beaumarchais e a trilogia de figaro

Transcrição

beaumarchais e a trilogia de figaro
Beaumarchais e a “trilogia de Fígaro”
Por Francisco José dos Santos Braga
Neste ensaio vou tratar de três assuntos
intimamente relacionados e que objetivam trazer ao
leitor lusófono do Blog do Braga uma breve análise
da "trilogia de Fígaro" de Beaumarchais, minha
tradução de um texto de Docteur Cabanès intitulado
"Beaumarchais se suicidou?", que levanta a
suspeita de que a morte de Beaumarchais não tenha
sido natural e, por fim, minha tradução de breve
"Biografia de Docteur Cabanès", escrita por Dr.
Léon Laveyssière, este também médico como o seu biografado.
Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1799), ou simplesmente,
Beaumarchais, foi um autor de teatro francês. Ao lado de Molière e Marivaux, é
considerado um dos três grandes comediógrafos da época clássica francesa.
Começou por exercer o ofício de relojoeiro, foi mestre de música das filhas de
Luis XV, sendo seu secretário, diplomata de bastidores e agente secreto. Na
infância, estudou violão, flauta e harpa.
De Beaumarchais destaca-se a "trilogia de Fígaro", constando, conforme o
próprio nome diz, de três peças envolvendo o personagem Fígaro, descritas
abaixo.
A comédia O Barbeiro de Sevilha (Le Barbier de Séville), em quatro atos, foi
encenada em Paris pela primeira vez em 1775, e sua "continuação", a comédia
O Dia Louco, ou O Casamento de Fígaro (La Folle Journée, ou Le Mariage de
Figaro), em cinco atos, embora escrita em 1777-1778, estreou na ComédieFrançaise em 27 de abril de 1784, com estrondoso sucesso. A popularidade de
sua personagem foi tanta que os dicionários ocidentais passaram a figurar o
termo fígaro como sinônimo de barbeiro.
A terceira parte da "trilogia de Fígaro" é L' Autre Tartuffe, ou La Mère Coupable
(O outro Tartufo, ou a Mãe Culpada), um drama em cinco atos, finalizado em
1792. Sua première foi um fracasso, mas a reprise no Teatro da Rua Feydeau,
em 5 de maio de 1797, se revelou grande sucesso.
No teatro de Beaumarchais, O Casamento de Fígaro tem lugar em Sevilha, alguns
anos depois dos fatos narrados em O Barbeiro de Sevilha, em que o conde de
Almaviva tinha conseguido casar-se com Rosina, graças à astúcia do barbeiro
Fígaro. Mas, se em O Barbeiro o amor que triunfava era o do conde, em O
Casamento é o do criado. Não por acaso, esta última comédia transpira uma
mentalidade tão antiaristocrática quanto a própria Revolução Francesa (1789)
que explodiu cinco anos depois da estreia da obra (1784). Com efeito, agora,
quem está a ponto de casar-se é Figaro, convertido em criado do conde de
Almaviva e da sua esposa Rosina, a condessa. A felicidade, porém, dos futuros
esposos — Fígaro e Susanna — está ameaçada porque o conde julga ter "direito
de pernada" sobre a sua criada Susanna e o que explica, de fato, o argumento é
a maneira como o criado consegue vencer e ridicularizar as pretensões sexuais do
aristocrata.
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A comédia O Barbeiro de Sevilha é considerada uma comédia de intriga, em que
o riso se nutre do inesperado das situações, bem como de uma sátira social ainda
tradicionalmente voltada contra os velhos, os médicos, os literatos e os juízes,
embora Fígaro já dirija algumas farpas à aristocracia, sobretudo em suas
reflexões sobre a relação patrão-criado. O enredo da ópera satiriza a ordem social
francesa, rigidamente estabelecida e em plena decadência no período préRevolução.
Já a outra comédia, O Casamento de Fígaro levou de 6 a 7 anos para ser
apresentada, depois de ser examinada por seis censores consecutivos e ter sua
estréia duas vezes interditada pelo próprio Luís XVI. Consta que o brilhante, bemhumorado e astucioso Beaumarchais teria feito o seguinte comentário: "Só quero
uma coisa: é que a peça pareça bem perigosa, que lhe façam muita oposição e
sobretudo que o Rei continue a se envolver diretamente no caso — e chego logo
à Comédie Française. Com inimigos e obstáculos, terei sucesso." (apud Gaiffe,
1928: 57 in Guimarães)
Guimarães analisa o enredo dessa comédia com muita propriedade: "Fígaro e
Susanna são ainda subalternos socialmente, mas não sentem, pensam ou se
comportam mais como subalternos, e por isso podem ser protagonistas. A
aparente familiaridade entre Fígaro (criado) e Almaviva (patrão) não esconde a
permanentemente tensa oposição de interesses e perspectivas, em que se
evidencia a autonomia espiritual do criado; do mesmo modo, a resistência
astuciosa e manipuladora de Suzanne (criada) ao assédio do conde revela uma
liberdade de espírito que se desprende de sua condição de sujeição social. Já a
afetuosa relação feminina entre Suzanne e a condessa (Rosina), que é quase uma
aliança feminista, marcada por uma intimidade quase fraterna, só é possível
dramaturgicamente à luz de novos valores, como uma resposta feminina à
condição de submissão da mulher no Antigo Regime (plano em que se igualam a
condessa e a camareira (plano em que se igualam a condessa e a camareira), de
resto criticada de maneira sentida e lúcida por Marceline (governanta) no ato III,
cena XVI.”¹
Sobre a dramaturgia de Beaumarchais em O Casamento, Pol Gaillard (1985),
apud Guimarães afirma que essa comédia “reúne, em uma só peça: uma comédia
de costumes em que se retratam, numa Espanha "de fantasia", as últimas
décadas do Antigo Regime francês; uma comédia de intriga em que situações
cômicas, disfarces e trocas de pessoas se sucedem em ritmo vertiginoso e
envolvente; uma comédia romanesca, com duas belas e originais histórias de
amor em que o problema não é conquistar o ser amado, mas conservá-lo contra
seus próprios impulsos libertinos (a condessa), ou contra a sedução e o poder
alheios (Fígaro e Susanna); uma comédia psicológica, com pelo menos seis
estudos de caráter profundos e bem delineados (o conde Almaviva, a condessa,
Fígaro, Susanna, Cherubino e Marcelina); uma bem sucedida comédie-ballet ao
gosto clássico que, associando teatro, canto e dança, adequa-se, por sinal,
perfeitamente ao interesse contemporâneo pelos espetáculos musicais; quadros
de comicidade caricatural, particularmente a cena do julgamento, que apresenta
em traços farsescos a Justiça da época; e finalmente uma sátira social que
aborda grande parte das questões que estão na ordem do dia às vésperas da
Revolução Francesa, não de maneira acerba e panfletária, mas a partir do riso,
que não é mais, como o de Molière, um meio de fustigar os costumes, expondoos ao riso dos espectadores. Em Le Mariage de Figaro, os que riem não estão só
na platéia; é o riso das próprias personagens que importa, que veicula, por assim
dizer, a lição de moral: o élan vital triunfa sobre as angústias do tempo, nessa
comédia em que os que estão insatisfeitos com o mundo estão, por outro lado,
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fundamentalmente de bem com a vida. E talvez seja essa radical alegria de viver
de Beaumarchais e de suas personagens que faça de Le Mariage de Figaro uma
peça clássica no sentido mais completo do termo, ou seja, contemporânea a
todas as épocas.”
Considerando a ordem em que apareceram as partes da "trilogia de Fígaro" e o
seu aparecimento sob a forma de ópera, temos que a ópera de Rossini O
Barbeiro de Sevilha (1816), em dois atos, conta a primeira parte da "trilogia de
Fígaro", ao passo que a ópera As Bodas de Fígaro de Mozart (1785-1786), em
quatro atos, se baseou na sua segunda parte da trilogia, embora tenha aparecido
30 anos antes da primeira. A última parte da referida trilogia constitui o enredo
da ópera La Mère Coupable de Darius Milhaud (1892-1974), estreada no
Grand Théâtre em Genebra, Suíça, em 1966.
Sobretudo quanto às duas primeiras partes mises en musique da "trilogia de
Fígaro", cabem ainda alguns comentários.
Em 1785-1786, Mozart (1756-1791) compôs a música de As Bodas de Fígaro
(Le Nozze de Figaro), com libreto italiano de Lorenzo Da Ponte. A música
de Mozart é de uma genialidade absoluta e de um assombroso sentido dramático,
desde a abertura agitada e trepidante que nos anuncia "o dia louco" que vamos
viver, até os números de conjunto, magnificamente preparados em perfeita
progressão, passando pelas árias dos distintos personagens, que tão bem
definem seus caracteres.
Em 1816 (30 anos após o aparecimento das Bodas de Fígaro de Mozart), Rossini
(1792-1868) escreveu, em um mês, a partitura de O Barbeiro de Sevilha (Il
Barbiere di Siviglia), sobre libreto também italiano de Cesare Sterbini.
Ambas as óperas, baseadas em comédias de Beaumarchais, exploram o gênero
da opera buffa (ópera cômica associada com comédia burlesca), estilo inspirado
nas obras populares da "commedia dell' arte" firmemente estabelecido desde
1733, quando Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736) estreou, em Nápoles, La
Serva Padrona (A Serva Patroa), recebida por toda parte como um succès fou. A
opera buffa na Itália teve seu correspondente na França (opéra comique) e na
Alemanha (Singspiel).
Para finalizar esta parte, gostaria de traduzir um pequeno trecho de Charles
Péguy (1873-1914) para mostrar a importância do teatro de Beaumarchais, na
sua opinião:
“Se eu fosse professor de história da França, (quer dizer a história), e talvez de
história do mundo, eu mandaria meus alunos lerem La Mère Coupable... Faria
com que lessem primeiro as duas comédias; e em seguida o drama... Nada
permitiria melhor medir a diferença de tempo, a diferença de tom, enfim o que
faz propriamente a história e o período e os incidentes de um povo e do mundo.
Gostaria de dar a meus alunos o gosto mesmo, o sabor por assim dizer físico do
que era 1775, 1784, 1792: eu os faria ler simplesmente essas três peças.”²
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Minha tradução de Biografia do Dr. Cabanès
Dr. Léon Laveyssière³, médico como Dr. Cabanès, dá excelentes traços da
"Biografia do Dr. Cabanès" que transcrevo abaixo, em minha tradução:
"São raros aqueles que descobrem uma via nova, por pequena que seja, mais
raros ainda são aqueles que sabem explicá-la e torná-la fecunda. A esse título
quero assinalar um mestre na arte de escrever, confrade no jornalismo médico, o
doutor Cabanès.
Introduzir a crítica médica na história, utilizar seus conhecimentos para resolver
problemas que os historiadores entregues a si mesmos deixam sem resposta.
Trabalho semelhante já havia sido tentado por Desgenettes, Brachet, Dubois d'
Amiens, Rollet, Charcot, Jacoby, Corlieu, Chéreau, Lacassagne, etc...
Mas nenhum tinha abordado essas questões com tal continuidade de esforços
nem chegado a tais resultados; ninguém tinha ainda conseguido criar um gênero
especial, apreciado por um numeroso público de médicos e de literatos.
Nascido em Gourdon (Lot) em 1862, Cabanès começou em 1880 seus estudos
em Bordeaux, veio logo para Paris onde recebia em 1886 seu diploma de
farmacêutico e em 1889 o de médico.
As letras o atraíram cedo: em 1885 ele debutava nas suas pesquisas tão
especiais com um artigo no Progrès médico sobre os soberanos nevropatas.
Na mesma época entrou no Medianeiro dos Investigadores (Intermédiaire des
Chercheurs) dirigido por Faucou; fazia, nessa excelente escola, seu aprendizado
de crítica e já testemunhava uma memória espantosa, uma grande facilidade de
classificar as recordações e muito método no trabalho. E como todos os
jornalistas nascidos de instinto, ele trabalhava por acesso, quando isto lhe dizia,
tirando longos períodos de repouso contemplativo.
Pouco a pouco escreveu em diversos jornais de medicina: em 1887 no jornal de
medicina de Paris, cujo folhetim ele publica, na França Médica onde toma o
pseudônimo de Doutor Quercy, na Gazeta dos Hospitais, etc. Em seguida faz o
acesso às revistas literárias: a Revista Semanal (Revue Hebdomadaire), a Grande
Enciclopédia, a Revista das Revistas, etc., enfim nos jornais políticos: o Fígaro, o
Gaulês (Gaulois), o Jornal.
Em 1894 funda a Crônica Médica, e nesse jornal, do qual é simultaneamente
diretor e redator, nos dá a medida de seu valor. A cada quinze dias aparecem
artigos inéditos sobre personagens da história, artigos sempre esperados com
impaciência e muito apreciados por um público numeroso.
Nós nos interessamos pela doença de Marat, pelos amantes de Charlotte Corday,
pelas superstições de Napoleão I, pela impotência de Luís XVI, da forma como foi
consumido seu casamento com Maria Antonieta, etc. Nós nos apaixonamos enfim
pelo romance de Georges Sand em Veneza com Alfred de Musset e o doutor
Pagello, que este último personagem explicou numa entrevista famosa.
Todos esses documentos formam enfim a matéria de numerosos livros: O
Gabinete Secreto da História em 4 séries, cujas duas primeiras estão agora
esgotadas; as Mortes Misteriosas da História e ultimamente, em colaboração com
L. Nass, os Venenos e Sortilégios. Neles discute e destrói lendas absurdas de
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envenenamento, reabilitando assim diversos personagens caluniados há séculos,
confirma e explica outros deles, iniciando-nos na composição e nos efeitos da
venenosa italia, da cantarella dos Borgia, da aqua Toffana⁴ ou aguinha de
Nápoles. (...)
O sucesso desse gênero de trabalhos tão especiais é uma das características do
período médico contemporâneo. Indica a importância crescente da arte médica
que extravasa suas antigas fronteiras para se interessar por todas as ciências
tendo por objetivo o estudo do homem."
Minha tradução de Beaumarchais se suicidou?⁵
Aqui vou discutir o que se costuma chamar de medicina histórica, tomando por
base a minha tradução de um dos artigos que fazem parte de As Indiscrições
da História, importante obra de Docteur Cabanès em quatro séries. O artigo
em questão, um texto médico-literário de autoria de Docteur Cabanès que se
tornou especialmente famoso, apareceu na quarta série da referida obra. Nele o
autor francês resolveu investigar o que deve ter ocorrido a Beaumarchais nas
suas últimas horas de vida, em certo dia de 1799.
“Na manhã de 8 de maio de 1799, o criado de Beaumarchais, surpreso de não
ver seu patrão descer como de costume, entrou no quarto onde ele repousava e o
encontrou sem movimento e sem vida. Ele estava, diz-nos um contemporâneo,
na mesma posição que tinha se colocado, ao se deitar⁶.
Nenhum desarranjo anunciava o de que sofria. Os médicos chamados declararam
unanimemente que ele tinha sucumbido de um ataque de apoplexia — "o sangue
se dirigira ao cérebro" — e que ele tinha deixado a vida sem dor e sem ter tido
consciência de seu fim próximo.
O que nos faz crer numa morte natural, é que, na véspera mesma, o autor de O
Barbeiro tinha passado um sarau muito alegre no meio de seus familiares e em
companhia de alguns amigos. Ele tinha evocado, durante sua conversa,
recordações de sua juventude, narradas "com uma amenidade encantadora",
segundo os termos duma testemunha.
O livreiro Bossange, morto aos 100 anos em outubro de 1865, informava ter
passado essa última noite com Beaumarchais. Jogou com ele uma partida de
damas, e Beaumarchais só tinha ido deitar-se por instâncias de seu criado. Às
onze horas, retirou-se abraçado à sua esposa. Como esta tinha uma leve
indisposição, afetuosamente recomendou a ele cuidar de sua saúde. Quanto a
este, não se queixava de forma nenhuma. Após ter ordenado que o acordassem
cedo, adormeceu e, na manhã seguinte, foi encontrado inanimado.
Esse fim súbito de um homem que parecia desfrutar uma saúde tão perfeita
despertou, em alguns, suspeitas que, ainda hoje, não foram inteiramente
dissipadas.
Numa conversa mantida alguns dias antes de sua morte, parece que
Beaumarchais, dizendo-se cansado da vida, expressara o desejo de se livrar
prontamente de sua carcaça, através de um desses meios químicos de que se
começava a falar na ocasião.
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Apenas uma semana após o falecimento de Beaumarchais, um "amigo da família"
escrevia à sua viúva que se encontrara com alguém que lhe havia "narrado
gravemente essa insolência".
Quem tinha feito correr esse boato calunioso não era outro do que o poeta
Népomucène Lemercier, com o qual Beaumarchais era muito ligado⁷. Nos últimos
dias, o autor de O Casamento de Fígaro se consolava muitas vezes, na intimidade
do jovem poeta, com obsessões de toda sorte, que gastos exagerados tinham
suscitado na sua velhice. Fez-lhe confidência de seus embaraços financeiros e
não surpreende que, num momemto de desânimo, Beaumarchais tenha
comunicado a seu amigo projetos que, serenamente, não teria nunca sonhado em
por em execução. Não foi preciso algo mais para estabelecer a lenda.
Esménard, no seu artigo BEAUMARCHAIS da Biographie universelle,
Ravenel⁸ apud Beuchot, o próprio Sainte-Beuve apud Ravenel não deixaram de
reproduzir essa versão, e sem procurar demais desmenti-la. No máximo SainteBeuve, quando lhe foram apresentados os argumentos que militavam em favor
da hipótese duma morte natural, se rendeu, mas conservando, de si para si,
"uma leve dúvida⁹".
Essa dúvida não mais é permitida hoje.
Os documentos que vieram à luz, particularmente pelo mais autorizado biógrafo
de Beaumarchais, Louis de Loménie¹⁰ e, mais recentemente, por M. Eugène
Lintilhac são de arrebatar os contraditores mais tenazes.
Nos últimos tempos de sua vida, Beaumarchais apresentava o aspecto de um
homem "muito gordo e sanguíneo": são essas as próprias expressões que se
acham no último passaporte que lhe entregou o ministro da França em
Hamburgo. Na mesma época, ele próprio se qualificava: um bom velho grande,
grisalho, gordo, gorduroso.
Mas há mais, e este detalhe tem um valor bem diverso a nossos olhos:
Beaumarchais estava sujeito a frequentes síncopes.
Em 5 de maio de 1797, então com a idade de sessenta e cinco anos, ele escrevia
à sua filha¹¹: "Desde a noite do dia 6 a 7 de abril, ocasião em que tive um longo
abatimento, que era o segundo aviso que a natureza me dava desde cinco
semanas atrás, meu estado está mais tolerável. Espero os pós vegetais. (?) Quer
a estação ascendente em que nos encontramos reanime um pouco minhas forças,
quer este eretismo¹² proceda de febre, eu pude fazer, minha criancinha, imensos
trabalhos, cujo fruto você recolherá pelas precauções que tomei¹³".
Esses "avisos da natureza" eram provavelmente dos ataques de hemorragia
cerebral. A primeira, como o dizia um médico espirituoso de outrora, é uma
intimação sem custas, a segunda uma intimação com custas, e a terceira ... a
expulsão deste mundo.
A morte de Beaumarchais se explica deste modo mais logicamente; mas nós
temos outras provas mais concludentes.
E primeiro, o certificado do cirurgião chamado a constatar o óbito, certificado
datado do mesmo dia desse falecimento (29 floréal an VII¹⁴) declara que o
"cidadão Beaumarchais morreu duma apoplexia sanguínea, e não outra doença".
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A esse testemunho, L. de Loménie junta o do próprio genro de Beaumarchais
que, consultado sobre esse ponto, respondeu pela seguinte carta, cujos termos,
muito explícitos, não dão lugar a nenhuma outra hipótese que à de uma morte
natural:
Villepinte, por Livry (Seine-et-Oise),
7 de outubro de 1849.
"Senhor,
"Venho de tomar conhecimento, com um espanto penoso, dos boatos que
espalharam sobre os últimos momentos de Beaumarchais, meu sogro. A
afirmação mentirosa de seu suicídio, que foi reproduzida em escritos sérios,
obriga-me a repelir, com toda a indignação que merece, uma fábula com a qual a
família e os amigos de Beaumarchais teriam se perturbado, se a tivessem
conhecido mais cedo.
"Beaumarchais, depois de ter passado em família o mais animado sarau, em que
jamais seu espírito não tinha estado mais livre e mais brilhante, foi acometido de
apoplexia. Seu criado, entrando em seu quarto pela manhã, encontrou-o na
mesma posição em que o havia deixado ao deitá-lo, o rosto calmo e aparentando
repousar. Fui advertido pelos gritos de desespero do criado, corri até o quarto de
meu sogro, onde constatei essa morte súbita e tranquila; em seguida, só me
ocupei de salvar sua filha, que tinha por seu pai um verdadeiro culto, da angústia
de uma notícia que poderia ter-lhe sido funesta, caso tivesse tomado
conhecimento dela sem estar preparada.
"Eis, senhor, a verdade exata...
“Delarue”
Na família de Beaumarchais, não se acreditou então no suicídio; nos documentos
deixados pela viúva do escritor, não se acha a mínima alusão, por velada que
seja, a essa versão verdadeiramente insustentável.
Um dos familiares mais íntimos de Beaumarchais, Gudin de la Brenellerie, cujos
manuscritos M. Maurice Tourneux possuiu, diz que, na véspera de sua morte,
Beaumarchais parecia "pleno de força e de saúde", e que "sua constituição
vigorosa, sua aparência física anunciavam que (sua saúde) não estava
absolutamente alterada". Nas cartas que ele endereçava a Sra. de Beumarchais,
Gudin lembra por várias vezes o fim tão imprevisto de seu amigo, e nesta
ocasião, deseja como ele uma morte "súbita e tranquila" (para si). Sra. de
Beaumarchais escreve, de seu lado: "Meu marido saiu da vida como nela tinha
entrado."
Assim, de um lado, um assunto de somenos importância, mantido por um homem
que reveses da sorte, negócios muito complicados, cuidados familiares haviam
afetado — sua filha que adorava dava-lhe preocupações de saúde com as quais
seu coração particularmente sensível se perturbara; de outro lado, uma
declaração formal de um homem da arte, uma tradição de família imutável. Entre
as duas versões nenhuma hesitação possível: a da morte natural é a única
aceitável. Parece-nos que o problema é de uma solução tão fácil e simples que
nós recusaríamos quase havê-lo levantado¹⁵.”
¹ Guimarães, A.M.: As Bodas de Fígaro; Mozart, Da Ponte, Beaumarchais (o
libreto e a peça), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 1991, pp. Xii e Xiii.
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² “Si j' étais professeur d' histoire de France, (dit l' histoire), et peut-être d'
histoire du monde, je ferais lire [La Mère Coupable] à mes élèves... Je leur lirais
d' abord les deux comédies; et ensuite je leur lirais le drame... Rien ne
permettrait autant de mesurer la différence de temps, la différence de ton, enfin
ce qui fait proprement l' histoire et l' âge et l' événement d' un peuple et du
monde. Je voudrais donner à mes élèves le goût même, la saveur pour ainsi dire
physique de ce que c' était que 1775, 1784, 1792: je leur lirais simplement ces
trois pièces.” ( Péguy, Charles: Clio, dialogue de l' histoire et de l' âme païenne
[póstumo])
³ Cfr. Le Correspondant Médical, 15/7/1903, p. 3
(http://www.leplaisirdesdieux.fr/LePlaisirDesDieux/Histoire/BIBLIO/Revues/corres
pondantmedical/1903/Juillet_15/Cabanes.pdf).
⁴ Veneno devastador amplamente usado em Roma e Nápoles no século XVII
supostamente contra maridos por esposas infelizes. Era um líquido incolor,
insípido e facilmente misturado em bebidas.
A lenda que Mozart pudesse ter sido envenenado por acqua Toffana é
completamente descabida. [N.T.]
⁵ Docteur Cabanès. Les Indiscrétions de l' Histoire (s.d.), quarta série, pp. 185 a
193, Paris: Albin Michel, Éditeur.
⁶ Gudin de la Brenellerie. Histoire de Beaumarchais (édition Tourneux), 1888,
p. 473.
⁷ Revue des Deux-Mondes, janeiro-março 1840, p. 462.
⁸ Na notícia que precede sua edição in-18 de Beaumarchais.
⁹ Causeries du Lundi, t. VI.
¹⁰ L. de Loménie. Beaumarchais et son temps, t. II, pp. 526 e seguintes.
¹¹ Lintilhac, apud Bonneville de Marsangy. Mme de Beaumarchais, p. 115.
¹² Eretismo pode ser entendido como astenia neurocirculatória, caracterizada por
uma síndrome clínica consistindo de palpitação, respiração curta e difícil, queixas
subjetivas de esforço e desconforto, tudo isso seguindo um leve esforço. Outros
sintomas podem ser tontura, tremedeira, suor e insônia. O Dicionário do Aurélio
só registra "estado de excitação, de exaltação". [N.T.]
¹³ Beaumarchais adorava sua filha única, por quem era adorado; só ele parecia e
se acreditava capaz de desembaraçar o caos inextricável de seus negócios. É
admissível, opina judiciosamente L. de Loménie, que ele tenha podido pensar em
deixar voluntariamente esse pesado fardo nos braços de sua filha e de um jovem
marido inexperiente?
¹⁴ Esta terminologia é a do Calendário Revolucionário, diferentemente do nosso,
que é Calendário Gregoriano.
Por um lado, o VII significa que se passaram 7 anos após a Revolução Francesa
(1792), ou seja, 1799-1792=an VII, ou seja, ano VII. Por outro lado, 29 Floréal
significa 18 de maio. [N.T.]
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¹⁵ Este estudo apareceu (menos as notas e algumas adições no corpo do texto),
pela primeira vez, em 1899, no jornal A Aurora, portando a data de 21 de junho,
por ocasião do centenário da morte de Beaumarchais.
Francisco José dos Santos Braga é compositor e pianista, nascido em São João del-Rei, MG. Aí fez
seus primeiros cursos de Solfejo, Ditado, Teoria Musical e Piano no Conservatório Estadual de Música
Padre José Maria Xavier. Na mesma cidade graduou-se em Letras em 1971 pela Faculdade Dom Bosco
de Filosofia, Ciências e Letras (atual UFSJ- Universidade Federal de São João del-Rei).
Em São Paulo, deu continuidade a seus estudos acadêmicos e musicais. Em 1983 obteve seu grau de
Mestre em Administração pela EAESP-FGV. Simultaneamente, prosseguiu seus estudos musicais com
o Maestro Souza Lima (piano) e Sérgio O. de Vasconcellos Corrêa (composição).
Em Brasília, de 2002 a 2008, cursou bacharelado em Música, com concentração na área da
Composição, na UnB, onde foram seus mestres os compositores Conrado Silva e Jorge Antunes. Na
mesma ocasião, participou dos Cursos Internacionais de Verão promovidos pela EMB-Escola de
Música de Brasília, tendo como professores os compositores Oscar Edelstein (Argentina), Christopher
Bochmann (Inglaterra/Portugal), Jorge Antunes e Gilberto Mendes (Brasil), além do professor de
piano Sergei Dukachev (Rússia).
Mantém atualizado o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de comunicação
com lusófonos interessados nos temas cultural, musical, literário, literomusical, histórico e
genealógico. Além disso, colabora com artigos para o Blog São João del-Rei (www.saojoaodelrei.blogspot.com).
Participa ainda, como Membro, de várias instituições no País, para as quais escreve ensaios, crônicas
e artigos, cabendo destacar as seguintes:
- SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro)
- Colégio Brasileiro de Genealogia, Rio de Janeiro
- Academia de Letras de São João del-Rei
- Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei
- Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG
- Academia Valenciana de Letras (Valença-RJ)
- Instituto Cultural Visconde do Rio Preto (Valença-RJ)
- Fundação Oscar Araripe (Tiradentes-MG).
Também é colaborador ativo de importantes sites dedicados a temas culturais, cabendo mencionar os
seguintes:
- www.saojoaodelreitransparente.com.br
- www.concertino.com.br
- www.csdp.salesianos.br
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