1 O XANGÔ DE BAKER STREET – TRÂMITES DE - Assis

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1 O XANGÔ DE BAKER STREET – TRÂMITES DE - Assis
X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
[email protected]
O XANGÔ DE BAKER STREET – TRÂMITES DE PERSONAGENS E
PERSONALIDADES
Renato Oliveira Rocha (Graduando – UNESP/Assis)
Orientador: Gilberto Figueiredo Martins (Docente – UNESP/Assis)
RESUMO: Em seu romance de estreia, Jô Soares critica, de modo sempre bem-humorado, a sociedade
imperial brasileira do século XIX, que era um arremedo da França. A obra trata, em síntese, do seguinte:
após o roubo de um violino Stradivarius e pela ocasional presença da atriz francesa Sarah Bernhardt no
Brasil, é sugerido pela rainha do talento que o imperador dom Pedro II convide “o maior detetive do
mundo”, Sherlock Holmes, até então desconhecido pelo monarca, para solucionar o caso. Assim,
misturando fatos e personagens de romance policial, Jô ressuscita Sherlock e seu fiel escudeiro, o doutor
Watson, e os põe em contato com personalidades da época do império: Chiquinha Gonzaga, Olavo Bilac,
entre outros. Holmes, em várias passagens do romance, questiona certos costumes da sociedade
brasileira e sua obsessão em ser uma colônia tropical europeizada, questionamento semelhante aos que
faziam os viajantes estrangeiros em seus relatos. Se Antônio Cândido cunhou Leonardo Pataca como “o
primeiro malandro da Literatura Brasileira”, Jô repaginou o pícaro brasileiro encarnado em Sherlock
Holmes, afetado pela malandragem dos trópicos, e o detetive aprendeu que os crimes abaixo do Equador
não são tão elementares. Portanto, O Xangô de Baker Street é uma obra que concilia valores do passado
e do presente. Nesse sentido, a intertextualidade se dá pelas observações e críticas de Holmes aos
costumes, não só em relação ao século XIX, como também à sociedade brasileira do século XXI, que,
num processo parodístico, o autor considera como imitadora dos valores das sociedades inglesa e
americana.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura brasileira; Jô Soares; Intertextualidade; Paródia.
Indrodução
A estreia de Jô Soares na literatura brasileira, com o romance O Xangô de Baker Street
(1995), foi marcada pelo sucesso editorial. O livro teve mais de 620 mil exemplares vendidos no
Brasil e foi publicado em mais de dez países, entre eles, Alemanha, Canadá, França e Japão. O
sucesso pode ser explicado pela fama do autor como ator, apresentador de um talk show e por
ele ter escrito uma obra com sua ferramenta principal: o humor. A adaptação para o cinema, em
2001, fez parte da nova fase do cinema nacional e contribuiu com ela. Não pretendo entrar na
discussão sobre cultura de massa e cultura popular; a intenção é, por meio da análise
1
intertextual, passar pelos tópicos que fizeram do livro um best-seller, ressaltando que a
característica predominante do livro é o humor e que este, por mais que seja censurado, além de
ser necessário, nunca sai de moda.
O romance policial, gênero parodiado por Jô Soares em OXBS1 surgiu no Brasil em
1920, com a publicação de O Mistério, livro escrito por Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Viriato
Corrêa e Medeiros e Albuquerque. Tal novela foi publicada inicialmente em forma de folhetim em
um jornal diário e, posteriormente, editada em livro pela Companhia Editora Nacional – sessenta
e nove anos depois da criação do gênero por Edgar Allan Poe, com Assassinatos da Rua
Morgue. Escrever em parceria é uma prática comum no gênero policial. Jô Soares contou com a
ajuda da historiadora Ângela Marques da Costa, da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz e do
escritor Rubem Fonseca.
Os inimagináveis encontros entre personagens históricos e fictícios em OXBS são
possíveis pelo emprego dos procedimentos intertextuais e pelo uso do refinado humor de Jô
Soares. Com estes recursos, o autor repagina o romance policial enquanto gênero e seu
personagem mais expressivo e emblemático: Sherlock Holmes. Esse vaivém de personalidades
ocorre em fins do século XIX, no Brasil imperial, dominado pelos costumes franceses. Neste
trabalho, serão analisados os recursos intertextuais no livro de Jô através da paródia e a
[des]construção das personagens.
Procedimentos intertextuais em OXBS
No império tropical, espaço-tempo da narrativa, o roubo de um violino Stradivarius,
pertencente à baronesa de Avaré, por quem dom Pedro II tinha grande apreço, e os
assassinatos de jovens intrigam a sociedade e o delegado Mello Pimenta. O violino era valioso e
inigualável, produzido pelo italiano Antonio Stradivari. O instrumento foi tocado por alguns dos
melhores violinistas da História e ouvido por músicos como Bethoven e Paganini e nenhum
avanço tecnológico foi capaz de produzir um som tão perfeito.
Em conversa com o monarca, a atriz francesa Sarah Bernhardt sugere o convite a
Sherlock Holmes, “o maior detetive do mundo”, para solucionar os crimes. Tais encontros entre
personagens históricos e fictícios são possíveis pelo uso da ironia e das intertextualidades que
fazem Sherlock Holmes, doutor Watson, d. Pedro II, Olavo Bilac, os irmãos Aluisio e Artur
1
Para o presente trabalho, utilizarei a abreviatura OXBS.
2
Azevedo, entre outros, serem “contemporâneos”. É possível fazer um “passeio” pelo Rio de
Janeiro da época do império: passar pela Praia dos Cavalos, pela Biblioteca Nacional, pelos
bairros do Catete e de Botafogo. Por toda a obra são citados nomes de jornais da época, como
O Paiz, O Mequetrefe, e até o Times inglês.
Para analisar a intertextualidade através da paródia, é importante considerar a
definição para o termo: “designa toda composição literária que imita, cômica ou satiricamente, o
tema ou/e a forma de uma obra séria” (MOISÉS, 1988, p. 388). Paródia vem do grego paroidía,
que significa canto ao lado de outro. Em OXBS, esse canto ao lado de outro se dá na construção
do abrasileirado Sherlock Holmes, da crítica aos costumes e de um romance policial parodiado.
Neste caso, a obra séria é a de Arthur Conan Doyle, “pai” do clássico detetive inglês, e Jô
Soares encarrega-se da imitação cômica do tema e da forma: o livro é um romance policial, com
crimes e a investigação destes e, apesar de a narrativa ser longa, em cada capítulo, utilizandose do humor, Jô prende o leitor à história e aumenta as expectativas sobre o assassino.
Os conceitos parodísticos trabalhados por Sant’Anna (1985, p. 27), que permeiam a
paródia, a paráfrase, a estilização e seus correlatos opõem paródia e paráfrase. A primeira, “por
estar do lado do novo e do diferente, é sempre inauguradora de um novo paradigma”; a
segunda, “repousando sobre o idêntico e o semelhante, pouco faz evoluir a linguagem” (p. 27-8).
O “caráter contestador” (1985, p.29) do qual fala Sant’Anna é aplicável à análise de OXBS pelo
fato de ser um romance histórico-policial; contesta – e desafia – a própria História e o romance
policial enquanto gênero. A novidade é fazer o mais frio dos ingleses, Sherlock Holmes,
apaixonar-se – o que não ocorre nos romances policiais – e produzir uma nova maneira de ver e
pensar o que antes era invariável.
O Sherlock Holmes criado por Arthur Conan Doyle, em Um estudo em vermelho (2003,
p. 16), era ligado somente aos assuntos de investigação; chamava a atenção por sua
capacidade dedutiva, como é possível perceber quando conhece o doutor Watson e o espanto
que lhe causa o dom de Sherlock:
– Espere um pouco – perguntei repentinamente, parando e voltando-me para Stamford –,
como ele soube que eu estive no Afeganistão?
Ele sorriu de modo enigmático.
– Essa é uma característica de Holmes. Muitas pessoas já quiseram saber como ele
descobre as coisas.
O Holmes que Jô criou tinha esse mesmo dom, como na passagem em que Watson
diz estar com uma sensação de déjà vu ao ler as notícias no jornal. De maneira elementar, o
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detetive alerta ao doutor que ele estava a ler o Times do dia anterior. Até aí não há paródia
alguma, mas sua prepotência o impedia de fazer as deduções de maneira precisa, como quando
Sherlock percebe uma mancha amarelada na gola da governanta e deduz que, contrariando a
ordens médicas, ela tinha comido ovos às escondidas e deixara cair um pouco de gema na
blusa. Ao que a governanta o adverte:
– Bem, senhor Holmes, na verdade, isso que o senhor chama de mancha amarela é um
broche de ouro, que pertenceu à minha mãe. Mas o engraçado é que realmente comi uma
omelete hoje cedo.
– É evidente. Minhas deduções estão sempre certas. O seu broche é que está errado.
Pode ir. (SOARES, 2006, p. 32).
A “Divina” Sarah Bernhardt teve papel fundamental na história quando sugeriu ao
imperador dom Pedro II que convidasse Sherlock Holmes, “o maior detetive do mundo”, para
solucionar o roubo do violino Stradivarius, que fora dado à Maria Luísa, a baronesa de Avaré,
pelo monarca. O imperador afirma desconhecer o detetive inglês, sendo conhecedor apenas do
romance policial de Edgar Allan Poe, gênero novo à época:
– Não conheço nenhum detetive – respondeu d. Pedro, passando por cima do pequeno
equívoco. – Se bem que gosto de ler algumas histórias de mistério. Sei que madame
conhece a prosa de Edgar Allan Poe. Poe criou uma personagem fascinante, um detetive
chamado Auguste Dupin [...]. (p. 18).
Dom Pedro II não conhecia Holmes, mas era conhecedor do personagem Auguste
Dupin, detetive da histórias policiais de Poe. Ao ressuscitar o personagem criado e imortalizado
por Conan Doyle, Jô faz com que “Holmes, em mais uma de suas ressureições, sai[a] dos livros
de Doyle direto para o livro do humorista Jô Soares.” (FERRAZ, 1998, p. 58). Na chegada ao
Brasil, Sherlock falava um português correto, de Portugal, o qual aprendera em Macau, na
China, com o cientista português Nicolau Travessa. Por causa do sotaque, Holmes passa a ser
identificado como Portuga, o que favorece a Jô Soares colocar o detetive em situações típicas
das famosas piadas de português, como quando o inglês explica como saber se uma cobra é
venenosa ou não, logo após Watson ser picado por uma coral:
– [...] apliquei simplesmente o método aprimorado por Travessa [...], quando algum hindu
era picado por uma serpente. Esperei o tempo exato que o veneno da coral leva para fazer
efeito. Como depois disso Watson continuou vivo, deduzi que a cobra não era venenosa.
(p. 257-58).
E em outra passagem, num terreiro de candomblé, quando o doutor Watson incorporava a
pomba-gira:
– O que é isso? – perguntou Holmes mais assustado ainda.
[...]
4
– É um exu-fêmea, um demônio com jeito de mulher-dama. Só costuma baixar nas
mulheres ou então em... esse moço é adé?
– O que é isso?
– Efeminado, traduziu, constrangido, Mukumbe.
– Não, é inglês. (p. 305).
Nesta passagem, o detetive inglês confundiu a palavra efeminado com um adjetivo
pátrio qualquer. Aí, o autor emprega um “humor lexical” (POSSENTI, 1998, p. 31), pois o termo
utilizado é desconhecido por Holmes. Nas histórias de Conan Doyle, tal equívoco é inimaginável.
Isso reafirma, através desta intertextualidade utilizada pelo autor, que não há piadas novas, mas
sim novas formas de contá-las. Jô aproveita-se das elementares piadas de português para
parodiar a figura de Sherlock Holmes, o que se verá em outras passagens do livro. Em outro
momento, o narrador informa que Sherlock trocou a cocaína, que aprendera a usar com
Sigmund Freud, de quem era amigo, em Paris, pela cannabis – que teve conhecimento através
de sua namorada brasileira, Anna Candelária –, numa alusão aos estudos do austríaco sobre
essa substância.
Retomando a definição de paródia, em OXBS é possível perceber as diferenças em
relação ao texto parodiado (de Doyle), bem como o fato de a imitação ser feita a autores
consagrados. O livro não é uma narrativa a partir de experiências, obviamente, mas sim uma
narrativa de observação – que compreende a pesquisa histórica feita pelo autor –; nem por isso
Jô Soares deixa de produzir um texto autêntico, independente de [não] ter vivido no século XIX,
preenchido por comentários sociais.
Nizia Villaça observa a pós-modernidade como “visão despolitizada do ‘vale-tudo’ do
pastiche, da intertextualidade infinita” (1996, p. 26). Nesse sentido, as obras do período
posmoderno2 são caracterizadas pela descanonização, ironia, carnavalização e desconstrução.
Tais características se aplicam à obra em estudo. O romance policial e seu representante mais
famoso são descanonizados e desconstruídos pela ironia do autor; o humor na
contemporaneidade é um fator necessário.
Há quem diga não ser possível se fazer literatura após Hiroshima ou Auschwitz, o que
é relativo. É possível pensar na guerra do Vietnã ou na invasão do Iraque pelos Estados Unidos
da América. A intertextualidade na pós-modernidade é a maneira de “reciclar” tudo o que já foi
escrito e seus conceitos.
Na definição da autora, o uso do termo posmoderno sem hífen tem por finalidade acentuar o paradoxo contido na
terminologia escolhida para denominar inúmeros campos do saber contemporâneo.
2
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O Rio de Janeiro no tempo de Sherlock Holmes
Dois anos antes da abolição da escravatura e três anos antes da proclamação da
República, os cafés e as livrarias eram os principais pontos de encontro dos intelectuais e
boêmios da cidade do Rio de Janeiro, como Olavo Bilac, o príncipe dos poetas, Chiquinha
Gonzaga, maestrina, exímia pianista e compositora, José do Patrocínio, romancista e combativo
jornalista, entre outros. Lutavam pela libertação dos escravos e discutiam ideias republicanas.
Foi nesse ambiente que Jô inseriu os personagens históricos citados acima em contato com os
até então personagens de romance policial, Sherlock Holmes e Watson. Ao permitir que figuras
históricas apareçam em diversos episódios do livro, o autor dá à ficção a seriedade que o
discurso histórico exige e também confere à obra um caráter verossímil, fazendo com que o leitor
tenha uma sensação de verdade.
Uma personalidade que merece destaque é o imperador dom Pedro II. Sétimo filho de
Pedro I, Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula
Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga3 foi reconhecido pelo Senado, em 2 de agosto de
1826, meses após seu nascimento, em dezembro de 1825, como herdeiro presuntivo da Coroa.
De cultura tão extensa quanto seu nome de batismo, o imperador participava da arguição de
teses na Academia de Medicina e na Escola Politécnica. Considerado o mais ilustrado dos
monarcas de seu tempo, impôs-se pelas virtudes intelectuais, surpreendendo notáveis
interlocutores, como o filósofo alemão Nietzsche. Partidário de experiências e novidades, tornouse popular nos Estados Unidos, quando visitou a exposição da Filadélfia (1876) e soube
entender o alcance do telefone, na época uma invenção recente e representada de maneira
rudimentar. Sobre essa vocação caricata do imperador, Jô assim descreve o contato entre ele e
Alexander Graham Bell, em que Sherlock Holmes, amigo do cientista, explica ao doutor Watson
o encontro:
– [...] foi dom Pedro o primeiro a utilizar o telefone publicamente, na Exposição Centenária
da Filadélfia. Bell contou-me o caso às gargalhadas. Sem querer, pregou-lhe uma peça.
Sabe qual foi a primeira frase que fez o monarca pronunciar quando experimentou o
aparelho?
[...]
– “To be or not to be, that is the question”... e então, o imperador acrescentou, surpreso:
“Céus, isto fala!” – completou o detetive, rindo do episódio [...]. (p. 34).
3
Dicionário do Brasil imperial (1822-1899). p. 198.
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Charles Darwin, reconhecendo-lhe os méritos, chegou a dizer: “O imperador fez tanto
pela ciência que todo sábio lhe deve o maior respeito”. No Brasil, porém, o interesse do monarca
por assuntos científicos seria alvo frequente de gozações (fig.1), servindo até de tema para
sociedades carnavalescas. Pedro II escreveu em seu diário: “Nasci para consagrar-me às letras
e às ciências, e, tendo de ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou de
ministro à de imperador” (MAURO, 1991, p. 184). Percebe-se que Jô Soares construiu um dom
Pedro II tão caricato quanto era no século XIX.
Fig. 1: Charge com rosto de Dom Pedro II na face da Esfinge publicada em 1871 pela Revista
Ilustrada.
Outro traço marcante da paródia no livro diz respeito aos personagens clássicos de um
romance policial: o detetive e o criminoso/assassino. Ao final dessas histórias, o investigador
descobre quem é o criminoso e este é punido. Em OXBS, o assassino, Miguel Solera de Lara, o
primeiro serial killer da história, fica impune e embarca no mesmo navio para Londres em que
Sherlock Holmes e o doutor Watson voltam para casa, sem ser descoberto.
Para compreender o motivo pelo qual o detetive inglês não solucionou o caso,
permitindo que Miguel, o dono da livraria O Recanto de Afrodite, saísse impune, é preciso
atentar para o intertexto com relação a esse episódio. É importante entender que o insucesso de
Holmes se deve ao fato de que o assassino, Miguel Solera de Lara, que viria a ser o primeiro
serial killer da História, seria conhecido como Jack, o Estripador, assassino de Londres que fez
várias vítimas, todas elas prostitutas, e não foi descoberto até hoje, apesar das pistas que ele
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mesmo deixava sobre si. Tudo isso é possível pela mistura entre História e ficção e pelo
acréscimo do humor e da paródia.
Sobre o estripador, o que se sabe é que ele cometeu seus crimes entre 31 de agosto e
9 de novembro de 1888 no bairro de Whitechapel, no East End londrino. Possivelmente conhecia
anatomia, pois seccionava a região do ventre de suas vítimas e degolava-as com precisão. Jack
zombava da polícia e remetia pelo correio pedaços das vítimas à Scotland Yard, assim como
fazia o livreiro Miguel, ao mandar bilhetes à polícia, dando pistas sobre si. Historicamente, a
polícia inglesa fez o que pode, mas foi desmoralizada. O inspetor Charles Warren, que
comandava as investigações, demitiu-se depois de dar sua última ordem: fotografar os olhos de
uma das prostitutas, pois acreditava-se que uma pessoa guardava na retina a última imagem
vista antes de morrer.
Existem várias versões sobre quem foi realmente o estripador; a mais provável é a de
que ele era médico, quando uma traição da esposa abalou-lhe a carreira e a vida. Sabendo que
ela acabara por se entregar à vida fácil, pôs-se a vagar, anônimo, pela cidade, durante a noite,
assassinando as prostitutas que encontrava pelas ruas desertas para vingar-se em todas elas
pelo crime da esposa.
No início da história, somos apresentados ao perfil do livreiro, quando o autor diz que
“Miguel sonhava em ir morar em Londres. Abrir, talvez, uma pequena livraria no East End” (p.
77). A escolha do nome do assassino foi proposital: Miguel Solera de Lara, o dono da livraria O
Recanto de Afrodite (grifo meu). As três primeiras cordas do violino, Mi, Sol, La e Ré compõem
as iniciais do nome do assassino e a última, o primeiro nome de sua livraria. Afrodite, “venerada
pelas putas e protetora de todas as rameiras” (p. 341) – explica a obsessão do assassino pelas
prostitutas. Por último, as orelhas: orelhas de livro, de livreiro.
O assassinato de sua última vítima, a baronesa de Avaré, dona do Stradivarius, é
emblemático. Jô constrói o capítulo em tom apocalíptico e começa descrevendo Miguel como um
dos sete anjos que guardam as sete taças do Apocalipse e que iria abater a Grande Prostituta, a
baronesa. Quando o delegado Pimenta e o detetive Sherlock chegaram ao local do crime,
encontraram Maria Luísa com a palavra MISTÉRIO escrita na fronte, numa referência ao
Apocalipse de São João4, em que é descrita a Grande Prostituta com o nome mistério na testa.
4
Apocalipse, cap. 17, v. 5.
8
Ao final, Miguel tem a audácia de arrombar os aposentos do detetive e deixar sobre
sua cama o Stradivarius sem as cordas e, preso a ele, apenas um bilhete com a apalavra
goodbye. Conhecendo a história de Jack, o Estripador, é possível compreender por que Holmes
não desvendou o caso: Miguel era Jack e teria cometido seus primeiros crimes no Brasil, em
1886, dando continuidade a eles em Londres, no ano de 1888.
As vozes do narrador
Durante a história, Jô Soares utiliza a voz de seus personagens para “falar”. É o que
ocorre quando o detetive adquire um costume genuinamente brasileiro: chegar atrasado aos
encontros. Encantado com o Brasil, Holmes assim se pronuncia sobre a terra nova:
– [...]. Estou encantado com os costumes da terra. [...] Sinto-me à vontade, como se
estivesse em casa. Há algo, todavia, que não entendo [...].
– Os trajes. Não compreendo por que os homens todos se vestem de preto, à europeia,
num país tropical. (p.174-75).
A fala do detetive lembra os relatos de viajantes europeus que se surpreendiam com
as vestimentas europeias dos brasileiros. O inglês, não compreendendo os trajes, pede ao
alfaiate Salomão Calif algo mais apropriado ao calor dos trópicos – quatro ternos de linho
branco, o que era coisa de zé-povinho para a época. Apesar disso, Sherlock Holmes diz que vai
inaugurar a moda, numa alusão ao típico malandro carioca. Esse questionamento é semelhante
aos que se faziam os europeus no Brasil. Diz Mauro: “no Brasil, todos se vestem de negro, não
só para sair à noite, mas também no meio do dia, quando o sol cai a pino sobre as cabeças”
(apud BIARD, 1991, p. 41).
Em outra passagem, Jô utiliza os personagens Olavo Bilac e o delegado Mello Pimenta
para falar da censura na ditadura militar, considerando que OXBS foi escrito em 1995, pouco
tempo após o fim dos anos de chumbo. Na história, Bilac era procurado por Pimenta, porque o
poeta escrevia contra a monarquia. Quando o delegado chegou ao bar em que Olavo Bilac
estava, este tentou se esconder rapidamente, o que coloca o poeta no lugar dos artistas que
enfrentavam o regime. No que Mello Pimenta lhe disse:
– Calma, senhor Bilac. Não há nada contra si. Tudo exagero dos jornais. Afinal, se os
nossos jovens não pudessem mais escrever manifestos, o que seria do Brasil? [...]. (p. 89,
grifo meu).
Ao trazer Sherlock Holmes ao Brasil do século XIX, Jô Soares traz à tona o espírito
nacional. Num país em que o povo se voltava para a Europa, o detetive inglês encarnou o
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instinto de nacionalidade ao falar o português em vez da língua francesa e vestir-se com roupas
apropriadas ao calor tropical, e não com as roupas pretas e pesadas, características do frio
europeu. Holmes também toma a caipirinha e dispensa o champanhe francês. Além de
representar a brasilidade, o inglês é atrapalhado e chega atrasado aos encontros, o que
caracteriza um malandro. O personagem nacionalista de Lima Barreto de Triste fim de Policarpo
Quaresma, o major Policarpo Quaresma, por estudar o tupi-guarani e se expressar nessa língua,
recebeu o apelido de Ubirajara; a Sherlock Holmes coube a alcunha de Xangô, seu orixá
protetor, revelado a ele no terreiro de candomblé
Concluindo, pode-se dizer que OXBS marca a passagem do humorista a escritorhumorista e que, assim como na citação de Wittgenstein utilizada pelo próprio Jô Soares no
início do livro, “humor não é um estado de espírito, mas uma visão de mundo”. Também a
análise de Affonso Romano de Sant’Anna para a paráfrase deve ser levada em conta. O autor
utiliza o conceito psicanalítico chamado estado do espelho, no qual analisa a relação da criança
com o espelho, a projeção de sua imagem e a dificuldade em reconhecê-la. Para o autor, a
paródia não seria um espelho, mas um espelho invertido (1985, p. 32), uma lente que “enxerga
os detalhes de tal modo que pode converter uma parte do elemento focado num elemento
dominante, invertendo, portanto, a parte pelo todo, como se faz na charge e na caricatura” (Idem,
Ibidem).
Sendo a paródia um texto autônomo – e rebelde –, acredito que a herança que Arthur
Conan Doyle deixou foi aproveitada de outra maneira por Jô, dando uma continuidade à saga de
Sherlock Holmes que seu “pai” inglês nunca imaginou.
Referências bibliográficas
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10
MAURO, Frédéric. O Brasil no tempo de dom Pedro II: 1831-1899. Tradução de Tomás Rosa
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