Cadernos EAV – Encontros com Artistas (2012)

Transcrição

Cadernos EAV – Encontros com Artistas (2012)
Governo do Rio
de Janeiro
Governador
Luiz Fernando Pezão
Coordenadora
do Programa
Aprofundamento |
Criação Artística 2014
Anna Bella Geiger
Supervisor Técnico
das Oficinas
de Imagem Gráfica
Roberto Tavares
Bibliotecárias
Secretaria de
Estado
de Cultura
Coordenador
do Programa
Aprofundamento |
Curadoria 2014-15
Secretária de Estado
de Cultura
Comissão de Ensino
Glória Ferreira
Ana Carolina Santos
Lucas Leuzinger
Luiz Ernesto Moraes
Maria Tornaghi
Assistentes de
Exposições e Debates
Adriana Scorzelli Rattes
Secretária de Relações
Institucionais
Olga Campista
Subsecretário
de Planejamento
e Gestão
Mario Cunha
Superintendente
de Artes
Eva Doris Rosental
escola de artes
visuais
parque lage
Diretora
Claudia Saldanha
Coordenadora
de Ensino
Tania Queiroz
Coordenadora de
Exposições e Debates
Clarisse Rivera
Coordenador de
Eventos
Vitor Zenezi
Fernando Cocchiarale
Comissão de Projetos
Batman Zavareze
George Kornis
Paulo Sergio Duarte
Supervisora de Ensino
Vanessa Rocha
Supervisora do
Programa Educativo
Cristina de Pádula
Supervisora do
Núcleo de Arte e
Tecnologia e das
Oficinas de Imagem
gráfica
Tina Velho
Programa de
Capacitação
de Mediadores
Maria Tornaghi
Cristina de Pádula
Tania Queiroz
Assessora de Projetos
Especiais
Sandra Caleffi
Danyelle Sant’Anna
Maria Fernanda Nogueira
Olga Alencar
Assistentes de Ensino
Laara Hügel
Renan Lima
Sabrina Veloso
Assistente de Eventos
Naldo Turl
Selma Fraiman
Secretaria
Gisele Oliveira
Thais Sousa
Victoria Moreno
Serviços Gerais
OCA LAGE
Presidente
Marcio Botner
Vice-Presidente
Lisette Lagnado
Diretor
Administrativo
e Financeiro
Artur E. P. Miranda
Gerente Administrativo
e Financeiro
Rosana Ribeiro
Gerente de Eventos
e Projetos
Marcus Wagner
Assessora de
Comunicação
Rachel Korman
Supervisor
Administrativo
Sergio Bastos
Homero Gomes
Carmen da Costa Souza
Assistentes
Conselheiros
Marcelo Gonçalves
Conselho
Adriana de Mello Barreto
Adriana Scorzelli Rattes
Adriano Estrella Pedrosa
Antonio Alberto Gouvea Vieira
Daniel Senise
Carlos Alberto Mendes dos
Santos Gomes
Eduardo Saron
Eliane Lustosa
Ernesto Neto
Eva Doris Rosental
Fernando Marques Oliveira
Guilherme Gonçalves
Luis Eduardo da Costa Carvalho
Luiz Camillo Osorio
Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho
Renato Augusto Zagallo Villela
dos Santos
Ronaldo Cesar Coelho
Hércules da Costa Souza
Assistente
Administrativo
Assistente de
Eletricista
Fabio Szwarcwald
Supervisor Financeiro
Supervisor
Janir Pereira
Iraci De Oliveira
Gerson Freitas
Roberto Nilton
Vice-presidente
Presidente
Paulo Albert Weyland Vieira
EAV
Rua Jardim Botânico, 414
Jardim Botânico
Rio de Janeiro | RJ
22461-000
Tel | Fax: 21 3257 1800
www.eavparquelage.rj.gov.br
ENCONTROS
COM ARTISTAS
brígida
baltar
cadu
Créditos
dos Cadernos
felipe
barbosa
Organização
Tania Queiroz
Vanessa Rocha
Projeto Gráfico,
Tratamento de imagem
e Produção Gráfica
Dupla Design
Fotografias
Adriano Facuri, Cadu, Felipe
Felizardo, Luciano Bogado,
Pat Kilgore, Studio Barbosa
Ricalde, Wilton Montenegro
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE
LIVROS, RJ
E74 Escola de Artes Visuais do Parque Lage
Revisão de texto
Cadernos EAV 2012 : encontros com artistas / Escola
de Artes Visuais do Parque Lage ; Organização: Tania
Queiroz e Vanessa Rocha.
– Rio de Janeiro : EAV, 2014.
Transcrição
264 p. : il. ; 13 x 18 cm. – (Cadernos EAV)
ISBN 978-85-64192-18-8
Rachel Valença
Vanessa Rocha
Gravação
Bruno Marcus
TOMBA Records
1. Arte contemporânea - Palestra. 2. Artistas brasileiros.
3. Baltar, Brígida, 1959-. 4. Cadu, 1977-. 5. Barbosa, Felipe,
1978-. 6. Gomes, Fernanda, 1960-. 7. Ernesto, Luiz, 1955-.
8. Becker, Ricardo, 1961-. I. Queiroz, Tania. II. Rocha,
Vanessa. III. Título. IV. Série.
impressão
Stamppa Gráfica
CRB7 6590 / CRB7 0024/14
fernanda
gomes
luiz
ernesto
ricardo
becker
AP RESENTAÇÃO
Os Cadernos EAV: Encontros com Artistas reúnem um importante acervo de conversas entre artistas consagrados e alunos do
Programa Fundamentação da Escola de Artes Visuais do Parque
Lage. Implementado pela EAV em março de 2009, com recursos
da Secretaria de Estado de Cultura, o programa preparatório com
disciplinas fundamentais para a formação em arte visa oferecer
uma iniciação ao aluno.
Com três professores para cada grupo, o Fundamentação promove,
a cada mês, encontros com artistas convidados.
Com o lançamento de mais dois volumes dos Cadernos EAV torna-se
público o resultado desses encontros, realizados em 2011 e 2012,
entre artistas brasileiros e jovens do programa de ensino.
Nos dois primeiros volumes, de 2009 e 2010, registrou-se os encontros com os artistas Anna Bella Geiger, Carlos Zílio, Ernesto Neto,
Ivens Machado, Nelson Félix, Tunga, Beatriz Milhazes, Daniel
Senise, Eduardo Coimbra, Elizabeth Jobim, Vik Muniz e Waltércio Caldas.
Nos dois Cadernos de agora podemos conhecer os depoimentos
de Brigida Baltar, Cadu, Carlos Vergara, Efrain Almeida, Felipe
Barbosa, Fernanda Gomes, Iole de Freitas, José Damasceno, Luiz
Ernesto, Luiz Aquila e Victor Arruda.
A diversidade dos processos de criação e das experiências resultantes da atividade profissional de cada artista formam um singular
conjunto de idéias à respeito da vida e da arte e proporcionam
depoimentos de rara riqueza e espontaneidade.
Agradecemos a todos, artistas e professores, que generosamente
colaboraram com este projeto, revelando parte da sua vivência
artística e profissional.
CLAUDIA SALDANHA - Diretora da EAV Parque Lage
br ígida baltar
cadu
felipe barbosa
fernanda gomes
luiz ernesto
ricardo becker
10
54
92
144
202
230
10
Brígida Baltar
Agradeço ao Parque Lage o convite e queria dizer que, para mim,
é bem especial ter uma conversa neste lugar, principalmente
porque também comecei a estudar na Escola de Artes Visuais,
nos anos 1980 e, talvez com a mesma idade de vocês, estava com
algumas inquietações. Então, eu acho que a gente pode aproveitar
realmente esse momento para falar com franqueza dessas inquietações. Na verdade, elas acompanham todo nosso caminho – até
hoje tenho insônias, dúvidas e questionamentos, mas sei que,
quando somos estudantes ou ainda estamos iniciando nossas
pesquisas artísticas, as pulsões são mais intensas e temos que
administrar isso... Eu sempre gosto de começar falando desse
início, porque, particularmente, estava aqui estudando arte e ao
mesmo tempo fazia uma faculdade de história, já havia iniciado
a faculdade de arquitetura e experimentado ser atriz. Então,
Presságio, 2012
Video still.
Exposição O amor do pássaro rebelde
nas Cavalariças da EAV Parque Lage
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o meu começo foi bastante conturbado, cheio de opções a fazer, e a
pergunta era onde eu iria mergulhar profundamente. Há também
o momento, esse intervalo em que você já está trabalhando há
um tempo com arte e se pergunta: “Isso já é uma obra de arte?”
ou “Eu me considero uma artista?”. Meu crescimento aconteceu
no processo de eliminações e escolhas. Foi uma busca, na verdade, de identidade. E para isso parti da pura experimentação,
do uso de materiais variados e tentativas de construção de um
pensamento e de uma obra, para chegar a um contorno com um
pouco mais de maturidade no início dos anos 1990. Incorporei
situações biográficas no trabalho e isso começou a acontecer
por meio de pequenas ações que eu fazia usando o meu próprio
corpo e, principalmente, a casa onde eu vivia, no Rio de Janeiro.
Por exemplo, eu fazia registros fotográficos de situações bem
cotidianas, como tomar banho ou fazer um corte de cabelo, e
então, finalmente, a casa passou a ser meio e suporte do próprio
trabalho. Mais tarde, quando comecei a participar de algumas
exposições importantes, institucionais, foi bom ver meu trabalho
situado e relacionado à geração 90.
mostrados foi uma estante com frascos de vidro que armazenavam
goteiras recolhidas. Lá em Cuba me ofereceram uma sala com
resíduos de pinturas antigas nas paredes e rastros de goteiras no
espaço, então eu acabei colocando meu trabalho justamente na
parte mais manchada da parede e pendurei ao lado uma capa de
chuva transparente.
Estas são umas imagens da Bienal de Havana1 [Brígida inicia a
projeção], de que participei em 1994, e pela primeira vez apresentei as ações que aconteciam naquela casa. Um dos trabalhos
Em 1996, desenhei o formato do meu corpo na parede da casa
e fiz a escavação desse molde. Essa ação nunca foi repetida em
uma galeria ou museu, porque o sentido acontecia para mim, no
espaço íntimo. Sem espectadores, a obra existe como fotografia
e vídeo. Chamei de Abrigo. Ricardo Basbaum escreveu um texto
que considero importante, em que ele fez umas colocações: “Você
se situa num lugar extraordinário, que é numa parede onde você
tem uma visão particular incomum, você está num lugar que é
quase uma impossibilidade. Então, amplia esse lugar da visão.”
A ideia era usar o corpo como estrutura e a casa como extensão
do próprio corpo. Eu gosto de pensar como se o corpo fosse uma
continuação daqueles tijolos, o corpo como fortaleza, um corpo
que sustenta uma parede.
Sou árvore2 é uma fotoação, também intimista, feita em cima do sofá.
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“A ideia era usar o corpo
como estrutura e a casa
como extensão do próprio
corpo. Eu gosto de pensar
como se o corpo fosse
uma continuação daqueles
tijolos, o corpo como
fortaleza, um corpo que
sustenta uma parede.”
Este ano, dando aula aqui na EAV Parque Lage, ao lado de Marcelo Campos e Efrain Almeida, estamos justamente falando sobre
a presença do corpo na arte contemporânea. A ideia do corpo como
memória e como identidade foi uma vertente que interessou os artistas dos anos 1990 e, indo mais para trás, os artistas dos anos 1970. A
Body Art aconteceu com suas experiências mais políticas e radicais.
Silhuetas3 foi realizada em 1996. Agora o corpo se apresenta em
uma instalação no chão, em sete formatos obtidos com madeira,
pedra, tijolo, casca de tinta, saibro, poeira e pedaços de reboco.
Todos resíduos da casa em que eu vivia.
Aqui é a Torre4 [Brígida prossegue mostrando imagens], um trabalho
de construção com tijolos – a criação de um espaço de reflexão.
Todo meu processo, então, na época, podia se resumir em colecionar e selecionar materiais. Um vidro conteve lágrimas,5 que eu
guardava em um pequeno buraco na parede.
Ainda falando dos anos de 1990, incorporei situações como abrir
uma janela.6 Com a participação do meu filho Tiago, nós abrimos
uma janela na parede. Nesse momento, a relação entre vida e arte
ficou entrelaçada.
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É interessante quando a gente tem a oportunidade de falar sobre
nossos processos, porque iniciamos novas reflexões e percebemos
as transformações da obra no percurso. Eu acho que o meu trabalho
começou inicialmente existencial, realista, com algo de biográfico – são
fotos simples, cruas, em que uso roupas cotidianas. Mais tarde, a obra
se volta para uma fabulação – meu trabalho se modificou no tempo.
mas o sentido que essa paisagem pode transmitir – a atmosfera
emocional, afetiva. O drama me interessa, o que a neblina produz
como simbólico. Percebo meu trabalho atravessado pelo simbólico,
presente também na exposição atual das Cavalariças, O amor do
pássaro rebelde.
Um trabalho nunca é tão cronológico ou linear. Ao mesmo tempo
que eu fazia ações domésticas, comecei a realizá-las também em um
sítio fora do Rio de Janeiro. Eu levava para lá algumas coisas que
também estavam dentro de uma atmosfera intimista – colocava,
por exemplo, móveis ao ar livre e cobria de terra, e fazia algumas
experiências na natureza. Foi quando comecei a coletar orvalho.
Meu filho também participou dessa experiência. Na verdade, acho
que as primeiras coletas de goteiras me levaram, também, para as
ações na natureza.
Coletar neblina foi um projeto que desenvolvi por quase dez anos.
Ao mesmo tempo, era um trabalho com potência de imagem, mas,
para mim, principalmente, era uma experiência sensorial importante. Então, eu repetia essa vivência, geralmente nas serras de
Petrópolis, Teresópolis, e ficava lá, pelas manhãs, naquela umidade.
E posso sentir que o mais interessante para mim não é a paisagem,
Continuando a falar sobre as coletas, mantive nas fotografias a presença de ônibus passando, placas de trânsito, o registro de alguns
elementos urbanos nessa ação. Em 2001 ganhei o Prêmio Rioarte e
pude fazer novos filmes, usando 16mm, construí roupas especiais e
vidros orgânicos e fiz um disco de vinil. Na verdade, eu também estava
começando a expor mais e, quando apresentava os vídeos projetados, sentia a necessidade de uma atmosfera de som, por exemplo.
Então, produzi o disco e apresentei o projeto Coletas sempre com
uma vitrola – foi assim no Agora/Capacete7 em 2001, e mais tarde,
em 2008, na Caixa Cultural de Brasília.8 Neste último espaço, fiz
uma inversão: o vídeo foi projetado menor, e havia sete vitrolas no
espaço – uma orquestra de vitrolas. O som foi retirado das próprias
experiências e recriado digitalmente – foi mesmo uma experiência
particular sonora. Não tão particular, pois fiz com a parceria do Phil.
Um acontecimento bom nessa exposição (com curadoria da Luisa
Duarte e Marisa Flórido) foi ter na sala da frente a obra de Paulo
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Vivacqua – também com uma instalação sonora, relacionada ao
deserto. Então, a gente criou essa relação da umidade e da aridez,
tudo por meio da sonoridade.
Este, por exemplo,11 é um trabalho mais inicial com o tijolo – eu
usava o próprio tijolo para construir objetos, desenhos, esculturas
pequenas, e neste caso essa é uma escultura com tijolo maciço.
Mais tarde12 produzi uma série de tijolos bem pequenos, a partir do
tijolo em pó e cola. Isso se tornou um projeto: usar o pó até o final
e o projeto termina. Eu gosto desta ideia – eu saí da casa levando
a casa. Em vários galões. Uma casa móvel, que não se fixa e que vai
sendo transformada.
Essa é uma imagem de um dos vidros coletores9 [Brígida mostra a
imagem no telão]. A foto é de 2001,10 bem diferente daquela primeira
imagem que eu mostrei coletando orvalho com o meu filho em 1994,
quer dizer, outra atmosfera. Todas essas diferenças nos levam a uma
aceitação do nosso próprio percurso. Hoje em dia, tenho respeito
ao olhar algumas obras que eu não faria de novo daquela forma,
mas que foram feitas, acreditando que era o melhor. No caso das
coletas, minhas prediletas são as primeiras ações, realizadas nos 90.
Depois de realizar as Coletas, comecei a ter mais convites para
exposições e observava que o trabalho inicial que eu tinha feito na
casa não era conhecido. Senti necessidade de voltar a ele. Eu tenho
um processo de avanço e retorno a um trabalho. Às vezes estou com
um trabalho novo e daqui a pouco volto para um trabalho que foi
iniciado cinco anos atrás, quando sinto que seria bom potencializá-lo. Coincidiu que, em torno de 2004, eu já estava saindo daquela
casa onde fiz todas as experiências iniciais e sentia que não tinha
aprofundado o suficiente, como gostaria. Então, ao sair, levei vários
materiais de lá e até hoje continuo trabalhando com eles.
Caixa cobogó é um trabalho que eu venho fazendo, também a partir de moldes de silicone, pó de tijolo e cola. Sem a caixa o título é
Renda cobogó.
Em 2010,13 fiz sete montanhas do Rio de Janeiro com pó de tijolo e as
apresentei só uma vez na Bienal de Denver. Quando as montanhas
voltaram de viagem, chegaram brancas – eu tinha misturado cola
mineral e resina, que reagiram. Estou refazendo a obra sem usar
resina, apenas barro e pó de tijolo da casa, um intercâmbio de terras.
Utopias e Devaneios14 são duas esculturas em formato de livros,
estas sim em pó de tijolo e resina.
Vou agora apresentar algumas imagens de instalações e exposições
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de que participei. É bom para vocês observarem a obra no espaço.
Foi na Fundação Eva Klabin que comecei a trabalhar com máscara
de papel e pó de tijolo, deixando o pó ficar solto no espaço, podendo
ser desmanchado no final. Então, se tornou uma obra efêmera e
lá15 optei por fazer a reprodução do desenho do papel de parede de
uma das salas da FEK e sobre um móvel instalei o brocado. Repeti
a ação em um canto da sala principal, no chão. Passagem secreta16
é uma parede de minitijolos, montada em uma porta de correr.
O vão da porta ficou mais estreito para a passagem das pessoas,
provocando uma sensação de impedimento, e houve um sentido
dúbio – não era claro se a porta iria correr. Foi bom ver a relação da
arte contemporânea em um espaço como a Fundação Eva Klabin,
que já contém sua própria coleção de arte.
céu entre paredes,19 a narrativa da experiência de estar subindo as
paredes da casa para recolher tijolos, através dos vãos deixados,
que me serviram de escada, e então eu podia quase escalar. E, por
estar tão próxima à parede, eu já não via casa, mas grutas, cavernas
e novas paisagens. Na última sala fiz mais uma vez um desenho no
chão com pó.
Em 2007,17 fiz a exposição individual Pó de casa, na Galeria Nara
Roesler, em que apresentei desenhos. Foi quando produzi as miniparedes e o Chão pela primeira vez. E mostrei o Canto brocado, logo
após ter apresentado na FEK.
Em 2010,18 Moacir dos Anjos me convidou a fazer duas instalações
na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. Um dos trabalhos foi
a criação de paisagens só usando o pó de tijolo, no chão. No final
da exposição, eu recolhia o pó. Apresentei também o vídeo Um
Em Buenos Aires,20 na Galeria 713, também mostrei o piso brocado e dessa vez reproduzi o mesmo desenho do piso em azulejo
hidráulico da própria galeria.
Vou mostrar mais uma exposição,21 que aconteceu no firstsite, na
Inglaterra. Eu queria ter quebrado as paredes e colocado meus
tijolos dentro dos buracos, já tinha feito essa experiência no Museu
no Espírito Santo, e a curadora agora estava muito animada para
eu repetir o mesmo lá na Inglaterra, mas como o firstsite acontecia em uma casa antiga e tombada, não permitiram que eu fizesse
o projeto. E optamos, eu e a curadora, Annabel Lucas, por uma
nova experiência,22 que me deixou entusiasmada – e consistiu em
preencher todos os espaços do chão com pó de tijolo. O chão era
de madeira, bem antigo, e o resultado foi chegar à invisibilidade,
você entrava no espaço e não via nada. Havia uma sutileza que foi
sendo percebida devagar. Foi no firstsite que desenhei a Floresta
22
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vermelha,23 pela primeira vez – um desenho feito com o efêmero
pó, diretamente na parede de outra sala. Mais tarde continuei a
desenhá-la em outras exposições, diferentes em escala e intensidade. Trabalhar com esta efemeridade traz uma sensação de um
desaparecimento, que eu acho que de certa forma se relaciona
com a neblina. O que ajudou a montagem sutil do firstsite foi o fato
de a instituição já ser uma construção de tijolos. Em Colchester,
a cidade é toda de tijolos aparentes. Isso construiu um pouco de
mimetismo com meu trabalho e criou uma relação interessante.
Na janela da casa, que dava para um jardim tipicamente inglês,
instalei as borboletas – todas na parede pelo lado de fora. Assim,
você podia observá-las do jardim e, com um pouco de dificuldade,
da sala de exposição.
nas roupas infantis – e me fotografei usando esse pano como se
fossem extensões do corpo, como favos. Minha casa tinha muita
madeira, e trabalhei com a ideia dos casulos nas árvores. Levei a
experiência para a natureza. Os desenhos foram também inspiradores. Desenhos como uma renda, que é o favo; em alguns, usei
carimbos, sempre com palavras ligadas ao universo das abelhas. Em
Favo imbuia,25 o desenho do favo aparece na escavação da madeira.
Fiz um vídeo26 para a Bienal, em que o mel desce pelas escadas, brotando do corpo, da casa. É a partir daí que o trabalho vai ficando cada
vez mais ligado à fábula, entrando no mundo das metamorfoses.
Ainda relacionada à casa, aconteceu a obra Casa de abelha.24 Foi
um trabalho que eu fiz em 2002 para a Bienal de São Paulo, que
esse ano tinha como tema cidades. Como meu interesse era mais
intimista, eu não conseguia imaginar como iria enfocar algo urbano.
E decidi continuar dentro da casa, entrelaçando a minha e a das
abelhas. A abelha é um inseto social e tem essa tarefa de construir
a própria casa e o próprio alimento simultaneamente. E o mel traz
associações entre doçura e afetividade. Então, em um pano, fiz uma
espécie de bordado, em ponto “casa de abelha” – geralmente usado
Maria Farinha Ghost Crab27 é sobre a personificação do caranguejo
fantasma. Convidei a atriz Lorena da Silva para ser esse personagem, o caranguejo de areia. Filmamos28 na Ilha Grande em 16mm.
Ela corria, se escondia, cavava, enterrava a cabeça, em ritmo veloz.
A Maria Farinha tem essa agitação, e ela usava fones de ouvido
em formato de conchas. Mais tarde percebi que, na verdade, eu
também estava trabalhando o conceito casa, porque o caranguejo
está sempre indo para a toca. O nome, caranguejo fantasma, eu
não inventei, ele é conhecido como caranguejo fantasma, porque
se confunde com a areia, pela cor, e está sempre escapando. Gostei
de fazer um trabalho mais fantasmático e em um lugar muito solar.
Fazia sol intenso na Ilha durante as gravações. Eu tinha também,
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“Eu acho que o meu trabalho
começou inicialmente
existencial, realista, com
algo de biográfico - são fotos
simples, cruas, onde uso
roupas cotidianas. Mais tarde,
a obra se volta para uma
fabulação - meu trabalho se
modificou no tempo.”
ao mesmo tempo, silêncio e uma música bem fantasmagórica que
acompanhava o filme. Esse filme foi feito em 2004.
Agora vou dar um salto para meus projetos recentes. A exposição
nas Cavalariças se chama O amor do pássaro rebelde29 e, basicamente, uma cantora lírica encena duas árias da Carmen de Bizet.
Ela canta o amor e a morte. Há uma inspiração em Carmen e Bezanzoni, mas as histórias me interessam menos do que as atmosferas
criadas. Tudo aconteceu quando eu comecei a trabalhar com voos.
Em 2011 trabalhei na exposição Voar.30 Eu queria voos, mas ao
mesmo tempo as quedas e as vertigens. Então, fiz31 esculturas que
tinham penas ou traziam alguma metamorfose, de ser híbrido. E
usei massinha mesmo, massas de porcelana, aquelas que vão ao
forno e são coloridas.32
Esse trabalho,33 é um anfiteatro em cima de um abajur. O teatro
começou a me interessar. O lugar das invenções, o palco das magias.
Os cavalos do carrossel são alados.34 Eu pensava no mito da Aurora.
A mitologia é essa: ela sobe com os seus cavalos cor-de-rosa aos
céus, todas as manhãs, trazendo o amanhecer. Ela, a deusa Aurora.
E o nome dos cavalos, um é Claridade e o outro é Brilho, que é o
título da obra.
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C A DER N OS EAV
B RÍG I DA B ALTAR
Fazer projetos sobre voos começou com uma vontade de trabalhar com o meu irmão, que é engenheiro e responsável pela
construção de aparelhos circenses, então ele é sempre convidado para espetáculos de teatro ou dança, pois sabe justamente
como fazer a pessoa voar, alto, com segurança. E eu comecei todo
esse projeto me reunindo com ele, tentando criar umas ideias de
máquinas para voar. Mas a ideia de construir uma máquina de
verdade, que chegou a ser cogitada, acabou não existindo. E que
bom, também, que não existiu, porque logo entendi que o mais
importante para mim é o teor simbólico dos voos. Os voos que
você pode dar sem sair do lugar. E fiquei satisfeita também com
a dimensão das maquetes. Esta recebeu o título A maquina para
voar ou A vertigem do pavão.35
E termino minha apresentação, feliz com a presença de vocês, com
um trecho do Voar.39
Na Escola de Música,36 fiz um grupo de fotografias sobre um teatro de
sombras projetadas no papel de parede. Na mesma escola realizei o
filme Voar. Convidei a maestrina Valéria Matos para reger um coro
de 16 vozes. A composição da música foi do Tim Rescala. Eu queria
fazer um coro de músicas sobre voos e que incorporassem as noções
de vertigem e de queda. Eu apresento o filme sem os cantores, a
maestrina rege um coro invisível. Trabalhar na Escola de Música da
UFRJ foi bom. Entre as fotografias, há Autorretrato com asas de harpa
sobre Osíris, o inventor da flauta37 e Dançando com as sete notas.38
Quando e como o seu trabalho começou a ter
algum reconhecimento?
Aluno:
Tive um processo de crescimento bem gradativo. Lembro de tentar mostrar meu trabalho nos Salões de arte. Nos anos 1980, havia,
entre outros, o Salão Nacional, que era bem importante – todo ano
eu mandava imagens para o Salão Nacional, mas nunca consegui ser
selecionada. Em 1994, tive essa oportunidade de ir para a Bienal de
Havana, que foi a minha primeira exposição fora do Brasil, e em 1997
ganhei o prêmio do Salão da Bahia. Eu posso dizer que a partir de
2000 é que tive algum reconhecimento, principalmente por convites
de exposições fora do Brasil. Em 2002 participei da Bienal de São
Paulo. O Prêmio Rioarte, em 2001, foi importante, pois culminou com
a exposição Coletas no Agora/Capacete. O Agora/Capacete era um
organismo organizado por artistas, pelo Helmut Batista, o Eduardo
Coimbra, o Ricardo Basbaum. Foi um lugar perfeito para apresentar o
meu trabalho, porque acima de tudo éramos amigos da mesma geração.
Existia videoarte, da década de 1980 pra
cá, com o vídeo se tornando mais maleável, menos pesado.
Alexandre Dacosta:
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C A DER N OS EAV
B RÍG I DA B ALTAR
Mas se fazia mais vídeo mesmo como projeção, não como um
material para acompanhar uma instalação, um trabalho, uma
escultura, né?
Você nos anos 1980 fez muitos trabalhos com vídeo, mas acho que
você tem razão, a apresentação do vídeo se tornou mais incorporada
à instalação, definindo o próprio espaço da obra.
A. D.:
E algumas pessoas, alguns artistas ficaram um pouco sentindo a
necessidade de se organizar, porque não tinham galerias – não
havia tantas como hoje e nem muito movimento institucional.
Lembro que a obra do Hélio Oiticica ficava em um apartamento...
A. D.:
bem que, no final da década de 70, isso é que eu queria
lembrar, o José Roberto Aguilar, o Otavio Donasci, que era
um cara que fazia umas instalações com umas caras enormes,
se vestia de negro, botava umas televisões em cima da cabeça
e ficavam umas figuras estranhíssimas... Enfim, o vídeo já
estava vindo com várias funções. Na década de 80 é que teve
um pouco menos, né? Mas, realmente, não era tão usado.
Até porque os galeristas investiram nisso, na pintura.
É, eu fui lá com aquele grupo, A Moreninha....
A. D.: Se
Eu me lembro das performances do Otavio Donasci... Na verdade,
na década de 1980 não havia tanta informação sobre os momentos
anteriores, pelo menos eu tinha essa sensação. Ou eu era muito
jovem e estava ainda iniciando meus conhecimentos, pode ser.
Como entrei para o Parque Lage a primeira vez em 1982, havia um
movimento bem grande, que foi a pré-Geração 80, e tudo girava
em torno da volta da pintura.
Realmente aconteciam os movimentos dos artistas, e teve A
Moreninha, e toda a nossa formação era quase entre amigos.
Mais tarde a gente também se organizou num grupo chamado
Visorama.
A. D.:
A minha pergunta ia ser essa...
Pode perguntar.
A. D.:
Não, desenvolve!
Na verdade a gente se reunia – João Modé, Eduardo Coimbra, Carla
Guagliardi, Valeska Soares (que hoje mora em Nova Iorque), Analu
Cunha, Ricardo Basbaum, Rodrigo Cardoso, Márcia X e Ricardo
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31
C A DER N OS EAV
B RÍG I DA B ALTAR
Ventura – para estudar, organizar imagens de arte contemporânea,
convidar curadores, críticos para conversar...
Edu Coimbra, nossos trabalhos ali, sendo projetados junto com
outros artistas. Era uma maneira de nos entendermos inseridos
em uma óptica contemporânea e internacional. Uma vez recebemos a Barbara Kruger, aí a levamos na cachoeira das Paineiras,
depois fomos almoçar num restaurante. Lembro que a Analu Cunha
pegou os guardanapos de todos, inclusive o da Barbara, e fez um
trabalho. Mais tarde encontramos com o Mark Dion e o galerista
inglês Nicholas Longsdail.
A. D.:
Vocês fizeram revista, né?
A revista Item veio depois, organizada pelo Ricardo Basbaum e pelo
Eduardo Coimbra. Eles eram os editores e o Modé desenvolvia o
projeto gráfico.
A. D.:
Era um grupo de estudos.
Era um grupo para refletir sobre arte contemporânea, entender
o nosso momento, o circuito de arte, o papel das instituições, das
galerias, o panorama internacional. Isso ia ajudando a formar nosso
pensamento, nossas escolhas individuais. Era nossa formação
mesmo, como artistas.
E isso quando não existia internet, o que é um dado
importante.
E foi na década de 90, em que o objeto, uma
volta até um pouco à arte conceitual, que começou a
vigorar mais do que em 80, estava muito preso
pictoricamente, a pintura ali. Vou aproveitar agora e
passar esse microfone adiante e fazer umas perguntas.
Uma é sobre o Visorama: eu não participei, mas
acompanhei de longe, e gostaria que você falasse mais
um pouco.
A. D.:
A. D.:
Sim, não existia a internet. E é por isso que organizamos um
banco de imagens, todo em slides, com imagens nossas e de artistas do mundo todo. Eram bacanas aquelas projeções na casa do
Hoje em dia existem muitos coletivos. Na época teve A Moreninha
e o Visorama, quase não existiam...
A. D.: O grupo Seis Mãos... Eu sempre gostei de trabalhar em
grupo, até por causa do teatro.
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E, eu acho que você marcou muito os anos 1980, com essas atuações.
O Seis Mãos era incrível.
estado físico. Quando expus na Suíça, na Kunsthaus Baselland, tive
a oportunidade de conhecer um crítico que me deu um livro de um
artista alemão chamado Gerard... que também fazia umas coletas, de
nuvens. E aí entramos em contato e nos correspondemos durante
dois anos. Fui percebendo que a obra do Gerard diferia da minha, era
bem científica – ele colhia nuvens em vidros e catalogava as nuvens,
por exemplo, pelo grau de umidade. Para mim, colher névoa é pura
fantasia. Os vidros coletores, incrivelmente, funcionaram, para
minha surpresa, mas eu não fiz nenhuma pesquisa mais profunda,
científica para isso. Então, o que sempre me interessou no projeto
da neblina foi muito mais o que ela traz de atmosfera – é você olhar
uma paisagem que pode estar velada, você pode se aproximar do
invisível em contraste com as superexposições da atualidade. A
neblina, uma vez o Marcelo Campos disse, também é uma parede.
A. D.: A minha pergunta é exatamente resgatando um pouco
o teatro. Você disse que chegou a ser atriz, até trabalhamos
juntos. Você falou do drama, falou muito a palavra drama,
como o drama está no seu trabalho. Eu acho isso muito
interessante, vendo essa exposição que está aqui e a do Oi
Futuro. Quer dizer, claro, tem essa coisa do drama pessoal,
que a gente pode até resgatar uma memória emotiva, que se
fala muito em teatro, que é você resgatar uma memória sua
para colocar no personagem e sentir uma emoção que seria
do personagem, mas que é sua também. Você já falou muito
dessa coisa do psicológico que você joga no seu trabalho,
e eu queria que você falasse um pouco se essa experiência
do teatro ainda fica muito em você para você fazer esses
trabalhos referenciais a um drama ou não, se é uma coisa
puramente poética, mesmo.
Sim, a natureza psíquica do trabalho me interessa. Ou emocional.
Poderia se perceber meu trabalho como uma pesquisa de elementos
e de certa maneira é: o tijolo é pedra ou terra, a neblina é ar e umidade. Mas afirmo que o que move este trabalho da neblina não é o seu
A. D.:
Sempre se abrigando, tem um abrigo aí.
Tem uma coisa que passa por aí, sim. E eu acho que a coisa do
drama... Essa exposição que está aqui no Parque Lage, eu trabalhei
com uma narrativa, com uma história. Embora eu tenha trabalhado
com a Carmen de Bizet, me interessa menos a história da Carmen,
da mesma maneira que eu trabalhei com a memória desta casa, mas
para falar de outras questões. Eu não quis fazer um documentário.
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Na verdade, são duas encenações muito claras, uma fala de morte
e a outra de amor, e elas trazem essa generalização (dramática)
que no fundo é o que mais se aproxima do meu interesse mesmo.
Ao mesmo tempo, construí três pequenos teatros de madeira para
apresentar as óperas. É também trazer o espetáculo para uma visão
intimista. Não sei se eu te respondi.
A. D.: Respondeu. Você fez uma desvinculação do lado atriz,
também, no sentido que agora você chama atores...
É, por exemplo, na escola de música, mais uma vez, fiz umas experiências me fotografando. Eu chamei de Teatro de sombras, eu usei
as paredes lá da escola de música, eu fiz uma série de fotografias das
sombras projetadas em posições de voos e quedas... Então, mais uma
vez, minha imagem, mesmo em sombra, foi parte da obra. Agora,
não há mais nenhuma intenção biográfica. No caso do filme Voar,
foi um convite para a cantora lírica Carla Odorizzi. São atores ou
cantores convidados para realizar uma performance.
A. D.:
E tem uns outros atores pelo Parque...
Tem outros personagens, não atores profissionais necessariamente.
Convidei amigos, pessoas de outras áreas, para este trabalho. No
Habanera, 2012
Maquetes de madeira e vídeo
Foto: Wilton Montenegro
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filme, eles atuam nesse lugar da fábula. São personagens que não
têm história – são como fantasmas que saíram dessas óperas, dessas histórias, de uma memória talvez, e que vivem nesse lugar da
metamorfose – então, ao mesmo tempo ele é um cavaleiro e um
cavalo. São metade personagem de ópera, metade natureza. Tem
a personagem com cabelos vermelhos e gola rufo, ela é quase um
mico-leão-dourado, a roupa tem pelos.
novas moldagens. Eu trabalho com intuição; para falar a verdade,
acho que intuição é uma coisa boa, e desejo. Então, o que move é
isso, é a sua vontade. E as suas escolhas é que vão formando você.
Há muitos caminhos e possibilidades, não vai dar tempo de desenvolver tudo o que gostaria. Eu acho que o caminho do artista é um
caminho de escolhas, que não terminam, há sempre um confronto
com o que você já realizou, com o que você ainda pode realizar.
Interessante porque a fábula carrega drama, também,
drama e encenação, o teatral. Essa palavra fábula é muito boa.
A. D.:
Aluna: Você trabalhou durante muito tempo com um material,
com pó de tijolo, com tijolo. E eu sou atriz, a gente treina
muito, nós, atores. E eu fico pensando como me reinventar
ainda em mim, sabe? E como você conseguiu transformar
esse material e ficar com ele tanto tempo. E eu queria saber
como continuar com isso, porque é muito fácil largar, né?
Eu acho que é uma necessidade continuar, é como afirmar um
território, para você mesma. É a consciência de que é preciso
mergulhar mais. É o tempo também de potencializar uma obra.
No caso da casa, eu senti que isso poderia se tornar um projeto:
retirar da casa, a casa se tornar um pó e a partir daí seguir com
Você falou em intuição agora, então eu queria saber
como é que a tecnologia, e essa coisa do slide lá dos anos
80, que você comentou, como é que isso influencia no seu
processo criativo, na sua intuição, enfim, na construção da
sua obra. Você falou em pesquisa: hoje em dia você vai no
Google e descobre tudo sobre uma pessoa. O tempo de
maturação da ideia, na verdade, de você ir descobrindo as
informações, tem uma diferença sobre esse processo criativo
agora e como isso influencia?
Aluno:
Como é hoje em relação ao que foi? Bom, no início tinha, realmente, menos acesso à informação. Aconteceu e acontece essa
revolução da tecnologia e o mundo ficou diferente, mais rápido.
Mas, por outro lado, não dá tempo de ouvir todas as músicas, de
ler todos os livros, de absorver todas as informações disponíveis.
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O importante é seguir, como disse, suas vontades. Elas guiam. E
isso é confortante – saber que, diante de tanta história, você não
precisa conhecer tudo. Mas eu não sei se é exatamente isso que
você quer perguntar, você falou de tecnologia...
Aluno: Na verdade, quando você tem muita opção, era isso
que eu queria saber mesmo. Porque você é muito detalhista
nas suas obras, você é muito pontual, consegue pegar um
tema e destrinchar ao longo do tempo. O seu trabalho com
pó de tijolo é muito bom. Você tem uma coisa mesmo de
caminho, e hoje, com a tecnologia, as coisas ficam muito
soltas, né? Você quer abraçar tudo, quer ler tudo, quer ver
tudo, você até começou a palestra falando disso, né? De
ver várias coisas e de estar sob todos os estímulos e ter que
escolher aquele que mais te interessa.
É verdade, eu acho que isso é um assunto no mundo, e não tem
como fugir de mergulhar nessa fragmentação... Estudar ajuda bastante. Durante dez anos eu frequentei um grupo de filosofia, por
exemplo, em que a gente falava sobre tudo relacionado ao mundo
contemporâneo. Isso me ajudou a entender um monte de coisas.
Eu acho que existe a ansiedade, mas o tempo vai azeitando nossas
procuras, mesmo que elas sejam assumidamente caóticas.
Aluno: Talvez
você já esteja começando a responder à minha
pergunta, no final agora dessa última, porque eu ia perguntar
como se deu esse atravessamento entre os materiais, as
ideias que se atravessam de um material para o outro, a
conexão entre essas mídias que você explora. Tem a ver com
a tecnologia, mas, enfim, queria que você falasse sobre isso.
Quando você é um artista que trabalha com um material só, com
o tempo você vai ficando muito bom no uso daquele material. Por
exemplo, se você é um artista que trabalha com pintura, você vai
entendendo cada vez mais como preparar a tela, como misturar bem
as tintas, etc. No meu caso, o único material que conheço com mais
profundidade é o tijolo. Por isso, às vezes, quando penso em uma obra
que precise do uso de outro material cuja técnica eu desconheça,
posso me juntar a outros profissionais. Para o Teatro de sombras, fiz a
maquete junto com a Beth, que é uma ótima maquetista. Para minha
última exposição na Galeria Nara Roesler, apresentei uma escultura
em bronze que foi produzida em uma fundição. Tive que trabalhar
junto com um fundidor de bronze, porque é uma técnica muito
específica, você tem que trabalhar no fogo para derreter o metal.
Aluno: Em relação à problematização do tempo, por
exemplo, você usa uma 16mm na Ilha Grande e você usa
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“Eu trabalho com
intuição, para falar
a verdade, acho que
intuição é uma coisa
boa, e desejo. Então,
o que move é isso, é a
sua vontade. E as suas
escolhas é que vão
formando você.”
também uma Full HD. Então, eu queria saber como
é que você escolhe.
E usei o vinil numa época em que ninguém mais estava falando
em vinil. E isso também passa por essa coisa muito orgânica do
que se esteja vivendo no momento: eu tinha ido para a Alemanha
e, quando eu visitava as pessoas lá, todo mundo escutava disco de
vinil e tinha vitrola. E no Brasil você só via aqueles discos no meio
da rua sendo vendidos a dez centavos. Fiquei animada para fazer
um. E fui fazer um filme em 16mm também. Mas não estava levantando nenhum pensamento à antitecnologia, na verdade, eu estava
perseguindo uma imagem que me interessava, que é analógica. Eu
me formei com analogia, o meu portfólio nos anos 1990 era todo
em slides e eu fotografava com uma Pentax analógica – todas as
fotos da neblina foram feitas com essa câmera. A entrada do mundo
digital foi decepcionante para mim, porque o que eu via não tinha
qualidade. E isso já mudou. Há câmeras de vídeo que se aproximam
da tradicional imagem do cinema, da película. Eu sou da geração
que viveu essa transformação – e meu trabalho traz essa mistura.
A Tacita Dean só faz vídeos em 16mm, só projeta em 16mm ou 35,
ela é totalmente ligada ao analógico e é uma questão de posicionamento dela no mundo. Ela filmou a fábrica da Kodak na Alemanha,
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quando ameaçada de fechar. Ela filma todos os mecanismos do
analógico na Kodak. É bem interessante e nostálgico. No início dos
anos 2000, quando eu estava apresentando a neblina com vitrola,
eu adorava também esse lugar de tecnologia low, digamos assim,
com o uso de muitos fios aparentes no espaço. É bacana, fica tudo
em um tom mais artesanal.
a morte, mais diretamente, porque existiam as catacumbas, onde
as pessoas eram enterradas na parede. As leituras são do mundo
também.
Aluno: Quando eu vi o seu trabalho, não esse
especificamente, mas alguns outros, eu acabei pensando
em Manoel de Barros, e depois eu acabei lendo algumas
coisas, algumas pessoas também fazendo essa relação
e falando algumas coisas. E eu queria saber de você se
isso existe de fato, se você pensa na obra dele em algum
sentido e se te incomoda que façam essa relação.
Não, não me incomoda. Essa relação foi feita também por uma
curadora de Florianópolis, mais jovem. Ela me mandou referências dele pelo facebook. Inclusive eu acho que as leituras do
nosso trabalho, a gente não tem o controle. Quando você faz um
trabalho, e você tem todas as suas razões internas para fazer, esse
trabalho está no mundo. Por exemplo, quando realizei o Abrigo,
eu pensava na força de sustentar uma parede, o corpo como tijolo,
essa era a minha intenção, mas para algumas havia a relação com
Aluno: Tive
a oportunidade de ir ali na sua exposição sobre
a Gabriela e achei que tem muito a ver com o que você
vem trabalhando ao longo da sua vida, em cima dessa
coisa do pó do tijolo. E até a estrutura do próprio local
em que você montou a exposição tem muito a ver com
essa questão do pássaro, não sei se você reparou. Mas a
minha pergunta é sobre a validação do trabalho em si.
Por exemplo, quando você se apropria de uma outra forma
de trabalhar: “Ah! Vou construir um lustre ou vou construir
uma maquete”, como fica essa questão da construção do
objeto? Por exemplo, do tijolo, eu entendo que seja um
pouco diferente esse conceito de você desconstruir a casa
para reconstruir e a coisa de construir um objeto.
São atitudes diferentes. No caso do tijolo, tem a desmaterialização
de um objeto já existente para se transformar em outro. Nas últimas
exposições Voar, na Oi Futuro, e O amor do pássaro rebelde, aqui
nas Cavalariças, existe mais o processo clássico de construção de
uma escultura, é um outro tipo de relação.
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Mas você é aberta a esse tipo de relação nova
ou sempre tenta buscar um pouco das suas experiências
adquiridas em outros trabalhos?
É possível... É como voltar para casa. Você falou em pouso e impulso,
eu acho que são sempre as duas coisas. Porque sempre quando
retorno há também os pontos zero de partida. Desenhar para mim
é sempre um lugar de pouso talvez.
Aluno:
Eu sempre me coloco livre diante de cada novo projeto. Sempre
falo para os meus alunos que um pouco de esquecimento é bom.
Mas, por exemplo, quando a maestrina entra naquele teatro e rege
um coro de vozes invisíveis, eu também estou relacionando com os
gestos da neblina, com aquele lugar da coleta que também acontece com silêncios, ausências e invisibilidades. A Maria Farinha
escutava vozes que ela não sabia muito de onde vinham, e assim os
trabalhos vão se conectando. Há maneiras diferentes de sustentar
esses entrelaçamentos.
Você disse no começo que acaba sempre retornando,
em algum momento, ao tijolo e, pelas fotos que você mostrou,
você tem esse material e não à toa você estocou esse material.
Então, esse retorno ao material de tijolo, você pensa ele de
alguma forma, ele se dá intuitivamente, ele é mais um lugar
de repouso ou ele é como um lugar de impulso para o resto
dos seus trabalhos? Quando você retorna, você sente como
retornando a um lugar um pouco mais confortável, ou para
buscar um desconforto novo?
Aluno:
Aluno: O seu trabalho começou nessas experiências com
tijolos ou tem alguma coisa antes?
Ele começou nessas experiências da casa, e os tijolos como parte
disso. Banho e chuva,40 por exemplo, é anterior, eu não sabia que
iria coletar neblina ou goteiras, e ele já tem essa relação com a ideia
de coletar... O trabalho na casa começou mesmo com o armazenamento de materiais. Eu colocava as tintas das paredes em potes
de vidro e às vezes fazia desenhos com aquelas cascas de tinta. E
continuava fazendo uns buracos nas paredes, plantava ervas nos
tijolos e fotografava tudo. A casa era espaço como laboratório.
A. D.:
E por que você saiu dessa casa?
Foi natural, foi o fechamento de um ciclo no sentido da vida pessoal,
mas eu precisei levar a casa em pó.
Aluno:
Eu queria fazer uma pergunta quanto à questão do
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processo de seleção, do que você considera que “pode ser
exposto”. Considerando que você, dentro do seu processo
criativo, tem uma questão da intuição e da intimidade, como
você faz, dentro desse processo de seleção? Você faz um
experimento e esse experimento, eu imagino que o público
não vá conseguir fazer essa leitura, por ser algo muito íntimo.
Ou não tem esses limites? Tudo que vem dentro desse
processo criativo você acha que pode ser exposto?
Existe uma seleção, mesmo que essa seleção não seja feita imediatamente, porque, às vezes, você não tem a visão suficiente para
decidir, quando você está muito próxima ao trabalho – quando é
uma obra ainda em processo e recente –, para compreendê-la na
sua totalidade. Tem a soma do tempo de maturação. Então, eu acho
que a gente tem esse poder, e isso é bacana, a gente pode escolher
a própria construção da obra e, em conseqüência, o que vai ser
exposto. Talvez respondendo mais a sua pergunta: para mim, o
íntimo sempre importa se vai trazer sentidos mais coletivos. Não
se trata de mostrar uma biográfica, mas pensamentos e atmosferas
que produzam sentidos nos observadores da obra – este é o limite.
Eu fiquei pesquisando, ontem mesmo, a sua obra.
E a que mais me chamou a atenção foi a que você disse
Aluna:
Presságio, 2012
Video still.
Exposição O amor do pássaro rebelde
nas Cavalariças da EAV Parque Lage
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que é a que te deu mais visibilidade, que é a da neblina, que
não tem visibilidade, né? E que te deu visibilidade. [Risos]
Eu vi uma foto, ação fotográfica, como você chama, com
um colete de plástico bolha e atrás você carregando todos
os frascos com neblina e, em cinco minutos na internet, eu
tive um fruir e aconteceu, realmente, um fenômeno estético
ali com a sua obra, eu fiquei encantada! Teve uma época da
minha vida em que eu também morei na floresta, me isolei, e
isso me remeteu a essa bagagem, de momentos vividos, uma
bagagem de coleta de sensações, uma apropriação de uma
sensação que é imaterial. Essa foi a minha sensação vendo o
seu trabalho, que, como você disse, está no mundo. Eu queria
saber, desse colete de plástico bolha, com a neblina, o orvalho,
o que você realmente expressou, qual era o seu objetivo nessa
parte da obra, nessa fotoação.
Quando eu comecei a coletar o orvalho, primeiro foi como extensão
das ações que eu já estava fazendo na casa, para a natureza. Eu
levava móveis e parte da casa para a natureza. Foi quando comecei
a colher orvalho. E depois neblina. A minha captura era de significado, porque tudo significa, de certa maneira. Então, a neblina é
mistério, invisibilidade, paisagem que muda, falta de localização,
o lugar do sublime, do corpo diante dessa paisagem. Todos esses
significados colocam você também no lugar de captar a impossibilidade. É chegar ao espaço da ficção. E tudo foi muito processual,
porque no começo, realmente, eu pensava em vedar os vidros, até
entender que a minha captura era de sentidos.
Aluno:
Eu queria saber um artista atual que te interessa.
É difícil mencionar um. Me interesso por artistas mesmo que não
tenham relação aparente com meu trabalho, mas posso entender
e apreciar a potência das suas intenções. Agora, na Feira de Arte do
Rio, foi interessante rever a obra da Roni Horn, com as fotografias
dos rios – ela fotografa o Sena, o Tâmisa, entre outros. Pesquisei há
pouco tempo para minhas aulas a Hannah Wilke, uma artista dos
anos 1970 que trabalhou sobre o corpo ao mesmo tempo criando
uma relação com a escultura menos rígida que a minimalista, mais
orgânica. Tem a Laura Lima, o Zerbini, são tantos.
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Notas
1. V Bienal de Havana. Cuba, 1994.
2. BALTAR, Brígida. Sou árvore, 1997. Fotografia, edição de 3. Dimensões: 27 x 18 cm.
3. BALTAR, Brígida. Silhuetas, 1996. Ação e fotografia.
17. BALTAR, Brígida. Pó de casa. Exposição individual realizada na Galeria Nara Roesler.
São Paulo, 2007.
18. Brígida Baltar apresentou na Semana de Videoarte da Fundação Joaquim Nabuco
a série Coletas, numa videoinstalação na Galeria Massangana e o resultado de uma
residência artística de três dias no Recife, na Galeria Baobá, ambas na Fundaj Casa
Forte. Recife, 2010.
4. BALTAR, Brígida. Torre, 1996. Ação e fotografia. Construção com tijolos.
19. BALTAR, Brígida. Um céu entre paredes, 2005. Videoação. Duração: 1’15”.
5. BALTAR, Brígida. Coleta de lágrima, 1993.
20. BALTAR, Brígida. Sala brocada, 2007. Desenho com pó de tijolo e máscara de papel
sobre chão. Dimensões: 22 m². Arte Contemporaneo, Buenos Aires.
6. BALTAR, Brígida. Abrindo a janela, 1996. Ação.
7. BALTAR, Brígida. A coleta da neblina. Ação e fotografia, edição de 5. Dimensões: 40 x 60
cm. Exposição individual realizada no Espaço Agora/Capacete, Rio de Janeiro, 2001.
8. BALTAR, Brígida. Paisagem sonora, 2008. Vinil: neblina, orvalho, maresia – coletas,
vitrolas e caixas de som. Coletas em 16mm e vídeo. Caixa Cultural, Brasília.
21. BALTAR, Brígida. Um céu entre paredes. Exposição individual realizada no firstsite,
Colchester, de maio a junho de 2006.
22. BALTAR, Brígida. Um céu entre paredes, 2006. Pó de tijolo moldado e pó de tijolo sobre
o chão, firstsite, Colchester.
9. BALTAR, Brígida. Coletor de orvalho, 2001. Escultura de vidro e madeira cavada.
Dimensões: 11 x 60 cm. Os objetos coletores têm dimensões variadas, podendo chegar
a aproximadamente 80 cm de comprimento.
23. BALTAR, Brígida. Floresta vermelha, 2006. Desenho com pó de tijolo e duas molduras
de madeira.
10. BALTAR, Brígida. 2001. A coleta do orvalho, 2001. Ação e fotografia, edição de 5.
Dimensões: 40 x 60 cm.
25. BALTAR, Brígida. Favo imbuia, 2009. Madeira escavada. Dimensões: 44,5 x 36 cm.
11. BALTAR, Brígida. Para voar, 1995. Escultura em tijolo maciço. Dimensões: 21 x 10 x 7 cm.
12. BALTAR, Brígida. Miniparquê, 2007. Pó de tijolo moldado. Dimensões: 23 x 34 cm.
13. BALTAR, Brígida. Pó e paisagem, 2010. Esculturas feitas com pó de tijolo e cola
mineral sobre estrutura de madeira: Dois Irmãos, Dedo de Deus, Pedra da Gávea,
Corcovado, Pão de Açúcar, Pedra do Arpoador, Pico da Tijuca. Morros cariocas.
Dimensões variáveis.
14. BALTAR, Brígida. Utopias e Devaneios, 2005. Dois livros. Pó de tijolo, resina e
prateleira. Dimensões: 25 x 17 x 1 cm.
15. BALTAR, Brígida. Passagem secreta, 2007. Pó de tijolo e máscara de papel recortada.
Dimensões variáveis.
16. BALTAR, Brígida. Passagem secreta, 2007. Parede de minitijolos moldados, instalada
em porta de correr. Dimensões: 227 x 77 x 3 cm.
24. BALTAR, Brígida. Casa de abelha, 2002. Série de fotografias. 25ª Bienal de São Paulo.
26. BALTAR, Brígida. Casa de abelha. Vídeo. Duração: 49”.
27. BALTAR, Brígida. Maria Farinha Ghost Crab, 2004. Série de fotografias e vídeo.
28. BALTAR, Brígida. Maria Farinha Ghost Crab, 2004. Vídeo filmado em 16mm. Duração:
15’ 27”.
29. BALTAR, Brígida. O amor do pássaro rebelde. Exposição individual realizada nas
Cavalariças da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Rio de Janeiro, de 24 de agosto
a 28 de outubro de 2012.
30. BALTAR, Brígida. Voar. Exposição realizada no Oi Futuro Flamengo. Rio de Janeiro,
de 11 de julho a 5 de setembro de 2011.
31. BALTAR, Brígida. Esculturas zoomórficas, 2011.
32. BALTAR, Brígida. Escultura alada IV, 2011. Mármore, resina, cerâmica e metal.
Dimensões: 26 x 13 x 22 cm.
33. BALTAR, Brígida. Sem título, 2011. Madeira balsa, abajur de bronze e lâmpada
vermelha. Dimensões: 40 x 35 x 30 cm.
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34. BALTAR, Brígida. Claridade e Brilho, 2001. Madeira, resina, metal e motor.
Dimensões: 94 x 80 x 80 cm.
Saiba mais
35. BALTAR, Brígida. A vertigem do pavão ou máquina para voar, 2011. Madeira, bronze e
motor. Dimensões: 165 x 50 cm.
DOCTORS, Márcio. Brígida Baltar: passagem secreta. Rio de Janeiro: Circuito, 2010. 192 p.
36. BALTAR, Brígida. Teatro de sombras, 2011. Ensaio fotográfico desenvolvido na Sala
Leopoldo Miguez, na Escola de Música da UFRJ, Rio de Janeiro, durante as gravações
do filme Voar.
37. BALTAR, Brígida. Autorretrato com asas de harpa sobre Osíris, o inventor da flauta,
2011. Fotografia. Dimensões: 24 x 18 cm.
38. BALTAR, Brígida. Dançando com As setes notas, 2011. Fotografia. Dimensões: 24 x 18 cm.
39. BALTAR, Brígida. Voar, 2011. Filme de 16mm. Duração: 7’.
40. BALTAR, Brígida. Banho e chuva, 1992. Dois jarros de porcelana e cerâmica sobre
estante de madeira. Dimensões: 27 x 22 x 9 cm.
ESPAÇO AGORA/CAPACETE. Brígida Baltar: neblina orvalho e maresia coletas. Rio de
Janeiro, 2001.
OI FUTURO. Brígida Baltar: o que é preciso para voar. Curadoria e textos de Marcelo
Campos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2011. 122 p.
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cadu
Gostaria de agradecer à EAV por esta rara oportunidade, não apenas
de dividir meu pensamento, minhas ideias, mas de fazê-lo ao lado de
um público tão ávido por conhecimento, genuinamente interessado.
Privilegiando os eventos mais recentes, começo pela Bienal de
São Paulo. Como já foi dito nesta mesa, aspectos excêntricos pertencentes às possíveis identidades que um artista assume ou lida
durante a criação – como a obsessão e a loucura – parecem ter
sido privilegiados nessa mostra. Recordei-me, portanto, de um
comportamento adotado pelos índios nativos norte-americanos
quando um membro da tribo detém tais características; em geral,
quando nasce alguém dentro da comunidade que não se enquadra
em nenhuma das atividades tradicionais, ao invés de se tornar um
pária ou ser descartado pelo grupo, esse indivíduo é extremante
Montagem na 30ª Bienal de São Paulo/
SP. Fundação Bienal de São Paulo, 7 de
setembro a 9 de dezembro de 2012
Foto: Cadu
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CADU
bem acolhido, bem cuidado, preservado como algo singular. Pois
em momentos de crise, em que não há um caminho claro a ser
seguido pelo grupo, é justamente aquele que não possui caminho
que o encontra para o conjunto. É possível que nunca se precise
dele, mas é bom tê-lo preservado, é bom que ele esteja ali. Quando
me contaram essa história, fiquei aliviado. Pensei: “Bom, acho que
posso ter encontrado um lugar, não?” Quem sabe eu tenha encontrado um caminho para mais alguém além de mim.
lançou o Rumos Visuais, mapeamento e seleção de novos artistas
que curadores do Brasil inteiro esperam que, não sei ao certo, injetem ou sejam sangue novo no cenário de arte contemporânea do
país. E participei com 22 anos da primeira edição. Fui escolhido
por uma professora ligada à EAV intimamente e que foi uma pessoa
fundamental em minha formação: Viviane Matesco. Iniciei meus
estudos aqui com 14 anos de idade, fazendo aulas de modelo vivo.
Hoje sou professor da instituição. É um privilégio enorme poder
devolver conhecimento ao lugar que lhe ofertou tanta informação
e que foi tão importante para construir sua identidade.
Acredito que artistas, com suas buscas pessoais, colaboram para
a abertura de outros universos possíveis, passíveis de serem
habitados por outros. Os artistas ajudam nesse sentido. Indivíduos singulares, legitimamente envolvidos em criação, por uma
necessidade de comentar este mundo de inquietações, de espantos,
preservando um manancial importante para justificar sua própria
existência e a de tantos.
Posso sentir que algo está diferente. Primeiramente, por meu
trabalho nunca ter sido visto por tantas pessoas e, segundo, pelo
modo como cheguei à Bienal. Algo tão espontâneo que até agora
não compreendo bem como ocorreu. Mas sou capaz de pensar
retrospectivamente e entender como nossas trilhas se cruzaram.
Há muitos anos, conheci o André Severo. Em 2000, o Itaú Cultural
Retomando, foi no Itaú que encontrei pela primeira vez o André,
nós éramos ambos “mapeados”. O interessante, o singular da iniciativa foi que pela primeira vez uma instituição organizava, além
de uma grande mostra coletiva com os selecionados, exposições
secundárias itinerantes que possibilitavam a ampliação do contato
entre eles. Esse processo foi inaugurado com um seminário de
uma semana na sede do Itaú. Éramos todos artistas muito jovens,
estudantes ainda, precisando ganhar um pouco de léxico, um pouco
de malícia do meio, e aquilo era uma chance única.
Eu encontrei com o André ali, tivemos uma conversa de poeta para
poeta... Estávamos desesperados com a situação, com o excesso
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“Acredito que artistas,
de exposição que estávamos tendo, com a voracidade de alguns
colegas. Estávamos sendo moldados para alguma coisa e me senti
em uma escola para supermodelos. Estavam me preparando para
alguma coisa que eu não sei o que era. Ele carregou um fardo ainda
maior, porque havia um prêmio, na época uma viagem para Paris,
e ele ganhou. Quando retornou, imagino que a ressaca resultou no
projeto Areal,1 que parecia ser a total negação disso. Não vou falar
mais do Areal, pois não tenho propriedade para isso. Mas ele era
a única pessoa que eu conhecia.
com suas buscas
pessoais, colaboram
para a abertura
de outros universos
possíveis, passíveis
de serem habitados
por outros.”
Reencontrei-o ano passado, durante o Panorama da Arte Brasileira.
Fui selecionado para participar da mostra2 e ele também. Fomos
convidados a dar palestras no mesmo dia: ele sobre o projeto Areal
e eu sobre o projeto Estações. Meu trabalho atual, de codinome
Cabana. Cabana? Minha casa. Na verdade, onde estou vivendo. O
bonito durante o evento foi termos nos debruçado sobre os mesmos temas sem qualquer combinação prévia. Ambos estávamos
apresentando os motivos pelos quais ainda estávamos fazendo ou
tentando trabalhar com arte, apesar de sentir os efeitos da transformação do que realizamos em objetos de commodities, em status
social, e tantos outros mal-entendidos periféricos à ocupação de
criador, mas que parecem estar no cerne da agenda. Como nós
transávamos ou deslizávamos e frequentávamos esses lugares com
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maior ou menor nível de desconforto. Talvez essa feliz coincidência
tenha sido crucial para participar da Bienal.3 O projeto Estações
enquadra-se muito bem no conceito curatorial da mostra, sob
o título A Iminência das Poéticas. E é por onde eu vou começar.
mundo atual. Muitos criadores tomaram atitudes semelhantes, a
grande maioria dos meus heróis fez isso. Então, juntei dois fortes
desejos: o primeiro, de infância, que era o de construir uma casa
com as minhas próprias mãos. E o segundo, que, uma vez essa
casa construída, eu pudesse habitá-la solitariamente num enorme
exercício de autoespreita, para que ao abandoná-la estivesse plenamente comprometido com esse estado de arte, em arte, em que não
houvesse mais distinção entre a minha ocupação profissional e a
minha vida. Para tanto, foram necessárias muitas etapas, inúmeras
clivagens que circunscreveram um período de três anos.
O projeto Estações tem sido gestado há três anos e faz parte da minha
tese de doutorado. Sou pesquisador da UFRJ, na área de Poéticas
Interdisciplinares. Sempre reflito que umas das vantagens de ser
artista é a oportunidade de escrever a sua própria história da arte.
Buscar nessa enorme linha de tempo exemplos maravilhosos, tentar
achar quem são aqueles com os quais nos identificamos e fazer o
maior esforço possível para até o final da vida, quem sabe, sermos
distantemente lembrados ao lado desses sujeitos. E uma coisa que
sempre me atraiu muito foi a possibilidade de perceber os processos
artísticos, mais do que algo relacionado com a produção de objetos,
mais do que fazer arte, com a possibilidade de ver o mundo dentro
de um estado, ou seja, de se estar em arte. Fazer com que a minha
vida, dentro das relações cotidianas, contenha possibilidades de
magia, de convívio com tabus, de ambiguidade, de opacidade.
Para que esses estados ocorram com maior naturalidade, com uma
certa potência maior, é necessário algum isolamento. É comum
que, para um mundo novo nascer, ocorra uma separação de seu
O projeto Estações é uma casa, uma cabana que construí na Região
Serrana do Rio, em um terreno emprestado que surgiu inesperadamente. E é isso que considero espantoso de vez em quando:
basta que você se comprometa integralmente para que o mundo
responda a seus anseios positivamente.
Eu passo seis dias por semana lá e uma vez por semana venho dar
aulas e encontrar com meu orientador. A estadia iniciou-se na
primeira noite do inverno, dia 21 de junho, e minha permanência
limitada até o dia 21 de março de 2013. Contando o tempo de construção da cabana, cobrirei o período de um ano lá dentro. Daí advém
este nome, Estações, porque vai do outono até o final do verão.
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Até agora, o que pude perceber do projeto é que, a princípio, ele
parece ser consequência de uma decisão individual, uma decisão
exclusivamente minha. Porém, com o transcorrer do tempo, chega-se à conclusão de que não se parte sozinho, mas por autorização. Há
uma instituição acadêmica que me apoiou, a escola em que leciono
possibilitou montar um horário que fosse conveniente para mim,
a minha galeria, que trabalha comigo em São Paulo, me deu uma
força e as pessoas que eu amo, as pessoas de quem eu dependo ou
que dependem de mim disseram “Não, nesse momento você pode
fazer isso!”. Então, é como a primeira página do guia dos Alcoólicos
Anônimos, em que está escrito assim: “Só depende de você, mas
sozinho você não consegue”.
entra em atrito com curadores, a não ser em momentos muito
específicos, mas que são pura fofoca, eu não vou falar! [Risos] Ainda
assim, eu nunca tinha tido um encontro tão espontâneo... sem
aquela pequena esgrima intelectual que sempre ocorre quando
você está sendo apresentado a uma pessoa que te interessa e ela
interessada em você de alguma maneira. Ele foi ao meu ateliê, sentou, tomou um copo d’água, começamos a conversar, daí a pouco
chegou o outro, mais um, agora um café, o fluxo e a troca. Ao final
de uma tarde, não notei as horas.
Todas as vezes em que sou obrigado a falar do trabalho, é um
momento muito delicado, pois estou tentando lidar com algo
intangível, que até agora não sei muito bem o que é; um ambiente
inteiro para que algo de natureza invisível se presentifique... Difícil
de explicar. Não sei de que forma “isso” vai se manifestar, mas pelo
menos é o “isso” que me leva até lá e me traz ou me impulsiona até
esse limite. Ao expor no MAM esse trabalho, o André escutou. Uma
coisa colou na outra e fui apresentado ao Oramas, posteriormente,
e após alguns encontros o convite foi formalizado. Algo me deixou
muito surpreso com esse contato. Sou um indivíduo que raramente
Num determinado momento da conversa, me foi perguntado: “Cadu,
o que você está fazendo?” Eu falei: “Olha, eu estou realizando essa
história aqui, da cabana, é o que eu tenho no momento construído”.
E aí, conforme eu fui apresentando, eles disseram: “Nossa! Você vai
participar da Bienal, porque o que você está fazendo está encaixando
com tudo que estamos perseguindo!”. Na hora eu não me dei conta
daquilo, não acreditei muito, não esperei a coisa, porque não conto
mais com o ovo dentro da galinha, espero a coisa vir. E ela veio.
Existia um desejo da Bienal de fazer uma mostra em que houvesse
pequenas individuais, obrigatoriamente deveríamos ir com outros
trabalhos, e não sou uma pessoa conhecida apenas por um tipo de
linguagem, normalmente eu trabalho com ideias que muitas vezes
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envolvem questões relacionadas a sistemas, métodos, jogos, rigor
e tempo, mas que serão configuradas na linguagem que acredito
melhor potencializá-las. Portanto, em determinados momentos,
utilizo-me do desenho como uma plataforma, outras vezes a performance, outras vezes o vídeo, a fotografia. O que ficou claro, para eles,
é que nesse momento estava muito nítida a presença de elementos
sonoros e da ideia de sacrifício.
possibilidade de desenho. Só que para desenhar nessa plataforma eu
seria obrigado a ter um grau de intencionalidade e de rigor associados que eu nunca teria se tivesse um pedaço de papel e uma caneta
para fazer. Passei um ano inteiro controlando o meu consumo de
luz, apenas para depois receber da Light o resultado prosaico desse
esforço. Construí uma parábola perfeita, totalmente simétrica,
inversa ao meu consumo de luz anual... Resumindo em palavras
muito ruins: eu tomei cerveja quente no verão e tomei banho frio
no inverno. Mas o projeto é muito mais. Vocês não fazem ideia
da disciplina envolvida para tal. E eu, para ser sincero, também
não sei mais. Não sou mais esse homem. Aqui tinha 25 anos de
idade e uma crença inabalável em minha imortalidade, a confiança
absoluta em ser capaz de fazer qualquer coisa comigo e com o meu
corpo. Esse trabalho talvez tenha sido escolhido pela Bienal por se
associar com a cabana, o momento em que estava sendo gestada
ou apresentada pela primeira vez, essa certa fleuma pela vertigem
que o projeto Estações5 contém...
Com isso em mente, chegamos a quatro trabalhos: o projeto Estações, um trabalho em desenvolvimento em que a cada duas semanas
eu mando coisas da minha cabana para a Bienal. Tentativas, gestos
oficinais, resultantes de um processo que tenta dar conta dessa
experiência, desse desejo de sonhar. E é basicamente o que vou
fazer lá, eu vou sonhar lá, eu sou estimulado a sonhar! E isso é
muito raro, isso é um pequeno luxo, mas não significa que não está
embutida aí a dor e a doçura dessa escolha.
Outra peça presente na Bienal é o 12 meses.4 Um trabalho que deu
muito, muito pano para manga para fazer. Ele foi realizado entre
2004 e 2005 e utilizou como suporte de apresentação a minha
conta de luz. Todo mundo conhece a conta de luz. Essa aqui é a
conta da Light. Ela apresenta um gráfico mensal do consumo anual
em kW. Meu desafio foi perceber e abordar esse gráfico como uma
A escolha das obras se deu de modo muito espontâneo, porém
com condições: “Não, esse trabalho (o 12 meses) tem que estar,
assim como a cabana”. Os outros dois trabalhos me deixaram escolher: “Olha, apresenta aqui três ou quatro outras opções para a
gente determinar, juntos, o que fazer”. Mas eles explicitaram o
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“E uma coisa que sempre
me atraiu muito foi a
possibilidade de perceber
os processos artísticos, mais
do que algo relacionado
com a produção de objetos,
mais do que fazer arte,
com a possibilidade de ver
o mundo dentro de um
estado, ou seja, de se estar
em arte.”
que gostariam: “Procuramos obras suas em que houvesse a presença de som, porque é algo que você tem feito, e se possível que
envolva sistemas”. Então, o trabalho seguinte, que acabou sendo
escolhido, foi uma peça que fiz especialmente para a Bienal, uma
versão inédita de um trabalho chamado Hino dos vencedores.6 O
Hino dos vencedores foi um projeto que surgiu em 2008 diante de
uma notícia banal que eu ouvi no rádio, que era que a Mega Sena
havia completado dez anos de existência e premiado mil pessoas.
Achei aquilo extraordinário, porque de alguma maneira a loteria é
algo que resume para nós a possibilidade de sorte, a possibilidade
de, em uma sequência aleatória de seis números, deparar-se com
a transformação absoluta da sua vida. Ela é um dos gestos de fé
consumista contemporâneos mais presentes na nossa cultura. E
eu não sabia o que fazer com aquilo, porque artista, no final das
contas, divide as suas perplexidades com o mundo, divide os seus
espantos, e eu estava muito espantado com aquilo, estava tentando
dar forma para essa sensação. O que acabo fazendo, como a maioria
das pessoas, é ir usando as minhas ferramentas, aquelas que possuo,
para abordar problemas, como uma forma de aproximação e dali de
dentro alguma coisa acaba saindo. E, por ter alguma familiaridade –
e aí, eu teria que falar do meu trabalho anterior e eu acho que hoje a
gente não tem esse tempo ainda –, eu tenho certa facilidade de lidar
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com máquinas, construir padrões, identificar padrões, ou máquinas
que constroem padrões, em uma série de questionamentos que vão
desde a ideia de empurrar os limites do desenho de paisagem até
a possibilidade de, por meio de uma repetição ou de alguma coisa
extremamente monótona, transcender isso e poder transformar
isso em um objeto que vai habitar o circuito de arte pelo drama
que ali foi embutido. De alguma maneira a conta de luz eu acho
que fala um pouco disso.
tocar. Ela ficava na última prateleira do quarto delas. Elas são mais
velhas do que eu, e eu mantinha uma relação de paixão suicida com
aquela coisa, porque sempre que elas saíam do quarto eu arrumava
um banco para subir, uma almofada pra pôr em cima do banco, e
pegava a caixinha e a ligava. Aquele era o prazer do homem bomba,
porque eu sabia que ia apanhar depois, ia explodir, então ouvia por
poucos segundos a caixinha já esperando o tapa vir. E, quando o
homem não dá conta, o menino que vive com ele, que lhe dá a mão, é
assim que o Milton Nascimento fala?, vai resolver a fissura. [Risos]
E, é exatamente isso, grande parte dos meus trabalhos é a visitação
madura dos meus medos e prazeres de infância.
E aí, reparei que o bilhete de loteria brasileiro é exatamente do
mesmo tamanho que um tipo de caixa de música que existe no Japão
há sessenta anos, que se utiliza de cartões perfurados para produzir
música. Isso assim?! Sem razão alguma?! “Ah! Cadu, isso aconteceu
do nada?” Não. Na verdade, não, porque alimento uma enorme
paixão por caixas de música, acho um objeto muito interessante,
que me fascina desde a infância. Logo fui capaz de estabelecer
uma relação entre fatos aparentemente distantes; o tamanho do
bilhete de um jogo de azar e a partitura de uma caixa de música,
cuja razão se reporta à história dos processos de automação, que
não vou explicar nesse momento.
Mas acredito que a origem dessa curiosidade existe, porque as
minhas irmãs tinham uma caixinha de música que eu nunca podia
“Bom, já que agora eu sou um adulto, posso brincar, posso usar
de forma profissional os objetos que, de alguma maneira, eram do
meu universo lúdico”. Então, eu tenho muitas caixas de música e
essa caixa de música fazia parte do meu acervo.
Temos na Mega Sena seis dezenas, essas seis dezenas são colocadas
dentro de um universo de cem dezenas para se escolher, mas a Caixa
Econômica Federal mantém, acho, seis ou sete loterias em que o
número de dezenas é variável; alguns jogos têm vinte dezenas,
outros doze. A quina tem cinco dezenas só, e isso determina também
o valor de cada uma delas. A Mega Sena são seis e é a loteria mais
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rica, a loteria que dá os prêmios mais altos. Procurei na internet,
peguei os mil jogos, cronologicamente organizados, dos mil ganhadores, e furando as dezenas no próprio cartão de loteria, quando eu
os passasse dentro da caixa de música eles corresponderiam a uma
nota musical. Desse modo foi possível construir o que chamei de
O hino dos vencedores. Um título irônico, uma vez que não existem
hinos para perdedores. O hino é ode ao triunfo. Vou mostrar para
vocês um filme muito pequenininho que eu fiz caseiramente em
2008 para explicar o trabalho para um amigo meu que morava na
Inglaterra, o que eu estava fazendo na época, e depois eu conto
como é que ficou a montagem na Bienal.
caixinhas continha uma tripa dos cem jogos que constituíam, no
final, a soma de mil, e acompanhavam um desenho. Vocês viram
que no momento do vídeo eu estou martelando e depois colando
umas bolinhas. Isso foi na verdade, no início, algo que acontecia
perifericamente ao processo, eu queria fazer uma música, mas reparei que, conforme ia furando, os cartões iam acumulando aquelas
bolas cravadas com os números em uma outra superfície. Pensei:
Caramba! Que engraçado! Isso ilustra, de alguma outra maneira
apresenta, devolve a ideia de acaso, desenho, mas dá outro tipo de
visualidade ao processo que eu estou construindo, que é eminentemente sonoro.
[Exibição de filme]
Então, eram apresentados a tripa dos cem jogos, a caixa de música
com um loop pequeno de trinta jogos e um desenho de 30 x 30 cm,
constituindo aquele volume da minha ópera de dez canções.
Bom, o que vocês viram ali é um pequeno trecho, são trinta jogos
só, que estão enfileirados. A apresentação, na época, para a Mega
Sena, quando eu fiz o trabalho só com a Mega Sena, cada trabalho
era constituído por um conjunto – e eu vou ter que abrir aqui uma
outra pasta, só para vocês entenderem uma coisa – vou explicar a
diferença das coisas que estão na Bienal...
Este é o trabalho que está na Bienal, mas o trabalho original era
composto por dez caixinhas de música, sendo que cada uma dessas
Para a Bienal de São Paulo eu fiquei resistente, porque tenho quase
uma obsessão por não repetir trabalho. Eu não gosto de refazer um
trabalho, porque, como muitos dos meus trabalhos têm a possibilidade de usar sistemas, é fácil eles serem reproduzidos novamente,
eu criar as condições iniciais para que eles possam ser apresentados,
apesar de quase sempre o resultado ser diferente, porque eu gosto...
depois que eu entendo um trabalho, depois que eu já o domino ou
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que ele não me leva mais para aventuras, eu começo a me sentir
excessivamente confortável. Não aprecio sentir-me assim. Eu acho
que o bom criador é aquele que está sempre trabalhando no limite das
suas forças, porque, no processo, vai para lugares que até então não
conhecia. E tem um professor aqui na escola, o Charles, que resume
isso de uma forma muito inteligente: “Estilo pode ser a única coisa
que você foi capaz de fazer e depois você não sabe fazer outra coisa”.
Porque é verdade, algumas vezes dá tanto trabalho você se tornar
fluente em determinado vocabulário ou adquirir certas habilidades
que depois você não consegue abrir mão delas, e elas podem se tornar,
então, uma prisão, uma prisão maneirista que, na verdade, você deveria abandonar, para que possa ir para outros lugares, para que possa
visitar outras paisagens e se dar o direito de nem sempre acertar.
Porque a maioria dos artistas acaba querendo chegar a esse primor
visual, a esse primor estético – odeio usar essa palavra, desculpa –,
esse certo valor de apresentação, mas não sabem depois fazer outra
coisa, porque naquele momento é simplesmente apresentação da
conquista de um meio, a conquista de uma ferramenta. Ao invés de
ser um especialista, acho muito mais interessante ser um generalista,
sempre ser ou estar em estado de estrangeiro diante de alguma coisa,
por isso fico pulando por diversas áreas e linguagens artísticas, mas
tudo bem, isso aí é história do Scooby-Doo, né? Que você conta no
final do desenho para dar sentido a tudo. [Risos]
O trabalho da Bienal, ele contém então... eu fui lá, e eles falaram: “A
gente queria usar esse trabalho novamente!” Mas eu falei: “Novamente não dá, eu não vou fazer a Mega Sena de novo. Me desculpe,
tá? Eu posso fazer uma outra coisa que eu não fiz e gostaria de
tentar, que é o seguinte: a Caixa Econômica Federal mantém outras
cinco ou seis loterias, algumas delas utilizam outros tipos de combinações numéricas. Logo, a Lotomania, por exemplo, eu acho que
utiliza quinze ou vinte números, enquanto que a Quina utiliza
apenas cinco, a Mega Sena seis, a Timemania não sei quantos.
Vamos, então, pegar os cem primeiros jogos de cada uma dessas
loterias e vamos novamente estabelecer outro processo”. Então,
o que temos aqui são cinco desenhos, cada um desses desenhos
contendo os cem primeiros números dessas loterias, que eu já
não sei qual é qual. Até porque a ideia era exatamente que eles
pudessem se confundir, mas você tem aqui cem jogos da Mega
Sena, cem jogos da Quina, cem jogos da Lotomania, cem jogos
da Timemania, cem jogos da Loteca... Desse modo construímos
músicas com diferentes camadas de som, que podem ser manipuladas simultaneamente.
É claro que o público da Bienal é um público muito grande e muito
voraz, quando vocês forem lá, infelizmente vocês vão ter que pedir
pra mexerem, não vão ser vocês que vão mexer. A gente tentou
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durante um espaço de um ou dois dias, quando a Bienal abriu.
Porém tivemos que impedir a interação direta, pois a velocidade e
a agressividade com que as pessoas estavam mexendo, ansiedade,
enfim, uma série de coisas, que vai desde curiosidade até perversão
mesmo, fizeram o trabalho não aguentar. Mas, a ideia toda era essa,
que as pessoas pudessem tocar a obra.
museu muito bacana projetado pelo arquiteto português Álvaro
Siza. Ao completar dez anos de bolsa, resolveram chamar todos
os premiados. Apresentei dois projetos, um deles foi realizado
e o outro não, pois sofri um acidente de moto. Ao me recuperar,
o que levou aí uns quatro, cinco meses de tratamento, acabei
passando muito tempo de cama, então eu trabalhava ou mexia
com coisas que eram muito pequenas, que coubessem no leito.
Em algum momento eu resolvi mexer de novo no meu trem, no
meu trenzinho elétrico, e aí, mexendo nele, reparei que, se eu
pegasse o meu trem e fundisse com a ideia de uma caixinha de
música, se o próprio trilho fosse, digamos assim, o cilindro ou o
lugar onde o motor, que é o trenzinho, iria circular, e tudo que eu
colocasse ao redor fossem as notas musicais, poderia construir
algo interessante.
O quarto trabalho é um trabalho chamado Partitura.7 O Partitura, mais uma vez, é um trabalho que habita o meu universo
infantil, que é a minha paixão por trens e a associação dessas
viagens com ritmos; de tratar-se sempre de uma viagem modulada pelo som, pelo som dos postes que passam ao lado e criam
uma certa variação de pressão no seu ouvido... e por aí vai. E ele
aconteceu pelo seguinte: em 2010, eu fui chamado para participar de um workshop na Fundação Iberê Camargo, que fica em
Porto Alegre, como resultado de uma exposição de dez anos de
uma bolsa que eu participei e ganhei. É uma bolsa que existe até
hoje, que vocês – dependendo do nível de ambição dentro da
prática artística – devem tentar com o tempo, chamada Bolsa
Iberê Camargo. Participei da primeira seleção, ganhei a primeira
bolsa e fui para a Inglaterra. Quando voltei, fiquei fazendo um
monte de outras coisas, paralelamente. A Fundação foi ganhando
envergadura, até que hoje em dia possui uma sede própria. Um
Eu já tinha que dar um workshop mesmo e pedi para o pessoal da
Fundação: “Olha, me comprem três kits de trem tal, tal, tal”. Aí os
caras falaram: “Pô, mas para quê você quer isso?”. “Quero para um
workshop em que eu vou levar os kits, vou preparar esses trens de
uma determinada maneira e vou fazer uma proposição de três,
quatro dias”. E foi o que aconteceu. Levei os trens, levei junto uns
vagões adaptados em que a gente podia parafusar uma aleta, não sei
se vocês estão vendo aqui, de metal. Essa aleta batia em qualquer
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objeto colocado na periferia do circuito e gerava sons. Durante três
ou quatro dias fiquei construindo músicas com essas pessoas ou
necessariamente não, ou tentando libertar o som da música, né?
Que é uma coisa que muita gente tem necessidade ao lidar com
sons, querer logo criar música.
E aí, então, feita a apresentação das quatro peças, nós começamos a
montagem do meu espaço lá. Decidimos então que eu ia fazer mais
uma vez o Partitura, foi a terceira e última versão desse trabalho,
eu não vou mais mexer nele, e falei: “Bom, então eu vou encerrá-lo
em uma escala, em uma envergadura que até então eu nunca fiz, eu
tinha muita curiosidade para fazer”. Então, a gente comprou um
monte de kits, um monte de vagões, garrafas, copos diferentes, e
eu fiz uma peça com uma escala ambiciosa, que é essa daqui, que
esta lá na Bienal, vocês vão poder ver.
[Exibição de vídeo]
Esses circuitos foram feitos por eles...
E foi excelente a oportunidade, porque eu pude entender o que
eu deveria mudar no trabalho, qual era o nível de potência que
o trabalho teria ou não para sobreviver depois de um momento
menos doméstico, menos caseiro e quais são as coisas que podem
acontecer, como um vagão soltar, a locomotiva voltar. Como eu ia
lidar com esses acidentes ou não, esses acasos felizes.
Fizemos muitos, muitos trajetos. Muitas vezes eu começava com
uma frase, uma frase musical e eles, então, iam... Os alunos e eu,
dividindo a autoria. Eles traziam os copos, as garrafas, às vezes
pegávamos os próprios materiais que a parte do educativo lá tinha
e a gente podia manipular uma cerveja, uma coca-cola, uma latinha
de spray...
E o espaço ficou assim, então. A grande maioria das salas da Bienal
de São Paulo são salas fechadas com paredes, e eu escolhi uma “não
sala”... Conversando com o curador, ele afirmou que havia um dado
muito grande de natureza envolvendo o meu trabalho e da ideia
de som, talvez o som fosse incomodar quando fosse confinado, e
a coincidência feliz de eu estar ocupando uma área do pavilhão
em que havia árvores muito perto, do outro lado do vidro. Eles
me apresentaram algumas plantas, falaram: “Você quer uma área
aberta?” No início, eu pensei: “Poxa! Por que eu não tenho uma área
fechada como todo mundo?” Mas aí eu vi que isso, o que aparentemente, nos primeiros cinco minutos, me pareceu um problema,
poderia ser uma excelente oportunidade, porque era uma maneira
de fazer que um trabalho e outro interferissem menos entre si,
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Estações, 2012
Estações, 2012
Foto: Adriano Facuri
Foto: Cadu
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porque vaza o som, e em um contexto de Bienal, eu quase obrigo
as pessoas a passarem pelo meu trabalho, porque ele está numa
área de passagem, então ele, invariavelmente, foi visto, eu acho,
por praticamente todas as pessoas que foram ao prédio.
pequeno animal que se aproxima de você, e eu não vou negar esse
impulso nesse momento. E acabo, então, mandando filmes que
contêm esse tipo de postura lá. Este aqui, por exemplo, é um filme
longuíssimo, de meia hora, que contém o meu pôr do sol, só para
vocês terem uma rápida noção...
Então, meu espaço é aberto e vocês vão entender lá como é que
ele funciona, mas ele é da seguinte maneira: uma área contém o
Hino dos vencedores, a outra é uma área designada para o projeto
Estações, em que há no chão uma marcação em tamanho real da
minha cabana, bem Dogville, recordam? Em frente a ela, há uma
parede onde eu mando fotos, coloco desenhos, coloco as plantas
digitais do processo, tudo que fui fazendo até essa cabana existir,
uma maquete em escala, disposta na posição exata da planta, para
as pessoas perceberem, fazerem esse exercício de tamanho, e um
texto em que eu apresento, em cinco parágrafos, o que é o projeto.
No final, optamos também por uma televisão com vídeos em tom
bem caseiro, mostrando aspectos da minha vida lá. Há registros
que parecem ser muito clichês e são. No entanto, quando você está
vivendo em um ambiente daqueles, a paisagem se impõe com uma
força tão intensa que você não tem como não filmar o pôr do sol,
você não tem como não filmar o nascer do sol, você não tem como
não se espantar com uma pequena formiga andando ou com um
Não possuo energia elétrica em abundância, tenho um “gato”, que
eu fiz de um galinheiro que fica a uns trezentos metros da minha
cabana, então é um fiozinho só, que sai de lá até a minha casa, e como
a distância é muito grande, eu tenho muita perda de energia no
caminho. Só consigo força suficiente para alimentar o meu laptop e
ter uma lâmpada, e é o suficiente, para falar a verdade. Banho, eu até
instalei um chuveiro, mas não consigo usar o chuveiro quente, cai
a luz, só uso ele frio, então quando preciso tomar banho quente, eu
tenho um banho solar, que é um saco de um plástico bem resistente,
preto, que você pode deixar no sol ou preencher de água aquecida.
É um banho de acampamento, que funciona muito bem para um
homem de cabelo curto. [Risos]
Mas há gravações curtas; eu fui adotado por uma macaca, eu não
adotei ela, ela que me adotou, porque ela frequenta a minha casa,
ela vai três ou quatro vezes por dia lá. Eu sei que é uma macaca,
porque eu identifiquei, mas isso é muito raro, porque esse animal
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deve ser um animal jovem, que o bando ou separou ou descartou
ou morreu, porque eles são animais gregários, eles vivem juntos,
então eu acho que como ela está nesse estado ainda de adolescência, ela fica comigo.
sozinho, apesar de não ser um ermitão ou uma pessoa com medo
de gente. Porque vejo aquilo como um período ritualístico, uma
pequena dança solo que inventei, uma escolha, e essa escolha vai
acabar em algum momento. Mas o meu medo está em não desejar
voltar, não sair dali. Isso eu temo.
E esse é um dos filmes que estão lá, e esse filme causou um enorme
mal-entendido que eu fui descobrir outro dia, porque o meu trabalho, não sei, felizmente ou estranhamente, foi listado, num review
da Art in America, como um dos dez trabalhos mais importantes da
Bienal, dessa trigésima edição. Porém é afirmado que a obra acontece na Amazônia, e não sei se isso influenciou o ranking [Risos da
plateia]. E ontem eu tive uma reunião com uma curadora, que está
curando a Bienal de Istambul, e ela falou: “Como é o seu projeto
na Amazônia?” Aí eu falei: “Olha, vou ser muito sincero com você,
se você veio por isso, acho que você vai se decepcionar, porque a
minha casa não é na Amazônia, a minha casa é no Rio, mas ela está
na Mata Atlântica, na rainforest...” Enfim, aí o mal-entendido foi
desfeito, mas eu não sabia disso. Tudo culpa da macaca... [Risos]
Muitas pessoas se preocupam com minha saúde mental. Mas isso
é bem relativo aqui. Acho que já surtei faz tempo. [Risos] Não, eu
não tenho medo, não disso exatamente, porque me sinto muito
confortável nesse tipo de ambiente, consigo passar muitas horas
Há um livro em particular muito importante, do escritor Henry
David Thoreau, que é talvez o sujeito que mais me habita o imaginário para ter tomado a decisão de montar o Estações. Em 1845,
resolveu construir uma cabana nas margens do Lago Walden e lá ele
morou dois anos e dois meses, voltou e escreveu um livro chamado
A vida nos bosques. É um sujeito mais conhecido por um ensaio
chamado Desobediência civil,8 mas, apesar da qualidade prosaica do
que ele escreveu, em termos de literatura, o exemplo dele reverbera
até hoje como um dos primeiros gestos eminentemente políticos
e ecológicos registrados.
Bom, o que eu tinha para falar é isso. [Aplausos]
Aluno: Queria perguntar de alguma dificuldade que você
tenha tido nesse trabalho da cabana, que você tenha
transformado... e agregado ela ao trabalho. Como é um
trabalho que está em construção, algum contratempo...
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CADU
Não. Há limites, né? Há limites o tempo todo, dá muito trabalho
para entrar e dá muito trabalho para sair.
também é muito estranho, porque durante alguns dias lá dentro
eu sonho com a cidade, meus sonhos todos acontecem em um
contexto urbano, só depois de três ou quatro dias é que eu começo
a sonhar com a cabana, meus sonhos habitam ali. E isso é prova da
complexidade ou da dificuldade que é fazer o que eu estou fazendo,
apesar de isso ser absolutamente irrelevante para o resto do mundo.
Apenas tem valor para mim. Mas não, ainda não consegui formalizar
um problema, só contá-los, só consigo enxergá-los!
Aluno:
Você vai sem carro?
Não, eu vou de carro, mas tenho que deixar o automóvel na base da
montanha, da propriedade em que eu estou, e subir a trilha a pé. As
dificuldades, em geral, eu ainda não consegui dar forma a algumas
delas, mas elas existem, que é uma enorme tentativa do mundo de
me trazer de volta para a cidade o tempo todo, o tempo todo alguma
coisa acontece, eu não sei por quê, não são coisas boas, sabe? São
eventos familiares importantes, são coisas drásticas, são viagens,
e eu fico em uma espécie de balanço, decidindo...
Aluno:
Você cede?
Cedo, eu cedo quando não tenho escolha, acho que um dos poucos
caprichos que eu fiz foi ir ao aniversário de 91 anos da minha avó.
Pensei: “Bom, essa mulher não vai estar aí muito mais tempo, não
vai fazer 92, então eu vou...” [Risos]
Talvez tenha sido uma das minhas saídas mais luxuosas de lá, o
resto do tempo fico lá, porque não tenho opção de sair, sabe? Isso
Vi um trabalho seu, o projeto Cavalo, no Oi Futuro,9
e hoje de manhã eu vi uma entrevista, mas, enfim, queria
saber como é essa relação com a musicalidade: tinha uma
experimentação musical e nos seus trabalhos tem isso:
passeiam pela musicalidade, não têm essa relação com as
notas, mas com o som...
Aluno:
Sou apaixonado por música há muitos anos, militei na cena cultural
musical por algum tempo e ainda trabalho com músicos. Mas o que
foi me atraindo para usar o som foi que a visualidade não dava mais
conta e porque o som chega ao seu ouvido independentemente do
seu desejo. Se você não quer ver alguma coisa, você fecha os olhos;
agora, não escutar algo é muito difícil e a capacidade que o som tem
de transformação do espaço em que você se encontra, do seu estado
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interior, é muito pré-verbal. Aquilo atinge o seu corpo de uma
forma impossível de ignorar. Então comecei a explorar um pouco
isso. Mas um dos motivos principais é que percebo que na música
a ideia de colaboração é acrescida e a de autoria diminuída. Isso
em nome da construção de uma obra ou de um sentido que pode
nem pertencer a você. Essa diluição generosa da autoria me atrai.
O projeto Cavalo foi um dos exercícios mais difíceis que já atravessei
coletivamente. Trabalhei com dez artistas durante um ano, foram
nove meses de ensaios, mais apresentação, em que eram todos
caciques, era muito cacique, mas todos eram obrigados a virar
curumins se quisessem fazer que algo desse certo ali. Então, todos
indivíduos muito bem colocados e reconhecidos em suas áreas de
atuação, ali, em termos de música, engatinhavam.
Tento em alguns outros trabalhos diminuir o meu nível de responsabilidade mesmo sobre a obra, quando crio um sistema que vai
trabalhar com o vento ou um sistema que utiliza colaboração dos
números da loteria ou um sistema que utiliza meu deslocamento
em paisagens por meio de um pequeno sismógrafo que absorve
as vibrações desse deslocamento e gera uma imagem. Então, essa
gentil doação de ideias e de colaborações, que antes eu fazia com
coisas inanimadas, hoje em dia eu passo a fazer com autores. E
aprecio isso mais ainda pelo fato de não ter uma formação musical, eu não sei muita coisa de teoria musical, não sei tocar muitos
instrumentos, não sei tocar nenhum. Para falar a verdade, quem
toca muitos instrumentos? Só o Prince, né? [Risos] Se eu tocasse
um bem, já estava bom, mas eu não toco nada bem. No entanto,
não me intimida trabalhar com essa linguagem. Não sou capaz de
prever por quanto tempo essa fase vai durar, mas já tem durado,
talvez aí, um ano e meio.
É mais uma curiosidade do que uma pergunta.
Eu queria saber sobre a experiência de morar em uma
montanha: é uma experiência bastante particular, porque você
vê uma imensidão na sua frente e o espaço que você habita
de terra é muito pequeno, então acho que isso causa um
desconforto, ainda mais quando você está sozinho, você não
tem para onde fugir.
Aluna:
Bom, na verdade, um pouco como o Absalon, eu construí um
pequeno templo da contemplação. Eu me entoco e em determinadas circunstâncias identifico certo aprisionamento. Entra muito
frio, e foi até por isso que eu escolhi entrar no inverno, porque eu
acho que é um momento em que o mundo se contrasta, em que o
frio te cutuca, de certa forma te separa do fora, e aí você é obrigado
a comer o próprio estômago.
Aluno:
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O telefone pega?
O telefone pega, mas até alguém chegar lá, sabe? Então eu presto
muita atenção em tudo que faço porque a qualquer momento aquilo
pode colapsar. Por exemplo, eu desvio água de uma nascente que
fica montanha acima uns 250 metros. Desci um cano que vem de
lá, quando chove muito o cano sai, entope, solta e eu tenho que ir
lá emendar a tubulação. Se me descuidar, caio e ninguém vai ficar
sabendo. Logo, sou obrigado a prestar muita atenção em tudo que
faço e me envolvo. Agora, é bom, 99,9% do tempo é muito bom. A solidão, uma companhia que uso a meu favor, como uma companheira.
Eu falo para os meus alunos, aqui: prestem atenção, porque vocês
estão fazendo o Fundamentação, ele pode ser a concretização de um
desejo que vocês estão gestando há muito tempo e que agora está
ganhando corpo. Porém você pode ter esquecido o pedido. Quando
você botou o dente debaixo do travesseiro, levou tanto tempo para
essa coisa vir ao mundo, você já não lembra mais, então é sempre
bom você ter bem certo na sua cabeça quando você estabeleceu
certas coisas. Por esse motivo a estrela cadente é um excelente
exemplo da ideia de desejo, porque estou tão distante dela, e é
tão raro olhar para o alto e ver uma passando, que ela pode ser a
imagem que me separa fisicamente do que eu quero e de como isso
vai acontecer. A cabana é, nitidamente, o objeto, a construção que
eu sei exatamente quando gestei e quanto tempo levou para ela
acontecer, foram mais ou menos uns vinte anos.
Bom, eu acho que a gente vai ter que
terminar, eu sei que o Cadu, quando se prontificou, disse que
teria que sair às cinco horas em ponto... (risos)
Tania queiroz:
Hoje não está sendo dia de cabana excepcionalmente, né?
Mas foi um dia de Cabana!
Queria agradecer muito! O Cadu falando de forma tão
tocante sobre o trabalho, a gente fica realmente emocionado
de ouvir. Obrigada!
T.q.:
Obrigado a vocês!
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CADU
Notas
Saiba mais:
1. Criado no ano de 2000 por Maria Helena Bernardes e André Severo, Areal é um
projeto em arte contemporânea brasileira cujas principais vertentes de atuação são o
suporte à produção de artistas convidados e a publicação da série de livros Documento
Areal.
GALERIA LAURA ALVIM. Cadu: entardecer no ano do coelho. Textos de Fernando
Cocchiarale. Rio de Janeiro, 2011. 43 p.
2. 32º Panorama da Arte Brasileira. Curadoria de Cauê Alves e Cristina Tejo. Realizado
no Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo, de 15 de outubro a 11 de dezembro
de 2011.
3. 30ª Bienal de São Paulo/SP. Fundação Bienal de São Paulo – A Iminência das Poéticas.
7 de setembro a 9 de dezembro de 2012.
4. CADU. 12 meses, 2004-2005. Ampliação digital. Dimensões: 25 x 100 cm.
5. CADU. Estações, 2012. Maquete, fotografias, amuletos e vídeos. Dimensões variáveis.
6. CADU. Hino dos vencedores, 2008-2009. Caixa de música, bilhete de loteria e papel.
Dimensões: 30 x 30 cm (desenho); variáveis (instalação).
7. CADU. Partitura, 2010-2011. Instalação. Trem elétrico, trilhos, hastes, copos, garrafas
e madeira. Dimensões variáveis.
8. THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Porto Alegre: L&PM, 2007. 88 p.
9. Apresentação realizada no festival Multiplicidades. Oi Futuro Flamengo, Rio de
Janeiro, 24 de novembro de 2011.
GALERIA VERMELHO. Cadu Costa: manhã no ano do coelho. São Paulo, 2011.
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felipe barbosa
Eu queria agradecer a presença de todos vocês aqui e o convite da
EAV. Primeiro, é um prazer estar aqui, retornar, de certa maneira, à
escola, um lugar que, afetivamente também, é importante na minha
formação. Apesar de não ter frequentado durante muito tempo, foi
um lugar importante, sem dúvida, para a minha formação.
Eu estava aqui, enquanto vocês estavam chegando, deixando rolar
um vídeo de uma exposição que, na verdade, não foi a última que eu
fiz, mas ainda está em cartaz, é um trabalho no Museu do Futebol,1
que, na verdade, é uma instalação interativa que eu fiz junto com
o VJ Spetto, a convite do curador Leonel Kaz. É uma espécie de
cenografia, instalação, em que a obra dele atravessa a minha, de
alguma maneira, para falar de vestiário, que era, digamos assim, o
Ursa mel, 2007
Urso de pelúcia recoberto por
estalinhos coloridos
100 x 90 x 86 cm
Foto: Studio Barbosa Ricalde
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assunto da curadoria. Vou, na verdade, mostrar um pdf do último
livro que eu publiquei – na verdade está rolando aí – foi publicado
no ano passado, então está bem recente. Vou tentar não falar tanto
das imagens que vocês estão vendo e tentar falar um pouco do
conceito, de algumas questões que norteiam o meu trabalho. Vou
passar rapidamente as imagens.
interuniverso. Essas imagens foram feitas da exposição Matemática
imperfeita,3 que foi apresentada lá no Centro de Arte Hélio Oiticica,
e era uma exposição que abordava essa questão da matemática por
meio de vários materiais, mas também fazendo um recorrido de
dez anos de produção. Nem por isso uma retrospectiva, até porque
eu acho que ainda não é o momento de se pensar nesse sentido.
O nome desse livro é Matemática imperfeita,2 que é um conceito
que vai atravessar várias obras que eu faço. Vocês vão ver ao longo
da apresentação que o material, o tipo de abordagem, a técnica ou
mesmo o estilo não são questões com que eu estou preocupado,
pelo contrário, eu estou querendo que cada obra em si tenha uma
autonomia dentro do seu universo. Então, procuro achar formas
que praticamente sejam sugeridas a mim por meio do material
que eu elejo. A matemática e a geometria muitas vezes servem
tanto para justificar a existência do trabalho quanto para ser um
elemento estruturador dos objetos, um elemento conceitual e
ao mesmo tempo empírico. Porque não estou preocupado com
o resultado quando começo um trabalho, eu estou muito mais
preocupado que essa experiência gere uma resultante que vai ser
um somatório de diversas abordagens, diversos confrontos com
aquele material, com aquela situação, com aquela exposição. Então,
de certa maneira, cada trabalho é um site-specific dentro do seu
Todas as minhas exposições individuais, na verdade, são pequenas
curadorias em que eu tento agrupar um determinado universo de
questões que, quando agrupadas, serão mais evidentes. O que eu
quero dizer com isso? Cada trabalho é um universo em si e esses
universos podem estar agrupados de diversas maneiras. Eu posso
falar, por exemplo, desse trabalho Sinuca de bico,4 desde questões
dos jogos ou no caso da relação matemática como estava nessa
exposição, mas agora esse trabalho vai participar de uma exposição5 sobre o surrealismo e a relação do surrealismo com o Brasil.
Então, eu também quero que o trabalho sempre possa gerar leituras
diversas, eu não estou preocupado com a minha intenção, quando
eu realizo um determinado trabalho. O que eu uso, na verdade, além
dos materiais cotidianos, estou sempre lidando com uma experiência prévia do espectador em relação àquele material, quer dizer que
cada trabalho, na verdade, vai ser lido, interpretado perante uma
bagagem cultural que o espectador vai carregar para aquela leitura.
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“A obra sempre
vai procurar falar
em vários graus e
falar particularmente
para cada pessoa.”
Então, ele nunca está completo sem a participação do outro, sem
você gerar o estranhamento. É no reposicionamento dos objetos,
na frustração da expectativa em relação à natureza das coisas que
eu tento inserir minha prática artística.
Essa diversidade de materiais e técnicas, também, faz que a cada
novo projeto eu tenha que aprender novas técnicas. Obviamente,
por algumas coisas pessoalmente eu me interesso, então acabo
aprendendo. O último curso que fiz foi de soldador e serralheiro,
um pouco para poder entender o processo... e acabo montando
essas oficinas no meu ateliê, que concentra vários tipos de produção. Trabalho com muitos parceiros, muitos colaboradores de
diversas áreas e esse leque de ferramentas, de instrumental e de
parceiros vai sempre se ampliando, porque estou sempre indo
atrás da melhor resposta para a ideia e não tentando adequar ao
trabalho o meu conhecimento técnico ou as minhas limitações de
qualquer tipo. Obviamente a sua experiência, o seu acesso ou não
às coisas, acaba sendo um elemento constituinte, limitador, por
isso eu digo que cada obra acaba sendo um site-specific dentro do
seu próprio universo.
Esse aqui, Mergulho do corpo,6 é mais um exemplo dessa questão
que eu falei, a questão do labor especializado... Seria impossível,
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eu demoraria uns três ou quatro anos aprendendo a azulejar, para
poder chegar a esse grau de precisão matemática, mas ao mesmo
tempo uma matemática que vai se adequando às necessidades,
uma matemática mole, uma matemática que eu não sei se o resultado está certo ou está errado, mas ela resulta, ela funciona e ela
chega a um determinado resultado, e essa resultante será sempre
influenciada pelo que o espectador está trazendo, por isso é uma
matemática imperfeita.
Então, ele tem um poder de transformação inerente a qualquer
matéria, mas que em alguns objetos eu procuro evidenciar, me interessa o risco. Ao mesmo tempo que você é convidado a se aproximar
da obra, a obra também te oferece um certo perigo real e, também,
esse perigo vai ser emprestado pela pessoa, tanto no cenário cultural quanto no cenário psicológico mesmo. Eu digo cenário cultural
porque tem outros trabalhos meus, por exemplo, uma obra que se
chama Homem bomba,8 que é um boneco feito com morteiros de
São João, fogos de artifício. É um objeto que oferece risco real em
um ambiente: ali, ele realmente pode explodir e as pessoas podem
sair feridas. Esse trabalho, nos EUA, curiosamente já foi para uma
exposição lá e foi super mal-recebido, e na mesma exposição tinha
essa série que se chama Teddybear, com bichos de estalinhos e
eles são super bem-recebidos, apesar de terem o mesmo tipo de
relação de risco... É por isso que eu digo: a relação cultural vai ser
determinante para a sua leitura da obra, a obra não vai estar completa em nenhum estágio, nem dentro do ateliê, nem na rua, nem
na exposição, nem depois que ela for totalmente sistematizada,
avaliada pela crítica, pelo meio. A obra sempre vai procurar falar
em vários graus e falar particularmente para cada pessoa.
A imagem resultante, que me interessa pouco em muitos casos,
é como, neste trabalho7 aqui, eu joguei uma partida de pingue-pongue e a bolinha era toda feita de giz, então onde ela tocava a
mesa marcava com maior ou menor intensidade e a partir dessa
marcação eu cavei a mesa para poder encaixar as bolinhas com
maior ou menor profundidade. Então, a imagem que está aqui no
trabalho pouco importa, ela vai ser o resultado desse jogo, dessa
partida, porque, se mudar alguns poucos elementos dessa operação,
muda novamente a imagem.
Um outro aspecto que me interessa particularmente neste trabalho
e que em várias outras obras vocês vão ver é o sentido de latência.
Latência em alguns casos é bem evidente, como, por exemplo, esse
urso que é feito de estalinhos. De fato, ele explode se for atingido.
Esta aqui,9 na verdade, é a origem para alguns trabalhos. Outro
aspecto recorrente que vocês vão ver na minha obra é que as séries
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não se fecham. Eu faço uma analogia do chinês que roda pratos ao
mesmo tempo e ele tem que voltar para continuar girando o prato
que ele deixou para trás. Então, tem essa relação de o trabalho e os
materiais continuarem a falar comigo. E então, às vezes, mesmo
uma série que já foi exposta, quando volta para o ateliê, eu posso
olhar, cinco anos depois, e mudar sem nenhum tipo de pudor, porque acho que também tenho que me dar esse espaço dentro do
meu próprio trabalho.
uma tartaruga para conseguir chegar a essa textura, chegar à cor.
Então, também tem um labor que seria impossível sem a participação de outros colaboradores. Eu falo muito isso porque o que
se evidencia no meu trabalho e na minha aproximação com a arte
é que, na verdade, você é proprietário das ideias, a mão do artista
não é uma questão muito importante para mim. Obviamente, eu
faço muita coisa, até por necessidade e por gosto, mas acho que
a invenção reside muito mais no pensamento e no pensamento
olhando, no cotidiano do trabalho, e você está sempre entendendo
a evolução dele, a que caminho ele vai te direcionar. Então, é um
caminhar atento às próprias coisas do mundo, muito mais do que
uma imposição técnica, uma imposição conceitual, é um caminhar
junto das coisas do mundo com os materiais.
Muitas vezes, também, o título do trabalho é o elemento constituinte ou mesmo o elemento disparador do trabalho. A série dos
trabalhos de estalinhos começou com essas esculturas que se chamavam Insight,10 que eram uma forma da minha própria cabeça e
enfim... Aqui, novamente, o título acaba fazendo parte da obra, ela
se chama The Record,11 é um pódio feito com os discos que seriam,
digamos, os top ten da vitrola lá de casa durante os anos 80.
Outro trabalho em que o título, não vou dizer que seria fundamental, mas é um encontro feliz com a obra é o Turtle Ball, que depois
alguém chamou de “bolaruga”.12 Ele tem uma certa circularidade
que quase descreve o trabalho, e, particularmente, foi um desafio
técnico. Eu demorei uns quatro anos para conseguir chegar a esse
resultado, ele é feito com resina. Foi superdifícil, moldei mais de
Eu vou falar um pouco dessas duas séries que nasceram juntas, elas
se chamam Mapas de consumo13 e Mapas de metrô ou Circulação,14
eles foram pensados quase simultaneamente em uma residência que
fiz, em 2001, em Madri. Eu tive uma bolsa para o ateliê de pintura
lá na Universidade Complutense de Madri e queria fazer algum
tipo de trabalho que me obrigasse a ficar fora do ateliê. Eu queria
primeiro descobrir a cidade, particularmente, e também queria
entender essa cidade e como eu poderia pensar isso em termos de
pintura. Criei essas duas séries que se chamam mapas. Aqui tem
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uma evolução de uma, explicando basicamente o que é: eu vou a
uma cidade nova e começo a catar tampinhas do chão, tampas de
bebidas alcoólicas ou não alcoólicas, e vou agrupando-as em um
campo que eu determino, em um quadro, e aqui no caso tem 1,60
x 1,10, em que cabem mais ou menos quatro mil tampinhas. E essas
tampinhas vão sendo agrupadas a partir da sua marca, e essa marca,
quando eu encontro mais, é porque foi mais consumida e, então,
eu acabo fazendo uma espécie de gráfico estatístico a partir de
amostragem do consumo daquela cidade. E novamente o resultado
dessa pintura, por mais que pareça que possa ter sido planejada,
é simplesmente um gráfico visual do consumo daquelas marcas,
por isso que essa marca tem mais que outra. Ela também tem uma
dinâmica interessante de território, onde uma marca (cor) começa
a fagocitar a outra e, quando começa a ficar mais apertado o espaço,
ela começa a expandir os seus domínios para o outro lado, tem uma
dinâmica interna que ela se autoconstrói. Então, é um trabalho que
pode ser, inclusive, encomendado a partir de uma instrução... Me
interessa muitas vezes quando você consegue pensar um trabalho
que possa quase se autorreproduzir, sendo único, original e fazendo
sentido a mudança dele, porque a cada vez que eu for a Londres com
certeza mudou a dinâmica de consumo. Tem alguns que eu chamo
de Mapas de longa duração, como o que fiz do Rio,15 supergrande,
aproximadamente 15 mil tampinhas coletadas durante dez anos,
e é curioso que as marcas vão mudando a cor no meio do processo.
Então, me interessa como o trabalho se dá para mim, muito mais
do que eu me impondo a ele. Aí acabou gerando uma série desde
2001, e eu já fiz em diversos lugares, Cidade do México, Tijuana,
San Juan, Londres, Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Nova Iorque...
Essas séries nasceram juntas, pois ambas tinham essa vontade
de estar na cidade, de estar descobrindo a cidade a partir do seu
dejeto. Não que eu me interesse particularmente por questões de
reciclagem, apesar de, às vezes, as pessoas fazerem essa aproximação equivocada do meu trabalho. É mais uma coisa que está aí no
mundo. Então, não estou particularmente interessado em ecologia,
não como artista, me interessa como pessoa. Porque eu acho que
a arte, inclusive, não pode se limitar a nada: “Ah eu não posso usar
uma tinta acrílica porque vai poluir o meio ambiente”. Tudo polui!
Então, não quero levantar nenhuma bandeira.
A série Mapa de metrô foi feita com os bilhetes de metrô de algumas cidades. Esta aqui, com os bilhetes de Nova Iorque.16 Eu cato
os bilhetes nas ruas e depois redesenho as malhas metroviárias
daquelas cidades com seus próprios bilhetes. Então, aqui é o mapa
de metrô de Nova Iorque e aí tem o de algumas outras cidades como
Madri,17 Cidade do México,18 Londres.19
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“A relação cultural vai ser
determinante para a sua
leitura da obra, a obra
não vai estar completa em
nenhum estágio, nem dentro
do ateliê, nem na rua, nem
na exposição, nem depois
que ela for totalmente
sistematizada, avaliada pela
crítica, pelo meio.”
Aqui é uma instalação que estava no Paço Imperial,20 a exposição chamava-se Estranha economia, todos os trabalhos lidavam
de alguma maneira com questões relacionadas à economia, ao
dinheiro, à troca, à falsificação, à unicidade. E lá no Paço Imperial
eu apresentei esta instalação,21 que era um ambiente doméstico em
que todos os objetos eram feitos ou revestidos completamente por
essa massa feita de dinheiro picado, dinheiro de verdade, notas que
eu consigo com o Banco Central por estarem marcadas, ou seja, o
número de série está avisando ao sistema financeiro e bancário
que foi dinheiro roubado, então, quando se recupera esse dinheiro,
o Banco Central é obrigado, apesar de elas serem verdadeiras,
autênticas, a descartar. E eu queria fazer um pouco essa ideia do
material que se constrói por si mesmo. Minha ideia é que esse
ambiente doméstico – até a origem da palavra economia tem a
ver com isso. Tudo no mundo, de certa maneira, é viabilizado ou
materializado por meio desse instrumento que a humanidade
criou, que é o dinheiro. Então, eu queria dar corpo e visibilidade
a esse material. E costumo dizer, também, que todo trabalho vai
ter diversas sutilezas de leitura. Então, dentro dessa instalação,
haveria trabalhos que, às vezes pelo próprio título ou pelo que é
o objeto, criam uma autonomia. Por exemplo, aqui, são os bancos
de dinheiro,22 ou então tem as malas feitas com dinheiro,23 tem
um tanquezinho de lavar roupa que é um brinquedo, chama-se
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Aprendendo a lavar dinheiro, tem vários trabalhos que vão também
se relacionando internamente e em conjunto e, em um sentido
maior, em um conjunto de uma obra total, porque eu acho que,
no final, o que o artista está construindo é uma obra e não obras,
trabalhos isoladamente. O que interessa é realmente o conjunto,
é um tipo de pensamento que vai ser a sua contribuição, se for o
caso, à cultura, e não o objeto isoladamente.
Esse aqui, também, tem um pouco essa relação. Se chama Quadro
de cortiça,25 é um quadro de fotografias em que botei fotografias
impressas e deixei se autofotografando no sol durante seis meses,
então as fotografias geraram fotografias de si mesmas sobre um
quadro de fotografia e ele é apresentado como uma fotografia 1:1.
Então, tem essa circularidade e não poderia ser diferente, Fotografia.
Um outro aspecto que vocês vão perceber é que os trabalhos às vezes
são supersofisticados de serem feitos, apesar de não parecerem, e
outros trabalhos são felizes justamente por serem supersimples.
Esse aqui é um trabalho que se chama Lixa mão.24 Eu, basicamente,
peguei uma lixa de parede, marquei minha mão com caneta no verso
e fiquei lixando uma parede de verdade sem tentar tirar minha mão
do lugar. Queria que desgastasse só na área que tivesse minha mão
e, na verdade, eu fiz uma impressão da minha mão pelo desgaste,
uma espécie de gravura um pouco inversa. Mas, ao mesmo tempo,
o que me interessa é que eu não fiz nada, só usei minha mão para
lixar uma parede, e de repente aconteceu um trabalho. Se fosse descrever, eu diria: “Eu peguei uma lixa, botei na parede, botei minha
mão atrás da lixa e raspei a parede e isso gerou um trabalho”. Às
vezes a descrição do trabalho é uma banalidade, só que a operação
é muito sutil nesse universo banal do cotidiano.
De volta à questão dos objetos que se autoestruturam, com uma
intervenção pequena minha, autoconstrução é um conceito que me
interessa. E também outra coisa importante é um sentido de precisão
numérica em termos de elementos. O que eu quero dizer com isso?
Que não é um trabalho de acumular objetos e a partir do acúmulo
gerar um sentido: eu preciso de um número exato de objetos, às vezes
esse número exato são três mil e às vezes são seis. Como no caso dos
guarda-chuvas (abrigo), não tem como você fazer esse objeto com
nenhum a mais e nenhum a menos, não acontece essa forma, mas às
vezes o número exato pode ser vinte mil ou cento e vinte mil. Então,
a questão do acúmulo não é importante, é muito mais a questão da
quantidade precisa, a quantidade ideal para transmitir o que você
está querendo falar ou o que a obra está querendo falar.
Outro aspecto, também, que vocês percebem no trabalho é o de
coleção. Isso é uma coisa que vem perseguindo o trabalho. Não
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que eu vá colecionando e as coleções se transformem em trabalhos, é um caminho oposto. Eu penso um trabalho que já seja uma
coleção. Aqui, no caso, é um trabalho que está até participando
de uma exposição26 nos EUA, itinerando já há uns três anos em
museus supersérios, agora ela está no ICA de Boston e se chama
The Record – Arte contemporânea e discos de vinil. E é uma exposição séria, começou na Duke University na Carolina do Norte...
É curioso como esse universo curatorial é muito rico e o trabalho
pode estar encaixado sob diversas questões.
as mais clássicas que a gente imagina, de 32 gomos, vinte hexágonos
e doze pentágonos, e o que eu faço, basicamente, para torná-las
planas é retirar os pentágonos, é uma operação que se dá por si só.
E, ao mesmo tempo, é uma paleta cromática que muda cada vez que
eu vou ao mercado comprar bola, então essa paleta vai sugerindo
outros trabalhos e me permite também não cansar a minha paleta.
Aqui27 é uma coleção de assinaturas de pessoas que possuíam a
minha atual coleção de discos de vinil. Então, eu organizo meus
vinis por a quem eles pertenceram e não pelo gênero. Também
é uma espécie de autógrafos de pessoas que não são os artistas,
tem um pouco uma coleção inversa no próprio ato de colecionar,
uma espécie de coleção perversa. E aí, para a exposição, digamos,
existe a minha coleção e o objeto que está sendo exposto, eu acabei
fazendo uma série de cartões-postais, que são os fragmentos dos
discos em que aparecem as assinaturas dessas pessoas que eram
os colecionadores da minha coleção de vinis.
Essa é uma série que faço há alguns anos, feita com bolas de futebol.
Na verdade, eu desmonto as bolas de futebol, as bolas que eu uso são
Sou bacharel em pintura pela EBA e minha formação, mesmo
antes de entrar na faculdade, era produzir essencialmente pinturas. Durante quatro, cinco anos, no início da minha carreira,
eu pintava com bastante frequência. E um aspecto que me freou
foi aquela velha questão, que eu acho que todo mundo que pinta
tem: o que eu vou pintar que tenha algum sentido? Porque fazer
ilustração infantil em tela grande não é o mesmo que pintura... Isso
pra mim não era suficiente.... E esse trabalho é essencialmente de
pintura, pintura eu digo historicamente, porque historicamente
a tentativa da pintura era transmitir um mundo tridimensional
para o mundo virtual, plano, e é justamente o que eu faço nesse
trabalho com a bola, a bola, que é um objeto que por si só define
um espaço tridimensional, é constituinte do plano em que ela se
autorrepresenta. Então, na verdade, eu não estou planificando a
bola, porque não estou alterando a natureza dos seus elementos,
não estou tirando nem estou recortando a unidade primária dela,
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estou só reconfigurando o próprio constituinte de que ela é feita. Eu
poderia recortar o gomo para chegar a algum formato, algum tipo
de pele, mas na verdade eu tento me ater ao próprio elemento sem
alterá-lo, sem que ele possa deixar de ser bola, porque a qualquer
momento que eu quiser remontar a bola, eu posso remontá-la
com o plano.
falar com a pessoa quanto para a pessoa falar com o trabalho. E
essas leituras vão tornando o trabalho mais complexo na minha
cabeça, entendendo melhor o que eu estou fazendo e, também,
vendo que o trabalho está, digamos, atingindo um certo objetivo...
Nessa série de futebol mesmo, eu não entendia nada do esporte,
de que, aliás, nem gosto... Foi por conta do meu trabalho que eu
passei a gostar de futebol... O trabalho vai te empurrando para
determinadas áreas do conhecimento, o que me deixa muito feliz.
Nenhum dia no ateliê é igual ao outro.
E essas sutilezas dos universos pessoais e do olhar do outro, que
é tão importante, aconteceram para mim nesse trabalho aqui,
que é um hexágono feito com as bolas de futebol. Uma vez eu
estava fazendo uma apresentação, uma visita guiada, que tinha
esse trabalho exposto,28 para uma turma de escola pública de dez,
doze anos, e percebi que tinha um menino que só olhava para esse
trabalho, ele não estava prestando atenção em nada mais. Logo
que eu terminei a visita ele levantou o braço e perguntou: “– Tio,
esse trabalho aqui, por acaso, é uma tabuada de seis?” E eu, na
verdade, não tinha percebido que, de fato, é uma tabuada de seis
no somatório dos gomos. No centro 0 x 6 não tem o gomo, na
primeira volta 6 x 1 = 6 gomos, na segunda 12, e assim por diante,
e terminava na décima volta, exatamente 60 gomos. É uma coisa
que nem eu saquei a princípio e é muito bom quando a pessoa
de fora empresta esse olhar sofisticado, independentemente da
formação, e eu tento deixar essa abertura tanto para o trabalho
Vou falar um pouco desse trabalho que se chama Boi bola.29 Ele é
feito com couro de boi, desses que você compra em lojas de couro,
e eu cortei e montei uma bola de couro – porque nenhuma bola
no mercado é de couro. Ele é de uma edição de sete, por acaso, e
eu tinha até vendido três trabalhos dessa edição e tive a ideia de
gravar o símbolo da Nike e o final da tiragem ficou com a logo. Eu
não estou muito preocupado com esses aspectos de uma tiragem
que ficou inicialmente interrompida, porque o trabalho, digamos,
transcendeu aquela situação e acho, também, que é importante
o artista ter essa possibilidade de ser menos preocupado com o
resultado, ele sempre pode ficar melhor, sabe? Não tenho pressa
de o trabalho já estar resolvido totalmente, se tem uma coisa boa
em ser artista é você justamente ter a liberdade de voltar atrás.
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Eu pintei até 2000, minha última pintura. Em 2008 comecei a
fazer as pazes com a pintura por intermédio do Volpi, na verdade
é um Volpi meio maroto, porque o que me interessava aqui era um
tipo de construção que eu podia fazer com as casas. E a questão
da geometria, novamente, como um elemento estruturador do
projeto. Eu fiz diversos condomínios, como chamei esta série,30
que são casas de pássaros, em que eu uso uma paleta livremente
aproximada do Volpi e faço um pouco essa relação que, na verdade, vem das bandeirinhas, mas é gerada pelos telhados, tem um
elemento autoconstrutor e que também vai se desdobrando em
diversos sentidos. Aqui, eu explorei um plotter direto na parede,
fiz algumas possibilidades e comecei a me aproximar um pouco
da pintura... Eu gosto de pegar uma ideia e realmente esgarçá-la
ao máximo.
as mesmas casinhas que foram para o acervo do MAC de Niterói e,
como eles não têm sempre como apresentar ele montado da maior
maneira, eu fiz algumas opções de montagem. Então, eles têm, na
verdade, cinco obras em uma. A princípio foi uma coisa um pouco
estranha, não vou dizer por que eles não aceitaram a ideia numa
boa, mas para o setor de museologia era um pouco estranho você
ter inventariado cinco obras e na verdade não tinha todas aquelas
unidades. São questões com que a arte contemporânea tem obrigação
de lidar, as instituições, os museus têm que se adequar à nova produção e cada vez mais rápido isso acontece. Hoje, também, a gente
vive em um sistema de arte no Brasil bastante maduro, eu diria, bem
diferente de quando eu comecei, em 1996. Há dezesseis anos, era bem
diferente todo o sistema de arte, desde a escola, como a gente estava
falando mais cedo, enfim, o panorama acadêmico, mesmo, você tinha
pouquíssimas opções. Em vários aspectos a gente está bem melhor.
Esta aqui31 é a maior que chegou a ser construída e talvez a mais radical, que é com a casa de cachorro que se chama In the Dog´s House,
que seria uma situação difícil, alguma coisa assim. E, novamente, a
minha operação aqui é quase nenhuma, praticamente só empilho
as casas existentes para gerar o trabalho. Um outro elemento que
também vai importar, mais do que objetos, é um sentido de módulo:
o trabalho também assimila o objeto muitas vezes na lógica modular, onde ele pode ser expandido, reconfigurado. Estas aqui32 são
Em 2009 eu fiz uma exposição na Casa Triângulo, em São Paulo,
chamada Arquitetura de engenheiro,33 em que, a partir das casinhas de passarinho pintadas, eu gerei uma série de pinturas e essas
realmente tinham um diálogo explícito com Volpi, até na fatura,
nas cores. E, ao mesmo tempo que a escultura foi para a pintura,
eu também a forcei a, digamos, o que seria um limite extremo, que
seria a própria arquitetura elaborando um projeto em autocad para
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a construção de um prédio. Não construí ainda esse projeto, mas
ele está todo dimensionado e é totalmente viável, um arquiteto
trabalhou comigo e a gente projetou um prédio viável de ser construído. Então, novamente, essa busca para que o trabalho possa se
desdobrar ao extremo e no que ele se transforma, gerando novos
trabalhos, novas ideias e irrigando outros trabalhos que estavam até
esquecidos. Os meus trabalhos demoram muitos anos para saírem
do ateliê, isso é uma curiosidade também, se vocês forem reparar
nas minhas fichas técnicas, é sempre assim, 2005-2009, 2007-2012,
tem sempre um tempo até eu sentir que eles já fazem sentido fora
do ambiente controlado do ateliê... Alguns, é claro, são mais rápidos,
mas eu procuro sempre entender bem o trabalho antes de botar
ele no mundo. Eu quero poder falar do trabalho, poder defendê-lo.
Uma outra relação do trabalho é com o design, com o produto mais
do que uma relação com o design, tem muito mais a ver com certo
desprezo pelas artes visuais e com não querer necessariamente só
pensar em um circuito de arte tão viciado. Eu acho que é um desafio
pessoal cada trabalho me empurrar para uma nova técnica, uma
nova questão e novos relacionamentos.
Em 2000 eu fiz esta pintura, que se chama Círculo cromático,34 com
chicletes de diversos sabores e com massinha de modelar. Então,
In the Dog´s House, 2008
Casas de cachorro organizadas
300 x 450 cm
Foto: Studio Barbosa Ricalde
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já tinha uma relação da pintura ser um resultado de uma ação do
corpo ou um resultado conceitual...
quanto mais ela vai crescendo, mais vai se apurando, vai ficando
mais sofisticada, ela começa, inclusive, a mudar o próprio discurso
sobre si mesma, ela começa a criar aspectos diferentes desde uma
arqueologia e, também, ao mesmo tempo, você começa a pensar:
O que é a falsificação? O que é a cópia? O que é a cola? O que é
mainstream? O que é underground? A exposição do Paço Imperial
discutia essas questões... Tem um trabalho, que estava no Paço
Imperial, que é um gráfico com as provetas graduadas cheias de
Coca-Cola, correspondentes às embalagens de volumes diferentes
que eu consegui catalogar, até agora 22 graduações de Coca-Cola
até um litro, ou seja, começa na embalagem de 140 ml e até a de
um litro são curiosidades sobre o mundo que também movem o
trabalho sem querer dar uma resposta.
Procuro deixar o material que trabalho o mais cru possível e não
tenho nenhuma preocupação em fazer merchandising ou qualquer coisa desse tipo. Isso é uma questão. Às vezes, por exemplo,
agora nessa exposição do Museu do Futebol, que é uma exposição
grande, não podiam aparecer marcas, porque teriam problemas
com o patrocinador... Mas, como tenho um universo tão amplo
e tão diversificado de trabalhos, isso para mim acaba não sendo
problema, porque tem sempre um outro trabalho que possa dar
uma resposta. Então, me dá uma liberdade, também, de não ter esse
tipo de preocupação, de deixar realmente o trabalho contaminado
pelo mundo, de deixar o trabalho mostrar o que ele é e de que é
feito e não tentar camuflar o que o material é.
Esta instalação35 estava também na exposição Estranha economia, no Paço Imperial. É um trabalho em processo, mais uma das
coleções. É uma coleção de refrigerantes de cola, sabores de cola,
não a Coca-Cola, e que eu ponho em fila em uma cola e ela está
crescendo até hoje, ela começou em 2002 e atualmente conta com
quatrocentas marcas e embalagens diferentes de refrigerantes de
cola. Me interessa o aspecto de ela estar em crescimento, porque,
Aqui, é uma série que também é construída muito mais pelo olhar, a
minha ação, de novo um pouco de coleção e de perceber um aspecto
que vai ser evidenciado quando você coloca isso lado a lado, quando
você faz, digamos, uma curadoria sobre esse objeto mundano ou
sobre esse olhar mundano e o coloca no âmbito da arte ou da discussão intelectual.
Aqui,36 é uma série que eu fiz na minha cidade, Rio das Ostras, de
lixeiras, as pessoas fazem isso para os animais não atacarem o lixo,
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só que, ao mesmo tempo, elas começam a se tornar expressões
esculturais, eu diria, tem uns realmente interessantes.
um trabalho que rememorasse essa visão idealizada do pôr do sol
que você tem na água, dele baixando. Então, são oito velas de windsurfe nessa cor e que geram essa imagem emblemática e clichê...
A série seguinte tem também essa relação, eu chamei de Construtivismo literário37 e é uma série de vitrines que eu vou fotografando,
de livrarias. Eu realmente queria saber por que é assim, se isso faz
vender mais livros... Mas, enfim, então tem um olhar curioso sobre
a carne do mundo.
Aqui tem a série um pouco mais pirotécnica, eu diria. Esse material não tem no Brasil, então não é muito conhecido, se chama
‘acendalha’ – eu fiz em Portugal esse vídeo. Ele é um material para
acender lareira, então é um combustível sólido, uma mistura de
parafina com querosene, com o cheiro superativo, e eu fiz esse
iglu,38 o vídeo começa com essa cena, foi feito no cais do porto, então
tem um vento constante, você sente a temperatura da imagem,
você é enganado porque você não tem o cheiro e depois fora de
cena começa a vir o fogo e lentamente consome o iglu, leva vinte
minutos para consumir essa peça.
Crepúsculo39 foi para uma exposição40 em Portugal, que aconteceu
em uma galeria que foi um armazém do porto, e eu fiquei pensando que o armazém obstrui a visão para o rio e eu queria fazer
Gostaria de falar também desses dois trabalhos de 2000. São
trabalhos muito pontuais, em que apareceram diversas questões
para mim. Primeiro, a questão da latência, de como um gesto pode
alterar muito e, ao mesmo tempo, de como fazer uma pintura o
mais radical possível. A minha ideia inicial era fazer uma tela
com palitos de fósforo e eu fiquei muito com a frase do Barney
Newman na cabeça, quando ele falou que um gesto muda toda a
lógica do quadro, que um gesto é suficiente para mudar o quadro,
e eu fiquei com isso e queria radicalizar um pouco essa ideia.
Inicialmente, eu comecei a botar os palitos de fósforo em uma
rede de mosquiteiro, enfiava um por um, só que no meio já vi que
o negócio não ia dar muito certo, porque a coisa começou a deformar e não ficou uma pintura como eu queria, ficou uma espécie
de superfície que tem 1 m x 1 m aproximadamente, mas que tem
esse sentido de risco que eu queria. Só que foi muito interessante
perceber essa falha, porque eu queria que fosse um quadro, uma
coisa plana, e comecei a perceber que o fato de a cabeça do palito
de fósforo ser maior do que o corpo era o problema que não faria
o trabalho ficar plano. Na verdade, esse problema me fez perceber
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“A relação com o
objeto, enfim, vai
desde essa relação
física e estrutural da
coisa, como também
de uma associação
poética, imaginária
e conceitual...”
que o material estava querendo ser outra coisa, e esse trabalho
se chama Mórula,41 mórula é um estágio embrionário, a partir
das mitoses da célula. Assim que é fecundado, o óvulo começa
a se dividir e chega a um estágio celular que se chama mórula,
que é uma espécie de bola com essas células. E esse DNA que
eu descobri, de certa maneira, do palito de fósforo ter a cabeça
maior do que o corpo, e aí, quando eu colocava ele lado a lado, ele
gerava um segmento de cone, e esse segmento de cone gerava uma
forma esférica. Então, essa forma é só uma resultante do fato de
a cabeça do palito de fósforo ser maior do que o corpo. Essa aqui
é a primeira. Quando eu comecei a agrupar elas para tentar fazer
esse trabalho, percebi que ela estava se sugerindo dessa forma, se
autoestruturando, e aí a coisa começou a ficar mais sofisticada,
até eu conseguir fazer, só com perímetros,42 já ver que era uma
forma autoestruturante, apesar de ser só fósforo e cola, e é bem
evidente, você vê a cola, eu não tento camuflar do que é feito, ela
é superresistente porque é um tipo de construção que está no
DNA das coisas. É muito curioso como essa forma vai estar em
diversas coisas do universo inteiro, do micro ao macro.
A relação com o objeto, enfim, vai desde essa relação física e estrutural da coisa, como também de uma associação poética, imaginária
e conceitual...
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O Desenho espacial é um filhote do problema dos fósforos não
ter dado certo como pintura lá no início.43 Eu percebi que essas
células de fósforo das Mórulas eram segmentos de cone, assim
como as pontas dos lápis eram um cone; então, comecei a colar,
simplesmente, a ponta dos lápis lado a lado, sem nenhum elemento
interno, só a cola, e ela ia gerando esse formato esférico e, apesar
de não parecerem, são bastante resistentes. Aí o trabalho vai se
desdobrando em diversos objetos diferentes.
Então, também tem essa adequação, até você se conformar com a
realidade do mundo. Não existem livros de geometria descritiva
com a proporção áurea, não precisa ninguém procurar, garanto!
Nunca existiram no Brasil, já procurei em todos. [Risos] Então, tem
um pouco de o trabalho se adequar. E tem alguns livros que você
compra sem nem saber muito bem por quê. Esse livro do peixe é
um livro da Phaidon, que é uma editora grande, chama-se Fish
face.45 E, basicamente, são caras de peixe em cada página, e depois
de ter alguns anos esse livro no ateliê, pensei: “Para quê comprei
isso?” [Risos] e em uma demanda de uma exposição que se chamava
A água e seu papel,46 e tem essas coisas que você fica quebrando
a cabeça para tentar pensar um trabalho, e aí na última hora eu
pensei nesse trabalho,47 de inserir um aquário, tem um aquário de
verdade que fica dentro do livro com um peixinho nadando ali...
Um outro elemento que vai aparecer em alguns trabalhos é o livro,
tanto como instrumento de estudo quanto como material. Este44
aqui é um trabalho que eu acho muito importante na minha trajetória, porque eu acho que ele resume diversos aspectos. São três
livros de geometria descritiva e, se tivessem a proporção áurea nas
suas medidas, eles descreveriam um icosaedro perfeito. A princípio,
eu fiquei durante uns três anos procurando livros com a proporção
áurea, então eu ia à livraria, ao sebo, procurar livros de geometria
descritiva com a proporção áurea. E, depois, eu descobri que não
precisava, que ele já gerava a imagem que eu pretendia, que era o
icosaedro. Isso é uma propriedade matemática, se você interseciona três planos áureos entre si, a ligação entre o perímetro desses
planos vai gerar um icosaedro. Isso é uma coisa que, estudando
matemática, eu descobri e quis aplicar esse princípio a um trabalho.
Este48 também é um trabalho que começou em 2000 e até hoje eu
faço. Chama-se Justa troca. São chaveiros de guarda-volumes de
supermercados, museus, centro culturais, eu vou ao lugar, deixo
uma coisa minha e guardo a chave, não volto para devolver, e vou
colecionando essas chaves a partir dessa troca compulsória que
realizo em alguns lugares. E o objetivo, digamos assim, desse jogo
que eu criei para mim mesmo é tentar fazer uma sequência numérica, o que é um desafio, muitas vezes a chave que você quer não
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tem, então tem um pouco dessa brincadeira de completar o álbum
de figurinhas, que vai estimulando você a continuar o processo de
trabalho.
risco, me interessa essa potencialidade de uma coisa tão pequena
poder conter uma energia. Obviamente a gente estava falando da
pilha, da pólvora, mas na verdade eu acho que esse poder é uma
metáfora para o poder da própria arte, em que um pequeno objeto
vai conseguir ter uma potencialidade capaz de atingir um mundo
inteiro, de certa maneira, e curiosamente eu percebo isso dentro
do meu universo de trabalho: como alguns trabalhos bem pequenos são muito emblemáticos na minha trajetória. É o caso com
um trabalho que eu tenho, que é um martelo de pregos,51 algumas
pessoas depois foram falando assim: “– Nossa, mas é tão pequeno!”
Porque esperavam que fosse uma coisa e era só um martelo com
pregos. Então eu acho que é um pouco essa metáfora da arte mesmo.
Novamente o aspecto de latência das séries de fósforos, dos estalinhos, dos homens bomba, aparece na série chamada Pilhados.49
Eu uso pilhas novas, não é reciclagem, pelo contrário, porque me
interessa essa potencialidade que está dentro da bateria, me interessa a energia que está contida ali, e às vezes essa energia, essa
busca por um material potente, se você conseguisse desmontar
o trabalho, poderia ligar um objeto elétrico. O controle que tento
dar à obra vem do fato de resinar as pilhas só até um certo ponto,
deixando algumas áreas delas em contato com o oxigênio, então
quero que esse trabalho de fato pingue, chore e contamine...
Tem um desdobramento dessa obra, que é mais recente, que se
chama Chuva química.50 São várias nuvens, que estarão instaladas
em uma exposição em que elas estão mais expostas e menos coladas, elas estão realmente pingando veneno durante a exposição,
algumas vezes a própria bateria se soltará da nuvem e cairá no
chão... Assim espero... Me interessa um certo grau de radicalidade
dessa potencialidade, que, de fato, o objeto gere uma relação de
presença com o observador, muito mais do que de ilustração de um
Aluno: Eu percebi uma coisa muito geral no seu trabalho,
que é bem plural, mas tem uma coisa muito singular, que é
o acúmulo, parece que você falou muitas vezes de coleção,
muitas vezes de você querer acumular coisas. São duas
perguntas: tem uma questão da pintura, porque você falou
que pinta com outros objetos, de que maneira você se
coloca no campo artístico, por exemplo, isso é bom? Você
se caracteriza como um pintor, um escultor? E de que
maneira a crítica encara isso de você, como artista, ter uma
produção muito plural, porque você tem diferentes trabalhos
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de diferentes temáticas e uns você tenciona, provoca, essa
questão da latência você se mostra de uma maneira crítica
quanto à arte e em outras não. Quero saber como você se
coloca e se isso é um problema ou não para você, porque
você não quer se colocar. A segunda questão é como a crítica
te recebe dessa maneira.
Primeiro, eu me coloco como artista no sentido mais amplo possível
da palavra, depois como um artista visual... Mas, na verdade, não me
preocupo com isso! Sou um artista interessado pelo mundo, então
esse mundo acaba fazendo que eu me interesse por diversas outras
coisas além da arte. A arte é mais um dos meus grandes interesses
e principalmente a minha profissão. Mas tem vários assuntos e
algumas coisas que vou descobrindo e que me despertam algo que
nem sei definir bem, porque a arte vai me levando e de repente
estou fazendo algumas coisas que eu nem sabia que eu sabia fazer.
Eu acho que nesse sentido de encarar a vida como artista e deixar
a vida te levar. Sobre a sua segunda pergunta, acho interessante
porque você tem razão, para a crítica esse tipo de trabalho é um
problema, primeiro porque você não se coloca em um segmento,
segundo porque você se contradiz o tempo inteiro. Eu uso a pintura
às vezes para reafirmar que não estou interessado em pintura ou uso
a escultura para reafirmar que não estou interessado em escultura.
Mas, assim que eu comecei, um artista que eu acho muito bom
chamado Jorge Duarte e que me convidou para uma das minhas
primeiras exposições bacanas, virou para mim e disse: “– Felipe,
você vai se ferrar, porque vai ter o mesmo problema que eu tive,
o meu trabalho é muito diversificado e as pessoas não conseguem assimilar bem isso”. Eu falei: “– Bom, fazer o quê, né?”.
E eu acho que, de certa maneira, você se impõe, eu me impus,
impus o meu trabalho, no bom sentido. E percebo uma certa
coerência, hoje em dia, esse meu livro Matemática imperfeita
tenta abranger quinze anos de carreira, e eu consigo perceber
claramente o momento em que as pessoas conseguiram conectar
vários trabalhos que elas já conheciam, mas não necessariamente
ligavam uns aos outros.
Cronologicamente, o primeiro trabalho meu mais conhecido
foi esse das mórulas de fósforo, e aí durante dois meses “o rapaz
faz as mórulas de fósforo”, eu podia me acomodar muito bem aí.
E aí, logo depois, eu fiz o trabalho que foi apresentado em uma
exposição grande, que era o Martelo de pregos. Foi apresentado
no Paço Imperial em 2002, numa exposição que foi muito importante, até para despontuar, para contradizer o primeiro trabalho,
pois era uma exposição de cinquenta anos de arte brasileira e a
última obra era o Martelo de pregos. Então, teve muita visibilidade
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e era o oposto do que as pessoas conheciam. Logo depois, eu fiz
uma série que é essa de bolas de futebol, então ferrou, sabe como
é? Não dá mais para me identificar pelo material. Então, eu acho
que é um desafio diário e acho que a crítica tem certa dificuldade.
Eu, particularmente, acho curioso como alguns artistas são tão
pouco instigados pelo mundo. Às vezes tão jovens e já se colocam,
“eu sou pintor”, “sou fotógrafo”, “trabalho com vídeo”, eu acho
curioso você se limitar tão precocemente e acho triste que a crítica
tenha tanta dificuldade, não dá para falar globalmente, porque
isso também já era, “a crítica”, ou “o mercado”, ou “o circuito”
não são entidades que estão sentadas em uma mesa definindo o
que é circuito, mercado ou crítica... Quem faz isso é você, você,
o artista, o resto não interessa. Então, eu acho que você tem que
ter certa postura, digamos, arrogante de impor o seu trabalho,
de impor a natureza do seu trabalho e não se adequar “a crítica
prefere que eu só faça essa série...” “Bom, foi mal aí...” O artista
em certa medida tem que ser um desajustado, mesmo dentro do
sistema da arte.
aluno e vai fazer Belas-Artes?” É fato, eu só tirava notas altíssimas.
No vestibular com minha nota passaria para Direito, Medicina, e
escolhi fazer Belas-Artes, nem tentei fazer Arquitetura ou Desenho Industrial para garantir um empreguinho. É um desperdício
de educação, se você for imaginar, para o entendimento familiar.
Então, quando você já vence esse primeiro desafio, que é decidir
ser artista, suas chances aumentam... Hoje vocês podem pensar:
“Ah, tem mercado, tem galeria”. Gente, é difícil para caramba, não
se enganem não! Porque é cotidianamente no ateliê trabalhando
em todos os aspectos da produção.
Outro aspecto que eu acho que falta ainda na formação do artista
visual, e que os músicos já decidiram muito bem, é a sua autogestão,
você realmente se colocar como um profissional. A crise da indústria fonográfica fez que os artistas músicos entendessem que dava
para tomar um espaço e não só esperar as coisas acontecerem. É
mais ou menos a mesma postura em relação à crítica.
Olhando seu trabalho, observei uma ressignificação
a partir da mescla entre apropriação de objetos previamente
construídos e uma intervenção plástica. Eu queria saber se
você conceitua previamente seu trabalho e como é que se dá
esse processo.
Aluno:
Volto a dizer, hoje, para vocês o campo é muito diferente de expectativa, de possibilidades. Mas, em 1995, quando eu virei para a
minha família e disse “vou fazer Belas-Artes”, era uma vereda
de que ninguém nunca ouviu falar. “–Poxa, mas você é tão bom
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Cada projeto é muito diferente do outro. Algumas vezes a ideia
vem mais pronta. Às vezes fica um trabalho latente na cabeça e
de repente ele se resolve. Então, assim, cada caso é realmente um
caso específico.
Aluno: Eu queria saber se você escreve seu trabalho, por
exemplo: “Estou querendo abordar isso”, “Penso nisso”, antes
ou depois, durante...
Antes, durante, depois. Depende, depende do trabalho. Obviamente
sou muito consciente, fiz mestrado, escrevi uma dissertação, que
para o artista é um tormento mesmo, juro, foi superdifícil! Você
sabe mais ou menos o que está fazendo, mas também não pode
querer achar que você vai ter uma ideia e as coisas vão se resolver a
partir daquela ideia, porque aí você mata justamente esse espaço da
experimentação, você mata o espaço do erro. Se não fossem alguns
erros, alguns acidentes, algumas séries de que eu gosto muito não
existiriam. Então, é importante você deixar esse espaço para você
poder criar. É um olhar atento o tempo inteiro, é antes durante e
depois, porque depois que o trabalho está pronto, ele está pronto
em algum aspecto, você pode ter um trabalho vendido que depois
você altera. Esqueci o nome do artista, um pintor brasileiro, que era
convidado para os jantares e as pessoas ficavam vigiando porque
Tetris ball, 2005
Bolas de futebol abertas e recosturadas
200 x 135 cm
Foto: Studio Barbosa Ricalde
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ele ia na casa dos outros e mexia nos quadros, levava uma tinta...
Tem um pouco essa sensação... [Risos]
achar que ele é aquilo, mas ele também pode ser aquilo outro. Então,
acho que tem um pouco essa relação do mundo, das pessoas, por aí.
Vi a sua exposição do Paço, estava vendo aquelas
espirais de notas, de boletos e as gravatas, também, e me
remeteu muito a uma coisa de cotidiano, de estar pagando
aquilo, de boletos de viagem, de conta, etc. Como é que você
lida com essa expressão, com essa influência do dia a dia na
sua obra, com a natureza do material e com essa questão de
cotidiano, também. Como é que isso se dá na sua obra?
Aluno: Você explicou sua obra usando muitos termos
matemáticos e científicos. Você acha que essas ciências
podem contribuir efetivamente para sua obra, para sua criação
artística?
Aluna:
Eu acho que o cotidiano se dá pela minha aproximação com o
mundo, eu quero que o meu trabalho fale sobre o mundo, sobre as
pessoas, não tem um aspecto que eu acho mais relevante e como
artista também não acho que a arte é a coisa mais importante do
mundo. Lógico que, por ter estudado, me interesso por história
da arte, acho que sobre diversos aspectos, inclusive, o trabalho
é muito motivado por questões da história da arte, pela relação
com o neoconcretismo carioca, enfim... Mas não é um aspecto a se
frisar. Eu mantenho essa permissividade no trabalho em relação ao
mundo, uma certa promiscuidade do trabalho com o mundo. Então,
mais do que uma ressignificação, ele está ali também, ele faz parte
do mundo, ele está se relacionando naquele contexto que faz você
Sim e não. Acho que o trabalho já meio que responde isso. Por
exemplo, até essa imagem que está aberta aqui, esse trabalho com
ladrilhos hexagonais, eu fiz antes das séries das bolas de futebol,
a bola de futebol é quase o inverso desse trabalho. Então, assim,
o mundo estava ali, isso aqui é muito mais o meu universo do que
as bolas. E é curioso como desse trabalho até o trabalho das bolas
tem um espaço de dois a três anos quase. Um pouco por isso, o
conhecimento flui a sua vontade, são coisas que me interesso, não
tenho formação acadêmica em ciências, mas eu leio muita divulgação científica, me interesso, vejo documentários, estou sempre
pesquisando.
Minha curiosidade vai um pouco além do seu trabalho,
eu queria saber um pouco de você como indivíduo, como é o
seu ateliê? Como é o seu sistema de produção? Você produz
Aluno:
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sozinho? Você deixa que alguém entre no seu espaço quando
você está nesse processo de evolução de um trabalho? É uma
curiosidade muito pessoal.
Bom, eu vou mostrar umas fotos do ateliê, vou passar rápido, porque
também é um aspecto importante.
Atualmente, eu tenho dois ateliês, eu moro a maior parte do tempo
em Rio das Ostras, eu me mudei para lá há quase quatro anos, eu
sou casado com uma artista, Rosana Ricalde, que também tem
uma produção... Talvez trabalhe mais do que eu até, temos filhos
pequenos e tal. Então, a escolha de Rio das Ostras foi tanto no nível
pessoal quanto na ideia de criar um ateliê que pudesse atender
todas as nossas demandas. Então, durante dois anos a gente fez
uma obra, um ateliê realmente grande que tem salões separados,
Rosana tem um tipo de espaço, eu trabalho mais no segundo andar,
eu fico mais sozinho no segundo andar, que é a biblioteca, onde
tem diversas experiências, objetos e coisas em andamento, mas
a produção é mais feita nas oficinas, que são no primeiro andar.
Lá a gente tem uma equipezinha fixa, hoje de cinco pessoas e os
colaboradores, e todos atendem no ateliê. Então, dependendo da
demanda, minha ou da Rosana... Toda a arquitetura do espaço foi
construída para ser ateliê com todas as nossas demandas, a gente
não precisa acender luz, capta água da chuva. Eu acho que é culpa
de gastar tanto material! [Risos] Aqui, por exemplo, esse mezanino
foi pensado para poder fotografar, isso até atende mais ao trabalho
da Rosana, que trabalha muito sobre papel, então, antes de botar
a moldura, pode-se fotografar as coisas de cima, tem toda uma
preocupação técnica. Tem uma parte da oficina que tem uma sala
de pintura, também, então aqui é vazado para poder sair vapor de
tinta, tem também uma biblioteca, escritório, arquivo de documentos, reserva técnica, etc..
É uma empresa... E, paralelo a isso, a gente tem outro ateliê aqui em
Botafogo, ele funciona mais para quando a gente está aqui no Rio
e também para receber curadores, algumas pessoas, a gente acaba
recebendo no ateliê que tem um arquivo pequeno, mas a produção
mesmo mais efetiva é dada lá nesse lugar que a gente construiu para
trabalhar. E é isso, todo dia no ateliê, acordar e trabalhar, não tem
muito por onde escapar não, está nos fundos de casa...
Aluno: É só uma curiosidade, porque você falou que não teve
arquiteto nesse projeto, eu faço arquitetura e pelo que vi está
um projeto bem resolvido para um ateliê. E acho curioso, porque
eu, como estudante de arquitetura, fico pensando nessa questão
dos espaços para a arte. Na faculdade a gente não tem uma
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C A DER N OS EAV
f el i p e b arb osa
matéria específica para isso ou qualquer tipo de coisa como a
gente tem para habitação, comércio, enfim... Você que projetou
todo esse ambiente? É uma curiosidade sobre o projeto.
Na verdade, existiu um projeto esboçado por mim e o André
Renaud, que não foi nada feito, porque envolveria cálculo estrutural, além de nem eu nem o André sermos arquitetos... Foi feito
assim, na base do do it yourself, também não tínhamos garantias de
que íamos ter grana pra fazer até o final, então resolvemos começar
e tivemos a sorte de encontrar um mestre de obras muito bom,
que facilitou a coisa toda, eu aprendi muito com o cara, um cara
incrível, até hoje ele faz algumas coisas para mim até de trabalho,
coisas aqui no Rio ele vem de Rio das Ostras para fazer. E realmente
eu saquei que o cara entendia do que estava falando, até onde ele
ia, e a gente foi fazendo na medida, assim, tinha uma ideia geral
e aí foi sendo feito na medida da grana. Realmente, tudo foi pensado para ser ateliê, é um lugar que eu acho que dificilmente seria
reaproveitado, quer dizer, dá para aproveitar para outra coisa, vai
desde a telha térmica com lâmina de metal para não transmitir
eletricidade nem calor, a iluminação, tamanho de portas, polias
para suspender trabalhos, etc. Eu e Rosana já tivemos vários ateliês,
então a gente já sabia mais ou menos que tipo de espaços a gente
gostaria. Não é um galpão, é setorizado segundo as necessidades.
A minha formação, assim como a sua, é em pintura
também e no meio da faculdade eu estava pintando e vi
que não era a minha praia e de repente tentei outras coisas.
Sei que você já pintou muito, sua produção em pintura
na faculdade, e mesmo depois dela, você teve uma larga
produção e de repente você começou a criar objetos,
intervenções. Você tem um ou outro artista que tenha te
influenciado a seguir esse caminho ou você falou: “Pintura já
deu o que tinha que dar para mim, vou tentar outras coisas”?
Aluno:
Não, nenhum especificamente, eu continuo gostando bastante de
pintura, até coleciono algumas coisas. Era uma demanda interna
mesmo de uma obra mais conceitual, acho que é mais essa procura
de uma obra que tivesse uma visualidade, tivesse uma expressão,
mas que tivesse conceito. Eu acho que às vezes se pensa que uma
coisa para ter conceito tem que ser hermética, tem que ser antipopular, e eu acho que não necessariamente, eu sempre falo do Tom
Jobim, porque acho que ele chegou a um grau de sofisticação na
música e é extremamente popular, tanto é que até hoje em todas
as novelas só toca Tom Jobim. Não precisa ser ruim, não precisa
baixar o nível para ser popular, enfim, um artista maior, referência,
o Tom Jobim. E aí na arte, o Cildo, acho que essa coisa do resultado formal interessa menos do que o processo conceitual, mas ao
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mesmo tempo tem uma exuberância, tem uma presença visual na
obra do Cildo quase sempre, tem uma inteligência visual, também,
que me interessa bastante.
Notas
1. BARBOSA, Felipe. Vestiário. Exposição individual realizada no Museu do Futebol. São
Paulo, de 14 de fevereiro a 15 de julho de 2012.
2. BARBOSA, Felipe. Matemática imperfeita. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011. 292 p.
Tânia Queiroz: Eu
queria fazer uma... não é exatamente uma
pergunta, mas, se você só pudesse fazer uma recomendação
para as pessoas que estão começando uma formação em arte,
qual seria ela?
Uma só é difícil! Eu posso fazer um monte, rapidinho... [Risos] Primeiro é ter uma relação verdadeira com o trabalho, de gostar mesmo
de estar no ateliê, de gostar do meio, porque nem sempre é muito
gratificante essa profissão, aliás na maioria das vezes não é, então
fica no meio quem realmente gosta, quem tem uma relação mesmo
de paixão, é romântico, porque sem romantismo eu acho que em
nenhuma profissão você vai conseguir ser muita coisa. E a outra
seria realmente aproveitar as oportunidades desse tipo aqui, da
faculdade. Hoje a gente tem um monte de palestras, visitas guiadas
e isso melhora tanto a formação! Eu digo por mim, fiz a Escola de
Belas-Artes em um momento muito precário da escola e eu ia a um
monte de palestras e tem sempre coisa boa acontecendo, às vezes
você ia a palestra com um cara superimportante e tinha quatro pessoas, para você é até bom porque a pessoa dá a palestra para você...
3. BARBOSA, Felipe. Matemática imperfeita. Exposição individual realizada no Centro
Municipal de Arte Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, de 6 de novembro a 5 de dezembro
de 2010.
4. BARBOSA, Felipe. Sinuca de bico, 2003-2010. Mesa de sinuca alterada. Dimensões:
100 x 200 x 310 cm.
5. Espelho refletido - O surrealismo e a arte contemporânea brasileira. Exposição coletiva
realizada no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, de 10 de junho a
29 de julho de 2012.
6. BARBOSA, Felipe. Mergulho do corpo - Lavando a alma, 2010. Caixa de água revestida
de azulejos, 110 x 134 x 134 cm.
7. BARBOSA, Felipe. Movediça, 2010. Mesa, rede e bolas de pingue-pongue. Dimensões:
75 x 153 x 275 cm.
8. BARBOSA, Felipe. Homem bomba, 2002. Objeto construído com bombas. Dimensões:
44 x 20 x 13 cm.
9. BARBOSA, Felipe. Mórula, 2002. Palitos de fósforo colados lado a lado. Dimensões: 44
x 40 x 43 cm.
10. BARBOSA, Felipe. Insight, 2003. Cabeças feitas com estalinhos brancos. Dimensões:
35 x 24 x 25 cm cada.
11. BARBOSA, Felipe. The Record, 2011. Podios feitos com discos de vinil. Dimensões: 60
x 40 x 20 cm.
12. BARBOSA, Felipe. Bolaruga/Turtle Ball, 2005. Resina e pigmentos. Dimensões: 22 x
22 x 22 cm.
13. BARBOSA, Felipe. Mapas de consumo, 2001-2010. Série de mapas estatísticos feitos de
tampas coletadas em diversas cidades do mundo.
14. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô, 2001-2008. Série de bilhetes de metrô
redesenhando a malha metroviária da cidade.
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15. BARBOSA, Felipe. Mapa de consumo de longa duração do Rio de Janeiro, 2001-2010.
Mapa estatístico de consumo feito com tampas de bebidas coletadas pela cidade. 200
x 300 cm.
16. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô Nova Iorque, 2005-2008. Bilhetes de metrô
redesenhando a malha metroviária da cidade. 280 x 180 cm.
17. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô Madri, 2001. Bilhetes de metrô redesenhando a
malha metroviária da cidade. 195 x 195 cm.
18. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô Cidade do México, 2004. Bilhetes de metrô
redesenhando a malha metroviária da cidade. 180 x 140 cm.
31. BARBOSA, Felipe. In the Dog’s House, 2008. Instalação. Dezesseis casas de cachorro
de tamanhos diferentes.
32. BARBOSA, Felipe. In the Dog’s House, 2008. Instalação. Quatro casas de cachorro
cada. Dimensões: 220 x 220 x 58 cm e 220 x 58 x 267 cm.
33. BARBOSA, Felipe. Arquitetura de engenheiro. Exposição individual, realizada na
Galeria Casa Triângulo. São Paulo, 2009.
34. BARBOSA, Felipe. Círculo cromático. 2000. Pintura. Chicletes e massinhas de
modelar e tinta.
19. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô Londres, 2004. Bilhetes de metrô redesenhando a
malha metroviária da cidade. 180 x 260 cm.
35. BARBOSA, Felipe. Cola, 2002-2012. Coleção de refrigerantes de sabor Cola. Trabalho
em progresso, contando com aproximadamente 400 marcas diferentes, oriundas de
diversos países. Dimensões variáveis.
20. BARBOSA, Felipe. Estranha economia. Exposição individual realizada no Paço
Imperial. Rio de Janeiro, de 21 de março a 13 de maio de 2012.
36. BARBOSA, Felipe. Lixeiras, 2008-2009. Série de fotografias coloridas. Coleção de
fotos de suportes para lixo. Dimensões: 30 x 58 cm cada foto.
21. BARBOSA, Felipe. Estranha economia. Instalação. Objetos construídos com notas de
real picadas.
37. BARBOSA, Felipe. Construtivismo literário, 2005. Série de fotografias coloridas. 24 x
32 cm cada.
22. BARBOSA, Felipe. Bancos, 2011. Notas de real picadas e prensadas. Dimensões: 90 x
35 x 35 cm cada.
38. BARBOSA, Felipe. Igloo, 2007. Vídeo que mostra um pequeno iglu construído com
acendalhas. 20’. Cor. Som.
23. BARBOSA, Felipe. Mala, 2011. Notas de real picadas e prensadas. Dimensões: 64 x 43
x 35 cm.
39. BARBOSA, Felipe. Crepúsculo, 2007. Oito velas de windsurfe. Dimensões: 580 x 1600
cm.
24. BARBOSA, Felipe. Lixa mão, 2009. Lixa de parede. Dimensões: 22 x 28 cm.
40. BARBOSA, Felipe. Estética doméstica, 2007. Exposição individual realizada na Galeria
Filomena Soares, Lisboa, Portugal.
25. BARBOSA, Felipe. Quadro de cortiça, 2003-2006. Fotografia colorida 82 x 117 cm.
26. The Record: Contemporary Art and Vinyl. Exposição coletiva intinerante. Nasher
Museum of Art at Duke University; Institute of Contemporary Art/Boston; Miami Art
Museum; Henry Art Gallery, Seattle. 2011-2012.
27. BARBOSA, Felipe. Autógrafos, 2004-2006. Cartões-postais e fragmentos de discos de
vinil autografados.
41. BARBOSA, Felipe. Mórula, 2002. Palitos de fósforos colados lado a lado. Dimensões:
48 x 45 x 38 cm.
42. BARBOSA, Felipe. Wormhole, 2006. Palitos de fósforo colados lado a lado. Dimensões:
30 x 34 x 33 cm.
43. BARBOSA, Felipe. Desenho espacial, 2005. Lápis e cola. Dimensões: 33 x 33 x 33 cm.
28. BARBOSA, Felipe. Tabuada, 2007. Bolas de futebol costuradas. Dimensões: 135 x 150
cm.
44. BARBOSA, Felipe. Geometria descritiva, 2003-2005. Três livros de geometria
descritiva, acrílico e fio transparente. Dimensões: 25 x 25 x 25 cm.
29. BARBOSA, Felipe. Boi bola, 2005. Bola de futebol feita de pele de boi. Dimensões: 22
x 22 x 22 cm.
45. DOUBILET, David. Fish face. Londres: Phaidon, 2007. 408 p.
30. BARBOSA, Felipe. Série Condomínio Volpi. 2007-2008. Colorjet sobre madeira.
Dimensões: 60 x 60 cm.
46. A água e seu papel. Exposição coletiva realizada na Galeria Caza Arte Contemporânea,
Rio de Janeiro, de 30 de maio a 17 de junho de 2011.
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C A DER N OS EAV
f el i p e b arb osa
47. BARBOSA, Felipe. Livro peixe, 2011. Livro sobre peixes recortado com aquário
embutido contendo um peixe vivo. Dimensões: 24 x 24 x 5 cm.
Saiba mais
48. BARBOSA, Felipe. Justa troca, 2000-2005. Placas e chaveiros numerados,
conseguidos em operações de troca nas instituições que têm guarda-volumes.
http://www.felipebarbosa.com/
49. BARBOSA, Felipe. Pilhados, 2008-2010. Pilhas carregadas e resina. Dimensões
variadas.
50. BARBOSA, Felipe. Chuva química, 2012. Placas de metal, resina e pilhas. Dimensões
variadas.
51. BARBOSA, Felipe. Martelo de pregos, 2001. Martelo e aproximadamente 1,5 kg de
pregos. Dimensões: 35 x 8 x 10 cm.
BARBOSA, Felipe (Org.). Felipe Barbosa: matemática imperfeita. Rio de Janeiro: Apicuri,
2011. 292 p. (Pensamento em arte)
COSMOCOPA ARTE CONTEMPORÂNEA. Felipe Barbosa: estranha economia. Rio de
Janeiro: Apicuri, 2012. 88 p. (Coleção Cosmocopa-Apicuri)
barbosa, Felipe. Santiago de Compostela: Artedardo, 2008. (Colección DardoTu)
GALERIA ARTE EM DOBRO. Felipe Barbosa. Textos Guilherme Bueno, Luciano Vinhosa,
Marisa Flórido, Moacir dos Anjos. Rio de Janeiro, 2006.
144
FERNA NDA GOM E S
A formatação do texto obedece
orientação da artista.
é um prazer estar aqui, um grande prazer! geralmente falo sem
plano, prefiro ir pensando o que vou falando. podemos desde já
abrir para perguntas. prefiro saber o que vocês gostariam de ouvir.
ou não, talvez seja melhor eu falar o que tem me interessado mais.
então, acho que podemos ter uma conversa bem livre e todo mundo
ficar à vontade. vale falar todas as bobagens. eu me dou sempre esse
direito, de começar falando bobagens à vontade. às vezes no meio
de um fluxo a gente encontra caminhos muito mais interessantes
do que dentro de uma estrutura planejada. mas, na verdade, pensei
em falar mais uma vez o que costumo falar, quando me lembro,
para iniciar qualquer palestra ou conversa, que é ter em mente
que a precariedade da palavra é maior do que a gente pensa. sou
apaixonada pela palavra, até por causa dessa precariedade também.
Vista da exposição: Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, 2011
Foto: Pat Kilgore
146
C A DER N OS EAV
tanto a precariedade da palavra quanto a precariedade da ideia de
entendimento. e procuro entender cada dia menos as coisas, em
todos os níveis. parece absurdo, mas é uma desconstrução fundamental, e a arte traz essa possibilidade, de aproximação do mistério.
ainda bem que a gente vai poder editar isso na hora de publicar.
mesmo sendo uma exposição ou uma conversa gravada para ser
publicada, tento sempre não prestar tanta atenção à ideia de cristalização. o espaço do erro é muito importante. quase sempre se tenta
evitar o erro, mas é inevitável. e a arte aproveita o erro. a ciência
também aproveita o erro, e na vida, também, a gente aproveita
bastante o erro. eu gosto da palavra errar, especialmente no infinitivo, errar também no sentido de vagar, de se deixar andar à toa.
quer dizer, sempre isso, vou começar a falar e começar por onde?
tanto faz, né? essas palavras todas não têm tanta importância,
apesar de toda a importância da palavra. onde a situação de fato
é o mais equilibrada e potente possível é lá no mam, onde está a
exposição. então, se vocês quiserem realmente saber alguma coisa
do meu trabalho, é lá que vocês vão saber, não é comigo aqui. e é lá
com o pensamento de vocês, não com meu pensamento. claro que
o meu pensamento, e o pensamento de qualquer outra pessoa, vai
poder sempre acrescentar alguma coisa. mas sinto que, quando
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F ERN AN DA G O MES
o pensamento se materializa em uma situação plástica, ele tem
uma autonomia tão perfeita que a palavra quase sempre tira mais
do que acrescenta. tira quando tenta criar um veículo direto. mas
quando é assumidamente paralela, livre, poesia, pode até funcionar
bem, amplifica. claro que quando há uma tentativa de estruturação
também pode funcionar bem, para quem gosta disso. mas o que eu
sinto é que, quanto mais a gente deixa a situação concreta agir, em
fruição descomprometida, mais potente tudo se torna. sobretudo
para quem já está muito embebido disso tudo. as palavras estão tão
contaminadas, nesse discurso da arte, que eu tenho pensado – tenho
escrito também, eu gosto de escrever – em como poder recuperar
um certo frescor das palavras em relação à arte? como inventar
palavras? porque pensar em arte e vida como amálgama é pensar
uma possibilidade de uma vida muito mais inteira, muito mais
livre ou significativa. ou sei lá que palavras a gente pode juntar aí...
os processos vão ficando muito misturados e eu sinto que quanto
mais misturados eles ficarem melhor vai ser. quanto menos tentar
decompor melhor.
porque parece que os sistemas, até de pensamento, são muito falhos.
porque a gente aprendeu a pensar com palavras, né? e eu sinto as
palavras distantes de uma experiência mais concreta. quando a
gente pensa “mesa”, cada um vai pensar em uma mesa diferente.
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C A DER N OS EAV
e “mesa” é uma coisa simples. imagina quando pensamos algo
mais complexo ou abstrato, como funcionam essas frestas entre
palavras e entre a palavra e a coisa? porque entre cada palavra há o
entendimento de cada um, então... cada vez mais, para mim, é cair
nisso com gosto. aceitar a natureza das coisas. porque eu sinto que
a cultura que formou o nosso pensamento não aceita a natureza
das coisas. nem a natureza da vida, pouco se fala de morte, ou das
questões mais determinantes.
então, na possibilidade do fazer da arte há uma libertação do pensamento que eu acho cada dia mais fundamental, como base para
uma ação concreta. uma ação que junte em cada um e em todos nós
uma possibilidade, nem que seja um respiro acima dessa dimensão
tão trivial, tão acachapante, tão normalizante, tão brutal de uma
certa forma da vida cotidiana, né?
e pensar que a gente está tão ligado ainda a essa ideia do registro.
é tudo tão misterioso, e vai ficando tão pantanoso, que quanto
mais eu tentar entrar nisso, quanto mais falar, mais vou me
enrolar, né? e é bom, é ótimo! vou me enrolar, vocês podem rir,
eu posso rir e pensar: “estou totalmente perdida, vou voltar para
lá”. e tudo isso é o processo do trabalho em si ou o processo do
pensamento.
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F ERN AN DA G O MES
e mesmo trabalho é uma palavra pesada, né? e aí, você pensa em
obra, em como nomear as coisas. ainda bem que elas não têm
necessidade de nome. vale o tradicional “sem título”, mas é sempre desagradável, parece que está faltando alguma coisa. tem que
marcar dentro do sistema “sem título”, “sem data”, “dimensões
variáveis”, “materiais diversos”. não quer dizer nada, mas cabe na
normatização, ou no sistema, ou como fazer...
agora estou me lembrando do paulo bruscky, sentado nesta mesma
mesa, falando da maneira de enfrentar o sistema que ele utiliza até
hoje, com muita potência e graça (em todos os sentidos da graça,
do humor, do estado de graça, da graciosidade, e do grátis). ele
falou da ideia de implosão, entrar no sistema e atuar no sistema
por implosão. sem ficar jogando pedra na vidraça, entrar profundamente naquilo e funcionar como implosão.
sinto que o sistema, tanto o sistema da arte quanto o sistema geral
das coisas, é um desastre, né? e se é um grande desastre, tanto
melhor, talvez não seja tão difícil abrir umas brechas, porque tudo
é tão falho, né?
e se a gente pensar que vai morrer e não sabe quando, e não sabe
como. e que a gente morrer ainda é o de menos, porque as pessoas
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que amamos também vão morrer, se sobrevivermos a elas. e passar
pela morte dos outros é bem pior do que pela nossa própria, eu imagino. se a gente pensasse o tempo todo que vai morrer, a vida seria
outra coisa, né? a arte seria outra coisa, tudo seria outra coisa. e por
que a única certeza concreta é o tempo todo negada pela sociedade
em que a gente vive? não tenho ideia. talvez seja desconfortável
demais lidar com essa situação permanentemente, para a maioria
das pessoas. eu gosto de pensar na morte, para mim funciona como
libertação e como possibilidade de criar uma perspectiva mais justa
da vida, em todos os sentidos.
cada um de nós tem defeitos maravilhosos. mas como tentar aproveitar esses defeitos? como poder aceitar a natureza das coisas e
ao mesmo tempo perceber que elas são transformáveis? é simples
ficar de cabeça para baixo, é simples derramar água no chão, é
muito simples. ações muito pequenas, que muitas vezes não fazemos porque tem ainda essa ideia do “normal”, de que a gente não
consegue se desvencilhar.
eu sinto o normal como uma mutilação. é o que tira o imperfeito
de cada um e é o imperfeito que vai fazer a beleza de cada um. é
o imperfeito que vai fazer da arte, também, essa possibilidade de
beleza maior, perfeitamente imperfeita e que não tem nada a ver
F ERN AN DA G O MES
com a ideia de beleza que tentam vender para todo mundo.
vou ficar falando sozinha aqui? posso falar horas sozinha.
Bom, seu pensamento é rizomático, você vai
andando... Eu tinha feito algumas perguntas. Mas, a partir do
que você falou agora, você começou falando da morte, que às
vezes é difícil de lidar com a morte, você repetiu essa palavra
muito tempo e agora você falou que a sociedade não sabe
lidar direito com a morte, essa foi a palavra que me veio. E
agora você falou do normal como mutilação. Como essa coisa
de lidar com a morte está presente nos seus objetos? Porque,
por exemplo, você pega objetos que foram esquecidos, vai
acumulando coisas, vai produzindo isso, esse é o seu material
para a arte? Você considera alguns elementos desses, no
caso, esse fato de você pegar objetos que foram esquecidos,
alguma relação entre morte e viver, reviver os objetos, recriar
a partir desse objeto que não está sendo utilizado, que foi
morto, tem alguma relação com isso?
Aluno:
não é assim direto não. sinto que a morte está entranhada na vida
de uma forma totalmente orgânica. quer dizer, a gente vai sentindo
isso a todo momento, acho, quando está com essa sensibilidade
152
C A DER N OS EAV
ativa. começo a falar de uma forma muito geral, talvez, porque
pensar ou falar de arte sem falar de um todo me parece cada dia
mais inútil. mas ao mesmo tempo é muito importante falar de arte,
arte mesmo. começo falando assim porque uma palavra vai levando
a outra, é o mesmo jeito que eu vou trabalhando.
chegar lá no mam e escutar as pessoas falando: esse espaço tão grande
não te dá medo? nenhum! é um prazer muito grande ter um espaço
tão lindo, tão maravilhoso – eu não sei se vocês viram a exposição
ou não –, um espaço que tem sido tão pouco utilizado da maneira
que eu utilizei e que foi planejado para ser utilizado também assim,
claro que não só assim, mas também assim, aberto, sem divisões.
e vou me deixando seguir, ou seja, vou tentando justamente juntar
tudo, juntar todos os pensamentos, e sobretudo a ideia de pensamento e ação simultâneos. claro que depois posso tomar uma
distância razoável e olhar e ver que aquilo ali não tem por que
estar ali e retirar, e aí começar outra vez. ou seja, o que eu sinto é:
venho tentando ser o mais livre possível. livre em relação ao meu
próprio pensamento, livre da expectativa externa, livre da minha
própria expectativa, livre da ideia de que liberdade é impossível. é
possível aumentar o grau de liberdade infinitamente, até porque,
se a liberdade total é de fato impossível, você pode aumentar o
153
F ERN AN DA G O MES
grau de liberdade o quanto você aguentar. o preço é bastante alto,
mas vale a pena, né?
Aluno: Você disse que falar de arte sem falar do todo é inútil,
então você deve ter uma concepção do que é a arte e por que
é a arte. E eu me pergunto como é que você se enfiou nisso?
Onde é que isso começou e o que te motiva? Além dessa
questão da liberdade, do suspiro.
são essas coisas que não adianta tentar explicar muito, né? é desde
criança, para mim é desde muito criança. e, aos poucos, você vai
seguindo. é engraçado, outro dia eu estava pensando nisso: toda
criança desenha, né? basta dar papel e lápis e qualquer criança sai
desenhando. tem a mitificação do artista e da criança, desde picasso
até a ideia da criança como um ser livre, que eu também acho um
mito. mas tem uma coisa muito simples, é muito simples desenhar,
toda criança desenha. agora, o estranho é por que tanta gente para
de desenhar? não é que você precise ser artista, não acredito que
todo mundo é artista, ainda bem, né? mas todo mundo poderia
desenhar, simplesmente desenhar.
Alexandre Dacosta: É a escola! Para de desenhar porque
a escola normal quer que você faça uma casinha, uma
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C A DER N OS EAV
arvorezinha e o solzinho amarelo, né? Aí, em casa, os pais de
repente: “Mas você pintou o céu de vermelho? Não é branco?
O que o céu é?” Sei lá...
outro dia aconteceu uma coisa engraçada. eu estava na casa de um
amigo artista e a filha dele tinha desenhado na parede um desenho
que ele tinha adorado. um superdesenho, enorme, com várias cores,
abstrato, claro, a menina é muito miúda, para ela não devia ser
nada abstrato, mas para nós era absolutamente indecifrável. e aí
a menina que cuida dela foi lá e fez uma florzinha, aquela florzinha
que parece um carimbo, né? e ele tinha ficado tão incomodado
com aquilo e eu falei: “mas por que você não vai lá e simplesmente
apaga a florzinha?” e ele: “mas eu fico sem jeito, porque ela desenhou a florzinha com tanto carinho!” mas qual o problema? vai
lá e apaga a florzinha com tanto carinho também, né? (risos) mas
ele não conseguiu e eu disse: “me dá a borracha que eu apago, vou
apagar com o maior carinho”. e apaguei realmente com o maior
carinho. e pronto. então, é isso que eu estou falando, são ações
muito simples, né?
e o que eu sinto é que, na verdade, quando o alexandre fala isso,
quer dizer, eu tenho a sorte de não ter filhos e ainda estar muito
longe da tarefa de me educar a mim mesma. eu me esforço muito,
155
F ERN AN DA G O MES
sou superdedicada, mas ainda estou muito longe do que eu quero
conseguir. e quando eu conseguir, não vai adiantar mais nada, eu
não vou conseguir mesmo, mas tudo bem! (risos) e a gente pode se
educar, né? quem tiver filhos, então, que responsabilidade incrível.
mas a gente pode ir se educando nesse sentido, tirando esse lixo.
a gente passa a vida inteira, mas não adianta, você tira um monte
de lixo e ainda vem gente e te joga mais aquela pazona de lixo. às
vezes, é o seu amigo na melhor intenção, ou a sua família, seu pai,
sua mãe, seu irmão, seu tio, seu namorado, seu marido, até o seu
filho, cara! a quantidade de crianças repressoras é incrível.
a arte é essa possibilidade de um campo de experimentação muito
concreto, que transcende tudo isso, que é muito mais do que tudo
isso, mas que também é onde você pode errar tranquilo, sabe? um
médico não pode se dar esse luxo. a gente pode fazer uma exposição horrorosa, que bom! vai ser mais uma, não vai fazer a menor
diferença. ninguém riu?
é uma área de grande liberdade, só você é quem sabe, ninguém mais
vai te ensinar, você vai inventar uma coisa! mas aí, o que acontece?
o sistema da arte, do jeito que está atualmente, está ficando muito
bruto, porque, bem, estamos conseguindo viver disso, é uma profissão. sou uma profissional, vivo disso, ganho dinheiro com isso,
156
C A DER N OS EAV
“e procuro entender
cada dia menos as coisas,
em todos os níveis.
parece absurdo, mas
é uma desconstrução
fundamental, e a arte
traz essa possibilidade,
de aproximação do
mistério.”
157
F ERN AN DA G O MES
pago a minha vida com isso. mas, isso é um lado paralelo, né? quer
dizer, se na hora em que eu estiver fazendo um trabalho eu pensar
se vou vender aquele trabalho ou não, é melhor não sair de casa,
vou fazer outra coisa, entende?
é preciso tentar separar as coisas. não há mal nenhum em você
ser um artista profissional, desde que ser profissional não sufoque
o artista. o artista não pode se permitir entrar nesse espírito de
tempo é dinheiro, né? como é possível referenciar o tempo, que é
o que existe de mais precioso, na objetividade vulgar do dinheiro?
é um sistema muito absurdo, mesmo. então acho que o pensamento
tem que dar volta no sistema o tempo todo e o trabalho tem que
ser a expressão mais avançada do pensamento.
acho que somos animais mais emocionais do que racionais, mas a
ideia de emoção está cada dia mais distante da arte para iniciados.
estamos falando aqui de iniciados, né? não somos o público, então
cada vez que entro em uma exposição eu já tenho que me livrar
de tudo aquilo, né? o público em geral entra assim: “não estou
entendendo nada, explica para mim”. isso é um problema. outro
problema é aquele que já entrou entendendo tudo. então, no fundo,
para mim, é a mesma coisa. e na verdade é isso, você não tem muito
158
C A DER N OS EAV
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F ERN AN DA G O MES
por onde andar, é um território minado mesmo, que bom! e se gente
não sabe voar, dá para dar uns saltos, né?
muito rigoroso. quer dizer, se eu começar a mexer, vou ter que
refazer tudo.
o que conta é trabalhar e trabalhar e trabalhar muito. e autocrítica,
não tem nada mais difícil do que autocrítica. o que vale é o sentimento de estar inteiro ali ou fazendo alguma coisa que possa de fato
me surpreender. gosto muito de olhar as coisas, então faço as coisas
que eu gosto de olhar. se não tenho o interesse renovado em olhar
e olhar de novo, se aquilo não me cria fagulhas para continuar, sei
que não presta. mas também vale a alegria, é a prova dos nove, né?
fiz durante três semanas e pensei assim: é uma exposição que vai
ficar quatro meses, que é um mundo de tempo, e do lado da minha
casa. eu não vou viajar durante esses quatro meses, basta eu pegar o
meu carro e fazer um trajeto maravilhoso pela praia de copacabana,
aterro do flamengo, que por si já é uma preparação perfeita para ver
alguma coisa. e eu vou chegar lá, vou poder mudar à vontade. para
que eu vou fazer uma exposicão só? falei isso porque, de fato, era a
minha intenção. eu não estava nem enganando a mim mesma, eu
acho, muito menos a ninguém. já tive essa intenção outras vezes,
tentei fazer e fracassei também. chega um momento em que as
coisas ficam equilibradas e eu não consigo fazer mais nada. ou desmonto tudo ou começo a tirar para poder acrescentar. três semanas
de trabalho muito intenso, chegando em casa era quando eu sentia
que o espaço era grande. sei lá quantos quilômetros eu andava ali
dentro, nem calculo, não quero nem calcular. o corpo doído, eu
estou bem fisicamente, mas parecia que eu tinha apanhado. então,
o limite ali é sempre o limite do corpo, de uma certa maneira. e eu
não poderia continuar a fazer aquilo naquele ritmo durante quatro
meses, ninguém consegue fazer aquilo durante quatro meses. ficaria doente, eu acho. ou algum acidente iria acontecer. quer dizer,
Aluno: E qual é a sua autocrítica? Como você se vê
enquanto espectador da sua obra? Você falou que é legal
fazer autocrítica, que é uma coisa muito difícil – de fato é – e
onde você recai na sua autocrítica? Porque, na verdade, o seu
trabalho, por exemplo, no MAM, ainda vai continuando, vai
acontecendo, é uma exposição que vai acontecendo, então,
onde acaba e onde você para, para ter uma autocrítica?
não vai acontecendo, isso foi mais um fracasso. eu tenho um truque mental: nada está nunca pronto. mas é truque, né? sei que
é falso, é só um truque – nada está nunca pronto, mentira total!
em certo momento, há um equilíbrio, uma situação de equilíbrio
160
161
C A DER N OS EAV
eu tenho uma tendência a trabalhar sempre no limite, me agrada
isso, tanto do ponto de vista de processo quanto de resultado. mas
muitas vezes eu ficava doente ou começava a quebrar tudo, sem
querer, tropeço, quebro uma coisa, quebro outra, quebro outra e
outra. hoje em dia, com mais experiência, é menos frequente ficar
doente ou quebrar coisas. de vez em quando quebro uma coisinha ali
e outra aqui, mas antigamente eu passava do ponto e começava de
fato a quebrar e quebrar em sequência. aí tinha mesmo que parar!
e tem uma coisa estranha: depois que a exposição abre ao público,
ela não é mais sua, então eu não tinha como ficar ali. eu mantive, e
mantenho ainda, o meu espaço separado ali. não gosto, quando eu
estou fazendo uma montagem, de ter objetos que não façam parte
da situação da exposição, então geralmente tenho um espaço de
recuo. ali eu tinha um espaço de recuo muito generoso. esse espaço
continua lá, fechado ao público. vou lá umas duas vezes por semana,
trabalho lá, olho a exposição, faço manutenção, documento um
pouco, vejo. e não me deu vontade de mudar nada. acho que às
vezes a gente não sabe o que tem que fazer, mas se sabe o que quer
fazer já é bom. não sabe se é isso ou aquilo, deveria fazer isso, será
que seria bom fazer isso? mas se você sabe o que você quer fazer...
tem coisas muito simples: tem vontade de fazer? faz! é tão simples!
não tem vontade de fazer? não faz! é básico, é banal? o que vocês
F ERN AN DA G O MES
acham disso? não sei, mas é muito prático. até porque ninguém
pede a ninguém que faça arte, você faz porque você quer fazer. é
uma coisa interior, é uma vontade, mesmo. então, em um lugar onde
você tem essa possibilidade de fazer o que quer, por que você vai
fazer o que não quer? ou por que você não pode mudar de ideia?
eu queria, mas não quero mais!
Com tantas ideias, pensamentos, como você faz para
que não se perca dentro daquilo que você se propõe? Porque
às vezes eu também vivo isso, muitas ideias, muitas ideias, e
aí eu nem sei o que selecionar, nem sei por onde começar. Eu
acho que você podia, de repente, dar uma luz para todos nós,
em relação a isso.
Aluno:
eu me perco! eu não tenho medo de me perder, eu me perco à vontade mesmo! e aí tem horas que tem uma onda irresistível, se você
está ali é porque tem dedicação, né? é dedicação e integridade, você
está seguindo o foco do desejo, né? e da sua visão, e eu penso visão
como uma palavra muito importante, ampla. assim, visão não é só
o que você está vendo. é o que você está vendo, é o que você está
imaginando, é o que você está vendo de uma forma, também, distanciada, crítica, mais consciente. e é se dedicar a ver, né? a olhar
e olhar e ver, poder olhar de fato, né? ajudou?
162
C A DER N OS EAV
Eu queria saber se as suas obras têm destinatário ou
elas só têm remetente? Você pensa no destinatário ou você se
concentra no seu processo e só?
Aluno:
não é uma carta, né? então, não tem nem destinatário nem remetente. faço para mim em primeiro lugar, isso é claro. mas não só,
porque se fosse só para mim também não faria sentido. ou faria,
também, nada faz sentido, então, se nada faz sentido, pode-se pensar: que bom que nada faz sentido. melhor do que tentar encontrar
um sentido para as coisas é aceitar que nada faz sentido, ou que
muito pouca coisa faz sentido. ou mesmo a ideia de fazer sentido
é esquisita demais. por que as coisas têm que fazer sentido? de
onde surgiu isso? nunca estudei filosofia, gosto de ler, mas não
consigo estudar de uma forma sistemática. desde que me livrei
da graduação, pensei: finalmente acabou isso! gosto de estudar,
mas de acordo com outros métodos, sou empirista, anárquica.
não me encaixo nos sistemas padronizados. e não vejo por que
me encaixar, já que cumpro as minhas obrigações sociais de uma
forma conveniente. isso é importante também, quanto mais
você se desencarga desse tipo de coisa, melhor. tem que pagar
a conta de luz, porque se não pagar não funciona, literalmente.
então, pagou o que tem que pagar, fez os exames de saúde, fez o
que tem de ser feito, aí tem espaço para tudo o que se quer fazer.
163
F ERN AN DA G O MES
sinto que está tudo interligado. sinto que estou conectada com
aquele cara desenhando na parede da caverna. vi uma vez. é perfeito, lindo! tem umas frases que são lindas, adoro essa, do miró:
“a pintura está em decadência desde os tempos das cavernas”!
usando o relevo da pedra pra fazer o relevo da coxa do animal, o
olho, aproveitando a forma da pedra para fazer o desenho, uma coisa
deslumbrante! esse cara fez aquilo pra quem? fez aquilo pra fazer,
né? é como se fosse sem remetente conhecido, e o destinatário é
geral, para usar a tua imagem.
sinto que eu vivo conversando com os mortos, todo dia, o tempo todo,
escutando os mortos, quer dizer, eles não me escutam, mas eu escuto.
mas nunca se sabe, né? de vez em quando eu até falo em voz alta para
alguém em especial. existe todo esse patrimônio do pensamento
e da arte, cada dia mais disponível. outro dia eu estava ouvindo o
glenn gould falando sobre bach, um cara que viveu isso com uma
obsessão absoluta, uma precisão genial! e falando que aquilo não era
avançado demais para a época, ao contrário, ninguém ligava para o
johann sebastian porque aquilo era considerado velho. a maravilha
que é o registro, né? ter acesso continuado a um patrimônio que é
de todos e percebo que é ali, na arte, que estamos de fato. é o espaço
verdadeiro da humanidade, no sentido de que está todo mundo ali,
e todos interligados. é um momento em que se pode pensar que o
164
C A DER N OS EAV
homem não é um animal tão horrível assim, né? há alguma coisa que
compensa esse desastre todo, quer dizer, nada compensa nada, mas
tem algo que faz que a gente tenha um certo prazer em ser humano.
Não tenho uma pergunta, são coisas que ficam em
mim, algo que eu senti vendo a sua exposição no MAM, mas
que mexe muito comigo, porque posso estar errada, mas
acho que a arte, para mim, a função, eu tenho vontade de
mexer com as pessoas, sabe? De tocar as pessoas e, às vezes,
quando a arte é muito contemporânea, como você falou,
há uma parte das pessoas que não estão entendendo nada,
que não vão entender nada, só que para mim isso é muito
bom, para mim, como artista, é uma realização muito grande.
Então, eu fico me perguntando qual é a minha função? Por
que eu quero fazer isso? Quero fazer isso porque nasci assim.
Ninguém disse que precisa de mais artista, então qual é minha
função no mundo, para que eu quero fazer isso? Para que e
para quem vai servir? Será que é só uma terapia que eu estou
fazendo comigo mesma, é algo egoísta? Mas por outro lado,
não sei fazer outra coisa, não gostaria de viver de outra forma.
Aluna:
E outra coisa que acontece quando chego a uma exposição
como a sua, que mexe muito com o sensível, ela mexe comigo
165
F ERN AN DA G O MES
e eu tenho vontade de mexer nela, então, por outro lado, não
há uma liberdade. Me deixa um pouco aflita que às vezes eu
vou ver esculturas e tenho vontade de tocar nelas, de sentir a
textura, e as suas coisas eu tinha vontade de mudar de lugar,
mas vá eu fazer isso lá no MAM... E aí aflige um pouco: essa
pessoa está mexendo comigo e eu não posso mexer com ela?
a pessoa não está lá, estou aqui, é outra coisa, né? você vai mexer
comigo quando fizer um trabalho também. não é mexendo algo de
lugar que você vai mexer comigo. se mexeu na tua emoção, quando
você fala isso, se eu estou aqui ouvindo o que você está falando,
você está mexendo comigo, pessoalmente. mas no que está ali nem
eu mexo em nada, porque ali já é outra coisa. achar que arte participativa é manipular ou mexer nas coisas acaba sendo uma visão
superficial, mexer na coisa sem viver a dimensão mais profunda,
mental-emocional. a experiência sensorial ali é principalmente
visual. você pode andar e se aproximar daquelas obras à vontade,
cada percurso que você faz está configurando uma visão única.
uma experiência só sua, determinada pelo seu corpo, pelo seu
olhar, seu tempo, seu deslocamento. só pelo fato de se mexer ali,
você já está fazendo alguma coisa que é muito mais poderosa do
que mexer em alguma coisa ali. e tanto é que você se sente mexida.
quando fiz aquilo defini que ninguém poderia mexer ali. defini
166
C A DER N OS EAV
167
F ERN AN DA G O MES
também que eu poderia mexer e não consegui mexer. porque não
tive vontade, porque aquilo de certa forma não me pertence mais.
aquilo está ali, tem autonomia. você vai poder mexer, eu acho, é
no que você vai fazer com essa experiência. acho que isso tem um
alcance muito maior do que se a gente pudesse entrar ali e usar
aquilo como playground. tenho tido muitos problemas com essa
questão participativa, que é muito interessante, muito positiva,
mas traz também um efeito negativo, vazio, dessas proposições.
acho que em alguns momentos ficaram muito datadas, apesar
de eu ser grande fã de hélio oiticica, lygia clark e uma série de
outros artistas. vejo isso hoje muito diferente do que eu via antes.
quando foi lançado em 1986 o livro aspiro ao grande labirinto,
eu li com grande prazer e emoção. quando eu releio hoje, tenho
uma visão tão diferente da que eu tinha há quase 30 anos. tudo
aquilo é muito importante para ampliar essas possibilidades de
pensamento. mas por outro lado acho que foram criados mitos aí,
que no momento são para mim muito contraproducentes, como
pensar que pelo simples fato de pegar nas coisas você fez algo
significativo, quando a verdadeira participação é interior. criar
uma dimensão mental e emocional transformadora é o maior
resultado daquela experiência, né?
Aluna:
O mexer a que eu me referi...
Vista da exposição: Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, 2011
Foto: Pat Kilgore
168
C A DER N OS EAV
tem peças que seriam para mexer até, mas não dá, o público é bruto,
você viu o que as pessoas escrevem no livro?
Não, mas o mexer, na verdade, eu estava falando
de um mexer muito mais simples, eu tive vontade de ficar
sentada do lado...
Aluna:
você pode sentar, sem tocar nos objetos, você pode deitar, você
pode ficar lá...
Então podia ficar deitada, eu não tive... Eu fiquei com
medo, porque tem uma pessoa que fica lá...
Aluna:
mas ela nem chega perto de você, elas são superlegais, ela não vai
atrás de você, vai?
Aluna:
Não.
elas são ótimas!
Só teve uma hora em que eu estava muito perto, aí ela
veio andando e ficou olhando, mas eu só estava inclinada...
Aluna:
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F ERN AN DA G O MES
é um museu, sabe? em situações ideais seria outra coisa. mas o
museu não é uma situação ideal, o museu é uma situação possível.
em uma situação museológica, aquilo tudo teria aquela faixa branca,
né? e só pode ser daquele jeito, porque aquilo tudo é da minha
coleção, porque eu quis fazer uma exposição totalmente fora dos
padrões museográficos. foi uma exposição feita com custo irrisório.
eu quis fazer com as condições limitadas de que o museu dispõe.
e sem texto de parede. tem um texto em um pequeno folheto, mas
não tem texto de abertura, ou seja, você não é estimulado a ler
algo antes de entrar. esse formato como regra geral é um grande
problema. primeiro, ter que ler um texto e só depois entrar na
exposição, a meu ver, só faz sentido para exposições históricas.
mas atualmente parece que todos querem pensar a partir do texto
e não do que está de fato ali. e quis fazer sem seguro, entende? tudo
que está ali é meu risco. mas tudo tem sido muito bem cuidado e
bem feito, essa equipe de monitores tem feito um trabalho incrível.
tem a presença de alguém que está prestando atenção, ou seja, você
sabe que você não está ali sozinho, que você não pode fazer o que
você quiser, você tem que ter uma distância respeitosa no sentido:
“não, você não pode mexer em nada”. isso não está escrito em lugar
nenhum, né? poderia ter escrito: “por favor, não toque nas obras”,
mas aí seria pior ainda, eu acho que isso é implícito, você está em
um museu, você não pode tocar, ainda que tenha vontade, você não
170
C A DER N OS EAV
pode tocar. mas você acaba tocando sem querer, ou seja, as pessoas
tropeçam, chutam. pela própria estrutura das coisas ali no espaço
e pela luz, o tempo todo acontece alguma coisa. o que também é
engraçado, não é você que toca o trabalho, é o trabalho que toca
você. sei lá, tem uma fricção ali.
Aluno:
Você já contava com isso?
já contava com isso, achei que teria muito mais acidentes do que
de fato houve. cada vez que acontece um acidente, ou seja, quebra alguma coisa, tem muito mais leveza, porque isso não implica
nenhum procedimento, perícia, seguro. eu estou arcando com
esse ônus, que até agora foi mínimo. quebrou uma peça que eu
pude repor, quebrou uma outra peça que não acho que tenha grandes problemas, coloquei de volta e ela ficou ali. as coisas quebram
mesmo, lá em casa as coisas quebram também. felizmente até agora,
falta uma semana só, não quebrou a peça que foi vendida durante
a exposição. espero que ela não seja quebrada, mas se quebrar...
a primeira peça que eu mostrei em uma exposição foi uma história triste, mas muito educativa. era uma tira de borracha com
um caco de vidro. vocês sabem que um caco de vidro é um objeto
absolutamente irreproduzível? esse copo você pode encontrar
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F ERN AN DA G O MES
igual, mas se eu deixo cair e esse copo quebra você nunca mais vai
encontrar um caco igual, nunca vai conseguir quebrar um copo
da mesma maneira. então, um copo comum, inteiro, é um objeto
qualquer. um copo quebrado é um objeto especial, único. nesse
caso, era um único caco, e esse objeto era uma tira de borracha com
esse caco de vidro enfiado. mostrei na primeira coletiva do projeto
macunaíma, que era a apresentação para as individuais que viriam
a seguir, foi minha primeira exposição. esse trabalho um amigo
quis comprar e eu não vendi porque queria ficar com o trabalho
para mim. estupidez, mas bem, é assim, acontece! fui desmontar
eu mesma, tinha uma embalagem, eu embalava com algodão, com
o caco dentro do algodão e eu amarrava a borracha em volta, tudo
dentro de um saco plástico no final. mas eu tinha estacionado em
lugar proibido e com medo de rebocarem o carro, botei tudo no saco
plástico e saí correndo. quando cheguei e vi que meu carro estava
lá, resolvi tirar do saco plástico para embalar direito, mas na hora
em que eu tirei o caco de vidro caiu na calçada e se estilhaçou em
mil pedaços. em suma, acabou o trabalho! não é uma boa história?
(risos) no fundo, o mais importante é imaterial. essa história, para
mim, tem muito mais valor do que o trabalho em si. na época era
um trabalho importante para mim, mas hoje em dia eu vejo como
um trabalho fraco. talvez eu esteja errada, talvez fosse um trabalho
bom, mas de toda forma ele já não existe mais.
172
173
C A DER N OS EAV
Você estava falando, desde o início da conversa
aqui, dessa liberdade toda, da sua liberdade em relação ao
trabalho, à obra, à ocupação de um espaço como o espaço
de um museu que é o MAM, da autonomia que a própria
obra gera dentro de uma liberdade, ela acaba surgindo
como obra e funciona, está lá no MAM, as pessoas
estão visitando...
Aluno:
E você veio falando dessa relação sua com o fazer, com o
processo artístico, mas uma curiosidade que sempre surge
comigo, em relação a qualquer artista a quem eu tenho
oportunidade de fazer pergunta, é: existe um momento
em que você se dá conta ou que se desvela essa prática
que é uma liberdade que, realmente, qualquer um pode ser
artista, mas não é qualquer um que pode ocupar o MAM, e
isso é fruto de uma longa história, de muito livro, de muita
biblioteca, de muita prática, muito ateliê, não sei como é
que é isso. Gostaria que você falasse um pouco desse local,
desse momento, não de obra nenhuma, não de exposição
específica, mas essa coisa de: “Realmente, agora meu
trabalho começa a funcionar”. Até que momento ele é só
uma pesquisa, só um desenvolvimento e quando é que você
vê o trabalho tendo realmente autonomia e não sendo mais
F ERN AN DA G O MES
uma... Você está me entendendo? Se existiu isso ou se não
existiu, também?
desde o início percebi que o trabalho existia, tinha autonomia. porque você pode ter vontade de fazer e não conseguir fazer, ou muitas
vezes na hora você não percebe muito bem o que está fazendo,
isso acontece muito. mesmo agora, que eu tenho uma trajetória
respeitável, posso começar a fazer coisas que não tenham força ou
autonomia. nada garante nada. claro, já existe uma obra, está lá,
mas isso não garante que eu vá conseguir continuar a desenvolver
em plena possibilidade. ou seja, eu acho que cada vez o desafio
fica maior, e tem que ficar cada vez maior. a exigência tem que ser
cada vez maior. quer dizer, é muito estranho você saber quando faz
alguma coisa de fato. eu me lembro também de um dia, há muitos
anos, eu não era, digamos, nem artista, eu nunca nem tinha feito
uma exposição, mas sempre eu tinha ouvido falar que eu era artista
e eu negava aquilo assim... argh!!
Tem mais gente para fazer perguntas, mas só como
você está falando disso, desse início, quer dizer, meio início,
você... Como está um papo abstrato e ótimo, mas só para
dar uma estaca zero, uma estaca km 1. Você fez muito tempo
programação visual, designer, né? A pergunta é um pouco
A.d.:
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C A DER N OS EAV
isso: você se formou nisso? Você falou de graduação, você
fez desenho industrial, aí você trabalhou como programadora
visual? Você vai falar um pouquinho. Esse click, primeiro
queria que você falasse um pouco desse design no seu
trabalho, como é que desenvolveu, né? Quer dizer, digamos,
essa limpeza. Trabalhamos juntos, quer dizer, você fez alguns
trabalhos para nosotros, e então eu percebi a limpeza e a
precisão que você tinha. Como é que foi essa passagem,
quer dizer, essa passagem naturalíssima, mas como é que
foi para você essa passagem, claro que já estava junto,
naquela época...
não, eu sempre fazia... eu pintava, eu pintava a óleo, cara! ganhei o
primeiro prêmio de desenho na escola, ainda no ginásio. eu desenhava muito, meu pai não entendia nada, como é que eu fazia essas
coisas horríveis se eu tinha tanto jeito para desenho. desenhava,
pintava muito, fazia artesanato, fazia tudo! faço até hoje, eu adoro
fazer milhares de coisas, fazer coisas, sabe? eu fazia umas coisas
quando eu era garota que até hoje tenho vontade de refazer, fazia
uns cubinhos de palitinhos de fósforo e depois pintava de preto,
fazia umas instalações – instalações no mau sentido – no meu
quarto, minha mãe deixava, eu fazia tudo, então eu pregava, era
cheio de prego, cheio de coisa pendurada, não tinha mais espaço,
F ERN AN DA G O MES
eu ia botando no teto. meus pais foram muito generosos, muito
estímulo, sabe? podia fazer o que quisesse e estava sempre fazendo
coisas, desde muito criança. mas nunca imaginei que isso era uma
profissão. é horrível, até hoje, falar que é artista plástico, acho constrangedor. mulher, então? é pior ainda, pensam que o marido deve
sustentar, ou o pai. qualquer um pode falar que é artista plástico.
A.d.:
Nas fichas de hotel você coloca artista plástico?
coloco, em tudo! agora tenho que colocar artista plástico porque não
tenho outra profissão, antes eu tinha, né? então eu falava designer,
depois tive que falar designer e artista plástico e hoje em dia eu não
posso mais falar que sou designer...
a.d.: Naquela
época nem se usava designer, né?
era sempre uma coisa meio cafona de falar! é bonito você falar: “o
que você faz? sou médico!” é um negócio sério, lindo! tenho a maior
inveja, eu deveria ter feito medicina... (risos) então, eu estou cada
vez respondendo menos, né... respondi?
Aluno: Você começou a falar sobre a questão da morte, sobre
a questão da liberdade e falou de mutilação. Eu queria saber
176
C A DER N OS EAV
“quase sempre se tenta
evitar o erro, mas é
inevitável. e a arte aproveita
o erro. a ciência também
aproveita o erro, e na vida,
também, a gente aproveita
bastante o erro. eu gosto da
palavra errar, especialmente
no infinitivo, errar também
no sentido de vagar, de se
deixar andar à toa.”
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F ERN AN DA G O MES
como você se coloca na questão que o espaço museológico
acaba mutilando a sua liberdade como artista. Como é que
você dialoga com isso?
isso é uma questão interessante. a palavra mutilação, que eu usei, é
forte demais, todo mundo pegou assim, estou até arrependida de ter
usado essa palavra, é forte demais. sinto o seguinte: desde a época
em que comecei, sempre fiz um trabalho que tinha uma questão
de escala muito diferente do que se fazia naquele momento, e uma
situação material muito precária, até para poder se nomear aquilo
obra de arte. eram umas coisinhas bem pequenas. acho estranho
que em arte a primeira coisa que todo mundo pergunta: “com que
material você trabalha?” tanto faz! qualquer material, entendeu?
e eu não trabalho só com resíduo, mando fundir colheres em ouro
branco, 18k, liga italiana. para mim, tanto faz! um copo d’água!
qualquer um que vai lá pode fazer aquela escultura que está lá no
mam. um sarrafo que se pega em qualquer caçamba, aquela perna
de três, bota um copo que você compra em qualquer botequim,
enche de água, está ali a escultura.
tem muitos processos, né? então, como tem essa diversidade muito
grande, tanto em termos de escala quanto em termos de material e procedimentos, é bastante complicado do ponto de vista
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F ERN AN DA G O MES
museológico ou comercial. trabalho com quatro galerias e atualmente vivo da venda das minhas obras. tenho muito orgulho disso,
até porque me permite uma autonomia em relação a esse sistema
de financiamento público de arte. esta é uma outra questão bem
complexa, que não vem ao caso hoje aqui, mas um dia a gente pode
até falar só sobre isso.
entrega ao todo e o que a gente é nesse todo, se o todo
é um pântano?
então, eu penso que ao invés de adaptar meu trabalho ao sistema,
tento criar um sistema que possa adaptar o que eu faço aos sistemas
existentes. dá um trabalho danado, é chatíssimo, mas é necessário.
e é sempre um aprendizado, estou sempre tentando encontrar
soluções. por exemplo, para adequar à necessidade de exposição
permanente, evitando o máximo possível o risco de aquilo ficar
muito engessado ali. mas tem casos que é mesmo caixinha de acrílico, sinto muito! é a moldura, é o “não me toque, estou no museu”.
e é o limite entre o que seria ideal e o que é possível. respondi mal,
né? (risos) pode reclamar, eu vou me animando...
Uma coisa que me chamou muito a atenção
foi você falando que a palavra é pantanosa. E eu fiquei
pensando como é a relação com o todo se a palavra é
pantanosa, se a gente só tem uma certeza, que a gente
vai morrer e que a gente não é nada, como a gente se
Aluno:
a gente faz o que você está fazendo aí, a gente tenta fazer poesia, né?
Aluno:
É, sei lá... (risos)
eu acho que é poesia, né... é tentar fazer poesia. justamente,
quanto mais pantanoso, quanto mais complicado, mais divertido
fica, né? é a possibilidade de fazer poesia, seja com palavras,
seja com outras coisas, com movimento... o que eu sinto é isso,
é pensar, é tentar. claro que tudo também acaba sendo... é isso,
já que tudo é mesmo inútil, então a gente está mais livre, não
é? já que não há sentido, a gente pode pensar a partir disso.
pode pensar a morte como uma liberdade maior para a vida e
uma dimensão muito mais realista. se muita gente pensasse na
morte em outros termos, a gente não vivia nessa ganância, nesse
materialismo tão chinfrim, né? para que você vai gastar o seu
tempo, que é a coisa mais preciosa que você tem, para ganhar
dinheiro para comprar um monte de porcaria que não serve para
nada, para jogar tudo fora, para ter esse... quer dizer, todo um
sistema de uma sociedade tão mercantilista, tão materialista.
acho que na verdade é falta de pensamento, quer dizer, é uma
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negação da negação da negação da negação, né? o consumismo
não existe para quem pensa que a vida é outra coisa, que a vida
é um tempo, determinado e rápido, curto, muito mais curto do
que se tem ideia. muito mais curto!
Quando você fala dessa questão do desapegar, do
entendimento, de ser entendida...
Aluno:
eu não usei a palavra desapegar, tá?
É, então, começar a sair desse sistema de como as
coisas funcionam e pensar fora e você começa a pulsar em
outra vibração, isso gera problemas, né? Eu acredito que isso
gera desconforto, isso gera ansiedade. Eu queria saber o que
foi te ajudando durante esse caminhar fora, esse querer pensar
fora de um sistema fechado. O que foi te ajudando a abraçar
essa liberdade que também causa problemas?
Aluno:
ah, tudo causa problema e tudo causa desconforto, não é? acho
que essa ideia do desconforto é muito boa, porque o desconforto
ao mesmo tempo é algo, eu acho, intrínseco à natureza humana,
a gente não tem como... quer dizer, nascer já é uma espécie de
desconforto, você sai daquela situaçāo de conforto total para um
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F ERN AN DA G O MES
desconforto, a roupa, o sapato. eu sinto muito desconforto, físico,
inclusive. então, a gente vai simplesmente procurando eliminar
o máximo possível o desconforto no sentido mais simples, né?
pensar na roupa que veste, na casa onde vive, como gosta de se
locomover, como gosta de estar, o que gosta de comer, como gosta
de dormir. e tentar desenvolver o corpo no sentido mais objetivo,
para mim, tem sido uma descoberta cada dia mais determinante.
pensar em corpo como estrutura mental e emocional também. e
pensar em você mesmo como o material de trabalho principal.
assim, o meu investimento cada vez mais é em mim mesma. eu
vou viajar agora, fazer uma exposição, não vou levar nada, é o que
eu mais gosto de fazer. eu não levo nada porque está tudo comigo e
onde eu chegar eu vou encontrar as coisas de que preciso, seja em
uma loja de material de arte, seja em uma esquina. então, muitas
vezes a ideia do desconforto também é um ponto de partida para
você procurar o que é não só mais agradável, mas mais gratificante.
mas não tem como eliminar o desconforto. eu me sinto muitas
vezes sensível demais, mas não tem como eliminar. quer dizer,
eu poderia tentar eliminar isso, poderia trabalhar nesse sentido:
“quero me tornar mais cascuda”. mas prefiro viver com a minha
pelezinha fina, sabe? talvez seja mais desconfortável, certamente
é mais desconfortável em vários aspectos, mas em outros não e
também é uma natureza, quer dizer, eu já tenho isso, então para
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C A DER N OS EAV
mim é muito mais fácil, talvez. não sei se fácil, mas mais produtivo,
eu tenho melhores resultados, entende? em tentar afinar minha
sensibilidade, para não cair em uma pequena armadilha de baixo
nível em qualquer esquina, saber me proteger de certa maneira,
mas nunca criando casca, sabe?
Como você começa a abraçar isso de pulsar como
se fosse em outra vibração, se você vai encontrando pessoas
que conseguem conversar sem querer se compreender
completamente, encontrando pessoas que não estão tão
preocupadas, que não se importam em errar, falar e se soltar.
Isso vai acontecendo, você vai encontrando essas pessoas?
F ERN AN DA G O MES
conforto que é me sentir um animal perfeito. de vez em quando
eu me sinto um animal perfeito, é maravilhoso! sem pensar nisso,
sem separar pensamento e ação. sem separar hoje, amanhã, ontem,
sem pensar que está pensando, simplesmente pensa, age, respira,
mexe. isso acontece no amor, acontece na arte, são as referências
que eu tenho... e no mar, a natureza, né?
Aluna:
vai, vai encontrando e tem horas que você fica um pouco... mas
é isso, viver não é simples para ninguém. mas a gente está vivo e
como a gente vai viver? acho que é difícil para todo mundo, mas
não sei como é. ninguém sabe como é para o outro, né? por mais
intimidade que você tenha, por mais comunicação que você tenha.
é uma situação de desconforto estar vivo, também. quem sabe a
morte é um grande conforto. (risos) não sei, a questão é que você
vai como uma planta vai para a luz, de uma certa forma. a gente
é muito mais animal do que quer crer e eu acho que isso é maravilhoso, não é? sinto que às vezes consigo chegar a um grau de
a.d.:
O desconforto move.
o desconforto move, certamente, mas pode mover para um desconforto maior ainda! (risos) às vezes é horrível! se você vai pensando
como essas questões vão funcionando ao longo da vida, né? lembro
que em vários momentos da vida eu me movia de um desconforto
para um desconforto maior ainda e para um desconforto no limite
do insuportável. hoje em dia tento equilibrar muito mais. porque
tem essa coisa também do mito do artista. hélio oiticica falando
“o artista é o vampiro de si próprio” zeus me livre! entendeu? mas
tem essa onda, todo mundo já entrou nessa, você vira o vampiro
de si próprio, quase todos morrem aos quarenta e poucos anos.
eu já passei dessa fase, então pronto. não que eu desvalorize isso,
muito pelo contrário, eu tive sorte, escapei, passei dessa fase.
quer dizer, é interessante porque você pensa, a maior parte desses
artistas que realmente foram consumidos pelo próprio fogo, muito
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C A DER N OS EAV
fogo, um fogo lindo, maravilhoso. são vidas lindas, maravilhosas,
mas geralmente terminam aos quarenta, ninguém aguenta. eu
tenho vontade de envelhecer, acho que é um processo interessante,
realmente muito interessante, e acho que em termos de arte você
consegue, de fato, chegar a uma depuração, e eu estou nessa, estou
a fim de envelhecer...
Pessoal, mais duas ou três perguntas...
Certamente, está ótima a conversa, mas eu acho que ficaria...
F ERN AN DA G O MES
maturação, não sei... eu me perdi um pouco no final... (risos)
É basicamente isso, essa questão do material.
o material, para mim, eu vou sempre...
Aluno: Até pensando no que você falou da galeria, como é
que você pensa em tudo?
Tania Queiroz:
é bom parar... posso, também, responder em três palavras. (risos)
Você falou do cansaço que sentiu em estar presente ali
na exposição. Eu acho que tem uma clareza, uma sensibilidade
nessa exposição que até eu também senti, sei lá, uma clareza,
uma paz muito forte, bem sensível. E agora, pensando na
pergunta já, sempre quando eu vejo uma exposição, penso muito
no material que o artista utiliza. Você até depois falou de venda, e
tem uma escolha desses materiais no espaço e você remetendo a
própria presença muito forte de madeira, ferro, eu vejo muito no
teu trabalho uma coisa de escolha, da escolha desses materiais. E
a pergunta é exatamente sobre isso, sobre como é que a própria
madeira, como é que se deu, se tem alguma relação do tempo,
Aluno:
agora eu me perdi... você está falando da escolha das coisas?
É, tem uma coisa do inacabado, do renegado,
parece que você foi a uma loja de demolição. Sabe aquela
coisa que ninguém quer mais, que não interessa? Aí eu falei
da galeria, se isso tem uma relação até como uma crítica
daquela coisa que foi renegada passar a ser vendida, tem uma
transvaloração do material.
Aluno:
é, isso eu acho muito bom porque é recolocar as ideias de valor. como
está todo mundo muito ligado em preço e não em valor, é interessante conseguir transformar um valor abstrato, de uma situação
totalmente desvalorizada, em uma situação desse valor aí, quantificado pelo preço. então, isso é uma operação que me agrada muito,
às vezes tirar uma coisa sem fazer nada nela, tiro do lixo, da rua, e vai
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C A DER N OS EAV
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F ERN AN DA G O MES
direto para o museu. no fundo, não interessa se aquilo foi achado,
se eu herdei, se eu fiz, aquilo existe dentro de um universo que eu
construí mentalmente, na verdade é uma construção de linguagem.
o que eu construí, na verdade, é uma obra da linguagem, imaterial,
totalmente imaterial e as coisas materiais dão, digamos, esse lastro.
então, qual é o mistério disso? aquilo faz parte de um conjunto, ou
não significaria nada. só faz sentido porque faz parte de um conjunto,
que é uma construção da linguagem ou da poesia, em que é o imaterial que traz o valor dessa coisa material, ou aquilo não existiria. a
linguagem é o que permite ver ou pensar aquilo como arte, e é o que
permite depois fazer, aí sim, a operação que mais me interessa, que
é poder ver o mundo de uma forma totalmente diferente.
Minha linguagem você não vai conseguir, nem eu, nem ninguém,
amarrar em meia dúzia de frases. nem a minha, nem a de nenhum
outro artista. estou me dedicando a uma aventura muito complexa e
muito exigente, para mim mesma e para quem quiser compartilhar.
e funciona, o incrível é que funciona, no sentido transformador. a
ideia de que a arte transforma o mundo. acho que a arte contemporânea tem essa possibilidade de criar um novo olhar em relação
a tudo, sobretudo nesse mundo em que a beleza não é mais beleza.
e pensar em beleza de uma forma muito mais verdadeira, e poder
Vista da exposição: Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, 2011
Foto: Pat Kilgore
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C A DER N OS EAV
falar em beleza, e eu não estou falando em criar estranhamento, eu
não quero chocar ninguém, eu quero criar beleza, uma coisa antiga,
muito antiga. às vezes tenho a sensação de que o meu trabalho vira
quase uma coisa primitiva, do tempo das cavernas, sabe? mas não,
claro que não! é supercontemporâneo! e, sei lá, estou descobrindo,
fazendo e descobrindo, né? é uma aventura que vai ficando cada
dia mais complexa, quanto mais você começa a entrar no sistema,
mais necessária a clareza, saber o que você está fazendo. mesmo
que você não saiba exatamente o que você está fazendo. porque
ninguém sabe muito bem o que está fazendo. porque, se eu souber
muito bem o que estou fazendo, eu sei o que estou fazendo errado.
quando você falou “eu sinto errado” ninguém sente errado, não
existe sentir errado, não é bom isso? não existe! como você pode
sentir errado? pode até ser um sentimento incômodo, inapropriado,
desmesurado, todos os adjetivos, mas errado não tem para sentir.
pode ser um sentimento ruim ou que você não tenha apreço por
ele, mas não é errado, se você sentiu, sentiu.
então, é tentar pensar isso, não adianta tentar reduzir, não adianta
pensar e dizer: aqui eu sei o que estou fazendo! eu sei o que estou
fazendo desde a primeira exposição. sei muito bem o que eu estou
fazendo. tenho confiança porque eu sei o que estou fazendo. nem
certo nem errado, eu estou fazendo com o máximo que posso fazer,
F ERN AN DA G O MES
estou fazendo com tudo o que eu posso fazer, então eu tenho confiança que não estou guardando nada, não estou me poupando. me
cuido para caramba, cada vez mais, mas eu não me poupo, sabe? a
reserva é no sentido de estar... pronto, já me perdi outra vez! mais
uma pergunta para terminar...
Não é exatamente uma pergunta, mas um pedido de
comentário. Eu queria que você comentasse um pouco sobre
um espaço que tem na sua mostra, na exposição lá, que é um
pouco velado, tem uma esfera branca dentro, e me chamou a
atenção porque, na verdade, ele é uma coisa um pouco oculta
que você se questiona inicialmente se aquilo é uma parede ou
é uma passagem e das duas perspectivas você não vê aquilo
de início, tanto de cima quanto quando você entra ali. Então,
gostaria que você comentasse um pouco sobre isso.
Aluno:
é, as coisas são o que elas são, então é muito simples, eu também
me pergunto o que é aquilo. e o que me interessa quando eu estou
fazendo as coisas é justamente me perguntar o que é aquilo. senão
já não acho tão interessante. ali, aquela situação existe por vários
motivos, e por que ela acabou se tornando aquilo, principalmente.
posso falar do ponto de vista mais objetivo, ou seja, defini que eu
queria o espaço todo aberto e que eu queria uma grande parede na
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C A DER N OS EAV
entrada, rebatendo a parede do fundo, ou seja, tudo aberto. porque
tem um lado que é superestruturado no sentido formal, não no sentido formalista, mas no sentido formal como estrutura, modulação,
tudo ao contrário desse vagar aí, né? a luz é assim, o espaço é assim
e isso aqui rebate. eu não queria que tivesse nenhuma comunicação
com a sala anterior e que você entrasse em uma exposição que você
não visse nada e, quando você estivesse lá dentro, que você não visse
nada lá fora, a não ser a própria paisagem. então fiz aquela parede que
rebate, exatamente, a outra parede. e a luz, que é uma luz estranha
que vai pro teto, ela é estranha por dois motivos: primeiro porque
ilumina só uma parte bem pequena da sala. e só usa as luzes do museu,
ou seja, eu resolvi trabalhar com toda a precariedade como um dado
positivo. e aconteceu uma situação interessante ali, totalmente
casual, porque tem o acaso que é uma maravilha, também. para a
exposição que estava na outra sala foi construída uma parede, que
tem o avesso ali à mostra. bastava eu fechar aquela porta corta-fogo
para a sala ficar “normal”, ou seja, do jeito que seria se não houvesse
aquilo. mas aquela estrutura, daquele avesso da parede, tem tudo a
ver com outras estruturas que eu estou trabalhando e com outros
trabalhos que eu já fiz em outros lugares. por acaso estava ali e eu
gostei e deixei aquilo aberto. aos poucos fui usando, também, o que
não estava previsto, mas eu tinha pedido para tirar, e quando eu fui
começar a montagem, todos aqueles painéis que, na verdade, foi
F ERN AN DA G O MES
waltercio caldas que fez para a exposição dele. são estruturas de
alumínio com tecido que são encaixadas nas janelas, é um sistema
muito bom para ter uma outra situação ali, no museu, porque você
tem a luz mas não tem transparência. translúcido mas não transparente. e eu comecei a usar aquilo e acabou criando aquela situação.
é um espaço meio estranho, porque as pessoas poderiam ficar ali.
você poderia entrar por ali também, todo mundo entra pela direita,
mas é possível entrar pela esquerda. é uma série de situações que foi
criando aquela situação ali.
Voltando àquela questão sobre o fato de você ter
migrado do design para a arte, o que não ficou muito claro
para mim foram os motivos, suas motivações, imagino até que
seja pela liberdade da criação e pela sua busca de uma beleza
menos rasa.
Aluno:
eu adoro design, mas a questão é que não dá para fazer tudo, né?
foi uma situação muito simples, porque eu achava que eu nunca
ia conseguir viver do meu trabalho. achava que, apesar de saber
que eu estava fazendo uma coisa que tinha um espaço, seria meio
complicado do ponto de vista...
Aluno:
Desculpa, qual trabalho, o de arte ou design?
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C A DER N OS EAV
o trabalho de arte. o trabalho de design, pelo contrário, estava muito
bem. gosto de design, gostaria até de trabalhar com design no futuro
novamente, de outra maneira. acho importantíssimo, acho que o
design, hoje em dia, é muito mal pensado. mas não dá para fazer
tudo, é só isso. e naquele momento eu tinha no meu apartamento
um escritório de design e um ateliê e comecei a perceber que preferia estar ali. a cada dia estava fazendo aquilo, arte, com mais
vontade, e comecei a não ter mais tanta vontade de fazer design. e aí
entrou o computador. foi uma sorte. ainda fiz alguns trabalhos com
assistentes, eu sentada do lado. mas eu teria que aprender todo um
outro sistema e investir em equipamentos, ou entāo largar. larguei!
foi maravilhoso, porque eu detesto ficar no computador por muito
tempo, aquilo agride visualmente, bombardeio de luz no olho, né?
Bom, Fernanda, você mencionou a questão da obra
do caco de vidro, que você não queria vender, tinha, vamos
dizer assim, um certo apego com a obra. Depois desse
percurso artístico, ainda hoje, há alguma obra que você faz
falando “Isso é para mim, isso eu não quero vender”. E tem
uma outra pergunta: você falou da questão do material, por
exemplo, eu vi as colheres feitas de ouro branco. Como se
dá a questão da valoração no mercado de arte, quem dá esse
preço, é a galeria, é o artista? Mas, hoje, por exemplo, como
F ERN AN DA G O MES
fica a venda de um objeto feito de ouro com liga italiana e
a venda de um que é um sarrafo tirado do lixo? Como se dá
esse processo de valoração?
é genial, porque o preço não depende muito do material, o preço
do trabalho, na verdade, é muito mais caro do que o preço do ouro,
o ouro não é caro, na verdade, né? mesmo quando trabalho com
ouro, nunca tem um supercusto de produção e o ouro é um material maravilhoso de trabalhar, realmente, não é à toa que é tão
precioso. é mesmo um material maravilhoso de trabalhar, trabalho
com ouro puro também, adoro, você corta com tesourinha, sabe?
é um material, assim, delícia, realmente! então, por exemplo, tem
um trabalho que é um círculo de ouro e o outro é um acrílico, é o
mesmo preço, entendeu? ouro e acrílico, o valor material ali se dilui.
Aluno:
Aluno:
E esse apego com a obra?
esse apego é chato pra caramba, mas tem duas coisas: um é aquele
trabalho que você quer guardar por questões idiotamente sentimentais. isso acontece, eu sou idiotamente sentimental, isso melhora,
mas não cura não. depois tem o trabalho que você não pode vender
porque é trabalho gerador, aí é outra história. o trabalho gerador
é aquele que você precisa guardar porque ele vai te alimentando.
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C A DER N OS EAV
“porque pensar em
arte e vida como
amalgama é pensar
uma possibilidade de
uma vida muito mais
inteira, muito mais
livre ou significativa.
ou sei la que palavras a
gente pode juntar ai...”
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F ERN AN DA G O MES
tem algo que vai se desenvolver muito ali. às vezes faço um trabalho
em dez minutos, mas passo meses, anos, olhando aquilo. tenho
trabalhos inacabados de mais de vinte anos.
tenho um monte de desenhos e nunca fiz uma exposição de desenhos, até hoje. então, separo em pilhas, desenhos ótimos que são
geradores e eu não posso me desfazer ainda, desenhos bons que eu
posso vender e desenhos ruins que eu reciclo ou guardo. às vezes,
eu vou na pilha de desenhos ruins e acho um desenho lindo e falo:
“caramba! o que esse desenho está fazendo aqui? esse desenho
é lindo!”. às vezes eu vou na pilha de desenhos bons e falo: “que
porcaria de desenho!”. como saber o que é bom e o que não é bom,
essa é uma das questões mais complicadas, sobretudo para quem
está começando a trabalhar. como você vai distinguir as coisas na
sua produção? isso é uma coisa que faz muita diferença, eu acho,
e é o que vai fazer vários artistas seguirem muito bem adiante e
outros nem tanto. e outros que se perdem: encontrou uma coisa
ali e não seguiu aquilo e foi cair em uma outra situação, ou por
pressões externas ou porque não teve a capacidade de ver. muitas
vezes você não tem a capacidade de ver o que você fez na hora, e,
nesse ponto, o mercado acaba atuando de uma forma muito perigosa, a minha sorte foi que durante anos eu não vendi quase nada,
ficava tudo ali, então...
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C A DER N OS EAV
Aluno:
Quem dá o preço?
quem dá o preço é o galerista e o artista juntos. eu trabalho com a
mesma galeria há 22 anos, então é uma delícia! acho dificílimo dar
preço para o meu trabalho. parto do princípio de que todo preço
está errado. mais um truque, né? preço certo não existe, está tudo
errado! valor e preço são coisas muito diferentes e todo preço em
relação à arte está errado. partindo desse princípio, é mais simples
encontrar o preço mais correto possível. muitos critérios entram
em jogo, mas o mais objetivo é ajustar o preço em relação aos preços
dos trabalhos que já foram vendidos. jamais vender por menos.
então, para mim, é bom manter o preço o mais baixo possível, sem
desvalorizar o trabalho. encontrar os vários preços dentro do meu
próprio trabalho é complicado, porque não é só formato e material
que vão definir. o trabalho de ouro vai ter o mesmo preço de um
trabalho de um material totalmente vulgar. e você vai pensando,
tudo bem, é preço, só preço, não tem problema nenhum, não é
valor. você tenta encontrar o melhor preço. geralmente quem sabe
fazer isso da melhor maneira é o galerista consciencioso. o grande
perigo é colocar o preço muito alto. é um grande perigo para os
artistas jovens, um galerista que vai vender o seu trabalho por
uma fortuna, porque se depois o trabalho não vender o problema
é seu. o galerista arranja outro artista e você nunca mais vai poder
F ERN AN DA G O MES
vender o seu trabalho por um preço razoável. muitos artistas bons
entraram nessa enrascada.
Aluno: Eu queria saber sobre o seu espaço de trabalho, sobre
o seu ateliê, como funciona, se é muito habitado, pouco
habitado, se é só seu...
sempre trabalhei em casa, gosto de trabalhar em casa. já morei
sozinha, já morei casada, em dois casamentos, agora estou
morando sozinha de novo. casei com dois caras bem especiais,
porque lá em casa é um negócio meio selvagem. as coisas são
relativamente organizadas e limpas, mas não tem distinção entre
as coisas, quer dizer, é tudo um ateliê. um apartamento de 105m².
nem grande nem pequeno, para uma pessoa sozinha é bastante
confortável, para duas pessoas também. tem uma sala que só
tem um canto, com sofá e uma poltrona, e o resto é tudo vazio,
então eu vou mudando à vontade. fico experimentando, está
sempre mudando.
Aluno:
Faxineira nem pensar...
faxineira eu já tive uma que era um gênio, mas era um pouco
insensível. na época em que eu era casada. então, essa parceria
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C A DER N OS EAV
amorosa tem que ser sempre uma parceria com gente que está
muito ligada no teu trabalho também, e vice-versa. porque se não,
não tem como morar ali, tem que ser alguém que realmente goste
e eu tive a sorte de encontrar dois companheiros que realmente
gostavam, tinham prazer de estar vivendo ali naquela coisa. tem
um quarto que não tem nada, não tem arte, não tem nada, só
tem um colchão no chão e nada. e tem um ateliê que é superlotado, uma cozinha que é tudo muito misturado, é sala de jantar
e coleção, porque gosto de ter obras de outros artistas também.
e agora eu tenho um ateliê legal, que é o meu preferido, que é o
melhor quarto da casa, porque é o mais claro e é um ateliê que eu
chamo de ateliê de pintura, é tudo branco e não tem acúmulo. e
agora está maravilhoso porque está tudo no mam! semana que
vem ainda vai ser uma semana assim, mas a outra semana vai
ser barra pesada. eu poderia ter outro espaço, pensei em várias
opções e resolvi não fazer nada. vou tentar de novo acomodar
tudo em casa, porque, de fato, eu não gosto de trabalhar fora de
casa. eu gosto daquela situação que você levanta de noite e você
vê o trabalho no escuro. eu gosto de tudo misturado. então, por
exemplo, boa parte das coisas que estão no mam vai voltar. uma
mesa vai voltar a ser mesa da cozinha, a cadeira vai voltar a ser
cadeira, o banquinho vai voltar a ser banquinho, então tem o
trânsito dos objetos...
F ERN AN DA G O MES
A.d.:
E algumas coisas você dispensa...
vou ter que dispensar umas coisas, se vocês quiserem acolher coisas,
eu estou pensando...
Aluno:
Mas, geralmente, você dispensa alguma coisa?
dispenso algumas coisas. eu tinha pensado em criar uma situação
que seria “obras em depósito”, ou seja, você faz contratos com
indivíduos ou instituições e deixa a obra em depósito durante cinco
anos. depois quem ficou com a obra em depósito tem preferência
de compra ou, se não quiser comprar, devolve. acho que para vários
artistas poderia ser uma forma também de fazer circular as coisas.
o complicado é que o pessoal, quando pega, para devolver às vezes
custa. então tem que realmente fazer contrato. mas nesse caso tem
várias coisas que são do museu, então não tem descarte, fica lá no
museu mesmo. vamos ver, acho que é fazendo, né? estou um pouco
desesperada, mas vai passar...
Aluno:
Eu posso guardar um pouco lá em casa!
todo mundo só quer guardar coisa pequena, eu quero saber quem
é que vai guardar trambolho! coisa pequena eu guardo.
200
C A DER N OS EAV
lá em casa, na verdade, é muito divertido, né? é outra coisa. mas no
museu é o máximo! que espaço maravilhoso! e aí, para mim, essa
exposição é tentar colaborar com o que eu possa fazer de melhor
para que o museu possa voltar a ser um espaço importante. e, mais
do que importante, vivo, né? o potencial é muito maior do que está
sendo usado. e espero que tenha contagiado um pouco quem viu a
exposição, que fique com vontade de fazer coisas ali.
A.d.:
Os cursos que havia antigamente ajudavam muito nisso.
isso eu tenho falado demais. mas falam assim... “mas tem o parque lage!”. mas é diferente. o bloco escola era fundamental! e
pode ter, inclusive, um intercâmbio maravilhoso entre o parque
lage e o bloco escola do mam. seria uma ideia simples de ser
implantada. o mam tem essa situação, é no centro da cidade, é
um lugar onde todo mundo pode se encontrar. tem esse grande
parque que pode ser usado, muito usado, tem cinemateca, tem
uma história e uma arquitetura que só ali, né? não tem outro
lugar, é um dos museus mais lindos do mundo. precisa recuperar
sua potência original.
para mim essa exposição foi materializar essa ideia, de fazer uma
exposição que possa também dar ao museu a noção de que uma
201
F ERN AN DA G O MES
autonomia de programação não é necessariamente vinculada a
grandes patrocínios. o museu conseguiu 20 mil reais, desses 20
mil reais, que eu saiba, foram gastos até agora 14 mil com tudo, o
folheto, a edição de múltiplo. no último domingo vou distribuir os
múltiplos, se eu conseguir me lembrar, se não, alguém me lembra.
o múltiplo vocês também podem fazer, é só um lápis, aquele lápis
que está lá, pendurado, com duas pontas, é só fazer.
é isso, tem muita coisa para fazer, espero que vocês estejam cheios
de disposição! porque tem muita gente trabalhando, mas acho que
a maioria dos artistas atualmente tem uma sede grande demais de
inserção no mercado. é fundamental dar circulação ao trabalho
e ganhar a vida fazendo aquilo em que se acredita. mas é preciso
ainda muito cuidado e coragem, e uma disposição de amador, amor,
muito amor.
202
C A DER N OS EAV
203
F ERN AN DA G O MES
Nota
Saiba mais
Que difícil este processo de edição! Escrevo muito diferente do que falo, como quase
todo mundo, ou pior. Falo muito, escrevo resumidamente. Jurei que nunca mais faço
isso. Provavelmente vou acabar fazendo. Lendo, tive o prazer de discordar de mim e
mudar. Cortei o que me pareceu inútil ou aborrecido demais. Muitas vezes foi necessário
reescrever para dar mais fluidez, sem trair o tom descomprometido da conversa. Fiz o
melhor que pude, mas fiquei insatisfeita. Espero que pelo menos guarde um pouco da
alegria do encontro.
ART GALLERY OF NEW SOUTH WALES. Material immaterial. Curator: Benjamin
Genocchio. Sydney, 1997. 63 p.
GALERIA LAURA ALVIM. Fernanda Gomes. Curadoria da programação Fernando
Cocchiarale. Rio de Janeiro, 2013.
GALERIA LUISA STRINA. Fernanda Gomes. São Paulo, 1995.
204
LUIZ ERNESTO
Eu queria agradecer o convite para estar aqui hoje neste encontro.
Tenho um envolvimento de anos aqui com a escola, são trinta anos
de Parque Lage, e eu sempre gosto de participar de projetos como
este. Este projeto Fundamentação foi um grande avanço, e eu fico
muito contente de estar aqui hoje.
Eu trouxe algumas imagens que vão mostrar um pouco do que aconteceu durante esses anos todos, terminando com alguns trabalhos
mais recentes que estou expondo1 na Galeria Silvia Cintra, aqui na
Gávea. Queria convidar todos que ainda não foram.
Eu entrei na EAV em 1975, ano da fundação da escola. A EAV
havia acabado de nascer. Temos que lembrar que era uma época
Muito branca, uma nuvem bordada
descansava, 2012
Resina epóxi, fibra de vidro, impressão inkjet.
130 x 130 x 9 cm
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C A DER N OS EAV
LU I Z ERN ES TO
de ditadura. Aqui fora havia um camburão que ficava permanentemente na entrada do Parque, e muitas vezes, ao chegar, você era
revistado. Mão no capô do carro... jogavam sua bolsa no chão...
Então, era uma história muito diferente dessa de hoje. Mas aqui
era ao mesmo tempo um lugar muito rico, porque era uma espécie
de oásis dentro de um ambiente de censura, de ditadura. Era um
lugar efervescente, com muitas opções e eu, então, ficava praticamente o dia inteiro fazendo aulas. Ao mesmo tempo, eu estava
fazendo uma faculdade de engenharia, que foi, na verdade, a minha
formação. Acabei me formando em engenharia. Eu ficava muito
dividido entre estar na faculdade e vir para cá. Minha faculdade
era em Petrópolis. Acabei optando pela arte.
pop, era mais político, mais crítico, não tinha aquele clima irônico,
cínico, do pop americano. Ele dava um curso que se chamava Cotidiano e Expressão. Era um curso em que podia entrar tudo, aulas
teóricas, aulas práticas, leitura de textos, mas era basicamente
despertar nos alunos a atenção para o mundo próximo, do dia a dia,
e fazer disso uma referência para o seu trabalho. Por outro lado, o
Roberto Magalhães era o artista da fantasia, do onírico, do olhar
para o mundo com o filtro da fantasia, do fantástico. Um olhar que
atravessa a dimensão prática e imediata das coisas e vai para uma
dimensão fantástica. São duas posições muito diferentes. Mas
acabei chegando à conclusão de que o meu trabalho, ao longo dos
anos, pendeu às vezes para um lado, às vezes para o outro. E eu só
percebi isto ao fazer o livro.
Junto de minha exposição atual, lancei um livro,2 que mostra meu
percurso nesses anos todos de carreira. Para fazer o livro, revi
imagens de trabalhos que não via há muitos anos, que estavam
guardadas. E, ao selecionar as imagens, eu me dei conta de quanto
dois cursos que eu havia feito no passado, aqui na escola, foram
marcantes para mim e como, na verdade, influenciaram tudo que
fiz até hoje. Um era o curso do Rubens Gerchman, que era o diretor e fundador da escola; o outro, o do Roberto Magalhães. Eram
completamente diferentes: Gerchman tinha um trabalho com
influência pop. O pop no Brasil, que talvez nem se possa chamar de
Sempre tive interesse por objetos, coisas comuns do dia a dia. Eu
fotografava esses objetos; coisas que a gente tem em casa, um copo
comum de vidro, torneiras, cadeiras, coisas simples, banais, que
são tão comuns que, às vezes, se tornam até invisíveis para nós. E
a minha ideia era que, por um modo de fazer o trabalho, poderia
modificar a natureza desse objeto, fazer que essa invisibilidade se
transformasse em opacidade, que a imagem desses objetos pudesse
reaparecer no mundo, não pelo seu caráter utilitário, mas por seu
lado poético, um lado que pudesse indagar por que as coisas são como
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C A DER N OS EAV
LU I Z ERN ES TO
“De certa maneira,
todo trabalho de arte
faz isso. Desconfia
do mundo.”
são. Por que elas não são diferentes? O que eu faço com esse objeto
para ele ser uma outra coisa? Como eu posso mudar essa natureza?
De certa maneira, todo trabalho de arte faz isso. Desconfia do
mundo. Temos uma tendência a naturalizá-lo, achar que as coisas são o que são porque o mundo se desenvolveu assim. Mas nos
esquecemos de que quem está construindo esse mundo somos
nós, quem dá sentido a esse mundo somos nós. E a arte, a filosofia,
a literatura, quer dizer, as formas de expressão, de modo geral, são
lugares onde se desconfia desses valores, desses sentidos. É onde
você tem uma margem de deslocamento. A possibilidade de rearrumar, de criar um certo embaralhamento nessas verdades que
se enraízam de uma forma tão intensa em nossa vida. Eu queria
fazer isto a partir de objetos que fossem familiares. Queria partir
de coisas que fossem muito conhecidas, que todos temos em casa.
Eu não escolhia objetos novos, eles não deveriam ter a impessoalidade de um objeto que se compra em uma loja, novo, perfeito.
Tinham que ser objetos que, de alguma forma, fizessem parte do
dia a dia das pessoas e que isto deixasse neles traços, marcas que os
preenchem de histórias, de memórias. Pode se ter uma relação com
o objeto pelo uso, ou porque está na moda, pela marca... Objetos
podem ser signos de distinção. Mas também temos coisas que nos
foram dadas de presente, que nos lembram de pessoas. Às vezes
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C A DER N OS EAV
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herdamos um objeto, então ele tem um significado na família. Eles
podem nos lembrar de um lugar ou de uma época. Então, existem
outras camadas mais sutis nos objetos, e nessas camadas é que
sempre procurei atuar.
são espaços separados por um vidro. Um lugar que te deixa do lado
de fora. E da mesma forma a pintura, porque se você pinta dessa
maneira, hiperrealista, é como se o objeto pintado tivesse volume,
tivesse uma profundidade. Mas a tela é plana, então você tem uma
situação semelhante à da vitrine, você está do lado de fora. Naquele
momento, eu queria lidar com três coisas: a ambiguidade de uma
imagem que parecesse real, o aquário e a vitrine. E fiz, então, uma
série em que misturava a imagem de sapatos com peixes.
[Mostrando imagens dos trabalhos]
Este é um trabalho de 1982. Um desenho. Eu desenhava muito
nesta época. Não pintava ainda. Fazia também litografia, que é
basicamente desenho. E esse é um trabalho da época em que eu
procurava modificar a forma dos objetos de modo a coincidir com
certas formas de animais e criar uma espécie de hibridização. Eu
queria que isto acontecesse por meio de semelhanças entre as
imagens. Por isso o tratamento hiperrealista. São desenhos a lápis,
a partir de fotografias
Algum tempo depois, comecei a pintar. Achei que podia introduzir a
cor, introduzir a tinta, a tela. E esse foi o primeiro quadro que eu fiz.
Na verdade é uma decorrência do trabalho anterior. Resolvi fazer
uma série que se chamava Aquário, que era baseada em fotos que eu
tirava de vitrines de sapatarias populares, geralmente de Copacabana.
Comecei a perceber algumas aproximações entre vitrines, aquários e
pintura: primeiro, o fato de que tanto um aquário como uma vitrine
Eram trabalhos muito demorados. Eu levava dois, três meses para
terminá-los. Era muito lento. Esta série gerou o meu trabalho da
Geração 80.3 Como vai você, Geração 80? foi uma exposição,4 em
1984, que ocupou a escola toda, e apesar de ser uma mostra que
ficou muito marcada pela pintura, na verdade, o projeto original
era de instalações, de ocupação dos espaços. Construí uma grande
caixa, como se fosse um aquário, e dentro dessa caixa coloquei várias
folhas de plástico transparente, penduradas em paralelo, como se
fosse um varal de roupa, até o fundo dessa caixa. As paredes eram
pintadas de azul, pintei sapatos sobre as folhas de plástico.
Num certo momento, decidi separar esses objetos de sua hibridização com animais. Comecei então a sugerir a semelhança entre
as formas, mas colocando lado a lado dessa vez a forma do animal
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“Então, existem
outras camadas mais
sutis nos objetos,
e nessas camadas
é que sempre
procurei atuar.”
e a do objeto. Aí, surgiu uma exposição,5 que também foi aqui na
escola, chamada Rio Narciso, que teve curadoria do Marcus Lontra
e era uma exposição baseada na cidade do Rio de Janeiro. Os artistas foram convidados a fazer trabalhos que, de alguma maneira, se
relacionassem com a cidade. E aí, como eu fazia essas analogias
de formas, trabalhei com uma imagem bem clichê do Rio: o Pão
de Açúcar. Associei a forma do morro à forma de um gato deitado.
Era um trabalho feito em neon, uma instalação.6
Essas associações começaram a me cansar. Comecei a achar que o
projeto já tinha se esgotado. Então me dei um tempo para começar
a pensar em outras coisas. Passei um período sem expor e retornei
ao desenho, que sempre foi um meio que me ajuda a pensar. Procurei
experimentar uma maneira de fazer bem diferente do realismo dos
desenhos que eu fazia até então. Fui chegando a um tratamento mais
denso, escuro... um tanto expressionista... e iniciei uma série de trabalhos em que meus objetos, absolutamente banais, apareciam com
uma carga dramática. Iniciei, então, uma série de desenhos baseados
na ideia de criar um clima denso a partir de imagens de coisas bobas,
um cachorro-quente,7 uma televisão,8 um pneu,9 um frango assado...10
Aí, novamente, como aconteceu antes, passei do desenho para a
pintura. E comecei então a desenvolver uma série de pinturas, com
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C A DER N OS EAV
LU I Z ERN ES TO
esse clima dos desenhos, usando também objetos banais (como
sacolas de supermercado,11 por exemplo). Alguns desses objetos
foram reaparecendo em outras séries ao longo do tempo. Como as
torneiras.12 Fiz diversos trabalhos com imagens delas.
O tamanho mudava em função do interesse do vendedor, do anunciante, de chamar a atenção para um certo objeto e não mantinha
qualquer relação com a escala real de tamanhos que esses objetos
tinham entre si. Isto é exatamente o que era a pintura medieval, que
não lida com perspectiva. O tamanho dos personagens depende da
importância que eles têm na história. São tamanhos hierárquicos.
Comecei, então, a juntar os meus objetos do cotidiano (muitos eu
pintava a partir das imagens dos encartes) com certas estruturas
da pintura medieval, e nesse processo, além das tintas metálicas,
comecei a colar rendas de crochê do Nordeste sobre as telas, imitando os ornamentos das pinturas religiosas. Usei alguns trabalhos
de Giotto como modelo, substituindo os personagens por objetos.
Para reforçar este clima dramático nas pinturas, que no desenho eu
conseguia trabalhando contrastes intensos, fui pesquisar pintores
que usaram esses contrastes. Caravaggio, por exemplo. E comecei a
me interessar pela representação da luz na história da pintura. Na
Idade Média, ela estava atrelada à aplicação da folha de ouro. O ouro
na pintura mediaval era a luz divina. A iluminação das velas nas
igrejas refletia no dourado dos quadros e criava um clima místico,
religioso. E eu comecei então a usar tintas metálicas.
Durante esse período, coincidentemente, ganhei uma bolsa de
estudos e fui para a Escócia. Então, lá, fui pesquisar in loco algumas
coisas que podia ver em igrejas e castelos medievais e museus.
Nessa época, além das fotos que eu fazia dos objetos, usava também
como referência encartes publicitários de lojas de departamentos,
que vinham dentro de jornais. Comecei a perceber que, às vezes,
em um encarte desses, aparecia, por exemplo, a imagem de um
relógio de pulso enorme e a de uma geladeira ao lado, bem pequena.
Este ursinho,13 por exemplo, é tridimensional, já é um trabalho em
fibra de vidro. Eu esculpi em espuma de poliuretano, revesti com
a fibra e ele está parafusado no chassi.
Mais tarde, realizei alguns trabalhos tridimensionais utilizando a
fibra de vidro. Fiz uma exposição no Paço Imperial que se chamava
Relação platônica.14 Eram cinco grandes torneiras feitas em fibra
de vidro, presas à parede. Embaixo de cada uma, há uma placa de
mármore, sobre a qual imprimi, em serigrafia, uma fotografia de
um balde vazio visto de cima.
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Um outro trabalho, em resina, chama-se Nau frágil:15 uma folha
de plástico transparente, como eu já tinha usado lá na Geração
80, presa em um canto de parede, com esse barquinho flutuando
no meio dela.
Experimentei também outros materiais, como o mármore.
Em uma outra exposição no Paço, apresentei16 uma prateleira
que ficava na parede e essa camisa dobrada que eu esculpi em
mármore.
Na mesma exposição, mostrei uma gavetinha que tinha um envelope também em mármore, com o título de Parla!. 17
Esse18 é outro trabalho da mesma exposição: aviõezinhos, como
aqueles dobrados em papel, também em mármore. Eram cinquenta,
ficavam no chão.
Fiz também alguns desenhos sobre placas finas de fibra de vidro.
Eram translúcidas e eu desenhei objetos que se relacionavam à
água. Depois de desenhá-los, jogava água sobre eles, de modo a
provocar o apagamento de algumas partes. O nome do trabalho
era Desenhos lavados.19
Sutis sensações libertavam momentos
encerrados na memória, 2012
Resina epóxi, fibra de vidro, impressão inkjet.
104 x 180 x 9 cm.
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A partir daí, iniciei o trabalho que venho desenvolvendo e que vai
terminar na exposição que estou realizando. São placas de fibra de
vidro que se assemelham a quadros (ficam na parede), em que eu
insiro fotografias, pintura e texto.
Esses são trabalhos mais recentes. Terminei a série dos tijolos e
comecei a utilizar a imagem de outros objetos. Como comentei
anteriormente, me interessam muito os objetos que não são novos,
mas usados. Objetos que tenham as marcas do tempo, que insinuem
a impermanência das coisas.
O texto foi entrando aos poucos. Inicialmente, uma única palavra,
uma palavra que procurava não ter uma relação direta com a imagem, mas que “abria” o seu sentido.
Esse20 é um trabalho que tem a ver com aquela instalação do Paço,
mas aqui é plano. São fotografias de torneiras inseridas dentro das
camadas de fibra de vidro.
Eram21 bastante transparentes, eu podia controlar nas camadas de
fibra o grau de transparência da placa, então certas placas são mais
transparentes que outras e quando bate a luz tem-se uma ideia de água.
Outra série foi a dos tijolos, nasceu por acaso, quando eu comecei a
fotografar tijolos que estavam empilhados durante uma reforma em
minha casa. O tijolo como imagem tem uma outra lógica, eu posso
fazer com ele o que com o tijolo real eu não poderia fazer, então
comecei a organizá-los como formas, como se fossem abstrações
geométricas. Este é chamado Murmúrio.22
Esses trabalhos atuais são também uma forma de lidar com questões que não pertencem à tradição da pintura. De repensá-las. De
discutir seus limites. Eles se situam em uma categoria indefinida,
entre a pintura, o objeto, a fotografia...
Há algum tempo comecei a introduzir frases também. Ao invés de
usar só uma palavra, surgiram sentenças. Comecei a elaborá-las
de uma forma um tanto poética, e hoje, realmente, fazem parte de
uma etapa bastante trabalhosa.
Na exposição atual, busquei um clima de silêncio, contemplativo,
e resolvi tirar praticamente a cor do trabalho. Guilherme Bueno
escreveu o texto principal do livro e deu o título de Pintura muda.
Achei que cabia muito bem na exposição e tornou-se o título dela.
Aluno: Gostaria de saber o tipo de influência que você tem
na hora de escrever as frases. Como você disse, é uma das
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partes mais difíceis atualmente, então eu gostaria de saber,
mais ou menos, como é esse processo de inspiração, de
escrever e ver se está bom, se não está bom, se você tem
todo um trabalho de mostrar isso para alguém, talvez, ter uma
autoavaliação, como é esse processo?
explicação da imagem, é uma segunda coisa, ela funciona junto.
Então, não há um processo fixo.
É, na verdade, isso acabou sendo uma coisa nova para mim. Tenho
uma compulsão por leitura, sou um leitor viciado, é algo que realmente me dá um prazer muito grande. Sempre ando com um
caderninho, porque às vezes leio uma coisa e encontro uma palavra,
associo a outra e vou anotando. Vou arquivando uns retalhos de
textos. Uma palavra solta... uma expressão... algo que ouvi alguém
falar... Eu não tenho uma influência direta de algum autor específico... A imagem vem em primeiro lugar. Dificilmente faço uma
frase antes de saber qual é a imagem. Escolho o objeto, faço a foto,
trabalho essa imagem no photoshop e envio para o birô imprimir
em um acetato. Aí, com a frase já decidida, vou para o ateliê fazer
a placa de fibra. Às vezes, tenho uma imagem e tenho essas anotações, esses rascunhos, aí, sento na frente do computador e vou
escrevendo, fico lá, às vezes, uma semana ou mais, porque a sentença
tem que ter uma certa contenção, não vai passar de três linhas,
tem que ter um certo ritmo, tem que ter uma certa sonoridade e
uma maneira, também, de falar a coisa. Uma legenda não é uma
É um processo industrial, chama-se laminação. É o mesmo
processo usado na fabricação de barcos, móveis de jardim, carrocerias... Na verdade, a fibra de vidro é uma espécie de palha
de vidro. Tem-se que encharcá-la com resina, trabalha-se por
camadas sobre uma fôrma, e é entre essas camadas que eu aplico
a foto, o texto, a pintura, às vezes pigmentos... Mas é tudo feito
por trás, entendeu? Quer dizer, eu só sei como ficou o trabalho,
de fato, quando ele sai da fôrma.
Aluno: Como é esse processo de fazer essas placas de fibra
de vidro?
Alexandre Dacosta: Eu me lembro na minha adolescência,
não sei se você fez isso, mas eu roubei algumas placas de
trânsito na rua, na minha adolescência, aquela coisa, o máximo
da rebeldia! E me lembro que as placas eram de fibra de vidro,
não eram parafusadas, eram coladas naquele suporte, e, às
vezes, coçava a mão, a fibra tem isso...
É, não só a mão, como várias outras partes do corpo... [Risos]
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Já que você está nesse processo da fibra, você tem
algum produto que passa, realmente coça ou a fibra já
não coça tanto como antigamente? Enfim, uma pergunta
idiota, mas...
A.d.:
Não, tem razão, o material é barra pesada, na verdade! Eu uso
máscara, luva e com o tempo você aprende a manusear. Não é
que não coce, mas tem um jeito. Meio que naturalmente você
vai aprendendo. Uso uma luva de couro, mas, às vezes, tenho que
cortar pedaços da manta de vidro... você corta puxando... mas,
ao mesmo tempo, com a luva você perde o tato, para fazer uma
coisa menor fica difícil e aí eu acabo tirando. A mesma coisa é
a máscara, uma máscara própria para vapores, o próprio pó de
vidro é perigoso... Mas tem uma hora em que você não aguenta o
calor e acaba tirando.
A.d.:
que criar um modo de trabalhar em função do aproveitamento
dele. Em certos momentos ajuda, mas gosto muito dessa solidão
do ateliê, gosto de poder sentar ali, ler, dar um tempo... pensar...
Não é uma fábrica com horário a cumprir. Não precisa estar trabalhando o tempo todo, mas é importante estar ali. Mas, se tiver
um assistente, o ritmo muda. A exposição atual eu fiz inteira
sozinho. Acho que você vai descobrindo um pouco mais sobre o
próprio trabalho à medida que você o faz. Mas a impressão das
fotos é feita em uma gráfica. Por mais que você planeje antes, e
eu tenho que planejar, algumas decisões surgem na hora, você
nunca faz exatamente o que você planeja. E aí surgem coisas na
hora que só você pode resolver.
Aluna: Eu queria entender um pouco mais de onde você
tirou a ideia, na verdade, de onde você veio antes de ser
artista plástico.
Você trabalha com assistente?
Eu já tive assistente, mas tenho um certo problema com isso, eu
não sei se fico atrás dele ou se vou fazer outra coisa... eu começo a
ficar meio nervoso no ateliê, aí não ajuda. Tenho uma maneira de
trabalhar não muito linear... faço uma coisa um pouco, aí depois
faço outra, volto para aquela... se eu tenho um assistente, tenho
[Risos] Antes de ser artista plástico eu não era muita coisa não!
Eu era estudante, como falei, a minha formação universitária foi
em engenharia mecânica. Eu entrei para a faculdade em 1974,
só que passei para uma faculdade em Petrópolis e fui morar lá.
Mas, ao mesmo tempo, por ter saído de casa, tive maior liberdade
de vir, praticamente todos os dias, ao Rio para estudar aqui no
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LU I Z ERN ES TO
Parque Lage. Geralmente as aulas eram à noite na faculdade. Eu
chegava aqui de manhã e no final da tarde eu voltava. Então, eu fiz
essas duas escolas juntas, acabei me formando em engenharia, mas
nunca exerci. Mas, com curso superior, pude ganhar uma bolsa do
Conselho Britânico e fui para a Escócia em 92. Trabalhei em um
estúdio de gravura lá durante quase um ano, em Glasgow.
A.d.: De qualquer maneira, é desde pequeno que você tem
um dom nato de desenho de observação. Eu dei uma olhada
no seu livro, ontem eu levei o livro para a turma, falei de hoje
e dei uma lida, assim, rapidamente, dei uma passada de olho
e vi que tinha uma coisa de você ficar debaixo da mesa do seu
pai desenhando. Seu pai era engenheiro, né?
Meu pai era médico...
Aluno: Mas
você já desenhava ali, desde pequenininho, então?
Desde pequeno. Eu tenho dois irmãos que iam jogar bola, aquela
coisa, e eu ficava ali em um mundo, assim, meio delirante. Eu me
lembro que meu pai tinha uma mesa, grande, onde ele trabalhava.
Ele costumava levar papel ofício para casa e me dava um bolo. Eu
deitava no chão, embaixo da mesa dele e ficava horas desenhando!
Volteando sobre si mesma ora encobria
ora revelava, 2012
Resina epóxi, fibra de vidro, impressão inkjet.
70 x 100 x 5 cm
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Era uma coisa que, realmente, eu adorava fazer, desenhar, desde
pequeno eu fazia isso. Outra coisa que foi também muito marcante
para mim: um apartamento que eu frequentei muito, também
durante a infância, que era o apartamento da minha avó. Era um
apartamento muito grande em Botafogo, com objetos muito antigos
e cheios de histórias. Lá havia um álbum de desenhos, de caricaturas feitas por Araújo Porto-Alegre, que eu herdei. Eram desenhos
neoclássicos, muito bem feitos, muito bonitos, e eu gostava muito
de ver esse álbum. Toda vez que eu ia a esse apartamento, queria ver
o álbum. E havia ainda outra coisa que me surpreendia. Lá, nada
saía do lugar, os objetos, durante cinquenta e tantos anos, estavam
sempre no mesmo lugar, a mesma mesa, a mesma arrumação...
acho que isso teve influência nessa coisa dos objetos, havia uma
sensação de perenidade ...
aqui e tinha uma espécie de curso básico, assim como é o de fundamentação hoje, era um curso com vários professores, eu fiz esse
básico. Fiz muitos cursos: modelo vivo, desenho de observação e,
como contei, os dois cursos mais importantes foram o curso que o
próprio Gerchman dava, que se chamava Cotidiano e Expressão, e
o curso do Roberto Magalhães, que eu levei um tempo para entrar,
porque era um curso muito concorrido, você tinha que se inscrever, fazer uma entrevista, às vezes não tinha vaga. E fiz outros, fiz
gravura, lito, mas os dois cursos realmente mais marcantes para
mim foi esse do Gerchman e o do Roberto.
A.d.:
Você fez aula com quem aqui, você vem em 1975 para cá?
É, entrei em 1975...
A.d.:
Era o Gerchman o diretor?
Era o Gerchman, era o primeiro ano da escola. Eu entrei no final, já
tinha mais ou menos uns meses de funcionamento, mas eu entrei
A.d.:
Lito era quem?
Lito era o Antônio Grosso, que era um grande litógrafo, era um
pesquisador do processo da lito e, na verdade, foi um cara muito
importante para eu começar a dar aula aqui. Uma professora de
lito havia saído e abriu uma vaga... O Grosso me convidou para
substituí-la. Foi aí que eu comecei a dar aula, na litografia.
Você disse que trabalha sempre com série, não é? Mas
você trabalha as séries de uma maneira continuada ou você
trabalha várias séries ao mesmo tempo? Trabalha com duas ou
uma série leva a outra?
Aluno:
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“Quer dizer, mais do
que o objeto em si, me
interessa a imagem
do objeto, porque com
esta imagem posso
mudar o objeto, posso
mudar sua natureza,
aquilo que a imagem
representa...”
Uma série depois da outra. Porque a série, na verdade, não surge
de ideias esporádicas que vão aparecendo, são ideias que nascem
a partir de um processo, o próprio trabalho começa a te mostrar
alguns indícios, possibilidades, você começa a “ler” o próprio
trabalho... Mas há sempre um momento de transição, alguns
trabalhos nem sempre são muito bons... mas eu não trabalho em
séries paralelas.
Na série de Aquários, quanto tempo você levava
para finalizar uma pintura daquelas? E você acha que, se não
tivesse um planejamento, você conseguiria um resultado
interessante, se você saísse um pouco da fotografia e partisse
da memória ou alguma coisa assim?
Aluno:
Olha, eu levava muito tempo, realmente, era um trabalho que levava
às vezes três meses... eram muitas horas de ateliê. Eu tinha que ter
uma disciplina que hoje acho que não teria mais. Mas o que me
interessa realmente é lidar com a imagem. Quer dizer, mais do
que o objeto em si, me interessa a imagem do objeto, porque com
esta imagem posso mudar o objeto, posso mudar sua natureza,
aquilo que a imagem representa... Então, não me interessa muito a
memória pessoal que eu teria dele ou observá-lo diretamente, me
interessa lidar com o objeto depois que ele se torna uma imagem.
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Ricardo B ecker
Como o cachimbo de Magritte... Então, a fotografia sempre foi
importante para mim, é meu ponto de partida.
Você falou da litografia, como foi presente na
sua formação. Como é que você vê esses procedimentos da
gravura, como eles reverberam no seu trabalho hoje?
Tania Queiroz:
Eu acho que esse trabalho, Tania, é um somatório de tudo que eu
fiz. Por exemplo: faço esse trabalho ao contrário, eu faço o trabalho
pelas costas, é tudo invertido, que é exatamente como se trabalha
na gravura. Tenho que fazer marcações na fôrma como registros,
como se faz para colocar o papel na gravura. Tenho que riscar a
fôrma toda para colocar a foto no lugar correto, Está tudo medido.
E isto veio da gravura, da lito. E não deixa de ser um processo de
impressão, é uma impressão inkjet. Então, tem a fibra que eu usava
lá atrás nos objetos, tem a fotografia, que sempre serviu de base
para mim, e esse trabalho invertido que é um processo de gravura.
Notas
1. ERNESTO, Luiz. Pintura muda. Exposição individual realizada na Galeria Silvia
Cintra+Box 4. Rio de Janeiro, de 8 de novembro a 8 de dezembro de 2012.
2. ERNESTO, Luiz. Luiz Ernesto: Antologia 1982-2012. Rio de Janeiro: Réptil Editora,
2012. 160p.
3. ERNESTO, Luiz. Aquário, 1984. Instalação. Pintura sobre plástico transparente e
madeira.
4. Como vai você, Geração 80?. Exposição coletiva que reuniu trabalhos de 123 artistas,
realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, aberta em 14 de
julho de 1984.
5. Rio Narciso. Exposição coletiva realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage,
Rio de Janeiro, 1985.
6. ERNESTO, Luiz. Instalação para a exposição Rio Narciso, 1985. Neon. Dimensões: 200
x 200 cm
7.
ERNESTO, Luiz. Cachorro-quente, 1988. Grafite sobre papel. Dimensões: 70 x 100 cm.
8. ERNESTO, Luiz. TV, 1988. Grafite sobre papel. Dimensões: 72 x 100 cm.
9. ERNESTO, Luiz. Pneu, 1988. Grafite sobre papel. Dimensões: 70 x 100 cm.
10. ERNESTO, Luiz. Frango, 1988. Grafite sobre papel. Dimensões: 70 x 100 cm.
11. ERNESTO, Luiz. Sacolas, 1987. Grafite sobre papel. Dimensões: 160 x 200 cm.
12. ERNESTO, Luiz. Torneira, 1987. Grafite sobre papel. Dimensões: 160 x 200 cm.
13. Ernesto, Luiz. Urso, 1990. Óleo, fibra de vidro e esmalte sobre tela. Dimensões: 80 x 200 cm.
14. Ernesto, Luiz. Relação platônica,1996. Resina de poliéster, fibra de vidro e serigrafia
sobre mármore.
15. ERNESTO, Luiz. Nau frágil, 1997. Instalação. Resina de poliéster e plástico.
Dimensões: 150 x 150 x 200 cm.
16. ERNESTO, Luiz. De circunstância, 1999. Mármore e madeira. 36 x 45 x 23 cm.
17. ERNESTO, Luiz. Parla, 1999. Mármore e madeira. 35 x 25 x 8 cm.
18. ERNESTO, Luiz. Fora de alcance, 1999. 30 “aviõezinhos” de mármore. 12 x 25 x 3 cm
(cada).
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LU I Z ERN ES TO
19. ERNESTO, Luiz. Desenhos lavados, 1999. Grafite sobre fibra de vidro. Série de 12
desenhos. Dimensões: 50 x 70 cm cada.
Saiba mais
20. ERNESTO, Luiz. Ligação, 2012. Resina de poliéster, fibra de vidro e impressão inkjet.
Dimensões: 125 x 200 x 5 cm.
http://www.luizernesto.com.br/
21. ERNESTO, Luiz. Deriva, 2002. Resina de poliéster, fibra de vidro e impressão inkjet.
Dimensões: 150 x 106 x 5 cm.
22. ERNESTO, Luiz. Murmúrio, 2004. Resina de poliéster, fibra de vidro e impressão
inkjet. Dimensões: 150 x 106 x 5 cm.
GALERIA ANNA MARIA NIEMEYER; PAÇO IMPERIAL. Luiz Ernesto. Rio de Janeiro,
1996.
GALERIA PAULO KLABIN. Luiz Ernesto: pinturas – aquários. Rio de Janeiro, 1984.
LUIZ Ernesto: antologia 1982 – 2012. Textos de Agnaldo Farias, Guilherme Bueno, Marcus
de Lontra Costa, Paulo Sergio Duarte. Rio de Janeiro: Réptil, 2012. 453 p.
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ricardo becker
A proposta deste encontro é apresentar algumas imagens de trabalhos representativos da minha atividade como artista e falar
um pouco sobre o percurso da minha trajetória. Quando acabar a
apresentação, considero interessante uma troca de ideias para um
melhor entendimento desses trabalhos.
Em meados dos anos 80, comecei a trabalhar com arte. Minha formação inicialmente foi em Direito, que não tem absolutamente nada a
ver com artes plásticas. Então comecei a fazer alguns cursos no ateliê
da artista Maria Teresa Vieira, que frequentei durante dois, três anos,
e cursos de outros artistas também. Depois, ingressei nos cursos do
MAM, que infelizmente não existem mais. A Escola de Artes Visuais
eu frequentava para conversar, encontrar artistas e amigos.
Projeto Cisco, 2012
Vista da instalação realizada no Cento
Cultural Laura Alvim - Rio de Janeiro
Foto: Wilton Montenegro
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C A DER N OS EAV
Ricardo B ecker
O primeiro curso no MAM foi de desenho, e entrei com um colega
artista plástico, Marcos Chaves. Fizemos uma trajetória, mais ou
menos juntos: ateliê da artista Maria Teresa Vieira, depois o MAM.
Nesse curso específico do MAM, fiquei muito frustrado porque o
professor chegou e falou: “Amigo, você tem que ir para um curso
mais básico, porque você não sabe desenhar nada!” Fiquei abalado e
fui fazer um curso de modelo vivo – a coisa mais careta e arcaica. A
situação era a seguinte: algumas senhoras desenhando uma modelo,
nua, e eu não conseguia desenhar de jeito nenhum! Tentava, rasgava
o papel e via aquelas senhoras desenhando com perfeição; aquele
desenho maravilhoso, falei para mim mesmo: “Poxa cara, eu não sei
desenhar, não vou ser artista, mas eu quero ser artista!” De repente,
o que acontece? Um toque do professor que se tornou um grande
amigo, até hoje – Manoel Fernandes, um ótimo artista que mora
em São Paulo. Ele chega para mim e fala: “Ricardo, o que é isso que
você está fazendo? O que é isso que está aí?” Respondi: “Ah! É um
desenho”, e ele: “Ricardo, é o teu desenho! O teu desenho é assim.
Você não precisa desenhar igual a essas senhoras que estão do seu
lado, e o seu desenho é muito mais interessante do que o delas. Vai
embora, vai para casa trabalhar!”.
mais completa. Ao mesmo tempo, passei a vender meu trabalho
e a frequentar algumas galerias e dessa forma começo a ingressar no mercado de arte. Por acaso, tinha um grupo de amigos e
fomos conhecendo pessoas do meio, colecionadores, críticos de
arte. Uma crítica de arte, muito amiga, Lígia Canongia, na época,
crítica de arte do O Globo, ajudou muito o grupo. Havia crítica de
arte no jornal, o que era muito bom e que hoje em dia não existe,
praticamente. A exposição que ela idealizou – “7 x ar”, no MAM,
deu uma alavancada em nossas carreiras. Éramos sete artistas;
uma exposição de esculturas, cada artista iria apresentar uma
peça. Foi uma exposição bastante interessante, em 1985. Tivemos
a chance de contar com a generosidade dela e de outras pessoas.
Mas também fazíamos muitas ações individuais e conjuntas; não
ficávamos numa atitude de esperar, “Ah, eu quero a galeria tal...”
Nossas ações conjuntas eram importantes; alugávamos uma casa,
convidávamos pessoas do meio de arte, críticos, colecionadores.
Assim, fomos ingressando no mercado, porque queríamos viver
seriamente de arte. Então, fazíamos essas ações, fomos colocando
nosso trabalho na rua.
Acatei; fui para casa e comecei a dar com a cara na parede; pintar,
desenhar, estudar; decidi fazer cursos teóricos para uma formação
E aconteceu, no MAM; todo aberto, todo de vidro. E que durante
muitos anos tinha as janelas tampadas com compensado simulando duas grandes paredes nas laterais do espaço. Conversamos
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C A DER N OS EAV
Ricardo B ecker
com o Carlos Zuñiga, diretor de montagem do museu, e falamos:
“Gostaríamos de tirar todas essas tapadeiras, todos os módulos,
porque a gente quer o museu aberto”. O espaço do museu em que
iríamos expor foi projetado sem paredes; as paredes eram falsas.
Desvelamos o museu; ficou superbacana porque se via a cidade, os
trabalhos conversavam com a cidade. Interação.
vir ao Brasil. Por outro lado, comecei a fazer uma carreira em Portugal; exposições em galerias de Portugal e da Espanha; participei
de feiras. Trabalhei também com publicidade, porque junto com
as artes plásticas sempre mantive uma relação de trabalho com
publicidade. Era diretor de arte; esse trabalho em agência durou
quinze anos. Então, começou a bater a saudade daqui; o país estava
melhorando, também. Quando deixei o Brasil, estava vivendo um
momento difícil, não saí por causa dessa crise; na verdade, viajei
para me casar, porque me apaixonei por uma portuguesa.
Essa exposição no MAM foi determinante; a coisa começou a acontecer, o grupo era bem interessante; todos trabalhando seriamente
com propostas visuais diversas e determinação. Conversávamos
muito; tínhamos um ateliê: eu, Marcos Chaves, Marcus André,
André Costa, e fazíamos uma baderna lá dentro! Era um galpão
imenso na Tijuca; convidávamos artistas de São Paulo; vinha o
Leonilson, fazíamos trabalhos a dez mãos; enfim, era uma curtição!
Essa coisa da união é bem legal; depois, por questões da vida, cada
um seguiu o seu caminho. As artes plásticas têm essa característica; acabam produzindo carreiras solo. Às vezes sinto falta desse
encontro, dessa troca de ideias: “Então, o que você está achando
do trabalho?”. Isso acabou. Mas, no princípio, foi um pouco assim.
Depois fui morar fora do Brasil e quando a gente sai, as pessoas
esquecem um pouco da gente. Passei sete anos em Portugal. Apesar
de ter feito duas ou três exposições aqui, fiquei muito tempo sem
Voltei ao Brasil em 2000, com uma exposição individual agendada
no Paço Imperial – Entre algum lugar nenhum. Uma exposição que
idealizei em Portugal.
Agora, gostaria de falar um pouco do meu trabalho propriamente.
A minha trajetória sempre privilegia o conceito, a ideia, o projeto.
Os projetos não têm uma continuidade formal; a continuidade é
muito mais conceitual. Então, trabalho com várias mídias – escultura, desenho, pintura, instalação – e diversos materiais: alumínio,
madeira, vidro, muito com vidro. E procuro passar para os meus
alunos essa “fórmula” para que não fiquem presos a uma questão.
Percebo que muitos artistas trabalham com apenas um tipo de
material ou mídia ou até mesmo se prendem a um determinado
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tema. Seja lá o que for, essa postura acaba limitando o pensamento,
nesse caso o artista fica meio sem saída; passa a ser artista de uma
obra só e isso acontece muito! Para me proteger dessa situação,
priorizo os projetos porque propõem novos desafios... Nenhum
vai ser igual ao outro.
apenas. Lembro-me quando a instalação ficou pronta; todos exaustos... Fui para casa e no dia seguinte não tinha vernissage, não ia
receber convidados. Fui sozinho para o Centro e ao sair do metrô
fiquei com medo.“Cara, qual vai ser a reação do público?” Não estava
fazendo uma exposição, digamos, num museu ou galeria aonde as
pessoas vão para ver arte. Saio do metrô e vejo aquele “monstro”
na minha frente. “Cara, eu criei isso!” Começo a ver e ouvir o que as
pessoas falam... O trabalho atravessava a praça, fazia uma diagonal,
saía quase na beirinha da calçada do Teatro Municipal e ia até o
bar Amarelinho; tinha uns 50 metros de comprimento e ia fazendo
esse labirinto; não era um labirinto para se perder, era uma alusão.
Foi interessante porque separei a praça, e era necessário dar a
volta para poder ver o trabalho. Pela manhã, fiquei meio frustrado
porque a reação das pessoas era não entrar no labirinto, as pessoas
passavam “batido”. Ouvia alguns comentários: “Ah, isso é coisa do
Lula!”, um negócio meio favelão, o trabalho era meio povera, era
forte pra caramba! Dialogava muito bem com a cidade, conversava
com os prédios; teve um momento em que parecia até que as portas
tinham voado desses prédios. Passei o dia inteiro observando e
enquanto pela manhã as pessoas estavam indo para o trabalho e
ninguém queria perder tempo, depois, à tarde, todo mundo entrava.
À noite, então, as pessoas interagiam com o trabalho e fiquei superfeliz! Em determinado momento encontrei o Paulo Herkenhoff,
O projeto Passeio da sombra vai ao encontro dessa reflexão de propor uma multiplicidade de caminhos, uma pluralidade vertiginosa
dos possíveis, questão tão atual na arte e vida contemporâneas.
O Passeio da sombra, que realizei em 2004, era uma instalação
formada por 500 portas de dimensões variáveis que formavam um
labirinto e tomavam conta da Cinelândia. Esse trabalho foi pontual;
no mundo contemporâneo estamos como em um labirinto. Por que
não criar esse labirinto? Faço, então, uma maquete no meu ateliê,
um trabalho caro e complicado para execução; um amigo vê essa
maquete e fala: “Ricardo, vamos realizar esse trabalho, eu tenho
x de grana para fazer essa peça, topa?” “Claro.” E estava tendo no
Rio um festival de teatro internacional que envolvia arte, com o
tema labirinto, e o Festival permite que o projeto se realize na
Cinelândia. Foi superdesafiador, porque gosto de fazer trabalhos
de grande escala. Foi assim, então, que realizei minha primeira
obra em um espaço urbano. Esse trabalho teve que ser montado de
madrugada; com uma equipe de 20 pessoas, em duas madrugadas
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na época, diretor do Museu Nacional de Belas-Artes e ele falou:
“Becker, eu adoro esse trabalho, todo dia quando acabo de almoçar,
venho aqui e fico apreciando, olhando teu trabalho”. Ocorreu uma
situação de liberdade e interação que foi muito interessante; até
grafitaram algumas portas. Já montei esse trabalho em museu e
foi vandalizado; na rua o pessoal respeitou muito mais. E tinha
pensado: “Vão destruir tudo, vão derrubar”.
iluminação. Enfim, estou à frente do meu trabalho; ele é dirigido
por mim. Essa última exposição, projeto Cisco, era uma exposição
com trabalhos que tinham uma questão de engenharia complicada;
tinham que estar em balanço, ficavam no ar. Essas questões que
surgem no decorrer da execução do projeto têm que ser resolvidas;
então, é o engenheiro, o arquiteto, o marceneiro, que eu não chamo
de marceneiro, mas de “meu mágico”, porque ele é o máximo, que
resolve tudo. Essas parcerias são fundamentais para a execução
correta do trabalho. Em relação às minhas aulas, procuro chamar
a atenção para que os alunos aprendam a defender o seu trabalho,
entendam o que estão fazendo.
Quanto à execução dos trabalhos; gosto de dirigir e coordenar os
projetos do princípio ao fim, desde a concepção da ideia até colocar,
nesse caso, as portas ali na Cinelândia; tudo tem que ser pensado;
os meus trabalhos têm um planejamento, uma arquitetura. É claro
que conto com colaboradores de confiança como o Leandro que
é arquiteto e meu assistente; ele faz toda a parte digital, desenho
técnico, maquete. É preciso existir uma parceria, uma confiança,
mas não abro mão de dirigir o meu trabalho; eu boto a mão nele o
tempo inteiro, gosto muito de ir lá e fazer. Por exemplo, para fazer
uma escultura em alumínio, fui para dentro de uma fábrica em São
Paulo: não entendia nada de alumínio, aprendi como é que se funde
o alumínio, a quantos graus; isso me interessou porque quero estar
o tempo inteiro com a mão ali. Tem artistas que mandam fazer,
mas gosto de estar controlando o trabalho. Controlo inclusive a
montagem, a iluminação; aprendo iluminação e gosto de fazer a
Quanto à questão da montagem de um projeto, seja para uma galeria, museu ou espaço público, penso e planejo o que melhor vai se
adaptar ao espaço. É preciso entrar no espaço físico do local da
exposição para saber o lugar de cada coisa e dessa forma facilitar
o trabalho da equipe. É interessante o trabalho estar todo planejado para evitar erro, porque é sempre com pouco dinheiro que
se trabalha.
Eu queria que você comentasse um pouco sobre
uma das obras; aquela que é uma pedra e uma lupa, e a lupa
transforma a proporção dessa pedra...
Aluno:
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“Quanto à questão da
montagem de um projeto,
seja para uma galeria, museu
ou espaço público, penso e
planejo o que melhor vai se
adaptar ao espaço. É preciso
entrar no espaço físico do
local da exposição para saber
o lugar de cada coisa e dessa
forma facilitar o trabalho
da equipe.”
Esse trabalho, que realizei em 2004, foi o ponto de partida para o
projeto da exposição Belvedere na Galeria Novembro, em 2005, no
Rio de Janeiro. O que é belvedere? Belvedere é um lugar em que se
vê a grande vista, para tal é necessário subir uma montanha e então
vislumbrar a paisagem. A exposição trazia a ideia de paisagem para
dentro da galeria, utilizando a lente e suas implicações conceituais.
Acho que fui bastante feliz no título, considero fundamental pensar
no título; um exercício interessante, porque o título é revelador.
O Belvedere parece perguntar qual seria a função do olhar na arte
contemporânea, a contemplação ainda estaria na linha de frente
desse olhar?
As centenas de lupas presas a correntes metálicas tomaram conta
do espaço da galeria e permitiam uma interação com o público.
Temos que entrar no trabalho, penetrá-lo, esgueirar-nos entre as
lupas. Elas são um emblema de uma visão clara e minuciosa, num
conjunto que se impõe ao detalhe. As lupas, a despeito de seu tamanho e aspecto idêntico, sofreram dois tipos de intervenção; ao lado
das intactas, jateei parte das lentes, tirando-lhes a transparência,
as deixei translúcidas; além dessa situação, produzi outra, na qual
simplesmente vedei de negro as lentes, cegando-as pela opacidade
total. Essas situações remetiam à situação de olhar e ver, de não
ver com clareza e à situação de não ver.
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Ricardo B ecker
Belvedere foi o ponto de partida para o projeto Cisco, um projeto
que trata de outras questões; a questão do vento e suas implicações
conceituais. O título é sugestivo, parece alertar-nos contra algo que
compromete nosso olhar. Ciscos estão à solta e o vento pronto para
levá-los. No projeto Cisco, o desafio era tornar o invisível visível. O
invisível é o ar e o vento; o vento, uma situação tátil, que incomoda.
Os ciscos são uma das poucas situações de “ver” vento – ainda que
de forma incômoda. Visualizar o vento de modo poético foi o maior
desafio que me propus nesse projeto. E o vento é o veículo que
constrói essa exposição através de cinco trabalhos que exploram
diferentes possibilidades de visualização do ar. A exposição se inicia
com um filme que mostra o fluxo do vento sobre a areia da praia. Na
sala principal, um túnel de vento – um penetrável – faz com que o
visitante, ao fazer o percurso do túnel, se defronte com uma ventania produzida por vários ventiladores no seu interior. Na última
sala, duas esculturas, uma com grandes galhos de uma árvore que
caiu na minha casa pela ação do vento e outra, uma pequena árvore
que revela o assédio do vento sobre ela, sua fragilidade ao longo de
uma breve existência. Mas o cisco principal é aquele formado por
hábitos acomodados ao senso comum.
Passeio da sombra, 2004
Vista da instalação realizada na Cinelândia
- Rio de Janeiro
Foto: Luciano Bogado
Por que eu peguei esse projeto? Como se dá o processo de trabalho? O que faz o trabalho acontecer? Tenho o hábito de acumular,
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“O invisível é o ar e o vento;
o vento, uma situação tátil,
que incomoda. Os ciscos são
uma das poucas situações de
“ver” vento – ainda que de
forma incômoda. Visualizar
o vento de modo poético
foi o maior desafio que me
propus nesse projeto.”
guardar muitas coisas, objetos que considero que podem resultar
em uma ideia. Por exemplo, ganhei esse bonsai1 e esqueci na casa
de um amigo em Búzios durante um ano. Quando voltei, lá estava
exatamente onde o havia deixado; em um telhadinho e tinha adquirido a forma que o vento lhe imprimiu. A questão do vento e suas
implicações já estavam na minha cabeça e quando voltei de Búzios
deu um start.
Li uma entrevista do Waltercio Caldas e achei muito interessante
o que ele dizia: na arte não existe o acaso; “Ah, deu certo porque
eu dei essa pincelada”, não! Deu certo porque você foi lá dar a
pincelada!” Então, não existe o acaso. Houve a intenção da pincelada. O artista é consciente do que faz. No caso do projeto Cisco, a
árvore que ganhei provocou um pensamento sobre a situação do
vento e comecei a desenvolver a instalação e a fazer a maquete.
Depois, tive que refletir sobre o fazer, a questão escultórica. Como
construir essa escultura? Simplesmente apresentar a árvore
em cima de um praticável... não seria uma escultura, seria uma
árvore que sofreu a ação do vento com o tempo. Mas quando
entra a questão escultórica da coisa? É quando começo a pensar
em como será o suporte desse trabalho? Quando um objeto deixa
de ser apenas objeto e se torna arte? Decido fixar a árvore em um
tubo de vidro embutido na raiz e que depois é colocado na parede.
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Ricardo B ecker
A árvore ganha outra estatura, porque dá conta de transmitir a
ideia e assim se torna uma escultura. O objeto árvore se transforma em escultura. Se estivesse em cima da mesa, não seria uma
escultura, seria um bonsai, e agora passou a ser escultura. Essa
mudança de condição passa por esse processo de pensamento
que acabei de descrever. O objeto agora transmite um conceito;
é portador de uma ideia. Mas também uma condição para que o
objeto árvore adquira a posição de obra de arte é que o trabalho
seja apresentado e inserido no contexto da arte: museus, galerias,
instituições...
até relacionam porque esse trabalho tem uma questão de ninho,
tem uma coisa de acolhida; é todo de madeira, as pessoas queriam
muito ficar lá dentro. Teve uma situação engraçada, uma menina:
“Você não quer me alugar, para eu dormir aqui, colocar uma rede e
tal...” O trabalho tinha uma coisa de acolher; então, nesse sentido,
considero que pode se pensar no Hélio Oiticica.
Aluno: Na exposição Cisco tem essa instalação que você
acabou de mostrar, que você disse que era um penetrável.
Eu queria saber qual a sua relação com o trabalho de
Hélio Oiticica.
O penetrável que apresentei no projeto Cisco não foi pensado como
um trabalho que se relacionasse diretamente com o Hélio Oiticica.
Pensei o trabalho como um site specific e como um penetrável. O
Hélio criou vários penetráveis; a situação que desenvolvo não é
uma situação de ninho, até chamo de Vento abrigo2. É claro que,
quando se pensa em penetrável, sempre se pensa no Hélio, posso
ter pensado no Hélio Oiticica, mas não diretamente. As pessoas
Eu perguntei mais por causa do uso da palavra,
porque eu também achei que formalmente não tivesse muito
a ver. Mas essa palavra não foi inventada pelo Hélio Oiticica?
Essa qualificação?
Aluno:
Não, acho que não foi inventado por ele. Penetrável é um trabalho no qual o visitante entra e com o qual “interage”. No caso
do projeto Cisco, considero que pode se falar que o trabalho é
muito mais um site specific. Site specific é um trabalho projetado
para determinado local. Então, esse trabalho do túnel atende ao
conceito de site specific porque foi pensado, dimensionado para
aquela sala. O trabalho pode até ser construído em outro local, mas
vai ter outra configuração. Enfim, tudo relacionado ao túnel foi
pensado e planejado; a desproporção em relação à sala, a mudança
da arquitetura do lugar, a condição abrutalhada do trabalho, nada
foi feito por acaso.
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Ricardo B ecker
Sou estudante de arquitetura e agora estou aqui
fazendo curso no Parque Lage. Eu gostaria de saber mais a
respeito de você, artista, na produção de uma peça e do seu
diálogo com o seu parceiro arquiteto, com os engenheiros
e com marceneiro. Como é essa troca? Como isso pode
enriquecer o seu trabalho, não do ponto de vista do projeto
em si, da segurança, de ficar em pé, mas como eles podem
contribuir para que o seu trabalho fique melhor do ponto de
vista do trabalho em si, do impacto dele?
Aluno:
É importante uma situação de parceria; ser aberto para ideias. Na
verdade, essa troca acontece o tempo inteiro. Por exemplo, trabalho com um arquiteto, amigo meu da Alemanha, que é excelente;
em relação ao projeto Cisco, ele falou: “A gente tem que fazer uma
maquete, pela volumetria desse trabalho...” E era um lugar complicado, passava por uma porta de 1,20m, tinha que ter condições
adequadas para o cadeirante, mil e uma normas do museu. Juntos,
discutimos como executar o projeto; isso é uma parceria, ter abertura para negociar e fazer o melhor. Outra situação de parceria; a
ideia do suporte para a árvore foi do Leandro, meu assistente – “porque você não coloca um vidro na árvore?”. Foi uma contribuição
importante. Isso é uma equipe. E a questão da parceria é tão forte
que, quando entramos na exposição do projeto Cisco, a equipe da
casa, o arquiteto, o responsável pelo museu, o iluminador, todos
que participaram estavam lá! No final da montagem, teve até um
momento que falei: “O trabalho é meu! Quem manda nisso sou
eu, vai ser assim, ponto final, e quero ficar com a minha equipe,
tranquilo! Porque parceria não é tão simples; montagem e execução
têm momentos tensos... O arquiteto: “O trabalho não pode tocar o
chão...” Isso, por conta da casa ser tombada. “Tá bom! Mas, como
eu faço?” e todo mundo começou a dar ideias, até que meu marceneiro falou: “Para não tocar no chão tem que ser assim e assim.
Quer que eu faça?” “Quero!” E conseguiu criar essa engenharia...O
trabalho no ar! Parecia que o trabalho ia levantar voo; e você já
sai lá de dentro voando, porque o vento é muito forte... Tudo em
balanço; planejei com o arquiteto que, ao sair do penetrável para
ver o filme, o visitante ainda estivesse recebendo o vento. Depois,
na edição do filme com o cineasta, surge a questão do som; lá estava
o filme maravilhoso, na cor, e o som? Tinha som. “Mas não podia
ter som!” O som é o som do vento! Um som real do vento. Porque
o som gravado do vento é “brrrrrr!”; fake, inclusive. Essa foi outra
sacada conjunta do trabalho em equipe.
Minha pergunta não está relacionada a um trabalho
específico, mas à sua carreira. Você comentou que trabalhou
como publicitário ou ainda trabalha? Não ficou muito claro
Aluno:
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Ricardo B ecker
para mim. Você teve um trabalho extenso nessa carreira? Eu
queria saber como lidar com essas duas carreiras? Uma que
você tem que produzir mais comercialmente, que você está
ali atendendo a um cliente, tem preocupação com prazo,
um salário no final do mês, e uma que também tem as suas
formalidades, mas é mais livre no sentido da criação. Então,
como lidar com isso?
Comecei trabalhando com arte; então, acontece aquela crise dos
anos 80; as galerias começam a falir e pensei: “já estou com vinte e
poucos anos, tenho que trabalhar!” E fui pedir um estágio em uma
agência, a Artplan, uma das grandes agências do Rio, na época.
Pedi um estágio, fui aceito. Depois desse estágio, fui para outra
agência, onde fui contratado já como diretor de arte. Logo depois,
em Portugal, trabalhei com publicidade em mais algumas agências.
Atualmente, não trabalho com publicidade. Realmente, são trabalhos muito diversos tanto em relação ao cliente como em relação à
criação. Como publicitário, tinha liberdade, mas certas limitações
de produção; o interesse da agência é atender os clientes. Como
artista, a liberdade de produção é muito maior, mas a estabilidade
financeira, menor.
Aluno:
E como foi lidar com as duas carreiras em paralelo?
Belvedere, 2005
Vista da instalação realizada na Galeria
Novembro - Rio de janeiro
Foto: Wilton Montenegro
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É muito difícil; primeiro, tem a questão física, de você passar o dia
dentro de uma agência. Passava o dia na Artplan e tinha um ateliê
na Gávea – foi um momento em que produzi muito pouco, porque
chegava exausto ao ateliê, às sete horas da noite, e evidentemente
a produção de arte cai. Tem que ter muita força de vontade, trabalhar final de semana... Quando fui para Portugal, aluguei um ateliê
e fiquei quase um ano sem trabalhar com arte, mas a gente nunca
deixa de ser artista. Pensa em arte 24 horas por dia. Então, em um
dado momento, estava cheio de ideias. E então aconteceram umas
coisas bastante engraçadas; conheci uma galerista, levei o meu
portfólio, e ela achou muito interessante, gostou do meu trabalho;
era uma supergaleria. “Você tem trabalhos aqui?” Ao que respondi:
“Tenho, tenho”. Eu não tinha nenhum trabalho, nada, nada, zero!
Minha casa não tinha nenhum trabalho, tinha uma TV, um rádio
e uma máquina de lavar. “Quero ir ao seu ateliê!” Falei: “Está bem,
vamos lá, sábado”. Pensei: “O que eu vou mostrar?” Saio na rua, vou
a uma papelaria e compro um monte de papel, uns papéis imensos,
de três metros. E criei uma exposição toda em papel. Fiz umas
montagens, uma zarabatana com quatro metros de altura, uma
escultura em papel, e ficou um trabalho bem interessante. Tinha
alguns quadros, porque pinto, também, não com tinta; são uns
trabalhos com talco. Também trabalho com uma situação tridimensional e desenho. E acabei fazendo uma exposição de pintura
nessa galeria, passei a ser artista da galeria; participei de uma feira
em Madri, a Arco. Encontrei vários amigos do Brasil que não via há
anos, “Becker, você tá aqui?” “É, estou em uma galeria de Portugal”.
Você já expôs fora do país e aqui também. Eu gostaria
de saber qual a diferença de expor aqui e expor lá fora.
Aluno:
Fiz exposições fora do Brasil, em Portugal e na Espanha; conheci
artistas, diretores de museu, mas sempre fui um estrangeiro, ninguém me adotou. Nenhum português me fez um convite para uma
coletiva de portugueses. Há, então, esse problema, você é um estrangeiro, por mais anos que você viva fora; você é um brasileiro, seja
pintor, escultor. Apesar de ser superrespeitado, sentia essa situação.
Por exemplo, o Antônio Dias viveu quarenta anos fora do Brasil, mas
continua sendo brasileiro. Às vezes, é mais fácil ser convidado para
uma exposição fora do Brasil do que estar propriamente em outro
país. Com certeza, estamos com muito mais visibilidade hoje do que
há vinte anos e, portanto, somos mais convidados para exposições.
Tanto que 90% dos artistas que têm uma carreira internacional,
como o Cildo Meireles, moram no Brasil, não estão morando em
outros países. Quanto à minha trajetória, prefiro estar aqui, hoje
em dia. A Europa é boa para passear, passei quarenta dias agora,
em Roma, curtindo, tomando vinho e tal.
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Mas em questão de suporte das galerias e do pessoal
envolvido, da montagem?
Aluno:
Tem uma diferença. Se você vai expor em uma galeria lá fora, terá
mais apoio e estrutura, com certeza. Expor em Portugal, um país
pequeno, na Fundação Gulbenkian, por exemplo, o artista pode
contar com uma equipe de dez pessoas, aqui é você e cinco caras
te atrapalhando! “Não chegou o prego, o ventilador...!” Alugo o
ventilador e pago, porque o produtor dormiu, e o ventilador tinha
que estar lá naquele dia. São esses absurdos. Lá fora, não acontece isso, mando uma lista para o museu e quando chegar para
a montagem, com certeza, os ventiladores vão estar, a madeira
também, tudo... Aqui é preciso muito jogo de cintura, que não
deixa de ser um aprendizado. Acho que o europeu tem muitas
facilidades, ele compra pronto! A gente tem que botar a mão na
massa: carregar o quadro, fazer tinta; aprendi a fazer tinta porque
não tinha dinheiro para comprar; tinta importada era muito caro.
O brasileiro não se intimida com as dificuldades e a falta de apoio;
o importante é realizar! E hoje em dia temos a internet, que é uma
ferramenta que facilita o acesso do artista, seja para informações
de arte seja para a compra de materiais. Pessoalmente, gosto de
estar com uma revista de arte na mão, mas esses textos estão na
internet, tudo mais fácil!
Tania Queiroz:
Os próprios museus, os acervos dos museus...
Eu sou superapologista da internet; você vê o acervo do Louvre,
de todos os museus, galerias! Isso é uma facilidade, ferramenta
fantástica! Mas não deixem de ir a museus no Brasil, de visitar
galerias; galerista não morde! Isso é fundamental! E ler muito!
Falo isso porque tinha medo de entrar em galeria, achava os caras
arrogantes. Aquela porta de vidro existe para ser aberta! Lembro-me de que tinha medo de entrar na Galeria Saramenha, na Gávea,
de um grande amigo meu, até hoje, o Victor Arruda. E não é nada
disso; são pessoas superamáveis, são pessoas legais. É que os galeristas e curadores sofrem um constante assédio dos artistas e essa
postura arrogante faz parte do jogo, para que possam se proteger
também. Não levem em consideração e não deixem de frequentar
museus e galerias.
A gente tem Inhotim, agora. Quando a gente
estudava nem se pensava em ter algo como Inhotim, não é?
Tania Queiroz:
Claro que não. Por acaso, ainda não fui, tenho que ir com vocês!
Você tem um caderno, Becker? Onde você anota essas
coisas?
T.q.:
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“E não deixar passar,
não jogar fora
nenhuma coisa que
você viu. Acho que o
artista é um poço de
ficar guardando coisas,
armazenando visões,
ideias.”
Tenho, mas tenho muito papelzinho solto também, que vou juntando aos cadernos.
Ele perguntou sobre o trabalho do espelho, aquele
grande e redondo que estava em um espaço público.
T.q.:
Fui convidado para fazer parte de uma exposição nas ruas de Santa
Teresa sobre a Via-Sacra e o trabalho que escolhi foi a representação
do túmulo de Cristo. Na minha cabeça tinha sempre essa imagem
– uma pedra redonda, a tampa da tumba de Cristo. Então, fiz um
grande espelho de dois metros de diâmetro, que ficava encostado
em um muro virado para o céu. Os trabalhos sob encomenda são
difíceis; também fiz um trabalho sobre Aids; eram os quarentas
anos da doença e foram convidados quarenta artistas de quarenta
anos. Fui buscar em Brancusi, no trabalho O beijo, um clássico da
história da arte, a ideia desse trabalho, por conta da representação
do carinho e solidariedade que O beijo evoca. Considero que fui
muito feliz nessa fotografia. É um trabalho único, não tem a ver
com o que eu faço, mas foi bem legal.
Para finalizar, gostaria de comentar sobre um assunto relacionado
à fotografia que me preocupa bastante: a documentação da obra
de arte. Hoje em dia, com o advento da fotografia digital, ficou
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muito fácil o próprio artista fotografar a sua obra, o que considero
um erro. Sempre tive a iniciativa de convidar um profissional da
fotografia para documentar meu trabalho. É um outro olhar vendo
meu trabalho, que não está viciado com a obra. O risco que pode
ocorrer é que teremos anos de trabalhos mal documentados de
arte, uma geração de obras de arte mal catalogadas.
Notas
1. Árvore cisco, 2012; bastão de vidro e árvore; 30 x 30 cm
2. Vento abrigo, 2012; escultura penetrável; ripas de madeira e ventiladores 10 m
O que você diria para aqueles que buscam uma formação
em arte? O que eles não podem deixar de fazer?
T.q.:
É ter vontade, gostar do que faz. Fui para a arte porque realmente
gosto de fazer isso! Faço com amor, acho que faço bem, gosto de
fazer. E cada hora é um desafio. Acho que é perseverança, é vontade
de ir lá e fazer e assim é possível! Não é impossível ser artista! É
trabalhar, trabalhar e ter boas ideias e levá-las em frente. E não
deixar passar, não jogar fora nenhuma coisa que você viu. Acho
que o artista é um poço de ficar guardando coisas, armazenando
visões, ideias.
Saiba mais
GALERIA GRAÇA FONSECA. Ricardo Becker: “porque eu quero”. Lisboa, 1996.
GALERIA LAURA ALVIM. Ricardo Becker: projeto cisco. Curadoria de Fernando
Cocchiarale. Rio de Janeiro, 2012. 43 p.
LAURA MARSIAJ ARTE CONTEMPORÂNEA. Ricardo Becker: você não está aqui.
Rio de Janeiro, 2001.

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