IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de

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IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de
IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e
Nordeste. 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE.
Grupo de Trabalho: Antropologia das práticas musicais
A música e a cidade: práticas sociais e culturais na cena da canção popular de
Belém do Pará (1980 - 1990)
Nélio Ribeiro Moreira
[email protected]
Mestrando em Ciências Sociais - Antropologia/PPGCS/UFPA
A música e a cidade: práticas sociais e culturais na cena da canção
popular de Belém do Pará (1980 - 1990)
Nélio Ribeiro Moreira
[email protected]
Mestrando em Ciências Sociais - Antropologia/PPGCS/UFPA
Resumo
Percorrer a cidade de Belém do Pará em seu campo musical, como experiência
histórica, e os discursos construídos sobre esse cenário é o que pretende o
trabalho de investigação que se encontra em desenvolvimento e do qual apresento,
neste texto, um incipiente e sucinto debate teórico e metodológico, bem como
elementos do material já levantado. A proposta contida no projeto é proceder ao
acompanhamento do desenvolvimento das relações de sociabilidade no meio
musical belemense e fazer uma cartografia do que chamo de “lugares da canção” na
cidade – bares, casas de show, teatros. O subsídio teórico da pesquisa se encontra
nos conceitos de cena musical (STRAW; STHAL) e rede social (BOISSEVAIN;
BARNES). A partir das possibilidades informativas (jornais, relatos orais, fotografias)
coligidas e submetidas a análise por uma etnografia histórica (SAHLINS; FREHSE),
a discussão se dará em torno das práticas sociais e culturais realizadas no ambiente
da cidade num recorte temporal que abarca o decurso da década de 1980.
Palavras-chave: Cena musical; canção popular; Belém do Pará; etnografia histórica.
Introdução
Neste
texto
exponho
o
embasamento
teórico,
as
possibilidades
metodológicas e uma curta discussão sobre os materiais, elementos estes que
compõem o trabalho que estou desenvolvendo 1 acerca das práticas socioculturais e
das relações de sociabilidade no campo da música popular na cidade de Belém do
Pará no decurso da década de 1980.
1
Trata-se da pesquisa de mestrado intitulado “A música e a cidade: práticas sociais e culturais na
cena da canção popular de Belém do Pará (1980 - 1990)”, pesquisa que está em curso no Programa
de Pós Graduação em Ciências Sociais/Antropologia - Linha de Pesquisa: Populações Amazônicas:
ideias e práticas sociais, na Universidade Federal do Pará sob a orientação do Profº. Drº. Antonio
Maurício Dias da Costa.
O objetivo é reconstruir a cena da canção popular
2
paraense em sua
dimensão pretérita na perspectiva analítica de uma etnografia histórica. Assim,
recorro a meios informativos como relatos de memória de interlocutores que
vivenciaram o período (muitos dos quais são ainda atuantes no cenário musical
local contemporâneo) e a um repertório de pesquisa formado por material escrito e
iconográfico.
Para a pesquisa utilizo, fundamentalmente, como categoria analítica, a
noção de “cena musical” por entender que este conceito sustenta a forma como
pretendo trabalhar o tema, haja vista que se trata de uma abordagem global, no
sentido de que envolve várias questões que estão ligadas ao tema. De antemão,
para fins de esclarecimentos de questões atinentes ao estudo, cabe destacar duas
características basilares da noção de cena que subsidiam a opção por mim adotada.
A primeira é que uma “cena musical” é caracterizada por redes de sociabilidade
que ocorrem na cidade – portanto, trata-se de algo específico do contexto cultural
urbano.
A segunda justificativa está no fato de que ela possibilita a apreensão
de vários pontos que compõem as relações sociais, bem como as várias formas
de circulação das atividades musical, de produção e de consumo desse produto
(JANOTTI JR, 2012). Essa perspectiva de abordagem subsidia o que pretende
a pesquisa: verificar como se formaram as redes de sociabilidade, os pontos de
contato de práticas socioculturais em Belém do Pará no campo da música popular.
A idéia central do trabalho é demonstrar a relação entre o contexto histórico
sociocultural e os arranjos criativos, as táticas (DE CERTEAU, 1994) praticadas e as
seleções estéticas e ideológicas que ampararam a produção musical belemense do
período. É dessa forma que sustento a perspectiva de abordagem que almejo traçar
no trabalho: verificar como se formaram as redes, os pontos de contato de práticas
culturais na cidade, as relações de sociabilidade e os vínculos de trocas artísticas
e de compromisso no meio musical. Concomitante a isso, é interesse da pesquisa
2O
trabalho trata especificamente de um gênero de música popular, que é a canção. Essa pode
ser definida, rudemente, como a somatória de música e uma letra com recursos poéticos. Contudo,
mais sofisticada é a definição dada pela historiadora Mariana Villaça. Para ela, a canção é um
intricado conjunto formado pelos elementos estritamente musicais (como harmonia, ritmo, melodia,
arranjo, instrumentação) somados a outros elementos de ordem formal (interpretação e a imagem
do intérprete, a performance, os recursos sonoros utilizados na gravação) mais a letra da canção e
toda sua complexidade estrutural. Assim, na cultura musical brasileira a canção popular é elemento
de destaque, pois se trata de uma referência cultural bastante presente no cotidiano, atuando como
“construtora e veiculadora de representações sociais” (VILLAÇA, 1999, 330).
a feitura de uma cartografia dos “lugares de canção” na cidade de Belém do Pará,
haja vista que a música, assim como as outras modalidades de arte, depende da
disponibilidade de lugares para ser realizada (BECKER, 2004).
O período estabelecido para ser estudado tem sua justificativa em dois
motivos. Primeiro, aventa-se a possibilidade de que no ano de 1980, no mês
de janeiro, com a realização da “Feira Pixinguinha” em Belém do Pará, ocorre
uma movimentação no meio musical local que possibilitou o surgimento de uma
perspectiva de ajuntamento.3 Esse momento acabou por fazer eco e veio se tornar
um motivador para práticas musicais posteriores.
Ainda que a ocorrência desse evento não possa ser tomada como um fator
determinante para o estabelecimento de uma música paraense, idéia que de fato
tem sua origem em anos anteriores,
4
certamente foi um evento fundador de outro
momento na trajetória da canção popular paraense.
O que legitima o uso da mostra “Feira Pixinguinha”
5
como limite
demarcatório para o início da pesquisa é, tão somente, a idéia de tomá-lo como
marco temporal e espacial que deu ensejo a experiências sociais assumidas pelos
participantes.
Referenda essa perspectiva analítica o material documental que foi
levantado preliminarmente, procedimento cujo objetivo era formatar um quadro
informativo para que eu pudesse delimitar os ângulos da pesquisa. Posteriormente,
no contato com os interlocutores - parte deles retirados a partir da recorrência de
3
Contudo, não se tratou da ocorrência de um movimento, termo que no seu sentido sociológico
se trata de um projeto coletivo que conta com programas e manifestos. Inspira essa assertiva a
leitura traçada por Santuza Cambraia Naves quando analisa a bossa nova e o movimento Tropicália.
(NAVES, 2001).
4
Segundo Tony Leão da Costa, a MPB de feições regionais, cuja origem rememora aos anos 1960
e 1970, propôs um discurso que legitimava o popular e as manifestações do povo como “alicerces
autênticos” sobre os quais seria erigida a “moderna música popular paraense” (COSTA, 2008). Para
a satisfação desse propósito, o carimbó foi a manifestação musical eleita como a matéria-prima sobre
a qual os artistas e mediadores culturais locais se lançaram numa perspectiva etnográfica com o
objetivo proceder a um levantamento, revisão e incorporação da cultura popular a fim de subsidiar
a modernização da tradição musical paraense. Essa atitude, além de legitimar a “originalidade”
na invenção da música paraense moderna, ou seja, enquanto moderna tradição (ORTIZ, 1988),
também contribui para que essa música fosse o meio pelo qual a região, pela sua produção musical,
ingressasse no debate nacional sobre a formação da “moderna música popular brasileira”.
5
A “Feira Pixinguinha” foi um evento musical idealizado pelo músico Maurício Tapajós. Era atrelado
ao “Projeto Pixinguinha”, este organizado pela Sociedade Musical Brasileira – SOMBRAS – e pela
Funarte. Inspirado na série de shows “Seis e Meia”, que ocorria no Teatro João Caetano, na cidade
do Rio de Janeiro, com espetáculos às 18h30 e ingressos a preços populares, o “Projeto Pixinguinha”
tem seu início em 1977. O objetivo era percorrer várias regiões do Brasil com espetáculos de grandes
nomes da música popular brasileira em shows que fossem acessíveis às camadas populares.
seus nomes na imprensa no período -, que por sua vez me “indicaram” outros, esse
evento veio à tona no mar memorial e, assim, pude explorá-lo com mais acuidade.
Esse contato proporcionou, inclusive, consulta a acervos particulares mantidos por
essas pessoas. Assim justifico que a ocorrência da “Feira Pixinguinha” possa ser
utilizada e apresentada como marco inicial para a execução da pesquisa: trata-se
de um tópico recorrente e, portanto, importante no processo de constituição da cena
musical local nos idos anos 1980.
A segunda justificativa, esta de ordem conjuntural, está assentada no fato
de que o contexto do início dos anos de 1980 – o processo de abertura do regime
militar em curso desde o final da década anterior e a ainda recorrente idéia dos
procedimentos políticos que viam a região como uma área de “fronteira”
6
– teve
conseqüências no campo da música popular. É sob esta situação que tem começo
um processo de sistematização do campo musical local. Ainda que seguisse à
senda da tradição musical das décadas anteriores, esse novo momento da música
se encontrava mais estruturado em termos de agency
7
e, consequentemente,
sociação 8.
Integrada ao Brasil por uma “prática modernizadora centralista, autoritária
e com preocupante processo de descaracterização” (BARBOSA, 2010, p. 111),
a região Amazônica entrou na década de 1980 tendo suas perspectivas de
desenvolvimento frustradas. Isso gerou um agravamento para as questões de ordem
6
Entendendo fronteira como processo, e não apenas em termos de lugar. Nos termos do antropólogo
Ulf Hannerz (1997): fronteira é um espaço de troca, de interação, mas também de indefinição. Nesse
sentido, Hannerz nos dá como exemplo possuidor dessas características as cidades onde há grande
fluxo de imigrantes. Assim, fronteira acaba por remeter à idéia de descontinuidade. De outro lado,
Hannerz, agora na esteira de Frederik Barth, pensa a fronteira como processo cultural e não apenas
em sentido espacial, de maneira que ela acaba por configurar-se como algo volátil. Então, o que
encontramos é cultura somando-se a cultura, e não cultura sobrepondo-se à cultura, pois utilizar uma
definição nesta última formulação implicaria dizer que há uma cultura de cada lado.
7A
noção de agency aqui é tomada como um conceito que faz referência a ação dos indivíduos –
suas experiências pessoais - quando inseridos nos contextos sociais, aquilo a que Ortner (2006)
chamou de “jogos sérios”. Portanto, agency não é algo que se esgota em si mesmo, mas é um
componente de processos mais amplos que concorrem para a estruturação do campo social.
8Segundo
o sociólogo Georg Simmel, a sociação existe a partir do momento em que os indivíduos
interagem entre si, estabelecendo formas de cooperação e colaboração. Assim, quanto mais
interação existe no interior do mesmo grupo, mais ele se torna sociedade. Em suma, a sociação
é a forma pela qual os indivíduos formam uma unidade para satisfazerem seus interesses, de
maneira que forma e conteúdo são elementos inseparáveis na experiência concreta (SIMMEL, 2006).
Segundo Cecília McCallum, “[s]ocialidade é um estado momentâneo na vida social de um grupo,
definido pelo sentimento de bem-estar e pelo auto-reconhecimento como um grupo [...]”(McCALLUM,
1998, p. 4).
socioeconômica local. Dito de outra forma, a partir desse momento as políticas
econômicas do Estado interventor direcionadas para a região entram numa fase
de esgotamento, de maneira que as práticas desenvolvimentistas sustaram, o que
implicou, de certa forma, em um abandono da região. Então, é ai que se coloca um
mote que viria perenizar-se no campo da música popular paraense: a fomentação
de uma demanda de fortalecimento da identidade regional em confrontação às
premissas instituídas pelo Estado nacional brasileiro para a região naquele contexto.
Essa leitura é corroborada por uma rápida vista sobre o cancioneiro
produzido naquela conjuntura. A produção musical da época estava assentada
sobre uma situação social dada pelo momento. Era ela, portanto, resultado da
prática de leitura dos artistas locais sobre a realidade amazônica que a eles se
apresentava. Nesse sentido, é defensável a ideia de que as formas como esses
artistas se relacionavam, entre si e com a cidade, é resultado das suas experiências
socioculturais efetivadas nesse cenário.
O marco de término da pesquisa é o final dos anos 1980 e início da década
seguinte. Isso se justifica porque ai que se processaram mudanças fundamentais
nas atividades musicais em Belém do Pará que foram geradoras de tensão entre o
local e o translocal - assim como em outros locais do Brasil – dadas pelo processo
de globalização. Assim, variadas práticas tangenciaram as relações no meio musical
local, pressuposição corroborada, inclusive, por alguns relatos e opiniões coletadas
nas entrevistas já realizadas.
É a partir desse momento que o campo da música popular em Belém do
Pará passa a uma nova conjuntura. Esse fator repercute tanto no que diz respeito à
produção de música – seja no âmbito estético e/ou temático - como na forma pela
qual essas produções passaram a ser trabalhadas pelos meios de comunicação. As
formas de veiculação (gravações, festivais, etc.) e de utilização – por uma política
de Estado, inclusive - acabaram por dar à canção popular local nesse contexto o
caráter de elemento constitutivo uma identidade regional.
Nesse sentido, cabe lidar com as perspectivas de Ruben Oliven (1992) e
Renato Ortiz (2005) acerca da questão do regionalismo frente ao Estado nacional.
Estes autores propõem que o debate sobre a identidade regional está relacionado às
questões de ordem político-ideológicas que orbitam em torno da idéia de construção
de uma identidade brasileira. Assim, pelo campo da música – mas não apenas por
esta via
9
- é que, em grande medida, se forjou uma trilha para o escoamento da
idéia de uma identidade regional paraensista, o que se exasperou mais ainda com
a situação de redefinição das fronteiras ideológico – culturais. Então, como produto
que legitima a marca simbólica de uma “regionalidade” como “quididade”, a canção
popular paraense - e as relações de sociabilidade por ela forjadas com o objetivo de
ser uma prática de comunicação do local com o nacional, da periferia com o centro
10
- estava imersa nesse contexto de redefinição.
Neste texto, como se trata aqui de apresentar elementos de uma pesquisa
que ainda está em curso, procurei construí-lo em partes que contenham informações
sobre o aporte teórico e o material que já foi levantado, visando relacioná-lo às
escolhas teóricas com a intenção de uma apresentação sintética. Assim, o primeiro
momento é destinado a lidar com os temas cena musical e Antropologia Urbana
imbricados com o uso instrumental de uma etnografia histórica. Na segunda parte
demonstro as possibilidades procedimentais, materiais e os elementos preliminares
da pesquisa.
1. Antropologia, cidade e cena musical: notas sobre a teoria e a
pesquisa
A grande cidade é o local por excelência da ocorrência de trocas de
informações e o lugar onde se efetivam variadas formas de comunicação entre
os diferentes grupos sociais que no seu interior estão localizados. Tomando esse
argumento para lidar especificamente com um grupo social - a categoria musical
9
Segundo o sociólogo Fabio Fonseca de Castro (2011), a cultura popular paraense contemporânea
é resultado de uma intersubjetividade – a experiência estética como experiência social - dos artistas
locais que se conformou como uma reação às políticas imposta pelo Estado brasileiro para a inserção
da região amazônica. Assim, os artistas locais buscaram em suas produções reagir a esta situação,
o que se pode ler, segundo Castro, nas várias maneiras de utilização das artes na construção de uma
identidade regional como processo social. Essa reação, então, se efetivou pela utilização do discurso
de uma identidade regionalista “como o produto de uma memória social fundada na sobrevivência de
uma experiência social híbrida” (CASTRO, 2011, p. 321).
10
O conceito referencial “centro-periferia” é oriundo dos estudos do âmbito da economia política.
O termo “centro” pode ser usado em seu sentido geográfico, mas também no sentido metafórico
(BURKE, 2002). Como no Brasil se processou um acúmulo demográfico na região Sudeste, esta
passou a ser definidora do estado político, econômico e cultural do restante do Brasil, ainda que
a capital federal, Brasília, se situe no “centro” geográfico do território. Aqui a construção “centroperiferia”, portanto, atende a premissa geográfico-cultural, concomitantemente.
11
- o meu interesse em fazer essa pesquisa é perquirir a cidade como experiência
histórica nos discursos sobre ela construídos pelos atores sociais tornando-a
portadora de sentidos (ECKERT; ROCHA, s/d). Essa afirmação serve de justificativa
do porque é profícuo analisar as práticas socioculturais no interior do campo da
música popular em sua relação com as experiências sociais no espaço urbano de
Belém do Pará.
Entendo que é recorrendo à leitura dessas práticas que se pode fazer um
levantamento das movimentações e das ações – individuais e coletivas - como
organizadoras da vida cotidiana da cena musical. Portanto, acredito que estudar
as relações de sociabilidade, troca e compromisso ensejadas pela música popular
na cidade de Belém do Pará é uma investigação que possibilita, a partir de uma
etnografia das relações e das práticas culturais citadinas, entender e caracterizar
tais relações.
A questão das práticas socioculturais efetivadas no espaço urbano é uma
temática que envolve questões de ordem objetiva e subjetiva em confrontação num
processo de interação (SIMMEL, 2005). Destarte, como já foi dito, para a realização
da pesquisa utilizo o conceito de “cena musical” para a abordagem do contexto
sociocultural da canção popular em Belém do Pará porque esse conceito se mostra
operacionalmente pertinente, haja vista que se encontra embutido no seu interior
uma perspectiva de totalidade que permite lidar com a amplitude contida na proposta
da pesquisa. Mas, vejamos alguns pormenores.
Ainda que seja um termo que remete a sua utilização iniciada pelo meio
jornalístico estadunidense dos anos 1940 para lidar com o campo musical do jazz
(BENNETT; PETERSON, 2004), a noção de “cena musical”, tal como é utilizada
no âmbito acadêmico, é resultado de uma articulação dos conceitos de campo,
de Pierre Bourdieu, de lógica social das mercadorias culturais, de Bernard Miège,
e da noção de práticas cotidianas de Michel De Certeau. Estes conceitos foram
11
Uso o termo “categoria musical” por entender que este atende a proposta de classificação de um
tipo de grupo social. Ainda que os agentes em questão ocupem uma mesma região e partilhem, de
certa forma, uma cultura comum, opto por não submetê-los à noção de “comunidade musical” porque,
sob a perspectiva teórica de Will Straw, comunidade conflita com a noção de “cena musical”, haja
vista que uma “comunidade musical” pressupõe a existência de um grupo com relativa estabilidade,
cujos componentes necessariamente se conhecem, num processo contínuo de exploração da
música. Já “cena musical” remete à existência coetânea de trajetórias variantes e mutáveis que
ocupam um mesmo espaço cultural no qual diversas práticas musicais coexistiam. Contudo, cabe
destacar que é sob esse ponto que incide grande parte das críticas à construção teórica de Straw.
sistematizados por Will Straw no texto Systems of articulation, logics of change:
communitie and scenes in popular music, publicado em 1991. O objetivo de Straw
era mostrar que essa noção podia ser um modo diferencial de se lidar com a
circulação de música em contextos urbanos (JANOTTI JR, 2012).
Assim, seguindo Straw, me aproprio da noção de cena musical como a
ferramenta interpretativa que possibilita um exame da relação dos atores sociais
com os espaços culturais da cidade e com a própria cidade. E, também, procedo
a uma leitura de como o local se relaciona com a música que nele se produz e
por onde ela circula, haja vista que local interfere na produção de música, pois
“[o] conteúdo físico de um lugar é importante para a compreensão dos padrões de
atividade das pessoas e das interconexões e modificações entre estas e os lugares
que elas ocupam e modificam” (CARNEY, 2007, p. 126).
Tomando a cidade de Belém do Pará como um lugar – portanto, portadora
de atributos físicos e culturais específicos -, é premente a realização de uma
cartografia do espaço social da canção popular – mapeamento dos bares, casas
de shows, teatros, dos locais de produção, de apresentação e reunião musical,
das práticas de boêmia e das relações de sociabilidade múltiplas e transitórias em
suas diversas motivações. Este é um elemento a mais que possibilita entender as
interações, as redes sociais que se estabeleceram no espaço urbano da cidade. O
procedimento é construir descrições detalhadas que remontem à forma dos prédios,
seja pelos enunciados ou mesmo por uma leitura de registros imagéticos. Assim,
essa proposta de cartografia dos espaços de música da cidade é para tornar mais
compreensível as atividades musicais decorridas em determinados “lugares de
canção”, da cadeia de práticas musicais.
Considerando as circunstâncias e conjunturas dadas pelo processo
histórico, o que se propõe é percorrer Belém do Pará como um lugar onde se
pretende verificar os espaços intersticiais (NADEL, 2010) existentes no meio musical
da sua estrutura social. O conceito de espaços intersticiais refere-se às “relações
interpessoais entre os seres humanos que formam a sociedade e, também, as
interações e comunicações cotidianas por meio das quais instituições, associações
e maquinarias legais operam” (NADEL, 2010, p. 492). Ainda, Nadel assevera que o
real objeto do antropólogo é ver os pormenores da estrutura social (NADEL, 2010).
Ao adotar um evento sociocultural como a “Feira Pixinguinha” como baliza
inicial do período proposto para o estudo não quero atribuir apenas a esse evento
a gênese da constituição da cena musical da canção popular em Belém do Pará.
Isso porque o surgimento de uma cena não é resultado de – apenas isso - ações
intencionais que visem a sua constituição. A cena musical é, também, resultante da
ocorrência de outras lógicas, inclusive de ações atinentes à produção e ao consumo
(STHAL, 2004). Quando proponho iniciar a pesquisa pelo evento apontado, isso
se justificativa, tão somente, por vê-lo como um marco referencial no processo de
incorporação da produção musical local ao cenário nacional, o que reverberou de
distintas formas no cenário local à época.
Assim, a meu ver, lendo-a através de lentes sócio-antropológicas, a “Feira
Pixinguinha” era parte de uma política de integração cultural portadora de um ideal
missionário, cujo objetivo era a incorporação de uma parcela da cena musical
regional ao circuito nacional da música popular brasileira moderna. Contudo,
essa mostra musical, quando favorece a reunião dos atores sociais componentes
do campo musical belemense, acaba por forjar uma perspectiva comum para o
estabelecimento de uma prática musical local mais abalizada.
A noção de “ator social” é aqui utilizada tal como propõe a “teoria da ação”
12:
uma pessoa ou grupo que toma parte de alguma forma do campo social, sendo
possuidor de um projeto. De certa forma, o “ator social” é aquele que controla algum
recurso que seja relevante no jogo social. Na “teoria da ação” interessa desenvolver
o estudo a partir do comportamento concreto dos indivíduos, o que enseja uma
observação e uma reconstrução das situações vividas pelos atores sociais, ainda
que as conjunturas destas ações se apresentem sob condições estruturadas
(FELDMAN-BIANCO, 2010).
Contudo, a análise das representações se configura como um complemento
da teoria da ação, haja vista que o primordial é que haja uma interseção entre a
perspectiva microssociológica e a interpretação, o que já havia sido apontado pelo
12Teoria
da ação é um posicionamento epistemológico que se diferencia da mera análise das
representações das informações que já foram processadas pelos interlocutores. Malinowski, em Os
Argonautas do Pacífico Ocidental, de 1922, já alertava para a distinção que o pesquisador deve fazer
entre “o que as pessoas fazem” (atores sociais) e “o que as pessoas dizem” (informantes). O termo
Teoria da ação foi proposto por Abner P. Cohen, em O homem bidimensional, 1974 (FELDMANBIANCO, 2010). Contudo, originalmente o desenvolvimento desta teoria está ligado ao conceito de
Verstehen (“compreensão”), proposto por Max Weber em “Economia e Sociedade”. Para o sociólogo
alemão, só pode haver compreensão do que as pessoas fazem se tivermos uma idéia de como elas,
de forma subjetiva, interpretam seu próprio comportamento (CIARALO, 2004).
antropólogo Clifford Geertz. Assim, é preciso salientar que a separação entre análise
da “ação” e da “representação” é uma construção artificial que se mostra inócua na
execução do trabalho antropológico (FELDMAN-BIANCO, 2010). É a partir dessas
premissas que se pretende garantir um exame da interconexão entre os atores
sociais e os espaços culturais da cidade.
Como se pretende um estudo das relações de sociabilidade é forçoso que
se faça referência ao elemento formador da teia de relações sociais, o indivíduo e
da possibilidade de estabelecimento de “projetos” individuais de trajetória dentro do
campo abordado.
Louis Dumont (1985) já havia detectado que a categoria indivíduo é
dominante no Ocidente desde o século dezessete. Essa idéia tem a ver com a
noção de que o indivíduo escolhe ou pode escolher. Assim, a noção de indivíduo
fornece duas possibilidades de leitura: ser um dado da natureza, e assim haveria a
possibilidade da existência de projetos individuais; e a de ser um produto cultural,
o que levaria a uma relativização da noção de “projeto” (VELHO, 2008). Portanto, a
noção de indivíduo está associada à noção de projeto.
Valendo-se das reflexões de Alfred Schutz, Velho (1994) propõe seu
construto teórico sobre a noção de “projeto”: trata-se de alguma ação que tenha um
objetivo predeterminado, constituído em função de experiências socioculturais e
interações, e que é formulado dentro de um campo de possibilidades, circunscrito e
historicamente determinado. Sendo assim, o “projeto” é uma dimensão da cultura,
sua expressão simbólica, de maneira que alguns indivíduos têm mais possibilidades
de divulgar suas idéias devido à posição que ocupam no campo social.
Ainda segundo Velho, “na abordagem fenomenológica de Schutz e no
interacionismo de Simmel enfatiza-se a distinção e a autonomia de diferentes
mundos e “províncias de significado”, níveis e dimensões do real” (VELHO, 1994,
22). Assim, os projetos são elaborados no interior de um campo de significados,
no qual as experiências são interpretadas. Ou seja, os campos de possibilidades
são espaços para formulação e implementação de projetos. A intenção, ao usar
essa perspectiva de projetos para relacionar os indivíduos circunscritos ao campo
musical belemense dos anos 1980 se deve ao fato de que o contexto influenciou nas
trajetórias de vida dos músicos, pois no interior da “cena” pretendida para estudo,
ocorreu a reunião de indivíduos com o propósito de estabelecimento de projetos
coletivos distintos.
Acatando a assertiva de que numa sociedade complexa as trajetórias
individuais são afetadas por uma infinidade de dimensões (VELHO, 2008), podese interpretar sob esse prisma a fala do cantor e compositor Mário Moraes quando
diz que “nos anos 1980 havia um interesse maior do nosso grupo [do qual era
integrante] em fazer a nossa música, [pois] estávamos imbuídos da perspectiva de
constituição de uma música regional de maneira que quase não ouvíamos outros
tipos de música, como o rock, por exemplo, apesar de [que havia] pessoas do
meio musical naquela época tinham esse material”.13 Então, a noção de projeto de
Gilberto Velho bem atende quando solicitada para subsidiar a análise: os projetos
são elaborados e constituídos em função de experiências socioculturais e estão em
relação aos círculos culturais em que o agente se inclui ou participa (VELHO, 2008).
Ainda usando o relato, embora houvesse a possibilidade de acesso a “outros tipos”
de música, isso era renunciado por uma parcela do conjunto, cujo “projeto” era fazer
uma música que atendesse aos seus próprios anseios.
Assim, proponho que é nesse contexto que se intenta a afirmação de
“grupos de interesse” no interior do conjunto mais amplo do campo musical. E,
certamente, nas relações e práticas sociais no interior da cena canção popular
a questão do propósito de uma produção musical ancorada na perspectiva do
regionalismo musical era basilar.
2.
Delineamento metodológico e material para a pesquisa
Para a construção do campo a ser pesquisado utilizo o argumento de Pierre
Bourdieu. Segundo o sociólogo francês, é o pesquisador que define o seu tema de
pesquisa e, na senda dessa definição, o problema da pesquisa se conforma a partir
da teoria e não da realidade social empírica, haja vista que esta só tem sentido ao
fornecer os dados em sua forma abstrata (BOURDIEU, 1974). Assim, os dados
fornecidos pela realidade devem ser submetidos a uma discussão com a teoria.
Baseado nesta argumentação para delimitar o tema que estou pesquisando, a
seguir exponho um apanhado teórico que serve como estrado metodológico para a
realização da pesquisa.
13Relato
informal concedido para mim pelo músico. Sobre esta forma de obtenção de dados há uma
explanação mais esclarecedora no tópico sobre o esboço metodológico do trabalho.
Estudar a cena musical pretérita pelo instrumental da antropologia requer
especificações em prol do clareamento do procedimento metodológico. Isso porque
se trata, efetivamente, de um trabalho que remete a temas e conceitos que estão
em região de fronteira entre disciplinas. Assim, o primeiro ponto a ser desvelado é
sobre a prática de obtenção de dados informativos a partir do uso de uma etnografia
histórica.
Se a etnografia é baseada na pesquisa de campo, o “campo de atividade”
circunscrito para análise pode ser definido assim: uma conjunção de informações
que se encontram em “arquivos físicos”– redutos de documentos escritos e
audiovisuais - e “arquivos mentais”- ou seja, relatos memorialísticos de atores
selecionados para a pesquisa.
Acerca da primeira possibilidade informativa, por se tratar de um trabalho
que trilha numa perspectiva antropológico-histórica citada acima, cujo objetivo é
verificar um recorte de um contexto social pretérito em seus processos de interação,
é importante ressaltar o aporte teórico que subsidia esta perspectiva teórico metodológica. Neste sentido, ainda que seja uma discussão bastante densa sobre a
questão
14,
tomo como basilar a perspectiva teórica do antropólogo estadunidense
Marshall Sahlins.
Sobre a relação entre história e cultura, Sahlins defende que o passado
é ele próprio uma alteridade cultural, de maneira que os eventos que ocorrem em
determinadas sociedades são ordenados pela cultura dessas formações sociais.
Consequentemente, a cultura é reordenada nesse processo, o que ele denomina de
“estrutura da conjuntura” – ou seja, a forma como as culturas reagem a um evento,
fazendo o contexto dialogar com estruturas anteriores (SCHWARCZ, 2005). É
sobre essa premissa básica que Sahlins assenta sua pretensão de conjugar cultura
e história com o objetivo de mostrar a importância do passado na investigação
antropológica. Assim, a questão “de que maneira a antropologia pode contribuir
positivamente para o estudo da história [e] como, por outro lado, o estudo da história
pode enriquecer a antropologia?” (FREHSE, 2008, p. 9) é indispensável ao trabalho
ora proposto.
Sobre a possibilidade de utilização da etnografia no arquivo como campo
(FREHSE, 2005; CUNHA, 2005; COSTA, 2010), um objetivo é que os dados
14Sobre
a relação entre Antropologia e História, ver importante análise em: SCHWARCZ (2005).
documentais ali contidos pudessem ajudar a formatar, de antemão, um traçado que
delimitasse os parâmetros da pesquisa – a construção de uma visão de conjunto do
campo sociocultural a ser estudado. Esse procedimento possibilita a consecução
dos contatos preliminares com os componentes da cena a ser pesquisada, bem
como da “estrutura física pretérita” do campo – a cidade em seu conjunto, as
transformações, o circuito de bares, casas de shows, enfim, dos espaços de música
da/na cidade.
Aqui cabe uma argumentação a mais no sentido de esclarecer essa questão
do trabalho no arquivo. Ao considerar o arquivo como campo deve-se levar em
conta a existência de especificidades que requerem que as atividades de pesquisa
sejam efetivadas de maneira peculiar, distinta daquelas que se processam no campo
“tradicional”, da proposta malinowskiana do contato direto do pesquisador com os
sujeitos estudados (FREHSE, 2005). Isso porque várias interferências externas
ocorrem no trabalho no campo-arquivo (horário de funcionamento, forma como está
organizado o material, entre outros).
Dessa maneira, a propósito dos “arquivos físicos” elencados para a coleta
de material informativo, o primeiro a ser sondado e sobre ele já realizado um
levantamento prévio do potencial informativo foi o Setor de Jornais da Biblioteca
Pública “Arthur Vianna”, instalada no Centro Cultural Tancredo Neves, o CENTUR.
Assim, a primeira investida incidiu sobre os jornais que ali se encontram disponíveis
para a consulta, haja vista que os “textos de jornais podem ser entendidos como
produção cultural, prenhe de valores e do repertório simbólico da sua época”
(FREHSE, 2005, p. 23). Em outras palavras, o texto jornalístico localizado no arquivo
é portador de idiossincrasias do contexto mesmo no qual foi escrito – formas de
expressão escrita, apelo emotivo expresso na construção textual, etc. Assim, os
textos dos jornais se adaptam como informantes15 de grande importância, pois
possibilitam detectar as nuances e detalhes que expõe os sentidos dos eventos, os
15
A idéia aqui é trabalhar com a proposta de Fraya Frehse de que os informantes são uma
construção do antropólogo, cujo subsídio retira de Malinowski se valendo da utilização deste
das “perguntas insidiosas” nas pesquisas com os nativos da ilha Kiriwina, Nova Guiné, para o
detalhamento da vida tribal, informações que ele poderia checar pela observação posteriormente.
Assim, o informante não é tido apenas um repositório de dados que se encontram prontos para
utilização do pesquisador, mas como um construto do pesquisador, cujas informações podem ser
cruzadas com outras formas de obtenção de informação. Ainda segundo a antropóloga, quando o
campo é o arquivo, é preciso uma detida reflexão sobre como construir o informante, como este pode
ser definido pelo antropólogo como tal, pois é nesse ponto que reside “um indício da complexidade
antropológica” no trabalho de pesquisa no arquivo (FREHSE, 2005, p. 138).
significados das dinâmicas socioculturais da cena musical observada.
Como um arquivo institucional – é gerido pela Secretaria de Cultura do
Governo do Estado do Pará -, portanto, portador de um poder que lhe fora instituído
socialmente tornando-o detentor do poder da sociedade sobre a memória do futuro
(LE GOFF, 2003) o arquivo acima tratado possui um coleção de jornais do período
recortado para a pesquisa. A seguir, apresento os que atendem ao interesse da
pesquisa. Primeiro, o jornal “O Estado do Pará”, cujas edições cobrem o ano de
1980, de janeiro a dezembro, é o que interessa para a pesquisa. O segundo jornal
utilizado é “A Província do Pará”, que se encontra disponível dos anos de 1982 a
1986. Disponível em microfilme, o terceiro jornal é “O Liberal”. As edições desse
periódico disponíveis que interessam para a pesquisa se estendem de 1980 a 1990.
Assim, por se pretender estudar as transformações e comportamentos ao longo do
tempo, o estudo desse tipo de material localizados nos arquivos é especialmente
importante, ressaltando, entretanto, a possibilidade de lê-los como componentes de
uma rede de compromissos.
Outro importante reduto constituído de documentos é o acervo da “Coleção
Vicente Salles”
16,
que reúne mais de 70.000 recortes de jornais e revistas que
tratam do assunto música e que atualmente está sob a guarda do Museu da
Universidade Federal do Pará. Sobre o período que abarca a pesquisa há um
elevado número de material potencialmente informativo, além de discos em vinil e
CDs e fitas K-7.
Por fim, dois outros acervos são importantes para a pesquisa porque contêm
material audiovisual que pretendo utilizar para recolher informações. Um é o acervo
do Museu da Imagem e do Som (MIS-PA), órgão também subordinado à Secretaria
Executiva de Cultura do Estado do Pará. Nele estão registros de shows de festivais
e projetos capitaneados pelo poder público estadual como elementos de fomentação
da política cultural do Estado para a cultura local, como registros de festivais e
projetos culturais. O outro é o arquivo da Rede Cultura de Rádio e Televisão, órgão
da Fundação de Telecomunicações do Pará – FUNTELPA17.
16
Este acervo é resultado do material que foi coligido durante vários anos pelo historiador,
pesquisador, folclorista e musicólogo paraense Vicente Salles (1931-2013) e que por ele foi doado
para a Universidade Federal do Pará.
17
Contudo, devido a questões de ordem burocrática, sobre o material contido nesses lugares
foi realizado apenas um levantamento mais geral. O segundo passo é verificar e coletar
sistematicamente o material ali contido.
Mais um recurso para levantamento de dados para a pesquisa é a recolha
de informações a partir da história oral. Por entender que todo indivíduo vive uma
biografia dentro de uma seqüência histórica (ALBERTI, 2005), ainda que as ações
praticadas no plano individual não necessariamente exerçam uma influência que
determine o curso de determinados fatos numa sociedade, de certa forma essas
ações acabam por contribuir para a configuração final do campo social no qual o
sujeito está inserido.
Assim, essa “vivência individual” é constituída e constituinte da sociedade
no seu processo histórico. Tomando essa assertiva como embasamento é que
considero a perspectiva de que é preciso atrelar a biografia do indivíduo, como um
componente informativo e analítico da pesquisa, ao contexto histórico-social mais
amplo. Assim, sigo a perspectiva de estabelecer interligações, interconexões entre
os atores sociais com o intuito de ver cada situação como portadora de interesses
particulares – interesses esses que podem ter se espraiado e instituído conflitos e/ou
ações interativas no grupo estudado.
Como meio de se trabalhar com a memória, a história oral, o que aqui neste
trabalho se coloca como uma conseqüência lógica do levantamento das informações
do arquivo, é o recurso aqui utilizado. Assim, os relatos orais se impõem como
um meio fundamental para a obtenção de informações a serem trabalhadas. Isso
porque, como um método qualitativo de análise que ocupa um lugar proeminente
no campo de pesquisa das ciências sociais (DEBERT, 1988), a história oral se
afirma como uma possibilidade de que se possa incorporar à “história oficial” o
ponto de vista de agentes diretos sobre os acontecimentos (THOMPSON, 1992),
possibilitando o “acesso a histórias dentro da História” (ALBERTI, 2005, p. 155). É
subsidiado pelos relatos da experiência concreta das vivências dos indivíduos que
nos pautaremos para a formulação das perspectivas sobre as quais embasamos
as nossas conjeturas, tomando o cuidado de não proceder a uma violência que
possa estar incutida no procedimento, pois isso pode implicar na “imposição, aos
interlocutores, de categorias que não lhe dizem respeito” (DEBERT, 1988, p. 142).
Assim, a entrevista é usada como ação interativa, no sentido de que
pesquisador e interlocutor estabelecem uma relação. Contudo, tomando cuidado
para não tornar essa relação, como diz Thompson (1992), em uma mera
conversação, descartando ou escamoteando possíveis conflitos, o que é inerente ao
jogo de memórias. Nesse sentido, Viveiros de Castro (2002), assevera que a
entrevista, ela em si, já é uma relação social portadora de idiossincrasias que se
refletem na produção do conhecimento antropológico, pois é na relação que se
“constituem reciprocamente o sujeito que conhece e o sujeito que ele conhece, e
isso é a causa de uma transformação na constituição relacional de ambos"
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 113). Então, a partir da entrevista como fonte
informativa, o objetivo fundamental é proceder a uma descrição analítica do
significado do que é relatado.
Ainda que não tenham ocorrido por meio de uma recolha de dados
informativos de maneira “formal” – o que entendo como sendo o registro da
entrevista por meio da gravação em áudio -, alguns pontos iniciais da pesquisa me
foram fornecidos de maneira sucinta em contatos curtos com pessoas elencadas
para a pesquisa. Tais informações serviram para formatar questões a serem
levantadas para posterior tratamento na entrevista. Isso se mostrou de grande
valia porque possibilitou delimitar os assuntos para serem trabalhados mais
pormenorizadamente. Todavia, ao cotejá-las, algumas informações se mostraram
portadoras de imprecisão e/ou contradição, o que dá o ensejo para que sejam
problematizadas.
Essa forma de obtenção de dados se deve ao fato de que acompanho a
cena atual da música popular em Belém do Pará. Neste campo, vários músicos,
jornalistas, artistas, produtores e outros profissionais que eram atuantes no período
que abarca a pesquisa, ainda estão atuando, tocando, produzindo, compondo.
É essa forma de inserção no campo que possibilita o contato com os agentes no
cenário atual e a consecução de informações.
Completando o quadro de potenciais e efetivos dados informativos, recorrerse-á às fontes iconográficas. Toma-se por essa definição aqui, especificamente, a
imagem fotográfica. Por se tratar de um campo de exposição, há uma quantidade
considerável de registros fotográficos que são fontes informativas passíveis de
tratamento descritivo-interpretativo, haja vista que se trata produtos resultados de
uma construção social e cultural. Todavia, a imagem fotográfica pode fornecer dados
para a reflexão e interpretação sobre mudanças.
Uma possibilidade de uso antropológico das imagens fotográficas no
trabalho está na “fotoetnografia”, termo criado pelo antropólogo Luis Eduardo Achutti
(1997), que pode ser definido como a utilização da imagem como instrumento
narrativo-etnográfico, ou seja, como um apontamento imagético que traz consigo
dados culturais numa perspectiva etnográfica. Entendendo que o discurso
antropológico é representacional, logo, passível de interpretações variadas, cabe
ressaltar que a utilização de imagens como recurso informativo é, também ela,
eivada de implicações, pois “toda e qualquer fotografia é um olhar sobre o mundo,
levado pela intencionalidade de uma pessoa, que destina sua mensagem visível a
outro olhar, procurando dar significação a este mundo” (SEMAIN, apud. ACHUTTI,
1997, p. 36). Ainda que seja uma unidade selecionada, a imagem fotográfica
como memória é um instrumento valioso para se obter informação a partir da sua
observação (COLLIER, 1973).
Portanto, reiterando a perspectiva da estratégia a ser utilizada para a
obtenção de dados, as informações colhidas, a fim de estabelecer o cenário
etnográfico, serão complementadas por outras fontes. Os recursos informativos
obtidos no campo serão, então, tratados com sob uma das finalidades da
antropologia, ou seja, fazer “interpretações mais amplas e análises mais abstratas
a partir de um conhecimento muito extensivo de assuntos extremamente pequenos”
(GEERTZ, 1978, p.31) a partir do referencial teórico aplicado.
Assim, a partir da observação microscópica de como se constituem relações
de sociabilidade específicas em um determinado campo, a análise pode estar
orientada pelo posicionamento teórico aqui adotado, mas não determinada por este,
haja vista que as relações sociais não existem como algo concreto, mas apenas
quando “fazem parte de um modelo pelo qual tentamos o máximo de aproximação
possível à realidade empírica em todas as suas particularidades relevantes, e não
em alguma idéia que exista na mente de alguém” (BARNES, 2010. p.178).
Um estudo que pretende abranger pela etnografia um período bastante
dilatado e que se pauta pela intercessão disciplinar, o que é o caso aqui, é portador
de necessidades. Todavia, creio que a conjunção da etnografia com a história em
seus aspectos teóricos e procedimentais pode ser aplicada para o estudo da cena
musical belemense do tempo presente (entendo isto como sendo o período proposto
para a pesquisa).
Como se trata de apontamentos de uma investigação em curso, alguns
motes têm posição provisória e, evidentemente, são passíveis de mudança e/ou
adequações. Contudo, os direcionamentos mais elementares da pesquisa são esses
anteriormente expostos.
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