Piedade (Romance, 1937) - Biblioteca Virtual José de Mesquita

Transcrição

Piedade (Romance, 1937) - Biblioteca Virtual José de Mesquita
JOSÉ DE MESQUITA
José de Mesquita
Do Instituto Histórico e da Academia
Mattogrossense de Letras
Piedade
Romance
Color d'amore, e di pietá sembianti,
Non preser mai cosi mirabilmente
Viso di donna, e per vider sovente
Occhi gentili e dolorosi pianti.
(Dante — La Vita Nuova, XXXVII)
José Barnabé de Mesquita
(*10/03/1892 †22/06/1961)
Cuiabá - Mato Grosso
Biblioteca Virtual José de Mesquita
http://www.jmesquita.brtdata.com.br/bvjmesquita.htm
ESCOLAS PROFISSIONAIS SALESIANAS
CUIABÁ
1937
2
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
SEGUNDA PARTE
ÍNDICE
PRIMEIRA PARTE
Cap. I
Cap. II
Cap. III
Cap. IV
Cap. V
Cap. VI
Cap. VII
Cap. VIII
Cap. IX
Cap. X
Manhã perdida
Mãe Roberta
Noite em branco
A confissão de Álvaro
“Flôr das morenas"
Nas touradas
A viuvinha
Festa de núpcias
Amor à antiga
Planos sobre planos
3
7
10
16
21
27
38
43
50
58
64
Cap. I
Cap. II
Cap. III
Cap. IV
Cap. V
Cap. VI
Cap. VII
Cap. VIII
Cap. IX
Cap. X
Luz que se apaga
Os caminhos do coração
Ricardinho
Um amante platônico
Visita ao cemitério
Inquietude
Um Caso de loucura
Começo de crise
Amor de Piedade
A crise
Cap. I
Cap. II
Cap. III
Cap. IV
Cap. V
Cap. VI
Cap. VII
Cap. VIII
Cap. IX
Cap. X
A rival
Nuvens no azul
Lua de mel
Primeiras sombras
Uma reunião elegante
Capricho vencedor
Veranico
Noticias da sociedade
A piedade
Ao toque do ângelus
71
75
81
86
94
102
106
112
118
124
TERCEIRA PARTE
4
133
140
145
151
157
163
169
176
183
191
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
A AFONSO COSTA
e
CRISTOVÃO DE CAMARGO
PRIMEIRA PARTE
amigos e confrades
O.D.C.
5
6
PIEDADE
CAPITULO I
Manhã perdida
PAULO deixara, mais cedo que de costume,
o conforto da casa pelos trabalhos do gabinete, pois
estava resolvido a liquidar, nesse dia, a encantada
questão da concordata do Freitas. Ao passar em
frente ao portão do major Assis, viu os pequenos
brincando e deu-lhes uns caramelos, como era de
seu hábito. Menos de nove horas, já o sol ardente
punha fulgurações vivas de luz nas pedras da
calçada e crispações súbitas nos nervos, dando a
impressão de um dia tórrido e a-
7
JOSÉ DE MESQUITA
bafado. Subiu, quasi correndo, a velha escada de
madeira, gasta e escurecida pelo tempo, e ao
empurrar a porta, deu com o Cardozo, o velho
solicitador, e o seu primo Léo, que o aguardavam.
Dispunha-se a sentar se, quando o primo lhe
perguntou si não sabia ainda o que havia
acontecido.
— Que foi? indagou, calmo, mas ao notar a
feição grave do Léo, uma idéa lhe veio, repentina:
— A Glorinha morreu?
Sabia-a bem doente, a sua prima, e dali o
rebate súbito que lhe viera nesse instante.
—Não, respondeu Léo, quem morreu foi mãe
Roberta.
— Mãe Roberta? Mas, como? Ainda esta
noite estava boa, conversando na sala de jantar.
— Pois morreu esta manhã. Morte repentina...
Logo depois que tomou o guaraná, cedo como era
seu costume, começou a sentir-se mal... uma
apoplexia quasi fulminante.
Paulo, já de pé, visivelmente nervoso,
endireitando a gravata, exclamou:
— Que desastre! Eu vou até lá, preciso vêla... Si vocês quiserem podem ficar, ou então
Pobre mãe Roberta! E Glorinha já sabe?
— Não era possível ocultar-lhe... Você bem
vê, ali, na mesma casa...
8
PIEDADE
— Que desastre! repetiu Paulo, fechando a
pasta, de que retirara um maço de papeis para
entregar ao Cardozo.
— Si vier o André, o Andrézinho, sabe? você
lhe dê estes papeis, dizendo-lhe que hoje não me é
possível tratar de nada... Mas pode assegurar-lhe
que o seu caso vai bem encaminhado.
Já falei ao Curador, que está concorde. E
adeusinho. Quando vocês quiserem descer é só
avisar o Nazario na porta que feche o gabinete.
— Eu vou com você, disse Léo. Pelo
caminho, continuou Paulo indagando as
circunstancias da morte inopinada, a impressão
produzida nas pessoas de casa e as providencias
tomadas para o enterro, que seria no dia seguinte,
cedo, pois mãe Roberta sempre dissera que queria
passar uma noite em casa, depois que morresse e,
assim, seria satisfeito o seu desejo.
Quando chegaram à porta de casa, Paulo
inquiriu si Alvaro, seu irmão, já tinha sido a.
visado.
— Mandamos lá, mas só encontraram a
Naninha. Alvaro estava no serviço... Trabalha agora
em dois expedientes, para ver si ganha mais um
pouco. E enquanto Léo descia a rua, Paulo, a passos
rápidos, galgou a escadinha da entrada e penetrou
no corredor amplo e sombrio do velho casarão dos
Monteiros.
9
JOSÉ DE MESQUITA
CAPITULO II
Mãe Roberta
MÃE ROBERTA ainda estava no seu
quarto, já trazendo o vestido preto de gorgurão,
enfeitado de vidrilhos, à espera que a removessem
para a sala onde se armava a câmara ardente. Na
sala de jantar, D. Francisca, tia de Paulo, contava a
umas visitas as passagens dessa manhã. O moço
cumprimentou-as e acompanhado das primas
Regina e Ercilia, dirigiu-se ao quarto da velha ama,
no interior da casa. A porta quedou-se um momento
como hesitando. Estava a defunta estendida no seu
leito de madeira em que dormira ainda essa noite e
estampava-se-lhe no rosto o vinco da agonia, que
fôra curta, mas dolorosa. Junto, Maria da Piedade,
segunda filha de D. Francisca, compunha,
caridosamente, umas flores em dois jarros so-
10
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
bre o velho toucador preto e ao ver o primo voltouse para saudá-lo. Entreolharam-se todos silenciosos,
como si não achassem uma palavra a dizer nesse
instante. O quarto de mãe Roberta, como era
chamado, ficava no fundo do corredor comprido
que partia da sala de jantar e ia terminar na cozinha.
Espaçoso e com duas portas que se abriam para o
terreiro ajardinado, confinava-se com a vasta
dispensa cheia de tulhas e que servia, ao mesmo
tempo, de depósito do mobiliario antigo, que se ia
aposentando do serviço por invalidez irreparável.
Enchia-se o quarto de mil cousas de uso da velha
ama—canastras vetustas, de couro negro com
incrustações que traziam, em metal, os nomes dos
proprietários, banquetas e mochos, uma arca de
pau, enorme, um tear, com os seus pertences, e,
sobre a mesa tosca de pinho, ao canto, o oratório
grande, de vidraça, com uma grande imagem de S.
João, que era uma perfeição, legado da SinháGrande, à mãe das "meninas", que era como mãe
Roberta tratara toda a vida D. Francisca e D.
Carlota, a mãe de Paulo.
Pelas paredes viam-se outros "registros" de
santos e sobre a mesa, a par de peças de trabalho,
como o crivo, os bastidores, os fusos, achavam-se
ainda um urú cheio de miudezas, a grosa, o copinho
facetado de guaraná, com a colherinha de prata, um
pacará de abanar
as sementes de melancia para fazer orchata e mais
um mundo de causas pequeninas espalhadas pelos
cantos, em cima das canastras e dos tamboretes —
os seus "badulaques” como costumava dizer a velha
preta, referindo-se chistosamente aos mesmos.
Paulo circunvagava os olhos contristados por
tudo, com a impressão dolorosa de acabamento e
dispersão que deixa a morte de uma pessôa querida,
quando olhamos o centro de sua vida, o seu lugar
habitual de trabalho, abandonado e deserto... Nunca
mais ali viriam, por certo, escutar as historias
interessantes de mãe Roberta, consultá-la a cerca do
tempo, que a velha tão bem conhecia pela
experiência e pelo seu "Lunario Perpetuo" que, em
sóbria e rija encadernação de couro, à portuguesa,
se alinhava junto das "Horas Marianas",
constituindo a sua livraria, bastante para satisfazer
— ó feliz mãe-preta! — todo o seu anseio e
curiosidade do temporal e do espiritual. Não mais
lhe seria dado e aos primos, assistir aos curiosos
serões, vendo a boa velha fazer os seus mataimes
ou bilros, ou preparar os saborosos cuscús, o aluá
refrigerante com que os regalava nos dias de festa
na família! E viam-na, muito limpa, muito alegre, o
seio de ébano a reluzir sob a ombreira da camisa,
como era seu costume ficar nas horas abrazadas da
sesta, a saia de roda, de uma velha fazenda de
florões, o "ben-
11
12
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
tinho" do Carmo ao pescoço e os brincos de longos
pingentes às orelhas... Tudo passado! Tudo acabado
e para sempre! Novamente se entrefitaram os
primos. Ercilia, a mais nova, a que a idade fazia
mais toleráveis as feridas da alma, deu-se pressa em
levantar-se e ir ver na sala os preparativos fúnebres.
Paulo ficou largo tempo, entre as duas primas, a
olhar a morta querida. Mãe Roberta era a pessôa
mais velha da casa e, por assim dizer, encarnava as
mais caroáveis tradições familiares. Fôra-lhes,
desde a infância, a companheira de todos os dias, a
que lhes contava as historias da carochinha e de
"quando Nosso Senhor andava pelo mundo", a que
os levava às esmolas do Divino, às procissões e às
touradas, a que, mesmo depois de crescidos,
continuara a chamar-lhes "minhas crianças" e
"meus neguinhos"...
Tendo criado D. Francisca e a mãe de Paulo,
viera ainda a criar lhes os filhos, pois vivêra
repartindo-se entre as duas casas, até quando D.
Carlota convolára a novas núpcias, indo residir no
"sitio" distante. Paulo, afim de continuar os estudos,
ficara com os Monteiros, até seguir para o Rio, a
matricular-se na Escola de Direito. Mãe Roberta era
bem o traço de união, vivo e constante, entre as
duas famílias. A sua memória, boa mau grado a
idade, conservava, fiel como uma placa de
retratista, toda a vida passada da casa, onde nascera
e ti-
nha vivido. Falava com enternecida saudade de
Sinhô-velho dos moços, — como soía chamar os
maridos de D. Francisca e D. Carlota e da casa
grande do "engenho", onde passaram muitas
temporadas, antes das meninas se casarem e virem
para a cidade. Ninguém como a velha ama saberia
relatar, com extranha minudencia, cousas passadas
ha muito tempo, quando o velho "engenho", cheio
de escravos, era um foco permanente de alegria e de
trabalho. Hoje, pobre tapera abandonada, na zona
deserta da "Serra acima", que a decadência lenta
invadira e empolgara, lá estava, a mostrar nos
esqueletos do madeiramento e nos velhos muros
carcomidos, escondidos quasi entre as lixeiras e as
goiabeiras silvestres, todo um período de grandeza
e esplendor passado! Paulo, sobretudo, aprazia-lhe
ouvir as narrativas da velha ama e provocava-lhe a
memória, para despertar um ou outro episodio
antigo, que ia notando, sofregamente, no seu
caderno, armazenando assim elementos para a sua
grande obra — um estudo de costumes e
revivescência de antanho, que pretendia escrever. E
era-lhe um prazer enorme. Alí no quartinho
humilde de mãe Roberta, escutara-lhe os recantos
singelos que a preta lhe fazia no tempo antigo, na
velha intimidade de família, ao lado dos primos,
entre exclamações de espanto ou de tristeza, como
outrora quando lhes narrava, em criança, as com-
13
14
PIEDADE
plicadas historias do "príncipe dormidante", da
"moura torta" ou da "Branca de Neve"...
— Pobre mãe Roberta! exclamou Regina,
para romper o silencio que se tornava angustioso.
Quem o poderia pensar? Ainda esta noite
estive aqui...
— Hoje de manhã ainda falou em você, disse
Piedade. Sabe o que foi? A respeito do que você
disse de titia Carlota.
Ah! fez Paulo, como abstraído. E mamãe que
vai ter um choque quando souber. Será melhor
escrever-lhe, não acha?
— É, ponderou Regina. Um aviso assim, de
chofre, pode assustá-la...
— E titia Carlota é tão nervosa, coitada!
ponderou Piedade.
Nesse momento entraram umas pessôas da
vizinhança no quarto. Paulo retirou-se, indo para a
sala ver os trabalhos da decoração que o armador
fúnebre executava. Sentia-se mal, uma extranha
emoção o tomava e não quisera demonstrá-la na
presença das primas que sempre o tiveram por um
homem calmo e muito equilibrado. Nesse momento
foi ferido o seu ouvido por uns gritos lancinantes e
prolongados que vinham do quarto da morta.
Correu para ver o que era e deu com Alvaro que, de
joelhos, abraçado á velha ama, rompera em soluços,
mergulhado na sua dôr aguda e pungente.
15
JOSÉ DE MESQUITA
CAPITULO III
Noite em branco
DURANTE a noite Paulo não dormiu um só
minuto, apesar das instantes ponderações da tia e
das primas que lhe faziam ver a conveniência, ao
menos, de repousar por algum tempo. Deixou-se
estar na sala, sentado a uma cadeira de balanço,
velando o cadáver. Ouvia donde estava todos os
rumores da casa, os mínimos incidentes do triste
velório. Impressionava-o, sobretudo, a tosse
constante da Glorinha, num compartimento mais
retirado, mas que, no silencio da noite, lhe chegava
perfeitamente aos ouvido. A moléstia da prima
vinha-o
mortificando
extraordinariamente.
Glorinha, sua contemporânea, era, talvez por isso,
das primas a que sempre tivera a sua preferência.
Forte, moça,
16
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
bonita, beirava os vinte e dois, quando, conseqüente
a um resfriado a que não dera a importância devida,
se lhe declarara uma tuberculose pulmonar, de
forma
violenta
e
rápida.
Magrecêra
consideravelmente em poucos meses e as suas
feições delicadas se cobriram da lividez
característica dos tísicos, na qual apenas, durante as
horas da febre, duas rosas vermelhas
desabrochavam sinistramente... Certa do seu estado,
que já não era possível dissimular, revelava-se de
uma conformidade admirável. Paulo sentia-se
cruelmente mortificado com o estado de Glorinha e
mais o impressionava a freqüência com que na
família se manifestavam esses casos de tísica, quasi
sempre de marcha fulminante e fatal... Talvez uma
predisposição, uma fraqueza congênita, pensava,
com horror, o jovem advogado, o fizesse também
uma futura presa do insidioso mal. Procurava, em
vão, rebater esses pensamentos que, teimosos, lhe
voltijavam em torno á mente, presa de uma
verdadeira obcessão. Nessa noite, fosse o local, ou
o abalo que lhe causara a morte imprevista da velha
ama, ou a tristeza do velório, Paulo se sentia mais
nervoso ainda que de costume. Ao seu lado, Léo,
recostado ao sofá, dormitava serenamente. Paulo
punha-se, por desenfarar-se a evocar a sua vida,
passada, a sua infância, as historias de mãe Roberta,
e essas lembranças trouxeram-lhe outras, a da sua
mãe, durante
dos dias longos da viuvez, na sua companhia, até
quando o deixara pelo segundo esposo, — era então
ainda bem criança — indo de vez para o sitio
distante, donde raras vezes vinha à cidade. Uma
profunda tristeza sentimental lhe enchia a alma de
permeio às recordações. Crescera no seio da família
da tia, a bôa D. Francisca, que sempre o tratara
como filho, não sabendo distinguir entre os
sobrinhos e os nascidos do seu sangue... Mas uma
secreta magua lhe vinha, que nunca a ninguém
confessara, ao sentir-se privado tão cedo do carinho
materno e, no exclusivismo do seu sentimento de
grande amoroso, como que inculpava a mãe de o ter
deixado pelo padrasto... Procurava banir da idéa
esses pensamentos que o perseguiam, na longa
expertina; todavia, tanto mais os espantava, mais
freqüentes lhe vinham. Só, sentia um grande vácuo
na sua vida, que a remembrança do passado vinha
fazer maior. Com a velha mãe Roberta ia enterrarse, talvez, toda a sua infância feliz: era um capítulo
da sua vida, uma porção da sua alma que se
apagava na noite fria da morte, ao fundo negro de
uma sepultura... Doeu lhe o pensar em si. Sentiu-se
muito só e muito triste. Ia fazer 23 e parecia um
velho, acabado, já sem esperanças nem sonhos.
Restava-lhe esse doce ambiente familiar em que
anda se sentia viver, partícipe das alegrias e
tristezas alheias...
17
18
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
Mas, isso mesmo até quando poderia
encontrar? Mãe Roberta morta, Glorinha prestes a
morrer, Regina noiva, dentro em breve essa doce
convivência acabaria aos poucos, e a casa iria
tomando nova feição, com a entrada de extranhos e
o êxodo das velhas pessôas tão ligadas à sua
existência! A própria tia Francisca não ia bem de
saúde e esses choques seguidos poderiam arrastá-la
ao tumulo. E que seria, quando só, no meio de uma
sociedade fátua de extranhos, cheia de frivolidade,
onde ninguém o entenderia e a ninguém estimasse
se visse como um extrangeiro na sua própria terra?
Paulo, pelo seu feitio nervoso, era de uma esquisita
sensibilidade, de uma constituição profundamente
romanesca, a que as leituras e a vida ensimesmada
que levava contribuíram rara tornar mais delicada
ainda. Talvez a solução de seu caso fosse o
casamento, mas quem lhe asseguraria que pudesse
amar uma mulher e fazer-se sinceramente amado?
Sentia-se muito descrente, alma cheia de
impressões desconsoladas e incapaz de volver a ser
o que fôra, de regenerar-se pelo amor e tornar-se
puro, crente e bom, o Paulo ingênuo e feliz de
outros tempos. Entanto, preciso ser homem,
enfrentar resolutamente a vida, sem pieguices e
sentimentalismos doentios. Era preciso... Mas,
como? Paulo viu nesse momento uma criadinha
entrar com a bandeja do café. Enquanto, no silencio
da sala, se ou-
viam os sussurros da conversa e as velas, nos
candelabros
altos,
luziam
macabramente,
alumiando o rosto lívido e descarnado da defunta,
Paulo, fechando os olhos, presa de profunda
tristeza, debatendo-se em dolorosas perguntas que
olhe torturavam a alma, quedava-se a ver essas
extranhas lucilações multicores, que, como vagas
visões vindas de outro mundo, nos acodem nas
noites prolongadas de vigília e a ouvir, no marasmo
que o invadia, vozes veladas que, qual acusma
inexplicável, lhe povoavam os ouvidos.
19
20
PIEDADE
CAPITULO IV
A confissão de Álvaro
FÔRA assim desde criança e agora não via
como transformar o seu temperamento, a sua
organização. Profundamente sentimental, de um
forte nervosismo, Paulo sabia-se dotado de uma
extraordinária sensibilidade, de uma aptidão
invulgar para o padecimento, convertendo os
menores casos, as mais ligeiras referencias em
causas de recônditas e indizíveis torturas intimas.
Trazia — como costumava dizer para si mesmo —
a alma à flor da epiderme. Não sabia a arte de
dissimular, de encouraçar-se contra as dores da
21
JOSÉ DE MESQUITA
vida. E o peior, era que procurava, com extrema
cautela, esconder, mesmo aos mais chegados, essa
especial feição da sua alma que lhe parecia um
estigma de inferioridade mental, uma neurose
hereditária, reforçada pela sua educação e pelas
muitas leituras românticas de que saturara o
espírito. A morte inesperada da velha preta viera
aguçar-lhe a extranha emotividade e noutro dia
achava-se na sua sala, sozinho, a pensar ainda no
acontecimento da véspera, o espírito sobrecheio de
idéas mortificantes, fumando cigarros sobre
cigarros, quando ouviu baterem de leve à porta.
Levantou-se e indo abrir viu que era Alvaro, seu
irmão mais moço, o qual, pelo nenhum pendor
manifestado pelos estudos, se encarreirara, contra o
seu gosto, na burocracia, trabalhando como
amanuense numa repartição pública.
— Olá! então como passou? Perguntou-lhe,
logo de entrada, o rapaz.
— Menos mal, Alvaro.. Sempre consegui
dormir alguma cousa. E você?
— A maldita estatística me fez ficar
despertado até tarde e depois não pude mais dormir.
Escuta, Paulo, eu quero lhe fazer uma consulta, ou
antes, uma confissão ..
Paulo extranhou a gravidade do irmão ao
dizer-lhe essas palavras. Embora não tivessem sido
criados juntos, pois Alvaro ficara sempre em
companhia de D. Carlota de quem só de pouco se
havia separado, para casar-se, tinham
22
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
os dois irmãos recíproca e cordial confiança que
quasi excluía a idéa de um segredo na vida de
qualquer um. Que seria, pois, o objecto daquela
extranha confissão?
— Sou todo ouvidos, Alvaro... É alguma
complicação amorosa? Trata-se de algum caso
sentimental? Use de toda a sinceridade e franqueza.
Demais, você sabe que sou autorizado para dar
conselhos em demandas dessas em que o coração é
parte interessada... Sou um advogado insuspeito,
pois nunca me deixei prender por essas lábias nem
aprisionar-me em semelhantes arapucas.
— Ouça, Paulo, e depois você me dirá, com a
mesma franqueza com que lhe vou contar o meu
caso, a sua opinião, o seu modo de entender a
respeito...
— Vamos... E não se esqueça que, alem de
seu amigo, sou seu irmão e seu natural confidente e
conselheiro.
Alvaro que arrastara a cadeira larga, estufada,
para bem junto da secretária, começou, após uma
ligeira hesitação logo dominada, a abrir o seu
coração a Paulo que, silencioso, o escutava.
— Paulo, mais dia menos dia, eu sinto que
vou enlouquecer... Não se espante, nem se
horrorize. Vocês serão forçados a mandar-me para
o hospício, quando menos esperarem...
— Enlouquecer, você, Alvaro? Como?
Porque?
— Ouça-me com calma e concluirá si tenho
ou não razão em minhas suspeitas. Não sei como
tenho conseguido dissimular até hoje o estado
horrível dos meus nervos. Mas sinto que, em pouco
tempo, já não poderei esconder o meu mal. Não
será fácil explicar-lhe corno isto começou. Antes de
me casar deve lembrar-se você que sempre fui
muito casmurro e tristonho. Duas ídéas me
torturavam
constantemente,
dois
desejos
impossíveis me obsidiavam o cérebro. Um era o de
poder ser formoso, não da formosura vulgar dos
homens que agradam, mas sim da perfeita, dos
paradigmas de raça, deuses e semi-deuses lendários.
O meu ideal era ser um homem forte e másculo, de
linhas gregas perfeitas e admiráveis. O segundo
desejo era quasi que uma conseqüência do primeiro.
Sendo formoso como um deus, eu aspirava ao amor
integral e supremo. Essas idéas, porém, que, a
principio, me torturavam a ponto de degenerar
numa quasi monomania, numa neurose aguda,
quando comecei a namorar a Naninha como que se
evaporaram ou, pelo menos, já não me perseguiam
com tamanha insistência. Julguei ter encontrado na
que é hoje minha mulher o ideal de meu coração e
dos meus sentidos e essa febre de amor, que antes
sentia imprecisa e impessoal, se apaziguou à vista
dessa moça, franzina e meiga, de lindos olhos,
enternecidos. Casei-me, como você sabe, muito
cedo, aos vinte incompletos. Foi um
23
24
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
romance, um amor de poeta... As nossas famílias
impugnaram a princípio o nosso namoro, que
éramos muito crianças, sem juízo nenhum. A
Naninha faltava-lhe a idade legal que houve mister
completar para que o casório se fizesse. Casados —
vai por vinte meses — deveria começar para nós a
felicidade de dois seres que se amam e acham na
confusão perfeita dos corpos e das almas o segredo
da ventura terrena. Assim devêra ser e assim foi
realmente, nos primeiros tempos. Mas ha pouco,
cousa de uns três meses atrás, o mal começou a
manifestar se de uma forma bem diversa e
alarmante. Já não era a antiga obcessão, nem o vago
desejo de um imponderável amor; a sua última
feição se reveste agora de um impulso irresistível
para o crime. Tenho ciúmes de Naninha. que você
sabe dotada de um gênio expansivo e alegre,
sempre risos e festas para todos. Tenho horríveis
ciúmes de tudo o que Naninha faz, diz, e até do que
póde pensar. Si está triste, pensativa, acode-me que
é porque já me não ama e idealiza outra vida
melhor que a que lhe proporciono. Si loquaz,
rideira, cuido que busca dissimular, femininamente,
o que lhe vai n’alma. E padeço, Paulo, padeço,
como você não pode imaginar. Para derivar a minha
idéa, abrandar o meu estado, atiro-me ás maiores
extravagâncias, que, dia a dia, mais me extenuam.
E, com um prazer doentio, devoro quanto livro me
vem ás mãos que trata do arrebatamento passional,
sentindo-me dia a dia arrastado, mau grado a mim
mesmo, nesse lançante trágico do crime...
— Você faz mal em lêr esses livros, Alvaro,
interrompeu o irmão, só servem para complicar o
seu estado.
— Mas si você soubesse o que é esta tortura
diária, permanente, que nem no dormir me
abandona e persegue-me sob a forma horrível dos
pesadelos! Ultimamente, o meu maior receio é que
minha mulher desconfie do meu estado e passe a ter
medo de mim. Já um dia destes, quando eu lhe
falava, procurando dar ao tom da voz um timbre
carinhoso, que mal lhe velava a ternura, Naninha,
como assustada, evitando-me, exclamou:
— Você está muito nervoso! Acalme-se... O
que é isso Alvaro?
— E assim vivo, Paulo neste inferno! Que
será de mim?
O infeliz, com os olhos esbogalhados, o rosto
lívido, as mãos frias, trementes, quasi chorava.
Nesse momento, bateram a porta da saleta
chamando para o café.
25
26
PIEDADE
CAPITULO V
Flor das morenas
DEPOIS que o irmão partiu, Paulo quedou-se
largo tempo a pensar na confissão imprevista que
lhe ouvira e lhe deixara uma angustia surda e
incontida na alma profundamente sensitiva. A sua
melancolia, que já vinha de ha dias, o seu
nervosismo exacerbado pela surpresa da morte de
mãe Roberta, acirrava-se à lembrança dessa
confidencia dolorosa que lhe abria ao espírito os
horizontes das mais tétricas conjecturas. A tarde,
após o jantar, o torturado moço tomou quasi
automaticamente o rumo da casa da tia Francisca.
Desagradava-lhe ter que ir essa
27
JOSÉ DE MESQUITA
noite a um café ou a um ponto de reunião alegre e
ruidoso. Lá se desaborreceria e poderia tambem
conversar a gente da casa, ainda sob a impressão
recente da morte da mãe preta. Encontrou na
varanda o Tenente Decio, noivo de Regina, cujo
casamento se marcara para dali ha um mês, logo
depois das "touradas", e mais uma senhora da
vizinhança, mãe de duas moçoilas magras e
loquazes. D. Francisca e as três filhas — Regina, de
dezoito primaveras, Maria da Piedade, de quinze e
Ercilia, de onze, tomavam parte na conversa, cujo
assumpto obrigatório era ainda mãe Roberta,
considerada ali menos que uma creada, uma pessoa
da família. Mais tarde chegaram também Léo e a tia
Carolina, velha irmã de D. Francisca, que se
conservara solteira, e morava só com um rapazinho
que criava. D. Carolina era madrinha da segunda
filha dos Monteiros, Regina, que seria, dizia, a sua
herdeira, na casinha, que era seu único haver.
Vieram á balha as historias de Mãe Roberta, e como
a vizinha D. Felicia se referisse com interesse a
certo episódio que lhe ouvira ha tempos, do qual,
entretanto, se deslembrára, pediu Paulo, sempre
amante dessas narrativas, que a tia lhes contasse
alguns casos. No meio do respeitoso silencio que se
fez em torno, na ampla varanda que um grande
"belga" clareava, a velha senhora passou a
reproduzir os curiosos trechos da vida de fa-
28
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
milia que a tradição havia conservado através da
linguagem simples e expressiva da velha ama.
Depois que tinha relatado dois ou três casos,
pediram as meninas, instantemente, que contasse a
historia da "flor das morenas", D. Francisca sorriu,
numa sorte de embaraço satisfeito e disse:
— Ora! isto é uma espécie de historia do
tempo da russiana. Já perdeu sua graça e vocês vão
achar fora da moda.
Insistiram tanto, dizendo Paulo que "bonito
não envelhece" e que todos eram "gente de outro
tempo", que D. Fancisca se dispôs a fazer-lhes o
gosto:
"Quando o sargento Monteiro veio de
Portugal era um moço guapo e forte, a beirar pelos
vinte e cinco e o seu espírito corajoso e amigo de
aventuras o arrastou até este fundo ele sertão que se
povoava na febre ansiosa do ouro e da riqueza,
seduzindo levas de gente ávida de fortuna fácil.
Em aqui chegando, deu logo de amizade com
o Ouvidor, seu patrício e velho conhecido, nascidos
que eram no mesmo conselho e logarejo. Em casa
do magistrado, numa noite de "luminárias", viu uma
menina assaz nova e muito bonita, filha de uma
índia que fôra apresada no alto sertão por urna força
encarregada de abrir caminhos e bater o gentio.
Enamorou-se o sargento pela pequena, cujo nome
na pia
era Rosa, mas que o povo poeticamente
cognominara "Flor da morenas", sendo assim mais
conhecida que pelo seu próprio nome.
Tinha, porém, o Ouvidor, homem idoso e
viúvo, mas ainda válido, bastante mulherengo, as
vistas voltadas para a formosa mocinha, que, a
titulo de amparo, mas antes tomado de criminosos
intentos, trouxera para casa. "Flor das morenas" ia
pelos quatorze quando Monteiro a conheceu. A
assiduidade do sargento em casa do Ouvidor
acabou por impressionar a moçôila, que viu no
porte gentil do miliciano, em suas feições delicadas,
de tez alvíssima que o sol ainda não crestára, nos
olhos claros, cor de mel, nas mãos delicadas, no
falar macio, algo que jamais imaginara no meio
rústico e asselvajado em que fôra criada.
Monteiro era de família abastada e de muito
bom sangue, mas, dotado de um temperamento
esquisito e indomável, expatriara-se por haver sido
contrariado pela sua gente, que lhe quisera impor
enlace indesejável com uma parenta velha e rica, ao
tempo em que seu coração se inclinava por uma
tricanazinha de corpo de âmbar e olhos dormentes
como as águas do Mondego. Por se não vender,
como si almas e amizades se mercassem ou se
pudessem aleiloar, Monteiro sentou praça e fugiu
da própria terra e fez-se de vela para outros
mundos, que lhe enfeitiçavam desde criança a
imaginação.
29
30
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
A formosura virginal e deslumbradora da
caboclinha foi para o moço reinol uma revelação
inédita em que viu encarnar-se e tomar corpo a
própria terra nova, o sertão desconhecido com a
alma errante e vária, volúvel e caprichosa das suas
sereias, dos seus encantamentos irresistíveis. O seu
todo arisco de veadinha, os seus gestos bregeiros
como os dos sagüis, o seu andar balanceado na
cadencia das jaguatiricas novas, a sua cútis morena
como o jambo e macia e pubescente com as folhas
da malva, as suas mãozinhas irriquietas como dois
beija-flôres, as suas comas negríssimas tal a
plumagem do anum, os seus lábios que eram duas
pitangas maduras, o seu seio de pomba-rola, a sua
voz langue e pausada como o canto da jaó, no
entardecer, os seus olhos que dardejavam lumes
como as lagoas ao sol da alvorada — tudo respirava
para o moço a magia da natureza tropical, o sentido
profundo das cousas nunca vistas, a formosura
virgem e intemerata da terra ainda mal esflorada
pelo contacto humano.
"Flor das morenas" tinha, porém, a sua posse
disputada, com ânsia, além do velho Ouvidor, pelo
filho do Mestre de Campo, um rapaz forte e temido
pela sua audácia e ainda pelo alferes Rodrigues, do
corpo de dragões, do serviço e confiança do
Capitão General. Freqüentavam todos a casa do
Ouvidor, que, em lhes percebendo os desígnios, se
deu pres-
sa em, sob pretextos outros que mal velavam a
maligna intenção que o devorava, seqüestrar a
pequena aos olhos dos seus adoradores. Rosinha era
filha da selva e tinha o sentimento da liberdade,
com o sangue que lhe corria nas veias. Burlando a
perspicaz vigilância do seu Cérbero domestico,
emprazou o sargento para um encontro no portão
dos fundos, que dava para o carrego. Era uma noite
de junho, enluarada e fria. Pela infidelidade do
recadeiro, que deu à língua, vieram os dois outros
enamorados a saber da combinada entrevista e
concertaram armar uma "tocaia" em que perecesse
o feliz escolhido do coração de moça. Desprecavido
se foi Monteiro para o prazo dado, que lhe deveria
de ser fatal. Junto ao "arrombado", esperava-o a
pequena, trazendo o leve roupão de cabaia sobre o
corpo, descalça, soltas as lindas tranças que, como
um véu negro, lhe envolviam os ombros e as
espáduas.
Tomou-lhe o sargento as mãozitas que o susto
e a emoção gelavam e ouviu da sua boca a
declaração resoluta de que o acompanharia para o
"sertão grande", para onde fosse, pois o que não
podia era continuar na companhia execrada do seu
algoz, mascarado de patrono e amigo.
— Gosto de vancê, porque vancê me respeita,
me mostra um querer bem, sem abusar, como esses
outros que pensam que, porque
31
32
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
sou filha de bugre, sou ignorante e não tenho o
direito de escolher a quem dar meu coração. Hei de
ser sua, Monteiro, ou de mais ninguém...
Abalado ante a sinceridade dessa creatura
inculta e rude, mas de uma extraordinária firmeza
moral, Monteiro propôs-se acompanhá-la na fuga.
— Mas olhe que vancê vai sacrificar-se.
Perde sua carreira. Do que vai viver depois?
— Viverei como os seus viviam antes de vir
parar nas mãos destes bandidos. Uma cuia de mel
de manduri, umas frutas de marmelada ou de
jatobá, carne de paca ou de tatu, água fria do
buritizal, valem mais que as melhores iguarias,
dando Deus saúde e vivendo a gente junto de quem
seu coração deseja... Mais tarde, quem sabe,
poderemos voltar e ainda ser "gente" neste mesmo
lugar. A ruindade dos homens tem de bom que
passa, como água no rio.
E ficou acertado que na Semana seguinte
fugiriam para o alto sertão. Monteiro beijou a mão
da moça com a reverencia com que se beija uma
Santa, e afastou-se, ainda voltando-se da esquina
para vê-la, ao clarão da lua cheia. Dera alguns
passos mais quando, da sombra de um oitão, o
assaltaram três embuçados, com varas e faças.
Destro no manejo do pau, Monteiro os pôs á
distancia, procurando correr, quando uma bala de
bacamarte o prostrou, partida do grupo sinistro.
— Valha-me, minha Nossa Senhora do
Carmo, que estou ferido! gritou o moço.
Os facínoras correram ao grito de socorro e o
pobre alvo dos cruéis empreiteiros do crime
conseguiu arrastar-se, gemendo, até uma vendóla,
noutra esquina, que conservava a porta cerrada,
apesar de já haver tocado o "recolher".
Esteve uns dias entre a vida e a morte, mas o
cirurgião pode tirar o projétil que se alojara junto à
clavícula direita. A menina, causa involuntária do
drama, ao ser informada do que accorrera, ficou a
braços com um desespero enorme. Vendeu os seu
"lavrados" para ajudar Monteiro no tratamento.
Impossível qualquer aproximação entre ambos,
devido às redobradas cautela que punham no
sondar-lhes os passos os seus pertinazes
pretendentes. O Ouvidor vigiava-a dia e noite; o
alferes Rodrigues pusera guarda pelos arredores da
sua casa, sob pretexto de averiguações do crime e,
por sua parte, o filho do Mestre de Campo, sem
descontinuar, rondava os passos dos outros
competidores.
Uma noite escura e feia de Outubro —
Monteiro já estava quasi bom da ferida, Rosa surgiu
no rancho do miliciano, sozinha, trazendo, numa
trouxa, toda a sua bagagem. Espantou-se de sua
coragem o sargento.
— Eu já dei a vancê meu coração e não
33
34
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
sei desdar o que já foi dado. O Ouvidor me disse
que pela lei eu não posso ainda casar. Eu não
entendo dessas cousas. Sei que o que se quer é
ganhar tempo e como já recebeu ordem para
recolher para São Paulo, disse que me ha de levar
para lá. E como eu não vou mesmo, vim procurar
vancê para ver o que resolvemos...
Nessa mesma madrugada partiram. "Flor das
morenas," com a sua acuidade peculiar, com
o sentido atávico da sua raça, servia de guia
no sertão áspero e hostil. Houve dias de nada comer
e andar de sol a sol. A moca tinha o faro dos
"lobinhos" a agilidade das lebres, mergulhava como
os biguás, alternando, com as patativas e curiós, o
seu canto suave, nas horas dê melancolia, em que
Monteiro parecia ceder ao império da nostálgica
recordação da sua terra distante.
Passaram meses na selva, enganando todas as
esculcas que o Mestre de Campo e o alferes de
dragões lhes puseram na pista. Cortando pântanos,
varando brejos, varando rios, ou atravessando-os a
nado ou sobre "pinguelas", dormindo ao sereno,
alimentando-se de caça e frutas silvestres, peixe e
resina, viveram todo esse tempo como verdadeiros
filhos da natureza.
Um dia, passou por ali uma tropa que rumava
ao Rio Grande. Souberam pelos arrieiros dos
acontecimentos havidos na cidade, da
deposição do governador Magessi, que levara
consigo o alferes Rodrigues, da partida do Ouvidor,
ralado de ciúmes e de febres, da morte do filho do
Mestre de Campo, nas lavras do Medico, por um
escravo a que tentara roubar a "parceira", tendo
assim o justo castigo à sua vida de estróina e
peralvilho. Monteiro, que tinha na Junta
Governativa um amigo, resolveu votar à cidade.
Correu-lhe tudo á mercê dos desejos. Foi-lhe
perdoada a pena de deserção, levada à conta do
estado de confusão em que se encontrava a
Capitania. Afastado das armas, deram-lhe um lugar
no Senado da Câmara, onde havia um camarista
que o protegia. E, pela festa do Espírito Santo,
casaram-se os dois protagonistas deste romance à
antiga e fôram muito felizes, pois que já haviam
pago em dores antecipadas o tributo que o amor
costuma exigir dos seus eleitos, dos que
verdadeiramente se entrequerem e fazem do amor
sincero e mutuo a única, a suprema razão de
existir...".
— O que é que o amor não vence, meus
filhos? disse, concluindo, com um sorriso
benevolente, a boa D. Francisca,
— Não vence a morte, disse Paulo. Si
Monteiro tivesse sido morto no dia da entrevista...
— Rosinha continuaria a amá-lo, retrucou
vivamente Piedade.
— Quem sabe lá... voltou Paulo, na sua
35
36
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
estudada descrença, mais para contrariar a prima.
— Continuaria, sim, — interveio D.
Francisca. Nem todas as mulheres são como "Flor
das morenas", mas é preciso reconhecer que, entre
muitas levianas e doidas, ha ainda algumas dessa
massa... A questão é ter a felicidade de encontrá-la.
CAPITULO VI
Nas touradas
RETIRADOS a um canto do "botequim", os
dois rapazes conversavam, quando, vendo-os a
distancia, para lá se dirigiu o Cardozo, num
expansivo amplexo, a exclamar:
— Vocês já viram a rainha do "Campo de
Ourique"?
— Não. Quem é? perguntou, mostrando
pouco interesse o moço advogado.
— Quem mais ha de ser sinão a formosa
viuvinha Eunice, a menina dos olhos do nosso caro
Major, disse, num piscar de olhos, meio irônico,
Léo.
37
38
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
— A filha do Azevedo? insistiu Paulo,
fingindo-se esquecido.
— Qual Azevedo, homem! Você onde está
que não se recorda mais da galante pequena que
tanto o impressionou à primeira vista? Não se
lembra mais da moça que lhe fez repetir outro dia,
no jardim, um soneto inteiro do... do Luiz... ora
agora a mim me esquece o nome...
— Pistarini, disse Léo, desapurando o
massante gamenho. E sempre mais fácil guardar os
nomes das viúvas bonitas que os dos poetas...
Cardozo, entanto, sentara-se numa cadeira ao
lado e pedira chope e pasteis de nata. Os dois
primos se entreolharam sorrindo. Estava o velho
amigo fiel na execução dos seus planos que
consistiam em utilizar-se sempre da boa vontade
dos "camaradas" para demonstrar-lhes a confiança
que tinha nos mesmos.
Á essa hora, o rumor no vasto Campo se fazia
sentir numa animação crescente. Novas famílias
chegavam e os palanques estavam quasi todos
cheios, vendo-se igualmente apinhados de gente as
"cercas" e os "botequins". A temperatura favorecia
o prazer popular, pois a dois ou três dias frígidos,
de cerração, seguira-se uma tarde linda, azul,
claríssima, de doçura primaveril.
Começara Cardozo a relatar a Paulo um
começo de rolo que ia havendo no curro, a noi-
te passada, quando a musica deu o aviso da entrada
do toureador. Accorreu para as proximidades da
arena gente de todos os rumos e os botequins
ficaram momentaneamente vasios. O próprio Léo,
acompanhado do Cardozo, precipitou-se para o
"camarote" a ver um dos episódios mais curiosos da
diversão
empolgante
que
as
"touradas"
proporcionam. Era Léo um fanático por essas
corridas, ao contrário do primo que as "touradas"
deixavam frio, tendo antes repulsa por essa
diversão, não a demonstrando, porém, pelo receio
de parecer mole e demasiado puritano. Era desses
que se deixam levar pela maioria, peja tradição, e
todas as vezes ia ao "Campo de Ourique" porque
toda a gente ia e ha muito se procedia assim, si bem
que, no íntimo, isso tudo lhe parecesse estúpido e
atrazado. Com pouco o estrugir dos busca-pés, as
pa]mas e gritos da assistência, a musica ruidosa,
denunciaram a "primeira sorte". Nas alamedas em
torno dos "camarotes" não se via quasi ninguém. A
cidade em peso acompanhava, com a alma suspensa
do lábios, em exclamações, corrimaças e vivas, o
desenvolver emocionante da corrida. Agora eram os
"capinhas", descalços, de calça branca e blusa
escarlate, empunhando a banceirola na mão
esquerda, com que acenavam ao animal e a
"garrocha" na direita — uns, ágeis vaqueiros
acostumados ao trato áspero do campeio, outros,
39
40
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
gente da cidade, habituada a diversos misteres, mas
que, nesses três dias, se convertiam em "capinhas"
para ganhar mais facilmente dinheiro. Alguns havia
até que começavam como "máscaras" para cujo
papel se não exigem qualidades próprias, bastando
agilidade em subir "na cerca"' e um pouco de chiste
barato para divertir as galerias. Eram, ao depois, a
vista da habilidade e coragem reveladas, elevados a
"capinhas" o que equivalia a uma promoção no
conceito público. Não assim o "toureador", que era
sempre o mesmo, espécie de dignidade vitalícia,
substituindo-se uns aos outros, e só com a morte
perdendo o titulo e as honras. Ao de agora
precedera um já algo idoso, o “Mirandeiro" como
se fazia conhecido e a quem coube a glória de
morrer em pleno campo, não de uma forte marrada
ou de uma queda, mas de um mal do coração, o
que, para a consagração lendária de seu nome, teria
sido a mesma causa. Também as honras de "jacuba"
— prestimoso auxiliar e escudeiro do "toureador",
eram personalíssimas e duravam de uma para outra
corrida. O jacuba não necessitava mais do que ser
prudente, evitar cautamente a aproximação do touro
e acompanhar o seu amo e senhor, menos quando ia
fazer as sortes, o que é perigoso. Muita gente, notese, faz na vida este papel de "jacuba" sem o sentir:
são os amigos dos bons
dias e das horas de prosperidade que fogem aos
riscos das "sortes". É uma posição de lustre, muito
prática e desejável nestes tempos que correm...
Voltemos, porém, aos "touros". Terminadas as
primeiras "sortes" começou a gente a abandonar os
"camarotes”, e se povoou de novo a avenida dos
passeantes. O lado da "sombra" era naturalmente
preferido, sendo que ali é que se constroem os
"botequins". Ostentava a praça, cerca das 3 horas da
tarde, um ar animado, com as cores vivas dos
"camarotes” e botequins, a graça e elegância das
transeuntes e a alacridade que a todos dominava.
41
42
PIEDADE
CAPITULO VII
A viuvinha
PAULO, indo a passear, deu logo com
Eunice, linda no seu vestido de seda cor de
morango, chapéu de plumas pretas, risonha e
expansiva como era do seu costume e natural.
Fazia-se acompanhar de duas amigas solteiras,
bonitas e loquazes, não tanto, porém, como a viúva.
Cumprimentou o advogado com um sorriso
insinuante, cujo merecimento maior teria sido o de
pôr à mostra a fieira alvíssima dos seus dentes,
lindos e pequenininhos, como as perolas que lhe
cingiam o pescoço alvo de neve. Paulo voltou-se pa
ra vê-la, esplendida no seu meio desgarre de
43
JOSÉ DE MESQUITA
mulher que se sabe formosa e admirada. Viúva
havia quinze meses, Eunice era um verdadeiro
enigma para todos os que a conheciam. A sua vida
de casada, curta e sem episódios, não dava margem
a que se interpretasse si fôra feliz ou não, e,
interrogada, pelos mais íntimos, a esse respeito, se
limitava a sorrir sem nada dizer. O seu processo de
desnortear as vistas mais audazes era sempre pelo
sorriso, invencível, enigmática e poderosa arma de
que se servia superiormente. Mulheres ha cujo
encanto reside no gesto vago, ondulante ou
expressivo; outras seduzem pela voz cariciosa e
cheia de influxos magnéticos; de algumas é o olhar
o encantador talisman a que se não resiste. Esta
tinha o seu condão no sorriso único, imperscrutável,
lindo e fatal como, talvez, o da Monna Lisa, que
Leonardo tentou perpetuar na sua tela... Com esse
sorriso animava e resistia aos seus adoradores,
verdadeira legião incontável, e, por certo, si toda a
gente a julgava leviana, namorista, ninguém, ao de
leve, poderia apontar uma sombra que lhe
empanasse a honestidade. De Eunice diziam todos
sêr o primeiro partido da terra, e um dos que a
cubiçavam tinha definido a sua superioridade sobre
as meninas casadouras nesta jocosa expressão: —
Mais vale esta em segunda mão que todas as outras
em folha. Traz tirocínio da vida e reputação firmada
em apólices e títulos» Realmente, quando Eu-
44
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
nice enviuvou, houve quem dissesse, na câmara
ardente, ainda em presença do esposo, o capitalista
Nogueira:
— Está ali, está casada... "Viúva moça, bonita
e rica, viúva não fica".
Mas ficara, ia ficando, pelo menos, não que
faltasse quem se dispusesse de boa mente a tirá-la
desse estado. Sem os desenganar de vez, antes
como que os animando a se manterem fieis ao seu
culto, Eunice ia levando o seu tempo, e gozando a
sua liberdade. Dali o concluírem alguns desses
adoradores mais perversos que o primeiro ensaio
lhe não fôra favorável e não lhe deixara desejo de
repetir.
Argumento
frívolo
e,
demais,
contraproducente, de espíritos apaixonados e, por
isso, suspeitos, pois também se poderia presumir
que a sua abstenção proviesse do receio de não
encontrar outro igual, isto é, outro casamento feliz
como o primeiro. Assim é que a imparcialidade faz
ver o outro lado das cousas e nos faculta a nós, que
não amamos a viúva, por isso mesmo que a não
amamos, defendermo-la dos que a querem
ardentemente. De resto, nisto de casamento, entre
ou não o amor, tudo é muito relativo, precário,
fuginte às assertivas categóricas, como tudo o que
se refere às mulheres no seu trato com os homens.
Si fosse possível dizer, como Wilde, num dos seus
paradoxos, que "quando uma mulher se casa segun-
da vez é porque detestava o primeiro marido e
quando um homem se consorcia de novo é porque
adorava a primeira esposa" teríamos já então uma
"lei" acerca das segundas núpcias ou dos que
reatam o nó partido da maridança. Os
acontecimentos, porém, contestam e desmentem o
princípio wildeano, pois estamos a ver
freqüentemente se remaridarem mulheres que
adoravam com verdadeiros extremos os seus
esposos e homens que em nenhum apreço tinham as
suas primeiras consortes...
Eunice, por si só era um desmentido vivo a
todas as leis imagináveis, tal a sua instabilidade que
a ninguém dava tempo de formular um juízo seguro
acerca de sua pessoa. Era dessas criaturas cujas
pensamentos e inclinações, gostos e vontades só se
poderiam aquilatar por um anemômetro, tal a sua
variabilidade e inconsistência. Sabia, entanto, ser
volúvel sem dar a impressão de que o fosse e, isto
porque, ao certo, em dado momento, todos tinham a
impressão de que a viúva os amava a cada um de
per si, com exclusão dos demais, quando, no fundo,
a verdade era que só se amava a si mesma, através
do culto que lhe prestavam os seus amadores.
Vaidosa a mais não sêr, dissimulava a sua garridice
que assim ficava parecendo natural dom de sua
formosura e por espontânea qualidade de espírito se
tomava o que aliás pareceria arrebique de loureira.
45
46
PIEDADE
Paulo sentia-se arrebatado de admiração pela
encantadora viuvinha desde que, no jardim, lhe
fôra, certa noite, apresentado. Na sua manobra
habitual, nisso que constituía a sua estratégia do
coração, fingia a grácil viuvinha não perceber o que
tão evidente se fazia nos olhares expressivos do
moço. Ali nas "touradas" achou, porém, ensejo para
se aproximarem e melhor se conhecerem. Tinha
para si o Machiavel de saias, Talleyrand
aperfeiçoado pela astúcia atávica de Eva, que é
conhecendo-se bem que se pode evitar-se melhor.
Paulo até ali fôra-lhe um perigo, porque o não
conhecia e desejava conhecê-lo para o poder
malpresar. Todos os homens que antes se lhe a
figuravam cheios de qualidades e encantos, mal os
privava um pouco, reconhecia ficarem aquém do
seu "ideal". O mesmo seria com este, pensava.
Conhecer é desenganar-se, dizia-se Eunice,
traduzindo, sem o saber, o pensamento do poeta que
declarou ser o conhecimento fonte de tristeza:
knowledge is sorrow. Paulo, ao invés, cuidava achar
na intimidade da viúva prazeres e alegrias para a
sua vida de frade leigo, de solitário no meio do
mundo. Movidos assim por intentos diversos,
andaram nessa tarde se buscando, sem querer dar
motivos a que ninguém lhes suspeitasse os desejos
recíprocos. Já pela tardinha, conseguiram falar-se.
Mas pouco, guasi uma troca de palavras fúteis,
47
JOSÉ DE MESQUITA
impressões acerca das "touradas" e só. Eunice
despedia-se, pretextando ligeira dor de cabeça, que
a forçava a tomar rumo de casa.
— Como isto vai ficar deserto e triste!
galanteou Paulo.
— Por quê? perguntou, entre ingênua e
irônica, a viuvinha.
— A senhora bem o sabe... Porquê vai entrar
o sol que nos dá luz e calor.
Num gesto vago apontava o poente, distante.
Eunice, com o mais faceiro sorriso, retrucou,
lisonjeada:
— Mas virá dentro em pouco a lua... Há
muito gente que prefere o luar: é mais poético:
Estendeu-lhe a nívea mãozinha, delicada
como uma flor, alva camélia quintipetalar aromada
a Coty...
Paulo teve ímpetos de beijar-lha. Porque não
conservamos os velhos hábitos cavalheirescos que
autorizavam beijar-se galantemente em publico a
mão das senhoras? — pensou o advogado.
Eunice, sem dar peja perturbação do moço,
afastara-se, casquinando uma risada argentina a
uma observação que lhe fizera uma das amigas. E
Paulo, acompanhando a com os olhos, pôs-se a
pensar a que se referiria a ardilosa viúva quando
falara na lua, mais poética, que muitos preferem ao
astro do dia...
48
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
Léo chegara-se-lhe de súbito, convidando-o a
fazer um repasto... E dando pela sua emoção,
percebeu o que lhe ia pelo interior e, com riso
malicioso, declamou-lhe, a meia voz, o final do
soneto a que se referira Cardozo poucas horas
antes:
«Contudo eu dera sonhos e alegrias,
Para deixá-la, após a união de uns dias,
Viúva, meu Deus! pela segunda vez!..»
CAPITULO VIII
Festa de núpcias
NA SEMANA que se seguiu às touradas foi o
casamento de Regina.
As cerimônias, contra o que pretendia D.
Francisca, revestiram-se de certa pompa, consoante
o desejo do noivo, que assim pretendia mostrar aos
seus amigos a importância do enlace que ia fazer.
Décio era um pouco frívolo, algo vaidoso, mas de
bons sentimentos e melhores costumes. Escolheu
testemunhas entre as pessoas de maior
representação social, vindo nesse dia à casa da
viúva Monteiro, como disseram as folhas, o escol
da sociedade.
49
50
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
Um dos padrinhos do nubente foi o Coronel
chefe da guarnição, a quem Décio devia já finezas
que o habilitavam a esperar por outras maiores.
Houve cuidado em convidar gente boa e escolhida,
tendo assim Regina um lindo cortejo de damas de
honra e cavalheiros a acompanhá-la à igreja.
Paulo, que, desde as touradas, vinha
perseguindo a formosa Eunice, com olhares
insinuativos e constantes passagens pela sua casa,
achou ali ensejo mui propicio para a desejada
aproximação. No baile dançou com a viúva as
melhores contradanças, gabando-lhe a exímia
perícia; no chá, que se serviu às dez da noite,
descobriu jeito de casualmente sentar-se-lhe ao lado
e conversá-la todo o tempo. Findo o chá, ao
voltarem para o salão, notou, certa vez, Maria da
Piedade que, a um desvão meio obscuro, o fitava,
acenando-lhe com a mão. Encaminhou-se para lá e
viu que, ao lado da prima, quasi escondida pela
cortina branca, outra pessoa se encontrava, da qual,
embevecido no seu namorico com a viúva, mal se
havia até essa hora apercebido.
— Quero apresentar-lhe a minha amiga
Teresa Lemos, que faz muito gosto em conhecê-lo,
Paulo, disse a prima, apontando a moça, que, sem
embaraço ou acanhamento, antes naturalmente, lhe
estendeu a mão, risonha:
— Dr. Paulo... É uma caçoada de Pieda-
de... Somos velhos conhecidos, mas, com
franqueza, o senhor hoje não tem olhos para
ninguém sinão para Eunice.
Dissera-lhe isso com uma ironia que Paulo achou
graciosa e ali ficaram seguramente um quarto de
hora, palestrando, sozinhos, pois Piedade pouco
depois pedia licença e se retirava a acudir a um
chamado de dentro. Esteve Paulo a considerar,
numa demorada observação, a figura esbelta e
pouco vulgar dessa moça. Não era, decerto, a
primeira vez que a via e que a sua presença o
impressionava. Alta, muito clara, cheia de formas,
olhos pretos que coavam dentre os cílios longos
uma luz velada e mortiça, não era, todavia, a
expressão do rosto de Teresa Lemos que mais
seduzia a imaginação de quem a visse, antes o seu
maior encanto residia no conjunto do corpo, de
linhas bem traçadas ao torno de uma natureza que
os estatuários imitam mas raramente lhes é dado
igualar. Os seus braços grossos e roliços, de uma
epiderme alvíssima, fina, onde as veias
transpareciam aniladas, vestiam-se ao de leve, de
um sombrejo que fazia lembrar a pubescencia
delicada das folhas da malva. O seu todo
harmonioso desprendia essa fatal e perturbadora
impressão de mocidade robusta e sadia, numa
estranha mescla de candura e malícia, cujo estigma
se lhe via nos lábios um tanto grossos e nos olhares
que pareciam cúpidos e
51
52
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
amorosos. Si bem lhe observassem as feições e as
particularidades não seria caso de a qualificar
formosa, no rigor dos códices de arte, mas a mulher
não é como uma estatua, um painel que se
desarticula traço por traço e linha por linha, para
dizer da sua graça. Quantas vêmos que, num total
de perfeições, se nos antolham desagradáveis e
antes nos prende e seduz uma bôca seu tanto maior
ou um nariz seu tanto mais pequeno que o exigido
pelos legisladores da arte. Si possível fosse repetirse a fatal Helêna, numa outra que reunisse os trinta
pontos da formosura integral recapitulados pelo
Cornigero, estou — e você, também, leitor — que
nós lhe preferíamos qualquer moreninha picante,
mas graciosa, de nossa intimidade. De Teresa o
mesmo se poderia dizer: a cútis do seu rosto, com
ser branca, era marcada de pequenos pontinhos de
cataporas, que, diga-se a verdade, só se viam bem
de perto, ou com o microscópio de uma observação
muito especial. Para um rigorista dos cânones
femininos não assentaria bem certa excrescência
ligeira e escura na face lisa, mais que pinta e menos
que verruga, e, entretanto, a arte que nos perdoe,
como isso lhe ia bem, deliciosamente bem, a ponto
de nos parecer um complemento indispensável ao
seu it, a que sem isso faltaria qualquer expressão!
Arguir-lhe-ia o purista o exagerado de certas
formas, a
meia adiposidade do seio farto, dos músculos
glúteos, de algo mais que poderia ser menos, sem
prejuízo da harmonia relativa. Não pensava assim o
moço Paulo que, sem perceber quando lhe punham
reparo nessa disquisição prolongada, continuava a
fitá-la e, enquanto o tempo corria os segundos e os
minutos, a devorava gulosamente com os olhos. Via
em Teresa uma das suas criações de mulher. Depois
que deixara, na enseada vintaneira, os sonhos de
adolescente e renegara Lamartine por Baudelaire,
bem lhe parecia que, ao invés de uma figura
feminina superior e única, deve cada homem, ao
sabor da vida e ao léu das circunstancias, ter um
"ideal" de momento que lhe satisfaça os anseios
Djalma. Era bem esse o ideal por que ansiava. Sem
possuir, como Piedade, essa graça pura e virginal,
cheia de candor e doçura adolescente, que parecia
evolada de um quadro de Renoir, nem, como
Glorinha, a pureza dolente de uma visão angélica e
medieval, a esvair-se na penumbra de um tumulo,
nem ainda, como Eunice, a gentil viúva, essa
formosura fatal, estonteante e perturbadora, que
enliça, e arrasta para o fundo, o que fez dizer a
Anatole ser para a mulher a formosura a maldição
do céu — Teresa, entretanto, tinha, nessa hora, no
seu desgarre incomparável, para o seu espírito
abalado de tantas emoções, o irresistível elan de
uma inclinação que se so-
53
54
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
brepõe á nossa vontade e nos faz querer contra nós
mesmos. Durante o resto do baile o culto de
fervoroso apaixonado das déas se dividiu por egual
entre a solteira e a viúva. Sem que nenhuma se
pudesse melindrar, Paulo esteve, no seu
borboleteante temperamento, ora ao lado de uma,
ora de outra, passando assim o resto da noite num
duo interessante. O seu sentir, o seu gosto, a sua
inclinação de artista levava-o para Teresa, mas a
sua curiosidade espiritual o seu temperamento
amante de aventuras romanescas, o arrastava antes
para a inquietante e tentadora viuvinha. Soára já
meia noite quando começaram os convivas a
dispersar-se, em grupos de famílias residentes nos
mesmos bairros e que, assim, aproveitavam a
companhia para a volta. Restantes apenas os
íntimos, fôram conduzir os noivos para casa,
costume curioso e que religiosamente se conservava
até bem pouco tempo entre os provincianos.
Décio fizera o seu ninho de amor numa
elegante casita, recenconstruída no caminho do
Porto. Ao percurso, embora um tanto longo,
favorecia o doce luar, a noite fresca de maio. Paulo,
Álvaro e Léo seguiam atraz do cortejo, que
puxavam os dois esposos. De caminho, Léo
perguntou ao primo quando teriam o prazer de
também acompanhar em circunstancias como essa,
ao que lhe respondeu Paulo ser isso cousa fóra de
toda probabilidade, pois não
pretendia absolutamente fazer a infelicidade de
ninguém, ligando-lhe a vida à de um homem
doente, e mais esquisito e incontentável como se
presumia ser.
— Porque, Paulo? perguntou Piedade, que ia
no grupo, de moças que seguia logo adiante.
— Você não imagina quem sou eu! Criei, no
meu sonho de poeta, um ideal irrealizável, de uma
mulher perfeita na forma, no moral e na mente,
creatura que reúne, fundidas em um só ser, todas as
graças que a natureza distribuiu sem equidade às
mulheres do mundo todo, e, n’alma, como em um
cadinho, todas as qualidades capazes de fazer a
ventura do homem que elegesse para seu esposo.
Ora, positivamente, essa mulher não existe, não
pode existir... Seria uma deusa, pois só Deus é
perfeito, mas a religião que professamos excluiu
dos altares as deusas e, de conseguinte, a suprema
perfeição feminina. Para que uma mulher
satisfizesse ao meu ideal fôra preciso que pudesse
ser, ao mesmo tempo, a melhor cooperadora de
minha obra, a maior inspiradora de meus versos, a
superior razão de minha vida, a única e suprema
finalidade de minha arte...
— Si essa mulher existisse, Paulo, disse
Piedade, com vivacidade incontida, você não a
poderia amar.
— Não poderia? E porque?
— Porque imperfeitos, e fracos, nós só
55
56
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
amamos o que é, como nós, imperfeito e fraco... Só
a Deus amamos de perfeito, e isso mesmo
emprestando-lhe qualidades nossas, limitadas e
quasi sempre falhas.
Paulo calou-se. Nunca lhe parecera poder
uma simples menina, de relativa cultura, dispor de
tão profundos argumentos com que demonstrasse a
fraqueza da sua erudição livresca, de que tanto se
gabava. E quem sabe, pensou para si mesmo, é com
Maria, talvez, que está a razão...
CAPITULO IX
Amor à antiga
OS DIAS que se seguiram foram para Paulo
de desvarios e de sonhos. Todo entregue aos dois
amores em que se repartia a sua vida e o seu tempo,
o da formosa viúva, e o de Teresa, pouquíssimas
vezes vinha em casa de D. Francisca e os amigos
mesmos deram de reparar na sua completa
reviravolta de hábitos e maneiras, Ao cabo de três
ou quatro semanas, foi-lhe impossível sustentar a
extranha duplicidade do seu namoro e, entre as duas
que lhe compartiam o coração, não lhe custou
muito optar pela Tere-
57
58
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
sa, que mais fundo o impressionara. Dura e rude
prova ao amor próprio e à vaidade da viúva foi verse, de uma hora para outra, destituída e preterida
pela outra. Alguém, porem, sentira ainda mais esse
rompimento, e foi Piedade, que percebeu quanto
mais grave era agora o namoro de Paulo, que antes,
com duas, seria sempre um capricho e, ora, com
uma única, poderia passar a ser uma paixão.
Maria da Piedade amava o seu primo, desde
que o vira chegar dos estudos, sendo que mesmo
antes já, por vezes, pensava em Paulo quando,
distante, ouvia que se referiam ás noticias de suas
conquistas acadêmicas. Nunca, porém, a menor, a
mais leve demonstração se lhe lobrigara desse amor
esquivo, tímido e profundo. Vira-o, desde o
regresso, amável e cortês, tratando-a com gentileza,
longe, entretanto, da velha intimidade de outros
tempos, si bem que continuassem a tutear-se, pois
que, procurando chamá-lo — senhor — nos
primeiros dias, fôra advertida pelo primo, que, em
tom de doce censura, lhe dissera:
— Vamos mal com este tratamento
cerimonioso! Vejo que ainda acabo dando de Alteza
às minhas antigas companheiras de brinquedo
— E comadres... ajuntara risonha, D.
Francisca, referindo-se graciosamente aos antigos
compadrescos de bonecas, em que, geralmente,
Paulo fazia de padrinho, e Álvaro de
celebrante.
Com o andar do tempo, na constante
freqüência da casa, por parte do primo, foi se lhes
reatando a antiga familiaridade, despida de
cerimoniosos convencionalismos, e Paulo que
sempre manifestara, deste menino, certa preferência
pela Maria, mesmo por ser a afilhada de D. Carlota,
começou a sentir-se lhe perto no mesmo ambiente
agradável e bom que nos proporciona o convívio de
uma irmã mais criança do que nós. Semelhante
intimidade crescia de igual passo para ambos e
cresceu mais depois da morte de Mãe Roberta,
acontecimento que, na sua significação dorida, veio
aproximal-os ainda mais na co-participação dos
mesmos sentimentos. Com uma confiança
verdadeiramente fraterna, Paulo lia à prima os seus
verses que destinava à publicação na imprensa e até
alguns mais íntimos, em que desprendia os mais
recônditos perfumes de seu coração sentimental.
Maria, por vezes, dava o seu juízo acerca dos
trabalhos, com uma franqueza e segurança de vistas
que impressionavam o rapaz.
Tinha senso crítico essa pequena, que daria
uma boa esposa para um homem de letras,
necessitado da cooperação do lar nos seus trabalhos
de gabinete. A idéa, porém, que, às vezes, lhe vinha
de namorá-la e fazê-la mais tarde, a doce
companheira da sua vida, aba-
59
60
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
nava a cabeça, num gesto de repulsa viva, a dizerse:
— Não! Ou eu vim muito cedo ou a prima
muito tarde para sermos um do outro!...
Um dia encontrou-a lendo os seus contos que
deixara, por acaso, em poder do Léo. Entrou a
furta-passo, na sala de visitas, e deu com Maria da
Piedade sentada no mochinho do piano, toda
entretida na leitura. Quando percebeu que era o
primo, procurou, debalde, esconder o caderno, mas
foi tardio o seu gesto.
— Sim, senhora! Lendo os meus contos?
— É verdade, disse Maria, corando, com um
olhar mixto de candura e pejo. Fiz mal? Ha
qualquer cousa reservada?
— Não. Mas perdeu o seu tempo, que poderia
melhor utilizar estudando, por exemplo, o seu
Schubert ou a sua lição de bordado... Mas já que os
leu, diga-me, de qual gosta mais?
Piedade corou ainda mais ante a pergunta e,
para evitá-la, respondeu genérica e vagamente:
— De todos, Paulo. São todos igualmente
bonitos.
Dias depois, referiu-se a um dos contos, cuja
tessitura sentimental revelava a gênese de um amor
rapidamente nascido em uma curta convivência
entre os protagonistas, amor coup de fondre, como
dizem os franceses. E Piedade, risonha, pondo certa
malicia grácil no
olhar, ponderou:
— Ha muita cousa na literatura que não ha na
vida...
— Não acredita, então, num amor assim?
perguntou Paulo.
Não. Para mim o amor verdadeiro nasce do
longo convívio, da amizade sincera, do mutuo
conhecimento. O mais é fogo-fatuo...
Doutra feita conversavam, na varanda, e
havia presentes umas amiguinhas e veio ao léo da
palestra o velho caso da volubilidade.
— Para mim, sentenciou a Carmem, uma das
meninas que se achavam ali, não ha homens
constantes... Todos são volúveis. Ha os que fingem
e os que não sabem fingir...
— Eu penso, acudiu Paulo, que não ha
distinguir entre sexos neste capitulo de constância.
O homem é fiel, quando encontra fidelidade na
mulher e a volubilidade de um incentiva
naturalmente a de outro.
— Pois eu, acudiu Décio, marido de Regina,
creio mais na fidelidade dos homens...
Interveio, meiga e conciliadora, Maria da
Piedade:
— Ninguém é volúvel porque queira, homem
ou mulher. É volúvel por temperamento, natureza
ou educação. A gente, quando nasce, traz o seu
destino e ha pessoas talhadas para um amor eterno e
outras que precisam cada dia de um novo amor.
61
62
PIEDADE
Paulo sorriu. Haveria nisso intencionalidade,
com referencia aos seus vulgivagos amores?
Dando-se por desentendido, despedia-se dali a
pouco, para, olvidado da conversa que o aborrecera,
ir render o seu preito a Teresa, a formosa creatura
que, nos últimos tempos, lhe empolgara a
imaginação e lhe arrebatara os sentidos.
Ao voltar, passou pelo casarão dos Monteiros,
silencioso e já fechado e si lhe fosse dado enxergar,
através da matéria, seus olhos veriam, num dos
compartimentos mais discretos, o doce e sereno
perfil de uma virgem que, diante do oratório, olhos
marejados de lagrimas, pedia a Deus a conversão de
uma alma que julgava perdida para o seu amor.
JOSÉ DE MESQUITA
CAPITULO X
Planos sobre planos
NA sua vida volúvel e instável de rapaz
procurava, todavia, Paulo guardar, desde os tempos
acadêmicos, uma linha de superioridade moral, que
jamais lhe consentira ludibriar qual quer mulher.
Cavalheiroso e galanteador, sentindo uma
irresistível inclinação pelas damas, jamais seria
capaz, entretanto, de levar o seu jogo de amores
além dos limites que a conveniência estabelece,
burlando de boa fé uma creatura que se lhe
entregasse de corpo e alma, na obcessão
apaixonada.
63
64
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
A sua situação, bem por isso, junto da filha do
Lemos se tornava dia a dia insustentável, pois via
que a intimidade crescente entre ambos, pela moça
precipitada algumas vezes, o iria forçar dentro em
pouco ou a declarar-se ou a uma retirada honrosa e
coadunante com o seu temperamento e seus
princípios.
Teresa impunha-lhe à viva força essa escolha
terrível: impetuosa em seus sentimentos, franca por
demais em suas expressões, conseguira convencer o
moço de que nunca fôra amado dessa maneira.
Nem por isso se sentia Paulo mais feliz ante
as apaixonadas manifestações dessa jovem formosa
que para muitos seria o ideal supremo da existência.
Tão verdade é que "o prazer do amor consiste no
amor e somos mais felizes pela paixão que nutrimos
do que pela que inspiramos" no dizer de celebre
moralista, que o moço advogado, convencido de
poder contar incondicionalmente com o amor de
Teresa, começou a perder todo o antigo ardor que
lhe despertava, quando, desdenhosa, o acolhia.
Por esse tempo, surgiu na cidade uma infeliz
ave ele arribação que, de extranhas plagas, viera ali
parar, no ingrato mister de alquilar o seu amor a
quem lho melhor pagasse. Chamava-se Negrita,
nome de guerra que lhe escurecia e mascarava o de
família, já perdido. Curiosa coincidência talhara-lhe
a plástica das
formas e as linhas do rosto à semelhança da linda
Tereza, e, de tal modo se entrepareciam a moça
recenchegada e a aristocrática filha do Lemos, que
ver uma era estar vendo a outra, perfeita e inteira.
Numa de suas excursões de rara esturdice,
deu Paulo de conhecimento, num baile popular,
com a já então multifalada Negrita, que pelo rapaz
se tomando de viva inclinação, quís, a viva força,
conquistá-lo.
Notou o moço a identidade de maneiras que,
afinando com a das feições, quasi fazia de Negrita
uma Teresa de serralho e desta uma Negrita de
salão, ou ver em Negrita uma antiga Teresa
degenerada, e, nesta, talvez, uma futura Negrita...
Quem sabe as linhas passadas e futuras do destino?
De uma não diversificavam, realmente, os
meneios insinuativos e as doces intimidades da
outra, antes de tal sorte se ajustavam, que, posto,
mau grado seu, entre a viva fuzilaria com que
ambas, cada qual a seu modo, buscavam empolgálo, acabou. Paulo, enfarado e descontente, por
buscar meios e geitos de habilmente fugir-lhes.
Veio-lhe dali uma crise de tédio e desconforto
moral. Enfarava-o a vida estúpida e sem explicação
que vinha de ha tempos levando. A sua obra não
passara até então de grandioso esboço, sem
coordenação. A sua vida, como a sua obra, parecia.
lhe tam-
65
66
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
bem vasia, inútil, sem rumo ou significação.
Chegou a pensar seriamente em um passo que, em
criança, muitas vezes se lhe deparara como a sua
carreira: a vida religiosa. Voltava a retomar-lhe o
espírito a crença antiga, dando-se, ultimamente,
como que uma revolução no seu espírito versátil
que, após um prolongado mergulho nos prazeres
mundanos, propiciados no conhecimento da
formosa Negrita, buscava redimir-se a seus próprios
olhos em leituras suaves, doces contemplações e
pensamentos elevados. Fôra, de resto, sempre
assim, mescla extravagante e inexplicável de anjo e
demônio, de espiritualismo puro e carnalidade, de
idealização e concupiscência. Extranha duplicidade
do seu sêr moral o fazia deleitar-se, no mesmo dia,
com espaço de horas, nas paginas de um S.
Francisco de Assis, elevadas e sublimes, como vôos
no azul, e nas folhas de um Casanova, tresuantes de
torpes encantos. A sua vocação sacerdotal passou
também, ao cabo de quinze dias, e novos pendores,
novos planos entraram de esvoaçar-lhe na mente.
Iria passar um mês ou mais no sítio de um
amigo, na Beira-rio. A quadra era propícia. Pela
vasante, no começo da seca, a zona ribeirinha
povoava-se de encantos admiráveis. Levaria uma
Flaubert para as suas caçadas, um bom anzol para
fisgar peixes, nos cardumes, da primeira lufada,
ensaiaria a vida ao ar livre,
o pleno consorcio com a natureza, passeios ao luar,
de batelão, pescarias, banhos de água corrente, um
pouco de equitação, o bom leite espumante no
curral, às primeiras luzes do dia, tudo, porfim que
forma a poesia rústica das nossas casas de campo.
Glorinha, porém, tinha peiorado muito nas
ultimas semanas e foi-lhe forçado adiar a execução
dos seus planos diante do estado da prima. Por
outro lado, certos boatos que vinham correndo de
uma possível viagem de sua mãe à cidade o
detiveram nessa espectativa mais algum tempo.
Uma noite, em casa dos Monteiros, conversava-se
acerca do casamento da Lídia, uma amiga da casa,
com o Esteves, engenheiro recém-chegado à terra.
— Este comeu logo, "cabeça de pacú," disse
Décio, referindo-se à tradição local que faz crer que
o saboreio da cabeça desse peixe determina um
definitivo enraizamento no lugar por parte dos
adventícios.
— Ou bebeu "água da Prainha", replicou D.
Francisca, sorridente. Também a nossa "água" tem
suas propriedades milagrosas e prende os
forasteiros.
— A mim é que não me prenderia jamais,
apressou-se em dizer Paulo.
— Ora, mas você é daqui mesmo! disseram
os presentes, a uma voz, rompendo numa
gargalhada gostosa.
67
68
PIEDADE
— Por isso mesmo... Mas digo que nada me
prende — contra a minha vontade. A própria terra
natal, desde que me dê motivos de desgosto, sou
capaz de deixá-la para sempre e sem remorso
algum.
— A terra não é que prende ninguém, Paulo,
atreveu-se a dizer, timidamente, Piedade. Nós nos
prendemos à terra pelas pessoas... O nosso amor
humaniza a terra, mas, no fundo, o que nós
queremos não é a terra, são os que vivem na terra.
— Pois, olhe, por onde tenho passado, tenho
deixado... amizades... inclinações... dessas cousas
que prendem a gente... E nada, entretanto, até hoje
me prendeu.
Gostava de gabar-se, com certo ar fanfarrão,
diante das primas... Parecia que assim se dava mais
valor. Ninguém retrucou à sua tirada, sinão Piedade
que, baixinho, disse, quasi para si mesma: — E que
você ainda não padeceu de verdade... só a dôr
verdadeira é que ensina a amar!
69
JOSÉ DE MESQUITA
SEGUNDA PARTE
70
PIEDADE
CAPITULO I
Luz que se apaga
NA sala, para onde a haviam transportado por
determinação do medico, Glorinha agonizava.
Paulo se contivera entreportas, sem animo de
entrar. A hora era devéras pungente. Sob o lençol
alvíssimo, o corpo da moça desenhava-se esquálido,
recostado aos travesseiros, e no seu rosto via-se já o
vinco doloroso e fatal que a morte imprime aos
eleitos do seu ósculo de gelo. As mãos de longos
dedos esguios, com as unhas arroxeadas, apertavam
ao seio um crucifixo de marfim, linda obra de arte e
maravilhosa imagem de fé,
71
JOSÉ DE MESQUITA
relíquia familiar que recebera o ultimo suspiro de
três ou quatro gerações, confortando, no angustioso
transe, velhos e crianças, moças em flor e
encanecidas avós. Viera do Reino, com o chefe da
casa, quando se pusera mar em fora, a cata de
aventuras, e atravessara sertões inhospitos, galgara
serras e vadeara torrentes, vindo ter a esse recanto
esquecido do mundo onde o velho luso se radicara e
se prendêra definitivamente nos braços da formosa
"flor das morenas", a grácil Rosinha, que fôra o
tronco da nova raça, nascida na terra nova e virgem
da América. Recebia esse Jesus macerado, de
feições suaves e divinas, o ultimo suspiro de um
rebento da raça forte dos Monteiros que, em plena
adolescência, se alava ao desconhecido e Paulo
contristava-lhe ver o quadro lúgubre desse aposento
cujo silencio só as lagrimas abafadas quebravam.
D. Francisca tinha sido retirada quasi à força do
quarto, desde que, após a segunda crise, o Dr. Lima
percebera estar próximo o desfecho da moléstia de
Glorinha. O leito fôra posto no meio do
compartimento, cujas portas se abriam à luz
morrente do crepúsculo. Regina e o marido,
Piedade, a velha tia Carolina, compunham toda a
assistência desse doloroso drama. O Padre cura,
chamado, á pressa ministrara a enferma o último
sacramento retirando-se para assistir a outro doente
grave, o Coronel Mei-
72
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
ra, cardíaco e às voltas com a influenza que o
prostrara. Regina chorava silenciosamente, toda
unida ao esposo, o Tenente Decio, que, também
mal conseguia dissimular a sua emoção. D.
Carolina e Piedade, cada uma de um lado do leito,
procuravam, com dois grandes abanicos de palha,
diminuir as ânsias que torturavam a moritura. As
sombras iam invadindo a sala e, da varanda visinha,
vinham os brados dos canários de Léu e o
monótono tiquetaquear do grande relógio de
parede. Levantou-se Piedade, na ponta dos pés, sem
rumor, para fazer luz no candelabro sobre a
mesinha de jacarandá. O silencio se tornara maior,
mais augusto, mais profundo. O pulsar do seio da
enferma diminuía sensivelmente, dando a
impressão de que ia melhorar ... Era, porém, não, a
melhora, sim a libertação definitiva da dor que a
excruciava, o desprender-se da carcérula do corpo
dessa alma pura de virgem que longos penares
redimiram. Léo entrou, acompanhado do Doutor
que tivera de ir fóra para acudir a outro chamado,
Sorprezou-lhe, encontrar ainda viva a doente. —
Boa constituição tem Glorinha, segredou a Paulo.
Não fôra esta moléstia cruel...
A agonizante, entretanto, cerrara os olhos,
depois de os passear por toda a sala, numa
demorada observação. Estendeu a mão esquerda à
irmã solteira como a despedir-se. Num arquejo mais
forte — o ultimo — o seio disten-
deu-se-lhe, sob a camisola de rendas... Uma lagrima
deslisou-lhe, lenta, pela face cavada, cujas feições
se sobrenaturalizavam, emaciada pela morte, que
aprezava, porfim, a sua escolhida. Num grito,
Regina precipitara-se sobre o leito. Todos correram
em torno de Glorinha, que deixara de viver... E
ninguém poude conter uma pessoa, que, aos gritos,
penetrara no aposento e, debruçando-se sobre o
cadáver ainda cálido; exclamava, em soluços:
— Minha filha!
Era D. Francisca.
73
74
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
CAPITULO II
ma um apoio moral à sua existência, Como, porém,
aproximar-se-lhe pelo amor, si o que entre ambos
havia de franca intimidade excluía, só por si, um
sentimento diverso e passional. De que maneira
fazer sentir à doce creatura os seus intuitos, si via
em Piedade antes uma irmã, uma amiga, uma
companheira da meninice, do que a perturbadora
mulher que nos infunde o amor e nos prende
durante toda vida?
Parecia-lhe, entanto, que no seu estado de
doença, diante da sua idéa da vida, neste período de
dissolvência em que a sociedade se arrasta,
nenhuma outra poderia assegurar-lhe um porvir
sereno e sem tragédias íntimas, senão essa ingênua
menina, viva, atilada, mas sem noção do mal,
bonita e meiga, criada sob as suas vistas, no
recatado ambiente familiar, no meio de gente à
antiga, zelosa das tradições honestas e puras do lar
brasileiro.
Dispor-se-ia a moça, porém, a tamanho
sacrifício, qual o de renunciar a partidos vantajosos
que se lhe poderiam deparar, tão criança que ainda
era, e graciosa? Só o amor infunde essa virtude
suprema de renuncia, esse poder sobrehumano do
holocausto do seu futuro, das suas alegrias, do seu
conforto, pelo prazer único de conviver com o ser
amado.
Que certeza poderia ter de inspirar a Piedade
outro sentimento que não fosse essa
Os caminhos do coração
NO começo da crise que se manifestara no
espírito conturbado de Paulo, a morte de Glorinha
fôra um elemento poderoso, contribuindo para mais
exacerbar-lhe o nervosismo hereditário.
Conta salutar revide, veio-lhe, numa onda de
saudade, todo o seu passado à memória e começou
daí a planear um futuro que tivesse no passado os
seus alicerces. Voltava-lhe o pensamento, tantas
vezes vindo e revindo, de procurar no consorcio
com a pri-
75
76
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
fraternal e recíproca amizade que sempre se haviam
demonstrado, tão longe, entanto, do verdadeiro e
apaixonado
amor?
De
interrogação
em
interrogação, de duvida em duvida, ia-se o espírito
do moço pairando assim num mar de indecisões, de
receios, de desejos que não tomavam corpo, porque
temiam a realidade, sendo lhes mais propicio esse
intermúndio do sonho e das idealizações. Não podia
furtar-se, mau grado a si mesmo, a certa
perturbação que de algum tempo lhe causava a só
presença da prima. Via a ligada, por elos de uma
cadeia invisível, mas que se fazia sentir
imperiosamente, a todas as recordações mais gratas
do seu passado distante ou próximo. E o passado,
mesmo, quando o não queríamos, exerce um papel
importante e decisivo em nossa vida. Ninguém
consegue furtar-se lhe a influencia boa ou nociva e,
por mais frio e prosaico, que homem haverá que se
esquive de todo ao poder dessa força imperiosa da
evocação? Paulo, temperamento de romântico
retardatário, vivendo no meio de uma sociedade
burguesa, avessa ás idealizações, sentia mais que
ninguém esse prazer da segunda vida, da vida
mental, superior à vida quotidiana e banal. E, por
isso, o amor que sentia por Piedade começou a
deitar raizes profundas em seu coração.
Grande é o amor que vive do futuro, de
esperanças e sonhos, de utopias e desejos amor em
que cooperam, de meeiras, a esperança e a
imaginação; maior é o amor que se entretém de
realidades, confina-se no presente, alimentando-se
do gosos ou prazeres, que a hora fugidia leva como
águas correntes do viver; acima desse, porém,
máximo em sua ultrapotencialidade, é o amor que
se arraiga profundamente no passado, como arvore
que, frondejante, se infiltra radicalmente no mais
secreto do terreno, amor que se liga a cada
evocação e a cada saudade, feito culto e tradição da
religiosidade mais intima e universal, a do
sentimento.
Paulo se apercebia do que realmente se
passava na sua alma e presentia na inclinação que
insensivelmente o arrastava para Piedade, menos
que o lento desabrochar de uma paixão, o
desenvolvimento gradual de uma velha e sincera
amizade, quando muito essa forma particular da
amizade amorosa que inspirou a Stendhal o motivo
de uma obra e que, no dizer de Semaitre "é mais do
que o amor, por ter deste todos os encantos e nada
dos seus percalços e grosserias."
Atilado observador de almas, que se julgava
ser, não lhe acudia, como, em geral acontece em se
tratando de casos de auto-observação, que o nosso
espírito é essencialmente dotado de uma força
evolutiva a que só se fur-
77
78
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
tam os que, em qualquer grau, alcançaram o estado
de perfeição, a perfeição que concretizamos na
"santidade" e é para os hindus representada no
nirvana absoluto.
A amizade, por mais franca, limpa de
interesse ou malicia, tende fatalmente, entre sexos
diversos, a converter-se em amor, em desejo,
quando não de intimidades maiores, em ânsia de
maior identificação moral, que acaba, procurando
fundir os seres diversos em um sêr...
Pela lei dos contrastes, soberana no mundo
espiritual, como no da matéria, o amor também,
com a convivência, se inclina a fazer-se amizade
pura, dês que se percebe a impossibilidade dessa
fusão desejada, ardentemente tentada e irrealizável.
Um anseio ou uma vibração nos leva da mais
serena amizade ao amor mais ardente; uma
decepção, um dissabor, nos reconduz da paixão
mais violenta à primitiva amizade. Nesse circulo
vicioso está toda a historia natural do coração
humano, eternamente desejoso e eternamente
insatisfeito, amando e desenganando-se do amor
para novamente amar. Tendemos, por essência, à
fusão, à unificação, à integração com um ser que
pressentimos melhor que nós, moral ou
mentalmente: o ser amado. Buscamo-lo através de
todos os seres, e depois de muito nos enganarmos,
julgamos o haver encontrado, e ainda nos
enganamos. A lei inversa da sepa-
ração, da especialização, da libertação individual
nos domina e pensamos que o amor seja um jugo
por demais pesado, e sacudimo-lo, si o podemos,
para, mal libertos, buscarmos, ansiosos, novas
prisões. Entre a utopia da liberdade e a do amor,
esta. é a que vence, pois o homem póde ser definido
— o sêr que procura o amor, quando o não tem, e
foge deste, quando o possue. Feliz o que achou na
fé o seu ideal, em Deus a sua aspiração, o que tem
na arte pura o seu único amor!
Isto pensava Paulo, absorvido na sua agitação
interior, oito dias corridos sobre a morte de Maria
da Gloria. Estava só no gabinete, esperando a hora
emprazada para ir, com Léo e as primas, ao
cemitério, quando vieram avisá-lo da visita de um
velho amigo, que desejava instantemente dizer-lhe
duas palavras.
79
80
PIEDADE
CAPITULO III
Ricardinho
ESTE amigo era o Ricardinho e merece que
lhe consagremos um capitulo. Antigo companheiro
de infância de Paulo, conservara, através do tempo
decorrido e das varjas vicissitudes da vida, uma
estima respeitosa e sincera ao velho vizinho de
banco dos estudos e, não obstante a grande
distancia que os haveres e a posição social
interpunham entre os dois, Paulo não lhe lembrava
jamais de outra amizade tão carinhosa
81
JOSÉ DE MESQUITA
e prompta a externar-se em manifestações de toda
espécie como a do filho do professor Pereira.
Ricardinho era mais velho que Paulo quasi
um lustro e terminado o seu curso preparatoriano,
no qual revelara especial aptidão para os estudos de
vernáculo, abrira um curso particular que lhe dava
os parcos elementos à sua subsistência e de duas
irmãs que tinha em sua companhia. Jamais
conseguira empregar-se, e de uma feita o haviam
mesmo desenganado nas suas pretensões, fazendolhe ver o seu todo desalinhado e falto de certa
compostura para o desempenho de um cargo
publico.
Outros havia peiores e, todavia, bem
arranjados, poderia ter redarguido, si o seu natural
receio e a esquerdice do seu gênio lho não
empecessem semelhantes franquezas. Resmungou
qualquer cousa e, entre risonho e iroso, despediu-se
do "chefe" e veio para casa, onde, como única
represália, rasgou o seu titulo de eleitor, jurando
para os seus botões nunca mais dar o seu voto a
esses "ingratalhões da
politica".
O seu fraco, porém, diga-se sem rodeios, não
eram os empregos, de que logo desistia, e sim as
meninas, que o faziam padecer e das quaes não se
conformaria jamais em abrir mão, apezar dos
dissabores que lhe traziam ao coração simples e
exageradamente piegas.
82
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
Ricardinho era a figura do homem
mulherengo, do fraldeiro, que só se sente bem à
sombra amparadora das barras de saia, como si a
consciência de sua natural inferioridade mental lhe
incutisse a necessidade moral de um apoio na
existência, que só o carinho, sinão a compaixão
feminina, lhe poderia dar. Infeliz, porem, ainda
nisto, não lhe fôra possível encontrar até os seus 29
janeiros, que os tinha bem contados, a compassiva
criatura cujo amor o redimi-se a seus próprios olhos
e o soerguesse ao nível dos demais homens que
"são amados". Parece até que a intensidade com que
exteriorizava o seu amor, numa franqueza assas
desagradável para o seu alvo, contribuía para o
nenhum êxito das suas investidas junto às mulheres,
legitimas herdeiras da mãe-Eva, que preferiu a
todos os frutos que se lhe apresentavam, viçosos e
maduros, pendentes das arvores edenicas, aquelle
pomo defeso e pouco accessível, cuja provança lhe
insinuára a serpe insidiosa. Como quer que seja,
Ricardinho tinha bem pouco da serpente, porque
não sabia tentar e nem dissimular os fins para obter
o que queria. Ver uma pequena graciosa e terna,
impressionar-se e declarar-se rendido aos seus
encantos — tudo isso era-lhe uma só cousa um só
estado de emoção. As divas, preferem, ao invés,
quem as procure sem demonstrar-se rendido de
todo e a-
mam vencer certos embaraços para mais tarde disso
se gabarem. Ha até as que, não tendo rival
verdadeira, a criam, para deleite da sua imaginação
e pábulo de ciúmes que, com serem vagos, não são
menos intensos. Ricardinho, este, coitado, não
amava sinão uma de cada vez e ardorosamente...
Radicara-se ultimamente na paixão por uma loura
esplendida de viço e radiante de mocidade. Era o
paradigma que lhe agradava, pela lei dos centrastes,
de poderosa influencia nas relações do amor. A sua
cor terrosa de mestiço sorria a perspectiva de uma
esposa bem clara e ruiva, como Helenita, em que
todos os seus traços de retardario, marcado por uma
cruel degenerescência, encontravam o complemento
feliz, o que justamente lhe faltava. A sua testa
estreita, os seus olhos acanhados e ajaponezados, o
seu nariz rombo, os seus cabellos curtos e grossos,
o seu todo mal ajambrado e anguloso estavam a
pedir, na ânsia da Natureza pelo corrigir seus
defeitos e apurar-se em um estagio melhor, essa
fronte vasta e radiosa, esses olhos glaucos e lúcidos,
como duas gelosias rasgadas para o azul, esse perfil
aquilino, cortado à grega em mármore humano,
aquella coma vasta, ondeada, fulgurante de tons de
sol e de luar, o completo, porfim, de perfeições
vivas que fazia da moça da Rua de Cima a criação
ideal dos sonhos de Ricardi-
83
84
PIEDADE
nho, justamente por ser o seu inverso.
Helenita não déra por si na muda e ardente
idolatria que, na sua pessôa, votava o obscuro
professor ao radioso sexo a cuja conta corre,
segundo os mais autorizados testemunhos, a
perdição da humanidade. E dali a tortura do infeliz,
entregue, mais do que ao ridículo publico, que lhe
passava despercebido, ao próprio e irreparável
ridículo de que a sua mesma consciência o apodava.
Nesse dia viera disposto a um entendimento
definitivo, mas tímido, incapaz de deliberar por si
mesmo, a sua hesitação o aconselhara a tomar ainda
um parecer com o seu velho companheiro. E ali está
porque, tão cedo, em hora inadequada, se pusera a
caminho do gabinete de Paulo, onde o vamos
encontrar.
85
JOSÉ DE MESQUITA
CAPITULO IV
Um amante platônico
NÃO conseguiu Paulo reprimir um
movimento de contrariedade ao ver em sua frente o
velho amigo, presentindo logo o motivo da sua
visita matinal. Ao notar, porém, em Ricardinho,
veio-lhe antes uma vontade doida de rir, que com
esforço, conteve, tal a canhestrice do rapaz, o seu
todo mal ajambrado num terno de brim riscado,
segurando na mão esquerda um chapéo de côco e na
outra o guarda chuva velho, de cor cinzenta, as
varetas pendentes fora dos noêtes. fê-lo sentar-se e,
depois dos cumprimentos, vieram as perguntas pela
saúde, que Ricardinho tornava minuciosas:
86
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
— Então o meu presado amigo bem, não é? E
os seus, todos? A Exma. D. Carlota, tem tido
notícias? E o nosso caríssimo Álvaro, e a sua
Esposa como estão?
— Todos bons, agradecido, responde a Paulo,
num laconismo irritado.
Ricardinho, sem perceber a indisposição do
amigo, passeava os olhinhos piscas e gateados pelo
gabinete,
dizendo,
em
pronunciado
tom
encomiástico:
— O amigo é que sabe viver... Uma casa bem
arranjada, uma sala de primeiríssima, sim senhor! E
que magnífica livraria escolhida e numerosa!
Qual! apenas o necessário! retorquiu o
advogado, intimamente lisongeado e já sentindo
melhores disposições ante o elogio de Ricardinho.
E você, tem muitos livros? Um professor deve lêr
muito, não?
— Alguma causa, meu amigo. As posses,
porém, não facultam se tenha quanto se almeja... O
preço dos livros hoje é muito alto para os que não
dispõem de grandes recursos pecuniários.
Paulo sorriu. Agradava-lhe, como um
desporto mental, provocar a loquacidade do antigo
companheiro e ouvi-lo falar, na sua linguagem meio
preciosa, empolada e cheirante a classicismos
tirados de velhos quinhentistas. E para ser gentil,
esclareceu:
— Excusa dizer que os meus livros estão
sempre à disposição do caro amigo... E dizer por
onde quer começar suas leituras.
E levantando-se, num gesto elegante, a
ageitar a gola do pijama azul com alamares creme,
foi até perto da estante de embuia, a pequenina
estante de obras clássicas, para a qual, ávido,
Ricardinho lançava os olhares curiosos.
— Tenho aqui o Camões em diversas
edições... O Fernão Mendes... Sá de Miranda .. "A
Vida do Arcebispo"...
Oh! isto é admirável! exclamou, num assomo
incontido, o ledor dos bons mestres da língua.
— E, em outro gênero, o Bocage, o
Tolentino, o Felinto... Esta prateleira é só Castilho...
Aqui em cima, as obras de Herculano... Si você
prefere os modernos...
Ia Paulo passar para a outra estante, dos
autores contemporâneos, mas Ricardinho o deteve,
vendo que o tempo se consumia, sem que pudesse
abordar o caso que o trouxera à casa do advogado.
— Não... Não... A mim me apraz de
preferência a leitura dos clássicos... O amigo bem
sabe. Hoje o que ha por aí são lantejoulas falsas,
com que sóem se ataviar os Eças et concomitante...
Não. Vale mais o brilho do ouro de lei. Os antigos
sobrepujam em tudo esses renovadores...
Paulo sorriu e veio-lhe a idéia de contes-
87
88
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
tar a Ricardinho, mas percebendo.lhe a impaciência
no olhar, voltou para o divan e enquanto acendia
um cigarro, interrogou o outro, para cortar-lhe a
indecisão e forçá-lo a entrar no caso.
— Como vão os seus amores com a
encantadora Helenita?
Num pigarro que lhe acudia toda a vez que
era assim arrastado, de chofre, para motivo tão
sublime, respondeu o enamorado rapaz:
— É, em parte, o que me demoveu a vir hoje
procurá-lo, meu amigo. Dias atrás já vinha
alimentando este desígnio, porém o infortúnio que
pesou sobre a sua nobre família, com o chorado
passamento da sua prima a Exma. Sra. D. Glorinha,
não me consentiu satisfazer antes este desejo. E, a
propósito, a Exma. Sra. sua tia vai passando bem,
mais confortada? E as suas Exmas. Primas?
— Que fazer meu, caro, nestas circunstancias,
sinão conformar-se? Vão passando melhor,
obrigado.
— Perfeitamente. Ao que dizia, deveria o ter
buscado já ha alguns dias para consultar a sua
experiência e tomar um aviso do antigo comdiscípulo acerca de certas cousas...
Ricardinho reticenciou o seu pensamento e
Paulo, vendo-o hesitante, esporeou-lhe a coragem
com uma pergunta:
— Dar-se-á que tinha havido algum
rompimento?
— Jamais, meu amigo, jamais. Os elos que
nos unem são assaz fortes, que só a morte os
desliará. A família entretanto, é que se recusa
formalmente ao nosso enlace. Tomados de
preconceitos absurdos, pretendem que eu não esteja
na altura de ser o esposo de Helenita...
— Oh! que absurdo, realmente! fez Paulo,
num gesto estudado de revolta. E a moça?
— A despeito da campanha contra mim
movida, sobretudo pelo pai, e pelos irmãos,
permanece-me fiel, guardando, todavia, como
recatada e submissa filha, certa frieza, a meu
respeito. Oh! mas eu tenho a certeza plena e
integral do seu amor!
— Já lho disse alguma vez, naturalmente...
— Isso não, meu amigo A pudicícia lho
vedaria, mesmo quando ensejo se nos deparasse a
uma conversa. Tal ensejo, porém, ainda não houve,
até ao presente, tão custodiada vive a minha
adorada deidade!
— E as demonstrações que o autorizam a essa
certeza são eloqüentes, não? inquiriu Paulo,
curioso.
— Eloquentissimas! Olhares e sorrisos
inequívocos .. Piscares de olhos, cumprimentos
amáveis, acenos de cabeça que não deixam dúvida.
Deante dos parentes e de extranhos a coitadita tem
que dissimular os seus véros sentimentos. Imagine
que um dia destes, porque ia acompanhada do
irmão, chegou a deitar-me a língua —
89
90
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
ó e com que graça! dizendo-me: — Você não se
conhece, seu quarta feira?
— Fingimento, de certo, ponderou Paulo,
quasi a estourar numa risada.
— Isso mesmo. Pura dissimulação, A
pequena é hábil e maneirosa. Ama-me, tenho a
certeza. Lá isso, em presença dos parentes, poderia
para os não desgostar, até atirar-me pedras...
Ninguém me dissuade do seu amor!
Paulo, que via até ali o lado cômico da paixão
de Ricardinho, apiedou-se sinceramente do amigo e
teve ímpetos de abrir-lhe os olhos, fazendo-lhe ver
a sua ridícula posição. Pensou, entretanto, na
inutilidade de seu gesto, que só determinaria uma
decepção para o outro, que vivia tão feliz no seu
voluntário engano. Dali, talvez, nem Ricardinho
acreditasse e ainda se fosse desconfiado de sua
amizade, o que seria realmente penível, pois, apesar
de tudo, estimava o amigo e aprazia-lhe o seu
convívio, no qual se divertia.
— E a sua consulta? perguntou, curioso.
— É que... O amigo bem vê, sou um homem,
um homem feito, em plena virilidade... Fiz ha um
mês atrás os meus 29 janeiros. Ora, não me é
possível viver assim em estado de solteiro, visto
que, pelo meu temperamento e modo de pensar,
sinto tender-me natural e irresistivelmente para a
vida conjugal. Desejo, pois....
— Pedir a menina, não é? apressou-se em
dizer Paulo, ansioso por terminar a estulta
conferencia, só agora se lembrando do
compromisso de sair com o Léo às 9 horas.
— Sim... Isto é, desejava saber do amigo, que
é jurista e consumado causídico, si diante da
impugnação da família, Helenita...
— Ah! lá isso não! Helena é menor ainda e
precisa o consentimento paterno para casar-se. A
menos que, — disse, rindo, ironicamente — se
aventurasse a um passo em falso por sua causa. O
casamento será então... como se diz, a reparação...
— Oh! isto nunca! meu amigo. Nem o faria a
pequena e nem os meus princípios inflexíveis o
consentiriam!
Paulo pensou, com malícia na fábula
lafontaineana da raposa e as uvas, mas, para velar o
seu pensamento, disse, como terminando a resposta
ao consulente:
— Haverá ainda o recurso do pedido de
autorização ao juiz, mas isso é mais complicado e
menos fácil...
Sim, mas, é legal pois não é? Eu o prefiro a
qualquer outro meio.
Paulo sentiu de novo uma profunda
compaixão pelo pobre Ricardinho e vexou-se ao
imaginar que esse infeliz, que a paixão obcecava a
ponto de não ver que era um jogral da sua amada,
pertencia ao seu sexo, era um homem, também, e
que, à guisa desse, muitos ou-
91
92
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
tros havia, mais lúcidos, mais raciocinantes, mais
apresentáveis, figurando na sociedade e vestindo
boas roupas, e que, no fundo, não passam de outros
tantos Ricardinhos, no amor, nos negocio, na
carreira...
Durante uma pausa que se fez na palestra,
Léo entrou e percebendo a situação do primo, pôslhe termo, forçando delicadamente a retirada de
Ricardinho com estas palavras:
— Você até agora ainda está assim? Ande.
Olhe que as meninas estão já vestidas, à sua espera,
para irmos ao cemitério!
CAPITULO V
Visita ao cemitério
AO transporem o portão de ferro da silente
cidade dos mortos, uma emoção singular assaltouos pensando na que iam ali visitar. Que restaria a
essa hora, sob o frio chão, da Glorinha formosa,
vivace, alegre, de outros tempos? Massa
empodrecida a se deformar dentro das quatro taboas
do féretro, eis o destino da que inda ha pouco
irradiava a sua graça e formosura nos salões e nos
passeios, eis, alfim, a sorte que estava reservada a
todos, também aos que hoje iam fazer essa macabra
visita em que se não vê o alvo da fúnebre ho-
93
94
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
menagem, porque, si fosse para vê-la, ninguém se
animaria a tanto, por maior o amor e por mais
sincera a amizade que lhe devotasse.
— Ai do homem, ai de nós outros, pensou
Paulo, que, sem o espiritualismo, não passamos de
miseras larvas da terra!
Fazia um dia magnífico, um desses dias
límpidos, de começo de inverno, muito claros, de
céu azul achamalotado de nuvens brancas, com uma
viração suave a percorrer o espaço, trazendo o olor
distante da vegetação prenhe de seiva, na floração
radiosa... Do alto da Piedade viam-se, para a
esquerda, precinta azul a fechar os horizontes, os
recortes da grande Serra, bem nítidos na
transparência desse dia de sol, parecendo, à
distancia, uma visão de sonho, o descortino
sobrenatural de uma paragem encantada de
extranho orientalismo...
Pelas portas dos casebres que circunvizinham
o campo-santo, garotinhos nus e mulheres
maltrapilhas e sujas estadeavam à grande luz a sua
miséria sórdida, como um eloqüente quadro da
vida, ali perto da mansão da morte. Paulo e os
primos — pois D Francisca não se amimara a vir,
combalida como se achava — tomaram lentamente,
mudos, o rumo da sepultura de Glorinha. Num
recanto sombrio, para a esquerda da alameda
principal, a terra fresca, revolvida de pouco, lhes
indicaria o local, si já não o conhecessem de
referen-
cia. As duas; moças ajoelharam-se, detendo-se em
prolongada oração, que se entrecortava de soluços e
ais pungentíssimos. Paulo e Léo conservaram-se em
pé, num respeitoso silencio. Ercília foi a primeira
que se levantou, no que foi logo acompanhada pela
outra, dirigindo-se o grupo, depois de ter deixado
sobre o jazigo as flores trazidas, a procura de outra
campa silenciosa, junto ao muro do fundo, que
apenas uma cruz de madeira singela identificava no
meio das sepulturas rasas e sem nome que a
cercavam. Dormia ali a querida Mãe Roberta, que
recebeu da saudade filial dos seus "pequenos" e das
suas" meninas" a homenagem das preces e das
flores. Já de regresso, enquanto se detinham
curiosos, aqui e ali, lendo as palavras de saudade
gravadas sobre os mármores das lousas ricas ou nas
placas das cruzes humildes, reconhecendo velhos
amigos cuja memória se perdera no turbilhão da
vida, foi-lhes a vista despertada pelo chegar de um
préstito fúnebre. Era o enterro de uma mocinha,
pouco mais que uma criança. O caixãozinho branco,
com enfeites dourados, vinha sobraçado por quatro
meninas e deveria estar muito leve, tal a fácil e
desembaraçada maneira por que o conduziam. O
acompanhamento era, em maior porção, constituído
por moças e crianças, vindo atrás uns dez ou doze
homens apenas. Entreparados, a um dos lados da
ave-
95
96
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
nida central, deram Paulo e suas companheiras
passagem ao cortejo. O féretro aberto deixou-os ver
a morta, uma doce feição macerada de monja, olhos
fundos, longa e formosa coma, sob a grinalda de
botões de laranjeira.
— Noiva da morte... disse Paulo, baixo, ao
ouvido das primas. Que triste noivado!
— Quem é? Você conhece? Perguntou
Ercília.
— Não. Gente lá das bandas do Areão,
segundo me informaram...
Ercília, na sua curiosidade meio infantil,
propusera que assistissem ao enterro.
— Para que? perguntou Léo, que se dava
pressa em retirar-se. Vai ficar muito tarde.
Paulo, porém, votava pela proposta da menina
e já, acompanhado das primas, se punha a caminho
do local onde u grupo estacara.
Contrariado, Léo deixou-se ficar sentado num
dos bancos que margeam a alameda, em palestra
com um amigo que viera atrás do acompanhamento.
A beira da cova, os três primos se detiveram,
bem junto ao esquifezinho, que as carregadoras
tinham repousado no chão.
— Tão pequenina! Quasi um "anjinho"...
ponderou Piedade, penalizada.
— Que idade teria? disse Ercília, numa vaga
interrogação.
— Ia fazer doze agora no mês que entra,
apressou-se, solicita, em informar uma moça do
grupo, que, pelos modos, parecia da família da
defunta.
— De que morreu? perguntou Ercília,
animando-se a obter novos informes que
satisfizessem à sua curiosidade.
— Sei lá... respondeu, num muchocho a
outra, uma rapariga esguia, alta, meio amulatada, de
uma gaforinha enorme. Diz que foi da tal gripe.
Mas para mim foi de sentimento...
Lobrigando um romance, reticencêado no
"caso" da infeliz morta, as Monteiros calaram-se,
emocionadas, entreolhando se discretamente.
Ercília, pouco depois, quando punham a tampa do
caixão, tornou à conversa com a cabrochinha do
cortejo:
— De quem era filha esta menina?
— Da Joaquina Sacupéva... Uma mulher
moça, que mora lá pros lados do Areão.
— E era só esta? Não tinha outras irmãs?
— Póde que sim... disse ingenuamente a
informante. A Sacupéva andou muito tempo lá pro
Norte, no seringal. Mas em companhia só tinha
esta, a Briolânja, por alcunha Birí.
Os coveiros, entrementes, haviam atado às
alças do caixão duas cordas com que o soergueram
a altura dos braços, descendo-o depois lentamente
até o fundo da sepultura. Houve um sussurro surdo
nos circunstantes e
97
98
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
choros abafados se ouviram, partindo do grupo que
viera acompanhando o corpo. Cada qual, conforme
o costume da terra, tratou de apanhar uma flor, um
ramo, um torrão de terra, que atirasse sobre o
féretro. Começavam a tombar as primeiras pazadas,
num som oco e sinistro, sobre a fazenda do tampo.
Já alguns se retiravam, notando episódios do
acompanhamento, quando Paulo e as meninas
vieram encontrar Léo, na avenida. Adiantara-selhes a cumprimentar as pequenas o rapaz que ficara
ali em palestra. Era um elegante moço, muito bem
posto e trajado, mostrando meia idade, feições
regulares, notando-se-lhe apenas ligeiro cacoete
nervoso consistente em constante piscar de olhos.
Léo apresentou o ao primo:
— O Dr. Léo Gonzaga, meu chara e amigo.
— Meu primo, Dr. Paulo Barbosa.
Trocaram algumas palavras de cortezia e
amabilidade. O recemchegado acompanhou-os até o
portão, prodigalizando gentilezas às Monteiros,
sobretudo à Piedade, a quem parecia ter a idéa de
agradar.
As moças recebiam com um sorriso discreto,
mas amável, os galanteios que lhes eram dirigidos,
fingindo, porém, não os entender. Mal os deixara o
Dr. Gonzaga, perguntou Paulo, meio bruscamente,
ao primo:
— Quem é este pernóstico?
Extranhando-lhe a rudeza deshabituada da
linguagem, tão em contrário à polidez de maneiras
que Paulo sempre manifestara, Léo lhe explicou
tratar-se de um bacharel recenformado, filho de rico
fazendeiro de um município vizinho e que ali viera
advogar. De caminho veio-lhe contando ser
Gonzaga moço de muito futuro, vaticinando-lhe
brilhante carreira a sua riqueza, seu talento, e o
prestigio político da família.
— Está ali, está deputado pelo menos,
concluiu rindo.
— Pois olhe, pode limpar as mãos a parede,
disse Paulo, visivelmente contrariado com os
encômios do primo ao Gonzaga. É um sujeito
petulante e audacioso, que, por isso, nunca me
entrará, com toda a riqueza e talento que possa ter...
E, olhando intencionalmente para as primas:
— Onde vocês o conheceram?
— Na casa dos Bragas, é primo ou cousa que
o valha, da mulher do Braga.
— E já têm tanta intimidade?
— Oh! Paulo! acudiu, conciliadora, Piedade.
Que intimidade viu você entre nós e este moço?
A intervenção inesperada da prima, em vez de
apaziguar-lhe os nervos irritados, o pôs num.
exaspero maior, que debalde procurou reprimir.
Assim é que, vivamente, retrucou:
99
100
PIEDADE
— Que intimidade? Pois, porventura, a um
moço que se conhece de uma simples apresentação,
cujos antecedentes se ignoram, que tanto pôde ser
um homem digno como um réles valdevinos, se
trata pela maneira por que você tratou o tal.. do
doutor Gonzaga?
Piedade não replicou, abaixando a cabeça,
num gesto de humilhação que, em consciência, via
não merecer. As outras continuaram caladas e o
grupo seguiu, silencioso e contrafeito, até a
primeira esquina, onde Paulo, pretextando uma
visita que tinha a fazer no Peagaú, separou-se,
numa despedida meio canhestra, que foi o melhor
gesto encontrado para se livrar da situação critica e
embaraçosa.
JOSÉ DE MESQUITA
CAPITULO VI
Inquietude
O jovem advogado em vão deitara inculcas
afim de colher algum resultado, que viesse
confirmar as suas desconfianças acerca das relações
da prima com o Gonzaga. De uma parte e de outra
nada conseguira apurar e bem lhe parecia agora que
fora precipitado nesse primeiro gesto, impulsivo e
rude, com que se delatara aos olhos suspicazes da
moça. Já se arrependia, posto que se não
confessasse, do modo áspero que usara para com a
prima. Que iria pensar Piedade dali por diante a seu
respeito? Alma simples,
101
102
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
e, mais, boa e gentil, merecia siquer a sombra de
uma suspeita como a que o seu arrebatamento lhe
emprestara? De si para si jurava não a ver enquanto
uma explicação lhe não acudisse, com que justificar
o seu proceder. Essas idéas lhe vinham e revinham,
fugindo e refugindo, enquanto, no seu passeio do
costume, tendo Léu a seu lado, descia a rua Treze, á
hora doce do entardecer. Numa casa, perto do
jardim, tocavam, ao piano, uma valsa dolente,
melodiosa,
de
extranha
sentimentalidade.
Entrepararam, sob o pretexto de tirar os cigarros.
Ventava furte e começava, lentamente, a descer a
sombra da noite sobre a cidade deserta. A valsa,
muito peculiar em sua feição e gênero, era uma
dessas composições da terra, de pouca arte e muito
sentimento, puro romantismo musical que constitue
uma verdadeira escola sobrevivente apenas nos
meios provincianos.
— É a "Cruz do Martírio", não? Perguntou
Paulo, para dizer alguma cousa.
Não... "Saudades da família", respondeu Léo.
O título da musica, a hora, a emoção
crescente que o tomava, tudo contribuía para mais
avivar o sentimentalismo do rapaz. Foram andando,
devagar, sem dizer mais palavra. A musica cessara
e, à distancia, lhes vinha agora, como espelhando os
contrastes da vida, a sal-
titante cadencia de um tango a la moda. Brilhava ao
longe, na doçura da noite, o foco do Arsenal,
brilhante e fulgívago como um astro ao nível da
terra. O vento, mais forte, farfalhava as lindas
palmeiras, num extranho rumorejar de mar bravo,
de cachoeiras, de pororocas invisíveis... No morro
vizinho, o sino desferiu, plangentemente, o
primeiro toque da Ave Maria. Uma velha que
passava por ali persignou-se, pondo-se a rezar,
baixinho. Paulo sentiu uma agulhada fina,
profunda, que lhe atravessava a parte posterior do
tronco, quasi à altura da espádua. Nervoso, propôs
ao primo que voltassem, ao que o outro não fez a
menor dúvida.
Daqui ha um mês estou deixando esta terra...
— disse Léo com um suspiro, que mal encobria a
sua satisfação de partir para os estudos. Hesitara D.
Francisca em mandá-lo, sendo o único filho, mas,
ultimamente, resolvera fazer o sacrifício pelo bem
do rapaz. O estado de Glorinha fôra, a princípio, um
pretexto que, no seu egoísmo, antepusera à
separação, mas agora era força ceder, e cedeu. E
essa partida de Léo — seu amigo de infância,
criado junto, com mais tempo de convivência do
que o seu próprio irmão, era um golpe à
emotividade excessiva de Paulo e foi com pezar que
ouviu o primo referir-se à aproximação da data do
seu embarque.
103
104
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
Por outro lado, uma guerra íntima se
estabelecia no cérebro e no coração do mancebo.
Piedade, sem que o quisesse, começava a empolgálo extraordinariamente, a ponto de banir da sua
imaginação o vulto e a lembrança das outras
mulheres, que, como em um filme, a sua
volubilidade até ali repassara em amores fáceis e
caducos como flores de outono... Via que não
sentira por nenhuma outra pendor tão pronunciado.
Si, realmente, o picara o áspide do ciúme, ante o
encontro do cemitério, em que a prima sorria
amavelmente a um desconhecido, certo é porque,
insensivelmente, caminhara, em seu íntimo,
sentimento que ameaçava degenerar em paixão. Era
o tempo preciso de recuar. Não tinha o direito de a
enganar nem de fazer a sua infelicidade, unindo-selhe sem ter a certeza de a amar. Si fosse essa
inclinação que começava a sentir pela prima,
simples
engana-vista,
miragem
do
seu
sentimentalismo exagerado? Melhor era fugir-lhe,
evitá-la pois, quando era possível ainda, e não
percebia da sua parte nenhum indício de
correspondência. Com estes pensamentos, tinha
chegado à casa de D. Francisca e Léo o convidou
para entrar, mas Paulo, pretextando um encontro
marcado no café, excusou-se e despediu-se do
amigo, subindo sozinho a rua silenciosa.
A partida de Léo só veio a realizar-se três
meses depois, porquê D. Francisca adoecera
gravemente depois da morte da filha, chegando a
inspirar cuidados o seu estado.
Quando
convalescia,
um
outro
acontecimento, imprevisto, veio, como um raio,
tombar, sobre a família já duramente provada.
Álvaro enlouquecera, subitamente. No dia seguinte
à partida de Léo, Paulo foi procurado em casa pela
Naninha que, em, prantos, lhe relatou a longa e
penível historia da loucura do marido. Vinha de
muito tempo e, para os não aborrecer,
105
106
CAPITULO VII
Um caso de loucura
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
tudo agüentara caladamente, mas, por último, se
tornaram de tal sorte crescentes as crises de furor,
que lhe não era mais possível sonegá-las à
vizinhança, que de tudo ia sendo informada, sinão
pelas criadas, que presenciavam as crises diárias do
Álvaro, pelo próprio marido que, perdido o respeito
de si mesmo e o receio do escândalo, desandara em
descomponendas grosseiras. Si Paulo pudesse
imaginar a centésima parte das extravagâncias,
absurdos e vexames a que, sob capa, a princípio de
simples caprichos, o marido a forçara, e que
encontravam de sua parte fraca resistência, pois a
levava, de um lado, o amor que lhe tinha e, de
outro, o medo de contrariá-lo, nervoso e irascível
como, dia por dia, se fazia e cada vez mais! Mas
fora num crescendo tal que já se lhe impunha
reagir, sob pena de perder o direito ao bom nome de
mulher de sociedade e o respeito e consideração dos
próprios vizinhos. Encontrando resistência aos seus
desatinos, Álvaro exacerbou-se e passou a maltratála rudemente, chegando a atirar-lhe as peiores
invectivas, e, por fim, a suspeitá-la das cousas mais
ignóbeis.
O
seu
ciúme
desarrazoava-o
completamente e Naninha não podia falar a um
homem, fosse o lenheiro, o carregador d’água, o
homem do açougue, que logo não se lhe assanhasse
a gana contra a mulher e não viesse, iracundo,
interrogá-la acerca do que dizia
nessas "conversazinhas", nessas “intimidades com
gente da ralé". "Desde que se modificou dessa
maneira, passando a vigiar-me dia e noite,
chegando à insensatez de dizer que eu queria
envenená-lo para dar um outro arranjo à minha
vida, começaram, pela vizinhança, uns chin chin
chin, umas intriguinhas, que nada me agradavam, e
uns inimigos gratuitos nossos passaram à propalar
boatos desfavoráveis à minha honra, em
confirmação às doidices que Álvaro mesmo se
encarregava de espalhar. Sentindo-me ferida assim
no que a mulher tem de mais precioso, disse a meu
marido que me retirava para a casa de meus pais,
onde, quando estivesse em melhores disposições,
poderia ir procurar-me. Álvaro fez nesse dia um
escândalo tremendo, só não chegando a bater-me
porquê me refugiei no quintal, cuja, porta fechei por
dentro, rompendo em trajes caseiros, pelo portão, e
de lá me dirigi para a casa de um vizinho de nossa
amizade. Quando Álvaro se acalmou um pouco,
voltei para casa, já disposta a ali ficar, esquecida do
que se passara, mas, à noite desse mesmo dia,
impressionou-me a feição de meu marido, que,
depois que eu me deitara, se pôs a passear muito
tempo pela sala de jantar, falando alto e
gesticulando... Seriam nove horas ou pouco mais,
quando Álvaro penetrou no quarto de dormir e
logo, pelo seu todo perturbado, olhar vítreo, mo-
107
108
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
dos agitados, percebi que a crise da manhã lhe
voltava novamente. Dirigiu-se para mim, e, em
termos que não ouso agora reproduzir, verberou o
que dizia o meu infame procedimento,
abandonando-o, um homem digno e honesto, para
viver "à gandaia, ao Deus dará". Fiz-lhe ver mais
uma vez que não tinha o direito de falar-me assim e
que jamais o meu proceder autorizara as
desconfianças vergonhosas de que me vivia
cercando, mas nem eu acabara de pronunciar essas
palavras, eis que Álvaro investe para mim, armado
de uma faca de cozinha e gritando; — Pois bem! Eu
é que sou o mentiroso, mas dês tá que acabo já com
você, sua bruaca de uma figa! Imagine, Paulo, a
minha horrível situação. Tive de correr pela casa
toda em combinação como estava, e meu marido
empós de mim, com a arma em punho, num
berreiro, já então fóra de si, até que uns vizinhos,
entrando pelo arrombado, penetraram na casa, a
tempo justamente de socorrer-me, pois, esfalfada, ia
prostrar-me o seu furor assassino...
Naninha estacou, afogada numa crise
convulsiva de choro.
— E que é feito do Álvaro?
— Isso foi esta noite. Eu, mal o conseguiram
dominar, arrancando-lhe a faca, vesti-me, e dali me
fui para nunca mais voltar. Deus me livre! Tudo
pode ser, menos perder assim estu-
pidamente a minha vida por causa de um louco!
Doeu a Paulo essa expressão final com que a
cunhada se referia a seu irmão e ficou-a olhá-la,
sem dizer palavra, considerando mentalmente a
trágica explosão em que acabava esse amor tão
ardoroso no começo. Boa parte de culpa cabia à
Naninha nesse desenlace. Fôra a esposa que, pela
sua leviandade, pelo seu nenhum amor à casa e ao
marido, pelo descuido em que deixava o lar para se
entregar à vida frívola de festas e pique-niques,
contribuirá para de certo modo acirrar o estado
mental de Álvaro, já de natureza mórbido. Histérica
e sem filhos, vendo-se adorada pelo marido,
obrigava-o a gastos além do possível,
desequilibrando-lhe as finanças, forçando-o a
assumir enormes compromissos que não conseguia,
com as suas possibilidades próprias, saldar e,
quando contrariada em suas pretensões, ameaçava-o
sempre com o voltar para, a casa dos pais “onde
vivia bem e que nunca devera ter deixado". Tudo
isto, junto à vida trabalhosa que tinha, ao nenhum
conforto e até às privações que se impunha para
satisfazer os desejos de ostentação da mulher, que
idolatrava, acabaram por dementar o pobre Álvaro,
até que, na crise de ciúmes, reflexa do seu aloucado
amor, a paranóia se declarasse, fatal e inexorável.
Paulo consolou Naninha com algumas
palavras de cortês amabilidade e, em seguida,
109
110
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
pediu-lhe licença para ir ver o irmão. Antes que
chegasse em casa do Álvaro — uma modesta
casinha no alto do Lavapés — soube, por um
amigo, que uns vizinhos, apiedados da sorte do
infeliz, o tinham feito levar nessa manhã mesmo
para a Santa Casa.
CAPITULO VIII
Começo de crise
O desenlace impressionante desse romance de
amor calara fundo no espírito doente e sentimental
de Paulo. Vira o irmão sacrificar o futuro, a
carreira, a saúde, tudo por essa menina, que, agora,
quando mais Álvaro precisava, o abandonava
covardemente, e, espavorida, à primeira crise de
loucura, esquecia dos compromissos sagrados que
assumira diante de Deus e da sociedade, voltando
para a casa paterna, donde se limitara a pedir a.
internação do marido num hospício... Era, então,
assim que as mulheres
111
112
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
entendiam o amor? Devotamento, até o sacrifício,
paixão integral e que não mede conseqüências,
recíproco esquecer de tudo para se fundir numa só
pessoa que resume o universo — tudo lindas tiradas
dos livros romanescos, que, na vida, só se repetem
nos dias felizes e descuidosos e de que se foge ante
o primeiro sopro da adversidade! E Naninha não era
nenhuma rapariguinha do povo, inculta e ignorante,
pois a sua família, a sua educação, tudo fazia da
moça o expoente da época, o padrão da senhorinha
de hoje, prendada, fina, de cultura esmerada, que
sabia ler em duas ou três línguas, bordar
perfeitamente, jogar o tennis, dançar o rig-time à
perfeição. . Era a uma, dessas que um homem
poderia confiar o seu futuro, a sua vida, a sua
felicidade? Si toda a existência fôsse a lua de mel, a
viagem de núpcias, a calma enseada dos primeiros
meses de casados... Mas depois vêm os filhos, as
enfermidades, a morte dos queridos, os azares da
fortuna, a miséria muitas vezes, a desdita quasi
sempre. Para esses dias não ha contar com as
Naninhas frívolas e mundanas, que vivem aos
saracoteios, de festa em festa, sem um fundamento
moral, sem uma base de educação religiosa, tímidas
ante o primeiro escolho a vencer, acovardadas se
encontram qualquer adversidade pela frente. Ali
estava o seu Álvaro — carne igual à sua e sangue
do seu
sangue — inutilizado, quiçá para sempre, e
abandonado quando mais necessitava de assistência
e conforto. No entanto, esse casamento se fizera por
amor, exclusivamente por amor; contrariando até a
vontade das duas famílias e eram de ver-se o
carinho, os extremos com que se entrequeriam os
dois até bem pouco tempo! Uma perspectiva
sombria se desvendava aos olhos de Paulo diante
desse desfecho doloroso de um drama que já
suspeitava de ha muito, através da confidencia do
irmão. Também se sabia um doente, um nervoso,
um sensitivo e bem lhe parecia que em breve uma
crise semelhante lhe adviria e, então, que esperança
lhe ficava, sinão a de um triste fim de vida,
solitário, num quarto de qualquer, casa de saúde,
onde, sem um carinho siquer, a vida se lhe esvaísse
num sopro ignorado do mundo, morrendo como um
paria, um sem nome, um sem família, um simples
numero de quarto, "o 16, o 23, que expirou esta
noite." Gelavam-se-lhe as carnes à previsão desse
quadro macabro. E faltava-lhe força para enfrentar
a vida, encarar o porvir que só lhe surgia à alma
combalida, terrifico, povoado de nuvens escuras,
caliginosas e de visões dantescas. A sua educação
caseira, o vírus romântico que trazia atavicamente e
se lhe exacerbara devido às muitas leituras e ao
modo de vida que tinha, concorriam para tornar
mais pe-
113
114
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
nosa e cruel a sua situação. Não se animava a dar
um passo decisivo que o libertasse de seus terrores
e de suas indecisões. Era bem um irmão espiritual
de Werther, René, Adolphe, Obermann, ser sem
vontade, todo nervos, sensitividade, impregnado do
mal romântico pela hereditariedade e pela cultura...
O caso do irmão, que fôra obrigado a manter como
pensionista na Santa Casa, até que pudesse removêlo para o Hospício dos Alienados do Rio, tivera
larga repercussão pela cidade e os seus inimigos
certamente
teriam
explorado
com
esse
acontecimento, levando à carga dessa tara familiar a
casmurrice e os seus modos esquisitos desde certo
tempo. Via Paulo a necessidade de reagir logo
contra o seu nervosismo e para isso nada mais
conveniente que afastar-se algum tempo dali.
Planeou, pois, uma viagem à Chapada, que desejava
conhecer marcou-a para o mês seguinte, Setembro,
antes que as chuvas amiudassem. Levaria poucos
livros — três ou quatro — os clássicos latinos de
sua preferência, Virgilio e Ovídio, um volume de
Maupassant, e as poesias de Mousset. Os trinta dias
que ficasse na serra seriam aproveitados para passar
a limpo as suas poesias, de que desejava dar uma
edição muito em breve. A outra obra, o seu
romance de costumes, ficaria para as ferias do fôro,
pois que, trabalho de maior fôlego, exigia mais
tempo e cuidados.
Assente nessas idéas, deu-se pressa em tratar
a viagem com um sertanista seu amigo e marcou
para dali a uma semana o passeio. Essa noite foi à
casa da tia Francisca e lá esteve de palestra até
tarde. Ao saberem do seu plano, as meninas
admiraram-se muito e Piedade chegou a manifestar
o desejo que sempre tivera de conhecer a Serra:
—É a terra de nossos avós, o sitio histórico da
família... disse, como para justificar a sua
curiosidade.
Oito dias depois Paulo realmente partia, só
voltando ao cabo de vinte dias, tendo reduzido a sua
permanência, quer porque já se sentisse, com pouco
tempo, enfarado dessa monotonia de vida rústica,
em um logar decadente e triste, quer porque
interesses de sua banca de advogado o chamassem
mais cedo á cidade.
Logo de chegada soube do ajuste de
casamento da Teresa Lemos com um dos seus
amigos, o Amaral, filho de rico negociante e um
dos chefes políticos da terra: esse evento, que
meses atrás poderia calar no seu espírito de forma
desagradável, deixou-o displicente, tanto evolvêra
na sua alma o sentimento que outrora o prendia à
vistosa filha do Lemos.
Perto de uma semana após o seu regresso,
achava-se Paulo à sacada do seu gabinete, quando
viu passarem, na calçada contrária.
115
116
PIEDADE
D. Francisca e as filhas solteiras. Tinham ido
fazer umas compras na "queima" de um turco, na
esquina. Desceu e atravessando a rua, as fez parar,
convidando-as a que entrassem para fazer uma
visita ao seu "retiro":
— É curioso, disse D. Francisca, que
residindo você aqui ha tanto tempo, nunca tenha
havido um ensejo de conhecermos a sua casa...
E entraram, rindo-se, acompanhadas de
Paulo, que as encaminhou para a sala de visitas, no
pavimento superior do edifício.
Lá, enquanto o moço se entretinha em
conversa com a tia, andaram as meninas, curiosas, a
correr a casa, sob o pretexto de a conhecer melhor.
Ercília, sempre buliçosa e trêfega, desceu, aos
saltos, a escadinha que dava para o terreiro e ficou a
admirar as lindas parasitas que Paulo cultivava em
latas dispostas sobre o parapeito. Dali passou a
examinar as gaiolas que, em número de sete ou
oito, se viam dependuradas ao longo da varanda.
Entrementes, Piedade, dando uma volta pela sala de
jantar, como a burlar a vigilância do primo,
penetrou pela porta que dava entrada ao gabinete de
trabalho do moço advogado.
117
JOSÉ DE MESQUITA
CAPITULO IX
Amor de Piedade
FOI num mixto de curiosidade e receio que a
moça penetrou no gabinete de escrever de Paulo.
Essa tão súbita e inesperada visita despertara-lhe o
desejo de aproveitar o ensejo e ficar conhecendo o
que seu primo chamava a sua tenda de trabalho.
Que havia de inconveniente nisso? pensou, nos
breves instantes que medearam entre a idéa que na
sua mente formulara e a sua realização. Não era
Paulo seu amigo, seu companheiro de infância,
quasi seu irmão, que irmãs lhes, eram as duas mães,
donde ambos provinham? Bem certo que si Paulo,
chegando de sorrate, a encontrasse ali, nada teria a
increpá-la... Descerrou a porta e, na pontinha dos
pés, entrou no vasto aposento
118
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
silencioso. Logo ao ingressar tolheu-a imprevista
emoção: esse quarto deserto ia revelar-lhe talvez
modalidades da alma do primo que, aliás, a moça
nunca suspeitaria. O "interior" duma pessoa mostra
melhor a sua alma do que um espelho lhe reproduz
as feições. Na intimidade de sua alcova retrata-se,
ao vivo, em suas inclinações e pendores mais
secretos, a alma de uma virgem que pode, cá fora,
vestir-se de cores diversas para o mundo, mas, no
seu recatado aposento, se dá toda inteira, em toda a
sua sinceridade, espelhando-se-lhe a alma nas
cousas menores que a cercam, como no aço do
toucador se lhe revelam as formas do corpo, no
desalinho do despertar. Assim no quarto de um
homem, de um artista, deve por força, ficar-lhe
impressa, vincada, a vida moral, a sua feição
interna, de maneira indelével. Presentindo isto,
Maria da Piedade teve um assomo de voltar,
cerrando empós de si a porta que lhe viria, quiçá,
perturbar a serenidade de espírito, infundir-lhe idéas
extranhas acerca do primo, trazer-lhe talvez uma
decepção inesperada. Mas a curiosidade não cede
terreno aos escrúpulos que procuram tolhê-la e ou
não se lhe satisfaz o primeiro impulso ou é preciso
contentá-la integralmente, nunca parando a meio
caminho. Num rápido volver de olhos a moça
percorrera em muda observação, todo o aposento,
largo, batido de sol pelas duas portas abertas
para o jardim. Estantes altas e severas, de imbuia
negra, tomavam a parede do fundo, deixando o
espaço livre de uma porta que dava para o
pateozinho interno e que constituía a entrada do
quarto, quando Paulo não queria utilizar se da
passagem pelo interior da casa. Havia, ao lado da
secretária, outra estante, esta baixinha, encimada
por dois bronzes artísticos, e, no canto inverso, um
largo divan forrado de estofo cor de fumo, tendo ao
lado uma pequena mesa de fumante, com um
cinzeiro de prata velha e uma estatueta
representando um passo de caçada. Timidamente se
achegara a moça até a escrevaninha pejada de livros
e revistas, tendo ao centro o grande tinteiro de
bronze — um lindo grupo de oreades dansando em
torno de um velho Pan — e sentando-se na
giratória, pôs-se a ler as lombadas dos livros
apinhados sobre a mesa. Os "Pensamentos" de
Marco Aurélio se acostavam às obras poéticas de
Samain e sobre um «René,» cujas folhas pareciam
ter sido cortadas nesse dia, pois ainda a espátula
ficara dentro do volume, via-se, numa encadernação
sóbria e elegante, uma "Imitação" que chamou as
vistas de Piedade. Abriu-a e na primeira pagina deu
com uma dedicatória tocante e singela: "Lembrança
de sua mãe”. Embaixo a data e o nome todo da tia
Carlota, em letra firme, mas já meio apagada e
detida pe-
119
120
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
lo tempo. Emocionou-a o achado que vinha evocar,
um doce passado para sempre perdido. Ao lado da
pilha, de livros havia um retrato do pai de Paulo,
encaixilhado num quadro simples, de madeira
escura e um de Glorinha, o último que tirara, este
sem quadro algum, com expressiva dedica no dorso
— "Ao querido primo Paulo — sua amiguinha,
Glória". Piedade sentiu um abalo inexplicável,
vendo ali esse retrato, no local de trabalho, portanto
olhado a todas as horas e minutos pelo primo.
Deveria ser satisfação, tanto amara a irmã quando
viva e ainda agora depois que se fôra; entretanto,
assim não era, misturando-se-lhe algo de magua,
dissabor, qualquer cousa que, não definia e
custava.lhe confessar a si mesma. Doutra parte da
mesa havia um quadrozinho de Maria gravado em
metal, e tendo aos pés uma rosa já fanada —
lembrança, talvez, de alguma pessoa querida,
pensou Piedade, com certo amargor. Sobre um
retrato antigo de D. Carlota, depositou a moça um
grande beijo amigo, e dirigindo-se para o divan
encontrou um outro livro, naturalmente o que Paulo
estivera por último a ler. Era o Journal de Mauricio
de Guérin, de que uma vez o ouvira falar como
sendo uma das suas obras preferidas. Abriu-o,
curiosa, na página que ele deixara marcada e onde
se lia, sob a data de 20 de Abril, o seguinte trecho,
com os tópicos
sublinhados: "Ó meu caderno, não és para mim um
masso de papel, uma cousa insensível e inanimada;
não, tu és vivo, tens uma alma, uma vida interior,
amor, bondade, com paixão, paciência, caridade,
inclinação pura e inalterável. E's para mim o que eu
não encontrei entre os homens, esse ser terno e
dedicado que se liga a uma alma fraca e enfermiça,
que a envolve de sua amizade, que unicamente
entende a sua linguagem, advinha o seu coração,
compadece de suas tristezas, inebria-se com suas
alegrias, a faz repousar sobre o seu seio e se inclina
passageiramente sobre a mesma para repousar-se
por sua vez; pois é dar grande consolação a quem se
ama, apoiar-se em seu seio para dormir ou
descansar. É me preciso a mim um amor como esse,
um amor de compaixão. Nada possuo que possa
despertar um amor como se vêm tantos no mundo,
amor de igual a igual, um amor de almas
semelhantes, que vão uma para outra porque se
viram reciprocamente grandes e fortes, como dois
astros que, tendo-se percebido um a outro dos dois
extremos do céu, se fossem juntar através do
espaço. Para ser amado, tal como sou feito, fôra
mister que se encontrasse uma alma que quisesse
inclinar-se para outra inferior, uma alma forte que
se prosternasse diante da mais fraca, não para a
adorar, mas para a servir, a consolar, velar pela
outra, como por um doen-
121
122
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
te: uma alma, por fim, dotada de uma sensibilidade
tão humilde quão profunda, que se despojasse do
orgulho natural mesmo no amor, para amortalhar o
seu coração num amor obscuro, de que o mundo
nada entenderia, para consagrar a sua vida a um ser
débil, languecente, e todo interior, para decidir-se a
concentrar todos os seus raios numa flor sem brilho,
fanada e trêmula, que lhe daria desses perfumes
cuja suavidade encanta e penetra mas nunca desses
que embriagam e exaltam até a feliz loucura do
arrebatamento." Quando acabou a leitura, Piedade
tinha os olhos razos de lagrimas. Uma emoção
enorme a dominava à idéa de que seu primo, o seu
querido Paulo; fosse, como o pobre Guérin, um
enfermo da sensibilidade, um emotivo, um
padecente. Com o fulgor e a celeridade do raio, uma
idéa atravessou-lhe o espírito conturbado: — o
plano absurdo, inverossímil, inexeqüível de ser para
Paulo essa a alma forte que se prosternasse diante
da mais fraca, não para a adorar, mas para a servir,
a consolar, velar pela outra, como por um doente"...
Diante dessa confissão muda, do estado d’alma do
primo, Piedade — só então — medira todo o
alcance do seu amor de devotamento e sacrifício.
Passava ainda a manga da blusa sobre os olhos,
para enxugar uma furtiva lagrima, quando, de
chofre, Paulo entrou na sala.
DEPOIS que Piedade partiu, Paulo ficou
longo tempo a considerar o que entre ambos se
vinha passando desde a visita ao cemitério. Nunca
se referiram ao caso e, todavia, nem um nem outro,
o tirara da memória. Insensivelmente via Paulo
operar-se no seu íntimo uma revolução moral a cuja
evidenciada se não podia furtar. Passada a crise
evidenciada pela tendência dispersiva dos amores
levianos com Teresa, Eunice e outras que enchiam
os claros deixados pelas duas, sobreviera ao seu
espírito uma revolta salutar que lhe, fizera ver a
imperiosa necessidade de encarar a vida sob um
prisma sério e compatível com a sua idade, que já
passava dos vinte e quatro. A sua doença, o
123
124
CAPITULO X
A cri se
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
"nervoso" como dizia, para diminuir, por vezes, a
impressão da gravidade da mesma, voltava a
atenazá-lo com repetidas crises que o punham em
um estado de excitação irresistível. Foi num desses
dias que a "crise" o empolgou de tal forma que
quasi o arrasta a uma loucura do qual só o salvou
uma circunstancia verdadeiramente extraordinária,
que deveria dar novo rumo à sua existência.Quinze
dias eram decorridos sobre a visita de Maria da
Piedade a sua casa e fazia um dia horrível, chuvoso,
humido e sombrio, próprio a exacerbar os nervos
mais calmos e equilibrados. Á tardinha, só, no seu
gabinete, um acesso de tristeza horrível o invadiu.
Estendera-se no divan, enfiado em um sobretudo
que vestira pela manhã, sobre a camisola de dormir,
trajo que conservara por indolência e inércia o dia
todo. Extranha sensação de desgosto mesclado a um
langue desejo de conchêgo, de carícia, insatisfeito,
lhe tomava o cérebro, na doce penumbra e no
ambiente do quarto fechado completamente. Sem
querer, o seu pensamento foi para Eunice, de quem
uma indisposição, um arrufo ciumento, o afastara
cerca de uma semana. Evocou-lhe, no recolhimento
do seu quarto de rapaz, o doce perfil, as linhas
tentadoras da plástica admirável, o mistério
profundo de certos olhares penetrantes e
indecifráveis, como o amor e a morte...
Deveria ser delicioso morrer ao seu lado, num
êxtase dos sentidos. Tal pensamento, que antes
nunca lhe acudira, deleitou-lhe a mente durante
alguns segundos. Súbito, porém, um vago calafrio
de terror o sacudiu dalto a baixo. Lembrara-se de
Álvaro, da confidencia que lhe ouvira, o mês
passado, nesse mesmo lugar e por uma associação
de idéas lhe veio, repentino, o pensamento de que
também poderia estar prestes a resvalar no abismo
tenebroso e insondável da dementia. Não eram
ambos irmãos, portanto pares no sangue e no
espírito? Tentou reagir contra essas idéas que o
apavoravam, lançando-o, como uma criança
transida de horror, na obscuridade do desconhecido,
do futuro impenetrável. A lembrança de Álvaro, a
essa hora aferrolhado entre as grades de um
manicômio, gelou-lhe de agoniada amargura a alma
dolorida. Com a evocação de Álvaro, dos seus dias
felizes de criança, lhe veio a de sua mãe, doente e
longe, numa casa extranha, roubada ao seu amor
extremado que a fazia quasi um ídolo vivo.
Também D. Carlota era uma prêsa dessa moléstia
indefinível e torturante do espírito, que o vulgo
chama melancolia, nome que exprime mais ao vivo
e realmente a face nosologica dos nervosos e
doentes d’alma, que todas as complicadas e
pedantescas denominações da medicina. Pobre
mãe! Quem sabe o que seria desse ser tão frágil, de
corpo franzi-
125
126
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
no e de alma delicada, num meio ingrato, entre
camaradas abrutalhados, assistindo diariamente a
episódios horripilantes de espancamentos, "tronco"
e barbaridades, cuja só narrativa causava horror! O
marido era um rústico, bom e delicado para a
mulher, mas fazia-a inconscientemente padecer no
mal que aos outros infligia. Paulo negara-se até essa
data a passar uma temporada na fazenda, porque lhe
não iam com a apurada sensibilidade, as dantescas
passagens que, de relance, lhe fôra dado assistir,
quando menino. Porque não vinha para a cidade
passear com a irmã alguns meses? D. Carlota,
porém, justificava-se sempre com os transportes,
penosos e demorados e a impossibilidade em que se
via o marido de deixar os interesses entregues a
gente mercenária e ambiciosa. Porfim, era a doença
mesma, uma lenta consumpção que a ia minando, o
maior impedimento da viagem. Pobre mãe! pensou
de novo Paulo. Quem sabe si ainda a veria? Talvez
uma viagem lhe fizesse bem, conseguisse diverti-lo,
curar-lhe a terrível crise nervosa que, ultimamente,
o tomava, tornando-o insociável, irritadiço em
extremo, preso à casa, aos livros que cada vez mais
lhe envenenavam a alma com as toxinas literárias
das leituras ultra-românticas, que eram as suas
preferidas. Sim, que bom lhe seria partir, viajar,
correr o mundo, gastasse embora tudo o que
possuía, a
troco de algumas emoções novas, que o fizessem
esquecer as suas tristezas antigas. Pôs-se a imaginar
uma excursão longa e pausada pela Itália — país
querido — cheia de aventuras de amor e emoções
de arte; uma demorada estadia em Paris, onde o
desvairamento de Montmartre lhe sacudisse da
alma esse torpor e inédia invadente; uma rápida
corrida pelo Oriente, original e impressivo, o
Oriente de Loti e Farrère, com amores extranhos,
em tendas que tinham formas de lotos, cheias de
crisântemos, onde as geishas e musmés lânguidas
lhe adormentassem a magua ao som dos seus
bailados; uns dias nas Antilhas, numa ilha toda
verde, cheia de palmeiras ao lado de uma cubana
cor de mel, perfumada a almiscar, de olhos negros,
com amavios de sereia... Ao fim, depois desse
peregrinar exótico, estaria satisfeita a sua alma de
amoroso insaciado? Certamente que não... Clara se
lhe figurava a inutilidade de qualquer esforço,
resultante em exacerbamento ao seu tédio
invencível. Precisava, entretanto, partir, fosse para
esconder aos olhares curiosos o seu estado de
perturbação. Vinham-lhe ímpetos de vaguear, a sós,
pelos arrabaldes discretos, longe bem longe de todo
o convívio humano, só com a natureza, sempre boa
e amiga. Mas a natureza mesma lhe era hostil.
Havia três dias a chuva não cessava, chuvinha
miúda de fim de dezembro, esplenizadora e
enervante. Como aventurar-se a
127
128
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
viajar dessa forma, em risco de peiorar da sua
tosse? Descerrou as persianas de reps vermelho e
demorou-se a fitar a paisagem outoniça, fria e
tristonha como uma tela de Corot. Voltou para o
interior do quarto e foi, automaticamente, sentar-se
à giratória.
Sobre a secretária, aberto, viu o livro de
Guerin que Piedade estivera lendo, e o seu
pensamento voôu para a prima. Essa, talvez,
pudesse fazer a sua felicidade. Mas quereria, teria a
força de sacrificar-se, deixar o futuro sorridente de
um consorcio de conveniência, como esse com que
lhe acenava o Gonzaga, para dedicar-se a ser toda a
vida uma enfermeira de um doente da alma e do
corpo, cujo futuro se circunscrevia a alguns meses
mais de padecimentos e a um tumulo solitário ao
fundo do cemitério deserto? Não seria iniquo da sua
parte, quando mesmo lhe percebesse esse intuito,
deixar de preveni-la, evitando-lhe esse doloroso
holocausto de sua mocidade radiosa a uma velhice
prematura, entre as quatro paredes de um quarto de
enfermo? Nada. A sua vida só servia de tortura para
si e para os demais. Fardo ingrato, estava-lhe nas
mãos alijá-lo a qualquer momento. Abrira, devagar,
a gavetinha inferior da secretária, sacando do fundo
o seu revolver Colt, pequeno e brilhante, na sua
irradiação de metal novo. Olhou-o longamente,
examinou-lhe a cravação artística, verificou que
estava com as cápsulas perfeitas, e, com um sorriso
amargo, se dispunha a dar o passo supremo.
Quando, porém, o alçava, a mão ao gatilho, à
altura do ouvido, os seus olhos deram no retrato de
D. Carlota, sobre a mesa, e pareceu-lhe ver, na
expressão dolorida do olhar materno, uma longa
censura, uma exprobação muda à doidice que ia
fazer. Sobresteve-se ante a idéa de que iria, talvez,
precipitar-lhe a morte. Não, não tinha esse direito
de poupar se à dor, fazendo penar aos demais. A
lembrança materna trouxe-lhe de envolta a crença
olvidada nesses longos dias de desvario. Como
pudera engendrar e chegar quasi à realização desse
plano macabro da própria eliminação? Não lhe
ensinara sua mãe que a vida, boa ou má, não se
limita ao presente, ao visível, ao sensível? E si sua
mãe lhe dissera, em criança, essas verdades, não lhe
mentira, por certo, que u'a mãe não mente jamais
conscientemente a seu filho... Que seria, si fugindo
à dor transitória e tolerável desta vida, fosse tombar
na eterna dor do além irremediável? Os conselhos
de D. Carlota, os seus convites à resignação, à
caridade, á fé, que lhe enchiam as cartas, quando
estudante, e eram como que o motivo habitual de
suas palestras, vieram, na muda evocação do
passado, se enfileirando na mente de
Paulo, confortando-lhe o espírito conturbado,
129
130
PIEDADE
como um balsamo celeste. Lembrou-lhe, de
repente, certa vez em que, menino ainda, brincava
com as primas, no tempo da viuvez de D. Carlota, e
esta, sempre sisuda e de poucas graças, tivera um
gesto de carinho para Maria, sua a filhada, dizendo,
enquanto lhe passava a mão maternalmente pela
cabecinha castanha:
— Você, por meu gosto, será a mulher de
Paulo, si algum dia meu filho resolver a tomar
estado.
Essas palavras, ditas, talvez, em tom de
pilheria, ou para dar à afilhada uma demonstração
da ternura, nunca mais voltaram à memória de
Paulo, no correr do tempo, e porquê só agora, nesse
momento decisivo de sua vida, quando acabava de
resnacer, após a crise violenta que quasi o levara ao
suicídio, lhe vinham nítidas, reproduzidas na sua
imaginação? Não seria uma dessas manifestações
do sobrenatural, das forças ignotas do Destino,
trazendo-lhe, na advertência de um aviso de mãe,
através da distancia, no tempo e no espaço, a
solução fatal e única do problema trágico do seu
viver?
Paulo estava resolvido. Dali a três dias era o
natalício da prima. Pedi-la-ia nessa data em
casamento. E, como para bem firmar-se na sua
resolução, que lhe parecia obedecer a uma
inspiração materna, tomou de sobre a mesa o retrato
salvador — o mesmo em que Piedade depositara o
seu ósculo enternecido — e o beijou, longa, suave,
enternecidamente...
131
JOSÉ DE MESQUITA
TERCEIRA PARTE
132
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
UMA tarde, em pleno noivado, como fosse
muito o calor, acudiu-lhes dar um passeio até o
porto e lá se foram, depois do jantar, fazendo-se
acompanhar de Ercília e do pequeno Hugo, filho de
uns vizinhos dos Monteiros.
Foram pela rua do Campo, deserta e
silenciosa, à hora langue do dilúculo vesperal. Ao
chegarem perto do rio, deixaram-se ficar, algum
tempo, sentados à sombra de umas árvores, no
pinturesco Limoeiro, e enquanto Ercília, à pequena
distância, vigiava o menino que se entre-
tinha a correr atrás de uns cabritos, Paulo e Maria
da Piedade, fatigados da longa caminhada e
enervados pelo calor da tarde, se entrefitavam
silenciosos, felizes dessa doce intimidade, longe da
indiscreção e do tumulto da vida... Tomando entre
as suas as mãozinhas da noiva, que se entregava
num gesto de lassitude e, de renúncia, Paulo pôs-se
a falar-lhe, num tom velado de ternura e de tristeza,
os lábios quasi a roçar-lhe o rosto, e sentindo no
correr da brisa leve, esvoaçarem-se-lhe as reixas
finíssimas da nuca:
— Dentro de poucos dias; minha querida,
estará realizado o nosso destino. Sim, o nosso
destino, Maria, bom ou máu, feliz ou infeliz, mas o
nosso destino. Nada como o amor para fazer-nos
fatalistas. Eu bem sinto que alguma cousa de mais
forte que nós mesmos rege as nossas vidas. Será a
Providencia, que a crença dos nossos maiores dá
como dirigindo todo o mundo, desde os grãos de
areia desta terra que pisamos, até os astros enormes
que vão surgindo lá no alto... Providencia ou Fado,
algo nos arrastava, irresistivelmente, um para o
outro, desde o começo do nosso viver.
— Fomos feitos um para o outro, Paulo...
sussurrou Piedade, premindo, mais forte, as mãos
do amado. Não é o que sempre lhe digo?
— Sim, fomos feitos um para o outro, com-
133
134
CAPITULO I
A rival
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
tinuou Paulo, já no tom de voz habitual das suas
conversas íntimas, tom em que poderiam falar horas
inteiras sem fadiga e sem que ninguém lhes
percebesse o que diziam:
— Ainda éramos duas crianças e, nos
folguedos infantis em que por vezes nos
entretínhamos, eu sentia uma inexplicável força que
me levava para o seu convívio amável e bom. Perto
de você, como que me sentia melhor do que ao lado
de outros nossos companheiros. Sobreveio após
esse período de longo apartamento em que, eu nos
estudos, você em casa, crescendo à sombra do lar
amigo, apenas uma ou outra vez, em meio ao
desvario da mocidade, nos lembrávamos um do
outro... Mas ainda então, creia você, amávamo-nos,
através da enganadora frieza dos nossos corações.
O meu amor por você não nasceu nesta vida, vem
de mais longe, de nossos antepassados, cujas
tendências atávicas espelhamos, sem o saber, no
mundo. Acredite, Piedade, que eu a amo ha três ou
quatro gerações... Amamo-nos nos que, antes de
nós, se amaram, fundindo-se no sangue, de que
somos descendentes. Utopia ou loucura — e pouco
vai de uma a outra — parece-me, por vezes,
remontando a corrente dos dias, refluindo para o
passado distante de nossa raça, ver no amor do
sargento Monteiro, nosso bisavô, pela linda
Rosinha, a "Flor das
morenas" de que nos falava mãe Roberta, o
primeiro capítulo do romance de que agora
escrevemos, talvez, o último episódio... É bem o
êxtase do luso, do reínicola, nostálgico e saudoso,
diante da radiante formosura da filha da terra, da
guapa e airosa descendente dos índios guaicurús,
que se perpetúa e se eterniza em novas paixões
através do tempo, e vem a produzir, em
circunstancias diversas mas oriundas das mesmas
causas, o deslumbramento que causou no meu
cérebro a linha ideal da sua formosura... E assim
como os meus antepassados portugueses amaram as
suas avós indígenas, que os encantavam no frescor
virginal da sua viçosa opulência, eu amo em você a
pureza virgem da sua alma, não tocada pelas arestas
da vida... Pesa sobre o nosso amor toda a fatalidade
e a predestinação histórica destes dois séculos de
conquista... E os nossos descendentes, si não
lográssemos nós cumprir este imperativo destino
que nos talhou um para o outro, continuariam, no
futuro remoto, esta aproximação recíproca que age
misteriosamente, como todas as leis fortes e
irresistíveis, em que a fatalidade cósmica impera,
buscando-se, na trajectória do tempo e na
diversidade dos lugares, e tentando realizar a
missão que, no milagre do amor, opera a
transubstanciação das raças antigas em novas
gerações... Ha no amor esse profundo segredo
insondável
135
136
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
que faz, às vezes, que uma fusão que se não realiza
numa geração, porquê óbices insuperáveis se lhe
antepõe, preconceitos e ódios o impedem, venha a
dar-se, mais tarde, nos filhos e descendentes,
extinguindo velhas animosidades avoengas que, na
ara santa do grande rito, se queimam, se esfumam e
se evolam, ficando apenas o brazido de uma
lembrança revivescente... Resta-nos a nós outros,
idealistas, este suave consolo de podermos realizar
o amor, que as condições da vida presente tornam
impossível, mais tarde, em novas formas, no amor
dos que, participantes de nossa natureza, pelo
sangue que lhes herdamos, corporificarão os
desejos, os anseios, os sonhos que nos não foi dado
corporizar...
— A sua imaginação me arrebata e me
estontêa, Paulo, retrucou, meiga e amorável, a
noiva. Vivamos antes o nosso presente, tão feliz e
tão rápido na sua passagem...
— Tem razão, Maria. Que valem todos os
devaneios em que se compraz o meu espírito
apaixonado, perto de você, que é o ideal mesmo, o
ideal feito carne, o meu sonho convertido em
realidade?
— O sonho, porém, passa e o ideal foge com
pouco tempo... Como prender as asas invisíveis
destes momentos que, a cada instante, sentimos
escapar-nos das mãos?
— O que dá o valor à felicidade é mesmo
essa forma leve e fugitiva de que se reveste.
Gozemos a ventura de hoje, sem a impressão de
podermos prolongá-la até amanhã. Tudo o que é
humano é fraco, é caduco e contingente.. Não nos
atormentemos com esperar a dor futura, que ha de
chegar fatalmente...
Nessa hora, um acesso forte de tosse
interrompeu a conversa de Paulo. Num sorriso
amargo, o jovem concluiu:
— Veja... O rebate doloroso da Morte, eis o
que leio nesta tosse insidiosa. Vou para os braços
do amor como para os da tenebrosa, que marca com
o seu beijo frio os lábios dos que partem...
— Paulo! não lembre essas cousas tristes
agora! Você é moço, pode sarar ainda. O seu
organismo, a sua constituição, animam a esperar
sinão uma cura completa, uma longa estagnação no
curso da moléstia...
— Engano, Piedade, puro engano da sua
parte. Ao contrário, a minha idade é desfavorável
circunstancia no caso. Mas pensa você que receio a
morte? Abomino-a, detesto-a, porque viria roubarme aos seus braços, que para mim valem a vida,
com toda a sua plenitude de prazeres e delícias. Não
lhe dou, porém, a satisfação de acovardar-me diante
do seu avanço, isso nunca!
E si eu, Paulo, à força de carinho, dedicação e
amor, conseguir vencer essa rival te-
137
138
PIEDADE
merosa, que ousa querer roubar-me o meu eleito, e,
como venci às demais que aspiravam a sua posse,
tiver a fortuna, de ser a Mulher vencedora, a que
dominou com seu amor invencível, a própria
Morte?
Paulo teve o mesmo sorriso amargo, dolorido,
de ha pouco e limitou-se a dizer, num tom de
ternura infinita:
— Isso você não conseguirá, estou certo,
Maria... Mas, vencida, fique sabendo que nem a
rival vencedora, a odiosa rival, conseguirá arrancar
de minha alma, no seio da sobrexistencia, este amor
e esta lembrança de você, que viverão para sempre
em mim...
Interromperam a palestra à aproximação de
Ercília, que lhes fazia ver a conveniência do
regresso. Já era noite quasi fechada e demais o
travesso Hugo, numa de suas carreiras, tombara,
magoando-se e pedia, instantemente, para voltar.
Paulo levantou se, estendeu a mão à noiva que
passando o braço pelo seu ombro, num gesto
fraternal e amigo, se pôs a andar, cabisbaixa,
meditativa, melancólica...
E, a passos lentos, o grupo mergulhou-se nas
sombras da noite, tomando rumo da cidade.
139
JOSÉ DE MESQUITA
CAPITULO II
Nuvens no azul
O casamento se fez à capucha, como era do
desejo de ambos os noivos, e para justificar-lhe a
intimidade, com a só presença de alguns parentes
mais próximos e das testemunhas, havia o nojo
recente na família, pela morte de Glorinha. As duas
cerimônias celebraram-se em casa de D. Francisca.
Armara-se na salêta um oratório privado, com a
imagem de Nossa Senhora da Piedade, da
invocação da noiva, sobre o altar de rendas brancas,
guarnecido de fitas azues. Os poucos que
assistiram, tiveram a impressão de que Maria
esta-
140
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
va linda, no seu singelo vestido tão modesto quanto
estava a aconselhá-lo o dó pela irmã recenmorta.
Paulo, no seu fraque preto de luvas cor de cinzas,
estava discretamente elegante, mas notava-se-lhe
maior lividez, devido à austeridade do trajo ou à
emoção da cerimônia. Serviu-se uma mesa de doces
na salão de janlar, bem clara, à luz de dois grandes
"belgas" a irradiar sob os lucivelos dourados. Paulo,
que nada comera, levara a sua mulher até a sala de
visitas e ali se quedaram, sós, no largo sofá,
testemunha do seu doce e fugitivo noivado, de
poucos meses. Quando, passantes as dez horas, os
últimos convidados se retiraram e a casa foi ficando
deserta, D. Francisca veio até a filha, abraçou-a
enternecidamente, deu-lhe um grande beijo na testa
e recolheu-se aos seus aposentos, levando Ercília
pela mão, a dizer, em tom de chiste, como para
desfazer a impressão dolorosa do momento:
— Só me fica, de quatro filhas que, Deus me
deu, esta... isso mesmo não sei até quando. Riram
se, meio forçadamente, porque Piedade tinha os
olhos cheios de lágrimas. Regina e o marido tinham
partido por último e a casa, silenciosa e deserta, o
velho solar dos Monteiros — onde parecia errar a
alma de duas gerações, desde o filho do sargentomór, avô das senhoras, que ali morrera depois de
um lustro de loucura mansa e triste — foi-se
mergulhando
no silêncio e na treva.
Como que nessa hora tétrica um temor
supersticioso assalfava os corações dos dois
recencasados, mal entrados na sua câmara nupcial.
Dispunha-se Piedade a retirar a grinalda que lhe
cingia a linda fronte com os seus botões alvíssimos,
quando ouviram, no silêncio da noite o sino grande
da matriz vibrar a aguda sonoridade de um dobre
prolongado. Ambos estremeceram e os seus olhos
se encontraram, no mesmo impulso de terror e de
solidariedade. Maria logo cobrou a sua coragem e
percebeu, ao ver a extrema lividez do esposo, que
começara desde essa hora o seu sacrifício, o seu
apostolado de compaixão e de renúncia, ao qual,
abrindo mão de todos os gozos e confortos da
existência, se devotara espontaneamente. Paulo
tremia e todo o seu nervosismo doentio parecia
prestes a explodir na mesma hora. A mulher, num
gesto de carinho e afago maternal que, mesmo as
que nunca foram mães, sabem, quando preciso,
demonstrar, achegou-se-lhe mais de perto, e
sentando-se na ampla austríaca que havia junto ao
leito, chamou-o para junto de si, como si fôra uma
criança medrosa, e põs-se-lhe a falar lenta e
persuasivamente, procurando dissipar-lhe os vãos
temores nascidos desse evento casual de coincidir o
seu casamento com a morte de um sacerdote
qualificado da Cúria Metropolitana.
141
142
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
Desde a véspera já se espirava a qualquer
momento o desenlace, o passamento do P.
Custódio. Que havia demais nisso? Os dobres
diziam que um ancião, cheio de trabalhos e de
virtudes, se fôra desta vida... Nada tinham que ver
com os dois que, moços e começando a existir para
o amor e para a felicidade, estavam ali no seu
quarto de núpcias e deviam pensar somente na sua
ventura, antes tão desejada e óra conseguida para
sempre.
Paulo, mais calmo, passara-lhe os braços em
torno do pescoço, cingira-lhe o formoso seio
moreno, farto e cheio de viço e, procurando agora,
reanimado, rir dos seus terrores de ha pouco,
tomou-lhe das mãos a grinalda, que beijou longa e
apaixonadamente, indo depositá-la sobre a "mesa
de santo" a uma quina da alcova onde ardia, frouxa
e vaga, sob o quebra-luz de seda, o lampeão de
mortiça claridade. O seu abalo, porém não cedera
de todo. Fitava a mulher, a sua mulher, a sua
Piedade, com um sorriso de gratidão e de doçura
indizíveis, como a abendiçoá-la e agradecer-lhe o
primeiro passo dado na via crucis que se abrira para
ambos. Intimamente, custava-lhe acreditar nos seu
olhos e parecia-lhe tudo isso um sonho delicioso
que, em breve, se dissiparia, como os vapores da
madrugada que planam sobre as várzeas desertas...
Sorpresava-o o pensamento de que estava casado
com
sua prima, a sua amiguinha, a sua doce
companheira da meninice. Era bem verdade tudo
que acabara de presenciar ali nessa casa? A peça,
em que, não como simples espectadores, e sim
como protagonistas, lhes fora dado tomar parte, era,
então, um capítulo vivido de um romance
sentimental? Quanto duraria essa felicidade? Teria
o amor de Piedade, violento, arrebatado, como sói
ser a primeira paixão num seio virgem, a força de
vencer a Morte, como lhe dissera na conversa
inesquecível do “Limoeiro"? Ou antes, na sua
impulsão
irresistível,
viria
precipitar
involuntariamente os dias, abreviando o seu fim? O
seu pessimismo natural, e invencível o fez pender
para esta última alternativa. E foi com uma
expressão carinhosa, mas triste, que Paulo disse,
dando à Maria da Piedade o seu primeiro beijo de
esposo:
— Guarda bem esta grinalda, minha querida.
Servirá para depositar sobre o meu caixão, no
dia em que nos separarmos. E serão as flores da
morte, as mais lindas da minha vida!
143
144
PIEDADE
CAPITULO III
Lua de mel
FICARA combinado que os recencasados
passassem uma semana em casa de D. Francisca,
enquanto a casinha de Paulo, na rua Grande, não
estivesse concluída. Era um modo de suavizar para
a boa senhora o golpe da separação, que, de cinco
filhos, lhe deixara, no espaço de alguns meses
apenas Ercília, já núbil, cujos verdores precoces
faziam assim prever não ser duradoura a sua
permanência no sojorno paterno. Regina se fôra,
dezoito meses antes, casada, e, ultimamente,
Glorinha para o túmulo e Léo para os estudos.
145
JOSÉ DE MESQUITA
E agora a partida de Maria da Piedade, que
muitos, diziam, com certo fundamento, a preferida
de D. Francisca, por ter mais pronunciados os
traços do seu marido, morto em plena virilidade,
mais a acabrunhava.
O "fria" reuniu, no dia seguinte, os membros
da família e amigos mais íntimos. Vieram Décio e
Regina, com a filhinha, a galante Hébe, tia
Carolina, o massante Cardozo, que brindou, ao
almoço, à saúde do "jovem e esperançoso par, cujas
vergôntea viriam honrar o nome augusto dos
Monteiros e Barbosas".
Tirada a mesa, ficaram ainda na vasta sala de
jantar, conversando. D. Francisca sentara-se na sua
rede — linda rede lavrada, de artística tessitura,
vinda do Livramento, como presente do Paulo. Os
casadinhos, foram, rindo, tomar o seu lugar da
véspera, no sofá, um velho móvel "que tinha a sua
história" no dizer da boa D. Carolina. Ao lado do
sofá, no canto que dava para o terreiro, havia um
poial, alto, onde se punham os potes d’água e foi ali
perto que o Cardozo se aboletou, numa cadeira de
balanço. A travessa Ercília viera sentar-se ao lado
da mãe, enquanto Regina ia ver a pequena e Décio
se dirigia para o terreiro a fumar o seu charuto.
— Estamos em casa, minha gente. Á vontade!
disse D. Francisca, que tinha o seu costume de
sestear depois do almoço.
146
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
D. Carolina trouxera de dentro um tamborete
que dispôs ao pé do sofá e entretinha-se a contar
histórias do outro tempo aos seus pequenos, como
costumava chamar os filhos dos cunhados.
Coubera-lhe a missão de substituir mãe Roberta no
papel de historiadora da família e Paulo, a quem
apraziam muito esses velhos recontos, interrogavaa, fazia-a falar, todo ouvidos, quando na sua
linguagem simples e engraçada, de vivo colorido, a
velha narrava os episódios dantanho.
Tomava notas de expressões e registava
episódios para a sua obra, a grande obra que
tencionava escrever — um romance meio histórico,
em que reviveria o passado familiar, a grandeza e
decadência da Serra-acima, a vida pomposa dos
senhores de engênho e o romance sentimental do
sargento Monteiro e da meiga Rosinha. Até então
não conseguira coordenar os dados e apontamentos,
verbetes e nótulas que lhe enchiam cinco ou seis
cadernos, mas agora, casado, organisar-se-lhe-ia a
vida e
levaria a cabo, seguramente, o seu intento. D.
Carolina contava nesse dia uma passagem da vida
do Cadete André, tio-avô de Paulo e de Piedade,
irmão dos pais de D. Francisca. Cadete André foi o
moço mais bonito do seu tempo. Para correr uma
cavalhada, não havia outro nesta cidade do Bom
Jesus! Dansava lanceiros à perfeição e era o
primeiro marcante
dessa era. Cubiçavam-no para marido as meninas
moças mais em evidencia e para genro os homens
de boa fazenda da terra. Enamorou-se, porém, da
Bárbara, uma rapariga pobre mas lindíssima como
uma pintura ou um anjo da Igreja Matriz, filha de
um capitão de milícia muito mal afamado e pouco
benquisto. Vai então, roubou a moça, e foi pô-la no
engenho do pai-grande, seu avô, de quem éra
irmão. O Governo teve que agir contra o desatinado
rapaz, a rogo do pai de Bárbara, que queria obrigálo ao casamento, em que via um bom partido.
Sabem o que fez o Cadete? Ao cabo, que tinha
ordem de prendê-lo e mais a moça, deu tamanha
sova, que o infeliz voltou de lá estropeado e jurando
que nunca mais iria perseguir um desalmado de tal
marca. André voltou da Serra e casou-se com
Bárbara, que outra não era sua intenção, mas não o
queria fazer obrigado. Mas logo a perdeu, no
primeiro parto, do que ficou de tal forma
apaixonado que se fez padre e não quis mais saber
de nada deste mundo...
Nesse meio tempo, o Cardozo, que cochilava
na sua cadeira, despertou-se num grande grito que
alarmou a todos. A garotinha da Ercília, que havia
tomado desde a véspera à sua conta o gamênho
solicitador, introduzira-lhe pela camisa a dentro, —
um louva-Deus que apanhara na porta do terreiro...
Cessado o a-
147
148
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
larme verificada a causa do susto do pobre homem,
que não veio a perceber donde partira a brincadeira,
Paulo convidou a mulher para ir descansar um
pouco. Não havia ali ninguém de cerimônia e o
Cardozo, único extranho, poderia, entretanto, ser
considerado da família.
— E o será em breve, gritou Ercília, pois si é
o meu noivo e estamos emprazados para daqui ha
três meses...
Todos riram, menos Piedade, que deitou à
irmã um olhar de suave exprobação, pois, com
mágua, verificava que a "caçula", como era tratada
Ercília em casa, ia crescendo um tanto "sem
modos". Nunca fôra por essas brincadeiras e
intimidades com homens, mesmo sendo velhos e
desfrutáveis como Cardozo. Por isso também
crescera meio isolada, não tivera, como todas as
meninas de sua idade, namoricos nem amizades
intimas. Ficara meio encolhida, desconfiada,
ensimesmada, nunca se abrindo siquer com as
irmãs, que chegavam a censurar-lhe o que
cuidavam ser reserva estudada e era pura
simplicidade. Nada, porém de prejuízo disso lhe
adviera. Valeu-lhe também essa reserva ter
conservado certa candura virginal, raríssima em
dias de hoje, manifestada em ingenuidades
adoráveis que faziam o encanto de Paulo desde
noivos, e mais ainda depois de casados. Nesta
quadra de meninas sabidas,
lograra ser uma mulher quasi ignorante em cousas
de amor.
Corria-se disso, dizia ao marido, que lhe
replicava estar nessa virgindade d’alma o maior
preço e valor da outra.
Paulo abençoava a sua sorte que assim lhe
guiára uma tão meiga e dedicada esposa e ao
mesmo tempo secreto pezar lhe vinha à idéa fixa
que o dominava de que a teria de perder com pouco
tempo. E como era mais angustioso possuir a
felicidade, vê-la à mão tenente, colhê-la e ter, ao
depois, de abandoná-la a meio, mal gozada, pouco
usufruída!
Buscara espantar esses pensamentos, mas
perduravam, nítidos, indomináveis, mesmo nas
horas mais felizes da sua lua de mel.
Assim se escoôu, célere, a semana e foram-se
para a sua casinha poética e pequena como um
ninho, onde, na ebriez da ventura, viram decorrer os
seis primeiros meses sobre o dia do seu enlace.
Maria redobrava-se, dia a dia, em meiguices e
carinhos, e Paulo quasi lhe esquecera o insidioso
mal, que, só ao cabo desse tempo, se fez lembrar
por uma nova crise, decorrente de um resfriado que
apanhara numa noite de junho, de volta de um
passeio.
149
150
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
PAULO não se levantara essa manhã, pois
tinha passado mal a noite, com os acessos da tosse
que pareciam, dia a dia, mais amiudados.
Ao abrir a portada rua, Maria encontrou, com
um número do jornal da véspera, uma carta de
grande formato, toda branca, em papel fino e
elegante. Curiosa, abriu-a e teve, à leitura, um
pequeno choque que não poude reprimir. Era um
convite para o casamento da Teresa Lemos, a sua
antiga camarada de escola e íntima amiga e, depois,
uma das suas
mais perigosas parceiras no amor de Paulo. Pensou
— e foi este o seu primeiro impulso — em
consumir esse papel que vinha intrusamente
perturbar a serenidade da sua alma. Teria, porém,
esse direito, quando a carta não lhe era dirigida e
sim ao seu marido? A linha segura do seu
temperamento a fez logo recuar do primeiro
propósito. Mostraria a carta a Paulo que, decerto,
doente como estava, se excusaria de comparecer ao
enlace, poupando-lhe assim algumas horas de
constrangimento ou tristeza. Quando Paulo desceu,
para tomar o seu chocolate, já encontrou a mulher
que ia levar-lhe a chávena no quarto de dormir.
— Você porque deixou a alcova, meu bem?
Não vê que está fraco e este vento, este tempo
humido lhe podem fazer mal?
— Ora, que maior mal me podem fazer do
que já tenho? replicou, meio agastado da
observação, o enfermo.
— Não falei por mal, Paulo, mas é que você...
— Este chocolate está bem quente? atalhou,
meio rude, Paulo. Ontem, porquê testava frio, me
fez mal em vez de bem.
— Está bem quente, filho. Tirei-o neste
instante do fogareiro. Ontem você viu que a demora
do Cardoso é que fez esfriar... Eu já, o tinha
chamado por duas vezes, não se lembra?
151
152
CAPITULO IV
Primeiras sombras
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
— É. Sempre os, meus amigos servem de
desculpa a tudo o que se passa nesta casa...
resmungou Paulo, entre dentes, nervoso, indo
sentar-se à mesa, enquanto, Piedade o seguia com a
chicara de chocolate.
Nesse instante, tilintou a campainha de
ligação.
— Vou eu ver, Paulo. Olhe que o chocolate
esfria outra vez...
Paulo não dera importância à observação da
esposa. Que o deixasse... De nada adiantaria, desde
que a cousa afinal era mesmo com dono da casa.
Piedade ficou só, de pé, no meio da varanda
ensolada. Um aperto de coração lhe vinha desde
cedo, com uma vontade louca de chorar. Ha dias
que Paulo, desde que se sentira peiorar, a
maltratava com maneiras ríspidas e tão diversas do
seu carinhoso trato dos primeiros dias. Desde a
véspera, porem, como que se excedera, chegando a
parecer-lhe grosseiro e mau... Por que seria?
Enjoara-se ou aborrecia-se, talvez, do seu carinho?
Pensava em afastar-se, deixá-lo só no seu quarto ou
no gabinete, mas um receio de qualquer causa
inexplicável a fazia, mal a seu grado, ter
necessidade de vê-lo a toda hora... Não jurara de si
para si ser o seu anjo da guarda, a sua assistente
desvelada, a sua amiga de todos os instantes, de
quando a quisesse lhe reclamas-
se a presença e de quando a repulsasse e mostrasse
até aborrecê-lo? Era esse o seu papel, a tarefa que
se traçara e a levaria até o fim, a custa de todos os
sacrifícios. E Paulo jamais, jamais desconfiaria do
seu padecer, nem se aperceberia da sua muda.
agonia. Entrementes, parecia-lhe que o marido se
demorava muito na sala e já cuidava vê-lo iracundo,
de volta, ao encontrar a bebida fria, como na
véspera. Pé ante pé, pisando de leve na ponta das
lindas babuchas de seda, Maria chegou até a porta
da saleta e percebeu o final da conversa. Paulo
dizia:
— Sim. Irei, como não? Si são meus amigos?
Mas, muito. Fique descansado que eu lhe
conseguirei o convite. Então é depois de amanhã?
Bem... Adeusinho. Não tenha receio que hoje
mesmo falo ao Jorginho. . .
Voltando-se, de súbito, deu com a mulher,
que, apanhada em flagrante, não poude sopitar a sua
emoção e, para disfarçá-la, perguntou:
— Com quem você falava?
— É o Antenor, o Antenor Ribeiro, que me
pede conseguir-lhe um convite para o casamento da
Teresinha Lemos... Admira-me muito que ainda
não me tenha vindo o convite.
Num visível esforço para dissimular sua
perturbação, Maria fez saber ao marido que
encontrara na sala, nessa manhã, a carta dos Lemos.
— Ah! veiu? Logo vi que não se esque-
153
154
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
ceriam do velho amigo. E você porquê não me deu
logo a carta? perguntou, fitando a esposa, com certa
intenção maldosa, nos olhos.
— Esperava que você acabasse de tomar o
chocolate... Demais, animou-se a dizer, com visível
esforço, não acho prudente, irmos a esta festa...
— Não acha prudente, diz você? E por que?
— Você tem passado tão atacado, Paulo!
exclamou a mulher, com um tom exprobativo no
olhar tímido. Poderia fazer-lhe mal esse esforço.
— Cuida você que eu já nem possa sair de
casa? Ora isto é que não! Vou, e vou à festa dos
Lemos. Que diriam por lá si eu não comparecesse,
tão amigo da casa que sempre fui? Eram capazes de
tomar por uma cousa acintosa ou, o que é peior,
julgar-me completamente perdido...
Erguera a voz, nervoso, ante a simples
ponderação da mulher, que, em lhe vendo a
agitação, se lhe aproximou com um sorriso meigo;
enquanto Paulo depunha sobre a mesa a chávena
vazia.
Num gesto áspero, a afastou com a mão e
levantou-se, dirigindo-se a largas passadas, para o
gabinete.
A pobre sentiu como que uma punhalada
no coração. Em seis meses e meio de casados, era a
primeira vez que Paulo, abertamente a afastava de
si, recusando o seu carinho. E doeu-lhe mais, não
pela humilhação que havia nesse gesto ao seu pudor
e ao amor próprio de mulher e amante, e sim pelo
esposo mesmo, e pelas conseqüências futuras do
seu proceder. Que seria de Paulo quando, nas horas
de dor e de tristeza, não a quisesse mais perto de si,
confortando-o, trazendo-lhe o balsamo carinhoso e
maternal da sua compaixão infinita?
155
156
PIEDADE
CAPITULO V
Uma reunião elegante
A sociedade em casa dos Lemos era
numerosa, posto que escolhida. Viam-se ali, a
festejar as bodas da formosa Teresa, todos os
amigos do casal Lemos, que, por sua posição e
prestígio social, timbrara em ostentar, nessa
occasião faustosa do enlace da sua única filha, a
pompa e o alarde de núpcias principescas. Paulo e
Maria da Piedade chegaram cerca das seis horas da
tarde e já o salão e os demais compartimentos do
vasto palacete regorgitavam de famílias e
cavalheiros... Maria escolhera para à festa um trajo
simples e ele-
157
JOSÉ DE MESQUITA
gante, um vestido de crepe da China cor de havana,
sem uma jóia, sinão uma corrente finíssima de ouro
com uma pequena medalha de Nossa Senhora, sua
madrinha. Vieram recebê-lo os Lemos, que
introduziram a jovem senhora no vestiário, onde
Teresa ultimava os preparativos da sua indumenta
nupcial. Paulo ficara na sala e vira se logo cercado
por alguns amigos que, interessados, lhe pediam
notícias da saúde.
— Vou melhor, bem. melhor, felizmente...
Por uma curiosa lei íntima sentia-se realmente
melhor, quando em presença de alguém tinha
ensejo de referir-se ao seu estado. Enganava-se,
tentando enganar aos mais. Num ligeiro golpe de
olhos abrangeu a vasta sala, em que grupos de
convivas conversavam animadamente. A um canto,
perto de uma das portas, discutiam acaloradamente
o coronel Seixas, fazendeiro e influência eleitoral e
o Campos, um dos "novos ricos" da terra, que vinha
se opulentando nas suas indústrias variadas e
complexas. A conversa era, naturalmente, sobre à
situação do país, as tributações onerosas, a lei
orçamentária recenvotada e quejandos problemas
econômicos reduzidos a feição prática e utilitária.
Defendia o coronel o governo, que o outro,
impiedosamente, atacava. Junto à porta lateral o
doutor Clarimundo, um mestiço petulante,
pontificava para uma roda de moços
158
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
acerca das obras de Gorki, de quem acabara de ler,
pela primeira vez, um volume, fazendo crer-se,
entretanto, assíduo freqüentador não só deste, como
de todos os romancistas russos da época.
Clarimundo era o perfeito cabotino jornalístico,
político e literário. Redigia um semanário célebre
pela linguagem descomposta e virulenta e vinha,
nesse papel, sendo candidato do seu grupelho a uma
cadeira legislativa, — candidato eterno, mas sempre
esperançado em algum.
imprevisto
que,
reviravoltando o eixo político, o guindasse às
alturas da poltrona almejada. Ao seu lado, o doutor
Padilha, alto empregado administrativo, que fazia
consistir a sua maior aspiração na "vitória dos seus
sonhos de verdadeiro republicano", dissertava,
repetindo a um seu subalterno, em linguagem
vulgar, os conceitos de que viéra impado o seu
último artigo doutrinário na folha que honrava com
o seu "calamo adestrado". Menos desenvolto que
estes, antes canhestro e desageitado, a despeito de
sua grande cultura adensada, o bacharel Carlos de
Aguiar, professor e homem de letras, fazia-se ouvir
em outro grupo, em que o eixo da palestra era a
corrupção contemporânea e a infiltração perigosa
de exóticos costumes no meio social. Viam-se
ainda, em outros pontos do salão, o poeta
Marcolino, magro e espectral, comido pela
mesentéria e aquém a perversidade de um amigo
íntimo dé-
ra o título de "poeta acabado" referindo-se antes ao
seu corpo bem consumido que à perfeição de sua
arte; o major Eiras, gordo e ventrudo, experto
negociante e procurador de partes e ainda pai de
meia dúzia de pequenas casadouras, cuja nubilidade
vivia a apregoar, receioso de que lhe ficasse a
mercadoria em casa; o jovem Promotor, um dos
"talentos da nova geração", como o consagrara o
órgão situacionista, após um memorável discurso
em que citara Einsten, Sudermann, Zorrilla, os
Cavalleiros do Apocalypse, a "cultura" germânica,
o Kama-soutra, só lhe esquecendo a Bíblia e o
Alcorão; os Paivas, arroz de festas, irmãos
inseparáveis, tidos e havidos como os melhores
"tesouras" da terra, a cuja perspicácia nenhum
defeito escapava, si não os próprios; o Tenente
Lourival, elegante e conquistador e muitos outros
cujas especialidades de salão dispensam registo
pormenorizado. Isto no que concerne à fauna
masculina, como costumava classificar o Cardozo,
nosso velho conhecido, também ali presente: no
outro gênero, eram ainda mais variados os
specimens, pois começava a diversidade desde o
envólucro, o exterior, o vestuário. Ombreavam-se a
aristocrática senhora Santos Lima, de ademanes
fidalgos e maneiras que faziam lembrar o antigo
regime; a pequenina Eleonora Paiva, elegantemente
despida, mostrando aos olhares da assembléa, ali
reunida a
159
160
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
maior parte de suas formas, já de si reduzidas e
franzinas, corno um fruto sorvado; a desdenhosa
Alice Seixas, filha do coronel, um "partido inteiro"
como paradoxalmente a rotulara o malinguismo das
amigas; Lucila e Regina Tavares, as mais alegres
meninas da época, hábeis recitalistas, sempre
casquinando risadas a propósito ou mesmo fora;
Leontina Veiga e a filha, em que o tempo passando
parecia desforrar os ultrajes feitos à primeira,
reproduzindo-lhe nos traços a fenecida graça
materna; Rosita Aguiar, irmã do bacharel Promotor,
padrão encantador pela sua originalidade de loura,
num meio em que o moreno predomina quasi
exclusivamente; d. Vidoca Braga, preciosa,
absorvida em reivindicar os direitos femininos,
esquecida, por isso, talvez, dos seus deveres; a
senhora Padilha, garrida e loquaz, repetindo a
empafia do esposo e os seus conceitos sociológicos,
com a adorável inconsciência das vitrolas que
reproduzem os discursos dos seus discos; e, por
fim, a insinuante Béga Eiras e suas cinco irmãs,
trajadas no mesmo padrão, moreninhas e buliçosas,
"cortes de noivas" à espera dos pretendentes
arrojados.
Também lá estavam as nossas conhecidas
Helenita, a amada ideal do Ricardinho, uma das
figuras interessantes do salão, alta e esbelta, num
esplendido vestido escarlate, uma rosa à cabeça,
que parecia mesmo aberta ao
sol da sua coma de ouro e Eunice, melancólica e
enlanguecida, perdida um pouco a magia do seu
sorriso encantador, depois que o Seixas a
abandonara pela Luisinha Veiga, filha de d.
Leontina, menina-moça, porém magnífico esboço
de mulher. Eunice ferrara ultimamente velas em
conquistar o Seixas, viúvo também, rico e maduro,
um marido que lhe servia. Desesperançada das
manobras inócuas que vinha empregando com os
moços, depois do seu fracasso junto de Paulo,
resolvera casar-se e pareceu-lhe logo que para a
levar à igreja ninguém melhor que o Coronel, o rico
pai de Alicinha. Esta afagava os planos da viúva,
muito sua amiga e, entretanto, com dolorosa
decepção para ambas, Seixas vinha pendendo
visível e escandalosamente para a Veiga, que no seu
picante de fruta de vez, falava mais aos seus
sentidos embotados de cincoentão ao que a formosa
viuvinha.
A música chegara, no entanto, e Paulo, que se
conservava à distância, num vão de porta,
conversando com o Cardozo, sempre massante, foi
convidado para ir; com mais alguns amigos, buscar
o noivo que a essa hora já devia estar à sua espera.
161
162
PIEDADE
CAPITULO VI
Capricho vencedor
QUANDO Teresa surgiu à porta pelo braço
do pai, radiante de formosura, no seu vestido de
noivado, a linda cabeça castanha coroada pela
grinalda floral, houve, em toda a assistência
apinhada pelas calçadas e portas da vizinhança, um
sussurro de admiração, que a moça não deixou de
perceber, envaidecida e cheia de emoção.
A distancia a percorrer até a igreja era um
tanto longa, parecendo haver até na escolha do
templo, a Matriz; quando mais perto havia a igreja
do bairro, uma ostentação a
163
JOSÉ DE MESQUITA
mais dos Lemos, na sua megalomania conhecida.
Por onde o cortejo passava, a pé, lento e hierático,
Teresa sentia que os olhares a seguiam, invejosos
uns, outros cheios de curiosidade ou desejo, e era
tal como si uma princesa de sangue azul ou uma
embaixatriz da Graça, visão dantanho desterrada na
prosaica vida de hoje, deslisasse ante os olhos
extáticos da turba.
Estava realmente linda a filha dos Lemos,
pois à sua formosura natural se unia, nessa hora, a
consciência plena e integral do domínio que exercia
sobre os homens e da supremacia que a alçava
acima das demais mulheres, nesse acanhado meio
de província.
Luis Amaral, o feliz noivo, caminhava-lhe ao
lado, rodeado de amigos, que pareciam disputar-lhe
a preferência, como si, porventura, se espelhasse
em todo o sexo a gloria do seu representante que ia
ser galardoado pela posse cubiçada da mais
formosa moça da cidade.
Paulo e Piedade seguiam logo atrás dos
nubentes, de braços, silenciosos e contrafeitos.
Exprobava, no íntimo, a pobrezita ao seu marido o
tê-la trazido ali para assistir à glorificação da rival
detestada? Não seria propriamente este o seu
sentimento, pois, em seu peito de pomba, onde só a
meiguice sem par encontrava guarida, a própria
censura se revestia das cores da compaixão e o
rancor mesmo se trans-
164
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
mudava em tristeza e desengano. O que mais a
maguava, durante o percurso, era o contraste que a
sua idéa lhe fazia perceber entre a festa, revestida
da pompa de um enlace real, e a simples, tocante e
expressiva cerimônia que, ha sete meses atrás,
presenciara, a do seu próprio casamento. Nessa
diversidade externa bem se podia espelhar a
dissemelhança dos sentimentos íntimos existentes
em uma ou outra circunstância. Aqui era o alarde, a
gala superficial dourando uma união de
conveniência, num casamento em que ambos
procuravam antes o brilho da posição, as larguezas
da fortuna, a liberdade do novo estado, que
emancipa a mulher e a põe mais à vontade e, ao
mesmo tempo, cria para o homem um ambiente de
respeitabilidade, que o habilita a viver melhor na
sociedade; lá, nada disso, nenhuma cogitação
material, de ordem positiva, apenas dois corações
que procuravam um ao outro, buscavam entenderse e completar-se, e um homem doente, fraco,
vencido pela sua sensibilidade excessiva, a quem,
num transporte de dedicação, a mulher se
consagrara, fazendo da sua vida um consciente e
prolongado tormento, que agora mais se exacerbava
dia a dia com as modificações do íntimo de Paulo,
cada vez mais nervoso e impertinente.
Qual seria o mais feliz dos dois pares? —
perguntou a si mesma, a mulher do advogado.
Para o mundo, certo que os dois que iam
agora a caminho do altar, para Deus, que não lê nos
rostos e sim no âmago profundo das consciências,
talvez, o outro...
Chegara o séqüito ao templo, onde o
consorcio se realizou, com a pompa litúrgica, tendo
o celebrante feito expressiva oração de
congratulações aos noivos e aos seus “dignos e
honrados progenitores". De, volta à casa, após o
casamento da lei, começou o baile, animado,
ruidoso, só interrompido, às onze horas, pela ceia
opípara, no amplo varandão todo florido, onde as
taças e as luzes punham fulgurações feéricas de
deslumbramento. Assentados à cabeceira, os noivos
presidiam ao bôdo, sem que do mesmo
participassem, sinão com a presença. É de boa regra
provinciana que os recencasados se abstenham do
banquete nupcial, para o que, em geral, antes de
chagarem os convidados, costumam forrar bem o
estomago,
podendo
assim
mostrarem-se
enfastiados, sem que dessa inédia lhes venha
prejuízo. Casualmente Paulo sentara-se ao lado da
novel desposada, tendo em sua frente Piedade, que
ficara entre o Seixas e o bacharel Aguiar. Quando,
para o fim da refeição, serviram os cremes e
gelados, Maria fez um gesto ao marido, num ligeiro
mover de cabeça, que se abstivesse, receiosa pela
sua saúde precária. A noite quente abafava e era
realmente um pe-
165
166
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
rigo o uso dos sorvetes nessa hora. Teresa, com
quem o moço mantinha discreta palestra, e, que
percebeu o gesto da sua amiga, achou, entretanto,
azado ensejo para infligir à sua antiga rival um
vexame que ao seu orgulho de mulher parecia um
laurel a completar-lhe as glorias da noite. Pedindo
ao marido que lhe passasse o prato de creme de
laranja, — um lindo o creme, louro como um
grande topázio, — apresentou-o a Paulo, com o
mais insinuante dos seus sorrisos de dominadora,
dizendo em o voz bem alta e clara:
— Dr. Paulo, quero ver se eu lhe
apresentando este creme, o Sr. vae recusá-lo.Seria
uma desfeita que eu não, perdoaria, no meu
banquete de núpcias...
Paulo sentiu um frio percorrer-lhe a espinha.
A mesa toda, cerca de setenta pessoas, tinha os
olhos e o cuidado no que o moço iria fazer.
Piedade, não se contendo, ao perceber a manobra da
inimiga, menos pelo seu amor-próprio em jogo, que
pelo receio que lhe inspirava a saúde precária do
esposo, atreveu-se a dizer, com voz trêmula e
nervosa:
— Perdão, Teresinha. Você não deve insistir,
que o Paulo está convalescente ainda o da
influenza...
E dirigindo-se ao marido:
— Paulo! Veja o que você faz!
Tamanha era a humildade e ternura do
seu olhar, nesse momento, que si o marido a fitasse,
talvez, subrestivesse no seu propósito. Mas, a
sensível duplicidade do seu temperamento o fizera
irritar-se com a observação da mulher, que lhe
pareceu uma demonstração de domínio, em publico,
a qual lhe parecia vergonhosa.
Por outro lado, Teresa o subjugava com o seu
olhar imperativo. Sentiu toda a força do passado
refluir-lhe à alma e, inerte, sem saber quasi o que
fazia, deixou cair sobre o prato a fatia de creme que
a sua encantadora vizinha lhe destinara. Houve em
toda a vasta sala de jantar um murmúrio contido e
prolongado, como a festejar mais uma capitulação
que conseguira a rainha da noite e, no borborinho
de vozes que se seguiu ao episodio à primeira vista
sem importância, ninguém, ao certo, teria percebido
o doloroso suspiro que, sem o sentir, a esposa
desprezada deixara escapar do seu coração,
torturado pela mais cruel das agonias...
167
168
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
A previsão de Maria da Piedade confirmou-se
plenamente e o mal que o seu coração vaticinara
manifestou-se, logo nessa mesma noite, numa crise
mais violenta que todas as anteriores, como até
então Paulo ainda não tivera.
A pobre, entretanto, nem uma palavra
articulara com referenda ao seu procedimento
imprudente, como causa do recrudescimento da sua
enfermidade, temendo com isso molestá-lo e irritarlhe mais a saúde, já de si precária.
Passou o resto da noite em vigília, à cabecei-
ra do seu querido doente e, pela manhã, as olheiras
profundas que lhe vincavam a face denunciariam
facilmente a qualquer observador menos perspicaz
que não fôra só o estado de Paulo que a impedira de
dormir e sim o secreto penar que lhe pungia o seio
desde a hora malfadada do banquete.
O seu receio era que Paulo já a não amasse
como dantes ou, pelo menos, o seu amor se
houvesse arrefecido com a convivência diária, que
elimina estímulos necessários à existência da
paixão em certos espíritos romanescos e
caprichosos. Levantou-se cedo e, deixando o esposo
ainda a dormir no amplo leito de casados, desceu
para abrir a casa, como era seu costume. Na sala de
jantar ainda fechada assustou-a o revôejar de um
bicho que a obscuridade lhe não deixou distinguir.
Abriu uma porta que dava para o terreiro e, à
claridade incerta da manhã, poude observar uma
grande borboleta negra, de asas pintalgadas de
ouro, que, voando, fôra pousar sobre uma artística
"Ceia" que adornava a parede central do aposento.
— Cruz! Passa fóra, agouro ruim! disse, à
meia voz, Piedade, espantando o animalejo com
uma toalha que apanhara do cabide. O mesmo
enveredara, porém, rumo ao gabinete de Paulo, cuja
porta ficara aberta e Piedade não poude conter uma
viva contrariedade ante esse caso
169
170
CAPITULO VII
Veranico
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
que, ao seu espírito abalado de tantas emoções,
parecia ter uma triste interpretação.
— Felizmente, pensou, Paulo nada viu. Como
não iria ficar impressionado... Deus o livre! E todo
cheio de crendices e esquisitas abusões!
Acabou de abrir a varanda, a sala de visitas, o
gabinete e viu a borboleta estender as asas à
claridade e ir voando pela gelosia aberta para a rua
toda em sol...
— Não fosse agoureiro, era até bem bonito
este bicho.
Nesse momento ouviu passos atrás de si e
presentiu que alguém a acompanhava. Voltou-se e
viu o marido que a recebeu nos seus braços.
— Que imprudência, filhinho! Você veiu para
fora desta maneira, sem agazalhar-se?
— Ora minha mãezinha, você é culpada, o
que deixou o filho só no quarto e não voltou mais a
vê-lo...
Era costume assim se tratarem, nas horas de
carinhosa intimidade, referindo-se à materna
solicitude de Piedade pelo esposo, que dizia sempre
ser o seu filho, primeiro e último.
Dias atrás, vindo Regina visitá-los com o
marido e surgindo à tona da palestra o esperado
nascimento do segundo filho do casal, a irmã lhes
dissera, maliciosa e risonha:
— Vocês é que se têm atrazado... olhem
que sete meses de casados, já era tempo de alguma
novidade...
Maria retrucara, num riso meigo, olhando o
esposo, sentado na rede, a seu lado:
— Para mim basta-me este filho... Deus bem
sabe que não devo ter outros e por isso, certamente,
não mos dará.
Referia-se, talvez, à enfermidade do esposo,
que lhe absorvia todo o tempo, tratos e carinhos ou
ao receio de que, em razão da mesma, os filhos lhes
viessem doentes, sendo assim melhor que não
tivessem próle?
Paulo sorrira. E, para confirmar de certa
maneira o pensamento da mulher, disse, por sua
vez:
— É melhor assim... Ciumento como sou,
acabaria me insurgindo até contra o carinho que
Piedade tivesse pelos meus filhos. Quero-a minha,
só para mim...
Pagou-lhe a mulher a expressão com um olhar
cheio de infinita ternura, que não passou
despercebido aos cunhados.
Na manhã que se seguira ao dia do banquete,
Paulo se erguera decidido a pedir francamente
perdão à mulher e reconciliarem-se definitivamente.
Não tivera já o castigo no retrocesso com que fôra
punida. a sua loucura, o seu estulto galanteio? Que
lhe valia Teresa, os Lemos e o mundo inteiro, nas
horas cruéis em que o seu mal o feria rudemente e
que se-
171
172
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
ria então si não contasse com o desvelo, o amor, o
cuidadoso trato de Piedade? A' esposa, pois, e só a
esposa deveria devotar-se, sinão por amor, ao
menos pelo dever de gratidão que existe em toda
alma bem formada. Ao despertar via-se
profundamente arrependido do que fizera e, dos
modos com que a tratara durante a última semana,
chegando a afastá-la asperamente, motivando-lhe
apenas uma ligeira exprobração — Ah! Paulo! — a
única que lhe ouvira em o longo período de
casados.
Não vendo, entanto,. Piedade ao pé de si, nem
a encontrando na alcova, resolveu-se a ir procurá-la,
o que, realmente, fez, indo dar com a mulher no
gabinete que acabara de abrir.
A demora na imaginada explicação esfrioulhe o propósito tomado e, desperto o seu amor
próprio, essa noção de dignidade fictícia que, por
vezes, nos tolhe os mais nobres movimentos da
alma generosa, correu-se do que pretendia fazer e
limitou-se a formular de si para si o plano de a
tratar melhor, dali por diante, sem que, todavia,
percutisse siquer levemente os acontecimentos
anteriores.
Piedade esperava, no seu vaticínio de mulher,
na acuidade da sua visão mental, o propósito que
Paulo pretendera tomar a princípio e vendo-o
procurá-la assim tão cedo e com afan deshabituado,
cuidou ser a hora de uma justificativa. Não lhe
ouvindo, porém, referen-
cia alguma aos acontecimentos que tanto a tinham
feito padecer, calou-se, conformada, dissimulando a
meia decepção que lhe viera e buscando excusar o
procedimento de Paulo pela idéa de que o silêncio
era a melhor esponja sobre o passado e qualquer
referencia infeliz poderia, resurgindo-o, engravecer
ainda mais a sua situação.
Esse dia e o dia seguinte passaram-se na
melhor cordialidade, na velha e amiga cordialidade
do começo. Nem Paulo foi à rua, nem o procurou
ninguém, salvante o Cardozo, que veio à tarde
trazer uns autos e que Piedade, avisada pelo marido,
despachou, sob o pretexto de que Paulo tinha
passado por uma sésta.
Agradava-lhes esse veranico, verdadeiro
reflorir da sua deliciosa lua de mel, vivendo ambos
longe do mundo e só para o seu amor.
Na tarde seguinte — era uma segunda feira
— estavam sentados à porta do jardim quando
bateram à porta do meio. Piedade levantou-se e foi
abrir. Sem saber explicar-se a causa, pulsou-lhe o
coração à vista do estafeta que lhe estendia um
despacho. Recebeu-o, devolvendo o talão, e, de
caminho, abriu-o e leu-o. Era da estação próxima ao
"Recreio" e continha apenas no texto estas quatro
palavras — "Carlota morreu hoje. Pedro".
— Num relance, percebeu Piedade a grave
situação que esse evento imprevisto vinha criar,
173
174
PIEDADE
acarretando, quiçá, uma crise aguda na moléstia de
Paulo. Era tarde, porém, para recuar. Já o marido,
desconfiado, se erguera da "marqueza" e viera-lhe
ao encontro.
— Que é isso? Deixa ver... Donde é?
— De... de... Dá notícias de sua mãe, Paulo...
— Que foi? Teve alguma cousa? Morreu
mamãe, Piedade? Fale! Ande...
Piedade não se sentiu com coragem para
dizer-lhe a verdade, nem para esconder-lha.
Entregou-lhe o pedaço de papel verde que Paulo
devorou com os olhos. A mulher teve tempo apenas
de ampará-lo nos seus braços, evitando que Paulo
tomba-se ao solo do jardim, numa vertigem que,
subitamente, o tomara.
JOSÉ DE MESQUITA
CAPITULO VIII
Notícias da sociedade
VOLTOU-LHES dali por diante a vida a ser
o que dantes fôra — uma intimidade, um conchego
calmo e constante, sem altibaixos e revezes, apenas
perturbada alquando pelas crises da enfermidade de
Paulo, que prosseguia a sua marcha lenta e
inexorável. O profundo abalo que lhe causara a
notícia da morte da mãe, do qual despertara nos
braços de Piedade, só melhorando quando
conseguiu desabafar-se em um grande pranto
convulsivo, contribuiu, no dizer do Dr. Lima,
médico da casa, para majorar o seu depauperamento
já não pequeno. Chegou o clínico a re-
175
176
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
ceber qualquer manifestação, cerebral, oriunda de
sua enorme fraqueza, mas não se verificando
semelhante caso, cuidou a mulher que salutar
reversão se seguisse à crise última.
Quís evitar que, o marido, fosse à missa do
sétimo dia de D. Carlota, receiosa que lhe fizesse
mal a decoração, impressionante da éça, das
cerimônias litúrgicas, dos cantos profundamente
doloridos dos réquiem e libera-me. Paulo, longe de
contrariá-la, pondrerou, porém; o inconveniente de
sua ausência à esse acto, num meio pequeno e
malédico, onde já se assoalhara perversamente uma
tensão de relações entre enteado e padrasto, cujo
casamento diziam ter-se feito contra o seu gosto.
Demais não ficaria menos nervoso e impressionado
si se deixasse estar em casa nesse dia... E foram. A
cerimônia foi simples e curta, si bem que tocante.
Após a missa, rezada, desfilaram os presentes ante
o catafalco, aspergindo-o de água benta. Pouca
gente, mas escolhida. Lá estavam a formosa Eunice,
já noiva de um Pedro Orzeñas, insinuante rapaz
recenchegado, dando-se ares, de fidalgo, na
realidade simples caixeiro-viajante; Teresa e o
marido, de despedidas, pois Amaral fôra nomeado
para o Norte, num importante cargo; o pleurédito
escriptor Leôncio Ávila e seu inseparável amigo, o
bacharel Aguiar, nosso conhecido; Luisinha Veiga,
radiante, alardeando a sua árdega conquista do
coração do velho Sei-
xas; Helenita, a amada ideal do Ricardinho, num
escandaloso namorico com o formoso e maricas
Tenente Lourival; Eleonora Paiva, a "rainha da
moda" a quem o fúnebre da cerimônia restringira no
seu exagerado culto da elegância, trazendo um
vestido que lhe deixava bem à vista as pantorrilhas
e os braços, com pensando assim em liberalidades a
avareza de carnes com que a tratava a natureza, tão
pródiga para com outras.
Terminados os cumprimentos da praxe e os
abraços de pêsames, Paulo e Maria da Piedade
estiveram ainda parados no adro, conversando com
D. Francisca, Regina, Décio e Ercília. Fôra Décio
promovido e estava, por esse motivo, de parabéns,
mas augurava-lhe esse evento breve retirada para
outra guarnição, que ali não poderia ser
classificado. Mesclava-se, assim, de tristeza a
alegria do casal, consoante sói acontecer na vida,
em que toda a satisfação tem o seu anverso de
mágua. No momento em que se desfazia o grupo,
seguindo Paulo e a esposa rumo à casa e os demais
em sentido inverso, uma figura inesperada se lhes
deparou, evocando, um momento, num capítulo
triste da vida. Cruzara-se numa esquina, fingindo
não os ter visto, Naninha, a mulher de Álvaro, que
atravessava a praça, acompanhada por um moço em
quem Paulo cuidou reconhecer o Dr. Padilha, agora
transformado,
177
178
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
pois tirara os bigodes e usava um pincenez elegante,
de aro de tartaruga. Padilha dera ultimamente para
"leão", atirando-se para uma vida de aventuras
ostensivas, de estúrdia e bonachira, que muito
contristava a boa senhora Padilha já descrente um
tanto das boas qualidades do erudito consorte.
Vinha, nos últimos tempos, servindo de pasto à
maledicência local a assiduidade do fazendário
junto à esposa de Álvaro, cuja leviandade não
cessara com o trágico desfecho que arrastara para as
grades do manicômio o seu infeliz marido. Vivendo
em companhia do pai, velho e hemiplégico,
Naninha ficara inteiramente à solta, podendo dar
livre expansão aos seus pendores para o luxo e a
vida livre do grande mundo, Faltavam-lhe, porém,
os meios precisos à mantença desse estadão a que
se habituara, pois o pai, major reformado, mal tinha
para a subsistência, nesses tempos de vida cara. O
luxo traz o vício e, no lento resvaladouro, não sente
a mulher onde vai parar quando quer à viva força
sustentar uma vida artificial e fingida de ostentação
mundana. Começou Naninha com receber a côrte
do velho Seixas, que a enchera de presentes, quasi
acarretando tal aproximação o desenlace do seu
noivado com a Veiguinha; acabou, privada de todo
o senso moral e livre de qualquer escrúpulo,
autorizando francamente, o escandaloso amparo do
Padilha, que, si
lhe não freqüentava a casa, vivia a acompanhá-la
por toda a parte, sem rebuços ou melindres pelo que
de ambos pudessem falar. Vendo-a passar, teve
Paulo uma forte emoção. Essa mulher fôra o grande
amor, o sonho supremo da adolescência do seu
irmão, do pobre Álvaro, que expiava agora
duramente, na solitude de um hospício, a sua
insensatez de ir buscar esposa no meio, corrompido
de uma sociedade que se dissolvia. Era Naninha o
índice, o padrão perfeitamente identificado dessa
época que, para cohonestar as suas faltas, creou a
— amoralidade — o estado em que se prescinde da
moral, como si entre a virtude e o vício houvesse
estágio intermediário e a mulher que deixa de ser
integralmente honesta não se equiparasse, por isso
mesmo, às heteres vulgivagas. Piedade voltou-se
ainda para vê-la e percebeu nos lábios de Naninha
um riso escarninho de desdém. Que estaria a
segredar ao ignóbil comparso? Padilha envergava
um terno de brim branco, cintado, chapéu de Chile,
e o levava aberta a sombrinha curta da
companheira, com que a preservava do sol, ou antes
do mormaço. Naninha trazia apenas sobre a leve
“combinação” de seda, fitas e rendas, um vestido
finíssimo de crepe, cor de cajá, os braços
inteiramente nus que, ao menor movimento, lhe
punham à mostra as axílas glabras, sob as correntes
das ombreiras de prata, à melindro-
179
180
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
sa. Ia-lhe a saia — ou melhor o saiote — pelos
joelhos, e calçava sapatinhos Luiz XV e meias
transparentes cor de carne, bem finas que davam a
impressão de estar em pernas, tão ao vivo lhe
revelavam a epiderme. Era todo um mundo de
berloques, brincos de enormes pingentes com bolas
verdes na extremidade, braceletes de varia cor e
gosto, amuletos e figuras de "corcundinhas" ao
pescoço, que a diríeis, antes que uma mulher, um
bazar ambulante de artigos da moda. O seu andar
flexuoso e sinuante desarticulava-a toda em
requebros lascivos a realçar as formas mais
recatadas, e nos olhos, que o bistre alongava ao
fundo das olheiras artificiais, nos lábios que o
rouge porpurejava, dando a impressão de um
pequeno coração a deitar sangue vivo, nas faces
carminadas, com uma pinta no canto da boca, nas
melenas cortadas tal qual os de um rapaz, deixando
à vista a nuca lisa e nua — no seu todo era bem
Naninha a "boneca da moda" frívola e doente,
infecunda e viciada, deixando nos espíritos uma
impressão dolorosa de vácuo, de fatuidade, fútil
creatura feita para os prazeres fugidios de uma hora
e não para a continuidade honesta de um lar...
Piedade condensou nestas palavras a
impressão que lhe dava a cunhada de Paulo:
— Triste época a nossa, esta em que nos foi
dado viver! Tudo engano, tudo fogo de vis-
ta! Desde a cabecinha oca, até a ponta dos sapatos,
nem um nada de naturalidade! Até nos seus enfeites
é o superficial que predomina. Repare, Paulo, que o
ouro de lei foi abolido pelas “elegantes" de hoje e
substituído pelas missangas de pexisbeque e vidro,
que facilita a equiparação de uma criadinha de
servir e da mais alta dama... Oh! que nojo me faz a
tal democracia, Paulo!
Isto não é democracia, é a sua corruptela, o
vil plebeísmo, apressou-se em corrigir o moço.
— Tudo o que é nobre, antigo, sério,
duradouro, foi posto a parte... Tão certo é que a
pureza e a verdade repugnam a essa gente de agora!
Oh! os lindos tempos, o progresso, a civilização!
concluiu, com inconsciente ironia, a horrorizada
moça.
181
182
PIEDADE
CAPITULO IX
A piedosa tarefa
COMEÇOU para Paulo um período de
tortura moral, caracterizado pelo que se poderia
chamar o ciúme póstumo, o receio de que Maria da
Piedade, deixada moça e formosa, numa viuvez
prematura, acabasse por esquecê-lo, convolando a
novos amores que fizessem delir da sua memória a
lembrança do esposo. Surdos ímpetos de ódio lhe
vinham contra a terrível ceifadora que se dispunha a
eliminá-lo dentro em breve, essa poderosa e
invisível inimiga que, nas noites de febre, lhe
rondava o leito exagitado. De nada Piedade,
183
JOSÉ DE MESQUITA
na sua candura serena, desconfiava. Pelo cérebro
encandecido de Paulo perpassavam os mais trágicos
pensamentos, chegando a imaginar, uma tragédia
dúplice em que, no desespero de perdê-la, a
arrastasse consigo para as tenebras do reino
desconhecido, para o penetral do incognoscível,
cuja nortada já parecia sentir nos dedos gélidos da
tísica que o asfixiava. E acudiu-lhe propor à mulher
morrerem juntos. Piedade agradar-lhe-ia o convite?
Parecia-lhe que, talvez, fiel aos seus princípios
religiosos, na sua firmeza de crente, isenta de
fanatismos como de dúvidas, se negasse a esse
passo e, então, peiores seriam as angustias e os seus
temores no futuro. Si, ao invés, lentamente, num
trabalho em que a mulher se conservasse insciente,
a arrastasse consigo para a tumba? O fundo honesto
do seu sêr, porém, se revoltava contra esses
pensamentos egoísticos, que lhe faziam ver na
dedicada amiga que lhe suavizava as torturas da
moléstia e o acompanhava, dia e noite, em todos os
seus padeceres da alma e do corpo, uma
propriedade sua, cousa de que o seu amor
exclusivista
poderia
dispor
absoluta
e
incondicionalmente. Lembrava-lhe o dia em que lhe
pedira autorização para solicitar a sua mão em
casamento e as palavras que lhe dirigira em
resposta:
— Bem sei, Paulo, que é verdade o que você
me diz, conheço essas circunstancias to-
184
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
das. Sei que você é doente, é fraco, é um ser
sensitivo e sem coragem para a vida. Que importa?
Eu o quero assim mesmo. Serei não a sua esposa,
apenas, mas muito mais do que isso. Serei a mãe
que o destino lhe roubou, a irmã que Deus lhe não
quís dar, a enfermeira dedicada de todos os dias, a
amiga do seu espírito doente, a consoladora do seu
coração ferido... pelejarei contra essa rival invisível
e terei, dia a dia, hora por hora, instante por
instante, o prazer de vencê-la à força de carinho e
solicitude...
E assim, realmente, tinha sido. Recordavamlhe, com amargor, os dias ingratos do passado,
quando, seduzido pelas falsas Medéas e Circes
enganadoras, pensava em desprezar a que se
sacrificara por seu amor. Si, por vezes, referia-se,
arrependido e choroso, ao seu passado, que o
diminuía aos olhos da amante, Maria replicava-lhe:
— Não quero saber desse passado que não é o
meu. Você pensa, por isso, que não me merece?
Merece ainda mais, Paulo, porque, no meio dos
descaminhos do erro e da vaidade, soube encontrar
a estrada larga do amor e da verdadeira vida. Somos
integral e eternamente um do outro. Que valem
esses caprichos e essas loucuras que o tempo
apagou? O que você me fez penar, Paulo! Quantas
noites de vigília, só com Deus e as minhas
esperanças!
Tudo venci e hoje você é meu, a sua vida é
minha e nem a morte nos desunirá, porque pode
roubar-me o seu corpo, mas a sua alma será sempre
minha, onde quer que vá. O que me fez você
padecer, longamente já o tem redimido, em
carinhos e bondade que me tem dado...
Pouco a pouco, as idéas de Paulo se iam
dissipando ante uma visão mais perfeita da Morte,
clareada pejo amor, da Morte continuando apenas a
vida, em outras formas, em outros mundos, onde,
no dizer arrebatado de Piedade, as almas que se
conservavam virgens, ou fieis a um único voto, se
uniam no verdadeiro enlace, fundindo-se em uma
só essência, como esses astros gêmeos que a vista
nos representa como um único no infinito dos
espaços. Assim iam os dias lhes decorrendo com a
mansa fluência dos regatos sem nome, que os
compêndios desconhecem e que, nem por isso, são
menos felizes, poéticos, cheios de arrebatadores
encantos, mais que os grandes rios citadinos,
ornados de pontes e praias, mas que arrastam, no
torvelim de suas águas barrentas, tanta torpeza e
miséria, quanta sujidade os vertedouros urbanos
lhes carrêam diária e constantemente.
Fóra, a vida continuava o seu curso, agitada,
tumultuosa, prenhe de episódios trágicos, episódios
cósmicos, episódios frívolos. Ali, no ambiente de
intimidade, entre essas paredes discretas, não
chegavam os ecos do mundo,
185
186
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
ou, os que se atreviam chegar até ali, eram
amortecidos pelo zelo de Piedade, que, qual um
velador suave, abrandava as cruezas da claridade
em penumbras, para que aos ouvidos de Paulo só
fossem ter as bôas notícias, de cousas agradáveis e
amigas. Discorriam, por vezes, acerca de arte, das
obras que Paulo engenhara, algumas tracejadas
apenas, constantes do delineamento de seus
caderninhos de notas, outras em esboço, já toda a
ossatura feita, faltando-lhes o enchimento e as
ligações, e outras ainda desenvolvidas em vários o
pontos, trechos inteiros já findos, narrados ao vivo,
como blocos enormes de uma grande estátua, a que
faltassem peças, mas podendo-se imaginar o todo
qual seria pelas partes já criadas.
— Si Deus me deixasse, ao menos, tempo de
acabar a minha obra! Ah! quem me dera uma outra
vida para consagrá-la toda à minha arte e ao nosso
amor! Exclamava Paulo, nos momentos torturados
em que sentia sobre si o adejo do arcanjo lívido,
que corta as existências na flor do sonho e das
esperanças.
Ah! como lastimava agora — e por isso vertia
lágrimas de sangue — o tempo que a mancheias
dispersara em frivolidades, em cousas inócuas ou
nocivas, conspurcando a sua arte em trabalhos de
fancaria, e o seu amor, em ignóbeis relações, que
hoje só lhe traziam remorsos amargos pelo não ter
sabido valorizar
a sua vida! Só a aproximação da Morte nos ensina a
ter á justa noção do que vale a existência e de
quanto nos depreciamos em fúteis e criminosos
passatempos. Bem razão assiste aos que ensinam a
viver com o pensamento na morte, não para temêla, mas melhor amá-la, e, através da morte, saber
dar à vida o seu devido valor. Consolava-o Piedade
dizendo-lhe que ninguém vivia, como lhe parecia,
consagrado inteiramente a um único ideal. A
miragem interior póde fazer nos parecer isso nas
outras pessôas, mas todos têm os seus derivativos,
inevitáveis, necessários mesmo. O sábio têm suas
diversões, o santo seus passatempos, a própria
tentação, que é um anverso da virtude, e que o
persegue. O que vale e salva é a vontade interior de
fazer o bem, de cultivar o amor — condensado
nessa palavra tudo o que ha de superior na alma
humana. Amar — dizia Piedade, meiga, acariciando
o amado — é a palavra essencial, o verbo de Deus,
pois equivale a ser, pois ninguém é, sem amar, e
sem que outros houvessem amado para lhe dar o
ser. Deus amou a sua obra quando a fez, pois
achou-a boa, como se lê na Bíblia. Amar é criar
novos mundos, e reviver em outros, ou na sua obra.
Ama o artista, que faz o seu livro, a sua estátua, a
sua musica e fica vivendo sempre na sua obra. E
assim ia a pobre moça, torturada no seu íntimo pela
previsão ou
187
188
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
certeza de que o seu amor dentro em pouco perderia
o sêr material, mas procurando inocular no espírito
também acabrunhado do esposo o conforto
balsâmico que fluía de suas palavras. E os dias lhe
corriam na piedosa tarefa que se impusera, no doce
mister, menos de amante que de enfermeira, que
voluntariamente abraçara, fazendo em favor desse
homem, por quem renunciara a tudo, o supremo
holocausto de procurar, conscientemente, no
próprio e amiudado convívio, adquirir-lhe o mal,
que sabia de fácil contágio, afim de poder deixá-lo
na segurança de que, si lhe sobrevivesse, seria por
pouco tempo e que ninguém depois a desejaria.
Uma tarde fria, de chuva e vento, Piedade, se
convenceu da sua conquista: havia conseguido o
milagre do amor, pois em lhe sendo impossível
humanamente vencer a rival mais poderosa que lhe
arrebatava o amante-amado, ao menos lhe era agora
consolo saber que também seria dentro em pouco
presa da mesma inimiga, que já assim se veria
frustrada no plano sinistro de separá-los. E foi
sorrindo, numa expressão de ternura infinita, que,
na ampla sala de jantar, silenciosa e fechada, se
dirigiu ao esposo, estendido numa espreguiçadeira,
na sua crise espasmódica:
— Paulo... Paulo... Que feliz que eu sou!
Deus deu-me a graça de participar do seu
padecimento e acompanhá-lo na viagem.
Era a primeira vez que esse anjo se referia,
sem véus ou rebuços, à gravidade da moléstia do
marido, mas fazia-o porque sabia que essa notícia,
longe de mortificá-lo — ó egoísmo do amor do
homem! — iria ser-lhe um grande conforto. E
indicava, no solo, ao lado de uma pilastra onde
floriam, num jarro, lindas parasitas vermelhas —
uma grande mancha também vermelha, rubra
mesmo, como uma flor
de sangue, flor de renúncia e de sacrifício
supremo...
189
190
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
O mal, ou porque encontrasse o organismo da
moça mais exposto, dada a sua idade, ou porque a
mesma se empenhasse em acelerar-lhe a marcha,
cortando todos os meios de defesa, progrediu
rapidamente em Maria da Piedade, assumindo
feição quasi galopante. Com o inverno, mais
rigoroso que de costume, exacerbou-se-lhe o
estado, tornando-se extrema a sua debilidade. Ainda
assim continuava a sua missão generosa de
verdadeiro anjo custódio do marido, cuidando
muito do esposo e de si própria quasi nada. Paulo,
que sentira inesperada melhora, como
que um estacionamento do mal que o vinha
minando, via a vida da que era o seu anjo da
guarda, extinguir-se, num crepúsculo rápido, como
esses dias de outono, merencórios e frios... D.
Francisca, ao se inteirar, com profunda mágua, do
estado da filha, que o médico declarara
irremediável, viera, com Ercília, para a casa do
genro, onde assumira o papel de ecônoma,
dispenseira, dirigente dos serviços domésticos, no
intuito de descansar a pobre doente, cujos desvelos
ficavam assim reservados de todo em todo ao
esposo. Passavam os dias ao lado um do outro,
quasi todo o tempo: à noite, no quarto de dormir,
que, a conselho do assistente, haviam transferido
para o interior da casa, com saída para a área, e, de
dia, no gabinete de Paulo. Posto mais fraca do que o
marido, Piedade demonstrava grande animação e
desenvolvia energia superior à que suas forças a
autorizariam a ter. Era quem lhe fazia, cedo, o
guaraná, trazendo-lho na cama. Numa solicitude de
mãe, a que se mesclava confiante intimidade de
filha, dispunha tudo na ordem e geito que sabia do
gosto de Paulo, desde o arranjo dos livros e papeis
sobre a secretária até o aconchego do acolchoado e
das almofadas no leito ou na cadeira de espreguiçar,
em que o marido passava grande parte do dia.
Velava-lhe o dormir, do mesmo passo que o
entretinha nas vigílias. Abanava-o com a vem-
191
192
CAPITULO X
Ao toque do ângelus
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
tarola e ficava-se, horas e horas, disfarçando o seu
próprio padecer, passando-lhe as mãozitas leve e
leve sobre a cabeça empastada pelo suor das
horríveis ânsias. Contava-lhe histórias — a vida da
cidade, relatada pela mãe e pela irmã, ou lia-lhe
trechos dos seus livros preferidos — Musset,
Samain, Bilac, Amadeu ou Quental. Certa vez
abrira o Alberto de Oliveira e entreparou a ler o
soneto, modelo de lindo-horrível, que é a Visão do
tísico, e que Paulo gostava de recitar quando ainda
bom:
Em seguida, pôs-se a ler os próprios versos de
Paulo, os versos dos dias felizes de noivos, que,
com arte paciente, recopiara em um caderno — fôra
seu último trabalho — sobrepondo-lhes um dístico
de Musset e estas palavras: — "Maria, são teus
estes meus versos... E quando me fôr, os lerás,
pensando em mim, que pensava em ti ao escrevêlos..."
Nos dias bem claros e firmes, em que Paulo
se sentia melhor, ia à secretária, arranjava papeis,
dava disposição diversa aos livros, rasgava, passava
a limpo e coordenava nótulas volantes. E vendo,
por sua vez, Maria da Piedade mais disposta, pedialhe que tocasse ao piano as suas velhas músicas.
Com visível esforço, disfarçando muita vez a dôr
que a garroteava, lhe fazia o gosto, fazendo-se
ouvir, com a expressão que punha no teclado, em
lindos trechos de Schubert, Chopin, Schumann na
deliciosa Reverie tão evocativa, mas sobretudo
Beethoven, o maior artista do teclado, poeta dos
sons, o profundo conhecedor dos infinitos da alma
humana...
— A música e a poesia são as mais lindas
cousas da vida — costumava dizer Paulo. São
evocações do Infinito... farrapos do ideal... sonhos
fluidificados... Mais se conhece que um homem se
aproxima da Perfeição, que é Deus, quanto maior é
o culto que dedica à Poesia divina e à divina
Música. . . . . . . .
É agora esta mulher, que a rir nos acompanha!
É a ladeira infinita! é a lúgubre montanha!
É o céu negro! É no céu nem siquer uma estrella!
— Não, não leia isso hoje — pediu-lhe o
marido. Antes o trecho da Divina chimeza...
E apontava sobre a mesa um livro fino, de
encadernação escura, severa. Piedade tomou-o e
abriu a folha já marcada:
Noite que és a Beatriz que inspira e que conduz,
a ti suba o perfume alucinante e forte
da flor que, às minhas mãos, esplendida, reluz!
É tua a febre ardente em que me torturei!
Tu me cinges de sombra e a sombra é quasi a
morte!
Noite divina e triste, a ti tudo o que amei!
193
194
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
Já tardinha, depois do jantar desse dia,
Piedade que vinha passando muito animada dias
atrás, teve uma forte crise, que a deixou prostrada.
Chamado à pressa, o Dr. Lima, após examinar a
enferma, confiou reservadamente à D. Francisca o
seu prognóstico desfavorável, diante da tremenda
crise que se manifestava e da pequena, quasi
nenhuma resistência, que o organismo já
depauperado da jovem senhora oferecia ao mal
virulentíssimo. Tomaram, pois, as precauções que o
caso impunha, sendo chamado, à guisa de visita,
para não assustar a doente, o padre Anselmo, velho
amigo da casa, que não tardou a vir. D. Francisca,
mandou buscar o velho crucifixo da família.e a vela
benta, Piedade, a que a fraqueza extrema já não
deixava erguer-se do leito, recuperara os sentidos
após o delíquio prolongado em que parecia haver se
esvaído com o sangue que perdera em grande
quantidade. Um silêncio pesado, já meio funéreo,
pairava por toda a casa, meses antes um ninho de
amor, em que a felicidade arrulhava com ternura...
Andava-se na pontinha dos pés, a furta-passo, para
não molestar os enfermos.. Paulo viera, pelo braço
da cunhada, Ercília, até junto do leito em que,
Piedade jazia, inerte, exangue, presa de uma nova
crise. Com sensível esforço, a pobre moça indicava
a D. Francisca o esposo querido, por
quem se sacrificara, mas que nunca pensaria deixar
por primeiro:
— Mamãe, entrego-lhe o meu Paulo. A
senhora perde uma filha, mas fica-lhe um filho, que
vale muito mais do que eu... Cuida de Paulo como
eu cuidei enquanto pude. Cuide como si fosse de
mim que cuidasse... Paulo bem precisa e... bem
merece.
Em roda choravam convulsivamente. Era um
momento de intensa emocionalidade. Não se
enganara o médico. Duas horas após a primeira
crise, outra sobreveio, violentíssima. Sobresaltou-se
Piedade, só então consciente perfeitamente do seu
próximo fim. E viu, na dolorosa intuição do seu
amor, que era chegada a grande hora final da
separação. Lúcida, antevia que, dentro em pouco,
não mais existiria e que — era esta a sua grande
mágua, o seu receio maior — faltaria a Paulo, fraco
e também prestes a tombar, o amparo compadecido
do seu carinho. Quís que o marido lhe pusesse nas
mãos o círio da agonia e lhe desse a beijar o Jesus
que conforta os últimos instantes dos que têm a
fortuna de crer... Paulo sentia-se morrer também:
parecia.lhe monstruoso, absurdo, inacreditável que
a sua consoladora, a sua enfermeira, essa cujo amor
de piedade fôra o bálsamo dos seus padecimentos,
não pudesse ser-lhe também viático para a
eternidade... Que fazer, si. Deus assim o queria? Era
a últi-
195
196
PIEDADE
JOSÉ DE MESQUITA
ma, definitiva provação. Qual dos dois penaria
mais: Paulo, vendo-a partir ou Maria, vendo-o
ficar? Paulo tomou-lhe entre suas mãos delicadas e
macias — as suas mãos de poeta, como Piedade
costumava dizer — as esguias e exangues
mãozinhas da mulher, que o frio da morte já
começava a enregelar. Beijou-as de leve, pondo
nesse gesto e no olhar que o acompanhou, toda a
sua gratidão, todo o seu infinito reconhecimento
pela meiga creatura que lhe sacrificara
piedosamente a sua mocidade radiante, o seu
futuro, a sua vida mesma. Baixinho, numa voz que
já era um fio a perder-se no silêncio eterno, Piedade
pediu que trouxessem água, Não lhe foi possível,
porém, engulir. O estertor final começava. Os olhos
grandemente abertos — abertos para sempre,
porque os tísicos não cerram os olhos nem com a
morte — se pousaram no esposo, cujas mãos
premiu longamente, numa ânsia que já não
encontrava palavras que a exprimissem.Fóra, na
doce penumbra crepuscular, um sino dolente
começava a planger o ângelus vespertino, a triste
ave maria que é a oração da agonia das tardes flor
de bronze a abrir-se na haste esguia do campanário,
em lágrimas e suspiros de piedade infinita...
Acabou de imprimir-se este romance a 24 de dezembro
de 1937, nas Escolas Profissionais Salesianas, de Cuiabá.
197
198

Documentos relacionados