1 O XANGÔ DE BAKER STREET – TRÂMITES DE - Assis
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1 O XANGÔ DE BAKER STREET – TRÂMITES DE - Assis
X SEL – Seminário de Estudos Literários UNESP – Campus de Assis ISSN: 2179-4871 www.assis.unesp.br/sel [email protected] O XANGÔ DE BAKER STREET – TRÂMITES DE PERSONAGENS E PERSONALIDADES Renato Oliveira Rocha (Graduando – UNESP/Assis) Orientador: Gilberto Figueiredo Martins (Docente – UNESP/Assis) RESUMO: Em seu romance de estreia, Jô Soares critica, de modo sempre bem-humorado, a sociedade imperial brasileira do século XIX, que era um arremedo da França. A obra trata, em síntese, do seguinte: após o roubo de um violino Stradivarius e pela ocasional presença da atriz francesa Sarah Bernhardt no Brasil, é sugerido pela rainha do talento que o imperador dom Pedro II convide “o maior detetive do mundo”, Sherlock Holmes, até então desconhecido pelo monarca, para solucionar o caso. Assim, misturando fatos e personagens de romance policial, Jô ressuscita Sherlock e seu fiel escudeiro, o doutor Watson, e os põe em contato com personalidades da época do império: Chiquinha Gonzaga, Olavo Bilac, entre outros. Holmes, em várias passagens do romance, questiona certos costumes da sociedade brasileira e sua obsessão em ser uma colônia tropical europeizada, questionamento semelhante aos que faziam os viajantes estrangeiros em seus relatos. Se Antônio Cândido cunhou Leonardo Pataca como “o primeiro malandro da Literatura Brasileira”, Jô repaginou o pícaro brasileiro encarnado em Sherlock Holmes, afetado pela malandragem dos trópicos, e o detetive aprendeu que os crimes abaixo do Equador não são tão elementares. Portanto, O Xangô de Baker Street é uma obra que concilia valores do passado e do presente. Nesse sentido, a intertextualidade se dá pelas observações e críticas de Holmes aos costumes, não só em relação ao século XIX, como também à sociedade brasileira do século XXI, que, num processo parodístico, o autor considera como imitadora dos valores das sociedades inglesa e americana. PALAVRAS-CHAVE: Literatura brasileira; Jô Soares; Intertextualidade; Paródia. Indrodução A estreia de Jô Soares na literatura brasileira, com o romance O Xangô de Baker Street (1995), foi marcada pelo sucesso editorial. O livro teve mais de 620 mil exemplares vendidos no Brasil e foi publicado em mais de dez países, entre eles, Alemanha, Canadá, França e Japão. O sucesso pode ser explicado pela fama do autor como ator, apresentador de um talk show e por ele ter escrito uma obra com sua ferramenta principal: o humor. A adaptação para o cinema, em 2001, fez parte da nova fase do cinema nacional e contribuiu com ela. Não pretendo entrar na discussão sobre cultura de massa e cultura popular; a intenção é, por meio da análise 1 intertextual, passar pelos tópicos que fizeram do livro um best-seller, ressaltando que a característica predominante do livro é o humor e que este, por mais que seja censurado, além de ser necessário, nunca sai de moda. O romance policial, gênero parodiado por Jô Soares em OXBS1 surgiu no Brasil em 1920, com a publicação de O Mistério, livro escrito por Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Viriato Corrêa e Medeiros e Albuquerque. Tal novela foi publicada inicialmente em forma de folhetim em um jornal diário e, posteriormente, editada em livro pela Companhia Editora Nacional – sessenta e nove anos depois da criação do gênero por Edgar Allan Poe, com Assassinatos da Rua Morgue. Escrever em parceria é uma prática comum no gênero policial. Jô Soares contou com a ajuda da historiadora Ângela Marques da Costa, da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz e do escritor Rubem Fonseca. Os inimagináveis encontros entre personagens históricos e fictícios em OXBS são possíveis pelo emprego dos procedimentos intertextuais e pelo uso do refinado humor de Jô Soares. Com estes recursos, o autor repagina o romance policial enquanto gênero e seu personagem mais expressivo e emblemático: Sherlock Holmes. Esse vaivém de personalidades ocorre em fins do século XIX, no Brasil imperial, dominado pelos costumes franceses. Neste trabalho, serão analisados os recursos intertextuais no livro de Jô através da paródia e a [des]construção das personagens. Procedimentos intertextuais em OXBS No império tropical, espaço-tempo da narrativa, o roubo de um violino Stradivarius, pertencente à baronesa de Avaré, por quem dom Pedro II tinha grande apreço, e os assassinatos de jovens intrigam a sociedade e o delegado Mello Pimenta. O violino era valioso e inigualável, produzido pelo italiano Antonio Stradivari. O instrumento foi tocado por alguns dos melhores violinistas da História e ouvido por músicos como Bethoven e Paganini e nenhum avanço tecnológico foi capaz de produzir um som tão perfeito. Em conversa com o monarca, a atriz francesa Sarah Bernhardt sugere o convite a Sherlock Holmes, “o maior detetive do mundo”, para solucionar os crimes. Tais encontros entre personagens históricos e fictícios são possíveis pelo uso da ironia e das intertextualidades que fazem Sherlock Holmes, doutor Watson, d. Pedro II, Olavo Bilac, os irmãos Aluisio e Artur 1 Para o presente trabalho, utilizarei a abreviatura OXBS. 2 Azevedo, entre outros, serem “contemporâneos”. É possível fazer um “passeio” pelo Rio de Janeiro da época do império: passar pela Praia dos Cavalos, pela Biblioteca Nacional, pelos bairros do Catete e de Botafogo. Por toda a obra são citados nomes de jornais da época, como O Paiz, O Mequetrefe, e até o Times inglês. Para analisar a intertextualidade através da paródia, é importante considerar a definição para o termo: “designa toda composição literária que imita, cômica ou satiricamente, o tema ou/e a forma de uma obra séria” (MOISÉS, 1988, p. 388). Paródia vem do grego paroidía, que significa canto ao lado de outro. Em OXBS, esse canto ao lado de outro se dá na construção do abrasileirado Sherlock Holmes, da crítica aos costumes e de um romance policial parodiado. Neste caso, a obra séria é a de Arthur Conan Doyle, “pai” do clássico detetive inglês, e Jô Soares encarrega-se da imitação cômica do tema e da forma: o livro é um romance policial, com crimes e a investigação destes e, apesar de a narrativa ser longa, em cada capítulo, utilizandose do humor, Jô prende o leitor à história e aumenta as expectativas sobre o assassino. Os conceitos parodísticos trabalhados por Sant’Anna (1985, p. 27), que permeiam a paródia, a paráfrase, a estilização e seus correlatos opõem paródia e paráfrase. A primeira, “por estar do lado do novo e do diferente, é sempre inauguradora de um novo paradigma”; a segunda, “repousando sobre o idêntico e o semelhante, pouco faz evoluir a linguagem” (p. 27-8). O “caráter contestador” (1985, p.29) do qual fala Sant’Anna é aplicável à análise de OXBS pelo fato de ser um romance histórico-policial; contesta – e desafia – a própria História e o romance policial enquanto gênero. A novidade é fazer o mais frio dos ingleses, Sherlock Holmes, apaixonar-se – o que não ocorre nos romances policiais – e produzir uma nova maneira de ver e pensar o que antes era invariável. O Sherlock Holmes criado por Arthur Conan Doyle, em Um estudo em vermelho (2003, p. 16), era ligado somente aos assuntos de investigação; chamava a atenção por sua capacidade dedutiva, como é possível perceber quando conhece o doutor Watson e o espanto que lhe causa o dom de Sherlock: – Espere um pouco – perguntei repentinamente, parando e voltando-me para Stamford –, como ele soube que eu estive no Afeganistão? Ele sorriu de modo enigmático. – Essa é uma característica de Holmes. Muitas pessoas já quiseram saber como ele descobre as coisas. O Holmes que Jô criou tinha esse mesmo dom, como na passagem em que Watson diz estar com uma sensação de déjà vu ao ler as notícias no jornal. De maneira elementar, o 3 detetive alerta ao doutor que ele estava a ler o Times do dia anterior. Até aí não há paródia alguma, mas sua prepotência o impedia de fazer as deduções de maneira precisa, como quando Sherlock percebe uma mancha amarelada na gola da governanta e deduz que, contrariando a ordens médicas, ela tinha comido ovos às escondidas e deixara cair um pouco de gema na blusa. Ao que a governanta o adverte: – Bem, senhor Holmes, na verdade, isso que o senhor chama de mancha amarela é um broche de ouro, que pertenceu à minha mãe. Mas o engraçado é que realmente comi uma omelete hoje cedo. – É evidente. Minhas deduções estão sempre certas. O seu broche é que está errado. Pode ir. (SOARES, 2006, p. 32). A “Divina” Sarah Bernhardt teve papel fundamental na história quando sugeriu ao imperador dom Pedro II que convidasse Sherlock Holmes, “o maior detetive do mundo”, para solucionar o roubo do violino Stradivarius, que fora dado à Maria Luísa, a baronesa de Avaré, pelo monarca. O imperador afirma desconhecer o detetive inglês, sendo conhecedor apenas do romance policial de Edgar Allan Poe, gênero novo à época: – Não conheço nenhum detetive – respondeu d. Pedro, passando por cima do pequeno equívoco. – Se bem que gosto de ler algumas histórias de mistério. Sei que madame conhece a prosa de Edgar Allan Poe. Poe criou uma personagem fascinante, um detetive chamado Auguste Dupin [...]. (p. 18). Dom Pedro II não conhecia Holmes, mas era conhecedor do personagem Auguste Dupin, detetive da histórias policiais de Poe. Ao ressuscitar o personagem criado e imortalizado por Conan Doyle, Jô faz com que “Holmes, em mais uma de suas ressureições, sai[a] dos livros de Doyle direto para o livro do humorista Jô Soares.” (FERRAZ, 1998, p. 58). Na chegada ao Brasil, Sherlock falava um português correto, de Portugal, o qual aprendera em Macau, na China, com o cientista português Nicolau Travessa. Por causa do sotaque, Holmes passa a ser identificado como Portuga, o que favorece a Jô Soares colocar o detetive em situações típicas das famosas piadas de português, como quando o inglês explica como saber se uma cobra é venenosa ou não, logo após Watson ser picado por uma coral: – [...] apliquei simplesmente o método aprimorado por Travessa [...], quando algum hindu era picado por uma serpente. Esperei o tempo exato que o veneno da coral leva para fazer efeito. Como depois disso Watson continuou vivo, deduzi que a cobra não era venenosa. (p. 257-58). E em outra passagem, num terreiro de candomblé, quando o doutor Watson incorporava a pomba-gira: – O que é isso? – perguntou Holmes mais assustado ainda. [...] 4 – É um exu-fêmea, um demônio com jeito de mulher-dama. Só costuma baixar nas mulheres ou então em... esse moço é adé? – O que é isso? – Efeminado, traduziu, constrangido, Mukumbe. – Não, é inglês. (p. 305). Nesta passagem, o detetive inglês confundiu a palavra efeminado com um adjetivo pátrio qualquer. Aí, o autor emprega um “humor lexical” (POSSENTI, 1998, p. 31), pois o termo utilizado é desconhecido por Holmes. Nas histórias de Conan Doyle, tal equívoco é inimaginável. Isso reafirma, através desta intertextualidade utilizada pelo autor, que não há piadas novas, mas sim novas formas de contá-las. Jô aproveita-se das elementares piadas de português para parodiar a figura de Sherlock Holmes, o que se verá em outras passagens do livro. Em outro momento, o narrador informa que Sherlock trocou a cocaína, que aprendera a usar com Sigmund Freud, de quem era amigo, em Paris, pela cannabis – que teve conhecimento através de sua namorada brasileira, Anna Candelária –, numa alusão aos estudos do austríaco sobre essa substância. Retomando a definição de paródia, em OXBS é possível perceber as diferenças em relação ao texto parodiado (de Doyle), bem como o fato de a imitação ser feita a autores consagrados. O livro não é uma narrativa a partir de experiências, obviamente, mas sim uma narrativa de observação – que compreende a pesquisa histórica feita pelo autor –; nem por isso Jô Soares deixa de produzir um texto autêntico, independente de [não] ter vivido no século XIX, preenchido por comentários sociais. Nizia Villaça observa a pós-modernidade como “visão despolitizada do ‘vale-tudo’ do pastiche, da intertextualidade infinita” (1996, p. 26). Nesse sentido, as obras do período posmoderno2 são caracterizadas pela descanonização, ironia, carnavalização e desconstrução. Tais características se aplicam à obra em estudo. O romance policial e seu representante mais famoso são descanonizados e desconstruídos pela ironia do autor; o humor na contemporaneidade é um fator necessário. Há quem diga não ser possível se fazer literatura após Hiroshima ou Auschwitz, o que é relativo. É possível pensar na guerra do Vietnã ou na invasão do Iraque pelos Estados Unidos da América. A intertextualidade na pós-modernidade é a maneira de “reciclar” tudo o que já foi escrito e seus conceitos. Na definição da autora, o uso do termo posmoderno sem hífen tem por finalidade acentuar o paradoxo contido na terminologia escolhida para denominar inúmeros campos do saber contemporâneo. 2 5 O Rio de Janeiro no tempo de Sherlock Holmes Dois anos antes da abolição da escravatura e três anos antes da proclamação da República, os cafés e as livrarias eram os principais pontos de encontro dos intelectuais e boêmios da cidade do Rio de Janeiro, como Olavo Bilac, o príncipe dos poetas, Chiquinha Gonzaga, maestrina, exímia pianista e compositora, José do Patrocínio, romancista e combativo jornalista, entre outros. Lutavam pela libertação dos escravos e discutiam ideias republicanas. Foi nesse ambiente que Jô inseriu os personagens históricos citados acima em contato com os até então personagens de romance policial, Sherlock Holmes e Watson. Ao permitir que figuras históricas apareçam em diversos episódios do livro, o autor dá à ficção a seriedade que o discurso histórico exige e também confere à obra um caráter verossímil, fazendo com que o leitor tenha uma sensação de verdade. Uma personalidade que merece destaque é o imperador dom Pedro II. Sétimo filho de Pedro I, Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga3 foi reconhecido pelo Senado, em 2 de agosto de 1826, meses após seu nascimento, em dezembro de 1825, como herdeiro presuntivo da Coroa. De cultura tão extensa quanto seu nome de batismo, o imperador participava da arguição de teses na Academia de Medicina e na Escola Politécnica. Considerado o mais ilustrado dos monarcas de seu tempo, impôs-se pelas virtudes intelectuais, surpreendendo notáveis interlocutores, como o filósofo alemão Nietzsche. Partidário de experiências e novidades, tornouse popular nos Estados Unidos, quando visitou a exposição da Filadélfia (1876) e soube entender o alcance do telefone, na época uma invenção recente e representada de maneira rudimentar. Sobre essa vocação caricata do imperador, Jô assim descreve o contato entre ele e Alexander Graham Bell, em que Sherlock Holmes, amigo do cientista, explica ao doutor Watson o encontro: – [...] foi dom Pedro o primeiro a utilizar o telefone publicamente, na Exposição Centenária da Filadélfia. Bell contou-me o caso às gargalhadas. Sem querer, pregou-lhe uma peça. Sabe qual foi a primeira frase que fez o monarca pronunciar quando experimentou o aparelho? [...] – “To be or not to be, that is the question”... e então, o imperador acrescentou, surpreso: “Céus, isto fala!” – completou o detetive, rindo do episódio [...]. (p. 34). 3 Dicionário do Brasil imperial (1822-1899). p. 198. 6 Charles Darwin, reconhecendo-lhe os méritos, chegou a dizer: “O imperador fez tanto pela ciência que todo sábio lhe deve o maior respeito”. No Brasil, porém, o interesse do monarca por assuntos científicos seria alvo frequente de gozações (fig.1), servindo até de tema para sociedades carnavalescas. Pedro II escreveu em seu diário: “Nasci para consagrar-me às letras e às ciências, e, tendo de ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou de ministro à de imperador” (MAURO, 1991, p. 184). Percebe-se que Jô Soares construiu um dom Pedro II tão caricato quanto era no século XIX. Fig. 1: Charge com rosto de Dom Pedro II na face da Esfinge publicada em 1871 pela Revista Ilustrada. Outro traço marcante da paródia no livro diz respeito aos personagens clássicos de um romance policial: o detetive e o criminoso/assassino. Ao final dessas histórias, o investigador descobre quem é o criminoso e este é punido. Em OXBS, o assassino, Miguel Solera de Lara, o primeiro serial killer da história, fica impune e embarca no mesmo navio para Londres em que Sherlock Holmes e o doutor Watson voltam para casa, sem ser descoberto. Para compreender o motivo pelo qual o detetive inglês não solucionou o caso, permitindo que Miguel, o dono da livraria O Recanto de Afrodite, saísse impune, é preciso atentar para o intertexto com relação a esse episódio. É importante entender que o insucesso de Holmes se deve ao fato de que o assassino, Miguel Solera de Lara, que viria a ser o primeiro serial killer da História, seria conhecido como Jack, o Estripador, assassino de Londres que fez várias vítimas, todas elas prostitutas, e não foi descoberto até hoje, apesar das pistas que ele 7 mesmo deixava sobre si. Tudo isso é possível pela mistura entre História e ficção e pelo acréscimo do humor e da paródia. Sobre o estripador, o que se sabe é que ele cometeu seus crimes entre 31 de agosto e 9 de novembro de 1888 no bairro de Whitechapel, no East End londrino. Possivelmente conhecia anatomia, pois seccionava a região do ventre de suas vítimas e degolava-as com precisão. Jack zombava da polícia e remetia pelo correio pedaços das vítimas à Scotland Yard, assim como fazia o livreiro Miguel, ao mandar bilhetes à polícia, dando pistas sobre si. Historicamente, a polícia inglesa fez o que pode, mas foi desmoralizada. O inspetor Charles Warren, que comandava as investigações, demitiu-se depois de dar sua última ordem: fotografar os olhos de uma das prostitutas, pois acreditava-se que uma pessoa guardava na retina a última imagem vista antes de morrer. Existem várias versões sobre quem foi realmente o estripador; a mais provável é a de que ele era médico, quando uma traição da esposa abalou-lhe a carreira e a vida. Sabendo que ela acabara por se entregar à vida fácil, pôs-se a vagar, anônimo, pela cidade, durante a noite, assassinando as prostitutas que encontrava pelas ruas desertas para vingar-se em todas elas pelo crime da esposa. No início da história, somos apresentados ao perfil do livreiro, quando o autor diz que “Miguel sonhava em ir morar em Londres. Abrir, talvez, uma pequena livraria no East End” (p. 77). A escolha do nome do assassino foi proposital: Miguel Solera de Lara, o dono da livraria O Recanto de Afrodite (grifo meu). As três primeiras cordas do violino, Mi, Sol, La e Ré compõem as iniciais do nome do assassino e a última, o primeiro nome de sua livraria. Afrodite, “venerada pelas putas e protetora de todas as rameiras” (p. 341) – explica a obsessão do assassino pelas prostitutas. Por último, as orelhas: orelhas de livro, de livreiro. O assassinato de sua última vítima, a baronesa de Avaré, dona do Stradivarius, é emblemático. Jô constrói o capítulo em tom apocalíptico e começa descrevendo Miguel como um dos sete anjos que guardam as sete taças do Apocalipse e que iria abater a Grande Prostituta, a baronesa. Quando o delegado Pimenta e o detetive Sherlock chegaram ao local do crime, encontraram Maria Luísa com a palavra MISTÉRIO escrita na fronte, numa referência ao Apocalipse de São João4, em que é descrita a Grande Prostituta com o nome mistério na testa. 4 Apocalipse, cap. 17, v. 5. 8 Ao final, Miguel tem a audácia de arrombar os aposentos do detetive e deixar sobre sua cama o Stradivarius sem as cordas e, preso a ele, apenas um bilhete com a apalavra goodbye. Conhecendo a história de Jack, o Estripador, é possível compreender por que Holmes não desvendou o caso: Miguel era Jack e teria cometido seus primeiros crimes no Brasil, em 1886, dando continuidade a eles em Londres, no ano de 1888. As vozes do narrador Durante a história, Jô Soares utiliza a voz de seus personagens para “falar”. É o que ocorre quando o detetive adquire um costume genuinamente brasileiro: chegar atrasado aos encontros. Encantado com o Brasil, Holmes assim se pronuncia sobre a terra nova: – [...]. Estou encantado com os costumes da terra. [...] Sinto-me à vontade, como se estivesse em casa. Há algo, todavia, que não entendo [...]. – Os trajes. Não compreendo por que os homens todos se vestem de preto, à europeia, num país tropical. (p.174-75). A fala do detetive lembra os relatos de viajantes europeus que se surpreendiam com as vestimentas europeias dos brasileiros. O inglês, não compreendendo os trajes, pede ao alfaiate Salomão Calif algo mais apropriado ao calor dos trópicos – quatro ternos de linho branco, o que era coisa de zé-povinho para a época. Apesar disso, Sherlock Holmes diz que vai inaugurar a moda, numa alusão ao típico malandro carioca. Esse questionamento é semelhante aos que se faziam os europeus no Brasil. Diz Mauro: “no Brasil, todos se vestem de negro, não só para sair à noite, mas também no meio do dia, quando o sol cai a pino sobre as cabeças” (apud BIARD, 1991, p. 41). Em outra passagem, Jô utiliza os personagens Olavo Bilac e o delegado Mello Pimenta para falar da censura na ditadura militar, considerando que OXBS foi escrito em 1995, pouco tempo após o fim dos anos de chumbo. Na história, Bilac era procurado por Pimenta, porque o poeta escrevia contra a monarquia. Quando o delegado chegou ao bar em que Olavo Bilac estava, este tentou se esconder rapidamente, o que coloca o poeta no lugar dos artistas que enfrentavam o regime. No que Mello Pimenta lhe disse: – Calma, senhor Bilac. Não há nada contra si. Tudo exagero dos jornais. Afinal, se os nossos jovens não pudessem mais escrever manifestos, o que seria do Brasil? [...]. (p. 89, grifo meu). Ao trazer Sherlock Holmes ao Brasil do século XIX, Jô Soares traz à tona o espírito nacional. Num país em que o povo se voltava para a Europa, o detetive inglês encarnou o 9 instinto de nacionalidade ao falar o português em vez da língua francesa e vestir-se com roupas apropriadas ao calor tropical, e não com as roupas pretas e pesadas, características do frio europeu. Holmes também toma a caipirinha e dispensa o champanhe francês. Além de representar a brasilidade, o inglês é atrapalhado e chega atrasado aos encontros, o que caracteriza um malandro. O personagem nacionalista de Lima Barreto de Triste fim de Policarpo Quaresma, o major Policarpo Quaresma, por estudar o tupi-guarani e se expressar nessa língua, recebeu o apelido de Ubirajara; a Sherlock Holmes coube a alcunha de Xangô, seu orixá protetor, revelado a ele no terreiro de candomblé Concluindo, pode-se dizer que OXBS marca a passagem do humorista a escritorhumorista e que, assim como na citação de Wittgenstein utilizada pelo próprio Jô Soares no início do livro, “humor não é um estado de espírito, mas uma visão de mundo”. Também a análise de Affonso Romano de Sant’Anna para a paráfrase deve ser levada em conta. O autor utiliza o conceito psicanalítico chamado estado do espelho, no qual analisa a relação da criança com o espelho, a projeção de sua imagem e a dificuldade em reconhecê-la. Para o autor, a paródia não seria um espelho, mas um espelho invertido (1985, p. 32), uma lente que “enxerga os detalhes de tal modo que pode converter uma parte do elemento focado num elemento dominante, invertendo, portanto, a parte pelo todo, como se faz na charge e na caricatura” (Idem, Ibidem). Sendo a paródia um texto autônomo – e rebelde –, acredito que a herança que Arthur Conan Doyle deixou foi aproveitada de outra maneira por Jô, dando uma continuidade à saga de Sherlock Holmes que seu “pai” inglês nunca imaginou. Referências bibliográficas BÍBLIA SAGRADA: Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição revista e corrigida. Campinas: Os Gideões Internacionais, 1999. DOYLE, Arthur Conan. Um estudo em vermelho. Tradução de Antonio Carlos Vilela. São Paulo: Melhoramentos, 2003. FERRAZ, Salma. O jeitinho brasileiro de Sherlock Holmes: O Xangô de Baker Street de Jô Soares. Blumenau: Editora da FURB, 1998. JACK, o Estripador, matava somente prostitutas. Super Interessante on line. Jan. 1997. Disponível em: <http://super.abril.com.br/superarquivo/1997/conteudo_115800.shtml>. Acesso em: 21 out. 2010. 10 MAURO, Frédéric. O Brasil no tempo de dom Pedro II: 1831-1899. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras: Círculo do Livro, 1991. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 5 ed., 1988. O ENCANTO dos violinos Stradivarius – Jornal da Globo. You Tube. 29 out. 2007. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=JyDjC3M18oQ>. Acesso em: 24 out. 2010. POSSENTI, Sírio. Os humores da língua: análises lingüísticas de piadas. Campinas: Mercado de Letras, 1998. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & cia.. São Paulo: Ática, 1985. SOARES, Jô. O Xangô de Baker Street. São Paulo: Companhia das Letras 37ª reimpressão, 2006. VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil imperial (1822-1899). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. VILLAÇA, Nizia. Paradoxos do pós-moderno: sujeito & ficção. 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