Revista Brasileira de Direito Civil - Instituto Brasileiro de Direito Civil

Transcrição

Revista Brasileira de Direito Civil - Instituto Brasileiro de Direito Civil
Revista
Brasileira
de Direito
Civil
ISSN 2358-6974
VOLUME 2
DEZEMBRO 2014
Doutrina Nacional / Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho /
EroulthsCortiano Júnior / Guilherme Calmon Nogueira da Gama / João
Gabriel Madeira Pontes / Pedro Henrique da Costa Teixeira / José
Fernando Simão
Doutrina Internacional / Neil Andrews
Pareceres / Arnoldo Wald / Gustavo Tepedino
Atualidades / Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior
Resenha / Fabiano Pinto de Magalhães
Vídeos e Áudios / Gustavo Tepedino
APRESENTAÇÃO
A Revista Brasileira de Direito Civil
que valorize a abordagem histórica, social e cultural dos institutos jurídicos.
A RBDCivil é composta das seguintes seções:

Editorial;

Doutrina:
(i) doutrina nacional;
(ii) doutrina estrangeira;
(iii) jurisprudência comentada; e
(iv) pareceres;

Atualidades;

Vídeos e áudios.
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
2
EXPEDIENTE
Diretor
Gustavo Tepedino
Conselho Editorial
Francisco Infante Ruiz
Gustavo Tepedino
Luiz Edson Fachin
Paulo Lôbo
Pietro Perlingieri
Coordenador Editorial
Aline de Miranda Valverde Terra
Carlos Nelson de Paula Konder
Conselho Assessor
Fabiano Pinto de Magalhães
Louise Vago Matieli
Paula Moura Francesconi de Lemos
Tatiana Quintela Bastos
Vivianne da Silveira Abílio
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
3
SUMÁRIO
Editorial
Atividade interpretativa e o papel da doutrina e da jurisprudência –
Gustavo Tepedino
Doutrina nacional
Usucapião imobiliária urbana independente de metragem mínima: uma
concretização da função social da propriedade – Carlos Edison do Rêgo
Monteiro Filho
6
9
A propriedade privada na Constituição Federal – EroulthsCortiano Júnior
31
O Direito Civil - Constitucional e o livre desenvolvimento da personalidade
do idoso: o dilema de Lear – Guilherme Calmon Nogueira da Gama; João
Gabriel Madeira Pontes e Pedro Henrique da Costa Teixeira
47
Há limites para o princípio da pluralidade familiar na apreensão de novas
formas de conjugalidade e de parentesco? – José Fernando Simão
68
Doutrina estrangeira
I
çã
―
‖
I
– Neil Andrews
Pareceres
Regime jurídico aplicável à sociedade anônima cujo comando é
compartilhado entre uma empresa pública e uma empresa privada.
Sujeição às normas de direito comum e inaplicabilidade do regime de
direito público – Arnoldo Wald
A Boa-Fé Objetiva e o Regime de Bens na União Estável de Cônjuges
Separados –Gustavo Tepedino
Atualidades
O usucapião ordinário e o justo título – Ministro Ruy Rosado de Aguiar
Júnior
Resenhas
Regulação da internet e promoção de direitos e liberdades civis – Resenha
do livro: Direito privado e Internet, de MARTINS, Guilherme Magalhães
(Coord.) – Fabiano Pinto de Magalhães
Vídeos e áudios
Autonomia Privada e o papel da vontade na atividade contratual – aula
proferida pelo Prof. Gustavo Tepedino na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, em 2012
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87
105
121
140
146
--
4
SUMÁRIO
Submissão de artigos
Saiba como fazer a submissão do seu artigo para a Revista Brasileira de
Direito Civil - RBDCivil
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5
EDITORIAL
Atividade interpretativa e o papel da doutrina e da jurisprudência
Em recente evento promovido pelo Programa de Pós Graduação em Direito da
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, o Prof. Ian Peter Smith,
do Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado de
Hamburgo, Alemanha, apresentou minuciosa, densa e respeitosa crítica à
utilização da boa-fé objetiva pela jurisprudência brasileira. Segundo aquele
professor, verifica-se o emprego da boa-fé pelo Superior Tribunal de Justiça de
modo meramente reforçativo ou retórico, o que tem mitigado a força normativa da
cláusula geral. Em seu modo de entender, evitar-se-ia a banalização da boa-fé
mediante a sua contenção às funções típicas, incidindo exclusivamente em
hipóteses em que inexista regra contratual ou legal para a solução da controvérsia.
Tal formulação crítica suscitou profícuo debate metodológico, na medida em que a
convergência interpretativa de valores, princípios e regras mostra-se inevitável
para a atividade hermenêutica; e a densificação das cláusulas gerais ocorre muitas
vezes na aplicação conjunta com outros dispositivos legais, justificando e
potencializando a sua adoção em hipóteses de incidência que, singularizadas pela
concretude das circunstâncias fáticas, escapariam do
alcance de regra
isoladamente considerada. Seria o caso, no ilustrativo âmbito do Código de Defesa
do Consumidor, dos padrões valorativos necessários ao estabelecimento de vícios
de qualidade do produto ou serviço e da durabilidade do produto para
caracterização de defeitos ocultos. Na mesma linha de raciocínio, a boa-fé objetiva
tem sido empregada, sem hipérbole depreciativa, na análise de alocação de riscos
para a responsabilidade civil, revisão contratual, instrumentalidade das formas, e
assim por diante. Nessa perspectiva, mostrar-se-ia benfazeja a adoção, pela
jurisprudência brasileira, e especialmente pela 2ª Seção do Superior Tribunal de
Justiça, da boa-fé como fundamento para a construção argumentativa, ao fixar
norma de conduta para o caso concreto que leve em conta a totalidade de
comandos
prescritivos;
sob
fundamento
argumentativo
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consistente,
que
6
demonstre ao jurisdicionado a motivação da decisão mais do que a simples
referência
legislativa,
necessariamente
incompleta
antes
da
atividade
interpretativa (de qualificação e aplicação do direito).
Independentemente, contudo, das divergentes e legítimas conclusões desse debate,
o ponto alto daquele encontro científico foi o testemunho, corriqueiro em culturas
alienígenas, da indispensável assunção, pela doutrina, de seu papel formulador e
sistematizador da jurisprudência. Nesse aspecto, mostra-se significativa a agenda
de sucessivos Congressos organizados pelo Instituto Brasileiro de Direito Civil.
Após o I Congresso do IBDCivil, ocorrido no Rio de Janeiro em 2012, dedicado à
relação entre Liberdades e Tecnologia, o II Congresso do IBDCivil, realizado em
2013 em Curitiba, ocupou-se especificamente do tema Direito Civil e Construção
Jurisprudencial, deflagrando ampla pesquisa a partir da constituição de
Observatório Nacional de Jurisprudência. Anuncia-se agora o III Congresso
Brasileiro de Direito Civil, organizado pelo IBDCivil com a OAB-PE, a se realizar
em Recife nos dias 10 a 12 de agosto de 2015, com ampla agenda voltada para o
Direito civil: interpretação e o protagonismo da doutrina. O eixo central desses
eventos tem sido precisamente o estabelecimento de canais de comunicação entre
a prática judiciária e a atividade do doutrinador, de modo a estimular cada vez
mais a definição precisa de suas indispensáveis funções, especialmente diante da
evolução da técnica legislativa e dos novos direitos.
A urgência da pauta proposta decorre da constatação de que tais papéis tem se
sobreposto nas últimas décadas na experiência brasileira, em prejuízo da
segurança do jurisdicionado. De um lado, vê-se difusamente jurisprudência
desacompanhada de base teórica sólida, que assegure coerência sistemática ao
conjunto de julgados. De outro, literatura jurídica dominada por manuais para
concursos, tomados como doutrina, valem-se muitas vezes de decisões isoladas
(chamadas açodadamente de jurisprudência) para a condução ou validação de seus
próprios entendimentos. Cria-se, então, círculo vicioso em que a doutrina deixa de
orientar as decisões jurisprudenciais, as quais, por sua vez, não apresentam caráter
orgânico apto a indicar modelos de comportamento confiáveis. O descompasso
entre as funções da doutrina e da magistratura suscita inquietante insegurança, na
medida em que se perdem as referências que deveriam balizar o convívio social.
No direito contemporâneo, em que a técnica regulamentar perde espaço para as
cláusulas gerais – mais eficientes diante da multiplicidade e complexidade das
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hipóteses fáticas de incidência, no mundo em frenética transformação –, torna-se
imprescindível reformular a antiga noção de segurança jurídica. Esta não se
identifica com a clareza da regra abstrata senão com a argumentação coerente que
deve fundamentar e motivar as decisões, encontrando-se ou não na presença de
regras (aparentemente) claras. Se assim é, como parece, mostra-se urgente a
assunção pela doutrina de seu papel orientador e sistematizador, para que forneça
aos juízes, para além das apostilhas impressas como cursos de direito, os
fundamentos dogmáticos de suas decisões, com base em premissas teóricas sólidas
e bem definidas. Com isso ganhará em muito a jurisprudência, a doutrina e o
jurisdicionado, transformando a decantada crise da segurança jurídica em círculo
virtuoso em que, fortalecida a motivação das decisões, melhor se torna a prestação
jurisdicional e, consequentemente, a estima (e a autoestima) dos doutrinadores,
cuja boa atuação se reverte necessariamente em proveito para a sociedade.
GT
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SEÇÃO DE DOUTRINA:
Doutrina Nacional
USUCAPIÃO IMOBILIÁRIA URBANA INDEPENDENTE DE
METRAGEM MÍNIMA: UMA CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL
DA PROPRIEDADE1
Acquisition of urban real property by prescription regardless
minimum dimensions: an aplication of the social function of property
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
RESUMO: O presente estudo pretende cuidar da função social na aquisição por
usucapião de imóvel urbano, enfrentando o problema das dimensões mínimas da
propriedade previstas nas diretrizes normativas de cada cidade, situando-o, pois,
no plano funcional do direito de propriedade, à luz de renovada teoria da
interpretação. Dentre os objetivos do artigo inclui-se, igualmente, a identificação
da atual crise no tratamento jurisprudencial da matéria, marcada pela
contraposição de duas correntes majoritárias, e protagonizada pelo Superior
Tribunal de Justiça, em que prevalece a improcedência do pedido aquisitivo, e os
Tribunais de Justiça estaduais, favoráveis, em regra, à possibilidade da aquisição
independente de metragem mínima – tese defendida neste artigo como resultado
da funcionalização das situações patrimoniais aos valores existenciais e da
ponderação de interesses em jogo no caso concreto.
PALAVRAS-CHAVE: Função social; Propriedade imobiliária urbana; Aquisição;
Usucapião; Metragem mínima; Acesso à moradia;Garantia do domínio;
Ponderação de valores.
ABSTRACT: The present article intends to analyze the social function in the
acquisition of urban real property by prescription, facing the problems of
minimum dimensions predicted in the regulatory guidelines of each city, situating
it on the functional plan of property law, iluminated by the renewed interpretation
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theory. Among the goals of this article it is the identification of the actual crises in
the jurisprudential treatment of the subject, well known by the contrast of the two
majority understandings and protagonized by the Superior Court of Justice, where
it prevails the improcedence of the legal request and the State Courts, most
favorable to the acquisition independent of the minimum dimensions thesis. This
last doctrine is defended in this article as a result of the functionalization of the
patrimonial situations to the existential values and the interests weighting in the
concrete cases.
KEYWORDS: Social function; Urban real property; Acquisition; Prescription;
Minimum dimensions; Access to housing;Garanty of the domain; Weighting of
values.
SUMÁRIO: 1. Contornos introdutórios do caso em análise e o digladiar de correntes
antagônicas –2. Funcionalização: para que servem os direitos – 3. Propriedade
funcionalizada – 4. Aquisição funcionalizada: hipóteses congêneres – 5. Usucapião
imobiliária urbana independente de metragem, os valores em jogo e o aceso debate
na jurisprudência – 6.Considerações finais
1. Contornos introdutórios do caso em análise e o digladiar de
correntes antagônicas
Imagine-se que determinada pessoa exerça posse mansa e pacífica,
contínua e ininterrupta, sobre uma área devidamente caracterizada de um imóvel,
por período de tempo longo o suficiente a assegurar-lhe a conversão de sua posse
em propriedade. Posto que preenchidos os requisitos para a aquisição da
propriedade imóvel por usucapião, há na hipótese, todavia, uma circunstância
peculiar consistente no seguinte fator. É que tendo em vista que a posse se exerce
sobre parte da unidade imobiliária formalmente constituída no registro, o
possuidor não logra alcançar a metragem mínima do módulo proprietário urbano,
estabelecida na legislação municipal competente.
Este aspecto, por assim dizer, quantitativo, suscita verdadeiro nó de
interpretação, na busca da melhor solução dos múltiplos casos concretos que
deságuam no Judiciário assiduamente, e tem ensejado duas possibilidades de
definição antagônicas do problema: (i) improcedência do pedido na ação de
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usucapião, tendo em vista a impossibilidade de fracionamento do terreno para
criação de lote com área abaixo da metragem mínima municipal; (ii) procedência
do pedido, com a expedição de ordem judicial para criação do lote a menor, à luz
do preenchimento dos requisitos normativos constantes do Código Civil e da
Constituição.
O presente estudo pretende cuidar deste assunto, situando-o no plano
funcional do direito de propriedade, à luz de renovada teoria da interpretação,
como se verá nas próximas linhas. Dentre os objetivos do artigo inclui-se,
igualmente, a identificação da atual crise no tratamento jurisprudencial da
matéria, marcada pela contraposição das duas correntes descritas no parágrafo
anterior, e protagonizada pelo Superior Tribunal de Justiça, em que prevalece a
improcedência do pedido aquisitivo, e os Tribunais de Justiça estaduais, favoráveis
majoritariamente à tese da aquisição independentemente de metragem mínima.
2. Funcionalização: para que servem os direitos
Conquanto se revele a funcionalização fenômeno permanente ao longo da
história do Direito, a aceitação da ideia de que a ordem jurídica tem e sempre teve
um papel de instrumento predisposto à satisfação de determinado interesse
espraiou-se recentemente.
Ora explícito ora escamoteado, este papel instrumental tem assumido
diversos perfis no curso do tempo, em diferentes sociedades: de manutenção da
ordem e da paz social2; de garantia das situações estabelecidas (ou do status quo)3;
de garantia da vontade livremente pactuada4, da propriedade (privada)5; da
preservação da justiça e da segurança jurídica6; de promoção de valores sociais,
solidários e igualitários7; de tutela privilegiada da pessoa humana e demais valores
existenciais que gravitam ao seu redor8; dentre diversos outros.
A noção geral de funcionalização, pode-se afirmar, parte da distinção, tão
querida aos filósofos, entre fins e meios9. Tudo o que se diz meio para a realização
de alguma coisa, se diz instrumento e, na esteira, se diz funcionalizado àquela
noção que representa o seu fim. Se assim é, como parece, numa concepção
hierárquica, os meios estão abaixo dos fins, uma vez que se curvam aos seus
ditames, servem àquelas finalidades10.
Nesse panorama, o intérprete que se vê diante de uma situação jurídica
qualquer, deve perquirir, para além de seus elementos constitutivos (o que ela é), a
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sua razão teleologicamente justificadora: para que serve 11? Ou seja, os institutos
jurídicos, partes integrantes da vida de relação, passam a ser estudados não apenas
em seus perfis estruturais (sua constituição e seus elementos essenciais), como
também – e principalmente – em seus perfis funcionais (sua finalidade, seus
). P
: ―
é
çã
é
çã ‖. E
aspecto funcional prevalece quando se compreende a propriedade como relação
jurídica12.
O presente trabalho encontra na função social da propriedade a um só
tempo o seu foco e ponto de partida, tendo em vista as múltiplas acepções que hoje
assume o fenômeno da funcionalização. No presente estudo, em particular, cuidarse-á da função social na aquisição por usucapião de imóvel urbano, enfrentando o
problema das dimensões mínimas da propriedade previstas nas diretrizes
normativas de cada cidade.
3. Propriedade funcionalizada
Atribui-se a Leon Duguit, como se sabe, nas primeiras décadas do século
XX, o desenvolvimento da tarefa de incorporar ao direito de propriedade um
conceito jurídico de função social. Duguit acreditava que a propriedade, tal como
os direitos em geral, devia se adequar à evolução da sociedade e evoluir no ritmo
das necessidades econômicas. A partir do momento em que tais necessidades
econômicas se transformassem de individuais em sociais, a propriedade individual
se transformaria em função social. A imagem de um direito subjetivo absoluto,
egocêntrico, é substituída pela figura
―
-
çã ‖ – uma situação
funcionalizada a razões de ser específicas, que atendessem aos interesses não só
individuais, mas sobretudo de toda a coletividade13.
Dada sua relevância histórica e de seu papel cambiável no tempo, o direito
de propriedade constituiu o terreno fértil em que os influxos funcionalistas
deitaram suas primeiras sementes. De fato, a propriedade já cumpriu a missão
paradoxal de servir desde fundamento de regime escravocrata, até servir de
dogma associado à liberdade do ser humano. Em outro ângulo, por exemplo, a
é
h
―
‖14.
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12
Se a propriedade pode servir de meio a tamanha diversidade de fins,
parecem superados os mitos de sua pretensa neutralidade, ou de sua concepção
inata, ensimesmada, decorrente de um direito natural ou plasmada na religião 15, a
representar um fim em si mesma. Já se revelou que por trás de aparente
neutralidade alojavam-se concepções que remetem às raízes do movimento liberalpatrimonialista.
Hoje, à luz dos fundamentos do direito contemporâneo, os quais alçam a
pessoa humana e a sua plena realização existencial a valor supremo, estrutura e
função do direito de propriedade devem ser relidas nas múltiplas situações em que
se apresentam.
Configura-se assim linha de ruptura com os moldes do
patrimonialismo e do individualismo e se inicia a construção de um direito de
propriedade em harmonia com princípios e valores não patrimoniais16. A questão
ora estudada representa uma face desta temática maior.
No plano normativo pátrio, enquanto o caput do artigo 1.228 do Código
Civil trata dos aspectos estruturais ou estáticos da propriedade, seus parágrafos,
mais precisamente o primeiro, quarto e quinto cuidam de seu aspecto dinâmico,
correspondente à sua função social17.
O conteúdo estrutural do direito de propriedade abrange os aspectos
interno (econômico) e externo (jurídico) do direito subjetivo. O aspecto interno,
igualmente conhecido como senhoria, constitui-se de todas as espécies de
aproveitamento econômico do objeto por parte de seu titular, que se traduzem nas
chamadas faculdades de usar, fruir e dispor – também conhecidas como poderes
do titular do domínio.
Já o aspecto externo ou jurídico18 disciplina o momento patológico da
situação proprietária, com as ações de defesa da propriedade, bem como o direito
de reaver a coisa para si, quando o titular sofre os efeitos da lesão (ou ameaça de
lesão) de direito19.
O ponto de vista funcional põe em jogo o controle de legitimidade da
propriedade, a justificativa finalística dos poderes do titular em razão das
exigências suscitadas por outros centros de interesse antagônicos – tais como
vizinhos, entes públicos, enfim, terceiros proprietários ou não proprietários. Desta
compatibilidade entre interesses proprietários e extraproprietários resulta o
conceito da função social, que atua sobre a senhoria da propriedade e remodela,
em sua essência, os poderes do titular. Assim sendo, diversos interesses dignos de
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tutela passam a compor o núcleo do direito de propriedade, permeando seu
aspecto interno. São exemplos disso os interesses ambientais, trabalhistas,
culturais, dentre outros, que se tonam relevantes e oponíveis ao proprietário.
Com efeito, a função social parece exercer papel de controle de
merecimento de tutela, garantindo e promovendo os valores cardeais do elenco
axiológico do ordenamento. Segundo Perlingieri:
―Em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e
ao pleno desenvolvimento da pessoa, o conteúdo da função social assume
um papel do tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas
de propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para
garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o
ordenamento‖.20
De mais a mais, tecnicamente a propriedade deixa de ser estudada como
mero direito subjetivo, tendencialmente pleno, a respeitar apenas certos limites
externos, de feitio negativo, tornando-se, isso sim, situação jurídica subjetiva
complexa, a abranger também deveres (positivos) ao titular, além de ônus,
sujeições etc.21
Não deve, igualmente, ser referida como gênero, formal e abstrato. Cabe
aqui o alerta fundamental de Salvatore Pugliatti, no sentido de não mais ser
desejável se referir à propriedade no singular, mas sim no plural, haja vista a
enorme diferenciação entre os diversos estatutos proprietários existentes nas
distintas situações subjetivas que se revelem em concreto22.
Em termos constitucionais, a função social da propriedade no Brasil
passou por processo de evolução e amadurecimento. A Constituição Federal de
1946, em seu artigo 147, já tratava a função social da propriedade como princípio
da ordem econômica23. Na Carta Magna de 1988, além de alicerce da ordem
econômica, a função social da propriedade ganha ainda mais prestígio, passando à
categoria de direito fundamental, com implicações hermenêuticas evidentes 24.
Hoje se pode afirmar que a perspectiva funcionalizada decorre mesmo da força dos
princípios constitucionais da solidariedade social e da dignidade da pessoa
humana (Constituição, artigos 1º, III, e 3º, I e III)25, situando-se o núcleo do
conceito de função (social) da propriedade no condicionamento da tutela do
direito do proprietário à realização dos valores constitucionais, e ao atendimento
de interesses não proprietários considerados socialmente relevantes26.
Concluiz
G
çã
T
q
q
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― ã
‖
―
14
çã
q
‖ 27. Em
definitivo:
―A disciplina da propriedade constitucional, a rigor, apresenta-se dirigida
precisamente à compatibilidade da situação jurídica de propriedade com
situações não-proprietárias. De tal compatibilidade deriva (não já o
conteúdo mínimo mas) o preciso conteúdo da (situação jurídica de)
çã
‖28.
A função remodela a estrutura e o conteúdo do direito29. Não há espaço,
hoje, à luz do projeto constitucional, para o exercício do domínio em moldes
apartados do elenco axiológico do ordenamento jurídico.
4.Aquisição funcionalizada: hipóteses congêneres
Se é verdadeiro que a funcionalização projeta suas luzes sobre a situação
proprietária e as relações jurídicas a ela subjacentes, como visto acima, parece
lógico que o momento aquisitivo não escapa de tal espectro, muito especialmente
quando o processo se mostra permeado por valores especialmente socializantes.
Por outras palavras, quando entram em cena situações tais como a
usucapião especialíssima (CC, art. 1240-A)30 ou a aquisição onerosa decorrente do
exercício da exceção de posse socialmente qualificada (CC, art. 1228, pars. 4o e
5o)31, o elenco de valores supremos do ordenamento incide diretamente e de modo
privilegiado sobre o caso concreto, permitindo o acesso dos mais vulneráveis ao
uso e fruição dos bens jurídicos que a ordem constitucional fez tutelar. Assim,
devem ser repelidas todas as tentativas de interpretação que causem embaraços ou
que criem obstáculos à eficácia desses dispositivos.
Afinal, impedir o exercício do direito previsto no parágrafo quarto do
artigo 1228, por exemplo, por conta da ausência de recursos, do estado de
miserabilidade dos possuidores ou por exigência de legislação urbanística
municipal quanto à metragem mínima é verdadeiramente atentar contra os valores
constitucionais que conferem precedência da pessoa sobre o patrimônio. Essa
precedência é justamente o que identifica o marco axiológico do ordenamento
jurídico na dignidade humana e na solidariedade32, bem como a constatação da
prevalência, nas situações de conflito, dos valores não-patrimoniais sobre os
patrimoniais, do interesse da coletividade sobre o individual, por opção
(democrática) do Poder Constituinte.33
Quadro
semelhante
se
verifica
quando
se
enfoca
a
usucapião
especialíssima, no que tange ao percentual de frações ideais que detém o
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condômino beneficiário do expediente, e que remanesce no imóvel. Basta a
situação da comunhão para que seja deflagrado o mecanismo ad usucapionem em
relação à fração remanescente, ainda que a razão original de divisão entre as cotas
seja desfavorável ao adquirente. O raciocínio, tal como apresentado, para além da
aparente consagração do antigo brocardo interpretativo – onde o legislador não
distinguiu não cabe ao intérprete fazê-lo –, encontra justificativa última nos
valores constitucionais da tutela da pessoa humana no ambiente familiar.
Simplifica o acesso ao domínio pleno do bem, reunindo as frações sob a
titularidade do responsável que permanece na residência, em beneficio da
segurança jurídica do núcleo34.
Para além de corresponder à noção de garantia35, o direito de propriedade,
hoje, representa igualmente a ideia de acesso. Valoriza-se, funcionalmente, o dito
direito à propriedade – nas palavras de Luiz Edson Fachin: ―
-se a entender
que esse direito subjetivo tem destinatários no conjunto da sociedade, de modo
que o direito de propriedade também começa a ser um direito à propriedade. Gera,
por conseguinte, um duplo estatuto: um de garantia, vinculado aos ditames sociais,
‖.36
O acesso, por seu turno, no quadro social de escassez em que vive a
sociedade brasileira,
vincula-se
a
alguns dos
valores fundamentais
do
ordenamento, ilustrados nos incisos I e III do artigo 3º da Constituição, segundo
os quais constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil
construir uma sociedade justa e solidária, erradicar a pobreza e reduzir as
desigualdades sociais, em nome da tutela privilegiada da dignidade da pessoa
humana, fundamento da República, a teor do art. 1º, III, da Constituição. Por isso
mesmo a posse cumpridora de sua função social goza de autonomia em relação à
garantia do direito de propriedade, podendo prevalecer mesmo contra o domínio 37.
E a prioridade axiológica dos valores existenciais em jogo (moradia, trabalho)
aponta para a prioridade finalística da acessibilidade ao estatuto dominial por
via da usucapião especial independente da restrição de metragem, oriunda da
legislação municipal, tema melhor desenvolvido a seguir.
5. Usucapião imobiliária urbana independente de metragem, os
valores em jogo e o aceso debate na jurisprudência
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Ao retornar-se à questão objeto específico deste ensaio38, verifica-se a
ocorrência de uma (apenas aparente) colisão entre princípios e valores, protegidos
pelo ordenamento.
Se, por um lado, mostra-se coerente com o interesse público geral de
ordenação urbana a solução que preconiza a inviabilidade da usucapião sobre área
menor que a metragem mínima das posturas municipais, a fim de atender ao
princípio da função social da cidade, evitando-se a degradação do tecido urbano e a
consequente favelização, por outro, não se pode negar que o acesso à propriedade
imóvel, por meio da usucapião, constitui mecanismo de relevância social de
impacto, a bem do acesso à moradia, do princípio da isonomia e da garantia da
segurança jurídica.
As decisões dos conflitos pelo Judiciário refletem uma divisão de cenário,
em oscilações entre as duas orientações enfocadas.
Em meio a torrencial aplicação do Enunciado número 7 de sua Súmula de
Jurisprudência39, parece prevalecer, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a
exigência de metragem mínima para aquisição da propriedade imobiliária urbana
por usucapião. Em recente julgado, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino
çã
STJ
: ―o entendimento desta Corte é no sentido de
que não é possível a usucapião de terreno com dimensões inferiores ao módulo
(
)‖40. Há precedente da Corte em igual sentido:REsp 402.792/SP,
Rel. Min. Jorge Scartezzini, Quarta Turma, julg. 26.10.200441.
Entretanto, em outro acórdão o STJ houve por bem manter decisão de
Tribunal estadual que acolheu a tese da possibilidade de usucapião: REsp
150.241/SP,Rel. Min. Sálvio De Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julg.
02.12.1999, DJ 08.03.200042.
A consideração da existência de uma metragem mínima para constituir o
denominado módulo urbano da propriedade imobiliária, imposta por legislação
municipal, tem impressionado muitos intérpretes. Apegados à subsunção e
acostumados a técnicas legislativas regulamentares, não conseguem superar o
óbice urbanístico. Afinal, se há uma dimensão mínima para a concepção da
propriedade imobiliária no interior da cidade, qualquer tentativa, seja de que
natureza for, de se instituir lote com área inferior àquela do módulo mínimo deve
ser, de plano, refutada.
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Mais forte se torna o argumento, supõem seus adeptos, diante da ausência,
na outra ponta, de metragem mínima para efeito de aquisição por usucapião. A
―
çã ‖
h ó
ã
preencheria o vácuo normativo federal, desempenhando papel de integração do
ordenamento. Chega a chamar a atenção o apego exasperado à subsunção, a
procura de um regulamento legal, de uma solução específica na letra da lei, a servir
―
‖
―
‖
creto.
E não é só. A tal quadro soma-se ainda a motivação da tese. Inspirada no
firme propósito de garantir a função social da cidade, em que se inclui a qualidade
de vida de seus moradores, e para evitar o risco de favelização, considerada uma
chaga oriunda da ausência de regulação dos espaços urbanos, o raciocínio culmina
na decisão de impossibilidade jurídica do pedido. Vale dizer, inexistindo respaldo
no ordenamento, amparo legal para a pretensão aquisitiva em relação àquela
porção de terra que se deduz em juízo, outro caminho não resta ao magistrado
senão a extinção do feito sem julgamento do mérito, na forma do artigo 267, inciso
VI, do Código de Processo Civil43.
As posturas municipais, em nítida subversão hermenêutica, são elevadas a
patamares superiores à legalidade constitucional, inclusive ao ponto de engendrar
a carência das condições da ação de usucapião do possuidor.
No entanto, se o texto da Constituição da República não especificou a
dimensão mínima da área em que as espécies de usucapião constitucionais
deveriam se dar, ao contrário, restringiu apenas o limite máximo nessas hipóteses
– assim como o Estatuto da Cidade e o Código Civil procederam da mesma forma
nos modelos de que cuidam –, certamente não faria sentido que o legislador
municipal pudesse incluir tal dimensão em regras normativas de aquisição da
propriedade imobiliária. Mesmo porque não têm os Municípios competência para
legislar sobre direito civil – parcela que se inclui no rol privativo da União, nos
termos do artigo 22, inciso I, da Constituição de 198844. Parodiando antigo
brocardo interpretativo, poder-se-ia sustentar que onde o constituinte não
distinguiu, não cabe ao legislador municipal fazê-lo.
E, pior: eventual aplicação combinada dos dispositivos da Constituição
com as posturas municipais, em exercício interpretativo que estendesse as
fronteiras da norma municipal para além de suas possibilidades finalísticas,
ensejaria modelo absurdamente estreito de eficácia social da usucapião especial no
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Brasil, restrito a espaço confinado entre a metragem mínima municipal e a
máxima constitucional. No caso do Município do Rio de Janeiro, como as regras de
zoneamento exigem a metragem mínima de 225 metros quadrados e a
Constituição impõe o limite máximo de 250 metros quadrados, conclui-se que o
espaço quantitativo para a aquisição por usucapião especial residiria neste
intervalo estreito entre um limite e outro, afastando-se todas as demais dimensões.
Mais grave ainda: se, como ocorre em muitas cidades no país, o limite mínimo
municipal for igual ou superior à metragem máxima constitucional, pronto: estaria
inviabilizada, e sem condição de produzir qualquer efeito, a previsão constitucional
de aquisição por usucapião, por força da regra de zoneamento municipal 45.
Com efeito, em atenção à hierarquia das leis e à supremacia da
Constituição, há diversas decisões, em segunda instância, descartando a tese da
impossibilidade jurídica do pedido, em face de um status inferior das leis
municipais em
contraposição
às normas federais
– sejam
de termos
constitucionais ou infra46.
Em rigor, no entanto, não parece haver propriamente conflito entre a
norma constitucional e a municipal, a desafiar a tábua hierárquica que constitui o
ordenamento. Trata-se, isso sim, de normas com vocações e funções bastante
diferentes.
As posturas municipais que determinam o zoneamento urbano destinamse ao bem-estar coletivo, à ordenação do território da cidade, ao fiel cumprimento
de sua função social, com implicações e impactos na rede de transportes, nas
relações de vizinhança, na segurança pública, no meio ambiente etc. Daí decorrem
a legitimidade e a competência da municipalidade para legislar e administrar,
mediante o exercício de seu poder de polícia, o território urbano, por outorga do
sistema jurídico constitucional, a bem da eficácia de suas leis e ações
administrativas – na regularização de empreendimentos urbanísticos e de
parcelamentos urbanos submetidos à aprovação das autoridades públicas da
prefeitura. Tais poderes decorrem diretamente do pacto federativo absorvido nas
normas constitucionais (artigo 30, incisos I e VIII e artigo 182 da CF47), e são
regulamentados nos termos do Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257, de 10.7.2001).
Por outro lado, à normatização da situação específica da aquisição da
propriedade imobiliária por conversão da posse, cumpridos os requisitos para
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tanto, destina-se o comando do artigo 183 da Constituição 48, do artigo 9o do
Estatuto da Cidade, e dos artigos 1.238 a 1.244, do Código Civil.
A função, aqui, é eminentemente distinta, a promover a conversão da
posse em propriedade e permitir o acesso ao domínio por parte do possuidor,
fortalecendo o estatuto de sua moradia. Representa a consagração dos anseios por
justiça social, além de eloquente exemplo da prevalência dos interesses
extrapatrimoniais sobre os patrimoniais, na medida em que antepõe a função
social da posse exercida pelo possuidor à propriedade do incauto titular; o direito à
moradia à especulação dominial; a dignidade humana ao capital; o desempenho
ativo da situação jurídica subjetiva à letra fria do título no Registro de Imóveis; a
solidariedade ao individualismo; a substância à forma.
E a forma de aquisição, originária, descaracteriza qualquer relação de
transferência, por ato de autonomia privada, com a titularidade anterior –
surgindo na verdade uma situação proprietária nova, que não guarda comunicação
com a situação antecedente, permitindo a abertura de uma específica matrícula no
Registro Geral de Imóveis, independente da cadeia registral existente.
Neste processo, muitas vezes penoso, de obtenção do registro na serventia
competente, o fato de se exigir requisito não contemplado no texto constitucional
por si só vilipendia a isonomia substancial e obstaculiza o acesso à propriedade por
parte das pessoas que mais carecem da tutela social da Constituição. Não se pode
perder de vista que, em existindo na localidade eventuais imóveis que por qualquer
circunstância tenham sido registrados com dimensões inferiores ao plano
urbanístico, com maior eloquência restaria caracterizada a violação ao princípio da
igualdade (formal), materializando-se a lesão, per se, na exigência do
dimensionamento mínimo, por se atribuir tratamento desigual a pessoas que se
acham na mesma situação jurídica49.
Além disso, gize-se ad colorandum que, em termos dos modos de
aquisição de propriedade, a usucapião representa exceção no contexto fático atual,
não se podendo alegar risco de favelização generalizada em consequência do
reconhecimento judicial pontual de um dos efeitos mais fortes da posse, a
usucapião.
Acresceu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em
recentíssima ocasião, em sua Súmula da Jurisprudência Predominante, a de
número 317, procurando pacificar os entendimentos em torno da concepção
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majoritária na corte estadual, nos seguintes
: ―É juridicamente possível o
pedido de usucapião de imóvel com área inferior ao módulo mínimo urbano
‖50.
O teor do novíssimo enunciado interpretativo corresponde igualmente à
tese que parece prevalecer no país, em meio à celeuma de decisões judiciais na
matéria por todos os tribunais. Há, inclusive, número expressivo de acórdãos a
tutelar o interesse do usucapiente, dando provimento, em segunda instância, aos
recursos
interpostos
contra
as
sentenças
terminativas
prolatadas
por
impossibilidade jurídica51.
A matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal, a quem competirá dar a
definição jurisdicional do problema, já tendo sido afeta ao Plenário, por decisão
unânime da 1ª Turma52. Espera-se, em meio às expectativas de parte a parte, que o
Tribunal reflita em sua decisão a prevalência dos valores existenciais e da justiça
social, bem como leve em conta os avanços da teoria da interpretação, e caminhe
no mesmo sentido da recente Súmula editada pelo Tribunal de Justiça do Estado
do Rio de Janeiro.
6. Considerações finais
Sob a perspectiva funcional, o contraste das duas vocações (ordenar o
território da cidade e garantir acesso à propriedade pelo possuidor que preenche
os requisitos da usucapião) permite entrever a concepção de sistema e a ideia de
unidade na complexidade de fontes que constituem o ordenamento, dentro do qual
ambas as regras podem e devem conviver em harmonia. O reconhecimento
pontual da usucapião, em determinadas circunstâncias, passa ao largo da
proibição de parcelamento do solo que crie lote com área inferior ao mínimo legal.
Em termos da função de cada instituto, o conflito, que estruturalmente se
coloca ao intérprete, acaba por se apequenar, se é que de conflito se possa falar.
Insista-se, à exaustão: uma coisa é a limitação proveniente da legislação municipal
para a implantação de lotes autônomos, direcionada ao parcelamento do solo
urbano pelos diversos meios negociais; outra, completamente diversa, é a previsão
da usucapião constitucional (ou da legislação ordinária federal), voltada à
conversão da posse em propriedade, modo originário de obtenção do domínio 53.
Somente uma exegese que artificialmente forçasse a literalidade da norma
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municipal em detrimento de sua teleologia e função no sistema permitiria
conclusão diversa.
Negar aprovação, na esfera administrativa, a projeto de subdivisão de terra
urbana que crie lote com área abaixo da prevista para o módulo mínimo, quando
for o caso54, e chancelar, no plano jurisdicional, a aquisição (originária, sublinhese) por usucapião sobre parcela de terreno que dê origem a lote novo, ainda que
inferior às dimensões do módulo mínimo, é o que se espera do Estado, em nome
da dignidade humana, da solidariedade social e da igualdade substancial, sem que
se possa vislumbrar qualquer contradição entre tais medidas.
Usucapião imobiliária urbana independente de metragem mínima:
uma concretização da função social da propriedade – Carlos Edison do
Rêgo Monteiro Filho
Artigo recebido em 02/09/2014
1º parecer recebido em 19/10/2014
2º parecer recebido em 18/11/2014
1
O autor agradece a Rafael Sinay, mestrando em direito civil no Programa de PósGraduação em Direito da UERJ, pela valorosa colaboração na pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.
2
A destacar o uso da força, em nome da segurança coletiva, para garantia da paz,
leciona Kelsen: “Quando a ordem jurídica determina os pressupostos sob os quais a coação, como força
física, deve ser exercida, e os indivíduos pelos quais deve ser exercida, protege os indivíduos que lhe estão
submetidos contra o emprego da força por parte dos outros indivíduos. Quando esta proteção alcança um
determinado mínimo, fala-se de segurança coletiva – no sentido de que é garantida pela ordem jurídica
enquanto ordem social. (...) A segurança coletiva visa a paz, pois a paz é a ausência do emprego da força
física.” Hans Kelsen. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6ª Ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998, p. 40-41.
3
Norberto Bobbio apresenta a evolução do aspecto funcional no Direito: “Nas
constituições liberais clássicas, a principal função do Estado parece ser a de tutelar (ou garantir). Nas
constituições pós-liberais, ao lado da função de tutela ou garantia, aparece, cada vez com maior frequência, a
função de promover. (...) o prêmio atribuído ao produtor ou ao trabalhador que supera a norma é um típico
ato de encorajamento de um comportamento superconforme, prêmio este que tem a função de promover uma
inovação, enquanto qualquer medida destinada a desencorajar a transgressão de uma dada norma serve para
manter o status quo.” Norberto Bobbio. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução
de Daniela BeccacciaVersiani; revisão técnica de Orlando Seixas Bechara e Renata Nagamine. Barueri-SP:
Manole, 2007, p. 13-21.
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22
4
Explicando a evolução dessa liberdade ilimitada para uma liberdade funcionalizada,
Lorenzetti pondera: “O direito clássico pensou no indivíduo auto-suficiente. Partia da suposição de que todos
os indivíduos têm similar capacidade de decisão e por isso podem optar; nada há que fazer o Direito diante
disso. O Direito moderno pensa, ademais, no indivíduo hipossuficiente, em que há uma série de
condicionamentos externos que devam se desmontar para melhorar a capacidade de decisão”. Ricardo Luis
Lorenzetti. Fundamentos do direito privado. São Paulo: RT, 1998, p. 504. Para Pietro Perlingieri, a garantia
da vontade não pode ser absoluta, mas necessariamente deve atender a fins sociais. “A autonomia não é livre
arbítrio: os atos e as atividades não somente não podem perseguir fins anti-sociais ou não-sociais, mas, para
terem reconhecimento jurídico, devem ser avaliáveis como conformes à razão pela qual o direito de
propriedade foi garantido e reconhecido.” Pietro Perlingieri. Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito
Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 228.
5
Sobre a propriedade nos códigos oitocentistas, destaca Luiz Edson Fachin: “A
propriedade para a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão consistiu em direito inviolável e
sagrado. Tanto o Código francês quanto o Código italiano de 1865 estatuíam que a propriedade é o direito de
gozar e dispor do bem absoluto.” Luiz Edson Fachin. A função social da posse e a propriedade
contemporânea: uma perspectiva da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 1988, p. 16. No campo da economia, Ludwig Von Mises expõe a noção de propriedade segundo a
ótica liberal: “A propriedade privada gera para o indivíduo um universo no qual ele se vê livre do estado. Ela
põe limites à operação da vontade autoritária. Permite o surgimento de outras forças, que se colocam lado a
lado e em oposição ao poder político. (...) É no solo em que as sementes da liberdade se nutrem e em que se
enraízam a autonomia do indivíduo e, em última análise, todo progresso intelectual e material.” Ludwig Von
Mises. Liberalismo. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010, p. 9. Em sentido diverso, confirase o contraponto de Eduardo Espínola ao conceito liberal de propriedade: “O pressuposto de confiança
recíproca e boa-fé, que se integra no moderno conceito de obrigação, encontra correspondência na função
social, implícita no direito de propriedade, no sentido de consideração à solidariedade social, compreendendo
os direitos do proprietário e os deveres que lhe são impostos pela política legislativa”. Eduardo Espínola.
Posse, propriedade/compropriedade ou condomínio/direitos autorais. Atualizado por Ricardo R. Gama.
Campinas: Bookseller, 2002, p. 190.
6
Nas palavras de San Tiago Dantas: “(...) o direito de propriedade, tal como se
concebe, não pode ser retirado pelo Estado a ninguém. É condição essencial que preceda a esse ato a
indenização, depois de ter sido exarado, normalmente, mediante um decreto especial, que aquela
desapropriação se impõe por motivo de utilidade pública. Todo ato administrativo, portanto, e até mesmo
toda lei ordinária, que tolha a alguém a propriedade particular sem fazer indenização correspondente, está
inquinado do vício de inconstitucionalidade. (...) o direito de propriedade figura entre aqueles que a
Constituição protege por considerá-lo uma das instituições civis básicas dentro da estrutura social”. Francisco
Clementino de San Tiago Dantas. Programa de direito civil III: direito das coisas. Rio de Janeiro: Ed. Rio,
1979, p. 115, 116.
7
Vale destacar a lição de Gustavo Tepedino sobre a superação de uma lógica
meramente patrimonialista em benefício de outra, qualitativamente diversa, de precedência dos valores
existenciais: “Revisitou-se, pouco a pouco, a partir de então, a metodologia do direito privado, mediante a
reconstrução de seus conceitos fundamentais, e procurou-se fazer do compromisso para com a pessoa
humana e a justiça social a fonte de inspiração para a produção intelectual, preocupação esta que se refletiria
inevitavelmente na jurisprudência. O direito civil, então, procurou superar a perspectiva patrimonialista que o
distinguia, e voltou-se para a promoção dos valores constitucionais, especialmente no que concerne à
dignidade da pessoa humana, à solidariedade social, à igualdade substancial e ao valor social da livre
iniciativa (...).” Gustavo Tepedino. O direito civil-constitucional e suas perspectivas atuais. In Temas de
Direito Civil – Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 22.
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23
8
Maria Celina Bodin de Moraes pontua o advento da tutela da dignidade da pessoa
humana como o cerne do Direito: “Os objetivos constitucionais de construção de uma sociedade livre justa e
solidária e de erradicação da pobreza colocaram a pessoa humana – isto é, os valores existenciais – no vértice
do ordenamento jurídico, de modo que é este o valor que conforma todos os ramos do direito”. Maria Celina
Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil-constitucional. In Na medida da pessoa humana: estudos de
direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 11.
9
Na lição de Aristóteles: “Digamos que a sabedoria filosófica e o discernimento devem
ser dignos de escolha porque são a excelência das duas partes respectivas da alma, ainda que nenhuma delas
produza qualquer efeito. Ademais, elas produzem algum efeito, não como a arte da medicina produz a saúde,
mas como as condições saudáveis são a causa da saúde; é assim que a sabedoria filosófica produz a
felicidade, pois, sendo uma parte da excelência como um todo, por ser possuída, ou melhor, por ser usada a
sabedoria filosófica faz o homem feliz. Além disso, a função de uma pessoa se realiza somente de acordo
com o discernimento e com a excelência moral, porquanto a excelência moral nos faz perseguir o objetivo
certo e o discernimento nos leva a recorrer aos meios certos.” Aristóteles. Ética a Nicômaco. Tradução de
Mário da Gama Kury. 3º Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, 1992, p. 125.
10
Para Aristóteles, os fins são objetivos que possam ser apreciados por si mesmos –
Ética a Nicômaco, cit., p. 20.
11
Pietro Perlingieri. Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil
Constitucional; tradução de Maria Cristina De Cicco. 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 94. Norberto
Bobbio também faz referência a essa importante ideia: “Em poucas palavras, aqueles que se dedicaram à
teoria geral do direito se preocuparam muito mais em saber „como o direito é feito‟ do que „para que o direito
serve‟”. Norberto Bobbio. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito; tradução de Daniela
BeccacciaVersiani; revisão técnica de Orlando Seixas Bechara e Renata Nagamine. Barueri-SP: Manole,
2007, p. 53.
12
Pietro Perlingieri. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução: Maria
Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 937-954. Perlingieri explica que a transformação do
entendimento da propriedade, que de mera situação subjetiva passa a ser compreendida como relação
jurídica, significou não apenas uma metamorfose estrutural, mas principalmente funcional: é a passagem de
uma postura individualista para uma postura relacional. “(...) De modo que esta [a função social] concerne ao
conteúdo complexo da disciplina proprietária, não somente aos limites” (p.240). E aduz antes que “mudados
os parâmetros, os valores de fundo do ordenamento, interpretações redutivas como estas não se justificam
mais: a produção, a empresa e seu incremento não representam os fins, mas os meios para realizar interesses
não avaliáveis economicamente” (p.939).
13
Leon Duguit. LastransformacionesdelDerecho Publico y Privado. Buenos Aires:
Editorial Heliasta S.R.L., 1975, p. 178 e ss. V., também, José Diniz de Moraes. A função social da
propriedade e a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 94-97.
14
“Fundando-se todos os direitos civis sobre o de propriedade, assim que este último é
abolido nenhum outro pode subsistir. A justiça seria mera quimera, o governo uma tirania, e deixando a
autoridade pública de possuir um fundamento legítimo, ninguém seria obrigado a reconhecê-la, a não ser
constrangido pela força”Jean-Jacques Rousseau.O contrato social. Tradução: Antonio de PaduaDanesi. São
Paulo: Martins Fontes, 1989.
15
“A ideia de propriedade privada, em Roma ou nas cidades gregas da antiguidade,
sempre foi intimamente ligada à religião, à adoração do deus-lar, que tomava posse de um solo e não podia
ser, desde então, desalojado. A casa, o campo que a circundava e a sepultura nela localizada eram bens
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próprios de uma gensou de uma família, no sentido mais íntimo, ou seja, como algo ligado aos laços de
sangue que unem um grupo humano”. Fabio Konder Comparato. Direitos e deveres fundamentais em matéria
de
propriedade.
p.1.
Disponível
em:
http://academico.direitorio.fgv.br/
ccmw/images/5/55/Comparato.pdf.Acesso em 20/06/2014.
16
Este é o magistério de Gustavo Tepedino: “novos parâmetros para a definição da
ordem pública, relendo o direito civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma
vez, os valores não patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua
personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa
econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais”. Gustavo Tepedino. Premissas metodológicas para
a constitucionalização do direito civil. In Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2004, p. 22.
17
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito
de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve
ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados,
de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio
ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas; (...) § 4o O
proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse
ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem
realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e
econômico relevante; § 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao
proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.
18
Desenvolve Ricardo Lira: “No seu aspecto externo – o jurídico –, a propriedade,
como ensinava Bernardo Windscheid, nada mais é que o direito de exclusão que tem o titular de afastar todos
e qualquer um do campo em que se exercita a sua senhoria, manifestando-se inclusive no direito de reaver a
coisa de quem injustamente a possua ou detenha.” Ricardo Pereira Lira. Elementos de direito urbanístico.
Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 156.
19
“O direito romano dá ao proprietário o meio de recuperar a posse de todo indivíduo
em cujas mãos acha a sua coisa, seja qual for o modo por que este adquirisse a posse. Esse meio, que
antigamente consistia num ato solene de recorrer-se à força privada, e que não conduzia a uma instância
judiciária senão no caso de resistência, é a reivindicatio.” Em outro momento de sua obra, Ihering aborda a
ação possessória: “A ação possessória mostra-nos a propriedade na defensiva, e a reivindicação na ofensiva.”
Rudolf Von Ihering. Teoria simplificada da posse. In Ruy Barbosa. Posse de direitos pessoais / Rudolf Von
Ihering. Teoria simplificada da posse. Apresentação de Orlando Gomes; edição cuidada por Alcides
Tomasetti Jr. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 70 e 86, respectivamente.
20
Pietro Perlingieri. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução: Maria
Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 940.
21
“Não se pode sustentar que os limites e as obrigações não fazem parte do direito de
propriedade; fatos externos são o ônus real, a servidão, o peso imposto pelo exterior e que, portanto, não
fazem parte da estrutura da situação subjetiva-propriedade. (...) A propriedade é, ao revés, uma situação
subjetiva complexa.” Pietro Perlingieri. Perfis do direito civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional;
tradução de Maria Cristina De Cicco. 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 224. Compartilhando do
mesmo ponto de vista, Ricardo Lira: “(...) contemporaneamente, a propriedade não sofre apenas as limitações
exteriores decorrentes do poder de polícia, consubstanciando a função social da propriedade, mas ela própria
é uma função social, sobretudo quando cria poderes inerentes a um bem de produção.” Ricardo Pereira Lira.
Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 313. Anota ainda Anderson Schreiber
que “na concepção individualista do direito de propriedade, definido como o direito de usar e dispor das
coisas „de lamanièreplusabsolute‟, parece evidente que a função do domínio correspondia unicamente à
proteção dos interesses do proprietário. O titular do direito de propriedade era dotado de um direito quase
absoluto, cuja amplitude esbarrava apenas em limitações de caráter negativo, obrigações de não fazer que lhe
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eram impostas pelo poder Público. E mesmo essas obrigações negativas eram consideradas excepcionais e
estranhas ao instituto da propriedade”. Anderson Schreiber. Função Social da Propriedade na Prática
Jurisprudencial
Brasileira.
Disponível
em:
http://www.anderson
schreiber.com.br/downloads/Funcao_Social_da_Propriedade_na_Pratica_Jurisprudencial_Brasileira.pdf p. 46. Acesso em 18/06/2014.
22
Salvatore Pugliatti. La proprietà e le proprietà. In La proprietà nel nuovo diritto.
Milano: Giuffrè, 1954, p. 148, 149. Gustavo Tepedino, em sentido análogo, registra a passagem da noção
abstrata do instituto para sua concretização: “De fato, a variedade e relatividade da noção de propriedade (…)
corroboram a rejeição (…) da propriedade como noção abstrata. (...). Chega-se, por este caminho, à
configuração da noção pluralista do instituto, de acordo com a disciplina jurídica que regula, no ordenamento
positivo, cada estatuto proprietário. (...). A construção, fundamental para a compreensão das inúmeras
modalidades contemporâneas de propriedade, reflete, na realidade, a superação da própria concepção
tradicional de direito subjetivo, entendido como o poder reconhecido pelo ordenamento ao sujeito para
realização de interesse próprio, finalizado em si mesmo. (...) Referida construção aplicada à propriedade
permite concebê-lanão mais uma situação de poder, por si só e abstratamente considerada (...), mas como
„una situazionegiuridicasoggettivatipica e complessa‟, necessariamente em conflito ou coligada com outras,
que encontra a sua legitimidade na concreta relação jurídica na qual se insere.” Gustavo Tepedino.
Comentários ao Código Civil: direito das coisas, v.14; coordenador: Antônio Junqueira de Azevedo. São
Paulo: Saraiva, 2011, p. 241-243. No mesmo sentido, Ricardo Lira disserta: “Consequentemente, a rigor, não
há que falar só em redefinição da propriedade, mas em diversificação do direito de propriedade, no seu
conteúdo, conforme o bem de vida que esteja em jogo, visando à função social da propriedade, como um dos
instrumentos da Justiça Social. Assim, o direito de propriedade, assegurado na Constituição da República
pode variar, como verdadeira função social, nos termos e limites fixados pela lei, como expressão da vontade
coletiva, desde que não seja ele esvaziado no seu conteúdo essencial mínimo.” Ricardo Pereira Lira.
Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 161.
23
Art 147 - O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá,
com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual
oportunidade para todos.
24
Ao analisar o sentido e o alcance da função social da propriedade, Luiz Edson Fachin
defende que não devem ser atendidas as pretensões possessórias do proprietário não cumpridor da função
social de sua propriedade, mesmo que em tese tais pretensões sejam garantidas pelo Código Civil. Confirase: “(...) é defensável concluir que é incongruente com a norma constitucional e a mens legis deferir proteção
possessória ao titular de domínio cuja propriedade não cumpre integralmente sua função social, inclusive (e
especialmente) no tocante ao requisito da exploração racional. A liminar que seja deferida concedendo a
reintegração de posse de imóvel nessa condição pode até atender a dogmática do Código Civil, mas se choca
de frente com o novo texto constitucional. (§) Com base neste ponto de vista, torna-se possível não atender as
pretensões de defesa possessória do proprietário que deixa de imprimir à sua propriedade uma função social,
não obstante possua título de domínio. É aqui valorizado, acima do direito abstrato da propriedade, um fato
concreto que se baseia na posse agrária legitimando a propriedade”. Luiz Edson Fachin. A justiça dos
conflitos no Brasil. In: A questão agrária e a justiça.Juvelino José Strozake (org.). São Paulo: RT, 2000, p.
285.
25
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana; Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; III - erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais.
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26
Art. 5º - (...), XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade
atenderá a sua função social; XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade
ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os
casos previstos nesta Constituição; XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente
poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano; XXVI
- a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de
penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de
financiar o seu desenvolvimento.
27
Gustavo Tepedino. Temas de Direito Civil. 3ª edição atualizada. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p.323.
28
Ob. cit., p. 323.
29
Neste rumo, Pietro Perlingieri, ao afirmar ter se tornado a função social “a própria
razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a determinado sujeito”. Pietro Perlingieri. Perfis do
direito civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional; tradução de Maria Cristina De Cicco. 2ª Ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 226.
30
“Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem
oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros
quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o
para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de
outro imóvel urbano ou rural”. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011)
31
“§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado
consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número
de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados
pelo juiz de interesse social e econômico relevante. § 5 o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a
justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do
imóvel em nome dos possuidores.”
32
Gustavo Tepedino esclarece a profunda transformação do direito de propriedade:
“Desse modo, (não já o conteúdo mínimo, mas) o preciso conteúdo da situação jurídica de propriedade,
inserida na relação concreta, deriva da compatibilidade da (situação jurídica de) propriedade com situações
não proprietárias. Assim considerada, a propriedade (deixa de ser uma ameaça e) se transforma em
instrumento para a realização do projeto constitucional (acesso a garantias fundamentais).” Gustavo
Tepedino. Comentários ao Código Civil: direito das coisas, v.14; coordenador: Antônio Junqueira de
Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 249.
33
Ricardo Lira compactua desse espírito: “Nesse caso a riqueza social aumenta, a
distribuição da riqueza se faz mais justamente, na medida em que, visando ao bem de todos, o interesse
protegido do dominus definha diante do interesse subordinado da comunidade”. Ricardo Pereira Lira.
Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 313.
34
Seja consentido remeter a Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Usucapião
especialíssima: um olhar sobre o novo instituto. In Revista Trimestral de Direito Civil; coord. Gustavo
Tepedino, v.49, janeiro/março 2012, Rio de Janeiro, Padma, 2000, p. 242.
35
Constituição da República, art. 5º, caput e incisos XXII e XXIII.
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27
36
Luiz Edson Fachin. Teoria Crítica do Direito Civil. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2012, p. 289.
37
Permita-se a referência a Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Rumos cruzados do
direito civil pós-1988 e do constitucionalismo de hoje. In Direito civil contemporâneo: novos problemas à
luz da legalidade constitucional. Org. Gustavo Tepedino. São Paulo: Atlas, 2008, p. 275 a 277.
38
Cf. item 1, supra, em especial os parágrafos iniciais.
39
O apontado enunciado, publicado em 3.7.1990, impede sejam conhecidos pelo STJ
um sem número de recursos especiais, filtrando a multidão de feitos que assola a Corte. Veja-se seu inteiro
teor: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”.
40
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO. RECURSO ESPECIAL. USUCAPIÃO
ESPECIAL.
LEGISLAÇÃO
MUNICIPAL.
RECURSO
ESPECIAL.
NÃO
CABIMENTO.
PREQUESTIONAMENTO. AUSENTE. SÚMULA 211 DO STJ. USUCAPIÃO. ÁREA MENOR QUE
MÓDULO URBANO. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (STJ, 3ª T., AgRg
nos EDcl no Ag 1407458/RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julg. 07.05.2013).
41
CIVIL - RECURSO ESPECIAL - USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO - ÁREA
INFERIOR AO MÓDULO URBANO - LEI MUNICIPAL - VEDAÇÃO - ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO
AOS ARTS. 550 e 552 DO CC/16 - INOCORRÊNCIA. 1 - In casu, como bem ressaltado no acórdão
impugnado, “o imóvel que se pretende usucapir não atende às normas municipais que estabelecem o módulo
mínimo local, para parcelamento do solo urbano.” (fls.168/169), não constituindo o referido imóvel, portanto,
objeto legalizável, nos termos da lei municipal. Conforme evidenciado pela Prefeitura Municipal de Socorro,
no Ofício de fls. 135, o módulo mínimo para o parcelamento do solo urbano daquele município é de 250m2,
e o imóvel em questão possui apenas 126m2. Ora, caso se admitisse o usucapião de tal área, estar-se-ia
viabilizando, de forma direta, o registro de área inferior àquela permitida pela lei daquele município. Há,
portanto, vício na própria relação jurídica que se pretende modificar com a aquisição definitiva do imóvel. 2 Destarte, incensurável o v. acórdão recorrido (fls. 169) quando afirmou que "o entendimento do pedido
implicaria em ofensa a norma municipal relativa ao parcelamento do solo urbano, pela via reflexa do
usucapião. Seria, com isso, legalizado o que a Lei não permite. Anotou, a propósito, o DD. Promotor de
Justiça que, na Comarca de Socorro, isso vem ocorrendo "como meio de buscar a legitimação de
parcelamento de imóveis realizados irregularmente e clandestinamente." 3 - Recurso não conhecido (STJ, 4ª
T., REsp 402.792/SP, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, julg. 26.10.2004).
42
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO. PROPRIEDADE RURAL. ÁREA
INFERIOR A UM MÓDULO RURAL. SOCIEDADE DE FATO. POSTERIOR REGISTRO. CONTAGEM
DO PRAZO DE USUCAPIÃO. DOUTRINA. RECURSO ESPECIAL ENUNCIADO N. 283 DA
SÚMULA/STF. RECURSO DESACOLHIDO. I - Nos termos do art. 18 do Código Civil, "começa a
existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição dos seus contratos, atos constitutivos,
estatutos ou compromissos no seu registro peculiar, regulado por lei especial, ou com a autorização ou
aprovação do Governo, quando precisa". Por outro lado, nada impede que a sociedade de fato, que venha a
registrar-se posteriormente, procure valer-se, após a sua constituição legal, de direitos adquiridos
anteriormente ao seu registro. II - O legislador de 1973 inovou ao atribuir, no art. 12-VII, CPC, capacidade
para ser parte às sociedades sem personalidade jurídica. Assim, mesmo antes de sua constituição legal, é
permitido à sociedade de fato postular em juízo os seus direitos. III - Assentando-se o tribunal de origem em
mais de um fundamento para ter como possível a aquisição por usucapião de imóvel rural, cada um deles
suficiente, por si só, para manter o acórdão, e não havendo impugnação de todos eles, não há como conhecer
do recurso especial. (STJ, 4ª T., REsp 150.241/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julg.
02.12.1999).
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28
43
“Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito: (…) VI- quando não
concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o
interesse processual”.
44
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I- direito civil, (…)”.
45
Existe previsão na Lei 6.766/79 de metragem mínima do lote urbano em 125 m2 e
indicação à legislação municipal, em termos vinculantes e cogentes, para que defina as áreas mínima e
máxima dos lotes que sejam criados em seu território. Vejam-se as disposições a seguir: “Art. 4º. Os
loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos: (...) II - os lotes terão área mínima de
125m² (cento e vinte e cinco metros quadrados) e frente mínima de 5 (cinco) metros, salvo quando o
loteamento se destinar a urbanização específica ou edificação de conjuntos habitacionais de interesse social,
previamente aprovados pelos órgãos públicos competentes; (...) §1 o A legislação municipal definirá, para
cada zona em que se divida o território do Município, os usos permitidos e os índices urbanísticos de
parcelamento e ocupação do solo, que incluirão, obrigatoriamente, as áreas mínimas e máximas de lotes e os
coeficientes máximos de aproveitamento”. A decisão do STJ mencionada na nota de rodapé nº 41, supra,
infelizmente consagra a metragem mínima para a usucapião em cidade que adota o módulo mínimo urbano
de 250 m2, fazendo tábula rasa da previsão constitucional da usucapião especial – Município de Socorro,
Estado de São Paulo.
46
TJRJ, 10ª C.C., Ap. Cív nº 00051742520048190202, Rel. Des. José Carlos Varanda
dos Santos, julg.: 19.03.2014. Da fundamentação, extrai-se: “Neste sentido, ainda que o artigo 30, VIII da
Constituição Federal e demais normas infraconstitucionais tenham possibilitado aos entes municipais legislar
sobre o ordenamento do solo urbano, não se pode perder de vista que estas normas jurídicas não podem, e
jamais poderiam inviabilizar a eficácia do artigo 183 da Constituição Federal, hierarquicamente superior (...)
Por certo, o comando constitucional, de eficácia plena, apenas delimita o tamanho máximo do imóvel, e não
o mínimo, justamente porque qualquer outra ressalva poderia obstar o acesso ao direito à moradia, princípio
fundamental decorrente da proteção à dignidade da pessoa humana”.
47
“Art. 30. Compete aos Municípios: I- legislar sobre assuntos de interesse local; (…)
VIII- promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso,
do parcelamento e da ocupação do solo urbano”. “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada
pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.
48
“Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua
família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.
49
Tal circunstância pode ser demonstrada por meio da apresentação de certidão do
serviço registral competente, a atestar a existência de matrículas porventura abertas relativamente a imóveis
com metragem abaixo do módulo mínimo.
50
A publicação da Súmula data de 18.08.2014, a partir do julgamento do Incidente de
Uniformização de Jurisprudência n. 001314964.2005.8.19.0202, julgamento em 14.4.2014, Rel. Des. Marcus
Quaresma Ferraz.
51
Assim, TJRJ, 3ª CC, Ap. Cív. nº 0015350-79.2003.8.19.0208, Rel. Des. Elton Leme,
julg. 15.1.2014; no mesmo sentido, TJSP, 3ª Câmara de Direito Privado, Ap. Cív. nº 006254825.2010.8.26.0224, Rel. Des. João Pazine Neto, julg. 10.9.2013; bem como TJPR, 18ª Câmara Cível, Ap. Cív
nº 692.874-7, Rel. Fabian Scweitzer, julg. 8.6.2011; e, ainda, TJSC, Câmara Especial Regional de Chapecó,
Ap. Cív nº 20120219266, Rel. Des. Eduardo Mattos Gallo Júnior, julg. 12.08.2013.
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29
52
STF, 1ª T., RE 422.349/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, julg. 27.04.2010. A decisão foi
lavrada nas seguintes palavras: “A Turma, por indicação do Ministro Marco Aurélio, decidiu afetar o
processo a julgamento do Tribunal Pleno. Unânime. Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski”. Em
decisão mais recente, o Tribunal deu provimento a Agravo para subir Recurso Extraordinário em que se
debate o mesmo tema: STF, 1ª T., AI 832718/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, julg. 16.12.2013, decisão em que se
menciona a expectativa da definição do assunto pelo Plenário da Suprema Corte.
53
Do ponto de vista da estrutura, supondo-se o choque entre os princípios e valores no
caso, se o resultado da ponderação indicasse a prevalência do módulo mínimo na usucapião, restariam
aniquilados os interesses do possuidor, que teria negado seu direito constitucional de acesso à propriedade,
mesmo tendo reunido todos os pressupostos aquisitivos cabíveis. Tal aniquilamento não se mostra desejável.
A ponderação, ao revés, permite a compatibilização, em certa medida, dos valores em confronto, em
detrimento do sacrifício total de um polo.
54
O Superior Tribunal de Justiça houve por bem manter decisão judicial que negava a
implantação de loteamentos residenciais com área menor que o módulo urbano (STJ, Corte Especial, AgRg
em suspensão de liminar e de sentença nº 1.067-SP, Min. Rel. Cesar Asfor Rocha, julg. 18.11.2009). Neste
julgado, o Ministro Relator fundamentou seu voto no argumento de que “cabe à administração pública tomar
as medidas urgentes cabíveis para evitar criação de favelas, invasões e o aumento do número de família sem
residência própria”.
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A PROPRIEDADE PRIVADA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Private property in the Federal Constitution
EroulthsCortiano Junior
RESUMO: Trata este artigo de revelar e demonstrar sistematicamente os
dispositivos constitucionais que têm como objeto a propriedade privada,
colaborando para a compreensão do instituto em sua dimensão constitucional.
Para tanto, a propriedade privada é apresentada como um instituto jurídico e não
como uma categoria conceitual, com todos os riscos imanentes a esta abordagem.
A visão institucional da propriedade irá permitir a sua compreensão integral no
plano do direito civil-constitucional.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Civil; Propriedade privada, Constituição Federal; Direito
de propriedade.
ABSTRACT: The following article intends to reveal and systematically scrutinize the
constitutional provisions concerning private property in Brazilian Law, thereby
collaborating to a wide comprehension of such right in its constitutional
dimension. Private property is thus presented as a legal institution, rather than as
a conceptual category, despite the risks inherent to this approach. The
understanding of property rights as legal institutions allow its holistic
comprehension, in a civil-constitutional perspective.
KEYWORDS: Civil law; Private property; Federal Constitution; Property.
SUMÁRIO: 1. Os institutos civis – 2. A Constituição Federal e o direito civil – 3. As
normas fundamentais da propriedade privada na Constituição de 1988 –4. A
propriedade privada, a renda e a tributação – 5. Limitação, perdimento,
desapropriação, expropriação da propriedade privada – 6. Competência legislativa
em tema de direito de propriedade –7. Propriedade privada e propriedade pública
–8. As normas instrumentais para defesa do direito de propriedade – 9. Síntese
1. Os institutos civis
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31
Enquanto a dogmática jurídica trabalha com regras e princípios, o
refinamento teórico vale-se de instrumentos específicos de construção do
conhecimento, tais como as categorias e os institutos jurídicos. Estes
instrumentos, além de otimizadores da construção do conhecimento, são
extremamente úteis para a aplicação prática do direito.
No que diz respeito às categorias, o processo cognitivo do cientista
identifica, diferencia e classifica objetos, organizando-os em grupos, classes ou
categorias, com um determinado propósito específico.
No caso do jurista, a
organização dos elementos jurídicos (normativos ou não) em categorias jurídicas,
permite, além da reflexão epistemológica em si, a operação do direito na praxis.
Nos termos colocados por LIPARI, a categorização conceitual é uma
operação mental de classificação da experiência, voltado a agilizar o resultado
interpretativo, de maneira funcional a um efeito aplicativo1. Os nexos construídos
pelo jurista, a partir da observação da realidade social (vista na sua evolução
cultural e histórica) e dos enunciados técnicos (os dados legais, doutrinários e
jurisprudenciais), permitem-lhe criar, com racionalidade e razoabilidade, um
esquema de pensamento que se constitui em instrumento notável de conhecimento
da realidade e de operação do direito.
No
mesmo
sentido,
os
institutos
jurídicos
apresentam-se
como
instrumentos úteis para a tomada de decisões jurídicas concretas a partir da
integração de normas, princípios e regras. Como diz MENEZES CORDEIRO, o
instituto é “um conjunto concatenado de normas e princípios que permite a
formação típica de modelos de decisão”2. O jurista constrói os institutos jurídicos
a partir da sistematização de normas que, em um mesmo ordenamento, digam
respeito a um determinado e destacado objeto. Não se trata, porém, de apenas
somar e agregar as normas que venham a compor o instituto: este exige uma
articulação normativa sistemática, construída com forte unidade interna, apta a
permitir a tomada de decisões concretas. A partir da qualidade de sua construção e
de sua aceitação pela doutrina, um instituto tende a tornar-se ponto histórico de
referência que repercute, por sua vez, em toda a cultura jurídica, para o presente e
para o futuro.
Tanto as categorias conceituais como os institutos jurídicos constituem
uma proposta interpretativa e um princípio de orientação para a aplicação do
direito, o que envolve, nitidamente, a prática social.
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
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Por outras palavras, as categorias e os institutos jurídicos, por ordenarem e
organizarem a realidade jurídica, são instrumentos metodológicos imprescindíveis
para a atuação do jurista teórico e prático, na medida em que permitem, de forma
consistente e coerente, a tomada de decisões.
Por se tratarem, as categorias e os institutos, de instrumentos
juscientíficos, nada obsta que haja uma coincidência terminológica entre alguns
deles. Exemplo disto é a propriedade privada. Para além de um direito subjetivo, a
propriedade foi construída pela teoria como uma categoria conceitual e também
como um instituto jurídico. É deste último sentido – a propriedade privada como
instituto, ou o conjunto sistemático normativo da propriedade privada – que se
cuida neste texto.
2. A Constituição Federal e o direito civil
A Constituição se integra ao direito civil – e no direito civil – por seu valor
posicional dentro da hierarquia normativa, por sua eficácia direta e pelos
mecanismos de integração e aplicação da própria norma civil3. O método civilconstitucional, construído e em construção, se apresenta ao direito brasileiro e
abre novos caminhos interpretativos4.
Nesta perspectiva, parece importante verificar e sistematizar a base
constitucional do instituto jurídico da propriedade privada (até porque esta base
não se resume aos incisos XXII e XXII do artigo 5º e aos dispositivos que referem a
sua função social). A concatenação da normativa constitucional pode revelar, por
suas falas e também por seus silêncios, a construção dogmática e ideológica da
propriedade no direito brasileiro contemporâneo. O que se propõe é isso: revelar,
sistematizando criteriosamente, os dispositivos constitucionais que tem como
objeto a propriedade privada.
Neste aspecto, a Constituição Federal de 1988 é marcante. Ainda que o
direito de propriedade tenha sido objeto de tratamento constitucional em cartas
anteriores, é a Constituição de 1988 que permite uma efetiva construção de um
conceito geral-concreto do direito de propriedade.
Tenta-se, aqui, exclusivamente, com todos os riscos imanentes, revelar a
propriedade como instituto jurídico. Este objetivo afasta (ou lança para outra
oportunidade) a importante e imprescindível crítica ao instituto propriedade
privada e às opções legislativas do legislador constitucional. O que se pretende, em
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
33
síntese, é a realização de uma cartografia da propriedade constitucional, de
maneira a compor (sob alguma mínima sistematização) as diversas normas
constitucionais e colaborar para a compreensão do instituto em sua dimensão
constitucional.
Nesse andar, pode-se sistematizar o tratamento constitucional da
propriedade sob os seguintes aspectos: (i) as normas fundamentais sobre o
conteúdo do direito de propriedade e seu papel instrumental na consecução dos
objetivos da República; (ii) as normas relativas à renda e à tributação; (iii) as
normas relativas à limitação e expropriação da propriedade privada; (iv) as
normas sobre competência legislativa acerca do direito de propriedade; (v) as
normas que discriminam a propriedade pública da propriedade privada; e (vi) as
normas instrumentais para a defesa do direito de propriedade. Esta classificação –
como qualquer outra – é aleatória (no sentido de que são possíveis outras
classificações) e, apesar de não isenta de crítica, permite uma primeira
aproximação ao instituto jurídico da propriedade privada na Constituição Federal.
3. As normas fundamentais da propriedade privada na Constituição de
1988
A conformação fundamental do direito de propriedade é construída pela
Constituição sob duas perspectivas: de um lado o reconhecimento do direito de
propriedade e, de outro, a importância desse mesmo direito para os objetivos da
República.
Ao prescrever os fundamentos da República, o artigo 1º5 permite encontrar
o direito de propriedade como um dos elementos úteis para o respeito à dignidade
da pessoa humana, notadamente na perspectiva de um patrimônio mínimo
compositor do mínimo existencial6. Como propriedade ou como acesso, e
ressalvado todo o componente ideológico do direito de propriedade, o certo é que o
artigo 1º da Constituição, lido em sistema com a demais normativa constitucional,
abre portas para a relevância constitucional da propriedade privada.
Nesse mesmo caminho, o artigo 3º impõe o objetivo republicano de
erradicação da pobreza7, sendo a garantia da propriedade privada um – e apenas
um – dos instrumentos econômicos e sociais que podem ser trabalhados para o
desenvolvimento nacional e para a diminuição das desigualdades materiais (aliás,
outros dos objetivos estipulados no mesmo dispositivo constitucional). De mais a
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
34
mais, o artigo 170, VII, estabelece como princípio da ordem econômica a “redução
das desigualdades regionais e sociais”.
Avulta, daí, a importância do artigo 5º da Constituição, ao reconhecer
expressamente a garantia da inviolabilidade do direito à propriedade e não do
direito de propriedade, o que pode ser entendido como a inafastabilidade das
garantias de acesso à propriedade8. Passando-se as coisas assim, constata-se que o
caput do artigo 5º da Constituição vem exatamente completar os contido nos
artigos 1º e 3º.
No rol dos direitos estabelecidos no artigo 5º, verifica-se a garantia da
propriedade (e, por óbvio, também da posse) por intermédio da garantia da
inviolabilidade da casa9 e da liberdade de locomoção da pessoa com os seus bens10.
Os incisos XXII e XXIII da Constituição garantem, agora, o direito de
propriedade desde que atendida sua função social11. Esta garantia remete
automaticamente ao título VII da Constituição, que cuida “Da ordem econômica e
social”. No ambiente da ordem econômica e social, há três momentos de
importância.
Em primeiro lugar, a Constituição estabelece (artigo 170) que a ordem
econômica deve observar os princípios da propriedade privada e da função social
da propriedade12. Em segundo lugar, o tratamento dado à política urbana, onde se
destaca (artigo 182) que a política de desenvolvimento urbano será executada pelo
poder público municipal conforme diretrizes gerais fixadas em lei, respeitada a
função social da propriedade imóvel urbana13. Em terceiro lugar, aparece a
regulação da política agrícola e fundiária, onde a Constituição estabelece
claramente o conteúdo da função social da propriedade imóvel rural, com seus
elementos econômico, social e ambiental (artigo 18614).
Não pode deixar de ser mencionado que a Constituição acata, em termos
modulados, a proteção à criação intelectual como direito autoral patrimonializado
e sucessível (artigo 5º, XXVII15). Outra norma da maior importância em matéria de
propriedade privada (aqui como direito à propriedade e direito de propriedade) é a
garantia do direito de herança, inamovível em seu pedestal de tradição (artigo 5º,
XXX16).
Por fim, em se tratando de garantia à propriedade, é necessário registrar
os dispositivos que regulam o usucapião constitucional, marcado pela valorização
da posse-trabalho e pela proteção da moradia (artigos 18317 e 19118)
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35
Consuma-se, aqui, este ponto de partida: a propriedade privada é regulada
e garantida na Constituição e é instrumento de atingimento dos objetivos da
República. Não há erro em afirmar que a proteção do direito de propriedade
decorre de sua importância para o atingimento dos objetivos nacionais
estampados na Constituição. Há então um caminho de mão dupla: assim como a
propriedade privada é importante para os objetivos nacionais, estes dependem do
reconhecimento da propriedade privada funcionalizada.
4. A propriedade privada, a renda e a tributação
A propriedade privada também é protegida na medida da proteção dos
ganhos remuneratórios do trabalho, sob qualquer dimensão ou nomenclatura. A
renda é elemento constitutivo da propriedade privada. Assim, por exemplo, a
propriedade privada é antevista na proteção dos direitos sociais salariais (artigos
6º e 7º19) na iniciativa privada (com destaque para as garantias de salário mínimo,
de piso salarial e de irredutibilidade salarial) e no funcionalismo público (artigos
3720 e 3921) espraiando-se pela remuneração da magistratura (artigo 95, III) e do
Ministério Público (artigo 128, § 5º I, c).
No que toca ao sistema tributário, e como corolário do direito à
propriedade e do direito de propriedade, regulam-se os impostos sobre a
propriedade (nos tradicionais exemplos do ITR, IR, IPTU, IPVA22-23-24),
estabelecem-se limitações fundadas na capacidade econômica do contribuinte (§ 1º
do artigo 14525) e a proibição da tributação confiscatória ou limitadora da
circulação da propriedade privada (artigo 15026).
5.
Limitação,
perdimento,
desapropriação,
expropriação
da
propriedade privada
A Constituição, ao lado da garantia do direito de propriedade, estabelece
as situações de limitação ao exercício deste direito e, mesmo, de expropriação
(expressão usada, aqui, em seu sentido mais amplo) dele.
De logo, registre-se que há total vedação à perda de direitos – o que
abrange o direito de propriedade – por exclusiva discriminação religiosa, política
ou filosófica (artigo 5º, VIII27).
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
36
Os incisos XLV e XLVI do mesmo artigo 5º, ainda no plano dos direitos
individuais, limitam – remetendo ao legislador ordinário – a pena de perdimento
de bens28.
A desapropriação da propriedade privada por necessidade ou utilidade
pública assegura ao proprietário justa e prévia indenização em dinheiro (artigo 5º,
XXIV29), podendo também o poder público, em caso de iminente perigo público
utilizar a propriedade privada com eventual indenização posterior, conforme
inciso XXV do artigo 5º30. Na mesma direção, a decretação do estado de sítio
permite a requisição de bens, gerando limitação temporária ao direito de
propriedade (artigo 139, VII31).
A desapropriação por interesse social, vinculada à reforma agrária, está
prevista nos artigos 184 e 18532 da Constituição. Reservada à União, envolve a
verificação do cumprimento da função social e permite o pagamento em títulos da
dívida agrária (pagamento em dinheiro para as benfeitorias úteis e necessárias).
Excluem-se – embora haja desenvolvida discussão sobre a constitucionalidade
desta exceção – da desapropriação para reforma agrária, a pequena e média
propriedade rural cujo proprietário não possua outra e a propriedade produtiva.
Além disso, cabe desapropriação da propriedade imóvel urbana com
pagamento de indenização em dinheiro ou em títulos da dívida pública em caso de
seu inadequado aproveitamento (artigo 18233).
A Constituição também prevê a expropriação da propriedade privada sem
indenização, nos casos de cultivo de cultura ilegal ou exploração de trabalho
escravo (artigo 24334). E não poderá ser objeto de penhora para pagamento de
débitos decorrentes da própria atividade produtiva a pequena propriedade rural
trabalhada pela família (artigo 5º, XXVI35).
6. Competência legislativa em tema de direito de propriedade
Competindo à União legislar sobre direito civil (artigo 22, I36), cabe a ela
legislar sobre direito de propriedade, com papel atribuído ao Congresso Nacional
(artigo 4837). Excepcionalmente – rectius: em casos de urgência e relevância – o
Presidente da República poderá legislar sobre propriedade por intermédio de
medida provisória, exceto para seqüestro ou detenção de bens, poupança ou ativos
financeiros. Esta assertiva decorre de análise das matérias sobre as quais é vedada
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a utilização de medidas provisórias, não estando entre elas a legislação civil (mas
constando, por exemplo, a legislação sobre direito penal e processual38).
7. Propriedade privada e propriedade pública
A discriminação entre bens públicos e privados envolve diretamente a
distinção – e o consequente regime jurídico diferenciado – entre propriedade
privada e propriedade pública.
A Constituição atribui ao poder público uma série de bens, discriminandoos da propriedade privada. Pertencem à União os bens arrolados no artigo 20 (por
exemplo, as terras devolutas indispensáveis à defesa do país, os lagos, rios e
correntes de água em suas terras ou que banhem mais de um estado ou sirvam de
limites com o estrangeiro, com os respectivos terrenos marginais e praias fluviais,
as ilhas oceânicas e as costeiras, as cavernas subterrâneas etc.39). Na propriedade
da União também se inscrevem as jazidas, recursos minerais e potenciais de
energia hidráulica, nos termos do artigo 17640.
Nesse ponto, chamam especial as terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios. Elas são consideradas bem da União (artigo 20, XI 41) e submetem-se a
regime
especial.
Os
indígenas
têm
direito
originário
sobre
as
terras
tradicionalmente ocupadas por eles, as quais são consideradas bem da união, e
lhes é assegurado a posse permanente e o usufruto das riquezas respectivas. Tais
terras são inalienáveis e indisponíveis, sendo considerados nulos e extintos
quaisquer atos negociais que envolvam a ocupação, o domínio e a posse dessas
terras (artigo 23142).
O artigo 26 elenca as terras de propriedade dos estados membros da
federação (por exemplo, as terras devolutas que não sejam da União43) e o artigo
30 permite ao Município o ordenamento territorial, o que pode repercutir no
exercício da propriedade privada44, em consonância com o artigo 182 da
Constituição.
Ainda quanto às terras públicas importa referir não serem passíveis de
usucapião (artigos 183, § 3º45 e 191, parágrafo único46), bem como, em relação às
terras públicas e devolutas, a obrigatoriedade de seu ingresso no patrimônio de
particulares ser concatenado com a política agrícola e com o plano nacional de
reforma agrária (artigo 18847).
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
38
8. As normas instrumentais para defesa do direito de propriedade
A garantia do direito de propriedade depende de atuação estatal e, neste
aspecto, há variada normativa constitucional instrumentalizada, direta ou
indiretamente, para esta garantia.
Assim, por exemplo, o âmbito da jurisdição do Estado (artigo 5º, XXXV 48),
a proteção ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada (artigo 5º,
XXXVI49), e a garantia do devido processo legal, com referência expressa ao
perdimento de bens (artigo 5º LIV50). Opera no mesmo sentido o artigo 5º, LXXVI,
garantidor do acesso à justiça com gratuidade51.
9. Síntese
Partindo da ideia de instituto jurídico como a sistematização normativa
acerca de um determinado objeto, pretendeu-se revelar o instituto jurídico da
propriedade privada na Constituição. A ausência de aprofundamento sobre
aspectos desta regulação constitucional e de crítica ao instituto não significa
superficialidade deste escrito, mas opção. A concatenação – tentada aqui – das
normas constitucionais sobre a propriedade privada pretende ser útil justamente
para a construção da crítica sobre o instituto. Espera-se que este texto realmente
tenha esta utilidade.
A propriedade privada na Constituição Federal –
EroulthsCortiano Júnior
Artigo recebido em 21/08/2014
1º parecerrecebido em 10/09/2014
2º parecer recebido em 08/11/2014

Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR.
1
N. LIPARI. Le categorie del diritto civile. Milano: Giufrè, 2013, p. 21.A respeito da
utilização dos conceitos e das categorias jurídicas para a compreensão da lógica normativa, sugere-se,
também, D. MESSINETTI. Per un‟ecologia dellamodernità: il destino dei concetti giuridici. L‟apertura di
R. Nicolò a situazioni complesse. Rivista Critica del Diritto Privato. Mar/2010, p. 23-38 e D.CARUSI.
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39
Principio di differenziazione e categorie giuridiche (l‟Unione Europea, l'eguaglianza, il paradigma della
legge). Rassegna di diritto civile 3/2010, p. 731 e ss.
2
CORDEIRO, Antonio Menezes. Teoria geral do direito civil. 1º volume, 2ª edição
revista e actualizada, Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito, 1994, p. 294.
3
Neste sentido, A. CARRASCO PERERA. El derecho civil: señas, imágenes y
paradojas. Madrid: Tecnos, 1988. p. 72.
4
Para uma objetiva e didática referência sobre a constitucionalização do direito civil,
remete-se para os escritos já clássicos de M. C. BODIN DE MORAES. A caminho de um direito civil
constitucional. Revista de direito civil, imobiliário, agrário e empresarial, v. 65, p. 21/32 jul/set/1993; G.
TEPEDINO. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Temas de Direito Civil.
Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 1 e ss.; e P. LOBO. Constitucionalização do direito civil. Revista de
Informação Legislativa, n. 141, 1999, p. 99-109.
5
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
6
Sobre o tema, deve sempre ser consultado L. E. FACHIN. Estatuto jurídico do
patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, que vai além da propriedade fundada na apropriação
formal ou registral, propondo uma “dimensão própria de patrimônio”; a obra, pois, refere-se a um espaço do
viver muito mais alargado do que o da propriedade privada.
7
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
8
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
9
Art. 5º (...) XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar
sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou,
durante o dia, por determinação judicial;
10
Art. 5º (...) XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo
qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
11
Art. 5º. (...) XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade
atenderá a sua função social;
12
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados
os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
40
(...)
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
13
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público
municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com
mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
(...)
14
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende,
simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
15
Art. 5º (...) XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação
ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; XXVIII - são
assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução
da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do
aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às
respectivas representações sindicais e associativas; XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos
industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à
propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse
social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;
16
Art. 5º (...) XXX - é garantido o direito de herança;
17
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua
família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
18
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como
seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta
hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a
propriedade.
19
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição.Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de
outros que visem à melhoria de sua condição social: (...)II - seguro-desemprego, em caso de desemprego
involuntário; (...)IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas
necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário,
higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo
vedada sua vinculação para qualquer fim;V - piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do
trabalho;VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;VII - garantia de
salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável;VIII - décimo terceiro salário
com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria; (...) X - proteção do salário na forma da lei,
constituindo crime sua retenção dolosa;XI - participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da
remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei;XII salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei; (...) XV repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos;XVI - remuneração do serviço extraordinário
superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal; XVII - gozo de férias anuais remuneradas com,
pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; (...)
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41
20
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) X - a remuneração dos servidores públicos
e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica,
observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem
distinção de índices; XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos
da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes
políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não,
incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em
espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio
do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder
Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos
Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do
subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário,
aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos; XII os vencimentos dos cargos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário não poderão ser superiores aos pagos
pelo Poder Executivo;
XIII - é vedada a vinculação ou equiparação de quaisquer espécies remuneratórias para
o efeito de remuneração de pessoal do serviço público; XIV - os acréscimos pecuniários percebidos por
servidor público não serão computados nem acumulados para fins de concessão de acréscimos ulteriores; XV
- o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis, ressalvado o
disposto nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I.
21
Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho
de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos
Poderes. § 1º A fixação dos padrões de vencimento e dos demais componentes do sistema remuneratório
observará: (...) § 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII,
IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos
diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir.§ 4º O membro de Poder, o detentor de
mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados
exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação,
adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer
caso, o disposto no art. 37, X e XI.§ 5º Lei da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
poderá estabelecer a relação entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos, obedecido, em
qualquer caso, o disposto no art. 37, XI. § 6º Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário publicarão
anualmente os valores do subsídio e da remuneração dos cargos e empregos públicos. (...)
22
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: (...)III - renda e proventos de
qualquer natureza; (...)VI - propriedade territorial rural; VII - grandes fortunas, nos termos de lei
complementar.
23
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; (...)III - propriedade de veículos
automotores.
24
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:I - propriedade predial e
territorial urbana;II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por
natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de
direitos a sua aquisição; (...)
25
Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os
seguintes tributos: (...)§ 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados
segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para
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42
conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o
patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
26
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...)IV - utilizar tributo com efeito de confisco;V estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais,
ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público; (...)
27
Art. 5º (...) VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou
de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e
recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
28
Art. 5º (...)XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a
obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos
sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;XLVI - a lei regulará a
individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda
de bens; c) multa; (...)
29
Art. 5º (...) XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro,
ressalvados os casos previstos nesta Constituição;
30
Art. 5º (...) XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente
poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;
31
Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só
poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: (...) VII - requisição de bens.
32
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma
agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em
títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a
partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
§ 1º - As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro.
(...)
Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:
I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu
proprietário não possua outra;
II - a propriedade produtiva.
Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará
normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social.
33
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público
municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
(...)
§ 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa
indenização em dinheiro.
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída
no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado
ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão
previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais
e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
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34
Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem
localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão
expropriadas e destinadas à reforma agrária
e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem
prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.
35
Art. 5º (...) XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que
trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade
produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;
36
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:I - direito civil, comercial,
penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;II - desapropriação; (...)
37
Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não
exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da
União, especialmente sobre:
38
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar
medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:
I - relativa a:
a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral;
b) direito penal, processual penal e processual civil;
c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de
seus membros;
d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e
suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º;
II - que vise a detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro
ativo financeiro;
(...)
39
Art. 20. São bens da União:
I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos;
II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e
construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei;
III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que
banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou
dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais;
IV - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias
marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto
aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II;
V - os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva;
VI - o mar territorial;
VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos;
VIII - os potenciais de energia hidráulica;
IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo;
X - as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-históricos;
(...)
40
Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de
energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e
pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.
41
Art. 20. São bens da União: (...)XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
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42
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos
ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a
pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do
Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados
da lavra, na forma da lei.
§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos
sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum"
do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no
interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o
retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por
objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas
naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União,
segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a
ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
43
Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:
I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito,
ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União;
II - as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas
aquelas sob domínio da União, Municípios ou terceiros;
III - as ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União;
IV - as terras devolutas não compreendidas entre as da União.
44
Art. 30. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
(...)
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante
planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
(...)
45
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua
família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher,
ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
46
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como
seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta
hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a
propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
47
Art. 188. A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a
política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária
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45
48
Art. 5º (...) XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito;
49
Art. 5º (...) XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e
a coisa julgada;
50
Art. 5º (...)LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal;
51
Art. 5º (...) LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que
comprovarem insuficiência de recursos;
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46
O DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL E O LIVRE
DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE DO IDOSO: O DILEMA
DE LEAR
Civil Constitutional Rights and the Free Development of the Elderly
Personality: Lear's Dilemma
Guilherme Calmon Nogueira da Gama*
João Gabriel Madeira Pontes**
Pedro Henrique da Costa Teixeira***
RESUMO: O artigo apresenta abordagem doutrinária a respeito dos direitos da
personalidade da pessoaidosa com emprego da metodologia civil constitucional.O
tema leva em conta a autonomia da pessoa idosa e busca apontar parâmetro que
permita solucionarquestões atuais tais como a escolha do tratamentomédico e a
releitura do regime das incapacidades
PALAVRAS-CHAVE: Direito Civil; Direitos da personalidade; Direito do idoso;
Conflitos solucionáveis.
ABSTRACT: The paper presents doctrinal approach regardingpersonality rights of
the elderly with use of constitucional private methodology. The theme takes into
account the autonomyof elderly people and seeks to identify the parameter that
willaddress current issues such as the choice of medical treatmentand the
rereading of the system of disability.
KEYWORDS: Private Law; Personality rights; Law of the elderly; Solvable conflicts.
SUMÁRIO: 1. Introdução: a metodologia civil-constitucional a partir de 1988 – 2.Os
direitos da personalidade do idoso à luz da Constituição Federal de 1988 – 3.
Isonomia e autonomia no desenvolvimento da personalidade do idoso – 4. Em
busca de um parâmetro – 4.1.O regime das incapacidades no CC/02 – 4.2. A
possibilidade de o idoso escolher o tratamento médico ao qual será submetido – 5.
Conclusão: um cidadãoemancipado
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"O, sir, you are old;
Nature in you stands on the very verge
Of her confine: you should be rul'd and led
By some discretion, that discerns your state
Betterthanyouyourself."1
1. Introdução: a metodologia civil-constitucional a partir de 1988
No clássico shakespeariano, Lear, idoso e rei da Bretanha, decidiu dividir
seu reino, ainda em vida, entre suas filhas, desde que elas provessem o seu
sustento. No entanto, a personagem não imaginava que viria a ser traída e
rejeitada pelas herdeiras, até que, em miséria, a tragédia se consumasse. A
hipótese em tudo se assemelha à causa de revogação da doação contemplada na
legislação civil brasileira em vigor.
Visto como um ônus e peso a ser suportado, improdutivo e enfraquecido,
a situação ficcional de Lear muito se assemelha a de inúmeros idosos no Brasil e
em vários outros países. Reflete-se, assim, uma visão de mundo que não diferencia
―
‖
―
‖ 2crescente
na
medida
em
que,
nas
relações
interindividuais,valoriza-se mais o patrimônio e a capacidade produtiva e laboral
do que a existência do ser em si, como pessoa humana.
No entanto, a Constituição de 1988 (CF/88) trouxe ao centro da ordem
jurídica, posicionando-o em seu vértice axiológico e normativo, o conceito jurídico
de dignidade humana, alçado ao patamar de fundamento da República. Não se
pode pensar a dignidade da pessoa humana sem explicitar seu elemento
primordial, a autonomia, isto é, a possibilidade de autodeterminação do indivíduo
como sujeito de direitos, racional e livre para desenvolver sua personalidade.3
Conceber a autonomia dessa forma significa romper com o pensamento
exposto na epígrafe deste artigo, o qual não passa de puro, simples e odioso
paternalismo fundado em critério cronológico que, ao vincular a idade à
senilidade, retira do idoso a esfera decisória no que tange aos rumos de sua própria
vida. Não se tratam de meras elucubrações, uma vez que o próprio Código Civil de
2002 (CC/2002),editado e promulgado sob o signo da CF/88, adota, em seu artigo
1.641, II, esse modelo ao regrar hipóteses de necessidade legal do regime de
separação obrigatória de bens.4
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A regra prevista no referido dispositivo exemplifica a necessidade de
releitura de todo o sistema civilista à luz da Carta de 1988, conforme a metodologia
que se convencionou chamar civil-constitucional.
Diante dessa perspectiva constitucionalizada, cabe uma breve análise
histórica da evolução do pensamento civilista brasileiro no século XX. O Código
Civil de 1916 foi editado no auge do liberalismo jurídico, tendo por destinatário
principal o homem burguês, e por institutos paradigmáticos, o contrato e a
propriedade, sob o signo do dogma da completude.
No entanto, a unidade do Código foi desafiada pela realidade social de
duas guerras mundiais, por uma crise econômica global e pela consagração de
ideologias que propunham a intervenção do Estado na economia, fatos que
provocaram
atividade
legislativa
intensa,
consubstanciada
em
leis
extravagantes.5Esse fenômeno foi estudado por Orlando Gomes6 como a transição
do
monossistemarepresentado
pelo
Código
Civil,
que
compunha
um
macrossistema ao tratar, sob o paradigma do dogma da completude, todos os
temas civilistas, para um polissistema,dentro do qual o Código de 1916 passou a
q
h ―
‖
disciplina de matérias do
Direito Civil, compondo microssistemas normativos.7
A ruptura em relação ao já mencionado dogma da completude, que situava
o Código Civil na posição de centro regulador das relações da vida privada,
acarretou a necessidade de reconstrução da unidade do sistema. Neste sentido,
parte da doutrina8passou a defender que o cerne dessa unidade se deslocara para a
Carta de 1988, em deferência à hierarquia das fontes do direito, que postula a
superioridade da Constituição como norma fundante do ordenamento jurídico.
A CF/88 não seria, sob essa ótica, composta de meros limites à atividade
legislativa, filtrando a inconstitucionalidade das normas legais.Em outras palavras,
seus princípios e regras poderiam (e deveriam) ser aplicados como normas
jurídicas.9 Consectário dessa compreensão, também não seriam os princípios
constitucionais meras orientações políticas a inspirar o legislador ordinário. Mais
que isso,sua normatividade atenderia à função promocional que a Constituição
assumia,incidindo sobre as relações privadas de modo imediato, por meio de
cláusulas gerais, ou mediato, através da releitura dos institutos e das regras
infraconstitucionais.10
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A aplicabilidade da norma constitucional ao caso concreto, em ambas as
situações, desafia a lógica tradicional da divisão entre direito público e direito
privado,11implicando, assim, uma crescente comunicação entre esses grandes
ramos do Direito. Dessa maneira, os influxos das normas constitucionais
conformam a incidência e a interpretação das normas infraconstitucionais, isto é, a
programação da Carta de 88, voltada à consagração da dignidade da pessoa
humana e ao livre desenvolvimento de sua personalidade, irradia seus efeitos para
todo o ordenamento jurídico.
A prevalência dessas situações existenciais, no entanto, demanda uma
atuação positiva do Estado, no sentido de universalizar o acesso e o exercício dos
direitos fundamentais e de resguardar novos sujeitos de direito historicamente
discriminados ou
ignorados.12Desse modo, surgem estatutos voltados à
concretização das promessas constitucionais de igualdade e livre desenvolvimento
da personalidade, cujos destinatários são sujeitos jurídicos tão distintos quanto o
consumidor,a criança e o adolescente ou o idoso.
Busca-se, assim, aprofundar a abordagem do papel que a Lei Maior e a
metodologia civil-constitucional exercem na temática da autonomia da pessoa
idosa e de suas correspondentes situações jurídicas, em especial as de natureza
existencial.
2. Os direitos da personalidade do idoso à luz da Constituição Federal
de 1988
Ao longo dos anos, a doutrina13 elucubrou acerca dos parâmetros que
poderiam ser adotados para se definir quem é o idoso, tendo em vista a
necessidade que o Direito apresentava de delimitar juridicamente esse grupo
social. Nesse contexto, destacaram-se diversos critérios para fazê-lo, dentre eles o
psicobiológico, o qual se centra não na faixa etária da pessoa, e sim nas suas
condições físicas e mentais, e o socioeconômico, cuja principal preocupação é a
análise da situação financeira do indivíduo. Contudo, a nosso ver, nenhum critério
é capaz de delinear melhor a silhueta da figura jurídica em tela que o etário, o qual,
por causa de sua patente objetividade, garante segurança e previsibilidade ao
tratamento legal dado aos idosos.
Tal orientação foi acertadamente acolhida tanto pela Organização Mundial
de Saúde (OMS)14 quanto pelo ordenamento jurídico brasileiro. No país, para fins
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jurídico-legais e de políticas públicas, consideram-se idosas, nos termos do artigo
1º, da Lei no. 10.741/03 – conhecida como Estatuto do Idoso – todas as pessoas
com idade igual ou superior a 60 anos15; e a elas são garantidos, aos moldes do
CC/02 e da CF/88, todos os direitos da personalidade, não só os legalmente
previstos como também os inerentes à própria sistemática civil-constitucional16.
Em linhas gerais, os direitos da personalidade – também denominados
personalíssimos – são releituras dos direitos humanos. Enquanto estes apelam ao
çõ
ú
―
aspectos intelectual e moral da pessoa (englobam os direitos à honra, ao nome, à
ã
.)‖17. No entanto, vale
salientar que o termo aqui empregado para caracterizá-los – q
―
‖
– não deve ser compreendido sob uma lógica de absoluta adstrição, já que não há
uma total correspondência entre as duas categorias de direitos em exame. A título
exemplificativo, o direito à propriedade, que é direito humano, não compõe o rol
de direitos personalíssimos, eis que apresenta um conteúdo eminentemente
patrimonial18.
Como foi mencionado anteriormente, os direitos da personalidade não são
típicos, isto é, transcendem, em qualidade e quantidade, o elenco estabelecido em
lei19. Do mesmo modo, também não pertencem exclusivamente à classe dos
direitos subjetivos, uma vez que podem incidir sobre as mais variadas situações
jurídicas (e.g.: poder jurídico, direito potestativo, faculdade, ônus) 20. Dito isso, não
há dúvida de que, dentro do universo do Direito brasileiro,só foi possível atribuir
aos direitos personalíssimos tais peculiaridades graças à cláusula geral de tutela da
personalidade, cujos contornos normativos ganharam forma através das letras dos
artigos 1º, inciso III, 3º, inciso III e 5º, § 2º, todos da CF/88. Tal fato comprova
que, com efeito, a seara civilista – à qual pertencem por excelência os direitos
personalíssimos – está sujeita às benéficas irradiações da Carta Maior.
Sob uma perspectiva talvez menos específica – porém igualmente bastante
relevante –, pode-se dizer que os direitos em questão também devem o não
exaurimento de seu campo semântico ao texto legal a outra cláusula geral: aquela
referente à tutela da pessoa humana. Esta constitui a concretização de um dos
princípios mais caros à ordem jurídico-constitucional deste país, a dignidade
humana21. Não é, pois, tarefa árdua distinguir o liame que existe entre o escopo
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dos direitos da personalidade e a dignidade, já que ambos remetem à devida
valorização da dimensão existencial da vida dos indivíduos.
Nesse sentido, pode-se afirmar que um dos resultados mais importantes
do encontro entre os direitos da personalidade e o princípio da dignidade humana
é o conceito de livre desenvolvimento da personalidade, tutelado pela Declaração
Universal dos Direitos do Homem de 194822. Ao contrário de outros países, como
Espanha, Portugal e Colômbia, no Brasil, o Constituinte optou por não positivar
essa essencial garantia23. Mesmo assim, o livre desenvolvimento da personalidade
é um princípio que, apesar de implícito, tem sua força e sua aplicabilidade
asseguradas pela estrutura normativa da dignidade humana24, sobretudo se esta
for analisada sob o prisma da autonomia.
É imperioso ressaltar que a noção de autonomia à qual se fez referência
acima não se limita a uma perspectiva meramente negativa. Em outras palavras,
desde o advento do WelfareState, tornou-se impossível imaginar qualquer forma
de liberdade que se realizasse apenas sob uma perspectiva absenteísta no que
concerne à atuação estatal. A rigor, com vistas a uma integral e perfeita
concretização de todos os direitos fundamentais, também se deve recorrer a um
comportamento estatal proativo, voltado à proteção e à promoção desse grupo de
direitos. Nesse sentido, afirma Ingo Sarlet:
―Com efeito, já se fez menção que todos os direitos fundamentais
(inclusive os assim chamados direitos de defesa) (...) são, de certo modo,
sempre direitos positivos, no sentido de que também os direitos de
liberdade e os direitos de defesa em geral exigem, para sua tutela e
promoção, um conjunto de medidas positivas por parte do poder público
e que sempre abrangem a alocação significativa de recursos materiais e
humanos para sua proteção e efetivação de uma maneira geral‖.25
Desse modo, pode-se afirmar que a autonomia, faceta constitutiva do
princípio da dignidade humana e uma das bases para o livre desenvolvimento da
personalidade, efetiva-se de duas maneiras. Por um lado, não é possível impor
restrições injustificadas ao seu pleno exercício, bem como é imprescindível
salvaguardá-la de qualquer ação – oriunda do Estado ou de particulares26 – capaz
de comprometer sua higidez. Por outro, também é muito relevante que os entes
públicos, em parceria com a própria sociedade, direcionem esforços no sentido de
promover, no plano dos fatos, o conteúdo da garantia em tela. Para resumir essas
duas ideias, os teóricos costumam se referir aos termos liberdade formal e
liberdade material, respectivamente.
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Dentro do mesmo contexto, devido à sua condição de direito fundamental,
a igualdade também pode ser concebida tanto pelo viés formal quanto pelo viés
material, conforme será explicitado a seguir.
3. Isonomia e autonomia no desenvolvimento da personalidade do
idoso
O princípio da dignidade humana, já delineado nos dois itens anteriores,
postulaque todos os homens se igualam, pois dotados do mesmo valor intrínseco,
são merecedores de igual respeito e consideração por seus semelhantes. 27O
denominador comum a todos os indivíduos, atributivo da dignidade, corresponde
à autonomia, derivada de sua própria consciência e razão. No entanto, como
aponta Sarlet,28não é o exercício em si dessas faculdades, mas a potencialidade de
seu exercício, que define o ser humano.
Caso se adotasse a posição inversa, estariam excluídos da humanidade
todos os que não pudessem, definitiva ou transitoriamente, exercer a razão ou
estivessem em estado de inconsciência.29Nesse sentido, mesmo que se reconheça a
diferença entre senilidade e senescência,30 o idoso estaria em posição
desvantajosa, pois o avanço da idade tende à gradativa fragilização de seu
organismo,
tornando-o
mais
suscetível
à
superveniente
diminuição
do
discernimento, isto é, potencializando sua vulnerabilidade.31
Assim, incide a isonomia como componente do conceito da dignidade para
filtrar discriminações odiosas contra o ser humano vulnerável. É a vulnerabilidade
o elemento comum aos novos sujeitos de direito, a exemplo do consumidor, da
criança e adolescente e do idoso.32Consubstancia um estado de potencial exposição
a riscos que possam lesar pessoa em situação jurídica ou substancialmente
desigual perante seus semelhantes.
Diante da vulnerabilidade potencializada que caracteriza a pessoa idosa, o
Estatuto do Idoso foi editado com o fito de se instrumentalizar como contrapeso
jurídico à desigualdade material, a oferecer proteção integral a esse especial
estágio de desenvolvimento de sua personalidade. Conforme seu artigo 8º, o
direito ao envelhecimento é personalíssimo, cabendo-se entender, pelas normas
dos artigos 9º e 10, que o Estado Social de Direito deve assegurar o mínimo
existencial para o livre desenvolvimento de sua personalidade.33
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Em contrapartida, se de um lado a vulnerabilidade do idoso demanda uma
atuação protetiva por parte do Estado, por outro essa proteção não deve sufocar as
esferas de liberdade da pessoa. Esse é o dilema de Lear, centro de um embate entre
a autonomia inerente ao ser e a heteronomia (paternalismo) da vontade de
terceiros sobre ele.
Um exemplo de regra que encampa a heteronomia sobre o idoso está no
artigo 1.641, II, do Código Civil de 2002, que define a obrigatoriedade do regime de
separação de bens no casamento para o idoso com mais de 70 anos. Antes da
edição da Lei nº 12.344/10, a idade prevista no inciso era de 60 anos. Essa regra
foi merecidamente criticada por parte da doutrina,34que a entende inconstitucional
por estabelecer uma restrição excessiva ao idoso, em um capítulo tão íntimo à
narrativa de sua vida, que é o matrimônio. É fato notório que a idade per se não
acarreta a incapacidade, nem minora o discernimento para as decisões relevantes
da vida civil, devendo incidir princípios constitucionais como a liberdade, a
igualdade e a dignidade da pessoa humana para a devida filtragem do artigo.35
O STJ se defrontou com questão relativa ao artigo 1.641, II, CC/2002 no
que dizia respeito à extensão da norma à união estável.36 Trata-se de decisão que
merece críticas porque, além de rechaçar a inconstitucionalidade do dispositivo,
reiteradamente confunde senescência (o estágio de desenvolvimento do idoso)
com senilidade (a doença também conhecida por demência), o que reforça a
associação entre idoso e incapacidade.No voto que trata a respeito da
constitucionalidade do inciso, alega-se que, por ser um direito patrimonial, nada
obsta a restrição imposta pelo dispositivo em razão de seu caráter protetivo. No
entanto, como se afirma acima, não se cuida de um mero direito patrimonial, como
obrigações contratuais ou direitos reais, mas de uma norma íntima à regulação do
matrimônio e da condução da vida em comum dos cônjuges, e por consequência,
abarcada pelo livre desenvolvimento da personalidade, isto é, por um direito de
cunho existencial.
O Recurso Especial que brevemente se analisou acima demonstra a
necessidade, objeto deste artigo, de se reforçar critérios judiciais para a avaliação
da constitucionalidade de normas referentes ao idoso, a exemplo da já reconhecida
prevalência de situações existenciais sobre as patrimoniais.
4. Em busca de um parâmetro
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Por ora, faz-se mister frisar alguns pontos importantes, já abordados com
maior profundidade neste texto, antes de se avançar na análise. Em primeiro lugar,
está claro que o idoso é vulnerável, e por isso, precisa receber especial atenção da
sociedade e do poder público no tocante à tutela de sua integridade física e
psíquica. Contudo, também é igualmente notável a sua condição de sujeito de
direitos. Por conseguinte, sua vontade no momento de definir os rumos de sua
própria vida é soberana e deve ser respeitada, eis que sua autonomia e sua
liberdade gozam de pleno respaldo no ordenamento brasileiro.
Não obstante, a prática social, muitas vezes, ignora o fato de o idoso ser
capaz de escrever a sua própria biografia. Infelizmente – e esta é uma marca da
civilização ocidental como um todo –, ainda existe intenso preconceito por parte
dos demais membros da sociedade. As famílias, assumindo uma posição altamente
autoritária, resolvem, em grande parte dos casos, assumir o comando da vida de
seus patriarcas e de suas matriarcas, relegando-os ao papel de meros coadjuvantes
de suas próprias histórias. Esse cenário deplorável se dá porque, em geral,
costuma-se nivelar a regra pela exceção, ou seja, a pessoa em processo de
envelhecimento – etapa irremediável da experiência humana – é vista como um
ser incapaz de agir, de sentir e de pensar quando, na verdade, a idade mais
avançada não implica necessariamente debilidade.
Nesse contexto, é preciso estabelecer um critério que, deferente à
metodologia civil-constitucional vigente, seja capaz de anular esta visão
paternalista de que o idoso não é apto a se autogovernar. Em outras palavras,
deve-se dar uma resposta juridicamente coerente ao dilema de Lear. A nosso ver,
portanto, o melhor parâmetro a ser utilizado na interpretação e na aplicação das
normas legais e constitucionais as quais podem incidir sobre situações que
envolvam os direitos dos idosos é o livre desenvolvimento da personalidade, como
forma de sempre valorizar a esfera existencial desses indivíduos.
Para fins de exame, destaca-se um complexo de situações em que a
autonomia do idoso é posta à prova, sobretudo devido à adoção, por parte de
familiares, de médicos ou de outras pessoas próximas a ele, de uma postura
ofensiva aos seus direitos mais fundamentais. Tais situações envolvem (i) o regime
das incapacidades previsto no CC/02 e (ii) a possibilidade de o idoso escolher o
tratamento médico ao qual será submetido. Todas elas precisam ser relidas sob o
prisma do livre desenvolvimento da personalidade para que se possa assegurar, de
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maneira plena e eficaz, o conjunto das múltiplas dimensões que compõem a pessoa
idosa.
4.1. O regime das incapacidades no CC/02
No tocante ao regime das incapacidades delineado nos artigos 3º e 4º do
Código Civil de 2002, cabe apontar seu perfil marcadamente patrimonial, visto que
sob a inspiração do Código de 1916, objetiva resguardar interesses econômicos e
negociais que permeiam a vida de pessoas transitória ou definitivamente
vulneráveis.37
Como consequência, deve-se questionar a incidência das regras de
incapacidade no que diz respeito a situações existenciais, nas quais predomina a
autodeterminação individual na condução de interesses alheios à lógica
patrimonial, quais sejam, aqueles íntimos à personalidade, como é a hipótese da já
mencionada opção por submissão a tratamento médico, ou ainda, em maior escala,
aqueles relacionados aos direitos da personalidade. Nesse sentido, deve o regime
das
incapacidades
ser
aplicado
de
modo
exaustivo
a
essas
situações
personalíssimas que envolvem o idoso?
Reconhecendo-se a já definida diferença entre as situações patrimoniais e
as existenciais, a aplicação exaustiva do regime de incapacidades ocorreria de
modo acrítico e violador da dignidade do idoso como ser humano apto a se
autodeterminar. Isto é, a eventual incapacidade que venha a ser declarada em
relação ao idoso por razão de perda do discernimento–seja absoluta, seja relativa–
deve ser fragmentária, permitindo-lhe espaços de vivências e experiências. Em
sentido contrário, anular-se-ia a personalidade do idoso deficiente.38
Essa releitura do instituto da incapacidade civil acompanha a concepção
de que nem toda deficiência mental enseja a inviabilidade do idoso de
compreender os pressupostos e resultados de sua decisão, isto é, não será qualquer
enfermidade que afetará o discernimento para se informar e, assim, valorar uma
escolha de vida.
Dessa maneira, na hipótese de sujeição à curatela prevista no artigo 1.767,
I do Código Civil, no que diz respeito à gestão dos bens do interditado enfermo ou
deficiente mental, essa será regida como hipótese de absoluta incapacidade em
interpretação a contrario sensu do artigo 1.772 do Código. Por outro lado, no que
concerne às escolhas personalíssimas do curatelado, deverá ser avaliada a
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interdição caso a caso, conforme o nível de clareza intelectual que o idoso
apresente. Quando for possível distinguir momentos de lucidez, essas opções
existenciais deverão se sobrepor à intervenção heterônoma do curador,
çã
―
‖
1767 I
conteúdo patrimonial.
Portanto, busca-se apresentar uma resposta que compatibilize a tutela dos
interesses patrimoniais do idoso com a ideia de livre desenvolvimento da
personalidade.
4.2. A possibilidade de o idoso escolher o tratamento médico ao qual
será submetido
Sobre a referida questão do tratamento médico, amplamente debatida em
razão do artigo 17, do Estatuto do Idoso, é importante desde já salientar que a
saúde,39 direito fundamental de todo e qualquer indivíduo, se realiza não só pela
ausência de máculas à sua integridade, mas também pela ação do Estado e da
sociedade no sentido de promovê-la no mundo dos fatos. Dessa forma, nota-se que
o direito à saúde apresenta uma proeminente faceta prestacional; 40 é, portanto,
dever de todos atuar de modo a tentar concretizá-lo.
Sem dúvida, tal regra também se aplica – e de maneira ainda mais
imperiosa, deve-se dizer – à lógica da proteção do idoso. Por causa de sua peculiar
condição de vulnerabilidade, acarretada pelo fato de a idade avançada trazer
consigo certas restrições, os anciãos carecem de uma preocupação especial quanto
ao seu direito à saúde. Isso é consubstanciado tanto no princípio da solidariedade41
quanto na ideia de dever de cuidado,42 os quais, segundo Heloísa Helena Barboza,
―
z
h
‗
z çã
oportunidades de saúde, participação e segurança, com o objetivo de melhorar a
q
q
h ‘‖.43
Nesse sentido, pode-se dizer que a atenção da sociedade e a elaboração de
políticas públicas voltadas à tutela da saúde do idoso se justificam não apenas
porque se trata de um direito que tem valor por si só, mas principalmente porque
este é, em última análise, um pressuposto para o real exercício de todos os outros
direitos essenciais do indivíduo, como, por exemplo, a liberdade. Logo, não é
exagero afirmar que, assim como o zelo pela saúde dos idosos tem como
consequência inexorável a efetivação de uma miríade de importantes garantias,
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métodos negligentes e desrespeitosos para com a integridade psicofísica dessas
pessoas contribuem para a baixa potencialidade de outros direitos individuais
imprescindíveis.
Entretanto, é importante salientar que a observância ao dever de cuidado
ã
.E
çã
é
―
de uma administração paternal ou, do ponto de vista jurídico, (...) a intenção de
suprir as necessidades ou de regular a vida de uma nação da mesma forma como
z
―
í
‖.44 Já sob o viés da Medicina, pode ser conceituado
çã
outro justificado no princípio de fazer
‖ 45 isto é, traduz uma série de condutas por meio das quais o médico se põe
no comando da relação com seus pacientes, seja pelo domínio técnico de
determinado conhecimento específico, seja pela própria legitimidade social.46
Nesse contexto, o profissional em análise chega inclusive a supor qual é o
tratamento mais adequado aos seus pacientes, ignorando, assim, a vontade destes.
É, por conseguinte, uma postura coercitiva e autoritária, que contraria pontos
basilares do próprio Estado de Direito, tal qual a autodeterminação individual. Em
casos mais extremos, os argumentos utilizados para justificar o paternalismo
médico fundamentam práticas abjetas, como a ocultação e a manipulação de
informações em prol da mera obstinação terapêutica.47
Em
contrapartida
ao
paternalismo
médico,
tem-se
o
chamado
consentimento informado – ou, como alguns autores preferem chamar,
consentimento livre e esclarecido –
―
çã
intervenção médica ou escolha entre alternativas possíveis para uma determinada
çã
í
‖.48 Não se trata, pois, da mera verticalização da relação médico-
paciente, tão própria do paternalismo, mas sim da formação de laços de confiança
entre os dois. É certo que, levando em conta a especialização técnica intrínseca à
arte da Medicina, existe um desequilíbrio natural entre os sujeitos em questão.
Porém, a despeito disso, não se pode negar que há um dever de informação o qual
o médico tem a obrigação de cumprir para que a autonomia e a dignidade de seus
pacientes sejam respeitadas.
Sob essa perspectiva, o livre desenvolvimento da personalidade incidiria
de duas maneiras sobre a interpretação e sobre a aplicação do artigo 17, do
Estatuto do Idoso.49De um lado, serviria de barreira à adoção de medidas
excessivamente paternalistas, eis que a liberdade do idoso no que tange à escolha
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do tratamento ao qual será submetido deve ser, via de regra, assegurada pelo
ordenamento jurídico. De outro, também poderia ser utilizado como fundamento
para o consentimento informado,50 uma vez que exige do médico significativo ônus
argumentativo no momento de mostrar a seus pacientes o tratamento que se
revela ser o mais adequado em face de determinada conjuntura.
Vale ressaltar que, sob o prisma do livre desenvolvimento da
personalidade do idoso, o consentimento informado não pode se resumir à
assinatura de meros formulários.51 A rigor, constitui um processo de diálogo e de
interação entre médico, família e paciente, o qual leva em consideração, acima de
tudo, as particularidades deste último. Em outras palavras, cabe ao médico
fornecer ao paciente, de forma compreensível, todas as informações necessárias
para que este possa manifestar sua vontade. Quanto aos familiares, resta respeitar
a decisão tomada pelo idoso.
Alguns autores afirmam que o consentimento informado é uma espécie de
paternalismo mitigado. Entretanto, não se pode entender dessa maneira. Na
verdade, trata-se de uma concretização do dever de informação inerente ao
exercício da função médica. Enquanto o paternalismo, independentemente de
classificações teóricas,52 centra-se na figura do médico e na autoridade que ele
representa aos olhos dos leigos, o consentimento livre e esclarecido valoriza a
autonomia e a vontade do próprio paciente. Por isso, pode-se afirmar que o
consentimento informado institui uma acertada mitigação ao paternalismo, mas
ã
ó
―
‖.
O artigo 17, do Estatuto do Idoso, em seu parágrafo único, ainda nos
apresenta outro desafio bastante complicado. Como a autonomia do ancião pode
ser respeitada quando ele, em circunstâncias excepcionais e por motivos de ordem
psicofísica, não puder optar pelo tratamento mais favorável à sua saúde? Nesse
caso, as decisões tomadas pelo idoso ao longo de sua vida devem ser acolhidas, ou
seja, se o paciente pôde, antes do advento da condição que lhe extirpou a
capacidade de fato, manifestar, de alguma forma, sua vontade, esta deve ser
acatada por todos, incluindo seu médico e seus familiares.53 Por isso, é preciso,
neste momento, fazer referência às chamadas diretivas antecipadas.
Segundo resolução do Conselho Federal de Medicina, as diretivas
ã
―
é
manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não,
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receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e
‖.54 Por assegurarem ao ancião o papel de
personagem principal dentro da relação médico-paciente, podem ser vistas como
uma maneira de harmonizar a aplicação do parágrafo único do artigo 17, do
Estatuto, ao conceito de livre desenvolvimento do idoso.
Se, no entanto, não houver diretiva antecipada ou qualquer outra
evidência capaz de apontar qual seria a vontade do paciente diante de certa
çã
í
í
z
R
N
: ―
médico e equipe de saúde, em estreita colaboração com a família, devem
determinar o curso de atuação mais adequado de acordo com o melhor interesse
do
‖.55 Ainda, se houver discordância entre a equipe de médicos e os
N
çã
í
:―
-se, até
ao limite, uma estratégia consensual. Após envidados todos os esforços, se não for
possível a obtenção do consenso,então deve-se recorrer a meios formais de
resolução. Designadamente mecanismos intrainstitucionais – tal como o Comitê
de Ética –
‖.56 Todas essas – frise-se –
são respostas que, à semelhança do subitem anterior, respeitam, em alguma
medida, a ideia de livre desenvolvimento da personalidade do idoso, e, portanto,
devem ser consideradas.
5. Conclusão: um cidadão emancipado
Em 1988, o Estado e a sociedade brasileiros assumiam o compromisso de
cumprir todas as promessas presentes no então recém-elaborado texto
constitucional. Naquele período de redemocratização e de quebra de antigos
paradigmas, iniciou-se uma procura por novas maneiras de aplicar e de interpretar
as normas jurídicas, as quais valorizassem a pessoa humana e o pleno
desenvolvimento de sua existência. Inaugurou-se, assim, uma metodologia
constitucional preocupada, sobretudo, com a dignidade dos indivíduos e com o
respeito a seus direitos fundamentais.
Sob esse viés, vários institutos jurídicos bastante relevantes passaram por
um processo de releitura para que pudessem ser adequados às demandas sociais
nascentes. Para fins de ilustração, a igualdade deixou de ser vista como a mera
inexistência de discriminações legais infundadas para se tornar uma verdadeira
luta contra os abismos reais que separam os diferentes membros da sociedade. Do
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60
mesmo modo, não bastava que a liberdade fosse encarada apenas como a ausência
de injustas amarras institucionalizadas às ações individuais; a rigor, essa garantia
passou a ser entendida como o que realmente deve ser, isto é, uma tentativa
verdadeira de se promover a independência, a autonomia de todas as pessoas.
Seguindo
a
lógica
da
constitucionalização
do
Direito
brasileiro
mencionada acima, alguns baluartes normativos do direito privado também
tiveram de ceder diante do cenário em análise. Isso se deveu ao fato de o Código
Civil de 1916, alicerçado sobre princípios tão caros ao ideário liberal, ter se
mostrado incapaz de servir adequadamente às ambições da Constituição de 1988,
que ganhava um papel de destaque cada vez maior dentro do novo contexto
jurídico nacional. Dessa maneira, mostrou-se o Código Civil de 2002 ser uma das
pedras de toque deste importante movimento da história do Direito brasileiro,
uma vez que representou a formação de um elo entre a seara civilista e os
princípios e regras mais essenciais do ordenamento pátrio, contemplados na Carta
Maior.
Do ponto de vista material, deslocou-se, pois, o centro do regramento das
relações interpessoais. Mais especificamente, o patrimonialismo que caracterizava
a letra do Código Civil de 1916 deu lugar a uma maior atenção à pessoa humana e
às suas particularidades. Passou-se a exigir dos indivíduos respeito mútuo, sob a
ótica da preservação de um projeto de cooperação social, cujos principais
expoentes são o próprio texto constitucional e a ideia de solidariedade que, além
de ter sido expressamente prevista por este em seu artigo 3º, I, perpassa todo o seu
conteúdo.
Atendendo à necessidade de promover concretamente os valores
contemplados pela Constituição, detectaram-se, com o tempo, determinados
sujeitos que se mostravam merecedores de cuidado especial devido à
vulnerabilidade a eles inerente. Um deles é o idoso. Por causa de sua idade
avançada, que acaba por trazer consigo uma série de condições e de novos desafios
de ordem prática a serem superados, o ancião passa a carecer de maior amparo por
parte de seus familiares, da sociedade como um todo e do próprio Estado.
Contudo, tal assistência esbarra em um dilema que clama por uma solução
urgente:como se pode aliar a construção de mecanismos eficazes de proteção à
pessoa idosa ao devido respeito à sua capacidade de gerir sua própria vida,
considerando que, em geral, os demais membros da sociedade a tomam por
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61
incapaz de fazê-lo? Logo, tendo em vista o panorama descrito, o presente artigo
objetivou, em primeiro lugar, encontrar um parâmetro capaz de servir ao processo
de resolução do questionamento posto. Para tal, levou-se em conta a principiologia
civil-constitucional e foram tomadas por objetos de análise algumas questões
controversas, como a possibilidade de o idoso escolher o tratamento médico ao
qual será submetido.
Ao fim e ao cabo, devido à sua forte ligação com o princípio da dignidade
da pessoa humana e com um sem número de direitos individuais essenciais,o livre
desenvolvimento da personalidade se destacou como potencial meio de tutela da
integridade psicofísica do idoso e, simultaneamente, de proteção à sua autonomia.
É um conceito ao qual tanto a doutrina quanto o próprio Poder Judiciário vêm
atribuindo grande valor, sobretudo no tocante ao direito que todos os indivíduos
têm de adotarem condutas no sentido de se autodeterminarem. Como um dos
maiores problemas enfrentados pelo idoso nos dias de hoje é a ideia
preconceituosa de que ele não é hábil para tomar decisões existenciais e
patrimoniais importantes, o livre desenvolvimento da personalidade se revela um
mecanismo necessário para a devida valorização da independência e da liberdade
desse sujeito de direitos.
Em síntese, tentar lidar com a vulnerabilidade do idosodeve passar ao
largo de reputá-lo impossibilitado de desempenhar os diversos atos da vida civil.
Em verdade, o ancião está tão suscetível às vicissitudes da experiência humana
quanto qualquer outra pessoa, independentemente de idade. Por conseguinte, é
tempo de tomá-lo definitivamente por quem ele é: um cidadão emancipado.
O Direito Civil-Constitucional e o livre desenvolvimento
da personalidade do idoso: o dilema de Lear –
Guilherme Calmon Nogueira da Gama; João Gabriel
Madeira Pontes e Pedro Henrique da Costa Teixeira
Artigo recebido em 15/08/2014
1º parecer recebido em 21/08/2014
2º parecer recebido em 18/10/2014
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
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* Mestre e Doutor em Direito pela UERJ. Desembargador Federal do TRF da 2a
Região. Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Professor Associado da UERJ e Professor Permanente
do PPGD da UNESA. Pesquisador CNPq, UNESA e
UERJ.
** Integrante do Grupo de Pesquisa "Direitos da personalidade da pessoa idosa" da
UERJ.
*** Integrante do Grupo de Pesquisa "Direitos da personalidade da pessoa idosa" da
UERJ
1
SHAKESPEARE, William. King Lear. Nova Iorque: American Book Company, 1903,
p. 76.
2
AZEVEDO, Lilibeth de. O idoso e a autonomia privada no campo da saúde. 2012. 167
f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro. 2012, p. 26.
3
BARROSO, Luis Roberto. “Aqui, lá e em todo lugar”: A dignidade humana no direito
contemporâneo e no discurso transnacional. Revista dos Tribunais, vol. 919. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012, p. 160.
4
Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: (...) II - da
pessoa maior de 70 (setenta) anos;
5
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Renovar: Rio de Janeiro, 2008, p. 4.
6
GOMES, Orlando. A Agonia do Código Civil. In: Revista de Direito Comparado
Luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto de Direito Comparado Luso-brasileiro, n. 10, 1986, p. 5.
7
TEPEDINO, op. cit., p. 12.
8
MORAES, Maria Celina Bodin de. Namedida da pessoa humana: estudos de direito
civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 8.
9
PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, pp. 571-572.
10
Ibidem, pp. 589-590. Veja-se também TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil.
Renovar: Rio de Janeiro, 2008, pp. 19-20.
11
MORAES, op. cit., pp. 9-10.
12
MARQUES, Cláudia Lima. Solidariedade na doença e na morte: sobre a necessidade
de ações afirmativas em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. 2ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 186.
13
BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse do idoso. In: PEREIRA,
Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (coords.). O Cuidado como Valor Jurídico. Rio de Janeiro:
Forense, 2008, p. 63.
14
Ibidem, p. 64.
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63
15
Apesar de a idade ser, com efeito, o melhor critério para se definir quem é o idoso,
conforme já expusemos acima, vale ressaltar que, a nosso ver, a idade fixada – qual seja, 60 anos – não é a
mais adequada, uma vez que há muitas pessoas com 60 anos ou mais que ainda mantêm o mesmo ritmo de
vida que uma pessoa de 40, 50 anos. Nesse sentido: Ibidem.
16
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 217.
17
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil: Parte Geral. São Paulo: Atlas,
2006, p. 29.
18
PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, p. 584.
19
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil: Parte Geral. São Paulo:
Atlas, 2006, p. 32.
20
MORAES, Maria Celina Bodin de. O Princípio da Dignidade Humana. In: MORAES,
Maria Celina Bodin de (coord.). Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 51.
21
Ibidem, idem.
22
Artigo XXII – Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança
social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e
recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao
livre desenvolvimento de sua personalidade (grifo nosso).
23
MARTINS, Thiago Penido; SAMPAIO JR, Rodolpho Barreto. O direito fundamental
ao livre desenvolvimento da personalidade: contributo do direito comparado para o ordenamento jurídico
brasileiro. In: Conpedi. (org.). Anais do XX Congresso Nacional do Conpedi. Florianópolis: Editora Boiteux,
2011, v. 1, p. 8091-8111.
24
LUDWIG, Marcos de Campos. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade
na Alemanha e possibilidades de sua aplicação no direito privado brasileiro. In: MARTINS-COSTA, Judith
(org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: RT, 2002, p. 292.
25
SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Sociais como Direitos Fundamentais:
contributo para um balanço aos vinteanos da Constituição Federal de 1988. In: BINENBOJM, Gustavo;
SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de (coords.). Vinte Anos da Constituição Federal de
1988.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 479-510.
26
“O Estado e o Direito assumem novas funções promocionais e se consolida o
entendimento de que os direitos fundamentais não devem limitar o seu raio de ação às relações políticas,
entre governantes e governados, incidindo também em outros campos, como o mercado, as relações de
trabalho e a família”. SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006, p. 323.
27
BARROSO, Luis Roberto. “Aqui, lá e em todo lugar”: A dignidade humana no
direito contemporâneo e no discurso transnacional. Revista dos Tribunais, vol. 919. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012, p. 163.
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
64
28
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral
dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009,
pp. 101 e 102.
29
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A Nova Filiação: o biodireito e as relações
parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida
heteróloga. Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 128.
30
AZEVEDO, Lilibeth de. O idoso e a autonomia privada no campo da saúde. 2012. 167
f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro. 2012, p. 26 e pp. 99-100.
31
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Pessoa Idosa no Direito de Família. In:
CORDEIRO, Carlos José; GOMES, Josiane Araújo (org.). Temas Contemporâneos de Direito das Famílias.
1ª ed. São Paulo: Pillares, 2013, pp. 256-257.
32
BARBOZA, Heloisa Helena. O Princípio do Melhor Interesse do Idoso. In: Tânia da
Silva Pereira; Guilherme de Oliveira. (org.). O Cuidado como Valor Jurídico. 1ª ed.Rio de Janeiro:
Companhia Editora Forense, 2007, p. 60.
33
Nesse sentido, ainda que não explicite os artigos, o Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul utilizou o art. 8º do Estatuto do Idoso como parâmetro interpretativo para a destinação de idosa que
viva em más condições para abrigo. Transcreve-se trecho da ementa de TJRS, Ap. 70054659008, Relator
Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 29/08/2013: “Verificada a negligência dos anteriores cuidadores da
interdita, que residia em moradia desorganizada e em precárias condições de higiene, impõe-se a manutenção
da medida de proteção de abrigo em entidade, prevista no art. 45, inc. V, do Estatuto do Idoso, como forma
de resguardar os interesses e direitos da curatelada, permitindo-lhe um envelhecimento saudável e em
condições de dignidade”. No Tribunal de Justiça de São Paulo, relativo a aplicação desse direito a planos de
saúde, veja-se TJSP, Ap. 0144709-08.2012.8.26.0100, Relator Des. Carlos Alberto Garbi, j. 31/10/2013:
“Direito ao envelhecimento (art. 8º). Direito que tem sucedâneo no princípio da dignidade da pessoa humana
e no principio do solidarismo”.
34
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Pessoa Idosa no Direito de Família. In:
CORDEIRO, Carlos José; GOMES, Josiane Araújo (org.). Temas Contemporâneos de Direito das Famílias.
1ª ed. São Paulo: Pillares, 2013, p. 259. Veja-se também STEFANO, Isa Gabriela de Almeida;
RODRIGUES, Oswaldo Peregrina. O idoso e a dignidade da pessoa humana. In: PEREIRA, Tânia da Silva;
OLIVEIRA, Guilherme de (coords.). O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 244.
35
A jurisprudência é dividida a respeito do tema. O TJSP se manifestou recentemente
pela inconstitucionalidade ou flexibilidade do art. 1.641, II, CC/2002, quando respeitada a legítima: TJSP,
Ap. nº 0399286-78.2009.8.26.0577, Relator Des. Fábio Quadros, j.19/09/2013; e TJSP, Ap. nº 001922217.2010.8.26.0482, Relator Des. Paulo Alcides, j. 13/03/2012. O mesmo tribunal, ainda em 2013, apresenta
acórdão manifestamente a favor da regra insculpida no referido artigo, o que demonstra a atualidade e
controvérsia sobre o tema, em TJSP, AgI. nº 0149935-66.2013.8.26.0000, Relator Des. João Batista Vilhena,
j. 06/11/2013.
36
STJ, REsp. n. 1090722 / SP, Relator Min. Massami Uyeda, j. 02/03/2010.
Ementa:“RECURSO ESPECIAL - UNIÃO ESTÁVEL - APLICAÇÃO DO REGIME DA SEPARAÇÃO
OBRIGATÓRIA DE BENS, EM RAZÃO DA SENILIDADE DE UM DOS CONSORTES, CONSTANTE
DO ARTIGO 1641, II, DO CÓDIGO CIVIL, À UNIÃO ESTÁVEL - NECESSIDADE - COMPANHEIRO
SUPÉRSTITE - PARTICIPAÇÃO NA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO FALECIDO QUANTO AOS
BENS ADQUIRIDOS NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL - OBSERVÂNCIA - INTELIGÊNCIA
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
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DO ARTIGO 1790, CC - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. I - O artigo 1725 do Código Civil
preconiza que, na união estável, o regime de bens vigente é o da comunhão parcial. Contudo, referido
preceito legal não encerra um comando absoluto, já que, além de conter inequívoca cláusula restritiva ("no
que couber"), permite aos companheiros contratarem, por escrito, de forma diversa;II - A não extensão do
regime da separação obrigatória de bens, em razão da senilidade do de cujus, constante do artigo 1641, II, do
Código Civil, à união estável equivaleria, em tais situações, ao desestímulo ao casamento, o que, certamente,
discrepa da finalidade arraigada no ordenamento jurídico nacional, o qual se propõe a facilitar a convolação
da união estável em casamento, e não o contrário.” O TJRS já apresenta julgados que expressamente seguem
a orientação derivada desse acórdão: TJRS, Ap. nº 70043554161, Relator Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j.
04/08/2011; e TJRS, Ap. nº 70050371772, Relator Des. AlzirFelippeShmitz, j. 25/10/2012.
37
AZEVEDO, Lilibeth de. O idoso e a autonomia privada no campo da saúde. 2012. 167
f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro. 2012, p. 104.
38
PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil: Introdução ao Direito Civil
Constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 164.
39
Ao definir o que é saúde, a Organização Mundial de Saúde (OMS) salientou que não
se trata apenas da ausência de doenças, mas principalmente de um estado de total bem-estar físico, mental e
social.
40
SARMENTO, Daniel. Legalização do Aborto e Constituição. In: Livres e Iguais:
Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 126-167.
41
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civilconstitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 112.
42
BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse do idoso. In: PEREIRA,
Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (coords.). O Cuidado como Valor Jurídico. Rio de Janeiro:
Forense, 2008, p. 70.
43
Ibidem, idem.
44
MARTINELLI, João Paulo Orsini. Paternalismo na Lei de Drogas. In: Revista
Liberdades, n. 2, setembro-dezembro de 2009, p. 14.
45
BEIER, Mônica. Algumas considerações sobre o Paternalismo Hipocrático. In:
Revista de Medicina de Minas Gerais, Belo Horizonte, vol. 20, n. 2,2010, pp. 246-247.
46
Ibidem, idem.
47
A obstinação terapêutica é tão nociva ao paciente que o Conselho Federal de
Medicina, ao elaborar o Código de Ética Médica, proibiu-a expressamente. De acordo com o parágrafo único
do artigo 41 do referido diploma, “[n]os casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos
os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas,
levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu
representante legal”.
48
GONZÁLEZ, Miguel Angel Sánchez. Testamentos Vitais e Diretivas Antecipadas.
In: RIBEIRO, Diaulas Costa (org.). A Relação Médico-Paciente: velhas barreiras, novas fronteiras. São
Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2010, p. 132.
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49
No Brasil, o consentimento livre e esclarecido se encontra positivado no artigo 6º, III,
do Código de Defesa do Consumidor; no artigo 56 do Código de Ética Médica; no artigo 10 da lei n.
9.434/97; e no item II.11 da Resolução n. 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde
(CSN).
50
GONZÁLEZ, Miguel Angel Sánchez. Testamentos Vitais e Diretivas Antecipadas. In:
RIBEIRO, Diaulas Costa (org.). A Relação Médico-Paciente: velhas barreiras, novas fronteiras. São Paulo:
Centro Universitário São Camilo, 2010, p. 143.
51
Beier (vide nota 45) nos lembra de que “Joel Feinberg define o tipo de paternalismo
segundo a capacidade das pessoas de fazerem suas escolhas: paternalismo fraco é aquele que restringe a
autonomia em favor da beneficência, em indivíduos com restrição de capacidade temporária ou definitiva
(...); e paternalismo forte aquele exercido em indivíduos plenamente capazes”. Tal como Feinberg, outros
teóricos já elaboraram suas próprias classificações para distinguir os tipos possíveis de paternalismo.
Contudo, julgamos necessário deixar claro que, apesar de serem abstratamente diferentes, todas essas
classificações apresentam um traço em comum, qual seja, o valor exacerbado que conferem à vontade do
médico e ao poder por ele exercido, em detrimento da decisão do paciente.
52
Como está expresso no artigo 9º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a
Biomedicina, “[a] vontade anteriormente manifestada no tocante a uma intervenção médica por um paciente
que, no momento da intervenção, não se encontre em condições de expressar a sua vontade, será tomada em
conta”. Nesse sentido, veja-seAZEVEDO, Álvaro Villaça. A Autonomia do Paciente e Direito de Escolha de
Tratamento Médico Sem Transfusão de Sangue. In: AZEVEDO, Alvaro Villaça; LIGIERA, Wilson Ricardo
(coords.). Direitos do Paciente. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 283.
53
Trata-se do artigo 1º da resolução CFM n. 1995, de 31 de agosto de 2012.
54
NUNES, Rui. Proposta sobre suspensão e abstenção de tratamento em doentes
terminais. In: Revista Bioética, vol. 17, n. 1, 2009, p. 34.
55
Ibidem, idem.
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
67
HÁ LIMITES PARA O PRINCÍPIO DA PLURALIDADE FAMILIAR NA
APREENSÃO DE NOVAS FORMAS DE CONJUGALIDADE E DE
PARENTESCO?
Are there limits to new family standards according to the principle of
plurality?
José Fernando Simão
RESUMO: O propósito deste estudo é investigar os tipos de família hoje admitidos
no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, percorremos a evolução do
conceito de família na história do direito brasileiro. Em maior ou menor grau, é
nossa conclusão, o Direito impõe limites mínimos à definição do que seja família.
Durante todo desenvolvimento deste conceito, um limite mínimo, opção do
legislador, foi sempre observado: a monogamia. Com o advento das recentes
revisões do conceito para abranger as famílias de pessoas do mesmo sexo, o direito
apenas cria um conceito aberto de família que ainda se baseia na família
monogâmica. No fenômeno das famílias simultâneas, por exemplo, o Direito
ampara o companheiro de boa-fé e os filhos advindos da relação, mas não pode
conferir à relação afetiva proteção jurídica. Nas uniões estáveis as mesmas
restrições se seguem. Isto porque o direito brasileiro pune, civil e penalmente, a
bigamia; atribuindo-lhe a mais alta repressão do nosso sistema legal.
PALAVRAS-CHAVE: Família no direito brasileiro; Casamento entre pessoas do
mesmo sexo;Famílias simultâneas; Bigamia; Uniões estáveis plurais.
ABSTRACT: The purpose of this study is to investigate the types of family currently
recognized in the Brazilian legal system. In order to do so, we follow the evolution
of the concept of family in the history of the Brazilian Law. In bigger or smaller
degree, it is our conclusion, the Law imposes minimum limits to the definition of
what could be called a family. During all of the development of this concept a
minimum limit, an option taken by the legislators, it was always observed: the
monogamy. Along with recent revisions of the concept in order to include families
with couples of the same sex, the Law simply creates an open concept of family
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
68
that is still founded by the monogamic family model. In the simultaneous
‘
phenomenon, for instance, the Law protects the consensual husband or wife in
ignorance and its offspring, but it can not give its protection to the relationship
itself. The same restrictions are followed in common-law marriages. This is due to
the extreme civil and penal sanctions attributed by the Brazilian Law to bigamy.
KEYWORDS: Family in the Brazilian Law; Same-sex marriage; Simultaneous
families; Bigamy; Plural common-law marriages.
SUMÁRIO: 1. O debate: limitar ou não limitar, eis a questão! – 2. Notas sobre o
casamento homoafetivo – 3. A
―
çã ‖
concubinato em união estável: autonomia privada e sua limitação – 4. Novas
velhas formas de famílias.a) Famílias simultâneas ou paralelas – delimitação
teórica. b) Família poligâmica – delimitação teórica – 5. Nota conclusiva
“Qualquer maneira de amor
vale a pena, Qualquer maneira de
amor vale amar”
Paula e Bebeto, Milton
Nascimento e Caetano Veloso
1. O debate: limitar ou não limitar, eis a questão!
Desde que Shakespeare, retratando os dilemas do jovem e atormentado
Príncipe dinamarquês, Hamlet, cunhou a célebre fase ―
toda vez que se escreve sobre as ―q
õ
ou não, eis a q
ã !‖;
‖ do direito de família na
pós-modernidade a frase retorna com novos matizes.
Com o abandono do modelo unitário de formação de famílias em que o
casamento gerava a família legítima, sendo as demais formas alijadas de qualquer
regramento ou proteção, na atualidade o que se pergunta é exatamente o oposto:
há algumas formas de constituição de família que prosseguem alijadas desta
proteção?
A pergunta desafia o jurista e o homem comum e leva o cidadão a uma
reflexão grandemente influenciada pela Resolução 175 do CNJ que, em 14 de maio
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
69
de 2013, de maneira singela e objetiva, determinou a todos os registros civis que
habilitassem os casais de mesmo sexo para o casamento civil.
Dispõe a Resolução em questão que:
―Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação,
celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em
casamento entre pessoas de mesmo sexo‖.
A regra pôs fim a um impasse que durou quase dois anos, pois em maio de
2011, na decisão da ADPF 132/RJ e da ADI 42771, o Supremo Tribunal Federal
admitiu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, com todos os efeitos da
união estável heterossexual, mas a decisão se silenciou com relação ao casamento.
Com essa orientação do STF, com a posterior resolução do CNJ e a
ocorrência de casamentos homoafetivos, a pergunta que o homem comum se faz (e
que não deveria ser feita pelos juristas) é a seguinte: se atualmente pessoas do
mesmo sexo podem se casar, o sistema adotou a total liberdade para o casamento
em proteção às minorias? Viveríamos hoje um sistema em que todo e qualquer
modelo de família passa a ser aceito em razão da inexistência de um rol taxativo de
famílias no art. 226 da Constituição Federal?
As perguntas se sucedem. Seria constitucional limitar os modelos de
família juridicamente protegidos ou qualquer limitação fere a dignidade da pessoa
humana e sua liberdade de escolhas? A essas indagações outras se somam.
O afeto é um valor jurídico e essa afirmação não admite questionamento. É
elemento que, se presente, gera parentesco independentemente dos vínculos
consanguíneos. Nesse sentido, afirma Ricardo Lucas Calderón que no Século XXI
tornou-se perceptível como a afetividade passou a figurar de forma central nos
vínculos familiares, não em substituição aos critérios biológicos ou matrimoniais
(que persistem com inegável importância), mas ao lado deles se apresentou como
relevante uma ligação afetiva.2
Em se admitindo que o afeto é um valor jurídico, e isso hoje não se discute,
a questão que se coloca é se este valor necessariamente é elemento criador de
parentalidade ou de conjugalidade e, em caso positivo, se o direito posto poderá
limitar os efeitos jurídicos de relações permeadas pelo afeto. Limitar os efeitos do
afeto fere a dignidade da pessoa humana?
A resposta ―
do caso
‖ não é jurídica. Se é conveniente
para muitos temas, em Direito Civil, representa o fracasso do jurista na construção
de categorias jurídicas que se propõem sérias. É a fuga da construção de um direito
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
70
como ciência para se voltar ao empirismo romano, superado há mais de um mil e
quinhentos anos.
Com base nessas indagações, nessa verdadeira tirania dos princípios que
reduz e empobrece o debate jurídico a afirmações pouco densas (v.g. fere a
dignidade da pessoa humana qualquer limitação) que pretendemos construir a
reflexão e responder a pergunta: há limites para o princípio da pluralidade familiar
na apreensão de novas formas de conjugalidade e de parentesco?
2. Notas sobre o casamento homoafetivo
Algumas notas sobre o casamento homoafetivo se fazem necessárias,
exatamente em razão do fato de ser este argumento utilizado por parte da doutrina
para pregar que o direito não mais restringe o conceito de família como fazia no
passado e que, portanto, toda e qualquer forma de família conta com a proteção
jurídica.3
A decisão do STF de 2011 (ADPF 132/RJ e da ADI 4277) foi ponto fulcral
no debate relativo aos direitos das minorias e respeito às liberdades de escolha.
Tendo aquele Tribunal, a mais alta Corte, admitido que as uniões homoafetivas e
heterossexuais produzem iguais efeitos, a admissão do casamento entre pessoas do
mesmo sexo não passava de questão de tempo.
Assim, naquele mesmo ano de 2011, o STJ decidiu que era possível a
habilitação de duas mulheres para o casamento. Esta decisão, um simples
precedente e sem efeito vinculante, tomou por base os seguintes fundamentos
abaixo transcritos4:
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF n. 132/RJ
e da ADI n. 4.277/DF, conferiu ao art. 1.723 do Código Civil de 2002
interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado
que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura
entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta
como sinônimo perfeito de família. Assim, é bem de ver que, em 1988,
não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de
casamento, sempre considerado como via única para a constituição de
família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados
princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a
concepção constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria
com os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque
plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o
destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de
um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua
inalienável dignidade.
Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002,
não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e
não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
71
homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da
igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os
do pluralismo e livre planejamento familiar.
Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus
representantes eleitos, não poderia mesmo "democraticamente" decretar
a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre
alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o
Legislativo - que exerce um papel contramajoritário e protetivo de
especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com
as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre
em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das
minorias, sejam das maiorias. Enquanto o Congresso Nacional, no caso
brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo
constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode
o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita
de um Estado que somente é "democrático" formalmente, sem que tal
predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização
dos direitos civis.
Note-se que os fundamentos para admissão do casamento de pessoa do
mesmo sexo podem ser divididos em três.
O primeiro é que a Constituição não limita as formas de constituição de
família como fazia o antigo Código Civil de 1916, logo, o artigo 226 apenas indica,
exemplifica as formas de família protegidas pelas Constituição. Abole-se o sistema
de exclusividade do casamento como forma de constituição de família para a
adoção de um modelo plural.
O segundo argumento é a ausência de vedação expressa pelo Código Civil
da possibilidade de casamento de pessoas do mesmo sexo. Essa noção implica que
o intérprete se valha do antigo adágio pelo qual ―
intérprete
a lei não proíbe, não é dado ao
‖. Se o preceito constitucional que, ao tratar da união estável,
utiliza o vocábulo ―
o homem e a
h ‖ foi interpretado como sendo
exemplificativo, as regras do Código Civil que utilizam essa mesma locução devem
seguir igual interpretação.
Nesse sentido, temos o artigo 1.5175. Já os artigos que tratam da
h
çã
―
‖6
ã
―h
como os que se referem à celebração utilizam a expressã ―
h ‖
‖78.
A fórmula do artigo 1535, por si só, não pode ser usada como impedimento
para o casamento de pessoas do mesmo sexo9. A literalidade da fórmula, se
confrontada com as demais disposições do Código Civil, que não proíbem o
casamento homoafetivo, em interpretação sistemática, fica afastada.
O terceiro fundamento é a proteção das minorias. É função do Poder
Judiciário proteger as minorias não obstante a omissão do Poder Legislativo. A
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
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ausência de lei que proteja a família homoafetiva não significa que o Poder
Judiciário possa ignorá-la. É forte e precisa a frase do Ministro Luiz Felipe
Salomão: ―não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de
aceitação tácita de um Estado que somente é "democrático"
‖. Se a
liberdade garantida pela própria Constituição Federal quanto à orientação sexual
não é apenas norma programática, vazia de alcance, a admissão do casamento
homoafetivo é de rigor.
Os três fundamentos afastam qualquer dúvida quanto à desnecessidade de
mudança do Código Civil ou criação de um Estatuto da Diversidade Sexual para se
admitir o casamento homoafetivo que é uma realidade inconteste no Brasil10.
Pode-se mencionar que o casamento sofreu 4 grandes revoluções na
história ocidental.
Com a proclamação da República em 1889, a separação entre Estado e
Igreja se aprofunda de maneira indelével já que em um sistema monárquico há
sempre uma aproximação entre estas entidades. Assim, a primeira revolução
quanto ao instituto do casamento foi a ruptura com a Igreja Católica ocorrida por
meio do Decreto 181 de 24 de maio de 1890 em que o casamento passa a ser
monopólio do Estado, ou seja, laico perdendo o casamento religioso o status
anterior de forma de constituição de família legítima, gerando simples união de
fato, sem proteção jurídica.11
A segunda revolução foi a admissão do divórcio como forma de extinção do
vínculo matrimonial. Historicamente, no sistema das Ordenações Filipinas e do
próprio Decreto 181 de 1890, o casamento válido só se dissolvia pela morte de um
dos cônjuges.12 É longa a trajetória que acaba por admitir o divórcio no Brasil o
que só ocorre em 1977.13
A terceira revolução foi a igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges
que só adveio com a Constituição de 1988 que em seu artigo 226, parágrafo 5º,
con
: ―O
ã
igualmente pelo homem e pela mulher.‖
A quarta e última foi a possibilidade de casamento de pessoas do mesmo
sexo. Trata-se de efetiva, profunda e sem precedentes na história brasileira
revolução no conceito de casamento, pois, desde os tempos romanos, Modestino14
já definia casamento como maris et faeminaeconjunctio, consortium omnis vitae,
divini et humani juris communicatio, um consentimento do homem e da mulher,
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
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uma sociedade por toda vida, e uma comunicação de todos os direitos humanos e
divinos15.
Assim como no Século XIX foi grande a estranheza da população que
sempre considerou o casamento religioso como forma única de constituição de
família e viu esta tradição milenar abandonada por força do Decreto 18116, no
Século XXI o fim da dualidade de sexos como elemento essencial ao casamento
causa perplexidade.
3. Algumas notas sobre a “transformação” do concubinato em união
estável: autonomia privada e sua limitação
É longa a evolução para se admitir a união estável como forma de
constituição de família. Isso porque a união estável, no início do século, sequer era
assim denominada, pois a família informal, à época dita ilegítima, era chamada de
concubinária.
É no concubinato que encontramos a origem das famílias informais. A
etimologia do termo concubinato merece análise. Explica o Álvaro Villaça Azevedo
que concubinato deriva do vocábulo latino concubinatus, us, mancebia,
amasiamento. A origem está, ainda, em concumbo, is (derivado do grego) que
significa dormir com outra pessoa, copular, ter relação carnal, estar na cama. 17
No Livro Quarto das Ordenações, Título LXVI, proíbe-se a doação ou
h
ã. O
q
―
h
casado der a sua barregã alguma cousa móvel ou de raiz, ou a qualquer outra
mulher, com quem tenha carnal afeição, sua mulher poderá revogar e haver para si
q
‖.18
Em compilação interessante e que retrata a diversidade linguística
brasileira, Euclides de Oliveira diz que concubina também é chamada de amante,
amásia, amiga, arranjo, barregã19, camarada, caseira, china, comborça, espingarda,
fêmea, gato, manceba, moça, murixaba, puxavante, rapariga e sexta-feira. Nas
obras espetaculares de Jorge Amado, percebe-se o termo teúda e manteúda cujas
origens remontam as Ordenações Filipinas. Benedito Silvério dos Reis20 anota,
ainda, o uso popular do termo amancebada, cuja origem etimológica é a palavra
latina mancipium, que significa dizer escravo (criado de servir).
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
74
Nota-se, pela origem e pelas acepções, que o termo para designar a mulher
que não é casada ou a união de pessoas não casadas é sempre algo permeado de
conotação sexual, com um viés de forte preconceito.
Nesta esteira, identificava o Código Civil de 1916 a concubina como a
amante do homem casado e os artigos que a mencionavam o faziam para vedar
doações ou herança.21
Desta forma, não se reconhecia a possibilidade de uma pessoa solteira
viver com outra, também solteira, e que tal união contasse com proteção jurídica.
Ademais, conceder direito às famílias ditas ilegítimas seria desprestigiar a
instituição do casamento.
A noção de moral e de direito acabavam por se misturar. Assim, negavamse direitos aos concubinos sob o fundamento de se tratar de um ato imoral, que
não pode ser protegido e nem dele decorrer vantagens22.
Por meio de um longo processo histórico de aceitação do diferente, a
categoria jurídica da união estável foi sendo delineada. Passo importante foi o
conceito de concubinato puro e a contribuição de Edgard de Moura Bittencourt.23
A união estável, por fim, conta com a proteção constitucional (art. 226,
parágrafo 3º) e é então definida como união pública, contínua e duradoura com o
objetivo de constituir família (art. 3º da Lei 9278/96 e 1.723 do Código Civil).
O texto do Código Civil é claro ao afastar da noção de união estável a união
entre pessoas impedidas de se casar. Isso se dá por meio do disposto no parágrafo
primeiro do art. 1.723 (§ 1o A união estável não se constituirá se ocorrerem os
impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a
pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente) e no art. 1.727 (As
relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem
concubinato).
As relações concubinárias (antigo concubinato impuro) são afastadas de
qualquer proteção em termos de direito de família. Seria uma afronta a dignidade
da pessoa humana afastar da proteção do direito as pessoas impedidas de se casar
e que vivem como se casadas fossem?
Uma premissa serve como partida à reflexão.
O sistema é monogâmico por opção do legislador. Não se trata de admitir
ou proibir que uma pessoa possa ter mais de uma família simultaneamente. Tratase de restringir a autonomia privada negando efeitos jurídicos às famílias paralelas
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
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ou ploligâmicas. Explico. É direito da pessoa compor seu núcleo familiar como lhe
aprouver.24
Cabe ao Direito, então, optar por regulamentar ou não os efeitos jurídicos
que tais famílias receberão. Não, a autonomia privada não pode tudo em um
sistema como o concebido no Brasil em que é alto o grau de intervenção do Estado
sobre a liberdade individual. Não há nenhuma ofensa à dignidade humana a
imposição de um mínimo restritivo.
Assim como o Estado intervém, sem grande assombro ou resistência da
doutrina (ou de parte dela), no conteúdo e efeito dos contratos (a função social é
sistematicamente utilizada de maneira atécnica para legitimar ou fazer
desaparecer a autonomia privada), o Estado intervém nas regras aplicáveis às
diversas formas de composição de família.
Não se trata mais de tipificar a família, como fazia o revogado Código Civil,
impondo um modelo unitário, qual seja, a família é legítima se decorrer do
casamento. O sistema é aberto e as formas de família são diversas em sua
formação. Para algumas o direito confere efeitos jurídicos, para outras não.
Então o que mudou entre a forma antiga e a atual de se reconhecer direitos
à certa modalidade de família? A mudança é a seguinte. Antes, apenas o casamento
formava a família que recebia proteção do Estado. Hoje, todas as formas de
família, desde que não expressamente excluídas, recebem a proteção do Estado.
Antes havia um modelo unitário, hoje o modelo é plural, aberto, respeitados
mínimos impostos pelo Direito, mínimos estes que contém os valores inspiradores
e subjacentes ao próprio Direito de Família.
Efetivamente é possível responder o que se pergunta no início dessas
reflexões: a lei estabelece o mínimo para excluir os efeitos jurídicos decorrentes do
direito de família a certas famílias.
É por isso que a família decorrente do incesto não conta com proteção
legal.
O conceito de dignidade humana não implica a chancela do Direito a todas
as opções do ser humano, sejam elas na seara obrigacional, na seara do ilícito ou
na seara familiar.
Fixada esta premissa, podemos aplicar a tese a duas situações distintas.
4. Novas velhas formas de famílias
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
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a) Famílias simultâneas ou paralelas – delimitação teórica
Famílias simultâneas é o termo cunhado pela doutrina para indicar uma
situação em que uma pessoa, não necessariamente o homem, convive com outra
pessoa, não necessariamente uma mulher, em dois núcleos distintos e
simultâneos.
É o caso clássico da literatura em que um homem que muito viaja tem dois
núcleos familiares distintos em localidades distintas.
Para a delimitação teórica é importante compreender que a pessoa tem
dois núcleos distintos em que todos os membros componentes destes núcleos não
residem sob o mesmo o teto. Seguem exemplos que utilizam o homem como centro
da vida familiar simultânea apenas pelo fato de serem estes os casos trazidos a
julgamento e que serão discutidos a seguir.
a) Homem que é casado com determinada mulher em
Salvador, migra para o Rio de Janeiro e se casa com outra mulher,
pois em sua certidão de nascimento não fora anotado o casamento
anterior;
b) Homem que é casado com uma mulher em São Paulo e,
em Porto Alegre, convive com outra mulher de maneira pública,
contínua e duradoura;
c) Homem que, na mesma cidade, tem duas casas e em
uma mora com sua esposa e filhos, mas, também, passa parte do
dia ou da noite na casa de outra mulher com quem tem filhos;
d) Homem casado que mora com sua mulher, mas tem
relação afetiva e sexual com outro homem com quem convive de
maneira pública, contínua e duradoura.
Não tenho dúvidas em afirmar que em todos os exemplos o homem tem
duas famílias. Também não tenho dúvidas em afirmar que a proteção
constitucional dos filhos implica igualdade de todos, independentemente de sua
origem e todos os filhos terão a ampla e integral proteção que o Direito lhes
confere.
Contudo, com relação às pessoas maiores e capazes que mantém uma
relação de afeto, com comunhão de vida, seja essa relação hétero ou homoafetiva, o
Direito de Família, em tese, não tem qualquer aplicação, pois se trata de
concubinato expressamente excluído das formas de criação de família.
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
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A relação entre concubinos será regida pelo Direito das Obrigações, ou
seja, mediante prova do esforço comum o patrimônio adquirido por um dos
concubinos poderá ser partilhado25.
Contudo, o direito tempera a regra do art. 1727 com o princípio da boafé26. Essa solução não é nova para o Direito de Família. É historicamente adotada
para a hipótese de casamento inválido que produz efeitos ao cônjuge de boa-fé. É a
putatividade que o Direito de Família adota como forma de não punir aquele que
desconhecia o vício ou a mácula que inquinava o próprio casamento.
A ignorância ou desconhecimento do fato (portanto a situação é
efetivamente de boa-fé subjetiva) garante a concessão dos efeitos do casamento
válido. Quem agiu de má-fé não tem a mesma sorte27: o casamento não produz
efeitos para ele.
A boa-fé é princípio caro ao Direito e em especial ao Direito Civil. Em
todos os exemplos que indicamos acima, o homem sabia ter dois núcleos
familiares e as outras pessoas com quem convivia desconheciam tal fato. A boa-fé
gera efeitos jurídicos claros: possibilidade de manutenção do sobrenome do outro
cônjuge, direito a alimentos nos termos do binômio possibilidade/necessidade e se
o regime de bens permitir, direito de meação sobre os bens do outro cônjuge.
Contudo, se a pessoa tiver conhecimento de que o homem com quem
convive mantém outra relação simultânea, ou seja, é casada com outro homem ou
outra mulher e, tendo conhecimento deste fato, com ele convive, em razão da máfé nenhum direito terá. É uma relação familiar concubinária excluída pela lei dos
efeitos do Direito de Família.
Foi exatamente o que decidiu o STF na famosa questão ocorrida na Bahia
em que determinado sujeito que tinha duas uniões concomitantes em que ambas a
‗
h
‘
q
ã
.O
julgamento é que o falecido nunca se separou de fato de esposa. Assim era casado
de fato e de direito e com a esposa tinha 11 filhos; mas mantinha relação
duradoura de 37 anos com outra mulher da qual nasceram 9 filhos (RE 397.7628/BA, j. 03/06/2008).
O Relator Ministro Marco Aurélio Mello assim fundamenta seu voto que
prevaleceu no caso em questão:
―É certo que o atual Código Civil, versa, ao contrário do anterior, de 1916,
sobre a união estável, realidade a consubstanciar o núcleo familiar.
Entretanto, na previsão, está excepcionada a proteção do Estado quando
existente impedimento para o casamento relativamente aos integrantes
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da união, sendo que se um deles é casado, o estado civil deixa de ser óbice
quando verificada a separação de fato. A regra é fruto do texto
constitucional e, portanto, não se pode olvidar que, ao falecer, o varão
encontrava-se na chefia da família oficial, vivendo com a esposa. O que se
percebe é que houve envolvimento forte (...) projetado no tempo – 37
anos – dele surgindo prole numerosa - 9 filhos – mas que não surte
efeitos jurídicos ante a ilegitimidade, ante o fato de o companheiro ter
mantido casamento, com quem contraíra núpcias e tivera 11 filhos.
Abandone-se a tentação de implementar o que poderia ser tido como uma
justiça salomônica, porquanto a segurança jurídica pressupõe respeito às
balizas legais, à obediência irrestrita às balizas constitucionais. No caso,
vislumbrou-se união estável, quando na verdade, verificado simples
concubinato, conforme pedagogicamente previsto no art. 1.727 do CC‖.
É
çã
― í
‖
q
a decisão de legislador de não dar os efeitos do direito de família a certas relações
pessoais afetivas.
A monogamia é um valor jurídico, uma baliza mínima na construção da
família que recebe os efeitos do Direito de Família.
Então vem a pergunta: mas se o direito brasileiro reconhece a
possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, porque não conceder os
efeitos e proteção do Direito de Família às famílias simultâneas?
A questão será abordada nas conclusões do presente artigo.
b) Família poligâmica – delimitação teórica
O
Opõem-
―
‖
―
polús, polle e significa numeroso.
‖q
ú
.P
é
ã
conjugal de uma pessoa com várias outras. É gênero que contém duas espécies:
poliginia quando um homem se casa com mais de uma mulher ou poliandria
quando uma mulher se casa com mais de um homem28.
A definição dos termos não acompanha a realidade jurídica. Sendo o
casamento homoafetivo presente como realidade social, podemos imaginar um
homem que se casa com vários homens e uma mulher que se casa com várias
mulheres, bem como um homem que se casa com um homem e uma mulher ou
uma mulher que se casa com um homem e uma mulher.
A caracterização da poligamia, como forma de delimitação e diferenciação
da família paralela ou simultânea, é que todos vivem sob o mesmo teto. É o caso do
homem que professa a fé islâmica e, segundo permissão do Alcorão, poderá ter até
4 mulheres, desde que trate todas com igualdade.29
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
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A família poligâmica recebe a proteção jurídica do Direito de Família? A
resposta também é negativa. A monogamia é um valor socialmente consolidado,
historicamente construído e legalmente disciplinado.
Em termos jurídicos, temos duas regras que aniquilam qualquer
possibilidade de se admitir a bigamia no sistema jurídico brasileiro, uma de ordem
civil e outra criminal.
A primeira está no Código Civil que prevê a mais dura sanção reconhecida
pelo ordenamento em ocorrendo o casamento bígamo: a nulidade absoluta (arts.
1521, VI e 1548 do CC).
Se é verdade que o Direito Penal não mais reconhece no sistema brasileiro
a pena de morte ou açoite, e se não há mais tribunais do Santo Ofício, nem por isso
o crime de bigamia deixa de ser tipificado. Assim, o Código Penal brasileiro prevê
em seu artigo 235 que é crime contrair novo casamento, sendo casado e a pena é
de reclusão de 2 a 6 anos.
N
P
L z
―
-se com essa previsão tutelar a
instituição do casamento e a organização familiar que dele decorre, estrutura
E
q
ã
ú
‖30.
A pergunta que se segue é: se a pessoa não pode se casar com duas pessoas
simultaneamente em razão da vedação à poligamia, há algum impedimento para
que três pessoas convivam simultaneamente em união estável?
Poder-se‖
q
ã
―união
q
ã h
mas simples união estável Em termos jurídicos, a interpretação que esse
argumento dá ao Código Penal e Civil seria a literal. O que se deve fazer é dar uma
interpretação teleológica.
O sistema não concebe, com base em um valor secular, a possibilidade de
dupla união como forma de constituição de família. Se sempre existiram famílias
poligâmicas e isso não se nega, nunca o sistema jurídico brasileiro as admitiu.
Muito menos sob a forma de união estável, que como forma de constituição de
família, conta com a proteção da Constituição (art. 226, par. 3º).
A monogamia é um limite mínimo trazido pelo ordenamento para afastar
do Direito de Família, certas relações afetivas. Poder-se-ia argumentar que a
monogamia não está entre os elementos necessários à configuração da união
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estável. Logo, a união estável plural não encontraria óbice legal, não estaria
abarcada pelo limite do mínimo.
Neste ponto, merece nota o fundamento dado pelo STJ quanto à questão:
Com efeito, uma sociedade que apresenta como elementoestrutural a
monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade – que integra oconceito de
lealdade e respeito mútuo – para o fim de inserir no âmbito do Direitode Família
relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o
núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização deseus
integrantes, vale dizer, a busca da felicidade.31
A lealdade como dever decorrente da união estável (art. 1724 do CC) e a
fidelidade como dever do casamento (art. 1566 do CC) são óbices para o
reconhecimento de uniões poligâmicas para fins do direito de família. Não se trata,
aqui, de confundir os planos da existência e da eficácia. Se é verdade que os
deveres estão no plano da eficácia e que a deslealdade não faz com que o
casamento ou a união estável deixem de existir, há um impeditivo ético do qual o
direito de socorre para fazer da monogamia um valor inconteste.
O argumento se repete. A lei indica um mínimo que obsta o
reconhecimento dos efeitos do direito de família às situações de poligamia ou
uniões simultâneas de três ou mais pessoas.
Novamente surge a questão. Se o direito brasileiro reconhece a
possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, porque não conceder os
efeitos e proteção do Direito de Família às famílias poligâmicas?
5. Nota conclusiva
A dignidade humana como princípio se transformou em lugar comum,
virou nota de rodapé em toda e qualquer decisão judicial que se pretenda atual ou
cujos julgadores temam a possibilidade de reforma.
O problema da vulgarização de um princípio tão caro ao Direito é que sua
invocação em questões banais, corriqueiras, que nenhuma relação guardam com a
pessoa humana, ou com sua dignidade, é que se transforma em vazio axiológico,
perdendo todo e qualquer significado.32
Aplicar o princípio para se admitir uma absoluta possibilidade de criação
de modelos familiares e que o Direito de Família deve, necessariamente, protegelas é algo tão anacrônico quanto se sustentar, hoje, que o Estado, por meio dos
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
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princípios sociais, não pode intervir no conteúdo do contrato. Essa opção de parte
minoritária da doutrina revela um saudosismo sepultado com o Século XIX em
que a vontade era expoente máximo e intocável da criação de relações jurídicas.
Assim, apesar de o direito brasileiro admitir as famílias homoafetivas, quer
tenham origem no casamento, quer na união estável, como modelos juridicamente
protegidos e merecedores da mais ampla proteção e tutela, as famílias poligâmicas
e simultâneas não podem contar com qualquer proteção (ressalvada a boa-fé dos
participantes, bem como a integral proteção dos filhos, por óbvio).
O primeiro argumento aplicado às famílias homoafetivas é que a
Constituição não limita as formas de constituição de família como fazia o antigo
Código Civil de 1916, logo, o artigo 226 apenas indica, exemplifica as formas de
família protegidas pelas Constituição. E isso significa que toda e qualquer família
seja merecedora da proteção do direito de família? A resposta é negativa. Se a lei
limitar a noção de família, a Constituição Federal não proíbe que o faça. Não há
uma regra geral pela qual qualquer forma de família decorrente da autonomia
privada deva ser necessariamente protegida pelo Direito.
O segundo argumento, a ausência de vedação expressa pelo Código Civil
quanto à possibilidade de casamento de pessoas do mesmo sexo, não ocorre com
relação às famílias poligâmicas e simultâneas.
A vedação se dá na seara civil e penal. A sanção de nulidade aplicada ao
casamento poligâmico, o crime tipificado, o dever de lealdade e fidelidade e a
exclusão do concubinato como modelo familiar bastam para afirmar que não há
proteção aos maiores e capazes que optam por tais formas de família, à luz do
Direito de Família.
O terceiro fundamento aplicado às famílias homoafetivas é a proteção das
minorias é função do Poder Judiciário proteger as minorias não obstante a
omissão do Poder Legislativo, ou seja, a ausência de lei que proteja a família
homoafetiva não significa que o Poder Judiciário possa ignorá-la. Não é isso que
ocorre com relação aos núcleos poligâmicos e simultâneos. Se são igualmente
minoritários, não há qualquer omissão do Poder Legislativo quanto a tais núcleos.
Há uma vedação explícita à poligamia e a monogamia é eleita pelo legislador como
um valor.
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
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A admissão às famílias simultâneas e poligâmicas é, naturalmente, a
admissão, também, às famílias incestuosas, já que a vedação a todas elas se
encontra no mesmo dispositivo legal: art. 1.521 do CC.
A conclusão que chego é a seguinte: a manutenção de uma baliza mínima,
longe de ser inconstitucional ou ferir a dignidade humana, é salutar ao sistema. Se
h
z
.O― ã ‖q
z
parte do processo de amadurecimento da pessoa humana, que muitas vezes tem
dificuldade de aceitá-lo, também permeia o ordenamento e faz parte do
amadurecimento social.
Mudando a lei, alterando-se as balizas, o modelo familiar juridicamente
protegido pode ser ampliado, estendido33.
Em conclusão, os afetos são ilimitados, mas aqueles que contam com a
proteção jurídica o são e sempre serão. Se toda a forma de amor vale a pena (e
vale), se qualquer forma de amor vale amar, com elas o direito pode não se
preocupar, respeitando a autonomia privada, mas deixando de fora do alcance das
normas do direito de família relações que ultrapassem os limites mínimos
impostos ou determinados por lei.
―A
h
um aquário. Fico pensando se não seria mais fácil ensinar desde logo às crianças
que a vida é absurda! Isso privaria a infância de uns bons momentos, mas faria o
h
‖. A
O
ç
M
B
y.
Há limites para o princípio da pluralidade familiar
na apreensão de novas formas de conjugalidade
e de parentesco? - José Fernando Simão
Artigo recebido em 08/09/2014
1º parecer recebido em 12/09/2014
2º parecer recebido em 18/11/2014
1
Decisão esta vinculante e com efeito erga omnes.
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2
CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da Afetividade no Direito de Família. Rio de
Janeiro: Renovar, 2013, p. 205.
3
Exemplo do raciocínio simplista e tendencioso vem de entrevista da Tabeliã da Cidade
de Tupã que lavrou uma escritura pública de união estável poligâmica (duas mulheres e um homem). Ponto
alto da desinformação vem consubstanciada nas frases da própria Tabeliã “responsável” pela Escritura
quando indagada em entrevista: “Caso um recurso de reconhecimento de uma família poliafetiva chegasse ao
Supremo, qual seria uma provável decisão?Na minha experiência, tenho visto que, em casos parecidos, em
primeira instância, a solicitação costuma ser negada, e, com recursos subsequentes, chega-se ao Supremo
Tribunal Federal, que julgará a ação com um olhar constitucional. Foi o que aconteceu com as famílias
homoafetivas.
Mas
é
claro
que
a
corte
pode
aprovar
ou
não
a
ação
(http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias)”.
4
REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA,
julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012.
5
Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se
autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.
6
“Art. 1.525. O requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos
os nubentes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador...”
7
“Art. 1.538. A celebração do casamento será imediatamente suspensa se algum dos
contraentes”
8
“Art. 1.533. Celebrar-se-á o casamento, no dia, hora e lugar previamente designados
pela autoridade que houver de presidir o ato, mediante petição dos contraentes, que se mostrem habilitados
com a certidão do art. 1.531”
9
"De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos
receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados."
10
Em que pesem os esforços de alguns pouco versados em História para afirmar que na
Grécia e na Roma Antiga havia proteção aos homossexuais, pois eram sociedades tolerantes, fato é que são
afirmações vazias, pois carecem de fundamento sólido, mormente admitindo-se a variação temporal (o
Império romano do ocidente durou quase 1.300 anos) e as peculiaridades locais (cada cidade-estado grega
tinha regras próprias de convívio social). Se é que antes do Cristianismo a tolerância em razão da orientação
sexual era maior, na sociedade romana a homossexualidade podia não ser motivo de perseguição, mas era
abertamente motivo de chacota e críticas veementes. Suetônio narra que os modos efeminados de Julio Cesar
(fim da Roma republicana) eram motivos de gracejo no Senado Romano e afirma, ainda que sua relação com
o Rei Nicomedes da Bitínia era causa de mancha grave e duradoura que o expôs a ultrajes e reprovações.
Dolabela, no Senado, o chamara de „rival da rainha, a prancha inferior da liteira real‟ e Cúrio o denominava
“a prostituta da Bitínia‟. Cúrio, o pai, cunhou a frase que entraria para História: “o marido de todas as
mulheres e a mulher de todos os maridos” (SUETÔNIO. A Vida dos Doze Césares: A vida pública e privada
dos maiores imperadores de Roma. 2. ed. trad. por Sady-Garibaldi. São Paulo: Ediouro, 2002, fls. 34/60).
Outro motivo de escândalo, agora na Roma imperial, foi o casamento do Imperador Nero com seu escravo
Sporus. Suetônio afirma que Nero esforçou-se mesmo para transformar em mulher o jovem escravo,
arrancou-lhe os testículos paramentou-o com os adornos de Imperatriz, cobrindo-o a cada passo de beijos.
(op. cit., p. 365).
11
Dois artigos do Decreto valem menção: “Art. 108. Esta lei começará a ter execução
desde o dia 24 de maio de 1890, e desta data por deante só serão considerados válidos os casamentos
celebrados no Brazil, si o forem de accordo com as suas disposições. Paragraphounico. Fica, em todo caso,
salvo aos contrahentes observar, antes ou depois do casamento civil, as formalidades e ceremoniasprescriptas
para celebração do matrimonio pela religião deles” e “Art. 109. Da mesma data por deante todas as causas
matrimoniaes ficarão competindo exclusivamente ájurisdicção civil. As pendentes, porém, continuarão o seu
curso regular, no fôroecclesiastico”.
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12
Art. 93. O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos conjuges, e neste
caso proceder-se-ha a respeito dos filhos e dos bens do casal na conformidade do direito civil.
13
Sobre o tema indicamos a leitura de nosso artigo SIMÃO, José Fernando. Tributo a
Nelson Carneiro: Luta pelo Divórcio X Batalha do Divórcio. In: O Novo Divórcio no Brasil. FERRAZ,
Carolina Valença; LEITE, George Salomão; LEITE, Glauber Salomão (Orgs.). Salvador: Editora Jus
Podium, 2011.
14
Século III d.C.
15
HULOT, M. La Clef des Lois Romaines. Tomo II. Paris: Meltz, 1810, p. 41. A
dualidade de sexos era tão evidente a palavra latina para casamento, matrimonium, significava que a
conjunção tinha por efeitos que a esposa se torna mãe (mater) (op. cit., p. 40). Casar com uma mulher era
convidá-la para tornar-se mãe. Este era seu título mesmo antes de ter filhos (Amor em Roma, Pierre Grimal,
p.61).
16
Escreve Paulo de Lacerda que foi abandonada uma tradição secular do povo brasileiro
que via no matrimônio um sacramento instituído pelo fundador da Igreja cristã e regulado na sua última fase
pelos cânones do Concilio Tridentino (De Sacramento Matrimonii) e pelas Constituições primeiras do
Arcebispado da Bahia (Manual do Código Civil, p. 9). Explica Lafayette Rodrigues Pereira, que o
cristianismo, desde sua fundação, chamou o casamento para si e o elevou à dignidade de sacramento, daí os
esforços constantes da Igreja Católica de subtraí-lo da ação do poder temporal (Direitos de Família, p. 31)
17
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da Família de Fato. 2. ed. São Paulo: Atlas,
2002., p.186.
18
Em seus comentários, Cândido Mendes de Almeida diz que se trata de mulher
amancebada e que, antigamente, na Espanha, era mulher legítima que por ser desigual em nobreza não
gozava de direitos e foros do marido. Em outras partes da Europa é mulher da mão (manca) esquerda, ou
porque o marido dava essa mão ao se casar ou porque a trazia a sua esquerda, lugar menos honroso. Citando
Viterbo no Elucidário, Cândido Mendes de Almeida diz que barregã ou concubina é a mulher que procura
filhos,ou faz diligência para isso, fora do santo matrimônio. Os filhos assim gerados são chamados de filhos
de Guança, Gança ou Ganhadia, como espúrios ou ilegítimos (2004:871)
19
Explica Benedito Silvério, em correspondência ao autor, que o termo “barregana”
vem do árabe barrakan, que é uma fazenda espessa e, portanto, barregão significa algo forte, resistente como
o tecido. Fala-se, ainda em um termo latino pellacana, do grego pellakê, prostituta.
20
A explicação veio em correspondência ao autor datada de 2008.
21
“Art.248. A mulher casada pode livremente:
IV - Reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo
marido à concubina (art. 1.177).”
“Art. 1.177. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro
cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até 2 (dois) anos depois de dissolvida a sociedade conjugal (arts.
178, § 7°, VI, e 248, IV).
Art. 1.719. Não podem também ser nomeados herdeiros, nem legatários:
III- a concubina do testador casado”.
22
RT 165/694.
23
BITTENCOURT, Edgard de Moura. O Concubinato no Direito. São Paulo: Alba
Limitada, 1961.
24
A premissa da afirmação é que a relação se estabelece, por livre e espontânea
vontade, entre pessoas maiores e capazes.
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85
25
É a aplicação da velha Súmula 380 do STF que, em seus primórdios, era aplicada
para o concubinato puro (atualmente união estável). Hoje, sua aplicação se restringe a pessoas que não
constituem família, ou seja, àqueles impedidos de se casar nos termos do art. 1727 do Código Civil.
26
Daí utilizo a locução “em tese” no parágrafo acima.
27
Com sentindo de destino.
28
Essa é a definição vernacular segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa.
29
“... podereis desposar duas, três ou quatro das que vos aprouver, entre as mulheres.
Mas, se temerdes não poder ser equitativos para com elas, casai, então, com uma só.” (Alcorão 4:3) in
http://www.islamreligion.com/pt/articles/325/ (acesso em 2 de setembro de 2014)
30
Código Penal Comentado, 4ª Ed., Primeira Impressão, 2010, p. 973.
31
REsp 1348458/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,
julgado em 08/05/2014, DJe 25/06/2014.
32
O Ato Institucional n. 5, um dos maiores atentados contra a liberdade e uma das
maiores violações aos direitos humanos, em seu preâmbulo, invoca a dignidade da pessoa humana:
“CONSIDERANDO que a Revolução brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos
com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que,
atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática,
baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias
contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, „os. meios
indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder
enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem
interna e do prestígio internacional da nossa pátria.‟”
33
É isso que fará o Estatuto das Famílias (Projeto de Lei do Senado 470 de 2013) em
sendo aprovado: “Art. 14. As pessoas integrantes da entidade familiar têm o dever recíproco de assistência,
amparo material e moral, sendo obrigadas a
concorrer, na proporção de suas condições financeiras e econômicas, para a manutenção
da família. Parágrafo único. A pessoa casada, ou que viva em união estável, e que constitua relacionamento
familiar paralelo com outra pessoa, é responsável pelos mesmos deveres referidos neste artigo, e, se for o
caso, por danos materiais e morais”.
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SEÇÃO DE DOUTRINA:
Doutrina estrangeira
INTERPRETAÇÃO DOS “CONTRATOS ESCRITOS” NA INGLATERRA1
Interpretation of Written Contracts in England
Neil Andrews2
RESUMO: Este artigo analisa os mais relevantes princípios que balizam a
interpretação de contratos escritos no direito inglês. Trata-se de uma análise
completa e incisiva que compreende desde a atual legislação até o entendimento
contemporâneo da doutrina, incluindo tanto o princípio equitativo da retificação
como os poderes dos Tribunais Recursais e da Suprema Corte no caso de recursos
sobre decisões arbitrais. O tema da interpretação de contratos escritos é dinâmico e
possui grande importância, uma vez que a interpretação é o principal aspecto
comercial em litígios e pelo fato de o direito inglês ser recorrentemente aplicado para
inúmeros negócios transnacionais.
PALAVRAS-CHAVE: Contratos Escritos; Interpretação;Direito Inglês; Cortes Recursais.
ABSTRACT: This article examines the leading principles governing interpretation of
written contracts under English law. This is a comprehensive and incisive analysis
of the current law and of the relevant doctrines, including the equitable principles
of rectification, as well as the powers of appeal courts or of the High Court when
hearing an appeal from an arbitral award. The topic of interpretation of written
contracts is fast-moving. It is of fundamental importance because this is the most
significant commercial focus for dispute and because of the number of crossborder transactions to which English law is expressly applied by businesses.
KEY WORDS: Written Contracts;Interpretation; English Law;Appeal Courts.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Interpretação – 3. Retificação – 4. Recursos em
questão de interpretação ou de retificação – 5. Considerações finais
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1. Introdução3
Neste tema, a abordagem inglesa definitivamente se distingue do
entendimento de outros ordenamentos.4 No Direito inglês, o objetivo está em
descobrir qual é o sentido linguístico objetivo pretendido pelas partes nos
contratos escritos. Assim, as cortes inglesas não permitem que as partes
argumentem sob a perspectiva subjetiva e pessoal em torno da interpretação do
que foi escrito. Da mesma forma, não é usual que as cortes inglesas considerem
válidos argumentos referentes às negociações ocorridas antes da elaboração do
contrato como suporte para interpretar as cláusulas do contrato posteriormente
redigido. Especificamente sobre este ponto de usar o que foi discutido previamente
sobre o contrato para interpretar sua redação, é preciso fazer uma ressalva, uma
vez que as cortes tendem a aceitar este comportamento quando as partes fazem
uso do instrumento do remédio da retificação, buscando a solução por equidade.
Essa exceção será discutida com maiores detalhes no tópico III do presente artigo.
Em resumo, o princípio da retificação é um remédio equitativo, permitindo que a
corte insira novas palavras para melhor refletir o verdadeiro consenso,
objetivamente verificável, que existiu imediatamente antes da formalização do
acordo.5 Assim, a retificação permite que a corte altere o sentido de cláusulas
escritas se houver evidências de que as partes falharam em refletir nas cláusulas do
contrato o que foi realmente acordado, desde que o consenso em torno deste
acordo seja objetivamente factível e claro.
Finalmente, cabe dizer que o advogado de civil law considerará notável o
fato de que toda esta área não é regulada por leis. Todas as normas envolvendo a
intepretação de contratos, assim como a doutrina equitativa da retificação
(equitable doctrine of retification), são criações jurisprudenciais de tribunais
recursais ou de decisões arbitrais que usaram o direito contratual inglês.6 Este
monopólio judicial na área de contratos, até agora, tem funcionado bem, com as
cortes tendo o poder de refinar, e, em alguns casos, de corajosamente desenvolver,
os princípios norteadores na área. Aliás, há de ser ressaltado que este não é apenas
o ponto mais importante do direito contratual inglês, como também, a partir de
uma perspectiva prática, o tópico mais dinâmico da doutrina contemporânea.
2. Interpretação
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Revisão Recursal: Construção dos Contratos Escritos é uma Questão
Legal e não Factual:Se o Direito Inglês regulamenta os negócios jurídicos
relevantes, a interpretação de (todos) os „contratos escritos‟ (incluindo os
documentos eletrônicos)7 é uma questão de direito8 enquanto a interpretação de
um contrato não totalmente contido em linguagem escrita (seja oral, ou parte
escrita e parte oral) é uma „questão de fato‟. Cortes recursais têm o poder de
revisar erros relativos ao direito da primeira instância, porém, em geral, são
deferentes às conclusões factuais.9
Objetividade: O ‗
í
ó
í
‘
referências a entendimentos não revelados e pessoais das partes sobre os efeitos e os
significados dos termos escritos.10Lord Hoffmann, no caso Investors Compensation
Scheme (1998), afirma: ―Interpretação [dos contratos escritos] é a averiguação do
significado que o documento iria transmitir a uma pessoa razoável, tendo esta todo o
conhecimento anterior que estaria razoavelmente disponível para as partes na
situação em que se enc
çã
.‖11
Contexto: As cortes preferem adotar uma abordagem contextual para a
çã
é
z
‗
‘:
-se a
inspiradora declaração de Lord Hoffmann em Investors Compensation Scheme Ltd
v. West Bromwich Building Society (1998)12 (na qual ele remete a decisões na década
de 1970).13 As cortes permitem que partes consultem o contractual setting, expresso
‗
‘
çã
ó
z çã
‗
‘ ‗
‘ ‗
‘
14
backgorund‘ ‗
‗
‘.15
Deve ser enfatizado, entretanto, que background não se estende às negociações
pré-contratuais (sobre isso, veja abaixo; entretanto, no caso de applications for
rectification, existe uma exceção à proibição de negociações pré-contratuais como
prova: veja mais abaixo).
Necessidade de Disciplina Processual: Lord Hoffmann no caso BCCI
(2001) afirma que cortes e árbitros deveriam frear as tentativas das partes de
fornecerem quantidades excessivas de informações de background.16 Considerando
isso, em Procter and Gamble Co v Svenska Cellulosa Aktiebolaget SCA (2012)17 o
procedimento de pre-trial disclosurede documentos da Common Law18 foi avaliada
por Rix LJ como um importante complemento para a construção de documentos.
Acessibilidade ao Material de 'Background': O ‗
k
‘
deve
ter sido acessívelàs partes presentes: no caso Sigma (2009) Lord Collins enfatiza
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89
este último ponto.19 Eles não devem estar enterrados com restos arqueológicos de
uma transação originalmente formada por partes ou entidades diferentes — como
em um documento inicial criado pelas partes X e Y, tempos atrás. A disputa atual
importa a A e B, que são estranhos ao documento original, mas o adotaram, junto
é
h
‗
‘
relevante.
Proibição de Negociações Pré-Contratuais: Interpretação: A regra inglesa –
sem equivalente na maioria dos ordenamentos ao redor do mundo – é de que,
quando procurando interpretar contratos escritos (enquanto distintos dos contratos
orais ou parcialmente escritos), uma parte não pode prover, sem a permissão do
oponente, provas relativas às negociações anteriores das partes. A justificativa
quíntupla para essa proibição é (justificativas coletadas por Briggs J,20
primeiramente, em Chartbrook Ltd v. Persimmon Homes Ltd (2007), baseando-se
L
‗
N h
z
‗My K
‘ ( )
H
‘):21 (i) evitar
e que não se pode garantir o acesso a
esse histórico das negociações a terceiros interessados, (iii) esses acordos mudam
constantemente, então tais provas não seriam úteis, (iv) impressões unilaterais
podem contaminar o exame de forma tal que a abordagem interpretativa objetiva
h
( ) ‗
h
ú
.‘.22
Negociações de Pré-Formação Relevantes para a fundamentação do
Princípio da Retificação: Estas provas devem ser apresentadas para o propósito de
retificação, um remédio equitativo independente (ver abaixo). Assim, reivindicações
por retificação são, geralmente, feitas em conjunto com um pedido baseado na
‗
çã ‘
.23
Conduta na Pós-Formação: Um contrato escrito não deve ser interpretado
por meio de referências à conduta das partes subsequentes à constituição do
contrato.24 Entretanto, há duas exceções: (1) se puder ser comprovado que as partes
especificamente concordaram em alterar ou dispensar o acordado;25 ou (2) se a
teoria do 'estoppel by convention' puder ser estabelecida, ou seja, se for possível
provar que, após a formação, as partes concordaram implicitamente em como os
termos escritos deveriam ser interpretado ou modificados.26
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90
Senso-Comum Comercial: As cortes devem interpretar instrumentos
'
‘
ó
'
‗
.27 Há uma série de declarações em favor dessa visão.
(1) Lord Diplock afirma em Antaios Cia Naviera SA v. Salen Rederierna AB
(1985):28„se a análise detida tanto da semântica quanto da sintática das palavras
em um contrato comercial leva a uma conclusão que desconsidera o senso comum
dos negócios, deve-se abdicar desta em favor do senso comum dos negócios.‟
(2) Lord Steyn afirma em Mannai Investment Co v. Eagle Star Life
Assurance (1997):29 ‗Palavras são (…) interpretadas da forma como um
comerciante razoável as construiria. E o padrão de um comerciante razoável é
hostil às interpretações técnicas e às ênfases indevidas nas sutilezas da linguagem.‘
(3) Lord Hope endossou essa abordagem na Suprema Corte inglesa em
Multi-Link Leisure v. North Lanarkshire (2010),30 notando que isso era
í
L
H
‘
Investors‟
Compensation Scheme Ltd v. West Bromwich Building Society (1998).31
(4) A Suprema Corte reiterou essa abordagem no caso Rainy Sky (2011),32
no qual Lord Clarke afirma:
―[20] Não é, a meu ver, necessário concluir que, a não ser que o sentido
mais natural das palavras leve a um resultado tão extremo a ponto de
indicar que não era o intencionalmente almejado, a corte deva dar
(…).[21] (…) C
construções possíveis, o tribunal deve preferir aquela que é compatível
com o
ó
(…).[40] U
z
que a linguagem da estipulação contratual relevante é susceptível a dois
significados, é apropriado que o tribunal leve em conta o senso comum
comercial ao definir o que um homem razoável teria depreendido sobre a
intenção das partes‖.
(5) E a Corte de Apelações, em Procter and Gamble Co v Svenska
Cellulosa Aktiebolaget SCA (2012), enfatizou que o caso Rainy Sky não é um
q
‖(
q
―
q
ç
). N
mais
Procter and
Gamble Moore-Bick LJ afirma que, onde não há ambiguidade, o tribunal deve dar
cumprimento ao sentido estrito do contrato.33
Interpretação pela Reconstrução do Texto:34 A House of Lords em
Chartbrook Ltd v. Persimmon Homes Ltd (2009)35 sustentou que um juiz pode
'interpretar' um contrato pela reformulação total de uma frase relevante ou de um
pedaço do contrato quando (i) está claro que houve equívocos na elaboração e (ii)
também está claro, como uma questão de interpretação objetiva, qual era a
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verdadeira intenção das partes. Logo, tanto princípios interpretativos ordinários
quanto a doutrina de retificação podem ter como efeito a revisão de um
documento. O caminho mais seguro para a parte que busca uma decisão judicial
favorável em um contrato sub judice é
‗
‘
q
)
‗
‗
çã ‘ (
çã ‘ (
). 36Há vários
exemplos de invocações deste estilo interpretativo pelos tribunais: Holding &
Barnes plc v. Hill House Hammond Ltd (No 1) (2001);37Littman v. Aspen Oil
(Broking) Ltd (2005);38KPMG LLP v. Network Rail Infrastructure Ltd
(2007);39Springwell Navigation Corporation v. JP Morgan Chase (2010);40Pink
Floyd Music Ltd v. EMI Records Ltd (2011).41
Situações nas quais a utilização da teoria da Reconstrução não é
possível: Essa reconstrução não será uma possibilidade se:
(1) A única real reclamação é de que as duas partes entenderam
equivocadamente a extensão do objeto: Bashir v. Ali (2011);42 ou
(2) Onde a cláusula é falha, mas não apresenta uma solução interna: a
Corte de Apelação em ING Bank NV v. Ros Roca SA (2011)43 afirmou não ser
possível, segundo os fatos, aplicar a técnica da interpretação 'reconstrutiva' para
reescrever a cláusula concernente à 'taxa adicional' de bancos de investimento. De
forma similar, a tarefa de reconstruir o texto foi declarada impossível em Fairstate
Ltd v. General Enterprise & Management Ltd (2010),44 caso no qual o juiz
afirma:45 'os defeitos no contrato registrados na 'Guarantee Form' são tão
fundamentais e extensivos que não podem ser curados de forma suficiente pela
construção intencional, ou por retificação, ou por qualquer combinação dessas
abordagens.‘ (E a retificação falhou por não existir um consenso anterior claro a
respeito dos efeitos e do escopo da garantia).
Cortes não devem exceder em seu Poder de Interpretação: As cortes não
devem reescrever contratos ilegitimamente se seu significado é claro e não leva a
absurdos comerciais. Lord Mustill em Charter Reinsurance Co Ltd v. Fagan
(1997)
q
é
í
significado que elas não carregam verdadeiramente‘
‗extrair das palavras um
q
‗substituir
a barganha real por uma que a corte acredita que seria melhor se tivesse
ocorrido.‘46 No mesmo sentido, Rix LJ diz em ING Bank NV v. Ros Roca SA
(2011):47‗Juízes não deveriam ver em Chartbrook Ltd v Persimmon Homes Ltd
[2009] AC 1101 um precedente para reconstruir o contrato das partes, mas a
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oportunidade de solucionar pela construção um claro erro de linguagem que não
poderia ser proposital.‟
3. Retificação48
As Duas Bases: existem duas bases distintas que possibilitam a retificação de
contratos escritos: (1) retificação de intenções comuns baseada em divergência entre
a versão inicialmente manifestada da transação a ser realizada e os termos finais
acordados entre estas partes; ou (2) erro unilateral, onde a parte B, de modo
criticável, falhou em apontar à parte A que os termos escritos da transação iminente
não acordariam com o entendimento errôneo desta mesma parte A quanto ao
conteúdo daquele contrato escrito. Estas duas vertentes serão, agora, analisadas
separadamente.
Retificação de Intenção Comum: um contrato pode ser retificado para trazêlo à conformidade com os entendimentos compartilhados e pré-contratuais das
partes sobre os termos presentes, sendo necessário (i) que haja alguma manifestação
externa daquele entendimento;49 e (ii) que este entendimento seja apurado e
interpretado pelo recurso ao método objetivo. Não é suficiente que ambas as partes
tenham, de modo equivocado, entendido que estavam lidando com o objeto ‗X‘ e
aplicado este rótulo durante as negociações subsequentes. Se o contrato escrito,
então, confirma que o objeto a ser tratado é, de fato, ‗X‘ não há espaço para
retificação, por não haver divergência entre o consenso anterior exteriorizado e os
termos eventualmente escritos.50 A corte não tem ‗
que considera justo em relação a um pedido de
ilimitados para fazer o
çã ‘.51
Necessidade de uma intenção contínua e não interrompida: se no estágio
anterior das negociações impuser que as partes concordem com um conjunto de
termos ‗A B e C‘ mas a versão final é um conjunto de termos ‗X Y e Z‘ pode estar
claro que as partes substituíram os termos A, B e C pelos novos elementos X, Y e Z.
Se este for o caso, não deveria haver escopo para retificar o contrato para restaurar os
termos A, B e C. A razão simples para a retificação ser negada é que as partes
substituíram, livremente, os termos antigos pelos novos e concordaram sobre estes.
A retificação será apropriada apenas se houve uma intenção contínua e não
interrompida de entrar em um contrato baseado nos termos A, B e C. Nos fatos
acima apresentados, não houve tal consenso não interrompido e, assim, os termos
finais devem permanecer: X, Y e Z. A necessidade de subsistir intenção comum em
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forma inalterada surgiu de modo dramático no caso Daventry (2011),52 uma decisão
majoritária da Corte de Recursos (Toulson LJ e Lord Neuberger MR; Etherton LJ
sendo contrário e Vos J anulando). A surpreendente decisão majoritária parece
entrar em conflito com o processo elementar de negociação mencionado.53Será
decepcionante se esta decisão problemática sobreviver. Não é certo que a lei inglesa
permita que ocorra retificação quando, durante as negociações, houve clara quebra
no padrão da linguagem contratual relevante e a versão preferida de uma das partes
tenha claramente prevalecido (aplicando princípios comuns que regem negociações
sequenciais). Se a outra parte falhou em fazer objeção a esta cláusula ou novo
conjunto de termos claramente contraditórios e não há constatação de negociação
inconcebível nesta fase, o contrato deve proceder sobre estes termos estabelecidos.
Retificação de Erro Unilateral: a regra geral é de que a corte não deve
conceder retificação simplesmente para compensar o entendimento equivocado de
uma parte.54 Porém, a exceção é possível se a parte B está ciente de que a parte A está
equivocada quanto ao conteúdo ou significado dos termos escritos. Portanto, onde
esta exceção for aplicável, a retificação é possível. Para este propósito, B estará
―
‖ dos erros de A em qualquer destas três situações: (1) se ele tinha
conhecimento do fato; (2) se estava propositalmente cego a um fato óbvio; ou (3) se
ele, intencional ou irresponsavelmente, falhou, contrário à noção de razoabilidade e
honestidade, em perguntar se havia de fato acontecido um erro.55 Mesmo que tenha
sido dito que a lei não requer prova de ‗
- é‘ 56 fica claro que, nas três situações
expostas, houve ausência de boa fé ou de probidade por parte de B.57 A linha da
equidade compreende que, nas situações (1) a (3), se B se mantiver em silêncio, ele
não pode tirar vantagem do erro de A, e que, além disso, o contrato pode ser
retificado em favor de A.58 Isto é justificado com fundamento na má-fé, da conduta
pouco escrupulosa ou concordância repreensível de B com o erro de A. Esta é uma
forte intervenção equitativa, pois a parte equivocada atinge ―
ó
‖: o
contrato é reformulado para refletir seu entendimento unilateral, mesmo que não
tenha havido entendimento compartilhado que suporte esta nova versão do
contrato.59
Status Residual da Retificação: a retificação não precisa ser invocada se a
corte puder, como uma questão de simples ―
çã ‖ (conforme explicado na
seção II deste artigo), revisar o documento relevante. Isso é possível se (a) estiver
claro que a escolha de palavras atual não fizer sentido comercial, e (b) se estiver
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94
aparente como o documento deva ser reconstruído.60 Porém, a teoria da retificação
só deve ser aplicada em último caso nesta hipótese. Esta doutrina é aplicada apenas
se outras técnicas, como interpretação por Common Law, ou mesmo a implicação61
de termos na Common Law,62 falharem em apresentar uma solução.63
‗Explosão‟ da Retificação em Litígios: Embora, como já foi mencionado, a
teoria da retificação somente deva ser adotada em último caso, tem havido uma
‗
ã ‘ de demandas com fundamento na retificação. Isso pode ser atribuído aos
seguintes fatores: primeiramente, ao aumento da complexidade dos contratos
comerciais e de outros tipos de contratos escritos; em segundo lugar, à tendência ao
uso sucessivo de minutas elaboradas sob o modelo ‗
e
‘ de processamento
de palavras; ao aumento dos acordos modernos com múltiplas partes e jurisdições; e,
finalmente, à riqueza dos registros eletrônicos das negociações.64
Retificação e Prova: A parte que procura a retificação deve conseguir
satisfazer padrões elevados de prova, especialmente quando ambas as partes tiveram
um aconselhamento profissional.65A retificação permite um esclarecimento melhor
de pontos obscuros de um texto escrito do que o processo de interpretação da
Common Law. Ao considerar um pedido de retificação, a corte pode admitir provas
externas, ou seja, admitir discussões ou material documental fora do texto do acordo
escrito como prova. Assim, a retificação é uma exceção da ‗parol evidence rule‟ (regra
especial inglesa que domina os contratos escritos – a prova encontrada fora do
contrato escrito não pode ser usada pela parte para mudar, suplementar ou
contradizer os conteúdos do documento).66 Além disso, a ‗parol evidence rule‟ não
restringe o processo de discernimento pré-contratual das intenções e negociações das
partes para o propósito de retificação.
Nem uma cláusula ‗entire agreement‘ é compreendida como prova externa,
se a prova é citada durante o requerimento de retificação de um contrato escrito.
Uma cláusula ‗entire agreement‘ é uma estipulação do contrato principal declarando
que as partes concordaram em excluir do seu acordo quaisquer garantias ou
promessas prévias ou externas. Sugere-se que não seria apropriado para a cláusula
‗entire agreement‘ excluir tais provas, neste contexto, porque a função dessa cláusula
é excluir o recurso a compromissos orais ou garantias escritas adjacentes,
independentes do contrato principal escrito (promessas prévias ou colaterais). Em
contraste, a retificação é invocada para mostrar que o contrato principal não mostra
com precisão o real consenso estabelecido entre as partes.67
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95
4. Recursos em questão de interpretação ou de retificação68
Se o Direito inglês é aplicável à transação relevante, a interpretação (da
integralidade) de ‗
‘ (incluindo documentos eletrônicos)69é uma
questão de direito.70 Isto significa que, se a permissão para interpor recurso é
obtida – e permissão é um pré-requisito para a interposição de um recurso em um
caso civil no direito inglês71 – uma corte de recursos terá oportunidade de
reconsiderar a visão da corte inferior no que se refere aos efeitos do contrato72 (ou
o ponto em questão pode ser objeto de recurso à Corte Comercial, por parte de um
tribunal arbitral, se a Corte Comercial conceder permissão).73
Em contraste, cortes de recurso são, de modo geral, relutantes quanto a
reconsiderar análise de fato feita por cortes de primeira instância, apesar de que a
abrangência exata dos recursos contra questões de fato tenha se tornado campo
complexo no processo: ―... a abordagem de uma corte de recursos dependerá do
peso anexado à decisão do juiz e esse peso dependerá da extensão da vantagem
que o juiz, como juiz de primeira instância, tem sobre a corte de recursoos;
quanto maior a vantagem, mais relutantes estarão as cortes de recursos em
interferir.‖74 A ‗
‘ seria o monopólio da corte inferior (na prática
moderna) quanto à colheita da prova oral.
As decisões da High Court ou da Corte de Recursos sobre a interpretação
de contratos escritos fornecem importantes precedentes quanto a palavras ou
frases consideradas como padronizadas em documentos comerciais. Estas decisões
serão vinculantes para todas as cortes inferiores, bem como em relação aos
árbitros que aplicarem o direito inglês.
Quanto ao remédio equitativo da retificação (ver sessão III acima), uma
obra75 expõe que:
―apesar de os princípios aplicáveis que baseiam a retificação serem uma
questão de direito, se um instrumento particular deva ou não ser
retificado é uma questão de fato; considerando que a construção correta
de um contrato escrito particular é uma questão também de direito.
Assim, recursos referentes à interpretação são bem mais comuns do que
recursos com fundamento na teoria da retificação‖.
5. Considerações finais
Cortes inglesas modernas, bem como árbitros aplicando a lei inglesa, não
estão mais amarrados à redação literal do contrato escrito, podendo considerar a
intenção comum das partes. Em face de mais de um significado possível, é legítimo
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
96
que as cortes prefiram um determinado significado que reflita melhor as
realidades comerciais do contrato relevante, ou mesmo da cláusula contratual
específica.
As mesmas cortes e árbitros especificados acima, que aplicam princípios
substantivos ingleses, possuem um poder liberal de interpretar um contrato escrito
com a intenção de criar novo sentido a partir daquele, dado que é objetivamente
claro que o contrato foi escrito defeituosamente e, também, dado que seu real
significado seja óbvio. Esta última condição deve se manter estrita. A corte não
deve envolver-se com especulações ou reescrita criativa, situação desprovida de
suporte por parte da seguinte implicação: ‗é isto que nós, verdadeiramente,
intencionávamos e tínhamos acordado, apesar de o documento final não ter,
precisamente ou inteligivelmente, refletido
.‘
O direito contratual inglês não permite referência a negociações précontratuais quando da interpretação de contrato escrito. A esta última proposição,
há uma grande exceção quando uma parte busca o remédio equitativo da
retificação.
Cortes de recursos podem revisar uma decisão de corte de primeira
instância (ou de tribunal arbitral em que a lei inglesa tenha sido aplicada)76 em um
ponto de interpretação se o contrato relevante for integralmente contido em
linguagem escrita. Isto se dá pelo fato de a interpretação de tal documento ser
classificado como uma questão de direito, diferentemente de uma questão de fato
(questões de fato, se se estiverem relacionadas a provas orais produzidas em
primeira instância, não costumam ser discutidas em grau de recurso). Não
obstante, recuros cíveis, mesmo que referentes a questões de direito, não estão
automaticamente autorizados. O recorrente deve, primeiramente, ingressar na
corte de primeira instância ou na corte de recursos para obter permissão para
recorrer. Se tal permissão for concedida, a corte de recursos poderá apreciar a
questão referente à interpretação.77 A declaração da corte de recursos quanto à
metodologia relevante do significado conflitante será, então, vinculante para todas
as cortes inferiores e tribunais arbitrais que aplicam o direito inglês. O significado
dos termos escritos relevantes, ao menos naquele contesto imediato, será também
vinculante. Desta forma, cortes inglesas construíram um rico histórico de
precedentes quanto a frases padronizadas no uso comercial. Estas decisões
auxiliam na promoção de previsibilidade.78
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Interpretação dos “contratos escritos”
na Inglaterra – Neil Andrews
Artigo recebido em 15/09/2014
1º parecer recebido em 19/09/2014
2º parecer recebido em 04/12/2014
1
Artigo original InterpretationofWrittenContracts in England, traduzido por Breno
Luiz Guilherme Gaspar, Flávia Costella de Pennafort Caldas, Gustavo Cavaliere da Rocha, Luiz Filippe
Esteves Cunha, Maria Beatriz Silva Machado Paschoal e Pedro Moysés Delfino.
2
Professor de Direito Processual Civil e de Direito Privado na Universidade de
Cambridge e Membro honorário (bencher) da associação dos advogados de MiddleTemple
([email protected]).
3
Textbooks: Neil Andrews, Contract Law (Cambridge University Press, 2011), 14.01to 14.32 (o autortambémanalisa o processo civil naobraAndrews on Civil Processes (Intersentia, Cambridge,
2013), vol I, Court Proceedings at ch 15; sobrerecursos a partir de decisõesarbitraisenvolvendo o
Direitoinglês, Andrews on Civil Processes (Intersentia, Cambridge, 2013), vol II, Arbitration and
Mediation); K Lewison, Interpretation of Contracts (5thedn, London, 2011; e primeirarevisãoemDezembro
2013); G McMeel, The Construction of Contracts: Interpretation, Implication and Rectification (Oxford,
2ndedn 2011) (vejatambémMcMeel, `The Interplay of Contractual Construction and Civil Justice: Procedures
for Accelerated Justice‟ (2011) European Business L Rev 437-449); Catherine Mitchell, Interpretation of
Contracts (London, 2007); (para umaanálise da perspectivaaustraliana) JW Carter The Construction of
Commercial Contracts (Hart, Oxford, 2013).Outrasdiscussões: Lord Bingham, `A New Thing Under the Sun:
The Interpretation of Contract and the ICS Decision‟ (2008) 12 Edinburgh LR 374; R Buxton,
`”Construction” and Rectification After Chartbrook‟ [2010] CLJ 253; A Burrows, `Construction and
Rectification‟, in A Burrows and E Peel (eds), Contract Terms (Oxford University Press, 2007), 88 et seq; R
Buxton, `”Construction” and Rectification After Chartbrook‟ [2010] CLJ 253; J Cartwright, 'Interpretation of
English Law in Light of the Common Frame of Reference' in H Snijders and S Vogenauer (eds), Content and
Meaning of National Law in the Context of Transnational Law (Sellier, 2009); Lord Grabiner, `The Iterative
Process of Contractual Interpretation‟ (2012) 128 LQR 41; Lord Hoffmann, `The Intolerable Wrestle with
Words and Meanings‟ (1997) South Africa LJ 656; E McKendrick, in S Worthington (ed), Commercial Law
and Commercial Practice (Hart, Oxford, 2003); D McLauchlan, `Contract Interpretation: What is it About?‟
(2009) 31 Sydney Law Review 5; Lord Nicholls, `My Kingdom for a Horse: the Meaning of Words‟ (2005)
121 LQR 577; Lord Phillips, `The Interpretation of Contracts and Statutes‟ (2002) 68 Arbitration 17
Spigelmann CJ, `From Text to Contract: Contemporary Contractual Interpretation‟ (2007) 81 ALJ 322; Sir
Christopher Staughton, `How Do The Courts Interpret Commercial Contracts?‟ [1999] CLJ 303; para leitura
comparativa, veja a nota n° 3 abaixo.
4
Para leituras comparativas a respeito da interpretação de contratos, MJ Bonell, 'The
UNIDROIT Principlesand CISG – SourcesofInspiration for EnglishCourts?' [2006] 11 Uniform Law Review
305; MJ Bonell (ed), The UNIDROIT Principles in Practice: Case Law and Bibliography on the UNIDROIT
Principles of International Commercial Contracts (2nd ed, Ardsley, NY, USA, 2006), 144; Eric Clive in H
MacQueen and R Zimmermann (eds), European Contract Law: Scots and South African Perspectives
(Edinburgh University Press, 2006), ch 7 at 183; E Allan Farnsworth, `Comparative Contract Law‟ in M
Reimann and R Zimmermann (eds), The Oxford Handbook of Comparative Law (Oxford University Press,
2006), ch 28, at 920 et seq; C Valke, `On Comparing French and English Contract Law: Insights from Social
Contract Theory‟ (2009) Jo of Comparative Law 69-95 (citadocomo `Iluminador‟ por Lord Hoffmann no
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98
casoChartbrook[2009] UKHL 38; [2009] 1 AC 1001, at [39]); `Contractual Interpretation: at Common Law and
Civil Law: An Exercise in Comparative Legal Rhetoric‟ in JW Neyers, R Bronaugh, SGA Pitel (eds), Exploring
Contract Law (Hart, Oxford, 2009), 77-114; S Vogenauer, `Interpretation of Contracts: Concluding Comparative
Observations‟, in A Burrows and E Peel (eds), Contract Terms (Oxford, 2007), ch 7; S Vogenauer and J
Kleinheisterkamp (eds), Commentary on the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts
(Oxford University Press, 2009), 311; K Zweigert and H Kötz, An Introduction to Comparative Law (trans Tony
Weir, 3rdedn, Oxford University Press, 1998), ch 30 (cabefazer a ressalva de que a discussãodestesautoressobre o
direitoinglêsestádesatualizada, devido a desenvolvimentosexplicadosmaisespecificamentenaseção II desseartigo).
5
Neil Andrews, Contract Law (Cambridge University Press, 2011), 14.33 to 14.51;
Chitty on Contracts(31stedn, London, 2012), 5-110 et seq; D Hodge, Rectification: The Modern Law and
Practice Governing Claims for Rectification for Mistake (London, 2010);G McMeel, The Construction of
Contracts: Interpretation, Implication and Rectification (Oxford University Press, 2ndedn, 2011), ch 17;
Snell's Principles of Equity (32ndedn, , London, 2010), ch 16; GH Treitel, The Law of Contract (13thedn, by E
Peel, London, 2011), 8-059 et seq; M Smith, `Rectification of Contracts for Common Mistake‟ (2007) 123 LQR
116; D McLauchlan, `The “Drastic” Remedy of Rectification for Unilateral Mistake‟ (2008) 124 LQR 608;
A Burrows, `Construction and Rectification‟, in A Burrows and E Peel (eds), Contract Terms (Oxford
University Press, 2007), 77.
6
No caso de referências arbitrais que sejam entre a Inglaterra e o país de Gales, a High
Court em Londres deve primeiro dar permissão para um recurso baseado no Direito inglês para que o
processo siga para a High Court: s 69(2) e s 69(3), ArbitrationAct 1996 (Inglaterra e País de Gales).
7
Chitty on Contracts(31stedn, London, 2012), 12-048.
8
Ibidem, 12-046.
9
Andrews on Civil Processes (Intersentia, Cambridge, 2013), vol I, Court Proceedings,
at para 15.12 and 15.72 et seq.
10
Reardon Smith Line Limited v. Hansen Tangen [1976] 1 WLR 989, 996, HL, per Lord
Wilberforce.
11
[1998] 1 WLR 896, 912-3, HL.
12
[1998] 1 WLR 896, 912-3, HL; E McKendrick, in S Worthington (ed) Commercial
Law and Commercial Practice (London, 2003) 139-62.
13
Prenn v. Simonds [1971] 1 WLR 1381, 1384-6, HL and Reardon Smith Line Limited
v. Hansen Tangen [1976] 1 WLR 989, HL; no casoPrenn, at 1384, Lord Wilberforce liga a abordagem „antiliteral‟ a decisões do séculodezenove.
14
O comentário principal é feito por LordWilberforce em Reardon Smith LineLimited v.
Hansen Tangen[1976] 1 WLR 989, 995-6, HL; veja Sir Christopher Staughton [1999] CLJ 303 sobre o
problema da „matrix factual‟.
15
Charter Reinsurance Co Ltd v Fagan [1997] AC 313, 384, HL, per Lord Mustill: “As
palavras devem ser colocadas como um todo no cenário do instrumento.”
16
[2001] 1 AC 251, at [39], HL.
17
[2012] EWCA Civ 1413, at [38]: No direito inglês, evita-se questionar o que as partes
tenham efetivamente pretendido, posto que a própria questão da intenção contratual é que esta seja derivada
do contrato, e que, quando surge uma disputa referente à questão da real intenção, esta seja levada à
submersão em “wishful thinking”. No âmbito da Civil Law, as questões são analisadas de forma diferente,
com a corte livre, da forma como vejo estas questões, para a análise de todas estas com o propósito de prover
a verdadeira, mesmo que distinta da imputada, intenção das partes. Mesmo assim, por razões distintas, a Lei
Inglesa é mais disposta do que a Civil Law, novamente, da forma como vejo estas questões, a criar espaço
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99
para a revelação de documentos e para análise cruzada, ainda que isto aumente os custos do litígio. Em
questões de interpretação contratual, existe uma ironia nesta combinação de abordagens. Ainda assim,
aplicando voluntariamente, como faço, o entendimento corrente sobre a interpretação contratual na Lei
Inglesa, que vem se tornando cada vez mais aberta a influências sobre considerações provenientes da matriz
factual e construção intencional, sou incapaz de criar um acordo que as partes poderiam ou não ter alcançado,
se estas houvessem pensado e discutido sobre o problema que as acometeu.
18
As regras principais estão codificadas em CPR Part 31: para comentários sobre essas
regras procedimentais, Andrews on Civil Processes (Intersentia, Cambridge, 2013), vol I, Court
Proceedings,at ch 11.
19
Mas no caso Sigma, [2009] UKSC 2; [2010] 1 All ER 571; [2010] BCC 40, at [35] to
[37], Lord Collins (com o suporte dos Lords Mance e Hope) desaprovou também expandir a procura por
antecedentes quando, como no próprio caso Sigma, as partes da transação relevante poderiam não estar
presentes em seu nascimento, e por sua vez se tornaram usuários de segunda-mão ou recebedores remotos do
texto contratual de outros que estivera em circulação no mercado financeiro relevante.
20
[2007] EWHC 409 (Ch), at [23].
21
Lord Nicholls, `My Kingdom for a Horse: the Meaning of Words‟ (2005) 121 LQR
577; nesta nota sobre a decisão da House of Lords no casoChartbrook, D McLaughlan (2010) 126 LQR 8, 911 rejeitaessasmúltiplasjustificaçõessugeridas.
22
Chartbrook v Persimmons [2008] EWCA Civ 183; [2008] 2 All ER (Comm) 387, at
[111], per Collins LJ; esse argumento é descrito como não convincente por D McLaughlan (2010) 126 LQR
8, 11.
23
Nessa abordagememduasfrentes, verG McMeel (2011) European Business L Rev 437449, e R Buxton, “Construction” and Rectification After Chartbrook‟ [2010] CLJ 253 e A Burrows,
`Construction and Rectification‟, in A Burrows and E Peel (eds), Contract Terms (Oxford University Press,
2007), 88 et seq.
24
Whitworth Street Estates (Manchester) Ltd v. James Miller & Partners Ltd (1970)
[1970] AC 583, 603, HL, per Lord Reid.
25
Chitty on Contracts (31stedn, London, 2012), 12-111.
26
Para estabelecer tal „estoppel', um acordo implícito deve ser estabelecido em seus
padrões de comportamento e interação: AmalgamatedInvestment&PropertyCoLtd v. Texas
CommerceInternational Bank Ltd [1982] QB 84, 120, CA, perLordDenning MR: „Então temos aqui (...)
provas de condutas subsequentes que vieram à nossa ajuda. É possível – não interpretar o contrato – mas
ver como eles próprios agiram. Sob a forma do „estoppel [byconvention]‟ nós podemos prevenir que as
partes neguem a interpretação que elas próprias deram.‟
27
Antaios Cia Naviera SA v. Salen Rederierna AB [1985] AC 191, 201, HL, per Lord
Diplock.
28
[1985] AC 191, 201, HL.
29
[1997] AC 749, HL (uma decisão por maioria sobre aviso de aluguel); PV Baker (1998)
114 LQR 55-62.
30
[2010] UKSC 47; [2011] 1 All ER 175, at [21].
31
[1998] 1 WLR 896, 913, HL.
32
Rainy Sky SA v Kookmin Bank [2011] UKSC 50; [2011] 1 WLR 2900.
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100
33
[2012] EWCA Civ 1413, at [22], per Moore-Bick LJ: „... o ponto de partida devem
ser as palavras que as partes usaram para expressar suas intenções ou, no caso de um contrato
cuidadosamente elaborado, como este, o tribunal deve se atentar para não cair na armadilha de reescrever
o contrato para produzir o que se acredita ser um sentido melhor. Na minha visão, o contrato, como um
todo, não é razoavelmente passível de ser lido com duas significações distintas.‟Rix LJ adicionou em [38]:
„... aplicando de boa vontade, como faço, o atual entendimento sobre interpretação contratual no Direito
inglês, que se tornou cada vez mais aberto a influências de considerações de matriz factual e interpretações
teleológicas, não sou capaz de criar um contrato que as partes poderiam, ou não ter chegado, caso tivesse
pensado e discutido o problema que os afligiu.‟ Nos fatos do caso Procter & Gamble, o tribunal sustentou
que as partes haviam concordado que o preço por plantas caras estaria em euros, mas o pagamento de tais
valores se daria em libras. Após a formação, a taxa de câmbio euro/libra se moveu desvantajosamente para o
comprador. Mas o comprador não pôde mostrar, se por um processo interpretativo, implicação dos termos, ou
retificação, que havia um consenso de que os euros deveriam ser convertidos em libras na cotação (favorável
ao comprador) da data do contrato, distintamente das datas subsequentes de entrega. Um dos documentos
comerciais trocados pelas partes trazia uma anotação dando uma taxa de câmbio aplicável à data. Mas isso
não tinha como objetivo impor uma taxa de câmbio fixa. Apenas registrava um processo de cálculo feito
quando das negociações entre as partes. Na ausência da provisão de uma cotação fixa, o movimento adverso
da moeda deveria estar a cargo do comprador, e não era função do tribunal salvar a parte deste resultado
econômico‟.
34
Investors Compensation Scheme case [1998] 1 WLR 896, 912-3, HL (propositions (iv)
and (v)).
35
[2009] UKHL 38; [2009] 1 AC 1101; noted D McLaughlan (2010) 126 LQR 8-14.
36
Nessa abordagemdupla, G McMeel (2011) European Business L Rev 437-449, and R
Buxton, `”Construction” and Rectification AfterChartbrook‟ [2010] CLJ 253 and A Burrows, `Construction
and Rectification‟, in A Burrows and E Peel (eds), Contract Terms (Oxford University Press, 2007), 88 et
seq.
37
[2001] EWCA Civ 1334; [2002] L & TR 103.
38
[2005] EWCA Civ 1579.
39
[2007] EWCA Civ 363; [2007] Bus LR 1336.
40
[2010] EWCA Civ 1221; [2010] 2 CLC 705, at [132] to [140].
41
[2010] EWCA Civ 1429; [2011] 1 WLR 770 (LordNeuberger MR andLaws LJ
sustentou que um contrato de exploração de gravações do Pink Floyd poderia ser interpretado de forma a
abarcar gravações digitais da mesma banda. Decidir de forma contrária seria ir contra o propósito comercial
óbvio da transação. Contudo, Carnwath LJ discordou, acreditando não haver erro óbvio).
42
[2011] EWCA Civ 707; [2011] 2 P & CR 12, at [39], per Etherton LJ: `…esse não é o
caso…no qual as palavras usadas pelas partes, durante a construção, levem a resultados arbitrários e
irracionais.‟
43
[2011] EWCA Civ 353; [2012] 1 WLR 472 (porém a corte foi capaz de alcançar uma
resolução favorável para o banco ao aplicar a doutrina do 'estoppel by convention' para levar em conta
acordos posteriores: veja [111] a [112], per Rix LJ, especialmente essa passagem em [111] `...'estoppel' é
uma doutrina flexível que pode levar em conta … a interação honesta e responsável de partes comerciais ao
contratar. Onde há espaço para desacordo quanto ao significado ou efeito de um contrato, mas as partes
claramente escolheram (ou pretendiam escolher) seu próprio entendimento e se relacionaram com base
nesse entendimento, independentemente se essa mutualidade é encontrada em uma presunção comum, ou em
consentimento, ou na confiança das partes nas interpretações recíprocas, a doutrina do 'estoppel' permite à
corte dar efetividade no caso específico aos „acordos objetivamente verificados e mútuos‟ das partes‟.
44
[2010] EWHC 3072 (QB); [2011] 2 All ER (Comm) 497; 133 Con LR 112 (Richard
Salter QC, Deputy).
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101
45
Ibidem, at [94]: “os defeitos no contrato registrados na 'Guarantee Form' são tão
fundamentais e extensivos que não podem ser sanados de forma suficiente pela construção intencional, ou
por retificação, ou por qualquer combinação dessas abordagens.” Garantias requerem clareza, ibidem at
[93]: `é particularmente importante que a Corte exija clareza para todos (e não apenas alguns) os termos
materiais das transações em casos, como o presente, onde é requisitada a usar seus poderes de construção
intencional ou de retificação para corrigir erros na redação do documento, que é invocado para satisfazer
os requisitos do Estatuto de Fraudes de 1677 s 4. Agir de outra forma é se arriscar a colapsar a proteção
que o estatuto deveria conferir.‟ Quanto à alegação do credor de que o pretenso garantidor estava impedido
(„estoppel by representation' pela oferta do documento) de negar a validade do documento, o juiz afirmou,
ibidem, at [97]: „é difícil enxergar por que qualquer signatário de um acordo de garantia defeituoso não
estaria impedido de forma similar. Quanto a isso, a posição aqui me parece ser bastante similar à
considerada pela House of Lords em Actionstrength Limited (t/a Vital Resources) v International Glass
Engineering In. Gl. En. Spa [2003] UKHL 17; [2003] 2 AC 541, no qual o 'plea of estoppel' foi
unanimemente rejeitado.‟
46
[1997] AC 313, 388, HL.
47
[2011] EWCA Civ 353; [2012] 1 WLR 472, at [110].
48
D Hodge, Rectification: The Modern Law and Practice Governing Claims for
Rectification for Mistake (London, 2010); Snell's Principles of Equity (32ndedn, London,2010), ch 16;
vejatambémNeil Andrews, Contract Law (Cambridge University Press, 2011), 14.33 to 14.51; Chitty on
Contracts (31stedn, London, 2012), 5-110 et seq; GH Treitel, The Law of Contract (13thedn, by E Peel,
London, 2011), 8-059 et seq; M Smith, `Rectification of Contracts for Common Mistake‟ (2007) 123 LQR 116,
especialmente 130 até o final; D McLauchlan, `The “Drastic” Remedy of Rectification for Unilateral
Mistake‟ (2008) 124 LQR 608, especially 608-10, 639-40; A Burrows, `Construction and Rectification‟, in A
Burrows and E Peel (eds), Contract Terms (Oxford University Press, 2007), 77, especialmente 90 até o final.
49
Joscelyne v. Nissen [1970] 2 QB 86, CA.
50
Rose (Frederick E) (London) Ltd v. Wm H Pim Junr & Co Ltd [1953] 2 QB 450, CA.
51
Holaw (470) Ltd v Stockton Estates Ltd (2000) 81 P & CR 404, em [41], por
Neuberger J.
52
Daventry District Council v Daventry & District Housing Ltd [2011] EWCA Civ
1153, em [210], por Lord Neuberger: “estava sendo esclarecido por DDH … que eles estavam incluindo um
termo que tinha como efeito que DDC deveria pagar o deficit da pensão e, também, que isto seria compatível
com a cláusula 14.10.2, que havia sido incluida no rascunho contratual quase que desde o
princípio.”Apontou P Davies [2012] LMCLQ.
53
No caso Daventry o conselho distrital (`DDC‟) obteve, com sucesso, retificação, apesar
do fato de que o réu, uma associação de habitação, (`DDH‟), havia claramente introduzido na segunda fase das
negociações uma cláusula competitiva que, inequivocadamente, contradizia a versão preferida pelo DDC, e à
qual o DDC, por aconselhamento legal, objetivamente pareceu assentir por celebrar o contrato final nos termos
preferidos pela DDH. Surpreendentemente, uma maioria da Corte de Apelação (Toulson LJ and Lord Neuberger
MR) reverteu Vos J. Na opinião majoritária, a versão original do documento, conforme apontado por Vos J,
alocou os encargos financeiros para o déficit de pensões para DDH. Durante os estágios iniciais da negociação, o
negociador principal da DDH percebeu que esta formulação escrita não estaria exatamente a favor do DDC,
porém não interviu para ter certeza de que as partes focariam especialmente nesta incerteza textual. Toulson LJ,
em [178], e Lord Neuberger MR, em [213] a [225], esta última, „não sem hesitar‟, em [227] apoiou que a
alteração subsequente, notável inserção da cláusula 14.10.3, introduzida pela DDH (esta cláusula
inequivocadamente colocou o encargo financeiro com o DDC), não tinha sido sinalizada de forma
suficientemente clara ao DDC. Desta forma, objetivamente, na opinião majoritária, esta modificação não havia se
sobreposto à versão precedente. A maioria chegou a esta conclusão, mesmo que esta redação final claramente
contradissesse a versão anterior e mesmo que esta versão final estivesse disponível para ser lida pelos oficiais do
DDC e seus advogados. Porém, com respeito, a decisão de Toulson LJ‟s e Lord Neuberger MR não é
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
102
convincente‟.
54
Riverlate Properties v. Paul [1975] Ch 133, CA.
55
Commission for New Towns v. Cooper (GB) Limited [1995] Ch 259, 281 D, 292 F, CA;
George Wimpey UK Ltd v. VI Construction Ltd [2005] EWCA Civ 77; [2005] 2 P & CR DG5, at [79];
Traditional Structures Ltd v H W Construction Ltd [2010] EWHC 1530 (TCC)
56
Thomas Bates Ltd v. Wyndham's (Lingerie) Ltd [1981] 1 WLR 505, 515 H, CA, per
Buckley LJ: “Sem dúvidas, eu acredito que, em qualquer caso como este, a conduta do réu deve se dar de tal
maneira para que seja desigual que ele deva ser permitido a se opor à retificação do documento. Caso isto,
necessariamente, implique alguma medida de “ausência de boa-fé”, que seja; mas, por minha parte,
acredito que a doutrina seja algo mais dependente da equidade das posições.”
57
George Wimpey UK Ltd v. VI Construction Ltd [2005] EWCA Civ 77; [2005] 2 P &
CR DG5, at [79].
58
Roberts & Co. Ltd v. Leicestershire CC [1961] Ch 555, 570, Pennycuick J (noted RE
Megarry (1961) 77 LQR 313-6); `The Olympic Pride‟ [1980] 2 Lloyd‟s Rep 67, Mustill J; Thomas Bates Ltd v.
Wyndham's (Lingerie) Ltd [1981] 1 WLR 505, CA; AgipSpA v. Navigazione Alta Italia SpA, `The NaiGenova
and the NaiSuperba‟ [1984] 1 Lloyd's Rep 353, 365, CA; Commission for New Towns v. Cooper (GB) Limited
[1995] Ch 259, CA (noted D Mossop (1996) 10 JCL 259-63); George Wimpey UK Ltd v. VI Components Ltd
[2005] EWCA Civ 77; [2005] 2 P & CR DG5; Traditional Structures Ltd v HW Construction Ltd [2010] EWHC
1530 (TCC), at [25] to [31] ; D McLauchlan, `The “Drastic” Remedy of Rectification for Unilateral Mistake‟
(2008) 124 LQR 608-40 (queacreditaqueestacategoria de retificaçãotenhasidoequivocadamenteentendida;
apesar de um juiz de primeirainstâncianão deter liberdade para reconsiderarestacategoria de
retificaçãoporserlimitado pela autoridade da Corte de Recursos: Traditional Structures, caso, ibidem, em [32] e
[33]; nesteponto, Neil Andrews, Contract Law (Cambridge University Press, 2011), 14.47).
59
Rowallan Group Ltd v Edgehill Portfolio No 1 Ltd [2007] EWHC 32 (Ch); [2007]
NPC 9, at [14], per Lightman J: `o remédio da retificação para erro unilateral é um remédio drástico, pois
este tem o resultado de impor ao réu um contrato que ele não celebrou e não intencionava celebrar.‟D
Hodge, Rectification: The Modern Law and Practice Governing Claims of Rectification (London, 2010), 4-90 to
4-93.
60
Holding & Barnes plc v. Hill House Hammond Ltd (No 1) [2001] EWCA Civ. 1334;
[2002] L & TR 103; Littman v. Aspen Oil (Broking) Ltd [2005] EWCA Civ 1579; Nittan (UK) Ltd v. Solent
Steel Fabrication Ltd [1981] 1 Lloyd‟s Rep 633, CA.
60
Em termos geralmente implícitos, Neil Andrews, Contract Law (Cambridge
University Press, 2011), ch 13.
62
Holaw (470) Ltd v Stockton Estates Ltd (2000) 81 P & CR 404, at [41], per Neuberger
J, at [44] (se um ponto é tão óbvio que pode ser compreendido sem que seja necessária explicação, o juiz
acredita que a doutrina apropriada seja termos implícitos no lugar de retificação equitativa).
63
Snell's Principles of Equity (32nd edn, London, 2010), 16-002: `Retificação não será
decretada se o resultado desejado puder ser atingido de forma conveniente por outros meios: por
dependência dos direitos de Common Law, ou por acordo entre as partes‟.Snell, em 16-009, também
observa que a base para termos implícitos, incluindo no contexto de contratos escritos, continua sendo
matéria que demanda „necessidade‟, conforme observado por Sir Anthony Clarke MR, em Mediterranean
Salvage & Towage Ltd v Seamar Trading & Commerce Inc, `The Reborn‟ [2009] EWCA Civ 53; [2009] 2
Lloyd‟s Rep 639, at [18]; neste caso e na recepção atraentemente cética da discussão de Lord Hoffmann‟s em
Attorney-General for Belize v Belize Telecom Ltd [2009] UKPC 10; [2009] 2 All ER 1127, at [16] to [27],
especialmente [21], Neil Andrews, Contract Law (Cambridge University Press, 2011), at 13.15; e ver G
McMeel, The Construction of Contracts: Interpretation, Implication and Rectification (Oxford University
Press, 2nd edn, 2011), ch‟s 10 and 11.
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103
64
D Hodge, Rectification: The Modern Law and Practice Governing Claims of
Rectification (London, 2010), prefáciopor Lord Neuberger MR, at p (vii).
65
James Hay Pension Trustees Ltd v.Hird [2005] EWHC 1093 (Ch), em [81]; Surgicraft
Ltd v Paradigm BiodevicesInc[2010] EWHC 1291 (Ch), at [69], per Christopher Pycroft QC (Deputy High Court
Judge); Traditional Structures Ltd v HW Construction Ltd [2010] EWHC 1530 (TCC), at [34]
66
De forma geral, nestaregra, Neil Andrews, Contract Law (Cambridge University
Press, 2011), 14.26 et seq.
67
Surgicraft Ltd v Paradigm BiodevicesInc[2010] EWHC 1291 (Ch), at [73], per
Christopher Pycroft QC (Deputy High Court Judge); Snell's Principles of Equity (32ndedn, London, 2010), 16008; Chitty on Contracts(31stedn, London, 2012), 5-112.
68
Nos procedimentos do sistema de apelações na corte Inglesa, Andrews on Civil
Processes (Intersentia, Cambridge, 2013), vol I, Court Proceedings at ch 15; sobre apelações em sentenças
arbitrais em pontos de direito inglês, Andrews on Civil Processes (Intersentia, Cambridge, 2013), vol II,
Arbitration and Mediation, para 18.67 et seq.
69
Chitty on Contracts (31stedn, London, 2012), 12-048.
Ibidem, 12-046.
70
71
CPR 52.3(1); CPR 52.4(2).
72
eg, AXA Reinsurance (UK) v. Field [1996] 1 WLR 1026, HL.
73
s 69, Arbitration Act 1996 (England); possibilidade de concessão de autorização para
apelar de uma decisão de árbitro é restrita: ibidem, s 69(3).
74
Assicurazioni Generali SpA v. Arab Insurance Group [2002] EWCA Civ 1642; [2003]
1 WLR 577, CA, at [15], per Clarke LJ.
75
Snell's Principles of Equity (32ndedn, London, 2010), 16.11.
76
No caso de referências arbitrais onde a essência inclui a Inglaterra e Gales, a Suprema
Corte em Londres deve primeiramente conceder permissão para apelação em um ponto de direito Inglês para
proceder à Suprema Corte: s 69(2) e s 69(3), Arbitration Act 1996 (England and Wales)
77
No sistema de „permissão‟ para recursos de acordo com o procedimento nas cortes
inglesas, Andrews on Civil Processes (Intersentia, Cambridge, 2013), vol I, Court Proceedings at 15.25 et
seq.
78
G McMeel, `The Interplay of Contractual Construction and Civil Justice: Procedures
fr Accelerated Justice‟ (2011) European Business L Rev 437, 438, no n 6, coleta declarações judiciais em
favor da segurança comercial, especialmente Lord Bingham em `The Starsin‟ [2003] UKHL 12; [2004] 1 AC
715, at [13]; e Lord Steyn em `The Jordan II‟ [2004] UKHL 49; [2005] 1 WLR 1363, 1370.
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
104
PARECER
REGIME JURÍDICO APLICÁVEL À SOCIEDADE ANÔNIMA CUJO
COMANDO É COMPARTILHADO ENTRE UMA EMPRESA PÚBLICA E
UMA EMPRESA PRIVADA. SUJEIÇÃO ÀS NORMAS DE DIREITO
COMUM E INAPLICABILIDADE DO REGIME DE DIREITO PÚBLICO.
Arnoldo Wald
A maioria do capital social nem sempre é relevante
para determinar o controle, pois pode não assegurar o
comando da empresa, em virtude das disposições dos
estatutos e dos acordos de acionistas. A Sociedade Anônima
não tem a natureza de sociedade controlada, direta ou
indiretamente, pelo Estado, eis que, segundo suas próprias
disposições
estatutárias,
nenhum
dos
sócios
detém,
individualmente, o poder de eleger a maioria dos
administradores ou de orientar os negócios sociais.
Trata-se,
pois,
de
empresa
privada
com
participação estatal, sujeita tão-somente ao direito comum.
“Como se vê, a lei prevê duas hipóteses em que um
grupo de pessoas pode vir a ser titular do poder de controle:
(...) quando esse grupo se forma através de um acordo de
votos, firmado entre diferentes pessoas, físicas ou jurídicas,
associando interesses distintos, se bem que convergentes.
Em tais hipóteses, fala-se em controle conjunto ou
compartilhado (joint control), pois, nelas, o grupo de
controle exerce as prerrogativas e as responsabilidades que
incumbem ao acionista controlador sempre de forma
coletiva. Ou seja, as pessoas que o constituem agem e
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
105
respondem como se fossem uma só pessoa, sem que cada
uma, por si só, possa ser caracterizada como
„acionista controlador‟. A circunstância de que
qualquer um dos participantes seja eventualmente
majoritário, dentro ou fora do grupo, não o
converte,
ipso
facto,
em
um
acionista
controlador,senão quando visto como parte componente
da coletividade”.1
―A
, na conceituação legal, é o
acionista que exerce o poder de comando da sociedade (e
não do grupo de controle). O poder de controle é atributo e
prerrogativa do grupo considerado coletivamente, e não de
qualquer dos seus participantes considerado isoladamente.
O só fato de o acionista precisar do grupo para
integrar o controle é suficiente para demonstrar
que sozinho ele não pode exercer esse poder”.2
SUMÁRIO: 1. Quesito básico da consulta – 2. ParecerO controle da Sociedade
Anônima: compartilhamento entre empresa pública e empresa privada– 2.1 O
conceito de controle e de acionista controlador– 2.2. A inexistência de controle por
parte de integrante do ch
―
h
‖– 2.3. O efetivo
compartilhamento do comando da Sociedade Anônima e a inexistência de controle
público– 3. Conclusão e resposta ao quesito
1. Quesito básico da consulta
Deve ser considerada como sendo de economia mista uma empresa
constituída por uma estatal com 51% das ações e de uma sociedade privada com
49% na qual a estatal não exerce o controle?
2. Parecer
O controle da Sociedade Anônima: compartilhamento entre empresa
pública e empresa privada
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
106
2.1. O Conceito de controle e de acionista controlador
1. O controle societário pode caracterizar-se de inúmeras maneiras, a
depender de sua composição acionária e das regras contidas em seu estatuto ou em
eventual acordo de acionistas. O controle societário corresponde, em última
análise, a um fato econômico, que gera consequências diversas previstas em cada
legislação aplicável3.
2. No direito brasileiro, o legislador definiu o acionista controlador,
inclusive conferindo-lhe responsabilidades diferenciadas em relação aos demais
acionistas, no artigo 116 da Lei nº 6.404, de 1976 (―L
das S.A.‖) constando as
definições de sociedades controlada e controladora do parágrafo 2º do artigo 243
da mesma lei, conforme transcrições abaixo:
―Art. 116.
Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou
jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob
controle comum, que:
a)
é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo
permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia
geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da
companhia; e
b)
usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades
sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.
Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de
fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem
deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa,
os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos
direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender‖.
―Art. 243. (...)
§ 2o Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora,
diretamente ou através de outras controladas, é titular de direitos de
sócio
que
lhe
assegurem,
de
modo
permanente,
preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a
maioria dos administradores”.
3. Sobre o conceito adotado pelo direito societário brasileiro, ALFREDO
LAMY FILHOe BULHÕES PEDREIRAensinam que é acionista controlador aquele
que detém a capacidade de determinar as deliberações da assembleia geral,
permitindo-lhe exercer, em caráter permanente, o poder político sobre as
atividades desenvolvidas pela sociedade4.
4. Embora normalmente detenha tal capacidade quem detém a maioria do
capital social, o conceito de poder de controle e maioria acionária não se
confundem, pois a organização empresarial (decorrente, por exemplo, de
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
107
disposições estatutárias ou de eventuais acordos de acionistas) pode outorgar a
outros sócios direitos que lhes assegurem a capacidade de orientar os negócios
sociais.
5. Por tal razão é que a Lei das S.A., no art. 243, § 2º, acima citado, não
conceitua acionista controlador como aquele que detém maioria acionária, mas
como aquele que ―é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo
permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a
maioria dos administradores‖.
6. Com efeito, o poder de controle, atributo específico do acionista
controlador, é fundamentalmente o poder de decidir, no âmbito dos órgãos
societários, as questões relacionadas com a direção ou determinação
das atividades sociais5. Nessa linha, salientaJOSÉ EDWALDO TAVARES BORBA:
―Controla uma sociedade quem detém o poder de comandá-la,
escolhendo os seus administradores e definindo as linhas básicas de sua
atuação‖.6
7. Tendo em vista a estrutura administrativa deste tipo
societário, pode-se afirmar que “o núcleo da definição de controle, na
sociedade anônima, reside no poder de determinar as deliberações da
assembléia geral”, órgão que corresponde, na prática, à “última
instância decisória” da companhia7.
8. Corroborando as assertivas acima, PEDRO A. BATISTA MARTINS
afirma que:
―O acionista controlador exerce, permanentemente, o poder político,
porque a titularidade do bloco de controle, que lhe assegura a capacidade
de determinar as deliberações da Assembléia Geral, permite dirigir as
atividades sociais na certeza de que suas decisões serão formalmente
confirmadas pelo órgão social – transformar-se-ã
‗ ‘
sociedade‖.8
9. Verifica-se, assim, que o controle não está vinculado à propriedade da
maioria das ações votantes, pois prevalece, no caso, a configuração, ou seja, a
forma da estrutura societária e a organização empresarial, tanto assim que se
admite a existência do controle minoritário e até o controle externo9.
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
108
10.
Esta lição também é adotada pela doutrina administrativista.
MARÇAL JUSTEN FILHO, por exemplo, registra que ―o poder de controle consiste
no poder jurídico de determinar o destino da sociedade, o que se traduz
na eleição da maioria dos administradores da companhia, submetendo-os à
observância de diretivas e orientações.‖10
11.
A concepção de controle vincula-se, pois, à capacidade do
acionista, ou do grupo de acionistas, de impor, em caráter exclusivo,
preponderante e permanente11, a sua vontade no âmbito da assembleia geral, não à
maioria das ações, muito embora esta, muitas vezes, assegure aquela. Mas o que
caracteriza o poder de controle é a capacidade, a prerrogativa de orientar o
funcionamento dos órgãos de administração, e, por consequência, a gestão das
atividades sociais.
12.
Dessa maneira, como destaca NELSON CÂNDIDO MOTTA:
―Não faz portanto nenhum sentido, nem lógico, nem jurídico, que se
possa ou se pretenda identificar o acionista controlador,
independentemente da verificação desse prévio e essencial requisito, que
é a efetividade do voto majoritário nas assembléias gerais da
companhia‖.12
13.
O Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou a
respeito, consignando as noções de preponderância e de permanência para a
caracterização do controle de sociedade. Em voto que proferiu, como Relator, o
Ministro BARROS MONTEIRO teve o ensejo de afirmar, ressaltando a definição
legal, que:
‖Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente
ou por meio de outras controladas, é titular de direitos de sócios que lhe
assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações
sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores‖.13
14.
Em precedente mais antigo, o mesmo Ministro houve por bem
ressaltar as noções desupremacia nas deliberações da assembleia geral e o poder
de eleger a maioria dos administradores da companhia como fatores essenciais à
caracterização do controle14.
15.
O Supremo Tribunal Federal, em julgado de lavra do Ministro
NÉRI DA SILVEIRA, tangenciou o tema, tratando da alienação de ações, ao verberar
que ―[ referida alienação]deve ser, no caso, compreendida na perspectiva
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
109
do controle acionário da sociedade de economia mista, pois é tal
posição que garante à pessoa administrativa a preponderância nas
deliberações sociais e marca a natureza da entidade.‖15
16.
Posteriormente, este mesmo entendimento foi reiterado pela
Ministra CARMEN LÚCIA, em caso análogo, fazendo remissão expressa ao aludido
julgado relatado pelo Ministro NÉRI
DA
SILVEIRA, exigindo lei específica para
autorizar a alienação de ações, em sociedade de economia mista, que implique a
transferência, pelo Estado, de direitos que lhe assegurem preponderância nas
deliberações sociais, ou seja, do controle acionário16.
2.2. A inexistência de controle por parte de integrante do
chamado “controle partilhado”
17.
Como ensina LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES, no chamado
controle compartilhado, as partes exercem as prerrogativas que incumbem ao
acionista controlador de forma coletiva. Em outras palavras, as pessoas que
constituem o grupo dominante agem como se fossem uma única pessoa, sem que
cada uma, isoladamente, possa ser caracterizada, por si só, como ―
‖17.
18.
De fato, é evidente que ―não é titular do poder de controle o
acionista (ou grupo de acionistas) que dependa do voto de outros sócios, para
fazer valer a sua vontade nas assembléias gerais‖18.
19.
Nesse sentido, é possível afirmar que, no caso do comando
compartilhado que é exercido em conjunto pelos acionistas, nenhum dos sócios
detém, individualmente, o controle. Ou seja, no fundo, em boa técnica, não existe
controle compartilhado, pois o controle, a hegemonia no comando da empresa,
não é divisível.
20.
Poucos são os estudos específicos sobre a sociedade sob comando
partilhado, o que se explica pelo fato de se tratar de situações que somente se
desenvolveram recentemente. Porém, há doutrina mansa e pacífica reconhecendo
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
110
não só a unidade do controle como também o fato de que, caracterizado como uma
hegemonia, só pode pertencer a um único titular, que deve ser reconhecido como
sendo o controlador da empresa.
21.
Fez-se uma adequada analogia entre o controle societário e a
soberania nacional, que também é una e indivisível, pois não se pode dizer que
cada um dos vários poderes que integram o Estado seja soberano. Soberano é tãosomente o Estado. E a melhor doutrina reconhece o controle como ―
‖19.
22.
Em estudo pioneiro sobre a matéria, NELSON CÂNDIDO MOTTA,
escreveu a respeito que:
“Evidentemente não é titular do poder de controle o acionista
(ou grupo de acionistas) que dependa do voto de outros
sócios, para fazer valer a sua vontade nasassembléias gerais.
A rigor, só detém realmente o poder de controle o acionista (ou grupo de
acionistas) que possa contar, de modo, se não permanente, pelo menos
estável, com mais de 50% dos votos habilitados a concorrer à assembléia
geral‖.20
―(...)O poder de controle, sendo soberano por definição, é
necessariamente único e exclusivo”. (...) O só fato de o
acionista precisar do grupo para integrar o controle é
suficiente para demonstrar sozinho ele não pode exercer esse
poder”.21
23.
Por sua vez, o Professor LEÃES define o controle, afirmando que:
“É tendo em vista essas características do poder de comando que se pode
falar em controle comum ou compartilhado. No controle comum ou
compartilhado, os integrantes do grupo dominante exercem, em conjunto,
de forma coletiva, as prerrogativas e as responsabilidades que incumbem
ao acionista controlador (joint control). Ou seja, a pessoas, que
constituem a coletividade, agem e respondem como se fossem uma única
pessoa,
sem
que
cada
uma,
isoladamente,
pudesse
ser
caracterizada, por si só, como acionista controlador”.22
24.
E conclui, após ter comparado o controle compartilhado ao
condomínio, que:
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
111
“A circunstância de que qualquer um dos participantes seja
eventualmente majoritário, dentro ou fora do grupo, não o
converte, ipso facto, em um acionista controlador”.23
25.
Em todo grupo de controle, a lei pressupõe sempre o exercício de
um poder coletivo, entendendo que essa coletividade deva ser encarada como um
único sujeito de direito. Nesse sentido, o artigo 116 da Lei das S.A. conceitua o
acionista controlador usando expressão no singular, abarcando tanto a pessoa
natural ou jurídica, como grupo de pessoa, acionistas da companhia, vinculados
por acordo de voto ou sobre o controle comum24.
26.
O poder de controle é, no caso do comando compartilhado, um
atributo do grupo e não dos seus membros individualmente considerados.
27.
É exatamente este o caso da Consulta, em que o poder de controle
é exercido conjuntamente por EMPRESA PRIVADA e EMPRESA PÚBLICA, como
se demonstra a seguir.
2.3. O efetivo compartilhamento do comando da Sociedade
Anônima e a inexistência de controle público
28.
No caso da SOCIEDADE ANÔNIMA, o comando, que podemos
denominar poder de controle, é claramente exercido de modo compartilhado pelos
sócios,
EMPRESA PÚBLICA
e
EMPRESA PRIVADA
em decorrência de três fatores
principais, quais sejam:
(i) a SOCIEDADE ANÔNIMA foi criada para realização de um
empreendimento comum, em que ambas as partes (EMPRESA
PRIVADA)
PÚBLICA
e
EMPRESA
teriam participação equivalente nas decisões estratégicas e obrigações de
natureza complementar;
(ii)
a Escritura Pública, de criação da SOCIEDADE ANÔNIMA,
estabeleceu que cada parte teria o direito de eleger um diretor e que as decisões
seriam tomadas conjuntamente; e
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
112
(iii)
se verificou, em toda a existência da SOCIEDADE ANÔNIMA, que
o comando sempre foi, de fato, exercido de forma compartilhada entre os sócios
EMPRESA PÚBLICA
29.
e EMPRESA PRIVADA.
De fato, com relação ao fator descrito no item (i) acima, da leitura
da Escritura Pública de sua constituição extrai-se que a SOCIEDADE ANÔNIMA
foi criada para a realização de um empreendimento comum entre os sócios,
EMPRESA PÚBLICA
e EMPRESA PRIVADA, em igualdade de condições, embora cada um
tivesse obrigações de natureza complementar.
30.
A SOCIEDADE ANÔNIMA, com efeito, foi criada e incumbida de
lavrar o minério das minas dos dois sócios e vendê-lo a
EMPRESA PRIVADA,
para
beneficiamento e tratamento industrial. E foram definidas, desde logo, as
participações de cada empresa nos resultados do empreendimento, com a
peculiaridade de que o lucro não é proveniente, na sua maior parte, do processo de
mineração, mas do beneficiamento e da industrialização do minério e de sua venda
no mercado nacional e internacional, etapas a cargo exclusivo da EMPRESA PRIVADA.
31.
A EMPRESA PÚBLICA, em particular, tem dupla participação no
empreendimento, pois recebe:
a) 50% do lucro da SOCIEDADE ANÔNIMA, que recebe 100% da receita
decorrente da venda de todo o minério, de acordo com a Escritura Pública;
b) 25% do lucro de toda a operação da EMPRESA PRIVADA, em virtude de
sociedade em conta de participação prevista na Escritura Pública.
32.
No projeto conjunto, portanto, a expressiva participação numérica
da EMPRESA PÚBLICA só existe num primeiro momento, de extração do minério,
que é todo vendido à EMPRESA PRIVADA, para que esta desenvolva, por sua
conta e risco, as atividades de beneficiamento e de industrialização do minério,
com tecnologias que não pertencem à EMPRESA PÚBLICA, nem foram objeto do
contrato de constituição do negócio. Aliás, o know-how já pertencia à EMPRESA
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
113
PRIVADA no momento em que as partes se associaram e foi por ela aperfeiçoada
no tempo.
33.
Mas não é só. Com relação ao fator descrito no item ii acima, tendo
em vista a natureza e o contexto de criação da SOCIEDADE ANÔNIMA, as partes
decidiram, desde o início, estabelecer participação igualitária nas decisões
sociais relevantes.
34.
Para tanto, em primeiro lugar, as ações da SOCIEDADE
ANÔNIMA foram divididas em três classes distintas.
35.
Em segundo lugar, o Estatuto Social constante da Escritura
Pública de criação da SOCIEDADE ANÔNIMA estabeleceu que a empresa teria
dois administradores:
a. o Diretor Presidente – a quem compete privativamente a direção dos
serviços relativos à administração, contabilidade, tesouraria, faturamento e
cobrança de vendas, escrituração fiscal e cumprimento de todas as obrigações
legais da sociedade;
b. o Diretor de Operações – a quem compete privativamente a direção
de todos os serviços que integram o objeto social: a extração mineral e a entrega do
minério extraído à EMPRESA PRIVADA, para que o comercialize.
36.
E, em terceiro lugar, o Estatuto Social conferiu aos titulares de
cada classe de ações preferenciais direitos políticos que, em seu conjunto,
outorgam à EMPRESA PRIVADA poderes de efetiva direção sobre os negócios
sociais, em situação de igualdade com a EMPRESA PÚBLICA.
37.
Mais especificamente, aos titulares de ações preferenciais classe A,
o Estatuto conferiu direito de voto, juntamente com as ações ordinárias, para
eleger ou destituir o Diretor-Presidente.
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114
38.
Aos titulares de ações preferenciais classe B, conferiu-se o direito
de voto, juntamente com as ações ordinárias, para eleger ou destituir o Diretor de
Operações.
39.
E, por fim, aos titulares das ações preferenciais classe C, conferiu-
se o direito de voto, juntamente com as ações ordinárias, nas principais decisões
sociais, de modo a orientar os negócios da SOCIEDADE ANÔNIMA.
40.
Assim, para verificar quem tem o poder de eleger o Diretor
Presidente, somam-se as ações ordinárias e as preferenciais classe A e apura-se,
desse cálculo, quem tem a maioria. Conforme os números acima, a EMPRESA
PÚBLICA detém 53,62% das ações com direito a voto nessa matéria enquanto os
demais acionistas detêm, em conjunto, 46,37% das ações com direito a voto nessa
matéria. Neste sentido, à EMPRESA PÚBLICA foi atribuído o poder de eleger o
Diretor Presidente.
41.
Da mesma forma, para verificar-se quem tem o poder de eleger o
Diretor de Operações, somam-se as ações ordinárias e as preferenciais classe B e
apura-se, desse cálculo, quem tem a maioria. A EMPRESA PRIVADA detém
50,69% das ações com direito a voto nessa matéria enquanto os demais acionistas
detêm, em conjunto 49,31% das ações com direito a voto nessa matéria, pois as
PNA não o têm. À EMPRESA PRIVADA foi atribuído, portanto, o poder de eleger o
Diretor de Operações.
42.
Por fim, as principais decisões da SOCIEDADE ANÔNIMA
(dentre as quais qualquer alteração do próprio Estatuto, incorporação, fusão,
dissolução,liquidação, destinação dos lucros, alienação, locação ou sublocação de
bens ou direitos do seu ativo ou constituição de ônus reais, aquisição de bens
imóveis, participação em outras sociedades, criação ou participação em qualquer
outro empreendimento, contratação de empréstimos e aquisição de bens a prazo)
dependem necessariamente de voto conjunto da EMPRESA PÚBLICAe da
EMPRESA PRIVADA, poisuma é detentora de 51% das ações ordinárias e outra
de 49% de ações ordinárias e de 100% de preferenciais Classe C, totalizando
exatamente 50% das ações com direito a voto na matéria. Não podem,
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115
nessas matérias, que são essenciais para a sociedade, qualquer um dos sócios
decidir sem o consenso do outro.
43.
Assim, fica evidente que, desde a criação da SOCIEDADE
ANÔNIMA, o poder de controle é exercido pelas duas sócias principais, EMPRESA
PÚBLICAe EMPRESA PRIVADA, já que cada um dos dois administradores da
sociedade seria indicado por uma dessas sócias e que as decisões relevantes para a
SOCIEDADE ANÔNIMA dependeriam de manifestação unânime desses mesmos
sócios.
44.
Assim, em face da estrutura jurídica do empreendimento, que hoje
não é passível de modificação, a SOCIEDADE ANÔNIMA deve ser entendida como
um empreendimento privado típico de exploração mineral, na qual a EMPRESA
PÚBLICA não tem qualquer participação na gestão, embora disponha
dos elementos necessários para exercer estrito controle de sua
participação nos lucros, mediante procedimentos contábeis e realização de
auditorias.
45.
Por fim, com relação ao item (iii) acima, é fácil verificar, do exame
dos atos societários da SOCIEDADE ANÔNIMA, que as regras estabelecidas na
Escritura sempre foram observadas, sendo o poder de controle exercido
efetivamente de modo compartilhado entre EMPRESA PÚBLICA e EMPRESA
PRIVADA durante toda a existência da sociedade, ou seja, durante mais de 40
anos. As deliberações em assembleia geral da SOCIEDADE ANÔNIMA têm sido
sempre tomadas de forma unânime pelos acionistas EMPRESA PÚBLICA e
EMPRESA PRIVADA.
46.
Em suma, o poder de controle da SOCIEDADE ANÔNIMA é e
sempre foi exercido, desde sua criação, em conjunto, pelos dois sócios principais,
EMPRESA PÚBLICA e EMPRESA PRIVADA, não tendo nenhum deles o controle
da companhia se não tiver a concordância do outro. Cada um dos dois
administradores da sociedade é indicado por um sócio e as decisões
relevantes para a SOCIEDADE ANÔNIMA dependem de manifestação
unânime desses mesmos sócios.
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116
47.
Desse modo, nenhum dos sócios detém, individualmente, o poder
de eleger a maioria dos administradores ou orientar os negócios sociais da
SOCIEDADE ANÔNIMA, razão pela qual a premissa de que partiu o Tribunal de
Contas do Estado – qual seja, a de que a SOCIEDADE ANÔNIMA é controlada
pelo Estado, por meio da EMPRESA PÚBLICA – simplesmente não é verdadeira e
se baseou numa presunção inexata quanto à representação dos sócios na
companhia e desconsiderou a letra e o espírito dos estatutos da empresa e do
acordo de acionistas.
48.
Tais conclusões, vale registrar, por fim, se harmonizam, inclusive,
com o arcabouço legal estadual pertinente. Com efeito, não consta das leis
instituidoras e modificativas da antiga EMPRESA PÚBLICA, a previsão específica
para a criação de subsidiárias e/ou participação no capital de sociedade de
economia mista, mas é admitida a participação em empreendimento econômico
em parceria ―
49.
empresas estatais ou
‖.
Trata-se, destarte, de acordo com a determinação legal de mera
participação ou parceria, como a lei frisa, e não de controle.
3. Conclusão e resposta ao quesito
50.
Diante do exposto, passamos a responder à Consulta que nos foi
formulada.
PRIMEIRO QUESITO: A SOCIEDADE ANÔNIMAA é uma entidade
controlada pelo Estado e, portanto, integrante da Administração
Indireta, à luz da Constituição?
51.
Não. A SOCIEDADE ANÔNIMA não se amolda à situação prevista
na Constituição do Estado, uma vez que a EMPRESA PÚBLICA, não tem poder de
controle sobre ela, nos termos preconizados pelos arts. 116 e 243, §2º, da Lei das
S/A.
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117
52.
Conforme restou demonstrado neste Parecer, desde a criação da
SOCIEDADE ANÔNIMA, e à luz da composição acionária atual, a EMPRESA
PÚBLICA não tem capacidade de impor, sozinha, em caráter permanente, a sua
vontade no âmbito da assembleia geral, ou seja, além de não deter preponderância
nas deliberações sociais, tampouco pode eleger a maioria dos administradores.
53.
Na verdade, o comando e, consequentemente, o controle da
SOCIEDADE ANÔNIMA é, efetivamente, compartilhado entre a EMPRESA
PÚBLICA e a Consulente, de modo que a decisão do TCE/MG partiu de premissa
equivocada, o que invalida as demais conclusões a que o tribunal administrativo
chegou.
54.
A conclusão inarredável, portanto, é a de que a SOCIEDADE
ANÔNIMA deve se sujeitar, como sempre se sujeitou, exclusivamente às normas
de direito privado, não lhe sendo aplicáveis quaisquer das obrigações de direito
público afeitas às entidades da Administração Indireta.
Este é o nosso parecer, atendendo à consulta formulada.
São Paulo, agosto de 2013.

Professor Catedrático da Faculdade de Direito da UERJ. Advogado.
1
LEÃES, Luiz Gasto Paes de Barros. Acordo de comando e poder compartilhado, In:
Pareceres, São Paulo: Singular, 2004, p. 1309.
2
MOTTA, Nelson Cândido. Alienação do poder de controle compartilhado, Revista de
Direito Mercantil, nº 89, p. 43, jan./mar. 1993.
3
WALD, Arnoldo. Algumas considerações sobre as sociedades coligadas e os grupos
de sociedades na nova lei das sociedades anônimas, Revista Brasileira de Mercado de Capitais, Rio de
Janeiro, nº 8, p. 171, maio/ago. 1977. Nesse sentido, TULLIO ASCARELLI assevera que o controle é noção
meramente econômica e, enquanto situação de fato, pode constituir o pressuposto da aplicação de
determinadas normas jurídicas. (“Riflessioni in tema di titoli azionari, personalità giuridica e società tra
società”, Banca, Borsa e Titoli di Crédito,n. 1, p. 385, 1952). Segundo CLAUDE CHAMPAUD, a noção de
controle caracteriza-se por um poder sobre bens alheios, decorrente da administração dos bens empresariais.
Para ele, o controle constitui um poder, uma dominação da sociedade, exercida via instituições societárias,
com o fim de dirigir a atividade econômica da empresa social (Le pouvoir de concentration de lasociete par
actions, Paris: LibrairieSirey, 1962, p. 105).
4
LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A Lei das S.A., 2. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 1996, v. 2, p. 235.
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5
“Controlar uma companhia, portanto, é o poder de impor a vontade nos atos sociais e,
via de consequência, de dirigir o processo empresarial, que é o seu objeto.” (CARVALHOSA, Modesto.
Comentários à Lei de Sociedades Anônimas,
4. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, v. 2, p. 489).
6
BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário, 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2004, p. 334.
7
COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na
sociedade anônima, 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 51 e 88.
8
MARTINS, Pedro A. Batista. Responsabilidade de acionista controlador:
considerações doutrinária e jurisprudencial, Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São
Paulo, nº 27, p. 45. 2005.
9
COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto, op. cit. p. 89 e ss.
10
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2006, p. 128.
11
Na esfera do Poder Judiciário, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou a
respeito, consignando as noções de preponderância e de permanência para a caracterização do controle de
sociedade. Em voto que proferiu, como Relator, o Ministro BARROS MONTEIRO teve o ensejo de afirmar,
ressaltando a definição legal, que:“Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente
ou por meio de outras controladas, é titular de direitos de sócios que lhe assegurem, de modo permanente,
preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores”. (grifamos)
(STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 556.265/RJ, Relator Ministro BARROS MONTEIRO, DJ 13 de fevereiro
de 2006).
12
MOTTA, Nelson Cândido. Alienação do poder de controle compartilhado, Revista de
Direito Mercantil, São Paulo, nº 89, p. 42, jan./mar. 1993.
13
STJ, 4ª Turma, REsp nº 556.265/RJ, Relator Ministro BARROS MONTEIRO, DJ de
13.02.2006.
14
STJ, 4ª Turma, REsp nº 784/RJ, Relator Ministro BARROS MONTEIRO, DJ de
20.11.1989.
15
STF, Tribunal Pleno, ADI n.º 234/RJ, Relator Ministro NÉRI DA SILVEIRA, DJ de
15.09.1995.
16
É válido conferir o seguinte trecho da ementa: “1. No julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 234/RJ, ao apreciar dispositivos da Constituição do Rio de Janeiro que vedavam a
alienação de ações de sociedades de economia mista estaduais, o Supremo Tribunal Federal conferiu
interpretação conforme à Constituição da República, no sentido de serem admitidas essas alienações,
condicionando-as à autorização legislativa, por lei em sentido formal, tão-somente quando importarem em
perda do controle acionário por parte do Estado. Naquela assentada, se decidiu também que o Chefe do
Poder Executivo estadual não poderia ser privado da competência para dispor sobre a organização e o
funcionamento da administração estadual. 2. Conteúdo análogo das normas impugnadas nesta Ação;
distinção apenas na vedação dirigida a uma sociedade de economia mista estadual específica, o Banco do
Estado do Rio de Janeiro S/A - Banerj (...)” (STF, Tribunal Pleno, ADI nº 1.348/RJ, Rel. Min. CARMEN
LÚCIA, DJ de 07.03.2008).
17
LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Restrições a transferência de ações e alteração
do poder de controle, Revista de Direito Mercantil, nº 153-154, p. 290, jan./jul. 2010.
18
MOTTA, Nelson Cândido, op. cit., p. 42.
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21
22
19
COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto, op. cit. p. 135.
20
MOTTA, Nelson Cândido, op. cit. p.42.
MOTTA, Nelson Cândido, op. cit. p.43.
LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros, op. cit., p. 290.
23
LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Acordo de comando e poder compartilhado, In:
Pareceres, São Paulo: Singular, 2004, v. 2,p.1309.
24
LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Restrições a transferência de ações e alteração
do poder de controle, op. cit., p. 291.
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A BOA-FÉ OBJETIVA E O REGIME DE BENS NA UNIÃO ESTÁVEL DE
CÔNJUGES SEPARADOS
Gustavo Tepedino*
SUMÁRIO: 1. Síntese– 2. Inexistência de união estável entre X e Y no período entre
1996 e 2004. Incidência do regime de separação de bens estabelecido por pacto
jamais extinto ou alterado pelas Partes– 3. Violação do princípio da boa-fé objetiva
por Y. Legítima confiança de X na manutenção do regime de separação de bens
Honra-nos X, por meio de conceituado escritório de advocacia, solicitando
opinião doutrinária com base nos seguintes fatos:
O Sr. X e a Sra. Y casaram-se, em 30 de maio de 1993, pelo regime de
separação de bens, mediante pacto antenupcial. Em 31 de maio de 1995, o casal se
separou judicialmente, com a renúncia recíproca à prestação de alimentos. Não
houve, contudo, divórcio. Após 18 (dezoito) meses da separação judicial, o casal
restabeleceu a sociedade conjugal. Decorridos 8 (oito) anos da reconciliação, Y
propôs ação de reconhecimento e dissolução de união estável, pelo período de 1996
a outubro de 2004, na qual requer (i) dividendos oriundos de ações da P S.A.,
sociedade da qual X era sócio, doadas aos filhos de X com reserva de usufruto, no
período da alegada união estável; (ii) prestação de alimentos vitalícios; (iii)
permanência no apartamento do Rio de Janeiro, sem compensação financeira até a
decisão final, além do direito à metade do imóvel; (iv) metade do carro, adquirido
na constância da suposta união estável; e (iv) divisão das benfeitorias voluptuárias
realizadas em imóvel da propriedade de X, em Baraqueçaba, São Paulo, adquirido
antes da relação conjugal.
O Juízo de 1ª instância declarou a existência de união estável entre 1996 e
2004 e, por conseguinte, determinou a partilha dos bens adquiridos nesse período,
de eventuais dividendos auferidos, além de fixar alimentos no montante de R$
8.000,00 (oito mil reais) por mês e autorizar Y a residir no referido apartamento
até a partilha, compensando-se, ao final, o valor pela ocupação exclusiva do
imóvel. Apresentados os recursos de apelação e embargos de declaração por ambas
as Partes, o tribunal estadual confirmou a existência da união estável entre os
cônjuges, determinando a partilha: (i) do apartamento fluminense adquirido na
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constância da declarada união; (ii) de benfeitorias realizadas em imóvel paulista;
(iii) dos lucros auferidos por X decorrentes de participação societária na empresa
P. S/A durante o período de convivência, que passariam a integrar o patrimônio,
embora não imobiliário, de ambos; (iv) de um automóvel; bem como (v) a fixação
de alimentos em favor de Y no montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por mês,
desde a citação, limitados ao período de 36 (trinta e seis) meses contados do
acórdão da apelação, datado de novembro de 2010. As Partes apresentaram
Recurso Especial que se encontra pendente de apreciação pelo Superior Tribunal
de Justiça.
Diante dos fatos acima narrados e dos documentos apresentados, o
Consulente indaga acerca do regime jurídico de bens aplicável ao casal no período
entre 1996 e 2004.
Passa-se a responder a tal indagação, em dois eixos temáticos adiante
desenvolvidos, precedido de síntese das conclusões alcançadas.
1.Síntese
No direito de família, dois princípios antagônicos devem ser harmonizados pelo
intérprete: (i) princípio do rigor formal do regime matrimonial, decorrente do
prestígio constitucional do casamento, invulnerável à sobreposição de qualquer
outra entidade familiar, justificando-se assim, em favor da segurança jurídica, o
ato solene na celebração e o intenso formalismo do direito matrimonial; e (ii)
princípio da realidade afetiva ou da afetividade, que se traduz no reconhecimento
dos efeitos decorrentes dos liames socioafetivos constatados na realidade social,
que se impõem sobre as estruturas formais no direito de família (chamadas
relações de fato).
Da compatibilização de tais princípios, segue-se a necessidade de conciliar
o prestígio do casamento, que só se extingue pelo divórcio, com a flexibilização do
formalismo jurídico, em favor das relações de fato extraconjugais. Daqui decorre a
admissão, pelo sistema, da suspensão momentânea da produção de efeitos das
relações patrimoniais entre cônjuges antes do divórcio, pela separação judicial,
como consequência do fim da sociedade conjugal e da comunhão de vida a ela
inerente. Preserva-se, desse modo, o patrimônio conjugal e impede-se a sua
contaminação com os bens adquiridos com terceiros em relações de fato
concorrentes com o vínculo conjugal – após a separação e antes do divórcio.
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122
Harmonizam-se, assim, os efeitos patrimoniais resultantes da relação conjugal e
aqueles produzidos por relações familiares de fato ou não fundadas no casamento.
Se a relação conjugal estabelecida é retomada pelos mesmos cônjuges após
a separação judicial (e ainda durante o vínculo matrimonial, não extinto pelo
divórcio), verificando-se a reconciliação, restaura-se a comunhão de vida e,
conseguintemente, os efeitos do ato solene, válido e regular, do casamento
coincidem com a relação conjugal de fato, e devem ser reconhecidos no âmbito da
relação conjugal (reconciliação de fato). A tentativa de desconsiderar a unicidade
jurídica de tal relação matrimonial (não extinta pelo divórcio), estabelecida entre
os mesmos cônjuges que retomam a convivência antes da extinção formal do
casamento, contraria o sistema, violando, a um só tempo: (a) o regime patrimonial
adotado pelo casamento (e não extinto, nem de direito nem de fato); (b) a
realidade socioafetiva inserida na chamada relação de fato; (c) o princípio da
autonomia privada, já que tanto a vontade declarada dos cônjuges, manifestada em
pacto antenupcial válido e não extinto, quanto a convivência espontaneamente
verificada, traduzem a preservação, ao longo do tempo, do acordo de vontade; (d) a
boa-fé objetiva de quem estabeleceu vida comum mediante pacto antenupcial, sob
regime diverso da comunhão parcial (aplicada, por empréstimo, às uniões estáveis
se – e somente se – inexiste entre os conviventes acordo em sentido contrário).
A pretensão de união estável, com a aplicação do regime de comunhão
parcial, entre cônjuges que retomam a vida conjugal antes do divórcio, e cujo
casamento se encontra regido por pacto antenupcial de separação de bens, viola a
legítima expectativa do outro cônjuge, revelando-se comportamento contraditório
e, como
tal, reprovado
pela
ordem
jurídica
(nemopotestvenire contra
factumproprium).
2. Inexistência de união estável entre X e Y no período entre 1996 e
2004. Incidência do regime de separação de bens estabelecido por
pacto jamais extinto ou alterado pelas Partes
Após dois anos de casamento sob o regime de separação de bens
estabelecido em pacto antenupcial válido e eficaz, X e Y se separaram
judicialmente, sem a extinção do vínculo conjugal pelo divórcio, com renúncia
recíproca quanto aos alimentos. O período de separação judicial perdurou por 18
(dezoito) meses, quando o casal restabeleceu a vida conjugal.
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123
Como se sabe, a separação judicial não tem o condão de dissolver o vínculo
matrimonial, o que somente ocorreria com o divórcio ou a morte de um dos
cônjuges. Nessa direção, dispõe o art. 226, §6º, Constituição da República,
alterado pela Emenda Constitucional n. 66, de 2010.1
Aludido dispositivo substituiu a norma anterior que autorizava a
dissolução do casamento civil pelo divórcio precedido de separação judicial por
mais de um ano, nos casos expressos em lei, ou de comprovada separação de fato
por mais de dois anos. Independentemente da discussão doutrinária, que se seguiu
à Emenda Constitucional, acerca da revogação do instituto da separação2, certo é
que a supressão da referência à separação judicial corrobora o entendimento de
que apenas o divórcio ou a morte de um dos cônjuges, não já a separação judicial
ou de fato, põe fim ao casamento ou ao vínculo matrimonial.
Na mesma esteira da norma constitucional, o §1º, art. 1.571, Código Civil,
reproduzindo substancialmente o parágrafo único do art. 2º3, Lei 6.515/77 (Lei do
Divórcio), determina que apenas o divórcio ou a morte de um dos cônjuges
extingue o casamento.4
Como mecanismo para conciliar o rigor formal do regime matrimonial –
fundado no casamento, o qual é detentor de indiscutível prestígio constitucional –
com a realidade da vida afetiva (chamadas relações de fato), pretendeu o legislador
blindar o patrimônio comum dos cônjuges em face de relação extraconjugal
eventualmente constituída após a separação e antes do divórcio. Daí a previsão do
inciso III do art. 1.5715, segundo o qual a separação judicial implica o término da
sociedade conjugal. A dissolução da sociedade conjugal limita-se a extinguir os
deveres pessoais dos cônjuges e a impedir a comunicação dos seus patrimônios
relativamente aos bens que passem a integrá-los, tornando assim o patrimônio
constituído na constância do casamento indene à contaminação com os bens
amealhados por um dos cônjuges com terceiro.6 Embora apartado o patrimônio do
casal em face de terceiros, o vínculo matrimonial permanece íntegro, razão pela
qual os separados se encontram impedidos de casarem novamente. O divórcio, por
sua vez, diversamente da separação judicial, tem a força de extinguir a sociedade
conjugal e o casamento, autorizando os ex-cônjuges a contraírem novas núpcias.7
Deste modo, como a proibição de novo casamento por parte dos cônjuges
separados, sob pena de bigamia, dirige-se somente a terceiros, não os impedindo
de reatar a convivência conjugal, a alteração de regime provocada pela separação
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judicial tem por finalidade evitar a promiscuidade de fundos entre patrimônio de
titularidades distintas – aquele apurado na constância do casamento, segundo o
regime matrimonial adotado, e o patrimônio amealhado subsequentemente, em
cenário extramatrimonial.
Vê-se, portanto, que o rompimento da comunicabilidade dos patrimônios
consiste em mecanismo inserido no rol dos efeitos da separação judicial para evitar
que o patrimônio dos consortes se confunda com os bens adquiridos
supervenientemente com a participação de terceiros, quando não há mais
convivência entre os cônjuges.8 Ou seja: impede-se a comunicação dos patrimônios
entre entidades familiares distintas, contornando-se possível enriquecimento sem
causa de quem não colaborou para a aquisição do patrimônio após a separação. Eis
a ratiodo art. 1.546, Có
çã
C
q
―a separação judicial põe termo aos
í
‖.9
Pode-se afirmar, portanto, que ao rigor formal do casamento, constituído
pelo mais solene dos atos jurídicos (princípio do formalismo) e cuja extinção pelo
divórcio têm previsão constitucional, sobrepõe-se o reconhecimento, pela ordem
jurídica, da realidade da vida (ou, na difusa expressão de Nelson Rodrigues, a vida
como ela é), em que exsurge espontaneamente a entidade familiar. Trata-se das
chamadas relações de fato, que nada mais são que relações jurídicas de
convivência, desprovidas do ato formal do casamento, mas cujos efeitos o direito
tutela, considerando-as legítimas (realidade socioafetiva ou princípio da
afetividade).10
Nesta perspectiva, quando o vínculo formal do casamento, como no caso
em exame, não tendo sido extinto pelo divórcio, coincide com múltiplos períodos
de convivência de fato, totalizando longo período de vida conjugal sem divórcio
(reconciliação de fato), as duas preocupações da ordem jurídica (alcançadas pelos
aludidos princípios do rigor formal e da realidade socioafetiva) convergem,
teleologicamente, e sem colisão de princípios, para a tutela do casamento, da
autonomia privada traduzida no pacto antenupcial e da realidade fática, esta a
confirmar a vontade negocial pela insuperável força dos fatos.
Tendo-se por premissa que a noção jurídica de casamento expressa tanto o
ato formal que inaugura a família (casamento = ato solene) quanto a relação de
convivência decorrente daquele ato solene (casamento = vida conjugal), pode-se
afirmar, na hipótese em análise, que a presença dos mesmos cônjuges submete sua
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
125
vida conjugal, construída na realidade fática, ao acordo de vontade, válido e
regular, por eles livremente manifestado e sacramentado com celebração solene do
casamento.
Note-se que o fato de o legislador pretender, com o mecanismo da
separação judicial, evitar confusão entre patrimônios não poderia significar, na
lógica do sistema, que, caso os separados (mas não divorciados) restabelecessem a
convivência, o regime de bens que vigia antes da separação estaria extinto, de
modo que a retomada da vida em comum inauguraria novo regime de bens,
diverso do anterior. Essa conclusão representaria desvirtuamento da norma, que, a
rigor, objetiva impedir que bens adquiridos após a separação se comuniquem entre
os separados, mas não tem o intuito de proibir o retorno ao estado anterior em que
viviam os cônjuges antes da separação, mesmo porque o vínculo matrimonial (de
direito e, in casu, de fato) permanece intacto.
Em outras palavras, os separados que restabelecem a vida em comum
retornam ao estado anterior à separação judicial ou de fato, isto é, ao estado de
casados, tal qual estabelecido consensualmente com o ato formal do casamento e
do pacto antenupcial definidor do regime de bens. Pode-se afirmar, sob esse ponto
de vista, que a separação suspende, momentaneamente, a produção de efeitos do
casamento, o qual, contudo, permanece vigente, vez que o vínculo matrimonial não
é extinto com a separação. O ato jurídico do casamento não perde validade,
tecnicamente, com a separação, deixando de produzir efeitos justamente por conta
da ausência de sociedade conjugal, que se extingue, de ordinário, naquele
momento, com a pressuposta extinção da comunhão de vida entre os cônjuges.
Afinal, há aqui compreensível presunção relativa do legislador quanto à extinção
da comunhão de vida entre os cônjuges. Restaurada, contudo, a vida conjugal
entre os mesmos cônjuges no mundo real, não poderia o intérprete dar as costas
para a realidade dos fatos e nulificar, antes do divórcio, o casamento válido,
presumindo, a partir de então, alteração de regime de bens. A retomada da
sociedade conjugal pelos cônjuges restaura, portanto, os efeitos do casamento
válido, restabelecendo o status quo ante.
Por isso mesmo, o art. 1.57711, Código Civil, prevê a possibilidade de os
cônjuges separados judicialmente restabelecerem a sociedade conjugal, a qualquer
tempo, mediante mera solicitação ao juiz, em figura conhecida como reconciliação.
A não extinção do vínculo matrimonial permite que os consortes formulem o
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126
pedido de reconciliação. Mostra-se, nessa direção, eloquente o raciocínio
desenvolvido pelo Superior Tribunal de Justiça:
―Nos termos do art. 1571, §1º, do CC/02, que referendou a doutrina e a
jurisprudência existentes sob a vigência da legislação civil anterior, o
casamento válido não se dissolve pela separação judicial; apenas pela
morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio. Por isso mesmo, na hipótese
de separação judicial, basta que os cônjuges formulem pedido para
retornar ao status de casados. Já, quando divorciados, para retornarem
ao status quo ante, deverão contrair novas núpcias. A ausência de
comprovação da posse do estado de casados, vale dizer, na dicção do
acórdão recorrido, a ausência de prova da intenção do falecido de com a
recorrente constituir uma família, com aparência de casamento, está
intimamente atrelada ao fato de que, muito embora separados
judicialmente, houve a continuidade da relação marital entre o falecido
e sua primeira mulher, que perdurou por mais de cinquenta anos e teve
seu término apenas com a morte do cônjuge varão, o que vem
referendar a questão de que não houve dissolução do casamento
válido”.12
Em coerência com tal entendimento, por maioria de razão, a vida conjugal
livre e efetivamente estabelecida entre os cônjuges, que se projeta por anos a fio,
expressará manifestação de vontade robustamente dirigida no sentido da
reconciliação de fato e preservação do casamento.
Na espécie, X e Y se separaram judicialmente em 1995, mas não se
divorciaram, de modo que o vínculo matrimonial permaneceu íntegro. Em 1996, os
separados retomaram a vida em comum, retornando ao estado de casados
(reconciliação de fato). No interregno, portanto, entre a separação e o
restabelecimento da convivência, os efeitos do casamento válido se encontravam
suspensos, ou paralisados pela ordem jurídica, voltando a se produzir novamente a
partir de 1996.
Desse modo, se o casamento permaneceu válido, vez que não verificado o
divórcio, o retorno ao estado de casado restaura os efeitos do casamento, sob o
mesmo regime de bens. Inexiste, por estarem os cônjuges casados, a possibilidade
de configuração entre eles de união estável, fundada na interpretação do art. 1.546,
Código Civil, anteriormente mencionada, e dos artigos 1.521 e 1.723, § 1º, do
mesmo diploma.
O art. 1.521, Código Civil, estabelece os impedimentos para o casamento,
dentre os quais o fato de a pessoa já estar casada (inciso VI). Tal vedação impede a
formação de famílias simultâneas, ou seja, afasta a possibilidade de que pessoa
casada constitua, em paralelo, outro casamento ou união estável.13
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127
O art. 1.723, §1º, Código Civil, por sua vez, ao tratar da união estável,
estabelece que o impedimento para novo casamento relativo às pessoas casadas,
acima indicado, não se aplica à união estável se estiverem separadas de fato ou
judicialmente.14A norma, com efeito, objetiva assegurar que pessoas separadas,
mas não divorciadas, e, que, portanto, estejam impedidas de casar novamente,
possam constituir união estável com outra pessoa. Por outras palavras, embora
impedidas de casar, as pessoas separadas poderão estabelecer união estável com
outrem. A norma, desse modo, reconhece que as pessoas separadas possam
ingressar em nova relação afetiva.15
Na lógica do sistema, portanto, o art. 1.723, §1º, Código Civil, permite que
pessoas separadas de fato ou judicialmente estabeleçam união estável com outra
pessoa, diversa evidentemente de seu cônjuge, com o objetivo justamente de
estimular novas entidades familiares na complexa realidade da vida. 16 A norma
não incide, por isso mesmo, no caso em que pessoas separadas judicialmente
restabeleçam a convivência entre si, hipótese em que se restaura o estado de
casado, anterior à separação (reconciliação de fato dos efeitos matrimoniais no
seio de casamento válido).
Dito diversamente, a interpretação sistemática do inciso VI, art. 1.521, e do
art. 1.723, §1º, determina que podem contrair união estável pessoas separadas de
fato ou judicialmente, tendo por pressuposto lógico a preexistência de casamento
com pessoa distinta.17 Esse é o fio condutor de reiterada jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça:
―É de assinalar, também, ser possível o reconhecimento da união estável,
ainda que um dos companheiros, ou ambos, tenham com outrem vínculo
de casamento, desde que se encontrem separados judicialmente, ou de
fato. É aliás, o que preceitua o artigo 1723, §1º, do Código Civil (...)‖.18
―Observa-se, assim, que o deslinde da causa consistiu na interpretação do
art. 1723, § 1º do CC/02, cujo dispositivo permite o reconhecimento de
união estável entre conviventes quando um deles seja casado, desde que
comprovada a separação de fato ou judicial. É certo que a jurisprudência
desta Egrégia Corte reconhece como união estável a relação entre
conviventes mesmo quando um deles seja casado, desde que comprovada
a separação de fato ou judicial‖.19
―Para a existência jurídica da união estável, extrai-se, da exegese do §1º
do art. 1.723 do Código Civil de 2002, fine, o requisito da exclusividade de
relacionamento sólido. Isso porque, nem mesmo a existência de
casamento válido se apresenta como impedimento suficiente ao
reconhecimento da união estável, desde que haja separação de fato,
circunstância que erige a existência de outra relação afetiva factual ao
degrau de óbice proeminente à nova união estável. Com efeito, a pedra de
toque para o aperfeiçoamento da união estável não está na inexistência de
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vínculo matrimonial, mas, a toda evidência, na inexistência de
relacionamento de fato duradouro, concorrentemente àquele que se
pretende proteção jurídica, daí por que se mostra inviável o
reconhecimento de uniões estáveis simultâneas‖.20
Em consequência, as normas dos arts. 1.521, VI, e 1.723, §1º, Código Civil,
não se aplicam à hipótese em exame, em que as pessoas separadas judicialmente e
que restabelecem a sociedade conjugal vieram do mesmo casamento (reconciliação
de fato). Essas normas pressupõem, portanto, o cônjuge separado de fato ou
judicialmente que estabelece união estável com terceiro, alheio àquela relação. Em
definitivo: na espécie, são as mesmas pessoas que se separaram e voltaram a
conviver, X e Y, hipótese em que a lei não autoriza (e nem poderia fazê-lo, por
impossibilidade lógica) a união estável, tendo em vista que o vínculo matrimonial
não se dissolveu.
Além disso, a disciplina da união estável orienta-se pela sua conversão em
casamento, nos termos do art. 226, §3º21, Constituição da República, a denotar a
preocupação do sistema jurídico em estimular o casamento22 que, por seu rigor
formal, confere elevado grau de segurança jurídica aos cônjuges Em consequência,
há de se prestigiar, na hipótese vertente, o vínculo matrimonial existente e válido
entre o casal, que não se dissolveu com a separação judicial, acompanhado do
regime de bens fixado no pacto antenupcial, precisamente o regime de separação
de bens.
Embora in casunão tenha havido pedido formal ao juiz de reconciliação, a
relação de fato estabelecida pelos cônjuges, que se reconciliaram de fato e voltaram
a viver como se casados fossem, prepondera sobre o requisito formal indicado pelo
art. 1.577, Código Civil. Isto porque, mais uma vez, a preocupação do codificador,
com o dispositivo e seu parágrafo único, dirige-se à proteção de terceiros, que
eventualmente tenham constituído direitos ou obrigações patrimoniais com um
dos cônjuges durante o período de separação. Daí a exigência de controle judicial,
o qual, de resto, embora frequente nos Códigos do Século passado, encontra-se
cada vez menos rígido na jurisprudência e nas legislações contemporâneas. Assim
como as entidades familiares produzem efeito sem o ato formal do casamento,
independentemente do casamento ou até mesmo em detrimento do casamento, a
reconciliação de fato, que restaura a vida comum no curso de casamento válido,
não poderia ser desconsiderada. Cuida-se de mais uma hipótese em que a
realidade da vida (relações de fato ou socioafetivas) há de ser tutelada em
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129
detrimento da forma. No caso da reconciliação, pode-se aduzir, ainda, que o favor
interpretativo ao seu reconhecimento (de fato) é imperativo que decorre do favor
constitucional pró-matrimônio, como acima mencionado (art. 226, §3º, C.R.).
De mais a mais, fosse adotado critério estritamente formal, em desfavor da
interpretação sistemática e teleológica que admite a reconciliação de fato, forçoso
seria concluir que, uma vez válido e íntegro o vínculo matrimonial, vez que ausente
o divórcio, a alteração do regime de bens dependeria de autorização judicial,
mediante pedido motivado, em ação própria, de ambos os cônjuges23, ressalvados,
mais uma vez, os direitos de terceiros (art. 1.639, §2º24, Código Civil).25
Nesse cenário, acolher a pretensão de Y de configuração de união estável
com seu marido X, após a retomada da convivência conjugal antes do divórcio,
representaria violação aos dispositivos do Código Civil que determinam a
integridade do vínculo matrimonial sem o divórcio e, por via transversa, burla à
norma do art. 1.639, §2º, Código Civil.
Diante do exposto, vê-se que o matrimônio entre X e Y, cujos efeitos
haviam sido suspensos durante a separação judicial, voltou a ter eficácia com o
restabelecimento da sociedade conjugal, retornando, portanto, os cônjuges ao
estado anterior à separação, mediante a produção dos efeitos do casamento, com
idêntico regime de separação de bens.
Tal aspecto mostra-se particularmente relevante na medida em que, ao
disciplinar a união estável, conforme já observado em outra sede26, o legislador do
art. 1.72527, Código Civil, não adotou propriamente regime de bens, o que seria
típico do casamento, limitando-se a autorizar a adoção, por empréstimo, do regime
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técnico, os companheiros pudessem se beneficiar da divisão de aquestos
decorrentes do esforço comum.
Significa dizer que, de acordo com o sistema legal, caso viesse a ser
admitida a união estável entre X e Y, em desapreço pelo casamento anterior ainda
em vigor, certo é existir – e ao que parece de modo incontroverso nesses autos –
contrato formal escrito entre os supostos companheiros, isto é, o pacto antenupcial
jamais revogado e que, por insuperável dever de coerência, incidiria para regular,
nos termos do art. l.725, Código Civil, as relações patrimoniais entre eles. Trata-se
de imperativo do princípio da autonomia privada, não havendo dúvida quanto à
vontade manifestada pelas partes na celebração daquele contrato formal.
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Por outro lado, ainda que fosse juridicamente possível a união estável
entre o casal, alterando-se para a convivência o regime de comunhão parcial de
bens, mostrar-se-ia improcedente o pedido de partilha dos dividendos da
companhia auferidos pelo Consulente.
Com efeito, os dividendos das ações da P. S/A representam, segundo
informa o Consulente, a evolução patrimonial da própria empresa, cujas ações
foram adquiridas anteriormente ao casamento. Trata-se de fruto de bem
particular, produzido sem o
concurso do outro cônjuge, que decorre
exclusivamente do trabalho de X.
Ao propósito, o art. 1.660, V28, Código Civil, ao estatuir que os frutos
decorrentes de bens que integram o patrimônio individual se comunicam, presume
que os cônjuges empreenderam esforços comuns para a obtenção desses frutos.
Cuida-se de presunção relativa, a qual admite, portanto, prova em contrário,
compatibilizando-se o preceito com o inciso VI do art. 1.65929, Código Civil, o qual
determina que os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge estão excluídos da
comunhão.30
Desta feita, ao se comprovar que o cônjuge não contribuiu para o
surgimento desses acréscimos patrimoniais do bem individual, os frutos não se
comunicam31, notadamente quando derivam de sociedade alheia ao casamento,
cuja autonomia patrimonial permite que se visualize nitidamente a segregação dos
patrimônios, contrariamente à promiscuidade de fundos que permeia, por vezes,
os patrimônios dos cônjuges.
Compatibilizam-se, assim, os incisos V32 e VI do art. 1.659. Os frutos
resultantes de bem particular e decorrentes de esforço exclusivo do cônjuge titular
do bem não se comunicam, incidindo o disposto no art. 1.659, VI, de modo a
desconstituir a presunção do esforço comum.
Por conseguinte, no caso concreto, ainda que se pudesse admitir, em tese,
o regime de comunhão parcial de bens mediante (i) o reconhecimento,
juridicamente impossível, da união estável; e (ii) a alteração, sem ato formal, do
regime de bens estabelecido em pacto antenupcial; os dividendos da companhia na
qual X figura como acionista não se comunicam, por representarem frutos
decorrentes de bem particular que decorrem de esforço exclusivo do cônjuge
varão.
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Tampouco se comunicaria o imóvel do Rio de Janeiro adquirido na
constância da alegada união estável, tendo em conta que, segundo informa o
Consulente, a aquisição se verificou com valor exclusivamente de X, em subrogação de bem particular, adquirido anteriormente ao casamento com Y (art.
1.659, II33, Código Civil).34
Diante do exposto, revela-se improcedente, à luz do direito brasileiro, o
pedido de Y de reconhecimento da união estável com vistas à incidência do regime
de comunhão parcial de bens. Por outro lado, mesmo que se pudesse admitir a
união estável, ainda assim, afiguram-se insubsistentes os pedidos de (i) alteração
do regime de bens estabelecido no pacto antenupcial; (ii) partilha dos dividendos
das ações da companhia; e (ii) partilha do imóvel do Rio de Janeiro adquirido com
proventos exclusivos do cônjuge varão, em sub-rogação a bem particular.
3. Violação do princípio da boa-fé objetiva por Y. Legítima confiança de
X na manutenção do regime de separação de bens
De outra parte, o pedido de reconhecimento da união estável formulado
por Y, com vistas à incidência do regime de comunhão parcial de bens, afronta a
cláusula geral de boa-fé objetiva, incidente sobre todas as relações jurídicas
patrimoniais, por força do dever imposto pelos arts. 113 e 422, Código Civil.
Princípio fundamental da teoria contratual, destinado a orientar o
comportamento dos particulares no âmbito de situações jurídicas patrimoniais,
notadamente no direito das obrigações, o princípio da boa-fé objetiva tem
incidência nas relações patrimoniais estabelecidas no direito de família. 35
Por outras palavras, o princípio da boa-fé objetiva se aplica às relações
jurídicas patrimoniais que se inserem nas relações jurídicas existenciais
pertinentes ao direito de família, a denotar relações negociais, de caráter
obrigacional e patrimonial, que se encontram imbricadas com as relações
familiares.36 Situam-se aqui questões relacionadas ao regime de bens do
casamento.
Do princípio da boa-fé objetiva aplicável às relações de família, decorre a
observância, pelos cônjuges, de deveres de colaboração, lealdade, honestidade,
informação, dentre outros, na condução das questões patrimoniais concernentes à
relação familiar.37 Especialmente nas relações entre cônjuges, espera-se que os
nubentes ajam de forma leal na dissolução do vínculo e na partilha de bens.
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Além disso, impõe-se que os cônjuges adotem comportamento coerente
relativamente às questões patrimoniais em jogo, preservando-se expectativas
legítimas deflagradas por conduta inicial, que restou reiterada por significativo
lapso de tempo. Por conseguinte, proíbe-se o comportamento contraditório, que
viole a legítima expectativa do consorte, que confiava na manutenção do
comportamento inicial do seu cônjuge ou companheiro, em aplicação do princípio
do nemopotestvenire contra factumproprium.38
Do mesmo modo, também os negócios firmados no âmbito de relações
familiares, de que é exemplo eloquente o pacto antenupcial 39, hão de ser
interpretados em consonância com o escopo econômico comum que orientou os
consortes em sua celebração (arts. 112 e 113, Código Civil).
No caso concreto, Y, após período de separação judicial (18 meses), voltou
a viver com X, pelo significativo lapso temporal de oito anos, restabelecendo o
casamento, com sua plena eficácia, como visto anteriormente. Este casamento,
como antes também analisado, foi acompanhado de pacto antenupcial, livremente
celebrado, sendo incontroversas a sua validade e eficácia, assim como a sua não
extinção pela vontade das partes ou pelo Poder Judiciário. Nesse cenário, a
convivência retomada pelo casal e que se prorrogou por oito anos, vivendo como
casados, despertou em X, que com Y celebrou pacto antenupcial de separação de
bens, a legítima expectativa de que o casamento, com o regime de bens definido
em pacto antenupcial, estaria em vigor. Por conseguinte, o pedido de Y de
reconhecimento de união estável entre o casal, ignorando o casamento
validamente existente e o pacto antenupcial por eles celebrado e jamais extinto,
nem formal nem informalmente, viola a legítima expectativa do cônjuge varão, e
contraria seu comportamento em reconhecer a validade do regime de separação de
bens, a representar venire contra factumproprium, rechaçado pelo princípio da
boa-fé objetiva.
Tais legítimas expectativas, protegidas pelo princípio da boa-fé objetiva,
têm sido amplamente admitidas e tuteladas nas relações familiares, como, de
resto, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
―Sob a perspectiva inescapável da boa-fé objetiva – que deve guiar não
apenas as relações negociais, como também as decorrentes de vínculos
familiares, como um manancial criador de deveres jurídicos entre os
envolvidos, de cunho preponderante ético e coerente, como o são os
deveres de lealdade, de respeito, de honestidade e de cooperação –,
munir-se-á o Juiz de um verdadeiro radar a fim de auscultar a melhor
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forma de concretização das expectativas e esperanças recíprocas outrora
criadas, nascidas do afeto e nutridas pela confiança‖.40
―Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva deve ser
observado e visto sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas
pela figura do venire contra factumproprium (proibição de
comportamento contraditório), que exige coerência comportamental
daqueles que buscam a tutela jurisdicional para a solução de conflitos no
âmbito do Direito de Família‖.41
Ao lado do comportamento contraditório propriamente dito, a conduta de
Y em requerer o reconhecimento da união estável, e nessa esteira, a alteração do
regime de bens pactuado, viola os deveres de lealdade e honestidade na dissolução
do vínculo matrimonial e na partilha de bens, de observância obrigatória por força
do princípio da boa-fé objetiva.
Desse modo, o afastamento do regime de separação de bens e o
reconhecimento da união estável, em menoscabo ao casamento válido mantido
entre os consortes e do pacto antenupcial em sentido contrário, viola o princípio da
boa-fé objetiva que deve nortear os efeitos patrimoniais das relações familiares,
devendo, por isso mesmo, ser coibidos à luz do ordenamento jurídico brasileiro.
*
Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro.
1
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado (...) § 6º. O
casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.
2
Sobre o tema, v., por todos, Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil,
vol. 5, Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 293-294.
3
“Art. 2º. A Sociedade Conjugal termina: I - pela morte de um dos cônjuges; Il - pela
nulidade ou anulação do casamento; III - pela separação judicial; IV - pelo divórcio. Parágrafo único - O
casamento válido somente se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio”.
4
“Art. 1.571. (...) § 1o. O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos
cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente”.Conforme
observado em doutrina, o “término da sociedade conjugal é diferente de extinção do vínculo matrimonial. A
dissolução da sociedade conjugal não dissolve o casamento, permanecendo o vínculo conjugal que impede os
separados de se casarem. (...) Com a mera dissolução da sociedade conjugal, embora cessem principalmente
os deveres pessoais dos cônjuges, não se dissolve o vínculo matrimonial, que impede os separados de se
casarem. Todavia, se a separação do casal for somente de fato, não impede que qualquer deles possa viver em
união estável (art. 1.723, §1º, do Código Civil)” (Álvaro Villaça Azevedo, Direito de família, São Paulo:
Atlas, 2013, p. 212).
5
“Art. 1.571. A sociedade conjugal termina: (...) III - pela separação judicial; IV - pelo
divórcio (...)”.
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134
6
Na síntese de Rolf Madaleno, “a separação judicial não extingue o vínculo do
casamento, ficando aos cônjuges simplesmente autorizados à separação de seus corpos, rompendo a
convivência e não mais respondendo pelos deveres de coabitação e de fidelidade, também encerrando a
comunicação patrimonial dos regimes de comunhão de bens” (Curso de direito de família, Rio de Janeiro:
Forense, 2008, p. 171). Em direção semelhante, Maria Berenice Dias, Manual de direito das famílias, São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 288.
7
Como anotado em doutrina, “o divórcio, pelo inciso IV do art. 1571, é a derradeira
causa pela qual a sociedade conjugal termina e, segundo o § 1º do referido artigo, também dissolve o
casamento válido (§1º) e, se a simples separação, litigiosa ou consensual, não permite que os separandos
venham a novamente casar, isto não ocorre quanto aos divorciados, que podem contrair novo matrimônio.
(...) Determina o §1º do dispositivo em comentário, entretanto, que só haverá dissolução do casamento válido
em caso da morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio (§1º) (...). (Antônio Carlos Mathias Coltroet al.,
Comentários ao novo código civil, vol. 17, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 328). Na jurisprudência: “antes
do divórcio, o casamento é existente, ainda que tenha havido a separação judicial. Destaque-se, ainda, que a
separação judicial não põe termo ao casamento, mas apenas à sociedade conjugal, conforme previsão do
artigo 1571, III, do Código Civil („A sociedade conjugal termina: (...) III – pela separação judicial; (...)‟).
Em outras palavras, após a separação judicial, o vínculo do matrimônio segue existente, a despeito da
dissolução da sociedade conjugal. Da mera leitura do sobredito dispositivo legal já se pode inferir que a
separação dos cônjuges não é o mesmo que o divórcio. De fato, trata-se de institutos jurídicos distintos e,
nessa medida, produzem efeitos que não se confundem” (STJ, REsp 1129048/SC, 3ª T., Min. Massami
Uyeda, Julg. 15.12.2009, DJe 3.2.2010).
8
Nessa direção, cf. o entendimento consolidado do STJ: “Casamento (efeitos jurídicos).
Separação de fato (5 anos). Divórcio direto. Partilha (bem adquirido após a separação). Em tal caso, tratandose de aquisição após a separação de fato, à conta de um só dos cônjuges, que tinha vida em comum com outra
mulher, o bem adquirido não se comunica ao outro cônjuge, ainda quando se trate de casamento sob regime
de comunhão universal. Precedentes do STJ: por todos, o REsp 140.694, DJ de 15.12.97. Recurso especial
não conhecido” (STJ, REsp 67678/RS, 3ª T., Rel. Min. Nilson Naves, Julg. 19.11.1999);“Este Tribunal
consolidou a orientação de que, constatada a separação de fato, cessam os deveres conjugais e os efeitos da
comunhão de bens, motivo pelo qual os cônjuges não fazem mais jus aos bens adquiridos pelo outro” (STJ,
Ag no AI 1.268.285/SP, 4ª T., Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Julg. 5.6.2012).
9
A finalidade da norma legal é incontroversa: “Não faz sentido a comunicabilidade dos
bens quando já desfeito o casamento pela separação do casal, a ensejar indevido locupletamento do cônjuge
que não deu sua colaboração ao ato aquisitivo do patrimônio após a separação de fato” (Maria Berenice Dias,
Manual de direito das famílias, cit., p. 204). V. tb. Antônio Carlos Mathias Coltroet al., Comentários ao
novo código civil, cit., p. 419: “Poderá ocorrer de o casal, antes da separação judicial, encontrar-se separado
de fato, tendo um ou os dois adquirido bens nesse período, os quais, entretanto e quando da concretização
judicial da separação, não serão objeto de partilha, já que inexistente comunicação no tocante a eles. Com
efeito e finda a afeição existente entre os cônjuges, disto resultando a separação de fato que acaba por levar à
judicial, não se tem como justo venham a se comunicar os bens que um ou ambos adquiram no curso da
separação fática, porquanto e conforme referido em precedente paulista que teve como relator o culto Des.
Campos Mello, „(...) se o bem foi adquirido quando nada mais havia em comum entre o casal, repugna ao
Direito e à moral reconhecer comunhão apenas de bens e atribuir metade desse bem ao outro cônjuge‟”.
10
Sobre o tema, v. Rolf Madaleno, Curso de direito de família, cit., p. 66-67: “O afeto é
a mola propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor,
para ao fim e ao cabo dar sentido e dignidade à existência humana. A afetividade deve estar presente nos
vínculos de filiação e de parentesco, variando tão-somente na sua intensidade e nas especificidades do caso
concreto. Necessariamente os vínculos consanguíneos não se sobrepõem aos liames afetivos, podendo até ser
afirmada a prevalência desses sobre aqueles. O afeto decorre da liberdade que todo indivíduo deve ter de
afeiçoar-se um a outro, decorre das relações de convivência do casal entre si e destes para com seus filhos,
entre os parentes, como está presente em outras categorias familiares, não sendo casamento a única entidade
familiar”. Cf., na mesma direção, Maria Berenice Dias, Manual de direito das famílias, cit., p. 71-72.
11
“Art. 1.577. Seja qual for a causa da separação judicial e o modo como esta se faça, é
lícito aos cônjuges restabelecer, a todo tempo, a sociedade conjugal, por ato regular em juízo. Parágrafo
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135
único. A reconciliação em nada prejudicará o direito de terceiros, adquirido antes e durante o estado de
separado, seja qual for o regime de bens”.
12
STJ, REsp 1107192/PR, 3ª T., Rel. Min. Massami Uyeda, Rel. p/ acórdão Min. Nancy
Andrighi, Julg. 20.4.2010. Veja, ainda na jurisprudência da 3ª Turma do STJ: “Da mera leitura do sobredito
dispositivo legal já se pode inferir que a separação dos cônjuges não é o mesmo que o divórcio. De fato,
trata-se de institutos jurídicos distintos e, nessa medida, produzem efeitos que não se confundem. Não é por
outra razão que o próprio Código Civil designa de „cônjuges‟ aqueles que são separados judicialmente, mas
que não tenham se divorciado. A referência, no ponto, é ao artigo 1577 do Código Civil, que dispõe ser lícito,
após a separação judicial, „aos cônjuges restabelecer, a todo tempo, a sociedade conjugal, por ato regular
em juízo‟” (STJ, REsp 1129048/SC, 3ª T., Min. Massami Uyeda, Julg. 15.12.2009).
13
Na dicção do preceito legal: “Art. 1.521. Não podem casar: (...) VI - as pessoas
casadas”. Em doutrina, percebe-se nitidamente a preocupação do legislador em coibir relações
extraconjugais: “Esta proibição de casamento entre pessoas casadas é coerente com o Princípio da
Monogamia, que prevê a exclusividade nas relações afetivas que tenham sexualidade como pano de fundo.
Esta vedação permanece até a dissolução do vínculo conjugal. Uma pessoa casada não pode constituir uma
união estável, isto é, uma outra família paralela ao casamento, ou mesmo, à outra união estável. Caso isto
ocorra, a relação será um concubinato adulterino, ou simplesmente concubinato (...)” (Rodrigo da Cunha
Pereira, Comentários ao novo código civil, vol. 10, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 58). V., no mesmo
sentido, Zeno Veloso, Código civil comentado, vol. 17, São Paulo: Atlas, 2003, pp. 122-123: “Como o
princípio monogâmico é fundamental no direito de família brasileiro, enquanto persistir o vínculo
matrimonial, a pessoa casada não pode casar-se novamente, e o casamento válido só se dissolve pela morte
de um dos cônjuges ou pelo divórcio (...). E se o casado não pode casar novamente, cometendo, inclusive, se
o fizer, crime de bigamia (Código Penal, art. 235), não pode, igualmente, constituir família pela união
estável. O relacionamento afetivo de uma pessoa casada, com outra, que não seu cônjuge, implica em
adultério, e não se considera, obviamente, união estável”.
14
“Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de
constituição de família. § 1o. A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521;
não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou
judicialmente”.
15
No ponto, v. Rodrigo da Cunha Pereira, Comentários ao novo código civil, cit., pp.
42-43.
16
Como sublinhado por Rolf Madaleno: “Já de longo tempo tem sido praticamente
incontroverso que a separação de fato autoriza a formação de uma nova entidade familiar, e isto restou
definitivamente consolidado com a expressa ressalva do atual §1º, do artigo 1723 do Código Civil, ao corrigir
a flagrante falha verificada na edição da Lei nº 8971/94, anteriormente corrigida pela Lei nº 9278/96. É a
convivência e não o casamento meramente formal que condiciona a formação ou não de um novo
relacionamento” (Curso de direito de família, cit., p. 790).
17
Anota Zeno Veloso: “Porém, se o cônjuge está separado de fato do outro, não há
impedimento, e o separado de corpos pode estabelecer nova família, mediante união estável” (Código civil
comentado, cit., p. 125).
18
STJ, REsp. 1107192/PR, 3ªT., Rel. Min. Massami Uyeda, Rel. p/ acórdão Min. Nancy
Andrighi, Julg. 20.4.2010 – Voto Vencido; grifou-se.
19
STJ, REsp. 1.018.205/DF, 4ª T., Rel. Min. Honildo Amaral de Mello Castro, Julg.
15.12.2009; grifou-se
20
STJ, REsp 912926/RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Julg. 5.8.2010; grifou-
se.
21
“Art. 226. (...)§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
136
22
Sobre o ponto v. Rodrigo da Cunha Pereira, Comentários ao novo código civil, cit., p.
204.
23
Confira-se, no comentário doutrinário, o rigor formal exigido pelo Codificador para a
alteração do regime de bens, na mesma tendência judicializante que presidiu o art. 1.577: “Para que os
cônjuges possam modificar o regime de bens, legal (desde que não seja obrigatório, art. 1641) ou
convencional, após o casamento, são necessários três requisitos cumulativos: (a) autorização judicial; (b)
motivação relevante; (c) ressalva dos direitos de terceiros. (...) O pedido deve ser dirigido ao juiz competente,
segundo a respectiva organização judiciária, em ação própria, postulada por advogado comum. Somente será
possível o seguimento do pedido se ambos os cônjuges forem autores do pedido; a recusa ou reserva de
qualquer deles impedirá o deferimento. A falta de anuência do cônjuge recalcitrante não poderá ser suprida
pelo juiz. A alteração produzirá efeitos entre as partes com base na decisão judicial” (Paulo Luiz Netto Lôbo,
Código civil comentado, vol. 16, São Paulo: Atlas, 2003, p. 234).
24
“Art. 1639. (...) § 2o. É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização
judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e
ressalvados os direitos de terceiros”.
25
Sobre a reconciliação entre cônjuges, anota Antônio Carlos Mathias Coltro: “Basta a
vontade dos separados para que possa ocorrer a reconciliação, tenha a separação sido ou não consensual,
voltando o casal a se submeter aos direitos e deveres decorrentes do casamento e tornando a produzir efeitos
o regime matrimonial anteriormente adotado, para cuja alteração haver-se-á proceder nos termos do art.
1.639, § 2º, ficando sem efeito, no tocante aos bens que ainda possuírem, a partilha de bens ocorrida na
separação, com ressalva a direitos de terceiros, adquiridos anteriormente e durante o estado de separação e
em relação aos quais a reconciliação não pode interferir. (...)” (Comentários ao novo código civil, cit., pp.
422-423). Na jurisprudência, cf: STJ, AgRg AI 1.336.311/SP, Rel. Min. Ricardo Villas BôasCueva, Julg.
21.8.2012; STJ, REsp. 776455/RS, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, Julg. 17.4.2012.
26
“O art. 1.725 do Código Civil, reconhecendo a aplicação analógica do regime de
comunhão parcial à união estável, traduz longa evolução doutrinária e jurisprudencial. A inovação, todavia,
deve ser compreendida com ressalvas. A natureza do regime de bens se associa ao ato jurídico formal de
constituição da família, justificando-se a amplitude de seu espectro de incidência na vida patrimonial dos
cônjuges em razão da publicidade derivada do registro do ato matrimonial no cartório competente, em favor
da segurança de terceiros. Disso decorre que a união estável invoca a disciplina da comunhão parcial no que
concerne exclusivamente à divisão dos aquestos, não já no que tange aos demais aspectos do regime
patrimonial atinentes, como, por exemplo, à outorga conjugal para a alienação dos bens (art. 1.647, I, Código
Civil) ou para a celebração do contrato de fiança (art. 1.647, III)” (Gustavo Tepedino, Controvérsias sobre a
sucessão do cônjuge e do companheiro. In: Pensar, Fortaleza, v. 17, n. 1, jan./jun. 2012, pp. 151-152).
27
“Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se
às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.
28
“Art. 1.660. Entram na comunhão: (...) V - os frutos dos bens comuns, ou dos
particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a
comunhão”.
29
“Art. 1.659. Excluem-se da comunhão: (...) VI - os proventos do trabalho pessoal de
cada cônjuge;”.
30
Ao analisar os dispositivos da Lei 9.278/96, assinala Antônio Junqueira de Azevedo:
“a presunção de que os bens (...) são fruto do trabalho e da colaboração comum (...) não é aí a absoluta (iuris
et de iure) e sim a relativa (iuris tantum), representando consolidação do que a jurisprudência dominante
vinha decidindo. A regra geral é a de que as presunções legais admitem contraprova; sua finalidade é inverter
o ônus da prova, atendendo ao quod plerumquefit, no interesse daquele em favor do qual ela foi instituída.
Normalmente, as presunções não „congelam‟ artificialmente a realidade e admitem a produção de prova
contrária ao fato presumido. Esse é, aliás, o espírito do processo civil moderno, pautado pela amplitude dos
meios de prova (art. 332 do Código de Processo Civil). (...) A regra permanece, pois, a mesma: ausente
previsão legal quanto ao caráter absoluto ou relativo da presunção, ela é relativa” (Incomunicabilidade dos
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
137
proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge no regime da comunhão parcial dos Códigos Civis de 1916 e
2002. Extensão da Incomunicabilidade aos Bens Móveis ou Imóveis Sub-rogados. Incomunicabilidade de
Bem Imóvel Adquirido durante a União Estável Anterior ao Casamento, por ser Relativa a Presunção do art.
5º da Lei nº 9.276/96. In: Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado, Rio de Janeiro: Saraiva, 2009, pp.
510-511).
31
Na jurisprudência do STJ, confira-se: “Dessa forma, em sendo o regime da comunhão
parcial de bens o aplicável para o presente caso, deve-se estar atento aos princípios que regem tal regime, em
especial ao do patrimônio adquirido pelo esforço comum dos companheiros, como premissa inicial para a
partilha em julgamento. (...) É preciso destacar que, além de a aquisição ocorrer durante o período de
convivência, é necessária a presença de um segundo requisito, qual seja, que esse crescimento patrimonial
advenha do esforço comum, mesmo que presumidamente. A valorização de cota social, pelo contrário, é
decorrência de um fenômeno econômico, dispensando o esforço laboral da pessoa do sócio detentor. Logo,
não se faz presente, mesmo que de forma presumida, o segundo requisito orientador da comunhão parcial de
bens, que é o esforço comum. Não há, portanto, relação entre a comunhão de esforços do casal e a
valorização das cotas sociais que o companheiro detinha antes do período de convivência.” (STJ, REsp.
1.173.931/RS, 3ª T., Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Julg. 22.10.2013). No mesmo sentido: “Na
hipótese dos autos, apurou-se nas instâncias ordinárias que o ora recorrente já era detentor de 50% do capital
da empresa antes mesmo de iniciar a união estável. Também restou assente que não teria havido desvio de
bens particulares para a empresa. Desse modo, verifica-se que a evolução patrimonial da sociedade decorreu
apenas do êxito empresarial, nada havendo a partilhar com a ex-companheira do recorrente, nos termos do
precedente supracitado.” (STJ, REsp. 1338943, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Julg. 1.8.2014).
32
“Art. 1.659. Excluem-se da comunhão: (...) V - os bens de uso pessoal, os livros e
instrumentos de profissão;”.
33
“Art. 1.659. Excluem-se da comunhão: (...) II - os bens adquiridos com valores
exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares;”.
34
Registra, ao propósito, a doutrina: “Na hipótese do inc. II, não há uma aquisição pura,
mas mera substituição de bens, ainda que tal substituição pudesse constituir um acréscimo patrimonial. (...)
os bens adquiridos com o produto da venda de bens particulares incomunicáveis tomam lugar destes bens e
passam a se revestir da mesma incomunicabilidade dos alienados” (Fredie Didier Júniret al., Comentários ao
código civil brasileiro, vol. 15, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 115).
35
Como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “O princípio da boa-fé objetiva (art.
422 do Código Civil) rege as relações de família sob o prisma patrimonial. (...) o princípio da boa-fé objetiva
(art. 422 do Código Civil) também rege as relações de família, sob o prisma patrimonial e não meramente
existencial (...)” (STJ, REsp. 1164887/RS, 3ª T., Rel. Min. Ricardo Villas BôasCuevas, Julg. 24.4.2014).
36
Anota Anderson Schreiber: “embora aplicando-se efetivamente a boa-fé em seu
sentido objetivo, não se está diante de uma relação de família propriamente dita, mas tão-somente de uma
relação negocial situada em um contexto de direito de família. Assim, por exemplo, as decisões que analisam
o efeito vinculante dos chamados ajustes de divisão de bens celebrados „por fora‟ no momento da dissolução
da união conjugal. Em tais hipóteses, a relação que se examina tem natureza obrigacional, patrimonial, não
restando dúvida quanto à aplicabilidade da boa-fé objetiva, como é natural a um conceito concebido e
aperfeiçoado no direito das obrigações. O contexto do direito de família, embora possa interferir na decisão
do conflito concreto, não afasta, certamente, a incidência da cláusula geral em virtude da própria natureza da
controvérsia.” (O Princípio da boa-fé objetiva no direito de família. In: Maria Celina Bodin de Moraes,
Princípios do direito civil contemporâneo, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 452).
37
Na doutrina especializada: “Ao delinearmos os contornos dogmáticos da boa-fé
objetiva nas relações familiares, a definimos como um princípio geral de colaboração e lealdade recíproca
entre os sujeitos, que se traduz por meios dos deveres concretos de cooperação mútua e recíproca, de
lealdade, de cuidado e de preservação das expectativas geradas. (...)” (Fernanda Pessanha do Amaral Gurgel,
O princípio da boa-fé objetiva no direito de família. In: Revista Brasileira de Direito das Famílias e
Sucessões, nº 12, vol. 11, Belo Horizonte: IBDFAM, out.nov./2009, pp. 99-100).
38
V. a célebre decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do
Recurso Extraordinário 86787/RS, no qual os cônjuges que pretendiam a dissolução do casamento, embora
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138
domiciliados no Brasil, haviam contraído matrimônio no Uruguai com o objetivo de se aplicar, quanto ao
regime de bens, a lei uruguaia que determinava, no silêncio das partes, a separação de bens. De acordo com a
lei brasileira, de ordem pública (art. 7º, § 4º, LINDB), o regime de bens rege-se pela lei do país em que os
nubentes se encontram domiciliados no momento do casamento, no caso o Brasil, a qual determinava, na
ausência de pacto antenupcial, o regime da comunhão. O Ministro Leitão de Abreu, em seu voto, ressaltou
que a prática, pelos cônjuges, de diversos atos posteriores ao casamento que indicavam a vontade inequívoca
de adotar o regime da separação de bens, impediria a conduta contraditória do nubente em sustentar, anos
depois, que o regime de bens do casal seria o da comunhão, em manifesta violação ao princípio segundo o
qual não pode a parte venire contra factumproprium.
39
“Ademais, o pacto antenupcial, apesar de se inserir na seara do direito de família, se
apresenta como um contrato celebrado entre os nubentes, os quais estipulam as cláusulas que irão reger a sua
vida patrimonial após o casamento, e, como tal, se sujeitam à cláusula geral da boa-fé objetiva, consoante
preconizado no art. 422 do Código Civil” (Verônica Rodrigues de Miranda, A boa-fé objetiva no direito de
família. In: Revista dos Tribunais, ano 102, vol. 927, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan./2013, p. 110).
40
STJ, REsp 1.025.769/MG, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, Julg. 24.8.2010.
41
STJ, REsp 1087163/RJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, Julg. 18.8.2011.
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139
ATUALIDADES
O USUCAPIÃO ORDINÁRIO E O JUSTO TÍTULO
Ruy Rosado de Aguiar Júnior1
1. O art. 551 do CC/1916 e o atual art. 1.242 do CC/2002 definem o usucapião
ordinário, e entre seus requisitos incluem boa-fé e justo título.
A orientação predominante, de antes e de agora, entende como justo título
aquele hábil a transferir o domínio, o que não aconteceria por um vício de origem
ou defeito de forma, comumente na hipótese de compra e venda a non domino.
Penso que tal decorre da preeminência dada ao domínio, em detrimento
da posse (dos forçados, em favor dos forçadores, na expressão de Pontes de
Miranda). O muito ilustre José Osório de Azevedo Júnior, que trata desses temas
com maestria, observou:
―E
circunstâncias (após o CC/16), e adotada a propriedade como
direito absoluto, a consequência não poderia ser outra: a posse perdeu
grande parte de sua relevância jurídica e social, passando a ser
í
‖ 2.
2. A par disso, convém lembrar que tem sido abrandado o entendimento
q
―
í
‖
ã
ordinário.
3. Em primeiro, passou-se a dispensar o registro da escritura pública:
―A
ído na compreensão no tocante ao justo
título, assim considerado como suficiente a embasar usucapião ordinária.
A entender que o título, para ser justo, deva, além de válido, certo e real,
ser registrado, chegaríamos à conclusão de que o domínio já estaria
cabalmente adquirido, pois obedecidas todas as formalidades legais
í
í
‖ 3.
4. Em segundo, permitiu-se, com certa predominância, que contrato outro (não o
de compra e venda) pudesse preencher esse requisito, tal como acontece com a
promessa de compra e venda:
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
140
―P é
h
é
inclinam-se a alargar o conceito de justo título e inserir nessa categoria
aqueles que não atendem ao plano da eficácia, no que concerne à sua
aptidão de transferir a propriedade imobiliária, mas que no âmbito da
existência e da validade encontram-se hígidos. É a hipótese, por exemplo,
dos instrumentos de promessa de compra e venda quitados, que a
jurisprudência vem reconhecendo sua aptidão para justificar a usucapião
ordinária, desde o precedente firmado no vetusto REsp 32.972/SP, rel.
p/acórdão Ministro Nilson Naves, julgado em 19.3.1996, embora tenha
h
çõ
‖ 4.
A Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
aceitou como justo título uma cessão de direitos possessórios feita por instrumento
particular: a posse, não sendo um direito real, pode ser transferida por essa
forma5.
5. Em terceiro, admitiu-se que o título poderia não se apresentar na forma de um
documento, podendo decorrer de atos, declarações e circunstâncias:
―N q
ã
í
çã
considerando-se que este é compreendido em todo ato ou circunstância
que leva uma pessoa de boa-fé à crença de que a coisa que possui ele a
h
í
‖ 6.
6. P
ú
q
q
h
q
―
í
‖
çã
usucapião, é o justo título da posse. É o ato que justifica juridicamente o exercício
da posse. É a causa determinante do fato da posse, pois no usucapião tratamos de
posse, não de propriedade.
Lembro a lição de Colin &Capitant:
―E
çã
-se-ia afirmar que existe justo título sempre que
um indivíduo, reunindo as condições gerais da posse, se houvesse
instalado num imóvel regularmente, seja em consequência de uma venda,
de um legado, de uma partilha, de uma sentença, etc., e não como
usurpador. [...] O justo título, em outros termos, seria de se considerar
unicamente um elemento da boa- é‖7.
Justo é o título que está de acordo com a ordem jurídica. O possuidor que
exerce a posse mediante uma relação admitida pela ordem jurídica, como acontece
com aquele que recebe a posse do proprietário com a promessa de transferência da
propriedade, exerce posse justa e tem título para isso.
Segundo Arnaldo Rizzardo, o significado de justo traduz-se em ato
conforme a justiça, a equidade, a razão, ou seja, em ato imparcial, reto, exato,
legítimo. Opõe-se à ideia de ato injusto, injurídico ou fraudulento8.
No âmbito da posse e de seu efeito, não interessa saber se há título que
possa significar a transferência de domínio, que disso não se trata. Ademais, quem
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
141
detém um título destinado a transferir o domínio, e se tal título está de acordo com
a ordem jurídica, raramente necessitaria ele de alguma providência para obter a
transferência do domínio. Se o título não atende a essa finalidade, não é justo, isto
é, não está de acordo com a lei que regula a transferência da propriedade.
Aproximar a ideia de justo título à de transferência de domínio parece-me um
equívoco que, apesar de vetusto, não se justifica. Pontes de Miranda, o sábio, já
: ―A
é
‖ 9.
Serpa Lopes teve a exata noção do conceito de justo título (embora, no
final, termine por exigir sua transcrição):
―Tí
é
í
um direito. Para o efeito da posse, a noção de título corresponde aos seus
respectivos modos aquisitivos, em virtude do que por justo título
entende-se aquele que é causa jurídica legítima de uma aquisição de
posse. Pode ser representado não só por um fato jurídico – a apreensão –
ó
í
‖10.
7. O Enunciado 302, aprovado na IV Jornada de Direito Civil promovida pelo CEJ,
acolheu a
: ―P
í
-fé o ato
jurídico capaz de transmitir a posse ad usucapionem, observado o disposto no art.
113
Có
C
‖.
8. No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já assim votei na Apelação Cível n°
589.019.629, de que fui relator:
―O
í
q
ã
definido em termos bem restritos, a tal ponto que a experiência forense
raramente registra pedido de usucapião por este fundamento, podendo
dizer-se que a interpretação restritiva praticamente impede a incidência
da norma. Apesar da predominância desse entendimento na doutrina e
na jurisprudência, penso que se deve reexaminar o tema para definir-se
como justo título aquele que legitima o fato da posse, pois o justo título
não há de ser o da propriedade, mas, tão-só, o da posse. Pedro Nunes
invoca a lição de Câmara Leal para, primeiramente, definir como título o
motivo jurídico pelo qual o possuidor começou a deter a coisa e a havê-la
como própria, e como justo título o que se apresenta com veemente
aparência de legitimidade (NUNES, Pedro. Do Usucapião: teoria, ação,
prática processual, formulários, legislação, regras e brocardos de direito
romano, jurisprudência. 4. ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1984. p. 43).
Para ser título, em se tratando de usucapião, deve-se considerar apenas o
título da posse; para ser justo, basta que sirva para legitimar a existência
do fato, de acordo com as regras jurídicas vigentes. Nesse conceito,
portanto, o justo título da posse é aquele que serve para legitimar a
consciência do possuidor de que tem direito à posse do bem em razão de
um ato juridicamente admitido pelo ordenamento. Tem justo título para a
posse aquele que passa a ocupar o imóvel, com ânimo de dono, em razão
de um contrato de promessa de compra e venda celebrado com aquele
que detinha a titularidade do domínio ou com aquele que também era
titular de uma promessa de compra e venda registrada, como ocorre no
Revista Brasileira de Direito Civil Volume 2 | Dezembro de 2014
142
caso dos autos, pois ambos podiam alienar o domínio e estavam
legitimados a transferir a posse do bem. É verdade que a v. sentença
apelada tem em seu prol ensinamentos os mais respeitáveis, mas é
preciso interpretar a lei de acordo com os fins sociais a que ela se destina,
em obediência aos princípios indicados na lei de introdução e aos
enunciados na nova Constituição Federal, de tal modo que o dispositivo
legal que prevê a usucapião ordinária, em tempo curto, também possa ser
aplicado em favor do possuidor com ânimo de dono que tenha ingressado
no imóvel em razão de um título outorgado por quem lhe poderia
transferir legitimamente a posse. É preciso distinguir entre a usucapião
extraordinária, que favorece a todos, inclusive aos de má-fé, e a ordinária,
em benefício daqueles que de boa-fé e legitimamente recebem a posse do
ó ‖11.
9. Mais tarde, no egrégio Superior Tribunal de Justiça, deixei consignado o mesmo
entendimento em voto vogal:
―S . P
. C
çã
í
h
pouco mais extensivo. Parece-me que o justo título para permitir a
usucapião ordinária é aquele que legitima a posse – justo título para o
exercício da posse. A interpretação que sempre se deu no Brasil de que o
juto título é aquele capaz de transferir o domínio, apenas não o faz por
um defeito formal, é muito restrita e até hoje não vi nenhum caso a que se
aplicasse esse dispositivo legal. Na verdade, o que interessa na usucapião
é a posse, e a posse com justo título é que tem esse tratamento especial
Có
‖12.
No Recurso Especial n° 171.204/GO, em julgamento da egrégia Quarta
Turma, que aceitou o compromisso de compra e venda não registrado, assim votei,
inaugurando a divergência:
―S . P
.P ç
ç
.O
. 62/63 é
uma escritura pública de compromisso de compra e venda que não foi
registrada por dificuldades com o parcelamento do solo. Mas o Tribunal
tem dado eficácia para esses documentos. Ora, o possuidor tem uma
posse fundada nesse título e, diz a lei, o justo título permite o usucapião
ordinário. O que é o justo título? Há muitos anos venho sustentando que
justo título é aquele que explica juridicamente o exercício da posse. O
recorrente faz citações de doutrina nesse sentido. Então, ele tinha um
título que justificava sua posse, a qual já somava quatro anos como posse
própria, mais a posse de quem lhe transmitiu. No momento em que o
Tribunal afastou isso, violou a regra que permite o usucapião e a soma da
‖13.
10. Parece indiscutível que a atual tendência do nosso legislador é a de criar novos
instrumentos para consolidação do direito do possuidor de área urbana ou rural,
como se vê na Constituição da República, no Código Civil e em várias leis esparsas,
de que é exemplo a Lei n° 11.977/200914. Nesse contexto, não pode prevalecer o
vetusto princípio formado segundo outros conceitos, que despreza a natureza
jurídica da posse justa como requisito do usucapião ordinário.
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143
1
Ministro aposentado do STJ. Advogado.
2
AZEVEDO JÚNIOR. José Osório de. Atualidade da posse no direito brasileiro. In:
AMORIM, José Roberto Neves; ELIAS FILHO, Rubens Carmo (Coord.). Estudos avançados de direito
imobiliário. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. p. 238.
3
RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de usucapião. 3. ed. adaptada ao Estatuto da
Cidade e ao novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 2, p. 780.
4
STJ. REsp n° 941.464/SC, Quarta Turma, rel. Min. Luis Felipe Salomão, ac. de
24.4.2012.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=1140034&sReg=200700781588&sData
=20120629&formato=PDF>. Acesso em: 2 jun. 2014.
5
TJRS, ac. de 22.9.1965, na Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, n. 72, p. 176.
6
NUNES, Pedro. Do usucapião: teoria, ação, prática processual, formulários,
legislação, regras e brocardos de direito romano, jurisprudência. 4. ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1984. p. 40.
7
COLIN, Ambroise; CAPITANT, Henri. Curso Elemental de Derecho Civil. Madrid:
Reus, 1942. t. 2, p. 936.
8
RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Aide, 1991. v. 1, p. 435.
9
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte
especial. Atualizado por Giselda Hironaka, Paulo Lôbo [e] Euclides de Oliveira. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012. t. 60, p. 277.
10
SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil: direito das coisas:
princípios gerais, posse, domínio e propriedade imóvel. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962. v. 6, p.
142.
11
TJRS. Apelação Cível n° 589.019.629, Quinta Câmara Cível, rel. Des. Ruy Rosado de
Aguiar Júnior, julgado em 5.9.1989. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, n. 146, p. 238.
12
STJ. Voto no REsp n° 73.029/DF, Quarta Turma, rel. Min. Sálvio de Figueiredo
Teixeira,
ac.
de
25.11.1997.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/documento/mediado/?num_registro=199500432722&dt_publicacao=1603-1998&cod_tipo_documento=>. Acesso em: 2 jun. 2014.
13
STJ. Voto no REsp n° 171.204/GO, Quarta Turma, rel. Min. Aldir Passarinho Junior,
ac.
de
26.6.2003.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=1115374&sReg=1998002
58906&sData=20040301&sTipo=2&formato=PDF>. Acesso em: 2 jun. 2014.
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144
14
BRASIL. Lei n° 11.977, de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha
Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas;
altera o Decreto-Lei n° 3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis n°s 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de
31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida
Provisória n° 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11977.htm>. Acesso em: 2 jun. 2014.
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145
RESENHAS
REGULAÇÃO DA INTERNET E PROMOÇÃO DE DIREITOS E
LIBERDADES CIVIS
Resenha de MARTINS, Guilherme Magalhães (Coord.). Direito privado e Internet.
São Paulo: Atlas, 2014.
Fabiano Pinto de Magalhães*
O professor Guilherme Magalhães Martins publica, sob sua coordenação, o
livro Direito privado e Internet, que, formado pela coletânea de artigos de
renomados autores, aborda a relação entre Direito e Internet em diversas situações
possíveis. A obra, atenta aos novos desafios e interesses e às novas situações
jurídicas, existenciais e patrimoniais, surgidos pelo uso da Internet, propõe
questionamentos e reflexões fundamentais, abordando as mais recentes inovações
normativas ou propostas de alterações legislativas, como o Projeto de Lei do
Senado nº 281/2012 (que acrescenta dispositivos ao Código de Defesa do
Consumidor sobre o comércio eletrônico), o Decreto nº 7.962/2013 (que
regulamenta o CDC para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico) e a Lei
nº 12.965/2014 (que institui o chamado Marco Civil da Internet).
O lançamento não poderia se dar em momento mais oportuno, pois
coincide com a promulgação do Marco Civil da Internet, marco regulatório que
estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.
O Marco Civil, constituído a partir de um amplo e inovador processo de
participação e deliberação populares realizado na Internet, representa um modelo
civil de regulação – que o diferencia qualitativamente de anteriores propostas de
regulação penal, mediante a criminalização de certas condutas, como a chamada
lei Azeredo –, com inegável caráter principiológico e enunciativo de direitos civis.
O texto normativo dispõe sobre relevantíssimas questões, entre as quais se
destacam a liberdade de expressão, a neutralidade da rede, a privacidade e a
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proteção de dados pessoais, o direito de acesso à Internet a todos e o regime
próprio de responsabilidade civil.
Desde a sua elaboração, alguns pontos são objeto de intensas discussões
quanto a constitucionalidade, adequação, âmbito de incidência e extensão:
neutralidade, pacotes de dados e liberdade dos modelos de negócios promovidos
na Internet; privacidade, proteção de dados pessoais, consentimento informado e a
inadequação dos modelos tradicionais de sua obtenção; diversidade dos regimes
de guarda de registros de conexão e de guarda de registros de acesso a aplicações
da Internet; e o regime de responsabilidade civil do provedor de conexão à
Internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.
Não há dúvida de que os problemas não se encerram por aqui. Diante da
incapacidade de previsão de todas as hipóteses fáticas, o legislador corretamente
fugiu da técnica regulamentar e recorreu ao modelo de princípios e cláusulas
gerais para estabelecer um texto normativo dotado de maior vagueza e abertura
semântica, que lhe garantem maior potencialidade expansiva para aplicar-se a
situações não previstas ou que sequer surgiram.
No âmbito da Internet, é ainda maior a possibilidade de surgimento de
novas situações, antes não imaginadas, que, malgrado a inexistência de previsão
legislativa específica, devem merecer a atenção do Direito, cabendo ao intérprete
buscar no ordenamento jurídico soluções para eventuais conflitos.
De fato, a criação da Internet potencializou o desenvolvimento da
denominada Sociedade da Informação, cujas específicas características (como a
lógica de redes aberta, descentralizada e não hierárquica, a penetrabilidade social
dos efeitos das novas tecnologias, a aproximação virtual e a interatividade)
contribuíram para a produção de significativos impactos nas diversas formas de
interação social e em todas as esferas da atividade humana.
A Era da Informação impõe, assim, um novo paradigma, transformando os
padrões gerais de comunicação e o padrão de comportamento esperado e
modificando as formas de organização, processamento e intercâmbio de
informação, através de uma infraestrutura de redes sociais e mídia. No entanto,
diante da incapacidade da atenção humana a todo o volume extraordinário de
informação, alerta-se quanto aos inevitáveis encurtamentos e simplificação das
mensagens eletrônicas, em prejuízo da transmissão de ideias profundas que
demandem reflexão e contemplação críticas.
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A imensa facilidade de conexão com outras pessoas e de formação de
comunidades, a velocidade e o amplo alcance para pesquisa e conhecimento, e as
inúmeras alternativas de diversão e entretenimento são apenas outras
funcionalidades desta nova ferramenta tecnológica.
Mas a Internet não se restringe a isto. Ela constitui importante meio de
expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação e, ainda,
uma das principais formas de acesso à informação, com reflexos nas mídias
tradicionais. Há pesquisa, por exemplo, que indica que aproximadamente 40% dos
jovens americanos com menos de 30 anos se informam e obtêm acesso a notícias
principalmente através de redes sociais.
Este fato demonstra a necessidade de garantia da Internet como espaço
livre, aberto e democrático de manifestação de pensamentos, opiniões e ideias e
difusão de conhecimento e informação, em ordem a favorecer um amplo debate
público e novas modalidades de ação e participação políticas e de controle do
Poder Público.
A revolução tecnológica provoca transformações, ainda, na economia e na
cultura, constituindo nova plataforma para transações comerciais e consumo e
permitindo novos modelos de negócios e de criação e difusão de conhecimento.
Há, portanto, necessidade de adequada regulação jurídica da Internet para
manter suas características originais de abertura e liberdade, com vistas à tutela e
promoção da pessoa humana.
Ciente deste rico e complexo cenário, a obra não se restringe ao Marco
Civil e analisa outros temais atuais e sensíveis sobre o ambiente virtual, e se
propõe a fomentar valiosas reflexões e sugerir possíveis soluções. O livro é
estruturado em trêsgrandes partes: (i) situações jurídicas existenciais na sociedade
da informação; (ii) a proteção do consumidor na Internet; e (iii) direitos autorais e
tecnologia.
O artigo de abertura da coletânea (O direito ao esquecimento na Internet),
de autoria de Guilherme Magalhães Martins, aborda o atual e difícil tema do
direito ao esquecimento na Internet, e procura investigar se seria justo permitir
que os usuários apaguem para sempre seus rastros na rede. Este problema é
potencializado pela utilização de técnicas de rastreamento de dados, sem
autorização de seu titular, e pelo fato de a Internet estar cada vez mais
personalizada e vigiada, somados à maior capacidade de memorização e
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. S
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interesses entre o direito ao esquecimento e a liberdade de imprensa, somente
podendo ocorrer o seu reconhecimento caso se trate de ofensa suficientemente
grave à pessoa humana, de modo a restringir a disseminação de determinada
informação. (...) A utilidade informativa da divulgação da notícia, portanto, deve
ser sopesada com os riscos trazidos pela re
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‖
ganhando importância a possibilidade de aplicação do princípio da precaução e da
çã
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çõ
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í
‖.
Em O discurso do ódio na Internet, Ana Paula Barbosa-Fohrmann e
Antonio dos Reis Silva Jr. analisam as principais decisões judiciais já proferidas
sobre o assunto e procuram responder três questões fundamentais no âmbito da
responsabilidade civil: (i) ohate speech gera dano indenizável?; (ii) o discurso do
ódio constitui dano extrapatrimonial individual e/ou coletivo?; (iii) a resposta
dada pelo ordenamento deve ser por reparação ou alguma sanção civil específica?
Em caso de discurso de ódio proferido contra grupo ou classe de pessoas, propõe
um modelo sancionatório/punitivo, com tipo específico de reparação, através de
pagamento de sanção pecuniária, sem prejuízo da possibilidade de tutela inibitória
e de medida alternativa de reparação, como a atribuição de direito de resposta.
Danilo Doneda, em O direito fundamental à proteção de dados pessoais,
apresenta os principais aspectos relativos à proteção de dados pessoais, que
merece reconhecimento como direito autônomo e fundamental no Direito
brasileiro, como expressão direta da personalidade. A proteção dos dados pessoais,
como novo degrau da privacidade, constitui vínculo objetivo que permite a tutela
de outros interesses, circunstância particularmente interessante diante do
surgimento de mais riscos em meio digital e do novo paradigma do big data. Por
fim, o autor aponta recentes alterações legislativas significativas desta lógica, como
a Lei nº 12.414/2011 (lei do cadastro positivo) e a Lei nº 12.527/2011 (lei de acesso
à informação).
Por sua vez, Helen Cristina Leite de Lima Orleans (Infidelidade virtual e
exposição da vida privada na Internet), analisa, com base em criteriosa pesquisa
doutrinária, a possibilidade de aplicação da responsabilidade civil por
descumprimento dos deveres conjugais em ambiente virtual (redes sociais e chats,
por exemplo). Considerados o fim da culpa na separação e o risco de que a
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condenação ao pagamento da reparação possa acirrar os ânimos entre os cônjuges
(ou companheiros), defende que a mera violação do dever de fidelidade não basta
para causar danos morais, sendo necessária a verificação de circunstância mais
grave que viole um dos corolários da dignidade da pessoa humana, tal como a
hipótese de exposição da vida privada.
No artigo subsequente (Marco civil da Internet no Brasil: breves
considerações sobre seus fundamentos, princípios e análise crítica do regime de
responsabilidade civil dos provedores), João Victor RozattiLonghi formula,
quanto ao regime de responsabilidade civil dos provedores de aplicações de
Internet, firme crítica à necessidade de notificação judicial, ao argumento de que,
embora esta exigência busque evitar a retirada indevida de conteúdo
R
―
desprotegida a vítima de violações à sua personalidade, uma vez que terá que
buscar o judiciário para ver resguardado seu direito à imagem, honra, privacidade,
‖.
EmLiberdade de expressão, Internet e signos distintivos, Pedro Marcos
Nunes Barbosa defende que a proibição de uso de signos distintivos em
manifestações culturais mostra-se desproporcional ao texto constitucional. Assim,
considerando que a Internet contribui para a majoração das possibilidades de uso
destes signos, o conflito entre interesses existenciais culturais e interesses
patrimoniais proprietários deve ser solucionado em favor dos primeiros, com
vistas à difusão da cultura, ao acesso ao conhecimento e ao aumento da produção
intelectual.
Th
C
T
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―a tutela da
imagem da pessoa humana na Internet na experiência jurisprudencial
brasileira”, revisitando os conceitos de imagem-retrato, imagem-atributo e direito
à identidade pessoal, com destaque para as dificuldades de sua proteção na rede e
para os principais julgados do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.
Antonia
Espíndola
LongoniKlee
(O
conceito
de
estabelecimento
empresarial virtual e a proteção do consumidor nos contratos eletrônicos:
algumas reflexões) alerta, de seu turno, para a necessidade de adaptar o conceito
de estabelecimento empresarial, de modo a garantir adequada proteção do
consumidor na Internet. Após detalhar suas características específicas e
h
q
―
é
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çã
150
í
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‖
especial tutela ao direito à informação e ao direito ao arrependimento do
consumidor.
Duas questões fundamentais são objeto da análise de Fernanda Nunes
Barbosa (Informação e consumo: a proteção da privacidade do consumidor no
mercado contemporâneo da oferta): (i) quais os limites do marketing direto?; e
(ii) há um direito do consumidor à não-informação? Diante da proliferação
abusiva de bancos de dados digitais, considerados o tipo de dado coletado e a
forma de sua divulgação, bem como a prática de condutas como o spam, a autora
defende o direito do consumidor à não informação para protegê-lo contra a venda
de cadastro (que viola sua privacidade e permite o enriquecimento sem causa do
fornecedor), a publicidade agressiva e o assédio de consumo.
O uso da Internet na prestação de serviços médicos é o tema de Paula
Moura Francesconi de Lemos Pereira, que examina a viabilidade e os
questionamentos jurídicos concernentes ao uso da Internet para serviços médicos
de fornecimento e pesquisa de informações, de consultas médicas à distância
(telemedicina) e de envio de dados (de prontuários, exames e consultas). Para a
autora, a utilização da Internet como fonte de consulta acarreta risco à relação de
confiança entre médico-paciente, cuja solução pode ser a técnica de certificação de
sites e aplicação das normas deontológicas, de acordo com a axiologia
constitucional. A telemedicina deve ser ministrada de forma restrita e cautelosa,
comprovada real necessidade e urgência, diante dos riscos à obtenção do
consentimento livre e esclarecido e de despersonalização da relação médicopaciente. Por fim, a autora ressalta a necessidade de observância do segredo e
sigilo profissionais, de rigoroso controle e de elevadas preocupações técnicas
quanto ao envio eletrônico de informações de prontuários, exames ou consultas, os
quais contem dados sensíveis do paciente, cujo conhecimento por terceiros pode
provocar graves danos a seus interesses existenciais.
Em Contratos eletrônicos de consumo: aspectos doutrinário, legislativo e
jurisprudencial, Pedro Modenesi examina os chamados contratos por clique (e
problemas relacionados ao consentimento e à despersonalização do contrato
eletrônico), bem como a acentuada vulnerabilidade do ciberconsumidor (em razão
das disparidades econômica e tecnológica e da deficiência informativa). Por tais
motivos, reitera a necessidade de regulação legislativa específica para o comércio
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eletrônico e sugere, ainda, a adoção de mecanismos online de resolução de
conflitos.
Renato Porto, no artigo intitulado Pequenos navegantes: a influência da
mídia nos hábitos de consumo do público infanto-juvenil, demonstra preocupação
quanto à necessidade de tutela especial do público infantil e de supervisão da
atividade profissional, considerando, após analisar casos concretos, solução
adequada a autorregulamentação da publicidade realizada pelo Conselho Nacional
de Autorregulamentação Publicitária – CONAR.
Vinícius
Klein
escreve
sobre
As
contratações
eletrônicas
interempresariais e o princípio da boa-fé objetiva: o caso do EDI. O artigo
focaliza os desafios surgidos com a utilização mais frequente do EDI (Intercâmbio
Eletrônico de Dados ou Eletronic Data Interchange) – cujos requisitos para
contratação são a forma padronizada, o intercâmbio entre sistemas e a
comunicação eletrônica – e as possíveis soluções dadas pelo princípio da boa-fé
objetiva. Segundo o autor, a aplicação da boa-fé objetiva, embora de forma diversa,
aos contratos empresariais paritários, impõe adequado padrão de confiança e de
responsabilidade contratual aos contratos relacionais por EDI.
No artigo A tutela do consumidor e o comércio eletrônico coletivo, Gabriel
Rocha Furtadoe Vitor de Azevedo Almeida Júnior examinam o regime jurídico das
compras coletivas – contrato cuja essência é formada pelo tempo limitado para a
compra e pelo número mínimo exigido de compradores, aos quais devem ser
somadas a finalidade econômica e a natureza de risco inerente –, bem assim a
jurisprudência formada até o momento e as leis estaduais promulgadas. Nestes
casos, a responsabilidade civil seria objetiva e solidária do anunciante dos
produtos e serviços e dos sites de compra coletiva, visto que todos integram a
cadeia de fornecimento. Outro aspecto importante relacionado a estes negócios diz
respeito ao conteúdo e à extensão do dever de informação dos provedores
intermediários, que, em razão do tempo de duração da oferta para conclusão do
contrato coletivo, devem, de forma mais rigorosa, prestar informações adequadas e
precisas, bem como respeitar o direito de arrependimento do consumidor.
O artigo de encerramento da segunda seção do livro (Cultura, revolução
tecnológica e os direitos autorais, de Allan Rocha de Souza) examina, com
profundidade, o papel do Estado em relação às transformações tecnológicas, bem
como os demais fatores institucionais, econômicos e culturais que influenciam o
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processo histórico do desenvolvimento tecnológico. Em seguida, analisa a sua
importância no desenvolvimento das tecnologias de informação, processamento e
comunicação (que atualmente possuem penetração em todos os domínios da vida
humana) e na permissão ou restrição, mediante técnicas de incentivos ou controle,
de novos modelos econômicos e de comunicação.
Carlos Affonso Pereira de Souza inaugura a Parte III (Direitos Autorais e
Tecnologias) com o artigo Direitos autorais, tecnologia e transformações na
criação e no licenciamento de obras intelectuais. Segundo o autor, o
desenvolvimento tecnológico favoreceu o enfraquecimento do dogma de que a
outorga de exclusividade (associada à remuneração) seria o único instrumento de
fomento da função promocional do direito autoral de estímulo à criação. A função
social dos direitos autorais de desenvolvimento da cultura e acesso ao
conhecimento pode ser realizada pela tutela dos direitos morais do autor,
afastando-se, ainda, da indevida associação entre direitos autorais e o direito de
propriedade. A realização da função promocional e da função social deveria, então,
estar atenta aos reflexos da tecnologia atualmente disponível, no sentido de criar
novas formas de acesso e garantir níveis adequados de proteção ao autor. Neste
contexto, ganham importância as obras colaborativas (que permitem a terceiros
maior liberdade em utilizar), os novos modelos abertos de negócios e as licenças
gerais públicas, que provocaram relevantes transformações na necessidade de
autorização prévia e expressa, permitindo o surgimento de software livre
ecreativecommmons.
Cláudio Lins de Vasconcelos (As limitações, o fair use e a guinada
utilitarista do direito autoral brasileiro) analisa as limitações aos direitos
autorais, que permitem o uso livre, sem anuência prévia do autor, ainda dentro do
prazo legal de proteção. Segundo o artigo, esta análise deve-se pautar pelas
premissas de que o copyright existe em função de sua finalidade social e de que o
conteúdo da função social do direito autoral consiste em estimular a criação
intelectual e a diversidade cultural e garantir a liberdade de expressão.
Em Plágio e Internet, Helder Galvão, após diferenciar os conceitos de
plágio, usurpação e contrafação, advoga a adoção dos critérios da individualidade,
criatividade
e originalidade para
identificação
do
plágio,
que seria o
―
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‖. E
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153
aplicação dos filtros, examina casos de plágio conhecidos internacionalmente e, ao
final, justifica a adoção de um regime próprio de responsabilidade civil aos
provedores de conteúdo digital, ante a dificuldade de identificação das hipóteses,
não raro sutis, de plágio.
Por
fim,
Sérgio
Brancoapresenta
estudo
sobre
As
licenças
CreativeCommons. Segundo o autor, considerando que a revolução tecnológica
tornou insuficientes os modelos de proteção dos direitos autorais, teria maior
eficácia a criação de licenças uniformes que permitem ao usuário identificar os
direitos atribuídos e autorizam a coletividade a usar as obras dentro dos limites
das licenças. Estas licenças públicas gerais – das quais a licença CreativeCommons
é uma espécie – garantem a adequada proteção aos direitos autorais, o acesso à
cultura e o exercício da criatividade, incentivando o desenvolvimento de modelos
participativos.
A variedade de temas analisados nos trabalhos reunidos em Direito
privado e Internet revelam a riqueza e complexidade das discussões atuais neste
campo, cujo rol é frequentemente ampliado pelo surgimento de novos casos, entre
os quais, a realidade do big data (e os desafios à privacidade e à proteção de dados
pessoais), a chamada Internet das Coisas e a ubiquidade tecnológica
(acompanhadas de riscos de monitoramento, vigilância e à segurança), o bitcoin (a
moeda gerada e trocada de forma digital) e novas formas de uso compartilhado de
bens. Em qualquer destas hipóteses, independentemente da existência de previsão
legislativa específica, é missão do jurista buscar soluções baseadas em uma
regulação jurídica adequada para garantia de direitos e liberdades individuais, com
vistas à tutela e promoção da pessoa humana.
*
Mestrando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Especialista em Direito Privado Patrimonial pela PUC-Rio. Professor da Escola Superior de Advocacia
Pública do Estado – ESAP/PGE-RJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro.
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bibliográfica básica deverá conter: sobrenome do autor em letras maiúsculas;
vírgula; nome do autor em letras minúsculas; ponto; título da obra em itálico;
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ponto; número da edição; ponto; palavra edição abreviada; ponto; local; dois
pontos; editora (suprimindo-se os elementos que designam a natureza
comercial da mesma); vírgula; ano da publicação; ponto. Exemplo: DAVID,
René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1993.
8. As referências deverão ser feitas em notas de fim, isto é, ao final do
çã ―N
‖.
9. Os trabalhos deverão ser precedidos por um resumo analítico
bilíngüe que não ultrapasse 10 linhas, pela indicação de palavras-chaves em
inglês e português e por um Sumário, numerado, com as divisões do texto,
separada cada divisão da outra por um travessão.
Exemplo: SUMÁRIO: 1. Realidade social e ordenamento jurídico – 2.
Regras jurídicas e regras sociais – 3. O jurista e as escolhas legislativas. – 4. O
Código Civil – 5. A Constituição – 6. A chamada descodificação.
10. Qualquer destaque que se queira dar ao texto, sempre com
parcimônia, deve ser feito com o uso do itálico. Não deve ser usado o negrito ou
o sublinhado.
11. O Conselho Assessor da Revista reserva-se o direito de propor
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