NÃO MEXAM EM PARIS É UMA FESTA HEMINGWAY, AÇÃO CIVIL

Transcrição

NÃO MEXAM EM PARIS É UMA FESTA HEMINGWAY, AÇÃO CIVIL
NÃO MEXAM EM PARIS É UMA FESTA
HEMINGWAY, AÇÃO CIVIL PÚBLICA E DIREITO AUTORAL
José Raimundo Gomes da Cruz
Procurador de Justiça aposentado (SP)
Mestre e Doutor em Direito (USP)
“... um escritor que muitos críticos
consideram o maior escritor deste
século...” (A. E. Hotchner.” Prefácio”
de Papá Hemingway)
Para não variar, o jornal O Estado de S. Paulo de 2/8/09, com o título “Não mexam
em Paris é uma festa”, assinado por A. E. Hotchner, traz novos transtornos causados por
herdeiros de literatos famosos. O subtítulo já dá uma dica: “Biógrafo de Hemingway
contesta edição do livro preparado pelo neto do ficcionista”. A biografia, cujo título Papá
Hemingway guarda grande apego ao original, foi traduzida por Brenno Silveira (Rio de
Janeiro : Civilização Brasileira, 1967).
Recentemente, comentei, em texto ainda inédito, o livro Os cem melhores poetas
brasileiros do século, selecionados por José Nêumanne Pinto (São Paulo : Geração
Editorial, 2001). Em sua apresentação, o referido organizador se refere à “sanha dos
herdeiros”. Não é de agora a dificuldade de editores e articuladores de antologias
consistente na avidez dos herdeiros dos nossos grandes literatos. “Com isso, apesar de
clamarem aos céus contra o desprezo à cultura brasileira, muitos descendentes de gênios da
literatura estão de fato impedindo que estudantes e leitores comuns tenham acesso às obras
de autores fundamentais como Monteiro Lobato, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e
tantos outros.” A antologia mencionada indica alguns poemas escolhidos, deixando de
reproduzi-los por falta de autorização do autor ou do herdeiro dos direitos autorais.
O texto de Hotchner fala de problemas ainda mais graves criados por tais herdeiros
com a “nova edição, bastante alterada, de uma obra-prima de Ernest Hemingway (18991961), Paris É Uma Festa, publicada pela primeira vez em 1964”.
No mesmo jornal, em 1º/8/09, o mesmo assunto saíra sob o título “No vale-tudo
póstumo, caiu na rede, é peixe”, matéria assinada por Sérgio Augusto, com o subtítulo:
“Herdeiros viraram uma praga cultural, cujo poder decisório põe em risco reputações
consolidadas”. Sejam obras de ficção ou não, longas ou curtas, “algumas inacabadas ou
dadas como perdidas, outras condenadas ao lixo pelo autor, exumadas por herdeiros
gananciosos e não raro desfiguradas antes de entrar na gráfica. Vítimas mais notórias e
recentes dessa exploração póstuma, Ernest Hemingway, Leon Tolstoi, Mark Twain,
Graham Greene, Wladimir Nabokov, Jack Kerouac, Roland Barthes – para destacar apenas
os escritores mortos no século passado”. A isso se soma que, “com a crise, a falta de
escrúpulos dos editores atingiu novos patamares”. Sérgio Augusto se detém na reedição do
livro já mencionado de Hemingway e cita Hotchner, “biógrafo do escritor e partícipe do
processo de criação de A Moveable Feast”, título original de Paris É Uma Festa.
Portanto, convém ouvir o próprio Hotchner: a nova edição recém lançada pela
Editora Shribner nos EUA “foi organizada por Sean Hemingway, neto do escritor, a quem
nunca agradou a maneira como sua avó, a editora de moda Pauline Pfeiffer, segunda mulher
do escritor, havia sido tratada no livro. Ele retirou vários trechos do capítulo final do livro e
os substituiu por outros escritos de seu avô que, garante, retratam sua avó de maneira mais
simpática. Dez outros capítulos foram relegados a um apêndice, resultando, segundo ele,
em ‘uma representação mais real do livro que meu avô pretendia publicar’.
A narrativa do processo criativo do livro e da sua primeira publicação, com ativa
participação de Hotchner, mereceria artigo ou crônica exclusiva. Ele justifica todos os
detalhes agora relembrados: estes se destinam a “demonstrar que o livro foi um trabalho
sério que Ernest concluiu com sua habitual intensidade e que pretendia que fosse
publicado.” Ele enfatiza a inexata alegação do neto do escritor: “O manuscrito que eu li no
avião vindo de Cuba, era essencialmente aquele que foi publicado. Não houve nenhum
capítulo extra criado por Mary, como sugere Sean Hemingway”. Mary era a quarta mulher
de Ernest Hemingway e sua testamenteira.
Hotchner cita exemplos retirados do próprio livro de Hemingway, para ilustrar o
perigo de que algum descendente de F. Scott Fitzgerald ou de Ford Maddox Ford
pressionem a editora para alterar a obra, no sentido de seu ascendente aparecer melhor na
fotografia.
Conclui com trecho obrigatório: “Ernest foi sempre muito cioso das palavras que
escreveu, palavras que deram ao mundo literário um novo estilo de escrever. Seguramente,
ele tem todo o direito de ter essas palavras protegidas contra incursões frívolas, como é o
caso deste livro reformulado, que deve ser chamado “A Moveable Book” (Um livro
móvel). Espero que o Authors Guild (Associação de Editores Americanos) esteja prestando
atenção a este fato.”
Caso alguma editora brasileira pretenda lançar a nova versão traduzida de Paris é
uma festa, poder-se-á exigir respeito ao texto original inequívoco do seu autor?
A Lei n. 7.347, de 24/7/1985 disciplina a ação civil pública de responsabilidade por
danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico. Em seu artigo 1º, estabelece que as disposições
dessa lei, sem prejuízo da ação popular, regulam as ações de responsabilidade por danos
morais e patrimoniais causados: “III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico,
turístico e paisagístico”. Tal ação, que integra o chamado Direito Processual Constitucional,
não visa apenas à condenação pecuniária, mas também ao “cumprimento de obrigação de
fazer ou não fazer”. Para que se assegure o resultado prático do seu julgamento, admite-se,
nos casos de urgência, o processo cautelar, que evitará, provisoriamente, o dano “aos bens e
direitos de valor artístico, estético, histórico” (artigo 4º). A prioritária legitimidade da
atuação do Ministério Público se destaca ao longo do artigo 5º. Constitui faculdade de
qualquer pessoa e dever do servidor público “provocar a iniciativa do Ministério Público,
ministrando-lhe informações sobre fatos que constituam objeto da ação civil e indicandolhe os elementos de convicção” (art. 6º, acrescentando, o art. 7º, a remessa de peças para
propositura da ação civil pública ao Ministério Público pelos órgãos jurisdicionais que
tiverem conhecimento, no exercício de suas funções, de fatos que possam ensejar tal
demanda judicial). Os dispositivos seguintes cuidam da documentação exigida para a ação
civil pública, seu eventual arquivamento e providências do curso regular do processo.
Certa distinção, já feita pela doutrina (por todos, Maria das Graças Ribeiro de
Souza. O direito moral do autor literário. – Dissertação de mestrado. Belo Horizonte : Ed.
da autora, 1989), confirma-se na legislação: a distinção entre os direitos morais e os direitos
patrimoniais do autor (Lei n. 9.610, de 19/2/1998, artigo 22). E mesmo entre os da primeira
espécie (artigo 24 e seus incisos da referida lei), “por morte do autor” somente se
transmitem “a seus sucessores os direitos a que se referem os incisos I a IV”, quer dizer: “I
– o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; II – o de ter seu nome, pseudônimo
ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o autor, na utilização de sua
obra; III – o de conservar a obra inédita; IV – o de assegurar a integridade da obra, opondose a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicála ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra”.
O § 1º do mesmo artigo 24 estabelece: “Por morte do autor, transmitem-se a seus
sucessores os direitos a que se referem os incisos I a IV”, que acabam de ser transcritos.
Logo, mesmo tratando-se de direitos morais do autor, não se transferem : “V – o de
modificar a obra, antes ou depois de utilizada; VI – o de retirar de circulação a obra ou de
suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização
implicarem afronta à sua reputação e imagem; VII – o de ter acesso a exemplar único e raro
da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de , por meio de
processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que
cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de
qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado”. Não convém esquecer que os “direitos
morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis” (artigo 27).
Os artigos 41 a 45 da Lei n. 9.610, 19/2/98, regulam o prazo para o exercício dos
direitos patrimoniais do autor, após o falecimento deste, o primeiro com a regra básica: tais
direitos “perduram por setenta anos, contados de 1º de janeiro do ano subsequente ao seu
falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil”. Após tal prazo, as obras passam a
pertencer ao domínio público, o que também acontece com as obras de autores falecidos
sem deixar herdeiros e aquela de autor desconhecido, “ressalvada a proteção legal aos
conhecimentos étnicos e tradicionais” (artigo 45, incisos I e II). Não havendo, portanto,
herdeiros legitimados a preservar a integridade e a autoria da obra “caída em domínio
público”, tal legitimação se atribui ao Estado (artigo 24, § 2º, da mesma lei).
Justifica-se, portanto, que caiba a ação civil pública, para que não ocorram
modificações da obra ou sua retirada de circulação pelos herdeiros, conforme a sistemática
interpretação, acima levada a efeito, dos dispositivos da Lei n. 9.610, de 19/2/1998,
especialmente seu artigo 24, incisos I a VII e § 1º.

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