da observação microscópica de como se constituem relações de sociabilidade específicas em um determinado campo, a análise pode estar orientada pelo posicionamento teórico aqui adotado, mas não determinada por este, haja vista que as relações sociais não existem como algo concreto, mas apenas quando “fazem parte de um modelo pelo qual tentamos o máximo de aproximação possível à realidade empírica em todas as suas particularidades relevantes, e não em alguma idéia que exista na mente de alguém” (BARNES, 2010. p.178). Um estudo que pretende abranger pela etnografia um período bastante dilatado e que se pauta pela intercessão disciplinar, o que é o caso aqui, é portador de necessidades. Todavia, creio que a conjunção da etnografia com a história em seus aspectos teóricos e procedimentais pode ser aplicada para o estudo da cena musical belemense do tempo presente (entendo isto como sendo o período proposto para a pesquisa). Como se trata de apontamentos de uma investigação em curso, alguns motes têm posição provisória e, evidentemente, são passíveis de mudança e/ou adequações. Contudo, os direcionamentos mais elementares da pesquisa são esses anteriormente expostos. Referências bibliográficas ACHUTTI, L. E. R. Fotoetnografia: um estudo de antropologia visual sobre cotidiano, lixo e trabalho. Porto Alegre: Tomo Editorial: Palmarinca, 1997. ALBERTI, Verena. ‘“Histórias dentro da História”. IN: PINSKY, Carla Bassanezy (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. BARBOSA, Mário Médice. 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