A era Edo (1603 – 1867) e o Japão - PPGHC
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A era Edo (1603 – 1867) e o Japão - PPGHC
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA DOUTORADO EM HISTÓRIA COMPARADA ELI AISAKA YAMADA A ERA EDO (1603 – 1867) E O JAPÃO CONTEMPORÂNEO (2003 – 2010): o multiculturalismo e a cultura de massa sob a perspectiva da História Comparada nas representações de Justiça / justiçajusticeiro nos manga Vagabond (1999) e Death Note (2003) Rio de Janeiro 2014 ELI AISAKA YAMADA YAMADA A ERA EDO (1603 – 1867) E O JAPÃO CONTEMPORÂNEO (2003 – 2010): O MULTICULTURALISMO E A CULTURA DE MASSA SOB A PERSPECTIVA DA HISTÓRIA COMPARADA NAS REPRESENTAÇÕES DE JUSTIÇA / JUSTIÇA-JUSTICEIRO NOS MANGA VAGABOND (1999) E DEATH NOTE (2003) UFRJ V.I Eli Aisaka Yamada A ERA EDO (1603 – 1867) E O JAPÃO CONTEMPORÂNEO (2003 – 2010): o multiculturalismo e a cultura de massa sob a perspectiva da História Comparada nas representações de Justiça / justiça-justiceiro nos manga Vagabond (1999) e Death Note (2003) Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Comparada. Orientação: Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior Rio de Janeiro março, 2014 YAMADA, Eli Aisaka. A Era Edo (1603 – 1867) e o Japão Contemporâneo (2003 – 2010): O multiculturalismo e a cultura de massa sob a perspectiva da História Comparada nas representações de Justiça / justiça-justiceiro nos manga Vagabond (1999) e Death Note (2003). Eli Aisaka Yamada 2014 Tese (Doutorado em História Comparada) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 2014. Orientador: Álvaro Alfredo Bragança Júnior 1. História em quadrinhos, 2. cultura de massa, 3. História do Japão, 4. Representações de Justiça/justiça-justiceiro Bragança Júnior, Álvaro Alfredo (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. III. Título. – UFRJ Eli Aisaka Yamada A ERA EDO (1603 – 1867) E O JAPÃO CONTEMPORÂNEO (2003 – 2013): o multiculturalismo e a cultura de massa sob a perspectiva da História Comparada nas representações de Justiça / justiça-justiceiro nos manga Vagabond (1999) e Death Note (2003) Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Comparada. Aprovada em: __________________________________________________ Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior (Orientador) – (PPGHC-UFRJ) __________________________________________________ Profa. Dra. Neide Hissae Nagae (PPLCJ-USP) __________________________________________________ Profa.Dra. Lucia Helena Martins Gouvêa (PLV-UFRJ) ___________________________________________________ Prof. Dr. José d’Assunção Barros (PPGHC-UFRJ) __________________________________________________ Profa.Dra. Leila Rodrigues da Silva (PPGHC-UFRJ) Suplentes __________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Barros Montez (PIPGLA-UFRJ) __________________________________________________ Prof. Dr. Victor Andrade de Melo (PPGHC-UFRJ) YAMADA, Eli Aisaka. A Era Edo (1603 – 1867) e o Japão Contemporâneo (2003 – 2010): o multiculturalismo e a cultura de massa sob a perspectiva da História Comparada nas representações de Justiça / justiça-justiceiro nos manga Vagabond (1999) e Death Note (2003). Tese (Doutorado em História Comparada) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014. RESUMO Os manga tem exercido uma atração muito grande para o público leitor contemporâneo e hoje faz parte da chamada cultura de massa. Este trabalho consiste num estudo das representações de Justiça / justiça- justiceiro nos manga Vagabond e Death Note os quais, embora sejam contemporâneos, possuem suas abordagens narrativas desenvolvidas em períodos distintos, a Era Edo e o Japão Contemporâneo. Indagando sobre as materialidades de sentidos produzidas pelas duas obras, estas mostram que as questões ligadas às contingências humanas expressam-se, apesar de sociedades diferentes, de forma semelhante. Tal fato é mostrado, levando-se em conta os recursos multiculturais inseridos nos manga que representam o imaginário social, para o quê a globalização contribui sobremaneira, expondo a questão da diversidade. Nesse sentido, encontra-se o papel do multiculturalismo que foca as mudanças do tempo e as suas conseqüências, principalmente no interior de grupos minoritários. O multiculturalismo expresso sob a forma de manga, uma forma de cultura de massa, revela, portanto, através dos seus discursos, uma cosmogonia ideal, que se adequa aos novos tempos de grupos sociais em desvantagem e que devem ser incluídos e aceitos sem abrir mão de suas diferenças. YAMADA, Eli Aisaka. A Era Edo (1603 – 1867) e o Japão Contemporâneo (2003 – 2010): o multiculturalismo e a cultura de massa sob a perspectiva da História Comparada nas representações de Justiça/justiça-justiceiro nos manga Vagabond (1999) e Death Note (2003). Tese (Doutorado em História Comparada) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014. ABSTRACT The manga presents nowadays a great attraction for the modern readership and is considered part of the so-called mass culture. This thesis presents a study on the Justice/justice-avenger representations in two manga - Vagabond and Death Note which, despite being contemporary publications, possess their narrative approaches in distinct periods, the Edo Era and Modern-day Japan. Analysing the materiality of the meaning produced by both texts, it is demonstrated that the issues linked to human contigencies are similarly expressed, even though in different applied multicultural resources societies. Such fact is shown, taking into account the applied multicultural resources imaginary in the manga, which represent the social to which globalization greatly contributes, exposing the theme of diversity. Hereupon, the multiculturalism role is presented, focusing on time changes of and their consequences, mostly on minorities. The multiculturalism, expressed in the manga a type of mass culture – reveals, however, through its discourse an ideal cosmogony, which adequates itself to the new times of social groups in disadvantage, that must be included and accepted without giving up their differences. AGRADECIMENTOS Gostaria de expressar os meus sinceros agradecimentos às pessoas abaixo relacionadas, as quais, graças aos seus apoios, permitiram que esta tese pudesse ser concluída: Ao Professor Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior, pela sua compreensão e atenção, paciência nos momentos mais cruciais, a quem tive a grande honra de ter como orientador. Aos professores do PPGHC – UFRJ, cujas disciplinas presenciais contribuíram para o desenvolvimento dos meus conhecimentos. À coordenação do PPGHC – pela atenção e esclarecimentos. Às professoras Neide Hissae Nagae e Cláudia Andréa Prata Ferreira, membros da Banca de Qualificação, pelas suas valiosas considerações. Aos colegas da Pós-Graduação do PPGHC. Às “meninas” da Secretaria do PPGHC - UFRJ, excepcionalmente Márcia, que sempre se mostraram solícitas nas informações e providências necessárias. À Fernandinha “minha sobrinha”, pela grande ajuda na digitação. Ao Senhor Yoshida pela leitura do trabalho e relevantes conselhos Aos amigos Tatai-san, Goretti, Mitie, Tamie, LG (Luiz Gabriel) pelos incentivos. Aos colegas do Departamento e Setor de Letras Japonesas que permitiram que eu assumisse os encargos do trabalho em horário reduzido. Aos meus sobrinhos Lyssa, Caio e Dudu, pela torcida. Ao meu marido, pela paciência nas horas mais difíceis. Aos meus pais: in memoriam, em especial, à minha mãe falecida após longa enfermidade durante o meu curso de doutoramento. Enfim, mesmo não sendo possível citar todos os nomes gostaria de manifestar a minha gratidão a todos os amigos que, de uma forma ou outra, contribuíram para a realização deste trabalho. NOTAS PRELIMINARES: 1) Foi adotado o sistema de transcrição Hepburn para os termos romanizados da língua japonesa, com exceção dos prolongamentos de vogais que foram representados por um acento circunflexo. 2) Todos os termos japoneses foram mantidos em japonês, sem aportuguesamento dos mesmos como, por exemplo, no uso da terminação de plural. 3) Os antropônimos foram mantidos conforme o sistema japonês, sobrenome seguido do prenome. 4) O termo justiceiro foi empregado sob a concepção particular de Justiça que cada indivíduo possue levando-o a tomar medidas de desagravo, não sendo, portanto, aquele representante legal da Justiça. 5) De acordo com o volume 13 do manga Death Note que faz uma recapitulação de todo desenvolvimento da história, a cronologia nela expressa é de cerca de 7 anos (2003-2010). Por se tratar de uma obra contemporânea, embora a narrativa não especifique um período determinado, optou-se por efetuar as considerações sob uma abordagem mais ampla da contemporaneidade, perpassando os períodos da história japonesa, desde a Era Meiji até a atualidade. 6) Embora haja a tradução em português, a obra Death Note foi analisada somente na original em japonês. LISTA DE TABELAS TABELA 1: Principais tipos de penalidades vigentes na Era Edo 48 TABELA 2: Penalidade vigentes no Japão atual 58 LISTA DE FIGURAS Figura 1: tríade da retórica na produção de sentidos dos manga 19 Figura 2: relação Cultura de Massa, História Comparada e Multiculturalismo 38 Figura 3: tatuagens das penalidades 43 Figura 4: exemplos de tatuagens 44 Figura 5: cena de uma decapitação 45 Figura 6: utilização de diversas tatuagens na identificação dos infratores 45 Figura 7: punições diversas 46 Figura 8: organização do Sistema Judicial Contemporâneo 55 Figura 9: gravura da comitiva dos daimyô (sankin kôtai) 71 Figura 10: teatro Nô 81 Figura 11: shinigami Ryuk 94 Figura 12: shinigami Rem 95 Figura 13: shinigami Shidoh 95 Figura 14: os sentidos dos manga numa brincadeira 100 Figura 15: a apreensão numa extensão de sentidos 102 Figura 16: Death Note, capa do volume 1 105 Figura 17: disposição da escrita vertical 106 Figura 18: disposição da letra E ao contrário e A e T na horizontal 106 Figura 19: How to use e sua tradução ao lado na escrita vertical 107 Figura 20: recurso da escrita cuja leitura adota a adaptaçãp do inglês 107 Figura 21: falas do “mundo humano” e a do “mundo dos shinigami” 108 Figura 22: mudança nas fisionomias de Light. 110 Figura 23: evolução dos enunciados. A) “Bokunishika dekinainda” (Somente eu posso fazer); B) Bokuninara dekiru (Se é eu, consigo) e C) “Death Note de yononakawo kaeteyaru” (Mudarei o mundo com o Death Note) 111 Figura 24: “shin sekai no kami to naru” (Serei o Deus do novo mundo) 111 Figura 25: “Bokuwa shin sekai no kami to naru” (Eu me tornarei o Deus do novo mundo) 112 Figura 26: “Bokuwa shin sekai no kamida” (Eu sou o Deus do novo mundo) 113 Figura 27: homepage de Light 114 Figura 28: a maçã 115 Figura 29: fala do shinigami Rem “ningen to iu ikimonowa jitsuni minikui” Os seres humanos realmente são repugnantes. 116 Figura 30: páginas iniciais de Vagabond 119 Figura 31: recurso da onomatopéia amplamente grafado, que demonstra o momento que o golpe é desferido. 121 Figura 32: momento em que a espada é empunhada 121 Figura 33: os corvos e em destaque a cor negra 122 Figura 34: corvo atacando o morto e arrancando os olhos. 123 Figura 35: Vagabond 127 Figura 36: distinção das fisionomias de Vagabond 128 Figura 37: sequencialidade da linguagem dos manga 131 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 14 CAPITULO I OLHARES-PLURAIS DE COMPARAÇÃO 1.1. Multiculturalismo e Justiça – Comparáveis possíveis 22 1.2. O conceito japonês de Justiça 39 CAPITULO II O CONTEXTO HISTÓRICO 2.1 A Era Edo e o Japão Contemporâneo 61 2.1.1 Da Ascensão dos Samurai a Era Edo – Panorama Cultural 61 2.1.2 O Japão Contemporâneo 84 CAPITULO III COMPARANDO VAGABOND E DEATH NOTE - O IMAGINÁRIO E AS VEROSSIMILHANÇAS: O MULTICULTURALISMO DOS MANGA E AS REPRESENTAÇÕES DE JUSTIÇA/JUSTIÇA-JUSTICEIRO. 3.1 Sintese das obras 93 3.1.1 Death Note 93 3.1.2 Vagabond 95 3.2 A linguagem imagética: discussões 96 3.3 Comparando as duas obras: os seus sentidos 104 3.3.1 Death Note 104 3.3.2 Vagabond 118 3.4 Comparando as duas obras: Quadro Sinótico 131 CAPITULO IV CONSIDERAÇÕES FINAIS 135 REFERÊNCIAS 138 GLOSSÁRIO 146 14 INTRODUÇÃO O advento do manga e do anime (cinema de animação)1, este último surgido posteriormente ao manga, embora aparentemente não se conceba um isolado do outro, toma impulso a partir da Era Meiji (1868-1912), quando se tentava evidenciar o potencial japonês rumo a uma rápida modernização após cerca de 250 anos de isolamento imposto no período Edo (século XVII-XIX do Shogunato Tokugawa). Sob os lemas “oitsuke” (alcançar) e ”oikose” (ultrapassar) 2 , o Japão “niponizou” as importações do ocidente, adaptando-as ao formato sócio-econômico da nação, em voga hoje em dia. Os manga, normalmente conhecidos em português como histórias em quadrinhos, tem o seu início por volta do século VIII (Período Nara) escritos em rolos de pergaminhos, emakimono (pinturas em rolos)3. Estes contam histórias através de desenhos e textos e, como termo, consolidou-se por volta do ano de 1800 quando Katsushika Hokusai (1760~1845) começa a desenvolver em sua arte de ukiyo-e4 (imagens do mundo flutuante) xilogravuras que retratavam a vida social, expressas geralmente em temáticas cômicas e sensuais. Os manga, conforme seus caracteres 「漫画」que possuem literalmente os significados de “desenhos livres” e “sem restrições” dada a sua característica de manifestar livremente, por exemplo, uma crítica social, são conhecidos aqui no Brasil como histórias em quadrinhos. A popularidade dos manga atinge um patamar tamanho, que encontramos hoje a utilização como recurso pedagógico, servindo como um verdadeiro merchandising de produtos de consumo. A venda de brinquedos e jogos, comumente divulgados pelos meios de comunicação, tende a aumentar o interesse por essa tipologia de leitura e, incontestavelmente, conduz-nos a crer no surgimento de uma nova cultura de massa. 1 Proveniente do francês dessin anime; “desenho animado”. Fora do Japão é empregado como sinônimo de animação japonesa em todos os formatos, seja como filme ou série de televisão. Cf. MOLINÉ, Alfons. O grande livro dos MANGÁS. São Paulo: Editora JBC, 2004, p. 216 2 Gravett emprega o termo “superar. Cf. GRAVETT, Paul. Manga. Como Japão reiventou os quadrinhos. São Paulo: Conrad Editora. 2006, p.14. Optamos pela tradução literal do termo oikose, “ultrapassar”. 3 Pinturas que ilustram textos literários ou religiosos em longas faixas de papel enroladas em torno de um bastão. 4 De ‘uki” 浮 flutuar, “yo” 世 mundo, “e” 絵 gravura, desenho 15 Para o presente trabalho, optamos por escolher como corpora dois manga, Vagabond (1999) e Death Note (2003), escritos em épocas contemporâneas, mas que retratam diferentes períodos, ou seja, a história de Vagabond transcorre na Era Edo, enquanto que Death Note transcorre na contemporaneidade. O critério da escolha das obras deveu-se, no caso do Vagabond, pelo enfoque dado a “procura da ascensão espiritual” ou como “exímio espadachim” do seu personagem central Miyamoto Musashi e a sua obstinação expressa em inúmeras cenas de lutas sangrentas. No caso de Death Note chamou-nos a atenção o título em japonês satsujin note, o caderno da morte, cujo personagem central, Light, toma para si, através do caderno, a perseguição e a execução dos malfeitores. São duas obras que, num primeiro momento, nos permitem uma apreensão de uma justiça sendo realizada. Estabelecemos, com isso, um diálogo mesclando a História e a Literatura, pois “É só na história que o homem existe e a literatura nada mais é que o discurso da existência humana, das suas várias possibilidades”. (Baccega, 2003, p. 89)5 Através de uma abordagem integrando História e Literatura dentro do campo do discurso, demonstramos pela História Comparada a nossa hipótese de que, vinculados às questões, por exemplo, de injustiças sociais e geralmente atreladoss às figuras de um “herói”, os manga fazem surgir uma nova cultura de massa com rica inserção de elementos multiculturais, impostos pelo mundo cada vez mais globalizante. As informações que nos chegam cada vez mais céleres acabam por provocar a busca por uma identidade, busca essa fomentada inclusive pelo consumismo gerado pelo capitalismo, não só tangendo o plano material, mas promovendo rupturas nos aspectos emocionais, espirituais e até morais provocados pela insegurança do ser humano face de suas novas ansiedades e expectativas. Não é possível ignorar que, no processo dessas informações que nos chegam de forma rápida e que ao mesmo tempo se esvaem, se tornam evidentes as fragmentações causadoras de algum tipo de dano, pois ocasionam um sentimento de obsolescência6. 5 BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso – história e literatura. São Paulo: Ática, 2003. A designação encontra-se dicionarizada como “estado de que se vai tornando obsoleto ou como desclassificação tecnológica do material industrial, provocada pelo aparecimento mais moderno, melhor adaptado”, aplicados às coisas. A acepção estende-se ao ser humano, quando fatores emocionais são afetados. 6 16 Assim, não se pode ignorar uma formação ideológica em função de uma visão de mundo. É inegável que essa formação ideológica não se desvincula dos recursos existentes nos meios de comunicação com a sua linguagem imagética ou da escrita, como encontrados nos manga. Se essa formação ideológica impõe o que “pensar”, impõe também um “agir”. Essa visão de mundo não é arbitrária, ao contrário, é motivada e resulta dos fatores sociais a que os indivíduos são expostos e a estes ligam-se os conceitos de justiça, concebidos não só sob as leis legalizados pelos homens - a Justiça - mas perpassando este aspecto, sob a própria concepção de justiça que existe em cada indivíduo ou, por extensão, um grupo social, de acordo com as suas formações ideológicas de “pensar” e de “agir”. Nessa perspectiva de duo salientamos que na concepção de Justiça e justiça se inserem também as figuras duo de um justiceiro que “age” e de um outro, que contribui para uma formação ideológica determinada pelos discursos. A literatura, com os seus discursos expressos em diferentes formas de linguagem, torna-se um veículo de interação espelhando, de uma certa maneira, as perspectivas do homem. O manga, mesmo não sendo concebido dentro do cânone da Literatura7, tem sido inegavelmente um gênero com um alcance muito grande em meio ao público, independentemente da faixa etária, envolvendo tanto os adultos quanto as crianças com as suas mais variadas temáticas, que vão desde o shojomanga (para o público jovem feminino) às consideradas pornográficas, hentai8. Não é possível ignorar, pois, o poder e a atração que os manga exercem. As influências de determinadas obras provocam uma espécie de sinestesia, cuja associação de recursos linguísticos, extremamente curtos, com as falas objetivas e sintetizadas aliadas aos recursos imagéticos, acaba por provocar sensações empáticas com os personagens. Os leitores aficionados são conduzidos e seduzidos pelo desenrolar das histórias sobre os mais variados temas. São as verossimilhanças entre a história e a literatura que atuam sobre o ethos do indivíduo leitor. 7 A alusão aos termos literatura em maiúscula, Literatura, e em minúscula literatura objetiva a diferenciação das obras escritas, já consagradas pela tradição e pelo cânone, das obras de entretenimento no caso, o manga. 8 Termo resumido de hentaiseiyoku literalmente “desejo sexual estranho” conforme os significados dos ideogramas 変体性欲, hen 変 estranho, diferente, tai 態 comportamento, sei 性 sexualidade e yoku 欲 desejo. Embora a etimologia do termo ultrapasse a restrição semântica do mesmo, manteremos o termo “pornográfico” conforme encontrado em dicionários. 17 Desse modo, lançando um olhar sobre os papéis dos manga como fenômeno da cultura de massa e associando-os ao mundo globalizado de hoje, chega-se à concepção da questão multicultural neles amplamente presente, o que corrobora o desenvolvimento do nosso raciocínio. Observando o termo multicultural - um dos recursos dos manga - que contribui sobremaneira para o seu sucesso, a princípio entendido como simplesmente “mistura de culturas”, ao concebermos as linguagens como práticas sociais, constatamos que a sua apreensão foge às definições encontradas nesse sentido: surge a necessidade de estender um olhar para as inserções desses elementos multiculturais. Nessa observação, o olhar é direcionado ao multiculturalismo, ou seja, aos elementos multiculturais inseridos nos manga, que não se apresentam estanques, possuem um papel criador de um pathos e, acrescente-se, são motivados9. De acordo com o que salienta Semprini (1999, p. 8) 10, o “multiculturalismo focado como ilustração e encarnação da profunda mutação em curso” reúne questões como as de conflitos pessoais e nacionais ou como as lutas por uma identidade de grupo, as quais sustentam a nossa ideia em acreditarmos numa busca incessante por uma identidade. Encontramos também o multiculturalismo dentro de uma estrutura liberal (Kymlicka, 2005)11, privilegiando essencialmente o respeito às diferenças e, nesse caso, pleiteando a construção de uma sociedade própria, mas cujo excesso pode contribuir para uma prática mais segregadora, na qual as identidades étnicas, expressas muitas vezes por idiomas e hábitos, são postas em questão. De qualquer forma, no mundo atual globalizado, não se pode ignorar a controvérsia que o termo suscita. Destarte, ao considerarmos o termo “multicultural” sob um olhar mais amplo, constatamos que não se trata somente de “mistura de culturas” ou de “diversidade étnica” ou “informações” a que temos acesso, por exemplo, em virtude da rapidez das mídias. Conforme acima mencionado, porém, é essencialmente o enfoque no questionamento e na reflexão sobre os elementos que favorecem uma sociedade mais igualitária. 9 Relação entre o significante e o significado semântico. SEMPRINI, Andréa. Multiculturalismo. Trad. Laureano Pelegrin. Bauru, SP: EDUSC, 1999. 11 KYMLICKA, W. Gendai seiji riron (Filosofia política contemporânea). Trad. Chiba Shin et.al. 3ª.ed. Tokyo: Nihon Keizai Hyôronsha, 2008. 10 18 O discurso de uma sociedade inclusiva gerado por grupos dominantes não contribui para que as diferenças sejam minimizadas, pois, na maioria daqueles, tais diferenças são perpassadas pela ótica econômica. Reiteramos, desse modo, que uma “mistura de culturas” não se resume somente ao pertencimento a uma nacionalidade ou a uma etnia. Este termo suscita um outro: o “inter”. Caso se trate de uma “mistura de culturas”, como trabalhar, então, a questão da interculturalidade? Conforme salienta Canclini (2007 p. 267) 12 “os antagonismos interculturais, que sempre incluem conflitos de poder, convertem-se em conflitos de terror devido à decomposição da ordem liberal que, em outras épocas, continha mais ou menos a multiculturalidade dentro de estruturas nacionais”. Isso mostra que há uma necessidade de refletirmos prioritariamente sobre o que são diferenças e quais seriam as consequências da não aceitação delas. Numa investigação sobre a questão multicultural torna-se imprescindível levarmos em conta as mudanças trazidas pela globalização e isto é atestado pelo sucesso e pela diversidade encontrada nos manga, tornando-se premente buscarmos os seus elementos através de “olhares-plurais”, como proposto pela História Comparada. É através de “olhares-plurais”, conforme o termo indicia, que foi possível debruçarmo-nos sobre os questionamentos do nosso tema. Embora não haja uma linha demarcatória entre a História e a Literatura, a verossimilhança do “real” do leitor ou do ethos do leitor com relação as das obras é recorrente. Ela é provocadora de um “pathos” que culmina em tomadas de posições. Os termos como o nome do personagem central de Death Note, Yagami Light revelariam, através de seus ideogramas 夜神(Deus da noite) e Light (em inglês, claridade), foneticamente transcritos sobre o ideograma 月 (tsuki, lua), um personagem “protetor” e “pacificador” num primeiro momento. Os nomes estrategicamente misturados em japonês e inglês passam ilocucionalmente a possuir os seus sentidos motivados. São recursos de aspectos performativos e constatativos13. Observamos que são estratégias discursivas oriundas dos aspectos multiculturais que o gênero manga traz. Salienta-se, desse modo, o emprego da 12 CANCLINI, Néstor García. Diferentes, desiguais e desconectados. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2007, p. 267. 13 Termos empregados por J.L. Austin. Como constatativo tende apenas a descrever um acontecimento, enquanto como performativo, além de descrever uma certa ação do seu locutor, a sua enunciação realiza essa ação. Cf. DUCROT, Oswald e TODOROV Tzvetan, Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. 3ª.edição. São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 304. 19 linguagem como prática social, ou seja, “...o discurso da existência humana das suas várias possibilidades” (Baccega, 2003, p. 89). O mesmo aplica-se ao personagem central de Vagabond, Musashi: sua fisionomia nada se assemelha a de um oriental, porte másculo, olhos grandes e penetrantes que, de certa forma, acabam por atrair os leitores. Em alguns momentos, os olhos, apesar dos desenhos não serem coloridos, deixam transparecer que são claros como os dos ocidentais, por exemplo, europeus. Assim, tanto os recursos imagéticos quanto os lingüísticos delineiam o olhar da linguagem, conforme explicado, sob a concepção de práticas sociais em que a tríade da retórica se faz presente nos discursos produzidos: logos, ethos, pathos (Figura 1). Figura 1: tríade da retórica na produção de sentidos dos manga Objetivou-se no presente trabalho demonstrar que os manga, como elementos de uma cultura de massa, com os seus recursos multiculturais, indiciam aspectos do multiculturalismo e trazem à tona as questões do conceito de Justiça/justiça-justiceiro, comparando-os com os dados historiográficos acerca de sua prática nos períodos de análise escolhidos. A reflexão exigiu uma apreensão interdisciplinar ou multidisciplinar, de acordo com a diversidade existente em informações, etnias, grupos sociais que (con)vivem na nossa sociedade atual e através da representação das narrativas dos manga. Estes, a princípio uma literatura de entretenimento, exercendo uma forte atração com os seus recursos lingüísticos e imagéticos e os discursos neles inseridos, expõem as necessidades do homem frente aos seus anseios que o mundo moderno estabelece. 20 Desse modo, procuramos responder aos questionamentos que os manga suscitam, efetuando no primeiro capítulo uma exposição das ideias dos estudiosos da área de História Comparada, Neide Theml e Regina Bustamante 14 numa investigação de sociedade e cultura, com as suas designações de “olhares-plurais”, base de toda a nossa reflexão, sendo depois seguidas de Marcel Detienne 15 e Jurgen Kocka16. Para as reflexões oriundas da nossa hipótese, optamos fazer uma abordagem sobre o Multiculturalismo, sem adentrar na controvérsia que o termo suscita, tendo como referência Will Kymlicka, dada a nossa consideração dos elementos multiculturais inseridos nos manga, e a Análise do Discurso da linha francesa no que tange à produção discursiva entendida de acordo com o dialogismo de Bakhtin17 que atua no campo ideológico devido à apreensão da linguagem como prática social que assegura a não-neutralidade de qualquer discurso. Além disso, de acordo com a nossa proposta de trabalho, foi indispensável uma articulação lançando um olhar sobre outros saberes e formulação de conceitos de Justiça/justiça-justiceiro no imaginário traçado pelas duas obras Death Note e Vagabond como reflexos advindos das manifestações do sentido de multiculturalismo. No segundo capítulo fizemos uma exposição histórica dos períodos abordados nas narrativas dos dois manga analisados que, embora contemporâneos, retratam os períodos Edo (1603 -1867) e o Contemporâneo (2003 - 2010). No terceiro capítulo, optamos pelas obras Vagabond e Death Note para as nossas análises em razão de termos considerado que a questão da Justiça estaria melhor exposta e que a análise dos recursos imagéticos presentes nos manga selecionados contribuiria de forma decisiva para uma melhor discussão dos mesmos a partir de uma perspectiva multidisciplinar. Foram analisados os elementos procedentes da nossa hipótese e, sobretudo, sobre as concepções de ustiça/justiçajusticeiro encontrados nos dois manga, caracterizando, assim os “olhares-plurais”18. 14 THEML & BUSTAMANTE, R. M. da C. História Comparada: olhares-plurais. Estudos IberoAmericanos, XXIX(2), 2003, p. 7-22. 15 DETIENNE, Marcel. Comparar o Incomparável. Trad. Ivo Storniolo. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2004. 16 KOCKA, Jürgen. Comparison and beyond. History and theory, v.42, no.1, p. 39-44, feb, 2003. 17 BRAIT, Beth (org.) Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da Unicamp, 1997, p. 98. 18 A especificação dos volumes e a escolha dos corpora de cada manga selecionados estão apresentados no capítulo III. 21 Foi a proposta de trabalho com enfoque em “olhares-plurais” que possiblitou chegarmos de forma conclusiva à constatação de que os manga com os seus discursos polifônicos e articulados aos imagéticos, se inserem como uma “voz” na busca de uma sociedade mais igualitária. Objetivou-se, com isso, enfatizar a necessidade de estudos interdisciplinares ou multidisciplinares, lançando um olhar de investigação aos tempos atuais de globalização, focando na questão da diversidade que se faz presente hoje em todos os segmentos sociais. 22 CAPÍTULO I - “OLHARES PLURAIS” DE COMPARAÇÃO 1.1 Multiculturalismo e Justiça/justiça-justiceiro – Comparáveis possíveis A necessidade de delinearmos um objeto de estudo de forma mais ampla indica que as abordagens devam se dar de forma interdisciplinar ou multidisciplinar. A confluência de informações e olhares sobre o objeto de estudo a partir de vários ângulos proporciona um campo maior de observação a seu respeito. Dessa maneira, ao nos propormos ao desafio de um estudo de âmbito histórico e cultural, tendo como material o manga, operacionalizamos uma abordagem plural que viabilize nosso intento. Os manga empregados como objeto do nosso trabalho, cujo conteúdo envolve aspectos verossímeis da História, possui o seu sucesso correspondente devido, ao nosso ver, a inserção dos elementos multiculturais e as suas diferentes formas de expressão que acabam por conquistar os seus leitores. Tais fatores levaram a efetuar uma abordagem da questão de Justiça/justiça-justiceiro de acordo com o discurso encontrado ao longo das tramas e, também, pelo fato de se tratar de uma primeira manifestação do homem diante das implicações dos “bens simbólicos” 19 . Ou seja, ditada pelo mundo capitalista, a linguagem torna-se uma relação de forças simbólicas20 e que passa a ser legitimada pelo meio social. Para o desenvolvimento do presente trabalho buscamos subsídios teóricometodológicos centralizando-nos nas ideias dos teóricos Marcel Detienne ( 2004) em “Comparar o Incomparável”, Neide Theml e Regina Bustamante (op.cit., 2003), com os “olhares-plurais”, e Jürgen Kocka (2003) através de seu texto “Comparação e além”, no âmbito historiográfico de perspectiva comparativa e, no âmbito discursivo, com os conceitos teóricos da linha francesa da Análise de Discurso como Mikhail Mikhailovitch (Bakhtin) (1997) e Oswald Ducrot21 que focam, respectivamente, sobre 19 Termo de Pierre Boudieu. Informações, conhecimenos, música, linguagem, livros, obras de arte, teatro. Apud SOARES, Magda. Linguagem e escola – uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1996, p. 55. 20 Termo de Pierre Bourdieu Uma relação de comunicação lingüística não é uma operação de codificação-decodificação e sim uma relação de força simbólica determinada pela estrutura do grupo social dominante. Apud Soares (op.cit., p.55) 21 DUCROT, Oswald. Pressupostos e subentendidos: A hipótese de uma semântica lingüística. In: O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes, 1987. Cf. CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004, p. 384. 23 o dialogismo dos sentidos produzidos, demonstrando, por sua vez, sua polifonia. Deste modo, o discurso de um enunciado mantém relações com outro e que é expresso sob múltiplas formas de acordo com as marcas dos seus enunciadores. No tocante ao multiculturalismo baseamo-nos nas idéias de Kymlicka (2008), que se concentra nas mudanças e da mesma forma na necessidade também de uma reflexão sobre as diferenças. A fim de viabilizarmos a comparação de nossas fontes seguimos, em primeiro lugar, as idéias de Detienne (2003), que propõe haver uma categorização de estudos para a construção de comparáveis e, desta forma, chegar ao que inicialmente parece ser incomparável. De alguma maneira, num primeiro momento, talvez fosse esse o caso dos nossos objetos de comparação, pois é indispensável um enfoque histórico das duas obras analisadas, enfoque esse de períodos distintos. Detienne indaga sobre o que é um lugar no que a ideia de “fundar”, por exemplo, se insere, pois o termo conduz ao de “territorizar”. E uma das respostas que Detienne mantem sobre o significado de lugar é a de que há “lugares que falam”, outros que “fazem um sinal”, “alguns são ventres a engravidar” ou “olhos que choram” (op.cit., 2003, p. 53). Tais colocações fizeram optar por trabalharmos discursivamente os termos das categorizações de “fundar, fundação, fundador” 22 de Detienne (op.cit., p.49-50) vinculadas às questões de Justiça/justiça, pois o ato de “fundação” simboliza uma primeira manifestação que culminaria no aspecto de “justiceiro” do homem diante das situações adversas que o doxa23 faz surgir. Tem-se, nesse caso, o “justiceiro” com os seus papéis perfomativos de um “agir” de forma ativa ou passiva. Desse modo, destacando o “fundar” como a primeira manifestação de um ethos frente a um sistema e, entendendo que se trata do ponto inicial dos questionamentos que requerem um olhar mais amplo, que abarcam enfoques afins, somos conduzidos a considerar os aspectos multiculturais que são encontrados nos manga. Em seguida, os elementos (co)relacionados, diante das primeiras manifestações do ethos, evoluem para os correlatos de “fundação”, que trata da 22 A proposta do historiador Detienne no presente trabalho terá uma abordagem discursiva sendo, assim, embora motivado, distinto daquele do classicista francês. 23 “Opinião, o que se diz das coisas ou das pessoas, corresponde a um conjunto de representações socialmente predominantes cuja verdade é incerta...” Cf. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004, p. 176. 24 “anatomização” dos questionamentos encontrados no sistema pelo indivíduo no momento do ato de “fundar”, dando início aos primeiros questionamentos em direção a um doxa. Esse aspecto é decorrente do fato de considerarmos a linguagem como parte dos “bens simbólicos” acima mencionados ou, numa apreensão como práticas sociais, já que, através de um “olhar-plural”, os questionamentos surgidos no ato de “fundar”,começam a tomar um formato. Deste modo, o pensamento interpelativo de valores contribuirá para o posicionamento do ethos, em que o pathos se torna inerente, culminando em geral nos aspectos de Justiça/justiça -justiceiro. Reiteramos que nosso estudo se prende à ótica de “olhares-plurais”, que permitem, através de articulações interdisciplinares ou multidisciplinares, uma apreensão mais precisa dos objetos em análise, levando ao entendimento das relações de práticas sociais. Conforme afirma Baccega,, A ideologia só existe na prática social. Ela se constitui num sistema de valores, pleno de representações (grifo nosso), de imagens – modo de ver o mundo, modo de ver a sociedade, modo que o homem se vê a si e aos outros. (op.cit., 2003:34) As apreensões dos termos adquirem um sentido dual dada a necessidade de um olhar da linguagem não somente pelo aspecto decodificador, mas também pelo que esses instrumentos, que são dinâmicos, produzem. Como dito, o desafio de um estudo de âmbito histórico e cultural, em nosso caso nos manga, conduz-nos ao multiculturalismo como um importante elemento de análise, sem o qual não teríamos o respaldo necessário para visualizarmos, por exemplo, as razões do êxito desse tipo de literatura. Estabelecer a(s) categoria(s) de um objeto de estudo envolvendo as temáticas culturais significa, conforme a nossa proposta do trabalho, efetuar olhares múltiplos ao objeto proposto, tornando inevitável, nesse sentido, que trabalhemos de forma mais abrangente com os elementos (co)relacionados. Como “fundador”, assim, teríamos o ethos “descobridor” ou um ethos moldado sob a ótica de “olhares plurais” de investigação, em que o próprio termo representaria discursivamente, como vimos asseverando, toda a idéia do presente 25 trabalho, associado às questões das diferenças que o multiculturalismo enfoca e aos elementos alfa24. Optou-se, inclusive, por efetuar as discussões que fogem a “uma categoria”, e para tanto lançamos mão de categorias-elos, dadas as relações que essas categorias estabelecem entre si. A denominação “categoria” possui um sentido restrito, estanque, não questionando, segundo as nossas apreensões, as inserções subjacentes dos elementos que a ela são ligados. O próprio Detienne expõe que o objeto de uma investigação é, ao mesmo tempo, “singular e plural”25 (op.cit., 2000, p. 47-48), corroborando nossa proposta de trabalho. A investigação desta tese, cujo objeto é a representação dos conceitos de justiça/justiceiro dentro do espaço-tempo dos manga selecionados, Vagabond e Death Note, abordou, paralelamente, a categoria do diferente, dada a inserção dos elementos multiculturais, para que as suas representações pudessem ser discutidas. Apesar do fato de que os dois manga, fontes primárias da pesquisa, serem contemporâneos, a abordagem do tempo da narrativa é distinta. Daí decorre a importância do enfoque dos aspectos multiculturais neles inseridos e que tornam o leitor mais próximo da trama textual. As questões multiculturais remetem-nos, hoje, ao diferente, ao diferente nas relações interculturais, ao diferente provocador de injustiças, ao diferente nas apreensões distintas do que é a Justiça, ao diferente nas concepções individuais de justiça, ao diferente provocador de rupturas, o que nos conduz impreterivelmente a uma reflexão sobre as diferenças que Kymlicka (2008) enfatiza, ou seja, ao diferente que, ocasionalmente, conduz à exclusão. Kymlicka (op. cit., ,2008, p. 476) pondera que a sociedade atual se destaca pela farta presença dos chamados elementos multiculturais, que nos conduzem a refletir acerca do chamado multiculturalismo. Todavia, o que também se ressalta é que esses elementos se baseiam no modelo de “pessoas saudáveis” ou “pessoas normais” (kenjôsha) 「 健 常 者 」 sob todos os aspectos, ou seja, brancos, heterossexuais, que seguem modelos estabelecidos até então. Os que fogem a esse enquadramento sofrem muitas vezes algum tipo de afastamento ou exclusão 24 Por corresponder à primeira letra do alfabeto grego, é empregada como representação simbólica de elementos contíguos, por vezes não formais, que se encontram inseridos. Indica o começo de algo. In: Dicionário Eletrônico Sharp, Dicionário de verbetes japoneses, verbete alfa, designação item 4. 25 Grifo nosso. 26 daquele meio. Entretanto, de acordo com Kymlicka, como citizenships26 que incluem as tendências do mundo em geral no questionamento dos programas sociais, a coexistência de povos de etnias diferentes, além do acesso às informações oriundas da globalização destaca uma necessidade de um olhar reflexivo sobre as novas identidades em formação e que os considerados “diferentes” sejam respeitados e aceitos de forma inclusiva (op.cit., p. 476). A ideia é compartilhada por Burity27, ao afirmar que existem questionamentos quanto ao sentido de multiculturalismo e que o termo suscita falar do manejo da diferença em nossas sociedades. O autor ainda aponta para as complexidades do termo que culminam em apreensões divergentes quanto à aplicação, pois remetem a um conjunto de aspectos ligados entre si, mas que carregam marca de uma imprecisão 28 que vai além do trato com a diversidade constatada empiricamente, como o reconhecimento da não-homogeneidade étnica e cultura das sociedades ou a não-integração dos grupos. Ao objetivar lançar “olhares-plurais” buscaremos inclusive um olhar na Pragmática29, no que concerne às características da utilização da linguagem, como as motivações psicológicas dos falantes, reações dos interlocutores, tipos socializados da fala, etc, em oposição aos processos formais da construção lingüística sintática ou semântica. Alguns aspectos empíricos do uso da linguagem já nos indicariam um resultado na minimização dos embates, oriundos esses inclusive da diversidade implícita da chamada globalização e das diferenças destacadas do multiculturalismo. Uma análise, nesse sentido, desencadeia uma tomada de posição conforme o que afirmamos no início no tocante à relação entre História e Literatura30, mas que não são somente aquelas de um dado momento histórico, pois a História é continuamente dinâmica. Destarte, a menção à Pragmática justifica-se com o intuito de desvelar sentidos veiculados pela linguagem a partir da constatação de que não há uma verdade absoluta. Os elementos do cotidiano ou as relações das práticas sociais expõem as complexidades inerentes e o conhecimento passa a ter a necessidade de 26 Termo empregado por Kymlicka na acepção de cidadão/cidadania e mantido como tal em inglês. BURITY, Joanildo. Globalização e identidade: desafios do multiculturalismo. Fundação Joaquim Nabuco. Março/2001. In: http://www.fundaj.gov.br/tpd/107.html, p.2. Acesso em 11/10/2008. 28 Termo empregado por Burity. Que é contestado, incerto. 29 DUBOIS, Jean et alii. Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 480. 30 Vide Introdução. 27 27 ser articulado e aplicado. Para que isso ocorra é fundamental, num dado momento, lançar-nos no interior do processo histórico, a fim de responder a algumas indagações suscitadas por termos, em nosso caso de investigação, como Justiça/justiça. A inserção do pesquisador na área historiográfica possibilita a aplicação daquelas descobertas somente acessíveis através dos estudos interdisciplinares. Tais olhares possuem respaldo em Kocka ( 2003), quando este menciona que a busca por determinados objetivos intelectuais adquire formas heurísticas que conduzem não só ao levantamento de fatos, como também a descoberta de elementos correlacionados, os quais, por vezes, podem passar despercebidos. Como forma descritiva, Kocka (2003) menciona a necessidade da exposição dos elementos e de torná-los objeto de uma reflexão como forma analítica para se apurar os questionamentos e responder pragmaticamente ao estranhamento, i.e., lançar sempre um olhar além. Um exemplo do que vimos desenvolvendo é obtido em Kawai (2010, p. 124)31. Sabe-se que no início do Período Edo os samurai que haviam lutado por muito tempo no período que antecedeu à Era Edo, não conseguindo se habituar a falta de lutas, provocaram uma série de crimes que tornou aquela região de Edo insegura. Igualmente, um grupo de andarilhos malfeitores com vestimentas extravagantes começava a chegar à cidade e a provocar incidentes. Estes eram chamados de kabukimono numa alusão aos personagens do teatro kabuki32 (teatro tradicional) Nesse processo, não foram raros aqueles que, por puro prazer, cometiam assassinatos. Alguns, para testar o corte de suas espadas, passaram a matar de forma indiscriminada e, ainda, segundo Kawai, havia até apostas de quem conseguiria “cortar” 切る, ou seja, matar, com o objetivo de se atingir o recorde de 100 vítimas (2010, p. 125). Não precisava haver motivos para se cometer os crimes, sendo esses perpetrados em qualquer lugar ou hora, contra homens ou mulheres e até em nome da “arte marcial” bujutsu 31 「武術」33. KAWAI, Atsushi. Edono osabaki – odorokino hôritsu to saiban (O julgamento do período Edo – as leis e julgamentos espantosos). Tokyo,: Kadokawa Shuppan, 2010. 32 Arte teatral que envolve canto (ka 歌), dança (bu 舞) e técnica (ki 伎), representada por homens. 33 Bu - 武 – militar e jutsu 術 – técnica. 28 O confucionismo, que então começara a prosperar, aparentemente não mediava os conflitos e até mesmo impunha o “respeito ao superior”, demonstrando apenas a fragilidade de uma vida humana, pois como afirma Kawai (op.cit, p.125) “a vida humana de tão leve voaria num simples sopro” [hito no inochinadowa fukeba tobuyôna karusadatta”]34 Se o confucionismo não permitia que se coibissem as arbitrariedades, por outro lado percebe-se que o emprego da ideologia presente de “respeito ao superior” trazia um discurso encoberto do poder, em que, conforme Baccega (2003, p. .6): “... as palavras têm vida. Vestem-se de significados. Mascaram-se... Dançam conforme a música”, já que para os samurai as mortes seriam, também, em nome da “arte marcial” (grifo nosso). Eventos de violência arbitrária, como acima mencionados, presentes na Era Edo, comparados aos existentes nos tempos modernos tais como o bulling, embora com maiores ou menores diferenças ou maiores e menores intensidades, tendem em nosso entendimento a se assemelhar. São aspectos em que questões como a da identidade não receberiam tanta consideração devido à formação de hibridismos, sociais, culturais, informativos, trazidos pelas mudanças galopantes e convencionados pela globalização. Em Literatura, quando os discursos apresentam verossimilhanças profundas com um dado evento histórico, percebe-se que naqueles são construídas formas indiretas deste último, muitas vezes ocultando questões como a do poder que encobririam a contribuição de outras culturas ou desconsideração às mudanças, culminando muitas vezes em dominação e manipulação. Por manipulação entende-se a proposta de Dijk (2008, p. 234) 35 de uma “prática comunicativa e interacional na qual um manipulador exerce controle sobre outras pessoas, normalmente contra a vontade e interesses delas”. A manipulação, nesse sentido, abarca relações não só de poder, mas de “dominação”, salienta Dijk. 34 「人の命などは吹けばとぶような軽さだった」 DIJK, Teun A. van et alii. (Org.) Discurso e poder. Judith Hoffnagel, Karina Falcone (org.). São Paulo: Contexto, 2008. 35 29 Nesse sentido, endossando o nosso raciocínio, Baccega (2004, p. 6) afirma que: As palavras têm vida. Vestem-se de significados. Mascaram-se. Contagiamse com as outras palavras próximas. “Dançam conforme a música”, tocada no salão de baile onde estão. O salão é o discurso e é aí que elas cristalizam momentaneamente uma de suas máscaras. Desse modo, História e Literatura encontram-se atreladas por um processo específico, também, discursivo, pois (...) os discursos literários estão presos às séries literárias da sociedade em que se instauram e os discursos históricos às séries do estudo da história daquela sociedade. ...Ou seja, à série a que pertence um ou outro discurso vai exercer um importante papel na maneira que se dará sua leitura. (BACCEGA, op.cit., p.81) Verifica-se, pois, a necessidade de uma articulação de diferentes enfoques e a acuidade de uma reflexão sobre o que o elemento do multiculturalismo expõe, como nos casos em que os direitos das minorias sejam tratados de forma inclusiva. Kymlicka (2008) defende a necessidade de participação da população nas atividades em geral de forma plena e imparcial, sem distinção de raça ou credo. Trata-se de uma busca por uma identidade cultural inserida nos tempos atuais, como já discutido por Stuart Hall (2006, p.7)36 acerca dos efeitos das mudanças e os reflexos da dita “crise de identidade”. A “crise de identidade” que Hall pondera seria, num aspecto, uma busca incessante do ethos-homem por um equilíbrio interno e sem uma formatação. Tratase, assim, de algo amorfo trazido pelos conceitos de “globalização”, “bens multiculturais” ou “bens simbólicos”, a que o homem está sujeito mais intensamente hoje em dia. Stuart questiona sobre a transformação que a modernidade tem trazido e indaga se não seria a própria modernidade que estaria sendo transformada. A idéia reforça o que dissemos na Introdução sobre o ato de “fundar” que começa a operar no ethos-homem contemporâneo e que refletiria numa tomada de posição. De fato, não podemos deixar de ignorar o resultado ou o efeito da influência desses elementos, pois o equilíbrio é afetado. Um exemplo de ocorrência contemporânea de que se tem notícias, seriam os casos de “bulling”, que deixam entrever uma forma de expressão de um 36 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomas Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11ª.edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. 30 “inconformismo” ou uma “insatisfação” que se expressa num contexto social. Não questionamos se tal fator é correto ou não, mesmo porque, através do olhar da Pragmática, surgiria a pergunta, o que seria o “correto”? O exemplo serve para mostrar uma formação de um doxa, conforme dissemos, e um “justiceiro” assumindo papel performativo. Esse olhar é ilustrado em Death Note. O personagem Light, a princípio, não teria nenhuma razão por se encontrar entediado, como demonstrado no início da sua história e filho de pais socialmente perfeitos - o pai, policial e a mãe, dona de casa, que cuida dos afazeres do lar e de todos, de modo que nada lhes falte. Seria um modelo de família estruturada. Todavia, falta-lhe algo: conforme veremos nas análises, Light entra em convergência com o imaginário “Deus da morte”, pois este também encontra-se entendiado. Essa situação pacata e equilibrada, que aparentemente não apresenta tensões em seu interior, conduz o protagonista a um tipo de “inconformismo” com a vida. O cotidiano torna-se monótono, como será visto na análise dos corpora no capitulo III. Exposto à uma sociedade de “benrisa” e “yutakasa” (de praticidades e de abundância das coisas), estes valores acabam por influir no íntimo do personagem, sem que este conscientemente disso se aperceba. Se, numa escala menor, podemos citar as manifestações das contingências humanas que seriam suficientes para provocar rupturas de relacionamentos, por um lado, como um caso de bulling ou manifestação psicopática ou mesmo de casos de depressão, cujo trauma representaria um perigo ao equilíbrio necessário, pois os aspectos psicológicos estariam afetados, por outro, no caso específico do Japão, não podemos minorar as ocorrências de crimes brutais decorrentes desses acontecimentos violentos tanto no espaço físico quanto mental. Segundo Serizawa 37 , no Japão, os requintes de crueldades nos delitos cometidos por portadores de doenças mentais, por exemplo, são inúmeros. Não são raras as pessoas que mantém as suas vidas “normais” e, repentinamente, adotam comportamentos que chocam a opinião pública. O autor questiona as instituições que tratam desses doentes e o sistema judicial pelo fato de não terem sido tomadas a priori medidas preventivas. 37 SERIZAWA, Kazuya. Kyôki to hanzai – naze Nihonwa sekaichino seishinbyô kokka ni nattanoka. (A loucura e crime – por que o Japão se tornou uma nação mundial de psicopatas). Tokyo: Kôdansha, 2005. 31 Não são poucos também os casos de hikikomori 38 (doenças psicológicas), provocados por vários motivos, mas basicamente atribuídos à vida moderna dos dias de hoje. Por conseguinte, reiteramos o enfoque também do “diferente” para o nosso presente estudo, pois o mesmo culmina nas questões de Justiça/justiça e de justiceiro, inclusive porque as transformações oriundas da chamada globalização, com misturas de elementos multiculturais conforme vimos expondo, externam os aspectos variados do multiculturalismo e que, com suas diferentes manifestações influenciam na concepção de Justiça/justiça. Entendemos que a exposição dos diferentes e das diferenças deveria ocorrer dentro de um equilíbrio, o qual envolveria, entre outros, os aspectos psicológico e emocional e o acesso devido, em qualidade e quantidade, as informações que permitam um reconhecimento e reflexão que a chamada “vida moderna” não nos concede. Sente-se, no dizer da Van Dijk, uma manipulação discursiva da cognição social em que os receptores são conduzidos a apreenderem um evento conforme um modelo representativo (2008, p. 245). Desta forma, cremos que os manga efetuam um elo ou uma chamada para o que começa a ser perdido e para o novo. O imaginário de suas tramas atua no leitor como uma forma de empatia ou ânsia por uma nova identidade, sem que esta, contudo, ainda esteja devidamente delineada. Podemos citar como exemplo em Vagabond o personagem central Musashi, o qual aspira a uma perfeição como espadachim e ao mesmo tempo a elevação espiritural. Death Note também não é diferente, mas em outros moldes: Light sentia falta de alguma coisa, conforme a trama demonstra desde o início, ao apresentar o personagem central entediado. Este almajeva algo “amorfo”, como Musashi, na sua busca pela “ascensão espiritual”. Pode-se dizer então que os manga, como uma nova forma de cultura de massa, possibilitam aos leitores aficcionados as suas catarses, pois o pathos é obtido e o ethos começa a crescer, sendo daí decorrentes, por exemplo, os aspectos descritos em “fundar” e “fundação”, expressos anteriormente. O multiculturalismo deve ser apreendido como fruto da intensa globalização principalmente através da internet, obrigando os seres humanos a estarem sempre 38 Do verbo hikikomoru, “fechar-se em si”. Um fenômeno que começa a crescer no meio de crianças que são alvos de bulling, entre outras causas, e de idosos que ficam em suas casas sem contato com outras pessoas. 32 atentos para não se tornarem “diferentes, desiguais e desconectados” (CANCLINI, op.cit., p. 16). No entanto, se a internet proporciona conhecimentos diversos, podemos observar também que outros conhecimentos são do mesmo modo muito veiculados e não podemos deixar de reconhecer que ambos acabam vinculando as pessoas aos seus computadores. Ocasiona-se, daí, uma interação efetivada e possível apenas no espaço virtual do homem com a máquina. As mudanças derivadas do processo de globalização (HONDA et.alii, 2011, SAKAI, 2011, AMAKAWA, 2011, GROFF & PAGEL, 2009) também levam os homens a se tornarem mais apreensivos, conduzindo-os, via de regra, ao consumo, mola-mestra do sistema capitalista. Esse sistema começa igualmente a operar mudanças no ser humano com a crescente necessidade deste último de se lançar aos desafios da vida do consumo. São os aspectos multiculturais, sob os paradigmas econômicos, que se inserem na sociedade dita moderna em que as minorias ainda são levadas a seguir o modelo das maiorias e sem que se permita ter um espaço para um possível questionamento. Em meio a uma intensa vida de transformações, o homem começa a sentir a necessidade de busca, uma busca amorfa, conforme mencionado, que lhe traga algum ponto de equilíbrio. Podemos observar essa questão também no caso da proliferação de seitas, o que demonstra, de alguma forma, uma eterna procura do homem por si mesmo. Neste processo, não se pode ignorar as rupturas de diversas ordens - morais, de relacionamentos, psicológicos, emocionais - que podem ocorrer em meio a crescente vinculação aos valores materiais, uma das vertentes da globalização, e que enfatiza o consumismo dentro das sociedades. Inegável é o contraponto de valores como ética ou filosofia que passam a ser encobertas, pois entra em cena a fragmentação conduzida pelo obsoletismo conforme desenvolvido na página 15. Registra-se, no caso japonês, a existência do termo kakusa shakai, 「格差社 会」 (desigualdade social) que começa a surgir desde a Era Taishô (1912-1926) como conseqüência da modernização pós Era Meiji (1868-1912) e a sua intensa introdução de elementos ocidentais. 33 A rígida divisão de classes do Período Edo é abolida na Era Meiji, mantendose, entretanto, uma distinção social entre a classe de aristocratas kazoku, 「華族」39, formada pela nobreza, o shizoku, 「士族」40, descendentes de samurai, e heimin 「平民」, o “povo comum”, conforme os seus ideogramas41. Segundo Uchihashi 42 , a situação assemelha-se aos dias de hoje, quando inúmeros empresários ou políticos atribuem a situação de pobreza à culpa individual. Entretanto, conforme Uchihashi, dos fins da Era Meiji ao início da Era Taishô nascia uma nova camada social, designada saimin, 「細民」43, que era a designação dada às pessoas que viviam numa situação de extrema pobreza. As razões dessa nomeação foram, sem dúvida, atribuídas ao capitalismo. Assim que a Era Meiji começa, as medidas econômicas, por exemplo, influenciadas pela industrialização que opôs os capitalistas, de um lado, aos trabalhadores, do outro, acabam por contribuir largamente para o estabelecimento de diferenças. O que Uchihashi questiona nesse processo é se a culpa pela pobreza caberia à pessoa, em particular, que não consegue administrar o seu lado econômico, ou ao Estado, ou seja, o sistema político de um governo. Verifica-se, assim, que sob o título de “modernização” se observam também medidas segregadoras que passam a enfatizar o consumismo de uma sociedade capitalista e que nem sempre o homem consegue acompanhar. Não é possível ignorar que, embora o discurso de que a estratificação da Era Edo tenha sido abolida na Era Meiji, as classes criadas, conforme exposto acima, de shizoku ou shômin, os descendentes de samurai ou o povo comum, contribuem para a permanência das distinções sociais do período Edo. Além disso, não obstante o surgimento dessas classes incluindo-se nele um grupo minoritário designado de saimin, foram conferidos também aos originários dos nobres kazoku, títulos semelhantes aos dos modelos europeus kô, 公 39 kô, 候 haku, 伯 e dan, 男44 . “Classe de flores”, criada pelo imperador Meiji. “Classe originária de guerreiros”. Classe social criada pelo imperador Meiji. 41 “Classe da população comum” criada em 1869, pelo imperador Meiji, que engloba a população de agricultores, artesãos e comerciantes da estratificação social da era Edo. 42 UCHIHASHI, Katsuto. Hinkon, kokka, Nihon no shinsô (Pobreza, Nação, Consciência Japonesa). In: NHK, Rekishiwa nemuranai, edição fevereiro-março. 2010, p.108-116. 43 Do ideograma 細 sai, pequeno, modesto, e 民 povo, população, aqueles que vivem sob um sistema político de um governo. Considerando o aspecto diacrônico, o termo pode ser designado de “estar sob o domínio de uma autoridade” 44 Títulos de nobreza originários da China traduzidos sob o modelo europeu: kô, 公 público, (duque), kô, 候 estação de ano (marquês), haku,伯(conde) , shi 子 (visconde) e dan, 男(barão). 40 34 Observa-se com isso que, começando com as classes que detinham o poder econômico ou político, tanto a dos descendentes da nobreza quanto a dos comerciantes, que enfatizavam, por um lado, já o aspecto capitalista representativo de uma era contemporânea, de outro, o aspecto feudal45 mostrando que, embora em moldes diferentes, as estratificações sociais da Era Edo permaneceram. “Olhares-plurais”, então, significam efetuar uma crítica a partir dos conhecimentos e refletir também sobre si mesmo, articulando-os para que possa haver um contraponto de equilíbrio. Tal idéia pode ser respaldada, remetendo-nos ao dialogismo do Bakhtin, conforme desenvolvido na Introdução cujo conceito abarca toda a relação discursiva aqui empregada, apreendendo-se seu sentido na sua composição: dia – prefixo grego indicador de movimento, “através de” logoi – os vocábulos, as palavras ismo – sufixo que denota, entre outros significados, um modo de proceder ou de pensar. Dessa interpretação, podemos apreender que se trata de algo que é expresso por meio de um jogo de palavras que traz subjacente toda uma produção de sentidos. Uma outra designação pode ser empregada paralelamente ao termo dialogismo: a teoria polifônica de Ducrot (1987). A diferença desta para aquela é que esta é empregada numa alusão aos efeitos de sentido que se forma a partir de determinados procedimentos discursivos. A linguagem, nesse aspecto, é dialógica e por sua vez pode se apresentar polifonicamente, ou seja, as “vozes” passam a emitir uma determinada significação e que, por vezes, não é o que se expressa formalmente. Foram pelos vieses metodológicos acima descritos que nosso raciocínio dos objetivos de pesquisa foram balizados. Os mesmos, além de uma exposição das idéias centrais dos teóricos, permitiram-nos refletir melhor as mudanças do mundo 45 O termo feudal é controverso, pois remete aos signficados da História da Europa. Entretanto, segundo Yamashiro (op. cit.,1982), as instituições políticas desenvolvidas pela aristocracia militar nos séculos XII e XIII são semelhantes àquelas da Europa Feudal e John Whitney Hall em Japan: from pre history to modern times (1978) afirma que o “problema é mais semântico e de definição” (apud Yamashiro, p. 96). Assim, prosseguiremos com o emprego “feudal”, destacando que em nosso trabalho o termo se refere exclusivamente ao Japão e segue as traduções encontradas em dicionários. 35 atual com alguns registros de elementos pragmáticos e, consequentemente, destacar as diferenças e atrelando-as ao significado de justiça e justiceiro. No tocante à Justiça, entendemo-la como o conjunto de leis normativas e prescritivas reguladoras do comportamento humano e de autoria do próprio homem 46 . Nosso estudo, embora tenha abordado algumas características que serviram de base para as análises, basicamente recorre ao termo justiça como a virtude 47 moral 48 que consiste no reconhecimento que devemos dar ao direito do outro49 e que deveria fazer parte inerente do convívio humano. Não se pode ignorar a vinculação existente entre a Justiça e a justiça 50que se instaura no homem ou com o justiceiro, aquele que age, conforme mencionado anteriormente. É certo que as leis do homem exercem um papel regulador dentro das sociedades, assim sendo, numa primeira instância, talvez, não houvesse qualquer elemento que provocasse, por exemplo, algum questionamento ou inquietação já que a Justiça, como a lei reguladora, estaria amparando a sociedade. Entretanto, é a justiça, um elemento amorfo, que começa a se instaurar no ethoshomem, e se trata, normalmente, de uma das primeiras manifestações que acomete o homem. Essa manifestação, ora oriunda dos elementos que o multiculturalismo foca, ou seja, as diferenças que excluem, ora no ato de “fundar” de alguma ocorrência até mesmo das questões das contingências humanas, passa a afetar o equilíbrio necessário. Como se observará nas análises a serem efetuadas, os protagonistas, tanto Musashi quanto Light foram acometidos por sentimentos de “injustiças” ou de questionamentos que os fazem adentrar a fase do “fundar”, à procura de algo que lhes pudessem dar o equilíbrio necessário e os fizessem sentir seguros, dando sentido às suas vidas. São manifestações dos dois personagens, cada um ao seu modo, do doxa que começa a operar. Isso os conduziu a sair em busca de algo, ora 46 “Hume questiona a natureza da necessidade expressa pela lei natural, considerando que seu caráter necessário resulta apenas de nossa forma de perceber as regularidades do real, que projetando sobre a própria realidade acaba por atribuir a esta um caráter de necessidade que, no entanto, não pode ser encontrado na realidade como tal” (apud JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3ª. edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p.160). 47 No sentido ético, uma qualidade positiva do indivíduo que faz com este aja de forma a fazer o bem para si e para os outros. Cf. JAPIASSÚ & MARCONDES, Dicionário básico de filosofia. 1996, p. 271. 48 No sentido de “respeito aos costumes, valores e normas de conduta específicos de uma sociedade ou cultura”. Cf. JAPIASSÚ e MARCONDES (op.cit., p.187) 49 JAPIASSÚ e MARCONDES, op.cit., p. 152. 50 Como justiça, em minúscula, estamos focando no elemento que se cria no ato de “fundar”, ou seja, o que vai começar a influir na formação do ethos-homem. 36 entendido como “realização espiritual” de Musashi, ora demonstrado como o “fazer justiça” de Light numa busca de uma estabilidade e um sentido de vida. Se fatores históricos, ainda que verossímeis ou não, ou culturais, exercem uma força para que nos debrucemos em sua discussão, os recursos lingüísticos empregados, ou conforme ditos, os discursos produzidos dentro das tramas também merecem um destaque, por se encontrarem todos em estreita vinculação. O emprego das onomatopeias em manga é algo recorrente aos leitores que acabam por internalizar os seus usos, dada a articulação com a imagem veiculada. Contudo, é preciso que se foque também a intencionalidade desses recursos, conforme se verá nas análises dos dois manga dentro do presente trabalho. Desde a Antiguidade, a língua tem servido inclusive para estabelecer uma relação de hegemonia, haja vista, por exemplo, o discurso judiciário de onde se origina a Retórica. Segundo Aristóteles, a quem se deve o tratado de argumentação, as questões do domínio da razão, das paixões ou da retórica são os instrumentos que fundamentam um uso lingüístico entre os indivíduos e que culminam numa tentativa de conduzir os topoi51 de um ao outro. “A língua, através dos seus discursos produzidos, passa a ser um lugar da construção de identidades, em cujo interior se passa a questão de uma “negociação”. A idéia que norteia a discursividade pode ser sintetizada na tríade da Retórica: - as de ordem afetiva: ethos e o pathos - as de ordem racional: logos correspondendo o ethos a um Eu, uma instituição-enunciador que vai suscitar no seu interlocutor alguma emoção que é o pathos, este por sua vez, pode culminar numa tomada de posição de acordo com o logos, meio pelo qual o enunciador se serve para utilizar o seu intento. Assim, logos é o lugar do discurso, das palavras, dos argumentos, enfim, o instrumento 52 gerador de sentidos Essas discussões encontram um destaque no dizer de Magda Soares (op.cit., p. 60), que afirma: ... que a unificação do mercado cultural e lingüístico resulta da adoção socialmente generalizada de critérios de avaliação que conferem legitimidade aos bens simbólicos – valores, usos, costumes, linguagem, obras artísticas e literárias etc. - próprios dos grupos econômica e socialmente dominantes; e que essa unificação transforma em capital cultural e linguístico a cultura e a linguagem desses grupos.” 51 Princípio argumentativo que assegura a passagem de um argumento a uma conclusão. Cf. Dicionário de lingüística da enunciação. São Paulo: Contexto, 2009, p. 232 52 YAMADA, Eli A. Os advérbios da língua japonesa: um olhar pragmático-enunciativo. São Paulo: USP, 2003, p. 42. [Dissertação de mestrado.] 37 As discussões sobre diferenças de uma sociedade de consumo e por que não dizer também das diferenças oriundas expressas do multiculturalismo evidenciam a necessidade de se olhar também o processo histórico. A abertura do Japão, após cerca de 250 anos de isolamento da Era Edo, durante a segunda metade do século XIX, devido ao boom das importações proporcionou um modelo econômico que teve como lema oitsuke, ”alcançar”, oitsuke, “ultrapassar” conforme exposto na Introdução. Retornando às ideias de Kocka (op. cit., 2003) sobre um estudo heurístico podemos questionar como se deu a transição das duas Eras. De um lado tinha-se a população no seu habitus53 de uma sociedade oprimida pelos Tokugawa e, de outro, a chegada de novos tempos, novos costumes, sem que houvesse uma possibilidade de se refletir a respeito. Não foi possível encontrar testemunhos escritos, por exemplo, de como a população teria recebido a chegada dos novos tempos e seus efeitos psicológicos. Afinal, foram cerca de 250 anos de isolamento. No processo, observa-se mais uma vez a hegemonização das medidas, ainda que sob a égide de uma “abertura” ou de “modernização”. Não se sabe exatamente quais questões de choques culturais teriam sido por elas provocadas. A própria chegada da chamada Restauração Meiji foi resultado das pressões econômicas da já desgastada ou desestabilizada Era Tokugawa. Embora o Japão da Era Meiji passasse por reformas calcadas em modelos estrangeiros, os problemas trazidos por descontentamentos do povo evidenciaram que a fase de transição não ocorrera de forma tão natural e tranquila. O modo como a população absorveu todas essas mudanças faz-nos retornar a Soares (1996, p. 55-56) e sua discussão sobre a ideologia de bens simbólicos de Bourdieu. De acordo com esta, no universo social, além de bens materiais como mercadorias e serviços, circulam as informações, conhecimentos que se organizam através da troca de bens, materiais ou simbólicos, que opõem possuidores a possuídos, dominantes a dominados, caracterizando uma relação de força simbólica. Acreditamos ter demonstrado e justificado até aqui as nossas concepções sobre as propostas do trabalho e sobre as metodologias adotadas, as quais podem ser sintetizadas, novamente, pela tríade da retórica (Figura 2), conforme já explicitada na Introdução: 53 http://www.portaleducacao.com.br/psicologia/artigos/42113/o-conceito-de-habitus 14/06/2013. Acesso em: 38 Figura 2: A relação Cultura de Massa, História Comparada e Multiculturalismo Os manga como elemento de cultura de massa, ou seja, de amplo conhecimento entre o conjunto de uma população e que são apreciados/consumidos por esta última, são dotados da presença de um ethos e revelados pelo logos da Histórica Comparada que atingem o pathos do multiculturalismo, pois culminam na relação minoria- maioria dos grupos sociais e fomentam uma tomada de posição. Desse modo, a relação do tempo histórico com a obra literária contou como linha investigativa central a História Comparada, com as idéias de Bustamante (2003), Kocka (2003) e Detienne (2004), os trabalhos de linha investigativa do discurso contou com os teóricos e Bakthin (1997) e o multiculturalismo, com Kymlicka (2008), além dos aportes de teóricos como Kawai (2010), Soares (1996), Hall (2006), Van Djik ( 2008), entre outros. No tocante às análises imagéticas dos manga, efetuaremos as discussões baseadas nas as informações de Scott McCloud (1995) 54 , Tezuka (2010) 55 e Pietroforte (2007) 56 , Peruzzolo (2004) 57 , e Santaella & Nöth (2010) 58 no terceiro capítulo desta tese. 54 McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995. TEZUKA, Osamu. Manga no kakikata (Como desenhar manga).12ª.ed. Tokyo: Kôbunsha, 2010. 56 PIETROFORTE, Antonio Vicente. Análise do texto visual – a construção da imagem. São Paulo: Contexto, 2007. 57 PERUZZOLO, Adair Caetano. Elementos de semiótica da comunicação: quando aprender é fazer. Bauru: SP, EDUSC, 2004. 58 SANTAELLA, Lucia & NȌTH. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras Ltda., 2010. 55 39 1.2. O conceito japonês de Justiça A tentativa das primeiras sistematizações sociais surgiu com a Reforma Taika no ano de 646, quando foi criada uma organização calcada no modelo chinês, centralizada por Shôtoku Taishi, filho do imperador Yômei e regente (sesshô) da imperatriz Suiko59. No tocante ao aspecto jurídico, tal reforma propicia o surgimento do ritsuryô 60, 律令, baseado nas importações chinesas. Embora dissesse respeito a um conjunto de códigos civis e criminais, tratava basicamente mais de regras morais, incentivando os homens a desenvolver o “bem” e a obedecer fielmente às normas vigentes 61 , o kankai「勘戒」. Como punição das transgressões de regras, eram aplicadas penas que variavam desde um castigo corporal até a morte, havendo inclusive exposição ao público dos condenados como transgressores ou criminosos. Foi, dessa forma, mantida a supremacia do imperador e dos nobres, que procuraram assegurar a concentração dos seus poderes. Nesse regime ritsuryô, o poder absoluto do imperador era explicado pelo mito de que ele seria descendente da deusa do Sol, Amaterasu Omikami, equiparando-o a um ser divino (Yamashiro, 1982)62. O termo Ritsu, 「律」, de ritsuryô, tratava de forma inclusiva os aspectos da sociedade no tocante à justiça, mas centrava-se com mais precisão no que “era permitido” e no que “não era”. (Fréderic, op.cit. p. 972)). Todavia, acredita-se que após a Era Heian, esse tipo de regulamento tenha abrandado, pois afirma-se que de 818 até 1156 não teria ocorrido a pena de morte63. Com o decorrer do tempo, na medida em que a sociedade começa a viver sob o domínio dos samurai que passam a atuar ora como seguranças ora como autoridades, e de forma ampla e irrestrita devido à criação dos sistemas de terras 59 FRÉDERIC, Louis. O Japão – dicionário e civilização. Tradução Álvaro David Hwing. São Paulo: Editora Globo, 2008. 60 O termo Ritsu em japonês possui a acepção de norma, lei, princípio, norma sob a ótica do budismo. Ryô, por sua vez, significa normas de conduta. Pode-se, dessa forma afirmar, que Ritsu Ryô seria o “conjunto de leis reguladoras de conduta”, daí o aspecto de código jurídico e civil do termo. 61 NIHONSHI JITEN (Dicionário da História do Japão). Tokyo: Kadokawa 1981, p. 996. 62 YAMASHIRO, José. Japão: passado e presente. 2ª.ed. São Paulo: IBRASA, 1986, p. 32 63 KAWASAKI Hiroshi. Revista Direito Penal. Volume 69 de setembro de 1996. In: https://mrepo.lib.meiji-ac.jp/dspace//bitstream/10291/1411/1/horitsuronso_69_11_117_pdf. Acesso em 07/01/2012 40 privadas (shoen), surgem os chamados bugyô 64 , 「 奉 行 」 , pessoas ou locais responsáveis por fazerem executar uma ordem imperial. É no governo Tokugawa, na Era Edo, que os bugyô ganham força. Na tentativa de assegurar a sua política de austeridade, o governo designa os “encarregados”, bugyô, de executar fielmente todas as ordens dos seus superiores. Entretanto, ao estabelecer um bugyô local, cujo significado corresponderia hoje em dia a “governadores”, como o machi bugyô, literalmente os “responsáveis por uma cidade”, dependentes da autoridade do shogunato e instalados em cidades maiores como Edo, Osaka, Nara, o termo passa a ser empregado ora designando uma localidade, ora designando o próprio funcionário responsável pelo local ou por algum setor. Desse modo, os inúmeros bugyô passam a coexistir e o termo passa a significar ao mesmo tempo o local, a organização e o funcionário encarregado do ofício. Essa apreensão confusa ainda é encontrada nos dias atuais, como, por exemplo, no termo saibansho, Tribunal de Justiça ou Foro, que pode indicar tanto o local ou prédio quanto a instituição do Tribunal de Justiça65 O quadro a seguir sintetiza a principal organização administrativa adotada na Era Edo: SHÔGUN 「将軍」 (autoridade máxima) RÔJU「老中」 (Conselheiros dos shôgun) HYÔJÔSHO 「評定所」 (“Ministérios”) JISHA BUGYÔ KANJÔ BUGYÔ ÔMETSUKE WAKADOSHIYORI MACHI BUGYÔ 64 (Vigilância) (Assistente dos Rôjû) (“Governadores”) 66 (Templos) (Finanças) 「寺社奉行」 「勘定奉行」 「 大目付」 「若年寄」 「 町奉行」 Destaca-se que, pela etimologia inicial dos seus ideogramas, o termo significa “aquele que serve ao seu senhor”, desempenhando as tarefas que lhes eram incumbidas. 65 Uma possível explicação seria devido ao fato do ideograma sho, 所, do saibansho, designar localidade. A ocorrência pode ter como causa a confusão gerada na apreensão de sentidos quando da introdução da escrita chinesa. 66 Os responsáveis por cada cidade. Hoje, seriam os Prefeitos e Governadores. 41 De acordo com a estruturação administrativa acima apresentada, os ocupantes do posto abaixo dos shôgun, o dos rôjû 67 , como Conselheiros dos Shôgun, desempenhavam papéis de destaque por serem considerados homens sábios e capazes. Inclusive os wakadoshiyori – waka, “jovem” e toshiyori “pessoa idosa”, conhecidos como “jovens anciãos” eram, na verdade, jovens que se destacavam de alguma maneira, sendo nomeados assistentes dos rôjû com o objetivo de efetuar a vigilância sobre os hatamoto68, vassalos69 dos shôgun. Detendo-nos sobre os adjetivos, empregados sob a modalização eufórica 70, percebe-se que, discursivamente, os mesmos sugerem o que Bakhtin chama de dialogismo 71 ou aquilo que Ducrot chama de Lei de Litotes 72 , favorecendo a estratégia organizacional da supremacia dos shôgun. Ao Jisha bugyô era incumbido o controle de templos budistas ou xintoístas, atribuição que mais tarde levou os responsáveis por esta jurisdição a organizar a repressão aos cristãos, atuando em conjunto com o Machi Bugyô. Os Kanjô Bugyô, responsáveis pelo recolhimento de impostos, que em dias atuais equivaleriam aos funcionários do Ministério de Finanças japonês, os Machi Bugyô, órgão responsável pela cidade, que corresponderia à Prefeitura dos dias atuais e os Jisha Bugyô, que possuíam o controle legal sobre os templos, foram organizados de forma a coibir toda possibilidade de alguma liberdade dos monges que pudessem dar margem à alguma rebelião. Exercendo o controle sobre as cidades, vistas como possível foco de pensamentos divergentes e as finanças, o governo Tokugawa tratou de assegurar a sua hegemonia, mantendo o domínio sobre todos os segmentos, inclusive sobre religião. 67 Posto, em dias atuais, equivalente ao de Primeiro Ministro. Embora o ideograma rô designe nos dias de hoje “ancião”, etimologicamente possuía a acepção de “virtude elevada” – tokuga takai – ou de “conhecedor/hábil – “monogotoga jôzu – sem uma relação direta com a idade. 68 “Homens dos Estandartes”, originariamente designava o campo militar de um shôgun e, depois, os homens que guardavam esse campo. Recebiam as ordens diretamente dos shôgun (FRÉDERIC, Louis. op.cit, p. 391) 69 Conforme FREDERIC, Louis. op.cit., p. 391. 70 Adjetivos de indicação para o positivo, para o bom. Cf. NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000, p.190. 71 A estruturação interna semântica dialógica (CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004, p. 16), ou seja, os critérios da escolha dos funcionários não se dariam apenas pelas suas aptidões, mas uma forma de assegurar o controle. 72 Figura de linguagem que consiste em substituir um significado por outro menos forte. Cf. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 249. 42 Quanto ao Ômetsuke73 cabia a vigilância de organizações religiosas, controle de entrada de armas, registro de genealogias dos habitantes e do registro de seus bens. Os responsáveis por esse órgão atuavam em conjunto com os Jisha Bugyô e os Machi Bugyô, inclusive, em trâmites judiciais, desempenhando papel de membros que regulavam os aspectos jurídicos, dando a entender que assumiam papéis centrais nos trâmites judiciais, pois os Wakadoshiyori, como assistentes dos rôju conforme explicitação supra, exerciam funções secundárias. A escolha para o posto de Machi Bugyô, embora houvesse controvérsias, ocorria entre os hatamoto, os homens de confiança e fiéis aos seus shôgun, que possuíssem bens, normalmente um mínimo de 3000 seki74 e que, por terem sido vassalos desde a época da Batalha de Sekigahara (1603), teriam se conservado leais aos seus shôgun. Sob o controle dos Machi Bugyô, já em bom número, como aponta Sato (op. cit., p.75), aquele corpo de funcionários possuía um amplo poder, o qual, nos dias atuais, corresponderia ao exercício de funções como de Governador, Polícia Metropolitana, Tribunais Distritais, Tribunais Superiores, de Família, Corpo de Bombeiros, entre outras. Todavia, três eram os aspectos mais importantes sob o seu controle: a questão da segurança, da investigação e da justiça, estendendo-se ao julgamento e a pena. Todavia, a execução da pena das sentenças e medidas deliberadas cabia aos subalternos. Em caso da aplicação de uma pena de morte, muito comum no período Tokugawa, as execuções eram da alçada, de um modo geral, dos eta75 ou hinin76. Em linhas gerais, o quadro remete-nos, conforme lembra Sato (1998, p.75)77, a uma sistematização organizacional encontrada hoje no governo japonês em algumas funções públicas, principalmente relacionadas ao poder: imperador, 73 Quando foi criado, em 1632, era chamado de sômetsuke, com sô significando “total”, “geral”, designação que estabelecia uma hierarquia superior, que os distinguia dos inspetores de classe inferior, os metsuke. O ideograma mestuke, 目付け com o seu significado de, literalmente, “por os olhos”, designava a função exercida. 74 Unidade de medida de arroz; 1 seki ou 1 koku= 180 litros. 75 “Impuros”, classe social surgida no século XIII, originária, possivelmente da China. Seus membros eram considerados “impuros” tanto pelo Xintoismo quanto pelo Budismo, aparentemente, devido à pobreza em que viviam. Cf. Frédéric (op.cit., p. 261) 76 “Não humanos”. Classe inferior, conforme os eta, praticavam a mendicância por não ter o direito a um trabalho ou profissão específico. O seu papel era de escoltar os condenados ou exerciam outras tarefas, como coveiros, sendo normalmente repugnados por outras classes. Era uma classe situada abaixo dos eta. Cf. Frédéric, (op.cit., p. 411.) 77 SATO, Tomoyuki. Edo machibugyô – shihai no shisutemu (Organização administrativa da cidade de Edo – sistema de domínio). Tokyo: Sanjûichi Shinsho, 1998. 43 Primeiro Ministro, os ministros e as suas pastas. Além disso, no modelo contemporâneo incluem-se os estados com seus respectivos governadores e seus órgãos competentes como o Corpo de Bombeiros, o Departamento de Polícia Metropolitana e a Promotoria Pública. Com relação às sanções penais da Era Edo, tem-se prevista no「公事方御定 書」(Kujigataosamegaki)」de 1742, a “Carta-Magna” da época, cujos ideogramas possuem o sentido de “Resoluções para assuntos oficiais”, tem-se, por exemplo, a aplicação da punição de tatuagem 78 para a população em geral por crimes considerados “leves” como o de roubo. A tatuagem, até há pouco tempo, não era bem aceita no Japão, pois os tatoo tão em moda nos dias atuais indicavam inicialmente uma penalidade destinada aos criminosos. (Figuras 3 e 4) Para os samurai, o seppuku, comumente conhecido como harakiri, dava a oportunidade destes se suicidarem “honradamente” ou repararem os seus desvios de conduta de forma digna. As penas eram aplicadas de acordo com o status do criminoso. Figura 3: Tatuagem da Penalidade Cometendo três crimes, os traços podiam designar “cão”, além de outros. 78 Tatuavam-se linhas verticais ou horizontais nos braços ou nos rostos, de modo que pudessem ser vistas por todos em qualquer lugar. Os estilos variavam de acordo com a região, para que, aqueles que o vissem, soubessem onde o crime fora cometido (cf. Kawai, op.cit., p.138). 44 Figura 4: exemplos de tatuagens. In: <http://ameblo.jp/orochon-x/entry-10273931825.html>, acesso em 16/02/2011 Não obstante às semelhanças com as organizações atuais, percebe-se, assim, que o sistema privilegiava a designação dos bugyô, e, com isso, a interdependência e a falta de autonomia entre os seus membros, assegurando o poderio dos shôgun. Inclusive, o ideograma do termo bugyô possui o sentido de “aquele que executa as ordens dos seus superiores”, significando ainda em um sentido budista “dedica-ser aos ensinamentos do Buda e praticar de acordo”. Ou seja, tanto em um sentido quanto no outro, a criação dos bugyô remete a existência de um superior, favorecendo a obediência. Nota-se também que, embora não houvesse a existência de uma “organização” propriamente dita, com a sistematização dos chamados bugyô, com dezenas de funcionários e cargos para possibilitar que as instâncias judiciais pudessem se estender a todos, principalmente às camadas mais humildes da população, tal sistema, na verdade, era bastante repressor e violento. A Era Edo manteve e aplicava os castigos mais cruéis, conforme alguns exemplos abaixo (Figuras 5, 6 e 7): 45 Figura 5: Cena de uma decapitação Figura 6: Diversas tatuagens eram utilizadas para identificar a pessoa infratora 46 Figura 7: Os quadros acima mostram as punições que variavam desde ficar amarrado por braços às pernas, até o açoite. In: http://isweb.www.infoseek.co.jp, acesso em 14/04/2010. Além das punições ilustradas pelas imagens acima, ressalte-se que as penas variavam de acordo com o nível social do infrator. A seguir, à guisa de exemplificação, citamos algumas penalidades para membros de diferentes camadas sociais e sexos 79: 1. Penas comuns à todos segmentos sociais em geral, sem distinção de sexo: além da pena de morte e o seppuku (ou harakiri), havia a tatuagem conforme mostrada acima, decapitação, banimento, tornar-se serviçal em templos e exílio. 79 In: http://homepage2.nifty.com/kenkakusyoubai/zidai/keibtsu.htm, acesso em 14/02/2010. 47 2. Para a população em geral, inclusive mulheres: repreensão, rebaixamento para o grupo dos hinin, ficar imobilizada por amarras num período de 30 ou mais dias, multas, perda de bens, decapitação, açoitamento, repreensão. 3. Samurai , o seppuku, comumente conhecido por harakiri, confinamentos, perda do emprego, decapitação. 4. Monges – confinamentos, banimento do templo, reclusão, exílio, restrição de locais de locomoção, aprisionamento, expulsão da religião. 5. Exclusivamente mulheres – escravidão, cabelos raspados. 6. Outros tipos de penalidades como a de confisco ou açoites, dependendo da interpretação da gravidade, eram aplicados aos familiares do infrator e penalidades coletivas aplicadas aos membros de uma determinada comunidade inteira como no caso de ocultar alguém infrator ou como no caso dos produtos agrícolas entregues não fossem considerados satisfatórios. As penas oscilavam também de acordo com o status da vítima. Nos casos, por exemplo, de assassinatos de integrantes de uma família como pai, tio, irmão mais velho, cometidos por um membro oriundo da mesma família, apesar de serem considerados delitos graves, as punições dependeriam do grau de parentesco entre a vítima e o seu assassino. Roubos acima do valor de 10 ryô80 levavam à pena de morte, se fosse uma importância aquém tatuava-se o infrator. Provocar incêndio ou incendiar vestuários, se descobertos, significava arrastar em vias públicas o condenado amarrado à cauda de um cavalo. O adultério era punido com decapitação e o pescoço exposto em locais públicos. Num duplo casamento, o homem era expulso do vilarejo onde residisse e a mulher tinha os cabelos raspados. Para que tenhamos uma visão um pouco mais ampla sobre as sanções da Era Edo, acrescentamos no quadro abaixo e em linhas gerais as principais penalidades vigentes na época. 80 10 ryô. Ryô: unidade monetária da época. 48 TABELA 1: Principais tipos de penalidades vigentes na Era Edo Penas Forca Exposição do corpo Queimar na fogueira Seppuku (harakiri) Decapitação Especificação A penalidade incluía, além da morte, o confisco de bens, a exposição pública do corpo, a exposição do infrator antes da execução passando pelos vilarejos com cartazes em que se dizia o porquê da condenação. Após a sentença executada o corpo não era entregue aos familiares servindo, por vezes, como testagem de corte dos katana. A execução da pena era realizada ou no lugar de origem do condenado ou num local mais próximo. Classificação Pena de morte Variavam desde o açoite, podendo oscilar entre um número de 50 para os casos de delito considerados não muito graves e, para aqueles Castigos físicos considerados graves até 100. A tatuagem, que sendo repetida 3 vezes, transformaria a penalidade em pena de morte. Prisão cuja duração oscilava de acordo com o delito. Exílio sem um período determinado, cujo local de destino variava de acordo com a sentença. 81 Penas mais brandas. Aprisionamentos que permitiam saídas somente à noite, ou saídas caso houvesse colaboração no combate de incêndios. Permanecer algemados, desistência de cargo público, se possuíssem. Reclusão com períodos que oscilavam entre 20, 30, 50 e 100 dias, dependendo do delito e sem considerar a posição social. Normalmente essas penas eram destinadas aos monges, aos funcionários do governo e aos samurai, cujo delito fosse considerado leve. As distâncias do exílio dependiam das sentenças estabelecidas e variavam entre as localidades próximas das moradias dos condenados até as ilhas longíguas sem muitos recursos de habitação, levando o condenado a uma vida de precariedades. Os nômades sequer podiam passar pelo local onde funcionasse o machi bugyô, originandose daí a expressão monzen barai81 Penalidades que restringiam a liberdade do indivíduo Em uso ainda nos dias de hoje, expressa “o dar com a cara na porta” numa alusão a uma visita indesejada, sem que a entrada do visitante seja permitida. 49 Penas Multas e Confiscos. Eram medidas que rebaixavam de posição e ordenado, além da perda de todos os seus privilégios e terras. Repreensão Outras Especificação Classificação Confiscos totais ou parciais com períodos determinados. Penas que complementavam a pena de morte e a de exílio. As multas eram aplicadas também como complementação de acordo com o entendimento das autoridades da época. Patrimonial Normalmente aplicadas em substituição às outras sanções. Eram medidas que rebaixavam de posição e ordenado, além da perda de todos os seus privilégios e terras. Banimento de seus vilarejos e, no caso dos monges, dos seus templos. Perda do sobrenome da família. Cabelos raspados para mulheres que tentassem suicídios. Prestação de serviços, sem direito a qualquer recurso, trabalhos como serviçal. No caso de mulheres, havia a prática de servir em Yoshiwara, nome do local onde funcionava uma casa de prazeres. Penas com Influência na posição social e na honra Sanção pública em voga durante a Era Edo, que consistia na repreensão do condenado pelos machi bugyou, considerada como desonra. Exposição em público, permanecendo cerca de 3 dias em locais de grande movimento. Perda de cargos públicos. Implicação na Honra Aplicação de multas. Repreensão. Reclusão. Prestação de serviços em 6 locais diferentes. Ser responsabilizado pelo delito dos outros. Como exposto, embora não houvesse um sistema jurídico unificado, as inúmeras medidas repressoras mantidas pelos bugyô centrais expondo o infrator à comunidade causavam forte impacto e o fato de se designar um bugyô para cada cidade atendia aos propósitos da estratégia dos Tokugawa em privilegiar a manutenção dos seus domínios e garantir a sua hegemonia. Percebe-se que as sanções, de um modo geral apresentando-se arbitrárias, pois dependiam da interpretação dos bugyô, cerceavam a qualquer tentativa de infração principalmente pelo fato de já haver um certo costume de “aceitação” por parte da população das medidas que eram impostas. 50 Entre as principais leis adotadas no período está a Kujikata Osadame-gaki82, literalmente “Escritos sobre Determinações de Assuntos Públicos”, de 1742, divididos em procedimentos criminais das leis civis e administrativas, com dois volumes. Contudo, a referência para o presente trabalho é o 2º volume, pois foi neste que foram tratados os casos jurídicos, mais especificamente, o Osadamegaki hyakkajô ou “O Decreto em 100 artigos”83, compilado seguindo-se os modelos de períodos anteriores, cujo conteúdo, em 100 itens, previa os tipos de punições de acordo com os respectivos delitos. Tais leis objetivavam reduzir o número de penas que pudessem ser aplicadas motivadas pelas ideias particulares do julgador, no caso, o “tribunal” da época, procurando com isso evitar-se arbitrariedades nas questões judiciais. O castigo considerado mais severo na época era a pena de morte, seguido pelo exílio, este último aplicado, por exemplo, em casos de estupros de mulheres praticados por monges, no caso de pessoas que auxiliavam assassinatos, aos menores de 15 anos assassinos e incendiários e no caso de porte de armas de fogo no interior de 10 ri84 da cidade de Edo. O fato é que a Era Edo havia assegurado a aplicação de um grande número de sansões, garantindo assim, a princípio, a ordem interna. Entretanto, os detalhes e as complexidades das aplicações dessas penas e de difícil entendimento e destinadas a cada segmento da sociedade revelam um pouco dos propósitos da administração do clã Tokugawa: a manutenção do poder. Um outro aspecto que deveras influenciou o poder político da época e que não podemos deixar de observar foram as influências das crenças ou religiões que acompanhavam a população e também serviam como instrumentos de dominação: xintoísmo85, budismo86, confucionismo87 e até mesmo o cristianismo88. 82 Código de leis promulgado em 1742 por Tokugawa Yoshimune e preparado sob a direção de Matsudaira Norimura. (Cf. Fréderic, op. cit., p. 710) 83 HALL, John Carey. Japan Studies in Japanese Law and Japanese Feudal Law. Washington DC: University Publication of América, 1979, p. 145 - 162 84 Unidade de distância equivalente a aproximadamente 3,9 km 85 Xintoísmo: antiga crença japonesa, autóctone e politeísta, manifestada através de um conjunto de cultos. Não há nenhum deus supremo. Cf. AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral & GEIGER, Paulo. Dicionário histórico das religiões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 368. 86 Budismo: doutrina baseada nos ensinamentos formulados por Sidarta Gautama, o “Iluminado”. O propulsor básico da doutrina é a dor do universo (tudo na vida é dor, a origem da dor está na sede do desejo, a destruição do desejo possibilita o afastamento da dor alcançando o nirvana e a necessidade de caminhar na senda dos deveres mencionados pelo Buda nos seus ensinamentos.) Cf. AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral & GEIGER, Paulo. Dicionário histórico das religiões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. p.69 51 No território japonês, a partir do início da cultura do arroz, intensifica-se a crença xintoísta que defende o sol, a lua, as estrelas, árvores, aves, ou seja, todos os elementos da natureza como possuidores de alma. Seus adeptos passaram, daí, a promover rituais e cantos para que, por exemplo, a colheita fosse bem sucedida. Não havia um ser supremo, mas já no budismo, introduzido a partir das importações chinesas no século III, a doutrina é baseada nas mensagens transmitidas por Sidarta Gautama (Buda) como “o iluminado” com a concepção do estado de nirvana89 O budismo possui várias ramificações e, embora não se saiba exatamente qual delas tenha se iniciado na época da sua introdução no Japão (acredita-se hoje que teria sido a mahayana90), o fato de se conceber a possibilidade de libertação do “sofrimento humano” e de haver, diferentemente do xintoísmo, um “ser superior”, favoreceria a uma mais rápida sujeição, um fator preponderante na política dos Tokugawa. Não se pode ignorar, do mesmo modo, a influência do confucionismo, filosofia que começou a ser introduzida em solo japonês desde o século VI, sobretudo quando tomou impulso sob os religiosos zen. Entretanto, as doutrinas neoconfucionistas que haviam chegado ao Japão por volta dos anos 1200 e adotadas em maior ou menor escala pelos imperadores permaneceram no solo japonês e configuraram a base do pensamento político favorecendo a hegemonia dos Tokugawa, pois pregava obediência aos superiores. A partir de 1549, com a chegada do cristianismo introduzido por Francisco Xavier, inicia-se a expansão dessa religião entre a população, que vivia sob constantes ameaças devido às guerras feudais, tornando-se um outro elemento de apoio espiritual. 87 Confucionismo: “Doutrina ético-filosófica dominante na China por mais de dois mil anos. A moral constitui o fundamento da ideologia confuciana, moral de índole burguesa... pretende formar um homem superior pela bondade e pelo seu humanismo... o homem deve exceder-se em todos os momentos, na prática de atitudes corretas e da integridade. A piedade filial constitui uma regra que, se transgredida, beira os limites do sacrilégio”. Cf. AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral & GEIGER, Paulo. Dicionário histórico das religiões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. p. 107. 88 Religião fundada por Jesus Cristo, cujos dogmas e princípios gravitam em torno de seus postulados e de seus milagres. Cf. Dicionário Histórico de religiões, op. cit, p.116. Não se sabe exatamente qual das suas ramificações tenha chegado ao Japão. Entretanto, como a chegada em solo japonês deu-se com os portugueses, acredita-se que a vertente introduzida tenha sido o catolicismo. 89 Estado de beatitude e felicidade, alcançado quando tudo (pensamento, vontade, sensação) é abolido, suprimido, extinto. ... O Buda não deixou nenhuma descrição do nirvana, mas mostrou o caminho para alcançá-lo, oferecendo ao homem a possibilidade de sua liberação de toda ilusão sobre sua própria natureza (cf. AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral & GEIGER, Paulo. Dicionário histórico de religiões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 271). 90 “O Grande Veículo”. Escritos do budismo. Cf. Dicionário Histórico de religiões, op. cit., p. 70. 52 Num primeiro momento, o cristianismo também propagou-se entre os daimyô91 principalmente aqueles da região de Kyûshû, ao sul do continente japonês, que objetivavam vantagens comerciais, já que as importações de mosquetes e pólvora trazidos pelos portugueses atendiam aos interesses da manutenção de poder. A população é catequizada e ocorre uma ampla aceitação das obras missionárias 92. Com a proibição do cristianismo por Toyotomi Hideyoshi em 1587, a perseguição aos cristãos japoneses torna-se implacável, pois Toyotomi passa a recear os novos costumes. Tokugawa, assumindo em 1603 o poder da Era Edo, em um primeiro momento aceita a nova religião, procurando manter um relacionamento comercial com o Ocidente. Todavia, mais tarde, assim como o que acontecera a seu antecessor, Toyotomi, a idéia de um Deus onipotente é apreendida por Tokugawa Ieyasu como uma ameaça a sua soberania, pois poderia suscitar junto aos habitantes novos costumes ou novas idéias. Há perseguições de modo a erradicar qualquer fio condutor de um possível enfraquecimento do poder. O budismo é reintegrado ao lado do agora cultuado confucionismo que veio a atender a hegemonia do governo Tokugawa. Contudo, os ensinamentos neo-confucionistas que se seguiram foram proibidos com o intuito de manter uma linha de atuação de acordo com os objetivos político-sociais da época. Outro código a se destacar na época Edo é o bukeshohatto, literalmente “Conjunto de Normas dos Samurai” com 13 artigos, organizado em 1615. As leis foram criadas para os buke (samurai e daimyô), que também sofriam sanções em casos de alguma infração. Foram seis as revisões efetuadas, em 1615, 1635, 1663, 1683, 1710 e 1717. Percebe-se, desse modo, que a população fora sempre condicionada à existência de um “superior” e, temente, aquiescia com as medidas tomadas pelos shôgun, preferindo não mudar a sua rotina. Observa-se, inclusive, que a evolução da manutenção das regras sociais ou políticas, sobretudo no pensamento da população, 91 Titulo dado a todos os senhores que governavam grandes territórios e que tinham em seu serviço um grande número de vassalos. Designação, a princípio, somente a militares, na Era Edo passou a ser aplicado a todos os senhores de domínios da plantação de arroz. Cf. Frédéric (op.cit., p. 1996) 92 Cf. OWADA, Nihon no rekishiga wakaru hon (O livro para compreender a História do Japão), op. cit., p.106 . 53 não foi advinda de uma Justiça, mas da forma como a civilização fora condicionada ao longo dos anos. Se havia, por um lado, um superior que demandava uma postura respeitosa e passível diante dele e ao mesmo tempo existia a ideia de que qualquer delito refletiria em seus familiares conforme acima demonstrado, por outro, a mescla das crenças budistas e shintô junto à população fez com que uma ou outra fosse adotada diante das adversidades. Shintô e budismo, assim, passaram a coexistir, levando a uma não distinção entre as divindades. Além disso, essa evolução provoca um sentimento de haji, vergonha, sendo mais um aspecto importante para uma melhor compreensão do comportamento japonês93. Pelo exposto, podemos detectar a existência de um primeiro sentido de coletividade, que pressupunha a necessidade de uma homogeneidade de pensamentos focados no chamado giri94, deveres imperiosos ou obrigações sociais que um homem deve cumprir a fim de ocupar um lugar de destaque dentro da sociedade japonesa95. De acordo com Koroku (op.cit., 2012) essa forma de evolução de várias idéias de diferentes épocas e culturas introduzidas coexistindo sem nenhuma dificuldade no espírito japonês contribui, inclusive, para que os japoneses desenvolvessem uma aversão ao rigor lógico e aos conceitos rígidos, não se adaptando, por exemplo, ao rigor da ciência jurídica européia desenvolvida a partir da Restauração Meiji (1912). Predomina, desse modo, a regra do giri supra citado e que prevalece sobre as obrigações jurídicas. Desse modo, prossegue Koroku, (op.cit. 2012) embora as apreensões das novas gerações tendam a serem outras nos dias de hoje, a prática cultural predominante direciona-se em função dos interesses do outro e esperam a sua reciprocidade. 93 KOROKU Tonia Yuka. In: REID-Revista Eletrônica Internacional Direito e Cidadania http://www.reid.org.br/print.php?CONT=00000035, acesso em 15/01/ 2012. 94 Traduzido normalmente como “dever” ou “obrigação”, o termo é de difícil definição. Acredita-se que tenha início na Idade Média, quando os senhores feudais, para garantir a aceitação dos seus vassalos ou subalternos em partir para as guerras, doavam pequenas quantidades de terra para produção e em troca deveriam sentir-se agradecidos. Era mais uma forma de demonstração da supremacia dos senhores feudais que evoluiu desde a época feudal japonesa. De acordo com Fréderic, (op. cit. p. 335), na sociedade antiga, os guerreiros eram obrigados a um giri extremamente rigoroso e deviam sacrificar a sua vida pelo senhor que os alimentava e os protegia, de maneira a lhe prestar o seu on (favor feito). Desde o nascimento, o japonês é submetido a muitos giri: para com a nação ou o imperador, para com os pais, a babá, os professores e todos aqueles a quem ele é devedor. 95 FRÉDERIC, Louis. O Japão. Dicionário e civilização. Op. cit. , p.334 54 Atualmente a prática jurídica prevê que a confissão caracterizaria a primeira instância da reabilitação do acusado. Entretanto, Sato (1998, p. 162-163) questiona o parágrafo primeiro do artigo 42 do Código Penal atual em que se lê “aquele que cometer algum delito e se entregar à polícia poderá 96 ter uma pena abrandada, suavizando o delito”, indagando como se fará isso ou afinal quem decretará a pena como genkei, (pena rigorosa) ou seja, considerar o delito suave ou não. Não há, segundo Sato, nenhuma menção sobre isso no código civil, pois não há nenhuma referência ao que poderia ser definido como uma “pena rigorosa”, pois se é um delito, deveria estar previsto. Lembra Sato, que tal decisão dependeria da consciência dos membros do tribunal em que ocorresse o julgamento. Para o autor, tal concepção não possuiria base legal. O questionamento de Sato traz à luz novamente o problema da inserção das concepções religiosas que também marcam a Justiça, demonstrando a complexidade de interpretações do termo. O autor inclusive destaca o termo hô, de hôritsu, que significa “a lei”, “o direito”, que acaba se constituindo em uma forma de poder, pois opera somente sob o aspecto de algo “permitido ou não”, voltando à significação inicial surgida nas concepções do ritsuryô das primeiras sistematizações nos anos das introduções chinesas. Dentre as leis, podemos citar a que regra o empenho nos estudos e no aprendizado da arte de guerrar, a proibição de livre construção e reformas dos castelos em que os samurai residissem, a proibição do cristianismo - este citado nas leis de 1663 e 1710 - o vestuário compatível ao status, a proibição de se casar sem autorização, as normas de etiqueta dos daimyô em viagens e a seleção pelos shôgun de seus subordinados, entre outras97. As punições brutais dos períodos passados deram lugar a uma sistematização mais branda e a pena de morte hoje, embora ainda existente, não é muito aplicada. Há centenas de leis no Japão, sendo muito difícil conhecer todas. Porém, usando o bom senso na sua vida cotidiana e não fazendo nada que cause inconveniência a terceiros, é muito difícil ser responsabilizado por alguma 98 infração da Lei. 96 Grifo nosso. A listagem completa encontra-se em http://www.hh.em-net.ne.jp/”hayy/komo_hatto_main.html, acesso em 30/09/2011. 98 In http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/defaut/files/.../16198-16199-1-PB.pdf , acesso em 12/03/2012. 97 55 Após 1868, quando da Revolução Meiji, possivelmente a ocidentalização trazida não foi de imediato absorvida para desvincular da vida da sociedade japonesa os antigos costumes, mas o imperador simboliza atualmente o Estado e a união do povo. A sua atribuição é puramente cerimonial, sem poder político. A Constituição, também conhecida como a Constituição Pacifista, é famosa pela renúncia ao direito de declaração de guerra (artigo 9)99. Quanto ao sistema judicial, o tribunal é o único órgão que poderá realizar julgamentos no caso de disputas legais, penalização de criminosos e objeções contra as medidas do governo. A figura 8100 mostra-nos a sua organização: Figura 8: Organização do Sistema Judicial Japonês Em um quadro comparativo verifica-se que, enquanto na época dos bugyô da Era Edo havia um número muito grande de funcionários responsáveis por vários setores, atualmente em cada província existe um Tribunal Distrital ou Regional e há 438 Tribunais Sumários por todo o Japão. No entanto, o conservadorismo das tradições e a manutenção da segurança jurídica faz com que as alterações legislativas sejam o mínimo possível, o que fez com que o código penal se mantivesse ao longo de cem anos em vigor. O centenário Código Penal Japonês, a Lei nº.45 de 1907, apresenta as normas relativas aos crimes e ao sistema penal, em um total de 264 101 artigos . 99 In: http://pt.scribd.com/doc/5523356/A- Constituição- do-Japão, acesso em 21/07/2012 Guia de Assessoria aos Estrangeiros sobre a vida cotidiana em Iwate. http://pref.iwate.jp/hp0312/seikatsu.sodan/pt/...nihon...horitsu.html, acesso em 03/06/2012. Modificado 101 FERREIRA, Eduardo. In: http://letras jurídicas.blogspot.com.br/2008/10/o-´poder-judiciário-dojapo.html, acesso em 21/07/2012. 100 56 De acordo com Sato (1998, p. 94), uma das grandes diferenças existentes atualmente em relação ao período Edo evidencia-se no que tange à aplicação das penas, pois embora se mantenha a de morte, observou-se a redução da mesma, além da abolição de punições, como o açoite. Conforme Sato, uma grande mudança verificada na Era Edo ocorria quando um acusado por algum delito fosse preso, pois este era automaticamente considerado autor do mesmo e condenado. Não havia a condição de ser suspeito e ser levado a julgamento após as diligências. Tão logo estivesse sob o poder das autoridades, ele era submetido a um julgamento somente para receber a pena. Os funcionários incumbidos por executar as penas eram, geralmente, os eta e hinin, como os líderes do grupo de Danzaemon ou Asaemon102, sendo este último muito famoso por ser um exímio espadachim que praticava o tameshigiri 103 , que consistia num tipo de treinamento em testar a técnica e o corte do katana, utilizandoo em cadáveres e em animais. Observa-se que, não obstante o número de leis e de suas reformas desde o início das sistematizações jurídicas, a complexidade da escrita tenha contribuído para a dificuldade de um entendimento mais preciso dos seus sentidos. Segundo o exposto, a introdução de costumes e religiões advindos da China e as importações como as da escrita fazem-nos refletir se não teria havido conflitos com a realidade japonesa de então, decorrente da diferença vocabular e, sobretudo, as duas formas de leitura, a chinesa e a japonesa dos escritos e nas apreensões das significações das leis. Além disso, as bibliografias de um modo geral apontam para a complexidade das interpretações das leis da época Edo 104, pois na sociedade estratificada da época “O direito costumeiro era dominante e o sistema jurídico não era unificado 105 . Cada território dominado por um daimyô tinha autonomia político-jurídica e tinha um direito próprio” 106 ou, como exposto anteriormente, variava de acordo com a diversidade de regras estabelecidas dos inúmeros machi bugyô existentes. Retornando e remontando à base da época da introdução da escrita, não podemos deixar de refletir sobre como o Japão, de origens ágrafas, mesmo embora 102 Líderes dos eta e dos hinin que detinham o poder sobre os mesmos. Literalmente “testagem de corte”. 104 In: http://homepage2.nifty.com/kenkakusyoubai/zidai/keibatsu.htm, acesso em 20/03/2009. 105 Grifo nosso. 106 REID – Revista Eletrônica Internacional Direito e Cidadania. In :http://.reid.org.br/print.php?CONT=00000035, Acesso em 15/10/1012. 103 57 tivessem decorrido cerca de 1000 anos desde então, tornou-se apto a interpretar e aplicar as leis introduzidas através de um modelo de um mundo e contexto social diferentes. A despeito desses questionamentos, o fato é que hoje a Constituição japonesa proíbe qualquer forma de guerra e o imperador como símbolo do Estado não mais se assemelha àquele de eras passadas. Se o sistema judicial na época da Era Edo era arbitrário, após a Era Meiji, muito embora as penas tenham se tornado brandas e as mais violentas abolidas, no caso da pena de morte, que foi mantida, esta é alvo de crítica. Muitos dos condenados aguardam por muitos anos na prisão até serem executados e frequentemente encontram-se em total isolamento, sem que as informações, por exemplo, como a data de execução sejam reveladas, caracterizando assim uma outra forma de “violência”, a pressão psicológica. Segundo Koroku, a atitude enraizada de longos anos de um sistema jurídico sem unificação - pois cada território tinha um daimyô que detinha o poder políticojurídico mesmo após a chegada da era Meiji - fez com que o direito japonês não tenha se desenvolvido sob uma doutrina jurídica, o que se refletiria no pensamento e comportamento japonês. O fato da ausência de uma doutrina jurídica é explicada como decorrente da rápida modernização que a Era Meiji estabeleceu ao buscar ocidentalizar o país. Os costumes e as práticas foram sendo introduzidos sem que houvesse uma preocupação quanto, por exemplo, às diferenças culturais da população. Com relação ao direito, conforme aponta Koroku, num primeiro momento, houve a influência do direito francês e, a partir de 1898, tem predominância o alemão que teve seu destaque na promulgação do Código Civil sendo que, somente após a 2ª.Guerra Mundial, o direito norte-americano é introduzido. Com relação às questões penais tem-se a concepção de que, antes das leis da Justiça, cometendo algum crime haveria punição e isso fortalece o pensamento de caráter preventivo e educativo. Esse pensamento tem, por extensão, o haji acima desenvolvido, ou seja, a cultura da vergonha. Reiteramos a questão do processo jurídico: as camadas camponesas, inicialmente, um grupo nômade, passam ao cultivo de arroz que exige um trabalho grupal e passam a viver em comunidades; as primeiras sistematizações políticojurídicas sob um “superior” detentor do poder ao lado das religiões que pregavam dentre outros lemas a obediência; a necessidade diante de inúmeras adversidades 58 na colheita, pois esta precisava também atender a demanda dos líderes no poder; a longa vida sem contato com o exterior nos cerca de 250 anos de isolamento do período Edo; a rápida ocidentalização sem que houvesse um tempo para adaptação à nova vida, pois os costumes e hábitos eram mantidos, tudo isso fez que, conforme Kuroku destaca, a introdução do direito codificado fosse apreendida como mais uma regra imposta por uma autoridade. Percebe-se que, de acordo com a história de evolução da sociedade japonesa, a concepção de Estado não foi internalizada no pensamento japonês e sim,tendo na figura de Imperador o ápice da hierarquia, principalmente por ter sido considerado uma divindade, tal fato evidencia um “modelo a seguir” do que “um ato ou uma conduta” sujeito a punição. Assim, a concepção do haji (a cultura da vergonha), anteriormente mencionado, vem a respaldar a noção de como a concepção de direito ou Justiça fora desenvolvida. Já a Justiça atual japonesa prevê as seguintes punições107. TABELA 2: Tipos de penalidade vigentes no Japão atual Penas principais Penas Especificação Classificação Forca Art.11-Forca no interior das dependências do estabelecimento penal Pena de morte Prisão com ou sem Art.12-aprisionamento e sujeito a estabelecimento prestação de serviços de período Art.13-confinamento em estabelePrisão cimento penal Multas Detenção 107 Penalidade livre Art.15-valores acima de 10 mil en Patrimonial Art.16 - detenção provisória: que varia de um dia a 30 dias incompletos Penalidade livre Keibatsu 刑罰(As Punições). In: https://já.wikipedia.org/wiki/%E5%88%91%E7%BD%B0. Acesso em 16/06/2013. 59 Penas Especificação Pequenas multas Pena aditiva Art.17 - valores entre mil a dez mil ienes Art.18 - para aqueles que não Prestação de conseguem arcar com as multas serviços aplicadas Art.19 - confisco de bens móveis e Confisco imóveis Art.19-item 2 Complementar exclusivo ao confisco que não cobrir o valor estabelecido. Classificação Patrimonial Substituição de pena Patrimonial - Destarte, se na Era Edo havia o grupo dos hinin, despojados da estratificação social da época, nos Códigos Penais de 1880 no seu artigo 31 previa-se a proibição dos direitos civis, numa medida segregadora, pois apesar de uma nova era, teoricamente mais aberta pela influência ocidental, mantinha-se uma restrição a população japonesa em geral. Esse artigo está atualmente incluído nas leis de função pública por regular a elegibilidade em cargos do governo. Ela é conhecida também como meiyôkei, “Pena contra a Honra”「名誉刑」, estabelecida em 1950, devido à implicação para a reputação da pessoa. Desse modo, nas rápidas exposições desenvolvidas, é possível observar que a evolução da concepção japonesa de Justiça, apesar das leis atuais terem sido baseadas em modelos europeus, principia-se nas distinções sociais da Era Edo. Temos as primeiras sistematizações sob a concepção dos ritsuryô108 , a influência das religiões, as medidas despóticas do poder da Era Edo e a concepção de haji incutida na mente da população, a fidelidade dos samurai ao seu suserano, a vida coletiva a que a população sempre fora condicionada e, atualmente, o fato de haver uma pena denominada meiyô (honra)「名誉」 acima mencionada. Todas essas etapas prévias conduzem-nos a constatação de que o conceito de Justiça passou por inúmeras modificações, nunca tendo sido uniforme. Além disso, observamos que a concepção de Justiça para os japoneses não perpassa aquilo que o homem regulamentou ao longo dos anos, e sim é particular a cada indivíduo com o seu entendimento influenciado ora pelas religiões, ora pelas medidas despóticas a que foram expostas. Os 250 anos de isolamento, podemos acrescentar, embora tenham 108 Vide 1º.capítulo em Conceito Japonês de Justiça. 60 propiciado um desenvolvimento cultural, apresentaram do mesmo modo uma restrição ideológica. Além desses fatores, é imprescindível destacar também a existência das regras do giri (obrigação) que ainda hoje, mesmo que de forma mais tímida, são encontradas nas relações da sociedade japonesa. Desta forma, o que regula o comportamento dos homens não seria a Lei ou a Justiça. Elas existem para desempenhar um dos papéis do Estado que necessita possuir um órgão para que a criminalidade seja coibida, mesmo porque a população japonesa não fora acostumada a uma doutrina como princípio jurídico, conforme nossa exposição demonstra. Um criminoso hoje, ao cometer o seu delito, entende, conforme Aoyagi 109, como “isso acabou acontecendo” (sô natte shimatta) e não “eu fiz/executei” (sô yatta), pois teria agido sob forte emoção, sem a concepção de que tal delito é previsto em Lei, que é passível de punição, etc. Portanto, adiantamos que a Justiça nos manga Vagabond e Death Note é expressa através da compreensão pessoal dos personagens centrais, que a transformam em suas próprias justiças110. Diante das contingências humanas, os protagonistas pretendem buscar e realizar uma justiça, uma concepção que se coaduna perfeitamente com as ideias de Detienne de “fundar” e “fundação” apresentadas no capítulo anterior. Os dois personagens dos manga que ora trabalhamos representam, conforme analisaremos nos corpora, a procura por uma identidade diante do multiculturalismo de uma sociedade globalizada de praticidade e de fartura (benrisa e yutakasa). Conforme já dissemos, não foi o nosso propósito a discussão das leis japonesas, mas subsidiar um entendimento sobre o aspecto de Justiça/justiçajusticeiro que perpassa o homem contemporâneo. A seguir, iremos desenvolver o processo histórico dos períodos abordados nos dois manga. 109 AOYAGI, Fumio. Nihonjin no hanzai ishiki (A concepção de crime dos japoneses). Tokyo: Chûôkôronsha, 1993. p.127. 110 Princípio moral que estabelece o direito como um ideal e exige sua aplicabilidade e seu acatamento. Por extensão, virtude moral que consiste no reconhecimento que devemos dar ao direito do outro. Cf. JAPIASSÚ, Hilton& MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p.152. 61 CAPITULO II – O CONTEXTO HISTÓRICO 2.1 A ERA EDO E O JAPÃO CONTEMPORÂNEO 2.1.1 Da ascensão dos Samurai a Era Edo – Panorama Cultural O crescente poderio dos samurai iniciado por volta do século X ratifica-se quando da criação do sistema de terras privadas (shoen), em que famílias aristocratas poderosas e os templos tomaram para si a administração das mesmas. Necessitando de quem os protegesse, os kenin ou kerai 111 dos proprietários de terras tornam-se seus seguranças, fazendo surgir uma classe guerreira, os samurai. E aqueles que detinham o poder tornavam-se shôgun – ditadores militares112. Os samurai eram liderados inicialmente pelos clãs aristocráticos e pelos daimyô113, os detentores do poder de cada região designados pelo shôgun. Por volta do final do século XI, o imperador Shirakawa estabelece o sistema de insei 「院政」ou “imperadores enclausurados”, em que estes se encontravam confinados114, e de onde centralizavam o poder político. Era uma forma encontrada para desarticular a influência da família Fujiwara, cujos imperadores desde o século IX eram seus descendentes. Desse modo, os imperadores ou os sessho115 「摂政」 e kanpaku 116 「 関白」, que atuavam como conselheiros ou representantes com direito de acesso ao poder, mantinham assegurados os seus domínios. Tal sistema, seguido pelos próximos imperadores Toba e Kôkaku, vigora por cerca de um século e como uma de suas medidas é estabelecida a restrição do poder dos sesshô 摂政. No entanto, o sistema político torna-se caótico dando origem às guerras conhecidas 111 “Homem da família”. Serviçal de um guerreiro ou de um nobre nos tempos antigos e na época Kamakura. Na época Edo deu-se o nome de gokenin a todos os vassalos do shogunato. Também chamado kerai no caso de um vassalo de um daimyô. Embora o termo remeta à Europa, empregamos a mesma palavra conforme encontrada em FRÉDÉRIC, Louis. O Japão – dicionário e civilização. Tradução Álvaro David Hwing. São Paulo: Globo, 2008, p.640. 112 Ditadores militares que mantinham a liderança das suas comunidades no lugar do imperador (Louis Frédéric, op. cit., p.1070). 113 Eram, na maioria, samurai e proprietários/administradores de grandes áreas de terra. As traduções do termo apontam para “senhores feudais”, mas como há controvérsias em relações à etimologia, pois aquele remete à Europa, manteremos o termo daimyô. 114 Em mosteiros, cf. Bito Masahide. Um perfil cronológico da História Japonesa. Tokyo: International Society for Educational Information, Inc. s/d, p.7 e Louis Frédéric. op.cit, p. 501. 115 Regente de um imperador menor de idade. 116 Título dado aos regentes de imperadores considerados adultos (na época aos treze anos). 62 como Hôgen no Ran (1156)117 「保元の乱」e Heiji no Ran (1159)118 「平治の乱」, as quais possibilitaram aos guerreiros adentrarem o governo central. Vitorioso nessas lutas, Taira-no-Kiyomori foi o primeiro que estabeleceu um governo militar, mas é derrubado pela família Minamoto que estabelece o seu shogunato em Kamakura em 1185. Esta data é o marco de início da assim denominada Era Medieval japonesa - Chûsei – 中世 Na época, não somente o poder militar, mas também a prática do budismo, cuja influência era muito grande, configuravam-se como formas de dominação, práticas essas que se iniciaram no final do Período Heian. Os imperadores passaram, em nome da sua fé no budismo, a efetuar grandes gastos em cerimônias de reverência realizados em templos e ergueram, por exemplo entre outros, o Rokushoji ou Rikushouji 「六勝寺」. Nos seis templos (法勝寺 Hosshôji、尊勝寺 Sonshôji、最勝寺 Saishôji、円勝寺 Enshôji 、 成 勝 寺 Seishoji 、 延 勝 寺 Enshôji) empregam-se nos nomes três ideogramas, sendo que, em segunda posição, aparece o ideograma 勝 katsu “vencer/conquistar”, e em posição posterior termina-se a palavra com o termo “templo” 寺. Estes eram, na época, os seis templos principais, nos quais os imperadores se concentravam para orar e fazer os seus pedidos. De uma certa maneira, tal postura era uma forma de dominação através da fé, pois as grandes construções de Buda trazidas a partir do modelo chinês intimidavam - pelo números de templos erguidos ou pela suas aparências suntuosas - aqueles que, porventura, fossem contra o sistema de governo vigente. Chama-nos a atenção os sentidos implementados nas construções sintagmáticas dos ideogramas dos templos Rokushoji, pelo fato de se inserir em todos o termo “vencer”, expresso pelo segundo ideograma 勝, em que o elemento anterior sintaticamente atua como modificador do seguinte, um verbo, conforme veremos a seguir. No caso do primeiro templo, 「法 勝」Hôshô, este possui o sentido de vencese com as leis. Não fica claro se seriam as “leis” da justiça ou as leis do templo ou 117 Hôgen no Ran: guerra civil ocorrida em 1156 pela disputa do poder envolvendo os clãs Taira e dos Minamoto, assim como a família Fujiwara com a vitória dos Taira. 118 Heiji no Ran: guerra ocorrida em dezembro de 1159 entre o shogun Minamoto no Yoshitomu e Taira no Kiyomori pela disputa do poder central. Taira sai vitorioso. 63 até mesmo uma referência às práticas que os imperadores impunham. A complexidade de sentidos pode possuir uma explicação: o ideograma hô 「法」 tanto pode ter o significado de “lei”, “normas” quanto o ensinamento do Budismo119. A hipótese mais provável é a de que, de acordo com a época histórica, as leis realmente se vinculem à crença budista. Todavia, percebe-se que tanto como “normas” quanto “palavras de Buda”, ambos trazem além do sentido de “normas reguladoras” de uma sociedade uma forma de domínio. O segundo, 「尊 勝」Sonshô, com o sentido de vencer honorificando, faz uma possível alusão à necessidade de respeitar os vencedores ou, “respeito ao ato de vencer”, dado o primeiro ideograma possuir o sentido de “venerar”, “respeitar” 尊 son, e o segundo grafado com o ideograma de “vencer.” O terceiro「最 勝」Saishô, conforme o seu primeiro ideograma, um prefixo “o mais”120, passa uma idéia de uma conquista sob todas as circunstâncias. O quarto, 「円 勝」Enshô, que tem no seu primeiro ideograma o significado de arredondado ou circulo, simboliza o ato de vencer com harmonia ou “às voltas” com conquistas ou as conquistas contínuas por estarem em circulos121. No quinto, 「成 勝」Seishô, encontramos seu significado, tornar-se vencedor, dado o primeiro ideograma possuir o sentido de transformação. Por último, 延 勝」 Enshô, “vitórias contínuas ou vitórias perpétuas”, pois o primeiro ideograma 延 en possui o significado de estender. A disposição sintagmática dos primeiros ideogramas dos nomes dos templos 法 尊 最 円 成 延 é algo também recorrente. Lembram, inicialmente, pela sonoridade e imprementação de ritmo, alguma passagem da leitura de um Sutra 122 : hô, son, sai, en, sei, en. Embora não tenha sido possível obtermos a informação da etimologia 119 Transliteração arcaica de hofu 仏 que possuía o sentido de ensinamentos do Budismo. O ideograma “mottomo” 最も, como advérbio ou ”sai”最, como prefixo antepondo-se ao outro ideograma, expressa o sentido de superioridade. Como prefixo, traduzindo-se como “o mais”, formando uma palavra composta pela junção dos ideogramas como o de “saishô” 最勝. Com isso, o segundo termo passa a ser modificado e pode ser traduzido como “vence-se/vitórias sempre”, “”vencer com superioridade” ou “mais vitórias”, daí termos preferido a tradução “uma conquista sob todas as circunstâncias” 121 A tradução do termo foi efetuada seguindo-se os sentidos possíveis do ideograma “e” 円, círculo, arredondado ou, conotativamente, um espaço ou território. 122 Escritos sagrados do Budismo. 120 64 dos seus nomes, considerando-se a crença, é de se supor que teriam alguma base semântica advinda de termos budistas. São os seguintes os significados dos ideogramas: Hô 「法」elemento que sugere lei ou algo supremo ligado ao budismo, son 「尊」 venerar, respeitar, sai 「最」prefixo com o significado de “o mais”, en 「円」circulo/arredondado, sei 「成」 tornar-se, vir a ser, com idéia de mudança ou transformação en 「延」estender/continuar e, com o segundo ideograma katsu 勝, “vencer/conquistar”, o conjunto sugere a seguinte possibilidade de interpretação: “as conquistas são asseguradas e tornamse perpetuadas pelo ato contínuo da fé daqueles que mais honorificam/honram as leis”, ou seja, os seguidores das “leis” terão vitórias/conquistas asseguradas e contínuas. Tal apreensão é possível pelo fato de a sintaxe da língua japonesa ser em SOV123, em que o segundo ideograma, “vencer” katsu 勝, um verbo, faz com que os primeiros ideogramas desempenhem uma função adverbial e sejam responsáveis por abarcar o sentido de “como vencer” ou o que a ”conquista” representaria. Além disso, o emprego do substantivo templo, tera ,寺、que aparece por último em todos os nomes, revela, discursivamente, um elemento nocional com características deônticas124. Esse dado curioso pode ser explicado pelo fato de haver cada vez mais a necessidade de recursos para os gastos, a princípio, com as cerimônias nos templos e esta teria sido uma forma de pressionar aqueles que possuíssem qualquer bem para efetuar doações em troca de títulos de nobreza, concessão de cargos ou benefícios que elevariam os seus stati. É possível também observar que o recurso lingüístico empregado na escolha dos ideogramas antepostos ao de “vencer” é estrategicamente elaborado. Caso contrário, entende-se que qualquer outro ideograma poderia ser admitido, já que aparentemente seriam “nomes” dos templos. A conotação, pois, que a disposição dos ideogramas deixa transparecer é algo 123 Diferentemente do português, a sequência SOV da língua japonesa obedece a ordem de sujeito, objeto e verbo. 124 Do grego to deon, “aquilo que convém fazer” que opõe a obrigação à permissão cuja apreciação se dá sob a ordem moral ou institucional. Cf. DUCROT, Oswald & TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. Trad. Alice Kyoko Miyashiro et. al. São Paulo: Perspectiva,1998, p. 281. 65 recorrente, demonstrando a importância do funcionamento da retórica, que parte do verossímil mediante a articulação com a vivência. Assim, os critérios religiosos, um misto de xintoísmo, budismo, cristianismo e confucionismo, com destaques maiores ou menores, vieram ratificar e demonstrar o poder vigente da época. Nesse ínterim, os samurai cada vez mais ascendem politica e socialmente, pois apesar da existência dos daimyô, os samurai que atuavam diretamente nos combates ou cumpriam tarefas a eles impostas foram recompensados com o aumento de seus poderes no período Kamakura. Contudo, tal prática também extingue-se, quando o shôgun Minamoto no Yoritomo (1147-1199) passa a administrar Kamakura, a atual Província de Kanagawa. A partir dessa época é que podemos ver de forma acentuada a liderança dos samurai, cujo poderio dura por cerca de 700 anos. Como uma das formas para assegurar o poder, praticava-se, por um lado, a doação de terras produtíveis aos pequenos proprietários, pois assim se garantia, por questão de gratidão, que eles partissem para as guerras todas as vezes que fossem convocados e, por outro lado, a doação do arroz que colhessem, observando que tal prática é advinda do chamado giri, 「義理」, “obrigação”, “dever”. Em fins do período Kamakura e início do período Muromachi, os piratas coreanos que tentavam estender os seus limites até a China são controlados pelo então terceiro shôgun, Yoshimitsu Ashikaga, que aproveita para estabelecer oficialmente o comércio com a China, conhecido como Kangôbôeki 「勘合貿易」, literalmente “comércio exterior de comum acordo” 125 , para ele economicamente proveitoso. Em 1467, o oitavo shôgun da sucessão, Ashikaga Yoshimasa, a partir da disputa pelo poder central, faz com que os daimyô se dividam em 2 grupos e os sucessivos embates duram cerca de 11 anos na região de Kyoto, como por exemplo a guerra Ônin no Ran em 1467, que é considerada como marco do início das guerras civis sengoku jidai126. 125 Em Yamashiro (op.cit., p.269) encontramos a tradução ”comércio exterior autorizado” Em Yamashiro (op.cit., p. 271) encontramos a designação “época de país em guerra, período de guerra entre feudos” e em Louis Frédéric (op.cit., p.1013) “como época de países em guerra“, como a da Ônin no Ran. (Revolta no período ônin, do imperador Gotsuchi Mikado correspondente aos anos 1467-1469). 126 66 Nessas batalhas, o poder dos shôgun começa a decrescer, permitindo que os subalternos mais ambiciosos começassem também a ascender graças as guerras civis. As posições de destaque alcançadas pelos antes subalternos tornaram-nos senhores, sendo esta época conhecida como gekokujô, 下克上127. Desse modo, os superiores foram derrubados pelos seus subalternos, que então tomaram a liderança no governo. Viveram-se décadas de conflitos e disputa de poderes. É a época conhecida como sengoku jidai 「戦国時代」 (literalmente “período de guerras no país”), acima mencionada, que dura cerca de 100 anos, depois dos quais os novos daimyô passaram a ser conhecidos como sengoku daimyô 「戦国大名 」(o “daimyô do período de guerras”). Tal sistema de turbulência política e social traz como alguns de seus mais importantes dados o surgimento dos samurai, por nós analisado, e os períodos Kamakura (1192-1333) e Muromachi(1338-1573). Entre 1573-1603, período denominado de Azuchi Momoyama 128, surge um daimyô que conquista vários territórios e os incorpora aos seus domínios, Oda Nobunaga (1534-1582). Até então um pequeno daimyô da região de Owarinokuni, hoje Provincia de Aichi, Oda era partidário de Ashikaga, porém acaba por derrubá-lo, aliando-se a Toyotomi Hideyoshi. Nobunaga emprega as armas de fogo introduzidas pelos portugueses na ilha de Tanegashima, atual Província de Kagoshima ao sul do Japão, e consegue se manter na liderança do governo até que, traído pelo samurai Akechi Mitsuhide acaba sendo assassinado por este em 1582, em um episódio conhecido como Honnôji no hen, (Levante no Templo Honnôji) numa alusão ao nome do Templo Honnôji onde fora morto. As tentativas de Nobunaga em unificar os territórios e, por que não mencionar, estender o seu domínio, permitiram que o comércio e artesanato fossem livres. Nobunaga efetuou um amplo comércio com portugueses e espanhóis, inclusive estando o Cristianismo em franca ascensão, introduzido na região pela chegada ao território do padre Francisco Xavier, da Companhia de Jesus, em 1542. 127 Literalmente “conspiração dos subalternos”. Esse termo foi retomado nos anos 1920, com uma conotação um pouco diferente, para descrever o estado de insubordinação militar que se havia instalado no Japão e por meio do qual jovens oficiais contestavam as decisões tomadas pelos mais velhos. (Frédéric, 1008, op.cit., p.319). 128 Denominação do período, formado pelos nome dos castelos que ficavam em Azuchi e em Momoyama, perto de Quioto. 67 Aparentemente este fora um dos motivos da sua morte, pois o Budismo começava a se enfraquecer em favor do Cristianismo. Desta forma, o período apresentava ainda muitos conflitos pelo poder e o cenário político continuava caótico. Um outro shôgun sucede Nobunaga, Toyotomi Hideyoshi (1537 -1598). Este, após derrotar Akechi, que havia conspirado contra Nobunaga e que o levara à morte, constrói um reduto em Osaka, o atual Ôsakajô, “castelo de Ôsaka”, que se tornou uma espécie de quartel general de onde passou a governar. Hideyoshi, desse modo, assegura o seu poder; faz o levantamento das terras produtíveis e passa a cobrar taxas para garantir a sobrevivência dele e a do seu grupo. Destacou-se também ao instituir a proibição do uso de espadas, katana, ou de qualquer armamento pelos camponeses, numa medida que foi chamada de katana gari, literalmente “caça aos katana”. Tal ato contribui para que se acentuassem mais negativamente as relações já afetadas entre os samurai e as demais camadas da parte restante da população. Em 1590, Hideyoshi consegue, de uma certa maneira, o seu intento: a unificação do arquipélago, mas sucumbe às tentativas de estender o seu poder até a Coréia, invadindo-a em 1592 e em 1597, sem lograr êxito. A Era Edo chega, assim, após sucessivas guerras pela disputa de poderes e, se por um lado a vida da população era caótica, por outro viu-se o florescimento cultural em franca expansão, pois a situação política conturbada de lutas intermitentes não afetara muito os camponeses já que eram estes que garantiam a fonte de alimentação dos daimyô com a produção de arroz, havendo inclusive uma revitalização no campo. No plano cultural encontram-se a cerimônia de chá, o teatro nô e kyôgen 狂言 e o haikai, 俳諧 frutos da associação da cultura aristocrática predominantes de então com as classes dos samurai, tendo sido, tais manifestações inclusive, expandidas à população em geral. As introduções do Período Kamakura como as das seitas budistas Jôdo, Zen e Nichiren129 contribuíram também para assegurar a hegemonia política da época sob o pretexto do apoio cultural. 129 Jôdo: abreviaçao de “saihô no gokuraku no jôdo – paraíso ocidental da Terra pura./Zen: Ensinamentos sem uma doutrina específica, a qual rejeita a veneração de imagens. A realização de si é obtida através da auto-meditação, o zazen, literalmente, “meditação sentado no chão”./ Nichiren: seita inicialmente chamada de hokke-shû com base nos ensinamentos do Sútra de Lótus, 68 A cerimônia de chá, o chá maccha trazido da China como remédio, passa a ser amplamente apreciada, após Senno Rikyû 130 (1522-1591) tê-lo tomado numa cerimônia, nomeando o ato de sadô 「茶道」, literalmente os “caminhos de chá”, que simbolizavam o estado de alma e paz 「和敬静寂」wakeiseijaku131, e seijaku 「静寂」132, que enfatizam a paz e a harmonia. Paralelamente, o comércio com os portugueses e espanhóis fez com que pudessem ser desenvolvidas novas técnicas e conhecimento de novas mercadorias. Inclusive, termos como “pão”, “calça” e “bolo” foram introduções portuguesas no léxico japonês. O padre João Rodrigues (1561–1633) compila a primeira gramática japonesa Nihondaibunten, 「日本大文典」, tornando-se este o primeiro manual de gramática nipônica feita por estrangeiros. Esse era o quadro cultural e político quando a Era Edo se inicia. Hideyoshi é derrotado na batalha de Sekigahara por Tokugawa Ieyasu (1542-1616), que se instala em Edo (atual Tokyo), passando a comandar dali. Seu clã fixa-se no poder por cerca de 250 anos e toma importantes medidas para o futuro da história japonesa, dentre elas, a do fechamento dos portos aos reinos estrangeiros de então. As literaturas133 de um modo geral apontam a batalha de Sekigahara, em 15 de setembro de 1600, como marco para o início da Era Edo (1603-1867) ou Período Tokugawa, com Ieyasu, no poder. A princípio, a batalha teria sido mais uma das muitas ocorridas pela disputa de poderes ou sob a pretensa “unificação da nação japonesa”. Após a morte de Toyotomi Hideyoshi, shôgun antecessor, o território japonês passou a ser administrado com a divisão em regiões do leste, liderados pelo shôgun Ieyasu, e as do oeste, pelo shôgun Ishida Mitsunari (1560–1600). Mitsunari, partidário do clã Toyotomi e incomodado com o prestígio de Ieyasu, pretendia coibir a fama deste. Isso desencadeou um conflito em que Mitsunari trama contra Ieyasu, Preconiza a recitação do daimoku – namu myôhôrenge-kyô como salvação. Dividido em nove ramos, hoje divide-se em inúmeras subseitas. Cf. FREDERIC, op. cit., p. 546, 1299 e 868. 130 Teria introduzido a arte da cerimônia de chá no Japão. 131 wakei 和敬 representa o espírito de honrar a cerimônia dos participantes, concentrando a sua atenção. 132 Os objetos ao redor que complementam o recinto, o jardim e os utensílios da cerimônia. 133 YAMASHIRO,José. A história dos samurais. São Paulo: Massao Ohno – Roswitha Kempf/Editores, 1982. Nihon no Rekishi. Tokyo: Shôgakukan, 1974. TOYOTA, Takeshi. Nihonshi gaisetsu (Compêndio da História do Japão). Tokyo: Hôsei daigaku s/d. NISHIYAMA, Matsunosuke. Edo Culture. University of Hawai I Press.1997. INOUE, Mitsusada et.al. Nihonshi (História do Japão). Tokyo: Yamakawa shuppan, 1973. OWADA, Tetsuo. Nihonno rekishiga wakaru hon (Livro para entender a História do Japão).Tokyo: Mitsugawashôbô, 1991. 69 ao adotar a medida de manter como reféns os familiares dos daimyô reunindo-os em Osaka. Owada (1991, p.138) cita o momento como a “Guerra” de Sekigahara, tamanha foi a batalha que reuniu cerca de 15.800 homens, com 7.400 homens nas tropas do lado leste e 8.400 homens do lado oeste, tendo como uma das principais motivações a disputa pelo poderio econômico, porque, na época, o arroz predominava economicamente na região leste134, enquanto que no lado oeste135 a prata começava a ser usada como moeda corrente, configurando-se paulatinamente como a base da economia, pois a sua permuta traria benefícios comerciais. Ainda segundo Towada (op.cit., p. 144), esse registro constaria no livro Suiinkan´yôroku 「睡陰看羊録」do coreano Kyôkô (1567 – 1618)136, um habitante do arquipélago japonês na época e seguidor de Confucionismo, em que se lê que Ieyasu abriria os caminhos até a capital Kyoto com arroz, enquanto o seu opositor, Môri Terumoto (1553-1625), um dos lideres dos guerreiros do oeste sob o comando de Mitsunari, dizia que construiria uma ponte de prata, numa possível alusão aos intercâmbios comerciais com os estrangeiros. A batalha que culminou na derrota das forças do oeste, embora superiores em número, é atribuída à traição de Kobayakawa Hideaki (1582-1602), cuja tropa, no auge dos combates, ataca o seu próprio grupo, aliando-se a Ieyasu. Em decorrência desse acontecimento, a batalha de Sekigahara ficou conhecida também como tenkawake no tatakai 「天下わけの戦い」, literalmente “batalha da divisão do estado”. Destarte, a história da batalha demonstra a relevância do arroz criando inclusive a expressão “nôwa nônari” 「農は納なり」, a “agricultura como fonte de renda”, destacando a cultura do arroz como a base da economia. Após vencer a batalha de Sekigahara, Ieyasu instalou-se em Edo, atual Tokyo e, como uma das medidas para assegurar a sua hegemonia política e controlar a fonte de alimentação, distribuiu terras produtíveis entre os daimyô do território para assim manter a sua soberania. Tal medida visava não conceder oportunidades de 134 Região de Kanto que hoje engloba as Províncias de Tokyo, Chiba, Saitama, Kanagawa, Gumma, Ibaraki e Tochigi 135 Região de montanhas compreendida entre a atual Hiroshima e Okayama, conhecidas aquelas antigamente pelo nome de San´yôshô e abrangendo as províncias atuais de Tottori, Shimane e leste de Yamaguchi. 136 “Registros acerca do Japão”. Conf. Super daijirin (Grande dicionário de verbetes japoneses). Enciclopédia eletrônica. Tokyo: Sharp, modelo Papyrus, verbete Kyôkô item 6. 70 iniciativas independentes, uma vez que a principal fonte de renda dos samurai era o tributo pago pelos lavradores em arroz ou em dinheiro. Ieyasu estabelece, desse modo, uma sucessão de atos para ver garantidos os seus poderes e, dentre eles, a estratificação social em samurai, agricultores, artesãos e comerciantes shi, 士 nô, 農, kô, 工, shô 商. O fato da classe dos agricultores ser inserida após os samurai demonstrava a importância de sua atividade econômica, pois conforme salienta Yamashiro (op.cit., p.185) “não são os lavradores que foram valorizados, e sim o que eles produziam: o arroz”. Percebe-se, assim, que as camadas estariam dispostas vertical e hierarquicamente de acordo com as fontes de rendas com o objetivo de resguardar o domínio do dirigente Ieyasu. Um dado curioso chama-nos a atenção com relação ao personagem Ieyasu. Seria Ieyasu um shôgun que passava a imagem de poder e de austeridade, uma pessoa cautelosa ou insegura? Tal questionamento é baseado, por exemplo, na devoção exacerbada ao Budismo, pois ele teria escrito diariamente o Sutra namu amida butsu137 ou ao fato de, após o conserto do Templo Hôkôji, danificado por um terremoto, ver as inscrições contidas no sino como kokkaankou 国家安康138, e ter se sentido ofendido, pois os ideogramas do seu nome teriam sido rompidos. Embora o termo possuísse o significado de “paz e harmonia na nação”, os ideogramas 家 康, os mesmos do nome do shôgun, aparecem separadamente, kokka 国家, no primeiro termo, que significa nação/país e o segundo, ankô 安康, paz/harmonia. Isso foi entendido por Ieyasu como uma maldição que recaía sobre ele, ou seja, a sua hegemonia poderia estar ameaçada, pois na época vivia o shôgun Toyotomi Hideyori, filho de Toyotomi Hideyoshi, a quem Ieyasu temia pelo poder que demonstrava. Ao manifestar a desconfiança, provoca a ira ao Toyotomi. Ieyasu resolve em 1614 atacar o castelo dos Toyotomi em Osaka, mas não logra êxito. Essa batalha é denominada de Osaka fuyu no jin, a Batalha de Inverno de Osaka e, finalmente, no final de abril de 1614, consegue o intento na Batalha de Osaka natsu no jin, a batalha de verão de Osaka. 137 “Em nome do Buda Amida”. Formula encantatória e de devoção recitada pelos fiéis da seita Jôdoshû, com o objetivo de conseguir renascer no paraíso de Amida após a morte. (Cf. Louis Frédéric, op.cit., p.856). 138 Comumente traduzido como “Paz e harmonia da Nação”, embora ainda não se possa falar na época em “nação” ou “país”, pois são conceitos que remetem ao século XIX. 71 Questiona-se, contudo, se o fato não teria sido provocado por uma certa precaução ou prudência ou quiçá uma demonstração do poder por parte de Ieyasu, pois a pessoa envolvida era Toyotomi Hideyori, filho de Yodogimi, diante de quem Ieyasu se mostrava inseguro desde quando assumira o governo 139. À medida que Ieyasu se certifica dos seus poderes, dá início a prática de se ter os familiares dos daimyô como “reféns”, pois estes são obrigados a “residir” na capital. A prática, assim, evolui para o chamado sankin kôtai (Figura 9) 140 「参勤交 代」, em que os daimyô eram enviados para atuar em turnos em locais distantes e obrigados a gastos dispendiosos para as suas viagens inclusive para rever os familiares. Aos daimyô, desse modo, era vetada qualquer liberdade econômica, pois precisavam se preparar para as longas viagens que envolviam um enorme contingente de acompanhantes. A medida foi uma das formas de Ieyasu manter todos os daimyô sob o seu controle. Entretanto, tal medida contribui para que fossem construídas residências de permanências dos familiares e para os próprios daimyô quando estivessem em Edo, o que proporcionou prosperidade para a região. As viagens dos daimyô possibilitam levar a cultura da capital ao interior e as localidades por onde passava a comitiva prosperam com o aumento de hospedarias e comércios em geral. Figura 9: Gravura da comitiva dos daimyô. Pousada oficial das autoridades em Hakone (localizada na 141 Província de Kanagawa) 139 OKADA, Akio. Tokugawa Iyeyasu. Tokyo: Kaneko Shôbô, 1962, p.194. Sistema de servir por turno na corte do shogun Tokugawa, no qual os daimyô residiam alternadamente em suas fortalezas, geralmente distantes da capital, e na residência de Edo, o que,conforme a gravura acima, envolvia um número grande de seguranças (cf. Yamashiro, op.cit., p. 271). 141 In: http://blogs.yahoo.co.jp.seika/daigaku_nihongo5807068.html, acesso em 17/02/2011. 140 72 O sankin kôtai, exemplificado na imagem acima, foi uma das medidas previstas na Lei de Bukeshohatto, 「武家諸法度」, “código de normas de conduta dos samurai “, que constava de 13 artigos e foi promulgado por Ieyasu em 1615. O cumprimento desse código fez com que, até o terceiro shôgun, Iemitsu, dezenas de daimyô tivessem os seus poderes extintos por terem sido considerados infratores, tornando-se, assim rônin, 「浪人・牢人」, literalmente ”andarilhos”, pois não tinham mais onde permanecer ou trabalhar. Uma medida polêmica tomada na época foi a da proibição radical, iniciada já no governo de Toyotomi Hideyoshi, da prática do Cristianismo que começara a crescer. Entre 1614-1635, o governo Tokugawa impõe por meio de métodos violentos e de castigo a reconversão dos fiéis ao Budismo. Para se certificar quem seriam os seguidores do Cristianismo, a prática de fumiê, 「踏絵」 que consistia em fazer com que as pessoas pisassem nas imagens de Cristo e da Virgem Maria, foi amplamente empregada. Os fiéis que não pisassem as imagens eram presos ou, os mais rebeldes, condenados à morte. O auge dessas atrocidades e os altos tributos que os camponeses eram obrigados a pagar levaram à eclosão de uma rebelião em 1637 na ilha de Shimabara em Kyûshû, liderada pelo jovem Amakusa Shirô (16211638), de então 16 anos, filho de Masuda Yoshitsugu, antigo serviçal de Konishi Yukinaga, adepto do Cristianismo, ocasionando a morte de centenas de cristãos. A crescente propagação da fé cristã com os novos valores, percepções e influências distintas levaram Ieyasu a se sentir ameaçado no seu poder, dada a aquisição de novos costumes por uma parcela significativa da população. A idéia da existência de um Deus onipotente, pregado pelos cristãos, fazia, por exemplo, com que sua mensagem evangélica fosse considerada uma ameaça, pois Ieyasu via-se como o “onipotente”. Paralelamente, o confucionismo que começara a ser destacado no Período Kamakura veio atender plenamente aos ideais adotados por Ieyasu desde o início do seu governo, pois favorecia a manutenção da sua política interna em termos de obediência e respeito aos superiores, pregados pelo confucionismo. Desse modo, este desempenhou um papel representativo não só no tocante à política administrativa do período, como também influenciou a área educacional e filosofia 73 política. Estabeleceu-se um modelo de sociedade harmoniosa, dada a aparente paz depois de longos anos de conflitos que antecederam a Era Edo. Entrementes, o fato da ideologia da doutrina confucionista estar acima dos governantes fez com que as medidas, por vezes despóticas, fossem passadas como sendo “em benefício do povo” 仁政 jinsei, mantendo a concepção de uma ordem moral142. Tal ideologia contribui para que se consolide ainda mais a hierarquização das camadas sociais da época shi, nô, kô, shô, garantindo a todos a imunidade das adversidades com o respeito demonstrado ao “superior”, sendo mais uma forma da centralização do poder. Sabe-se, entretanto, que a sociedade nipônica da época não era composta somente por essas quatro camadas. A restrita menção na maioria das bibliografias, sobretudo as didáticas, ao grupo de trabalhadores designados por eta、e aos hinin 非 人, que correspondiam àqueles que executavam trabalhos pouco valorizados, como, por exemplo, enterrar animais mortos, ou artesãos que lidavam com couros, revela a desconsideração para com estes. Isso pode ser demonstrado, inclusive, pelo ideograma do termo hinin 「 非 人 」 143 , que expressa aquele que “não é humano/gente”, com o que se negava até mesmo a sua existência como seres humanos. Trata-se de uma ideologia segregacionista trazida pela estratificação social que, inclusive, proibia o contato de alguém do restante da população com membros desse grupo. O período denominado Hôken shakai, “sociedade feudal” 「封建社会」, deste modo, vem atender, juntamente com o Confucionismo, aos propósitos dos dirigentes da época. As normas vieram consolidar o domínio da hierarquização dos homens a partir do topo da pirâmide social, estendendo-se até ao seio das famílias japonesas, em que o primogênito teria um prestígio maior depois do pai. A expressão dansonjohi 「男尊女卑」 a “supremacia dos homens sobre as mulheres” - mostra o papel da mulher relegado ao segundo plano, a quem se negava, por exemplo, o direito às heranças. 142 Segundo Tonia Yuka Koroku, a adoção do Confucionismo pelo governo como doutrina oficial serviu para manter o apoio moral à ordem social hierárquica, incutindo nas pessoas a idéia de que aquela hierarquia constituía uma ordem natural imutável. In: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journal/2/artciles/33319/public/33319-42542-1PB.pdf, acesso em 06/10/2010. 143 非 hi Prefixo de negação que modifica o segundo termo e 人 hito/nin, pessoa, literalmente, ”não gente/pessoa”. 74 Pelo lado dos samurai, havia um código de respeito máximo aos seus superiores, pois um subalterno deveria se dirigir àqueles sempre de forma modesta. Vivia-se uma sociedade centralizada pelo poder absoluto daqueles. Aqueles podiam portar livremente as espadas katana e possuíam plenos poderes, até de matar. Caso viessem a considerar um desrespeito qualquer manifestação por parte de alguém do povo, o indivíduo era “julgado”, e “condenado”. Isto gerou até a expressão kirisute gomen 「斬り捨てごめん」, literalmente “te corto e deixarei jogado, desculpe” ou, “licença para matar” numa forma lacônica diante de um assassinato144. Destarte, apesar da aparente calma e de “paz ininterrupta” 145, era evidente a autoridade e superioridade absoluta dos samurai, mesmo com a vigência da Lei de bukeshohatto. Com a proibição do Cristianismo, o livre comércio com os portugueses é também vetado pelo segundo shôgun Hidetaka (1579-1632), ficando restrito apenas a pequena ilha de Dejima em Nagasaki. Chega-se, assim, a medida extrema de fechamento dos portos aos estrangeiros que duraria cerca de 250 anos. Trata-se do sakoku 鎖国(1633-1639) 146 , que visava o fortalecimento da sociedade feudal e a garantia da hegemonia política instalada. Apenas aos holandeses foi permitida a permanência na pequena ilha e com estes os nipônicos mantiveram contatos diretos. A manutenção do intercâmbio com os holandeses ocorreu, segundo Saruya Kaname147, devido ao fato destes serem protestantes, ou seja, os países europeus como Portugal ou a Espanha professavam a fé católica, e os japoneses não queriam adotar o catolicismo. O possível motivo para a proibição teria sido um trecho de um documento que teria sido enviado a Companhia de Jesus, achado décadas depois, 144 “Permissão de cortar”. Os samurai da Era Edo tinham o direito de matar todo aquele que, pertencente às classes inferiores, lhes faltasse com o respeito ou os ofendesse. Cf. FRÉDERIC, op.cit., p. 661 145 Bito Masahide e Watanabe Akio. Um perfil cronológico da História Japonesa. Tokyo: International Society for Education Information, s/d, p.13. 146 Segundo Owada (op.cit., p.166) a causa do fechamento dos portos aos estrangeiros teria sido o fator econômico. Na época, século XVI, o período de grandes navegações no Ocidente, a chegada dos europeus ao continente japonês e um próspero comércio, principalmente no sul, levou ao fortalecimento da região. Isso fez com que o governo Tokugawa se sentisse ameaçado, pois não admitia nenhuma possibilidade de que um daimyô pudesse prosperar e consequentemente ter algum poder em mãos. Assim, a intenção primordial seria o monopólio do comércio. Em razão disso, acrescenta ainda Owada, que o governo Tokugawa nunca teria mencionado sakoku e que o termo mais adequado seria bôekihogoseisaku 貿易保護政策 uma “política de comércio protecionista” (p.168). 147 Contato entre a Cultura Japonesa e a Estrangeira. In: Palestras sobre a Cultura Japonesa. Associação dos Cidadãos de Origem Japonesa no Exterior, março de 1999, p. 27. 75 da autoria de um membro da própria Companhia de Jesus, Pedro de La Cruz, que dizia que O Japão tem forças navais muito fracas e os armamentos insuficientes. Dependendo da decisão da Vossa Majestade, os nossos exércitos poderiam dominar este país. Além disso, a região, sendo um país insular, tomar as Ilhas de Shikoku e Kyûshû e a Ilha de Shikoku não será nada difícil 148 ”. Embora tal fato não tenha sido referenciado em outras fontes consultadas, também os motivos reais que levaram Ieyasu a adotar a política de isolamento não fica(m) claro(s). Dentre os 15 shôgun do Período Tokugawa, se alguns agiram de forma enérgica como Ieyasu, Hidetaka e Iemitsu, outros como Ietsuna, Tsunayoshi149 ou Ienobu tiveram atuações sem muita expressão. Talvez por terem recebido um sistema de governo já estruturado, os três últimos somente deram continuidade à forma herdada, até que em 1830 o arquipélago é agitado pelas revoltas dos camponeses hyakushô ikki 「百姓一揆」, o levante dos agricultores. Os agricultores, insatisfeitos com os altos encargos dos tributos que eram cobrados pelos samurai, resolvem manifestar o seu descontentamento e dificuldades por que passavam, ocasionando cerca de 3000 rebeliões de porte durante todo o período Tokugawa. Pela política da época, considerada uma ofensa à autoridade, já que esta era regida pela fidelidade hierárquica, a manifestação dos camponeses foi duramente penalizada e os seus lideres em sua maioria executados com o intuito de coibir qualquer manifestação por outros grupos contrários ao sistema do governo. Aos poucos, o governo Tokugawa começa a enfrentar uma série de problemas de estruturação. Como não bastassem os levantes constantes dos camponeses, a conspiração dos samurai contra o sistema político vigente e a 148 「日本は海軍力が非常に弱く、兵器に不足している。そこでもしも国王陸下が決意されるなら、 わが軍は大挙してこの国を奪うことができよう。そしてこの地は島国なので、主としてその内の一島、 すなわち、下又は四国を包囲することは安易であろう。」Nihonwa kaigunryoku ga hijôni yowaku, heiki ni fusokushiteiru. Sokode moshimo kokuôheikaga ketsui sarerunara, wagagunwa taikyoshite kono kuniwo ubaukotoga dekiyou. Soshite konochiwa shimaguninanode, omotoshite sono uchi no ittô, sunawachi, shita matawa Shikokuwo hôi surukotowa an’i dearô. Cf..Owada, op. cit., 1991, p. 110. 149 Apelidado de inushogun, literalmente shogun cachorro. Desde a morte do seu filho e não podendo ter mais filhos homens, Tsunayoshi institui em 1685 a “lei de misericórdia a todos os seres viventes”, passando a proteger os cães, seguindo os conselhos de um monge, pois na vida anterior teria matado muitos desses animais. 76 própria fragilidade administrativa, o governo precisava lidar com as invasões dos navios estrangeiros. Na época, a Revolução Industrial ocorrida na Europa levou países como Inglaterra, Rússia e França a adentrarem os territórios asiáticos em busca de comércio, dentre eles o Japão. O primeiro, um militar russo, teria sido Adam Kirillovich Laksman, não conseguindo, contudo, êxito nas negociações. Posteriormente, navios ingleses, russos e americanos passaram a chegar cada vez mais no mar do Japão, fazendo com que o governo mantivesse um controle rigoroso. Foi em 1853,que a esquadra americana comandada por Matthew Calbraith Perry aporta em Uraga (região da atual província de Kanagawa) com os seus dois navios a vapor assustando os japoneses. Após muitas negociações, o governo sela, em 1854, o Nichibei washin jôyaku 「 日 米 和 親 条 約 」 , ou seja, o Tratado de Amizade 150 entre Japão e Estados Unidos, pondo fim aos cerca de 250 anos de isolamento. Para que possamos entender um pouco melhor a evolução política da Era Edo, traçamos uma síntese dos nomes do 15 shôgun Tokugawa e alguns dos seus feitos: 1. Tokugawa Ieyasu (1542-1616) governou entre 1603-1605: fundador da dinastia herereditária dos shogun Tokugawa conquistada a partir da guerra de Sekigahara (1600). Uma série de batalhas sucederam-se até um certo momento de estabilidade, entre elas as de fuyu no jin 「冬の陣」e natsu no jin 「 夏 の陣 」 mencionadas anteriormente. É estabelecida a estratificação das classes sociais de shi, nô, kô, shô 士農工商 e o fechamento dos portos aos estrangeiros. 2. Tokugawa Hidetaka (1579-1632) governou entre 1605-1622: terceiro filho e o segundo shôgun. General a serviço do seu pai, combateu em Sekigahara, mas teve um poder discreto, pois o pai, Ieyasu reteve o comando em suas mãos e continuou a governar. 150 Yamashiro (op.cit., p.211) cita como “Tratado de Amizade e Comércio” com os Estados Unidos. O tratado contribui para a abertura dos portos aos estrangeiros, mas no mesmo não consta o intercâmbio comercial (cf. Enciclopedia eletrônica Sharp, modelo Papyrus. Verbete Nichibeiwasjôyaku, pesquisado em Super daijirin (Grande dicionário de verbetes japoneses). Em Nihonshi (História do Japão, Yamakawa Shuppan, 1973) de Inoue Mitsusada et.al., é citado que um dos artigos do Tratado fala em “abastecimento de combustível e alimentação aos navios americanos”(p. 222). O Tratado de Amizade e de livre intercâmbio comercial Nichibei shûkô tsûshô jôyaku 日米修好通商条約 foi firmado em 1858 (Nihonshi, op.cit., p.223). 77 3. Tokugawa Iemitsu (1604-1651) governou entre 1623-1651: filho mais velho de Tokugawa Hidetaka e terceiro shôgun de Edo. Mantem o rompimento das relações com o exterior. O estabelecimento de sankin kôtai, que obrigava os daimyô a residirem em Edo a cada dois anos fez com que, cada vez mais, o poderio fosse consolidado. Protegeu o Budismo e o Confucionismo, sempre perseguindo os cristãos, como na revolta de Shimabara em 1638. 4. Tokugawa Ietsuna (1641-1680) governou entre 1651-1680: sucessor de Iemitsu, torna-se o quarto shôgun. Consta que por ter uma saúde frágil deixou os seus conselheiros governarem em seu nome. Proibiu os suicídios por fidelidade, junshi 殉死 em 1663. 5. Tokugawa Tsunayoshi (1646-1709), governou entre 1680-1709: quinto shôgun. No início de seu mandato, governou sabiamente, protegeu as artes e as ciências com a ajuda de seu conselheiro Hotta Masayoshi. Todavia, após a morte deste, em 1684, deixa de se preocupar com o seu governo. A moeda desvaloriza-se e aumenta o imposto. Com problemas mentais, estabelece a proteção a todos os seres vivos, em particular, dos cachorros, que lhe rendeu o apelido de shôgun dos cachorros「犬将軍」inu shôgun. 6. Tokugawa Ienobu (1662-1712) governou entre 1709-1712: adotado por Tokugawa Tsunayoshi em 1704, sucedeu-o como sexto shôgun. Anulou algumas das leis do seu tio Tsunayoshi e fez reformas monetárias. 7. Tokugawa Ietsugu (1709—1716), governou entre 1713-1716: sucessor de Ienobu e o sétimo shôgun. Seguiu basicamente a política anterior com o auxílio do estudioso confucionista Arai Hakuseki. 8. Tokugawa Yoshimune (1648-1745) governou entre 1716-1745: inaugurou, em 1721, o costume de colocar na entrada do seu castelo um tipo de caixa de ideias, meyasu bako 「目安箱」, para receber reclamações e sugestões dos habitantes. Protetor das artes e das letras, preocupou-se com os mais pobres aos quais distribuía arroz, além de estabilizar o preço, o que lhe valeu o apelido de o shôgun do arroz, kome shôgun 「米将軍」. Promulgou leis de contenção de despesas e, interessado nas ciências ocidentais, atenuou as leis que proibiam o uso de livros estrangeiros. 78 9. Tokugawa Ieshige (1711-1760) governou entre 1745-1760: com saúde abalada, não demonstrou interesse pelos assuntos públicos. Deixou o seu pai e depois seu chanceler, Ôka Tadamitsu governarem em seu nome. 10. Tokugawa Ieharu (1737-1786) governou entre 1760-1786: ordenou que fossem feitas traduções de livros estrangeiros e foi um promotor das “ciências ocidentais” rangaku 「蘭学」, ran, significando Holanda e gaku, estudos. 11. Tokugawa Ienari (1773-1837) governou entre 1786-1837: com uma administração sem grandes feitos e relativamente monótona, enfrenta a revolta dos ainu, habitantes nativos de Hokkaido. Teve 40 concubinas e 55 filhos. Enfatizou a aliança com outros daimyô fazendo-os casarem com suas filhas. 12. Tokugawa Ieyoshi (1793-1853) governou entre 1837-1853: enfrenta um momento de embate crítico com a chegada ao Japão do comodoro Perry com uma carta do presidente dos Estados Unidos, Fillmore, e o pedido de abertura de portos. 13. Tokugawa Iesada (1824-1853) governou entre 1853-1858: Perry retorna pedindo novamente a abertura de portos, concretizando o intento em 1854, nos portos de Shimoda, Hakodate e Nagasaki. Consultou, pela primeira vez na história do xogunato, o imperador para a política a ser adotada. 14. Tokugawa Iemochi (1846-1866) governou entre 1858-1866: ocorreram, durante o seu governo, o incidente do movimento contra os governos militares de Chôshû, em Shimonoseki, e o bombardeio de Kagoshima pelos aliados em 1863151. 15. Tokugawa Yoshinobu (Hitotsubashi Keiki, 1837-1867, governou entre 1866-1913): último shôgun da Era Edo. Opôs-se ao imperador, mas pediu demissão de seu posto. Retorna a Kyôto em 1897 e foi enobrecido em 1902 sem, no entanto, exercer algum poder político. Contudo, as sucessões não ocorreram de forma pacífica. As crises domésticas, como a fraca atuação de alguns shôgun e dificultadas pela política nacional e internacional, começam a abalar as bases da tão longa hegemonia dos Tokugawa a partir do século XIX. Começam a surgir grupos de samurai descontentes com o sistema político e outros a favor da restauração da monarquia 151 Cf. Fréderic, op. cit. 2008, p. 1186. Não foram encontrados nas fontes consultadas os detalhes do incidente. 79 plena e, nesse entremeio, a evolução do poder econômico dos comerciantes faz com que estes pudessem ingressar na classe dos samurai. O status passa a ser negociável e não foram poucos os comerciantes mais proeminentes portarem katana. Percebe-se, desse modo que, a mudança dos tempos influencia e muito o pensamento das camadas sociais japonesas de um modo geral, que começam a clamar por reformas e, juntamente com à chegada dos navios estrangeiros, fazem chegar ao fim uma era tida como de “paz ininterrupta”. Não obstante a longa hegemonia e complexa política dos Tokugawa, no Período Edo afloram grandes transformações na área cultural iniciadas desde o século XIV. Com a economia em expansão, paradoxalmente atribuída também a estratificação social, a população, principalmente a classe dos comerciantes, passa a produzir e usufruir das atividades culturais. Além do desenvolvimento da cerimônia de chá, o teatro Nô 「能」 e Kyôgen 「狂言」e a sua popularização, o poema haikai152「俳諧」, o teatro kabuki 「歌舞 伎」e as xilogravuras ukiyo-e,「浮世絵」despontam como expressões artísticas populares que podem ser vistas até os dias de hoje O haikai teve, no período, como um dos seus grandes expoentes, o poeta Matsuo Bashô (1644-1694). A coletânea de poemas considerada sua obra-prima é a de Okuno no Hosomichi, Trilha de Oku153, produzidos durante as suas viagens por Kitakantô154, Tôhoku155, Hokuriku156, com uma distância percorrida de cerca de 2400 quilômetros e concluída por volta de 1689. Uma demonstração de sentimento de “Paz Ininterrupta” expressa acima encontra-se refletida no seguinte poema de Bashô: 古池や 152 蛙飛びこむ 水の音 Esta forma de poema tem sua origem no renga, literalmente “poemas longos”. Eram cantados de forma encadeada e eram compostos por 5,7,5,7,7 sílabas métricas separadas em versos superiores e inferiores. Na era Edo passam a ser lidos somente os primeiros versos de 5,7,5 e Matsuo Bashô (1644-1698) consolida este tipo de poema como arte, usando a designação haiku , “poema síntese”, de três versos. O termo somente afirma-se a partir da Era Meiji com o poeta Masaoka Shiki. Tem como temáticas as estações de ano e a maioria das composições de Bashô foi feita durante as suas viagens em busca do seu ideal de vida. 153 Termo empregado por Eico Suzuki em Literatura Japonesa de 712-1868. São Paulo: Editora do Escritor, 1979, p. 48 154 Engloba as regiões norte das Provincias de Tôkyô, Chiba, Saitama, Kanagawa, Gumma, Ibaraki e Tochigi 155 Região nordeste do Japão que engloba as províncias de Aomori, Iwate, Akita, Miyagi, Yamagata e Fukushima. 156 Região que compreende as Províncias de Fukui, Ishikawa, Toyama e Niigata. 80 furuikeya (5 sílabas) kawazu tobikomu (7 sílabas) mizu no oto (5 sílabas) velha lagoa / mergulho duma rã / o ruído de água (“A quietude reinante ao redor da velha lagoa é interrompida pelo leve ruído provocado pelo mergulho da rã. Depois, a volta ao silêncio inicial”.) Além de Bashô outros poetas proeminentes contribuíram para o período, Yosa Buson (1716-1783) que, além de ser poeta atuou como pintor e Kobayashi Issa (1763-1827). A cerimônia do chá, originária dos hábitos dos monges Zen, foi transformada num evento cultural e apreciada por muitos. A arte do arranjo floral também começa a despontar neste período com o nome de kadô 「華道」, o caminho da flor, que objetivava assim como a cerimônia de chá o desenvolvimento espiritual com o cultivo da paz e da harmonia. A sua introdução é atribuída a Ikenobô Senkei157, que teria atuado entre 1457 e 1466, seguindo a prática do arranjo floral em vasos e que deixou o legado do destaque à beleza na simplicidade do ato de levar flores a recintos fechados. No teatro, ao lado do nô, kyôgen e bunraku,「文楽」 o kabuki é considerado um dos expoentes do período. O kabuki 「歌舞伎」158 era apresentado inicialmente por um grupo de mulheres como segmento da dança denominada kabuki odori, dança kabuki, criada por Izumono Okuni159 . No entanto, pelo fato de ter sido imitada por mulheres que teriam desvirtuado o sentido da dança, atentando contra a moral e os bons costumes da época, a prática foi proibida em 1629 dando lugar ao wakashû kabuki, jovens rapazes com franjas, prática também proibida em 1652 por estimular o homossexualismo. O teatro kabuki atual é originário do yarô kabuki160 que sucedeu 157 Sem informação quanto à data do seu nascimento ou da sua morte. O teatro reúne 3 elementos: canto, ka, 歌、bailado, bu 舞 e arte, ki 伎. 159 Data de nascimento e o ano da sua morte desconhecidos. Teria atuado entre os anos de 1580 até o início do Período Edo. 160 Designação dada aos homens do Período Edo que tinham o cabelo raspado da testa até o centro de cabeça. O termo literalmente possui a acepção de insulto como “velhaco”, “desgraçado”, “patife”, dentre outros. 158 81 aos wakashû 161 , “jovem rapaz” sendo encenado somente por atores do sexo masculino. O teatro nô162 remonta ao século XIII, quando os rituais e danças precedentes foram unificados (Figura 10). Era exibido inicialmente para as classes privilegiadas. Trata-se de uma dança-drama que combina canto, pantomima, música e poesia. Suas raízes podem ser encontradas no Nuo 「傩戏」, uma forma de teatro da China. Figura 10: Teatro Nô http://pt.wikipedia.org/wiki/Noh Acesso em 28/11/2010 O foco da narrativa encontra-se no protagonista, shite, o único que porta uma máscara. O coadjuvante, waki, presente no palco à direita e de costas sentado na parte anterior, não interfere no curso da ação, apenas é revelador da essência do shite. Um coro que se senta à direita na lateral, e quatro instrumentos que se encontram no centro, ao fundo, auxiliam na condução da trama através do bailado do protagonista. Esse coro possui uma função decisiva na dramatização, conduzindo a narrativa. O kyôgen163 é um teatro clássico cômico japonês e, como o nô, foi criado no Período Muromachi (1392-1573). Não se pode classificá-lo sempre como um tipo de 161 Às vezes “homossexual”. O termo wakashû origina-se das peças de kabuki encenadas por adolescentes, de 1629 a 1652. Devido ao homosexualimo existente entre os atores, elas foram proibidas. Conf. FRÉDERIC, op. cit., p. 1244. 162 KOKUMIN-HYAKKAJITEN (Enciclopédia do povo japonês). Tokyo: Heibonsha, 1966, volume 5, p.30. 163 http://www.acbj.com.br/japao-a-z-interna.aspx?japao=56, acesso em 28/11/2010. 82 comédia, pois seu humor nem sempre é feliz, e algumas peças fazem uso de elementos satíricos. Algumas chegam a alcançar os limites da tragédia e das lágrimas ou focalizam o isolamento e a solidão humana. No começo, as peças do kyôgen eram apresentadas nos intervalos das peças do nô, mas depois passaram a ser encenadas independentemente. Eram representadas apenas por homens (como no teatro nô), que geralmente se apresentavam com o rosto limpo, mas há momentos em que utilizavam máscaras, preferindo sempre as cômicas. Algumas máscaras são adaptações das utilizadas no nô que, e apesar de penderem para o humorismo, normalmente são relativas à sociedade ou de alguns personagens. Outra modalidade de manifestação cultural também se destaca no período, a de bunraku, o teatro de marionetes, que remonta ao século XVI. Os bonecos são em tamanhos iguais à metade de uma pessoa de estatura mediana e os seus movimentos são efetuados por três titereiros. As peças são acompanhadas por instrumentos de três cordas, shamisen, junto à narração do enredo. Na arte destacam-se as xilogravuras ukiyo-e, o mundo flutuante 164 . São ilustrações que retratam o quotidiano da população em geral do período e os temas oscilavam desde uma luta de sumô 165 às mulheres em trajes sensuais. O termo ukiyo remete ao sentido de “um mundo transitório”, daí, apesar da tradução adotada na maioria dos dicionários como “mundo flutuante”, ter a acepção também de “o mundo num instante de tempo”166. Entre os seus artistas destacam-se Hishikawa Moronobu (1619-1694), Kitagawa Utamaro (1753-1806) e Katsushika Hokusai (1760-1849), entre outros, que tiveram as suas obras lançadas no cenário artístico europeu, influenciando artistas como Monet e Van Gogh167. 164 Conforme os ideogramas que compõem a palavra: uki 浮 flutuante, yo 世 mundo e e 絵 gravuras/imagens. 165 Sumô, luta de corpo a corpo sobre um tipo de ringue. Os lutadores são corpulentos e são preparados exclusivamente visando adquirir maior resistência física. 166 http://www.rio.br.emb-japan.go.jp/noticias/NIPPON/nippon002.htm, acesso em 05/10/2010. 167 Conforme Frédéric (op.cit, p.1236) “As estampas ukiyoe foram “descobertas” desde 1827 pelos europeus (como Titsingh, por exemplo), mas foi graças a Félic Bracquemont, um desenhista francês, e a Théodore Duret que foram difundidas nos círculos europeus. A Exposição Internacional de Londres de 1862 e a Exposição Universal de Paris de 1867 permitiram que os amantes de arte as descobrissem novamente. Elas provocaram então um entusiasmo e deram origem a um movimento artístico chamado “japonismo” que influenciou vários pintores como Claude Monet..., Vincent van Gogh...”. Fascículo n°.1 da Coleção Gênios da Pintura, van Gogh. São Paulo: Abril Cultural Ltda. Editor Victor Civita, 1967, p.7. http://www.toyotistas.com/forum/arquvio-toyotistas-modelos-e-historiada-toyota/2620, historia-do Japão-eras-9e10-a-html, acesso em 6/10/2010. 83 Na educação, com a difusão dos terakoya 「寺子屋」, escolas que foram criadas em templos budistas ao longo do Período Edo para que a população, de um modo geral, tivesse acesso ao aprendizado da escrita e aritmética, expandiu-se a instrução de forma ampla e irrestrita. Assim, a chamada população citadina, referida como chônin168, 「町人」 alcançou em geral o direito à educação, mas embora não houvesse menção a respeito nas bibliografias consultadas, dada a estratificação social da época, acreditamos que aos hinin169 tal oportunidade, se foi concedida, foi dada de uma forma restrita ou, negada. Destacam-se também as iniciativas no campo de estudos clássicos japoneses e nos estudos das ciências ocidentais, que possibilitaram o surgimento de movimentos como o de kokugaku, estudos nacionais, voltados aos pensamentos do povo japonês, buscando os seus elementos nos primórdios da cultura japonesa que antecederam a introdução do budismo e do confucionismo. Entre os seus estudiosos estão Kamo no Mabuchi (1697-1769) e Motoori Norinaga (1720-1801). Posteriormente, Hirata Atsutane (1773-1843) faz uma abordagem de estudos até o xintoísmo. Conforme exposto, o Período Edo, sobretudo já nos seus períodos finais, contribuiu para que uma parte da população economicamente mais ativa, artesãos e comerciantes, pudesse ter acesso à instrução, assim como a oportunidade de se destacar nas artes conhecidas de então. Nesse sentido, pode-se inferir que a época traçou os alicerces da educação japonesa, embora este período de intercâmbios restritos, motivados pelo fechamento de portos aos navios estrangeiros e, principalmente pela estratificação social, não permitisse que todos tivessem acesso de forma imparcial à educação, como no caso dos agricultores. Não é possível negar, porém, a existência no arcabouço da cultura do Japão de então de vários aspectos religiosos do budismo e do confucionismo que vieram a se somar aos do xintoísmo. Além disso, os conhecimentos introduzidos da China contribuíram para a base ora da arquitetura, ora dos costumes, ora da filosofia de vida japonesa, somando-se àqueles oriundos das influências ocidentais, gerando, como visto, novos paradigmas socio-culturais. 168 Designação genérica adotada no período aos que não eram nem nobres, nem guerreiros e nem camponeses. Inicialmente o termo englobava somente os comerciantes e os artesãos. (cf. Frédéric, op.cit., p.184) 169 Os “não humanos”. Camada social distinta das 4 existentes no governo Tokugawa devido às suas atribuições consideradas “não dignas”. 84 2.1.2 O Japão Contemporâneo O chamado Japão Contemporâneo engloba os períodos Meiji (1868–1912), Taishô (1912 - 1926), Shôwa (1926 – 1989) e Heisei (1989 - ). A abertura dos portos aos estrangeiros após o isolamento de cerca de 250 anos imposto pelo Shogunato Tokugawa traz significantes transformações nas áreas sociais e econômicas no país. O imperador, diferente do período Edo, passa a usufruir de plenos poderes. Com a Reforma Meiji, embora se extinga a classe dos samurai, a estrutura social praticamente continua a mesma. As bases rurais, por exemplo, permaneciam inalteradas, com os familiares dos lavradores se empenhando nas suas colheitas e a margens das grandes transformações. Se, de um lado, havia o sistema das propriedades privadas que pertenceram aos templos e aos samurai, por outro, com a chegada da Reforma Meiji, as propriedades passam para o âmbito familiar com a sucessão das terras passados para o primogênito. Com os lemas, “oitsuke” (alcançar) e “oikose” (ultrapassar), conforme citados na Introdução, com o objetivo de se igualar às potências estrangeiras, o Japão começa a introduzir rapidamente os costumes ocidentais, como que tentando reverter um possível “atraso” político-econômico decorrente de seu período de isolamento. Surgiram bancos, fábricas, ferrovias ao lado dos milenares costumes da população, que começou a experimentar os novos tempos. Destacam-se a importação de conhecimentos por meio de traduções, contratação de estrangeiros e o início de formação de japoneses no exterior. Ao longo de nossa pesquisa, percebemos que o Japão sempre tivera os conhecimentos, pelo menos nos seus primórdios da civilização, introduzidos pelo continente e que hoje são tidos como genuinamente nacionais. Entretanto, ao nos determos alguns momentos sobre como o cultivo de arroz fora introduzido, o idioma, a cultura, as primeiras formas arquitetônicas, a ocidentalização pós Era Meiji, etc. não é possível ignorarmos que as questões culturais receberam uma influência muito grande as das ditas exógenas. Em termos de idioma, o primeiro contato nipônico deu-se com o chinês, depois com o português, no contato com os europeus, com o holandês no período de fechamento dos portos e, posteriormente, após a abertura, com o inglês, com cujos países – Estados Unidos e Inglaterra - o Japão mantinha uma certa relação 85 restrita. Mesmo após a 2ª.Guerra Mundial, em que o Japão sai perdedor, foi o inglês o idioma que maior destaque alcançou. Conforme destaca Saruya (1999, op.cit., p.29), evidenciam-se nesse processo importantes traços da história cultural japonesa como o acolhimento e simultanemente a recusa do novo, mas sempre em uma forma cíclica e interativa, pois é notório que os encontros com os idiomas estrangeiros acabam por também deixar os seus traços culturais no idioma nipônico. Uma das primeiras medidas do governo Meiji é a abolição das quatro classes sociais da Era Edo. Os samurai recebem uma nova designação como shizoku 「士 族 」“da família/grupo de samurai”. Paralelamente ao objetivo de expansão o governo Meiji estabelece o sistema de recrutamento obrigatório fazendo com que os samurai perdessem o poder por completo, daí originando um sentimento de insatisfação do grupo. Ocorrem rebeliões lideradas por Saigô Takamori, entre outros, mas as mesmas encerram-se diante do poderio dos novos armamentos que haviam sido introduzidos. Numa tentativa de política expansionista, eclodiram guerras com o objetivo de tornar colônias os territórios pertencentes a China (1894-1895), Rússia (1904–1905) e há a anexação da Coréia em 1910. Com isso, o Japão começa a adquirir prestígio no cenário asiático, mas exigindo sacrifícios da população, principalmente diante das dificuldades de um país em guerra. Ideologicamente estabelece-se o chûkun aikoku 「忠君愛国」, fidelidade ao “Senhor soberano da Pátria amada”, enaltecendo o amor e a dedicação ao soberano. Para isso foi erguido um santuário xintoísta, Yasukuni Jinja, em Tokyo para a realização de cultos de manifestação de “sacrifício patriótico” e demonstrar a lealdade ao imperador que seria, segundo Yamashiro (op.cit., p.231), a continuidade do espírito samurai. O imperador Meiji falece em 1912 sucedendo-lhe no trono o príncipe Yoshihito, que denomina a nova era de Taishô. Uma dos acontecimentos mais graves que viria abalar a sociedade japonesa foi a participação do Japão, um país em desenvolvimento, na 1ª. Guerra Mundial em 1914, motivado por interesses econômicos dos países como a Inglaterra, França e Rússia contra os aliados formados pela Alemanha, Áustria-Hungria, Império Otomano e Bulgária. O Japão participa assumindo um tratado com a Inglaterra. As conseqüências refletiram-se diretamente na população que reivindicava comida, 86 cada vez mais escassa. Ocorreram distúrbios que ficaram conhecidos como kome sôdô 米騒動 “movimento, tumulto de arroz”. Nove anos depois, um grande terremoto na região de Kantô assola o país, deixando centenas de pessoas entre mortos e feridos. O imperador Taishô falece em 1926 e ascende ao trono o imperador Hirohito que denomina seu período de governo como Era Shôwa. Em 1940 é concluída a aliança tríplice entre Japão, Alemanha e Itália, já em meio à 2ª. Guerra Mundial. Em 1941, o Japão declara guerra aos Estados Unidos e a Inglaterra e as suas conseqüências foram catastróficas, sendo talvez uma das principais o lançamento da bomba atômica sobre as cidades de Nagasaki e Hiroshima com milhares de mortes, deixando um rastro de destruição e de doenças sem precedentes. O Japão sucumbe e rende-se incondicionalmente em 1945 diante da superioridade bélica dos Estados Unidos e seus aliados. Após a 2ª. Guerra Mundial, o Japão revê a sua Constituição, tornando o imperador um “símbolo do estado e unidade do povo”. Nas décadas seguintes são introduzidas reformas de ordem política, social, econômica e cultural. A partir da década de 50, a reconstrução econômica ganha velocidade e vigor, explicada de acordo com Yamashiro 170 , como decorrência, por exemplo, da manutenção do regime monárquico, fator que contribuiu para a conservação por parte do povo do senso de disciplina social e política, pois o imperador tido como descendente da Deusa Amaterasu continua a ser considerado hoje, embora para uma parcela restrita de japoneses, um ser divino devido a crença de que o imperador descende da deusa. Nessas rápidas descrições do início da Era Contemporânea os embates, embora em moldes diferentes, permaneceram sob a continuidade de uma supremacia de um poder central. A reabilitação econômica e as importações começaram a produzir um consumismo intenso. Aparentemente, os quase 250 anos de isolamento de nada significaram no tocante aos valores de vida diante deste novo cenário de produtos e modos de vida importados. Ao mesmo tempo em que se desenvolvia uma ideologia que justificava a inserção do Império Japonês até 1945 no palco geopolítico mundial, como de fato aconteceu, aparentemente não se questionavam os efeitos dessa 170 Op.cit., p. 246. 87 “ocidentalização” em massa. A construção de prédios e trens-bala, a proliferação das indústrias e de locais de diversão à moda européia e americana são exemplos para esta época de transformações que tinham um modelo internacional. Reiteramos que nos primórdios da chamada cultura japonesa, com o início do contato com o “continente” chinês, as importações e as “niponizações” seguiam praticamente o modelo advindo da China. Templos, datas comemorativas, muitos deles não são originários do Japão. Curiosamente, chegando-se a Era Contemporânea, após a abertura dos portos, encontramos um modelo totalmente ocidental, ou seja, a dita globalização e o multiculturalismo já haviam se iniciado desde que o Japão tivera os seus primeiros contatos com a China. Entrementes, não podemos deixar de nos indagar como o boom das importações teria sido aceito no “íntimo da alma dos japoneses”, de explicitação complexa, e os seus reflexos produzidos. Se havia o progresso num aspecto, a sociedade japonesa, acredita-se, não estaria preparada para tantas novidades de uma só vez. Segundo Koroku,171 a ausência do espírito liberal e do individualismo do povo japonês, conforme demonstrado ao longo de sua história, fez com que a sociedade mantivesse os costumes e hábitos nos antigos. No caso do Direito, contudo, conforme destaca Koroku, a história desde a Revolução Meiji resume-se praticamente na recepção do direito e da ciência jurídica ocidental sendo tudo “importado” pelo governo. O sentido de Estado diligente, prossegue a autora, é que teria criado a burguesia japonesa, todavia a figura do imperador como uma divindade encarnada e invencível não permitiria uma reflexão acerca do tipo de sociedade que começara a se formar. Paralelamente à reestruturação econômica, o Japão consolida-se no campo diplomático. Em 1956, o país torna-se mais ativo no cenário político com a sua admissão às Nações Unidas. O Tratado de Segurança com os Estados Unidos, assinado inicialmente em 1951, torna-se mais recíproco em suas características após a revisão em 1960. Negociaram-se as reparações e o pagamento das dívidas de guerra. Após uma prolongada série de negociações, o Japão restabeleceu relações formais com a República da Coréia em 1965. Desta forma, em cerca de duas décadas após a sua derrota na 2ª. Guerra Mundial, o Estado japonês apresentava uma franca recuperação das conseqüências 171 KOROKU, Tonia Yuka. In: REID – Revista Eletrônica Internacional Direito e Cidadania http://www.reid.org.br/print.php?CONT=00000035, acesso em 15/1/2010. 88 da guerra. As Olimpíadas de 1964 simbolizaram a nova esperança do povo japonês e desde 1975 o Japão integra o G-8, grupo de países mais economicamente desenvolvidos do mundo. É a partir dos anos 70172 também que se observam grandes transformações em todos os aspectos da sociedade japonesa, tais como: o aumento gradativo das exportações que, de um déficit de 16 trilhões, 545 bilhões e 3 milhões de em (yen) em 1975, passa para um superávit de 61 trilhões, 170 bilhões de en (yen) em 2004 (aumento de 3,7 vezes em cerca de 30 anos); as importações de 17 trilhões, 170 milhões de en (yen), em 1975 passam em 2004 para 49 trilhões, 216 bilhões e 6 milhões; o êxodo populacional das áreas rurais para os grandes centros; o número de estrangeiros no arquipélago que ultrapassa o número de 200 mil pessoas em 2004; aumento no número de viagens ao exterior e no da população idosa; a admissão de mulheres nas empresas e em papéis de destaque; elevação da taxa de criminalidade; aumento do número de veículos, de famílias que passaram a comer em restaurantes; aumento da aquisição de produtos elétrico-eletrônicos. Entretanto, à medida que os japoneses passam a usufruir de “melhores condições materiais de vida”, outras reivindicações, como a das melhorias da qualidade da vida ou como a da prevenção contra poluição começam a surgir, aparentemente mais centradas nos rumos do chamado “progresso”. De fato, concebemos que se trata de uma conseqüência natural da dita evolução e transformação do sistema de vida. Hoje, são necessidades e uma vez sanadas, amanhã haverá outras, tudo em nome de uma sociedade estável e harmoniosa, em cujo interior o capitalismo possui um papel preponderante. Os vieses, nesse processo, sem dúvida, perpassam aquilo que Michael J.Sandel chama de “lógica financeira”173, pois a valorização das diferenças é (re)pensar a relação de um com outro. Trata-se, pois, da complexidade de distinção dos termos yutakasa, “rico”, “farto”, “abundante”, e benrisa “útil”, “conveniente”, “cômodo” dentro de uma sociedade capitalista e globalizada que, indubitavelmente, reflete cada vez mais acentuadamente as diferenças que começam a se destacar. Essas diferenças, não 172 1970 nendaino nihonto ima no nihon (O Japão dos anos 70 e o Japão atual). Tokyo: PHP Sôgô Kenkyûjô, 2006. 173 Jornal O Globo. Caderno Prosa de 11/8/2012, p.3-4. 89 perceptíveis, culminam na necessidade do homem “sentir-se devidamente inserido” no meio social, geográfico, político e histórico e, até, consigo mesmo. Embora o Japão tenha se tornado um dos expoentes no cenário mundial, há ainda discriminações como, por exemplo, contra os hâfu174, cuja designação é dada para os descendentes mestiços, com o pai ou a mãe estrangeiro. Numa sociedade em que muitos ainda acreditam na homogeneidade étnica, a mistura de raças atrelada a pouco hábito de debates sobre diversidade e multiculturalismo acaba por legitimar as discriminações175 Sakai Motoshi176 traz reflexões sobre o significado de “abundância”, yutakasa, pois o termo, de um modo geral, abarca o sentido ligado à economia, relacionado ao poder aquisitivo e a questões materiais. O autor pondera que o termo suscita um paradoxo, pois é algo que não se consegue “medir”, embora se relacione também com a satisfação das pessoas. Sakai exemplifica o paradoxo com uma situação de desemprego, na qual um cidadão embora vivesse em meio a uma sociedade de “yutakasa”, de abundância, acaba por sentir-se excluído. Assim, o seu grau de satisfação estaria comprometido, surgindo daí fatores que iriam influir na sua saúde mental entre outras. Para o estudioso, o termo yutakasa deveria abarcar a questão de felicidade, de satisfação pessoal, que gerasse realmente um sentimento de inclusão, pois a situação de abundância material estaria ligada somente aos elementos excludentes que fazem surgir fatores que influiriam na saúde mental, dentre outras complicações. Percebe-se desse modo que uma sociedade de yutakasa e de benrisa não contempla o ser humano de forma harmônica. Cria também um sentimento de insatisfação, de monotonia e até de solidão, conforme se depreende pelo início dos dois personagens dos manga com que trabalhamos neste tese. Lembramos mais uma vez a teoria de “violência simbólica” de Bourdieu (1996), conforme explicitada em nota de rodapé número 19, que acreditamos expressar o nosso raciocínio, e que demonstra a legitimação das diferenças existentes, transformando-as em “deficiências”. 174 Do inglês half, metade. Cf. Cláudia Sarmento, correspondente em Tóquio. Caderno Prosa. Jornal O Globo, 14/09/2013. 176 SAKAI, Motoshi. Seichô to kankyô – yutakasa to shimin (O crescimento e o meio – abundância e o cidadão). In: NISHIMURA, Shigeo et.al. Shimin to shakaiwo wo kangaerutameni. (Pensando no cidadão e a sociedade). Tokyo: Hôsô daigaku shuppan, 2011, p. 65-80. 175 90 Por outro lado, não podemos ignorar alguns dos acontecimentos que minaram os alicerces sociais do país como, por exemplo, o fator que ficou conhecido como a “economia bubble”, que, na década dos anos 90, devido a uma enorme demanda de aquisição de terras e ações e a repentina queda das mesmas, ocasionou uma onda de desempregos e falências das empresas. Outros exemplos como o do terremoto que assolou a região de Kansai, matando cerca de 6.500 pessoas em 1995, o ataque terrorista com gaz sarin atribuído ao grupo da seita religiosa Aum na estação de Tokyo, a inserção nas tecnologias digitais, o aumento da expectativa de vida com o aumento populacional com idade acima de 65 anos, os problemas sociais oriundos do recrutamento de um grande número de trabalhadores estrangeiros, dekasegi, entre outros, ainda marcam esta fase do Japão Contemporâneo. Sem dúvida, as transformações não ocorreram somente na esfera social ou econômica. Nesse processo, convém ressaltar, não apenas os valores de vida, como também os valores culturais se modificaram. Podemos destacar, além disso, o aumento das seitas religiosas ou novas religiões, algumas originárias do xintoísmo como a Tenri, outras do Budismo, como a Seichô no Ie e o Sôka Gakkai, fundada em 1930 como organização educativa, e que possui milhares de adeptos espalhados pelo mundo177. Procuramos, assim, demonstrar neste capítulo alguns dos traços históricos, ao nosso ver mais importantes para a história japonesa nos períodos estudados e que nos levam a elaborar questionamentos quanto à sociedade dita “multicultural” e “globalizada” dos tempos atuais. Com isso pretendemos expor que se, por um lado, o desenvolvimento econômico se evidencia como dominante, de outro haveria a necessidade de se levar em consideração o lado humano do processo. O materialismo e o consumismo exacerbados, através dos quais o aspecto econômico expõe todos os habitantes da aldeia global, ocasionam rupturas no íntimo dos homens. Tais estados emocionais e até patológicos merecem estudos sérios, pois a desigualdade sócio-econômica do Japão de hoje, embora não muito divulgada, reflete-se certamente na sociedade japonesa. No terreno político-ideológico, segundo Yamashiro (1982, p.25), o espírito samurai não se extingue de todo na alma dos japoneses. Um acontecimento de 177 In: Revista Soka Gakkai Internacional. Abril de 2005. Tokyo: Siekyo Shinbun, p. 2 - 11 91 repercussão como um desejo de regresso as origens marca o ano de 1970: o escritor Yukio Mishima morre, executando o ritual de seppuku (harakiri), quando malogra sua tentativa de sublevar as forças armadas. O exemplo vem a confirmar a situação vivida nos dias de hoje: desde os primórdios dos períodos, nos quais o Japão manteve contato com o exterior, já se configurava um embate entre o velho e o novo e com resquícios, por que não dizer, de momentos passados. Afinal, o povo japonês não havia conseguido desenvolver o individualismo, encontrando-se sempre numa espécie de grid178. O espírito samurai que se revelou com Mishima de alguma forma ainda perdura, mas com valorações diferentes. A sociedade japonesa transformou-se muito rapidamente e as mudanças ainda continuam de forma galopante. Ao lado dos legados culturais, como a da noção de giri, “obrigação”, “dever”, é também inegável que a modernidade faz com que o aspecto de ninjô, “calor humano”, perca espaço. Esse questionamento apontado pode ser respaldado por Kimura 179: ele indaga a questão do “ser humano” e o “material”, o “não humano” com que o consumismo acaba tendo que lidar, pois a globalização, um dos expoentes do capitalismo, provoca uma mudança nas estruturas sociais e culturais, fazendo com que cada vez mais a questão do “diferente” provocador de antagonismos venha a tona. É o que Stuart pondera, afirmando que se outrora havia uma marca sólida, hoje os indivíduos são cada vez mais conduzidos às fronteiras menos definidas (op. cit., p.93), neles ocasionando muitas vezes uma crise de identidade. Entendemos, por isso, que para a coexistência harmoniosa entre o “material” e o “humano”, este último considerando em seu sentido adjetival, seria necessária uma solução que pudesse atender a ambos, sem provocar rupturas e, por conseguinte, impossibilitar a formação de grupos minoritários, refletindo-se, isto sim, em direitos de cidadania. Tal idéia é subsidiada por Bakhtin (op.cit., p. 32) quando afirma que as questões discursivas devem ser consideradas sob o ângulo da heterologia e da 178 Alusão ao grid japonês, a disposição da arquitetura do desenvolvimento das cidades e das construções japonesas. Cf. KITAMURA, Masaki & KOKAZE Hidemasa. Nihon no rekishito shakai (A história japonesa e sociedade). Tokyo: Editora da Universidade de Hôsô, Departamento de Pósgraduação, 2009. 179 KIMURA, Keiichi. Gurobarizêshon no kôzai (O negativo e o positivo da globalização). In: Gurobarizêshon no jinruigaku(Antropologia da globalização. Tokyo: Editora da Universidade de Hôsô, Departamento de Pós-graduação, 2011, p.223. 92 pluridiscursividade. Para Bakhtin, um discurso mantém relações com outros discursos. Vagabond e Death Note e a análise dos manga em suas particularidades concernentes aos sentidos de Justiça/justiça e justiceiro possibilitaram emblematizar o aspecto dialógico das sociedades retratadas e por que não dizer, as incongruências entre o discurso e a prática sobre os conceitos e seus agentes. 93 CAPITULO III – DEATH NOTE E VAGABOND – o imaginário e as verossimilhanças: o multiculturalismo dos manga e as representações de Justiça/justiça-justiceiro 3.1 AS OBRAS Antes de passarmos à análise da temática deste capítulo, cremos ser imprescindível, num primeiro momento, uma síntese técnica sobre as duas obras, cujo foco será a inserção dos aspectos multiculturais e de Justiça/justiçajusticeiro/justiceiro nos respectivos manga, fato gerador da motivação para as escolhas destas fontes180. 3.1.1 Death Note181 Obra lançada em 2003 pela editora Shueisha composta por 108 episódios, distribuídos em 13 revistas cujo autor é Oba Tsugumi, cabendo as ilustrações a Obata Takeshi. A história conta a ação de um jovem Kira, adaptação fonética do inglês killer, pseudônimo do protagonista Ligth Yagami, que encontra o caderno deixado cair pelo “Deus da morte” shinigami182. Após constatar, induzido pelo shinigami, que aqueles que tiverem os seus nomes escritos nesse caderno morreriam de causas naturais, Light passa a escrever os nomes dos malfeitores e assim acontece uma sucessão de mortes que deixam entrever uma justiça sendo realizada. Os personagens, extremamente diversificados, num imaginário do real e do irreal, possuem os seus perfis específicos e curiosamente o único dentre eles que ama a justiça e odeia o mal é justamente Kira ou Light. Um dos poucos personagens descritos como o mais confiável é o pai de Light, Yagami Sôichiro, para quem a família é o bem mais importante. Ele perde a vida tentando solucionar as mortes. 180 Salientamos que a leitura das obras impressas em ideogramas ou em caracteres hiragana/katakana procedem da direita para esquerda, de forma contrária ao ocidental. 181 Traduzido como “O caderno da morte” no Brasil. O título original em japonês é “satsujin note” que significa “O caderno assassino”. 182 Palavra composta de shini, forma substantiva do verbo morrer e kami, termo originário do Shintô, religião japonesa. A palavra kami designa todos os seres divinos ‘superiores” à condição humana. Segundo a tradição, eles seriam em número de 88 milhões (número que indica infinidade). Cf. Fréderic, op. cit., p. 585. 94 Os variados nomes como Yagami Sôichirô, pai de Light, Raye Penber, agente do FBI, Aiber, profissional do submundo do grupo que compõe os “humanos” - e do lado “não humano”, mais especificamente os shinigami Ryuk, que deixa cair o caderno, Rem, shinigami fêmea, Shidoh, o verdadeiro dono do death note, com as suas feições fantasmagóricas - mostram a destreza e criatividade do ilustrador em conduzir os leitores a um mundo do fantástico, numa mescla do virtual imaginário e do concreto humano. Com relação aos shinigami, apesar de a sua origem não ser clara na trama e na tradição cultural, o que se sabe é que teriam sido criados nos anos 60, no auge da competição de desenhos japoneses (Speed Racer, Astro Boy) e americanos (Pica-pau, Pernalonga). Os desenhistas japoneses, tendo esgotado histórias com o tema ficção científica, decidiram criar um novo gênero baseando-se no sobrenatural. 183 Os shinigami também são descritos com os seus perfis: Ryuk (Figura 11), por exemplo, ama as maçãs e jogos, Rem (Figura 12), ama a afeição, Shidoh (Figura 13), chocolate e odeia fantasmas, ou seja, com todas as características emotivas e comportamentais de um ser humano. Figura 11: Ryuk In: http: //9500138907 chloeislin.files.wordpress.com2009/11/ryuk.jpg, acesso em 31 de janeiro de 2011. 183 In: www.soc.nii.ac.jp/fsj, acesso em 31 de janeiro de 2011. 95 Figura 12: Rem In: http://upload.wikimedia.org/sikipedia/en/5/50Rem.gif, acesso em 31 de janeiro de 2011. Figura 13: Shidoh In: http:3_bp_blogspot_com, acesso em 31 de janeiro de 2011. 3.1.2 Vagabond De autoria de Takehiko Inoue, a obra é baseada no livro de Eiji Yoshikawa, lançado em 1998. Apóia-se em fatos reais descritos em inúmeras bibliografias do personagem Miyamoto Musashi (1584 – 1645), que teria sido samurai da Era Tokugawa ou Era Edo (1603 – 1867). É considerado um dos heróis do Japão devido às suas histórias de luta que se pressupõem, em defesa dos mais oprimidos e à tentativa de obter a plenitude espiritual e guerreira. 96 Miyamoto Musashi é autor do livro Gorin no sho184, literalmente a “Escrita de 5 anéis”, numa alusão aos 5 elementos na natureza que são fundamentais na cultura budista: Terra (o centro do universo), Água (adaptação ao recipiente que a contém), Fogo (as energias), Vento (momento de introspecção) e o Céu (conhecimento das coisas existentes para conhecer as não existentes). Gorin no Sho tem como foco o pensamento do guerreiro na busca de sabedoria para enfrentar as situações mais adversas, demonstrando não somente força física, mas a concentração no controle da mente. Musashi teria escrito o livro numa caverna, desprovido de qualquer conforto material, e concluído a obra por volta de 1643. O livro é conhecido e a sua idéia é adotada em várias áreas, pois tornou-se uma filosofia de como vencer na vida com seu teor centrado em estratégias para obtenção do sucesso. Embora o livro seja utilizado como guia para se ter êxito, o local e a forma como a obra teria sido escrita lembram a história do mito da caverna de Platão185, em que a caverna representaria a sociedade com as suas normas que são transmitidas e que o homem, ao se dar conta do real (os embates do dia-a-dia) com os seus questionamentos advindos dos aspectos do multiculturalismo implícito, irá requerer “estratégias” para transpor esse mundo pleno de desafios cotidianos. Desse modo, a coincidência metafórica das obras conduz-nos a constatar a inserção de elementos que remetem às questões multiculturais, como, por exemplo, uma conotação que atrela a filosofia ocidental à filosofia budista. A própria linguagem das ilustrações também contribui para demonstrar os aspectos do multiculturalismo, como visto a seguir. 3.2 A linguagem imagética: discussões Tomando como primeiros teóricos a Santaella e Nöth, estes afirmam que “O mundo das imagens se divide em dois domínios. O primeiro é o domínio das imagens como representações visuais: desenhos, pinturas, gravuras.... 184 MIYAMOTO, Musashi. O livro dos cinco anéis – O verdadeiro sentido da estratégia. Trad. Henrique Amat Rego Monteiro. São Paulo: Clio Editora 2010. MIYAMOTO, Musashi. O livro de cinco anéis (The book of five rings). Trad. Fernando Barcellos Ximenes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002 MIYAMOTO, Musashi. Gorin no sho (O livro dos cinco elementos). Trad. Jose Yamashiro, São Paulo: Cultura Editores Associados, 1996. 185 In: http://www.brasilescola.com/filosofia/mito-caverna/platão.htm. Acesso: 27/08/2013. 97 Imagens, nesse sentido, são objetos materiais, signos que representam o nosso meio ambiente visual. O segundo é o domínio imaterial das imagens na nossa mente... Ambos os domínios da imagem não existem separados, 186 pois estão inextricavelmente ligados já na sua gênese.” Embora um estudo de sentido imagético possa perpassar a teoria semiótica, não adentraremos a discussão controversa dos conceitos, pois a nossa proposta no presente trabalho é proceder aos “olhares-plurais” na análise comparativa dos corpora selecionados. Efetuando uma apreensão dos manga como elementos de uma cultura de massa, destacamos um fator que contribui para o desenvolvimento dessa proposta inicial de discussão sobre a lingaguem imagética: a questão da representação dos processos cognitivos, que não pode ser desvinculada do pressuposto de que aquelas são signos e as operações mentais ocorrem na forma de processos sígnicos (SANTAELLA, op.cit, p.26). Temos, assim, a relação indissociável entre imagem o aspecto visual e a mente. Além disso, Santaella afirma que o código verbal não pode se desenvolver sem imagens. Isso ressalta o fato de que uma imagem sempre implica o uso de outras imagens (op.cit., p.14). Santaella e Nöth acrescentam que a palavra “teoria” já contém na sua raiz uma imagem, pois “teoria” na sua etimologia, significa “vista”, cuja origem está no verbo grego tehorein “ver, olhar, contemplar ou mirar”. Segundo Platão, a imagem não é o resultado da percepção (aithesis), mas tem sua origem na própria alma (apud SANTAELLA, p. 78). Neste sentido podemos inferir que a tríade da linguagem (tanto os elementos lingüísticos quanto imagéticos (logos, ethos, pathos), pode ser aplicada de forma articulada para um estudo ligado às imagens. O visual dos manga aliado aos seus recursos lingüísticos ativados pelo elemento cognitivo tem os seus “domínios materiais e imateriais interligados desde a sua gênese”, conforme afirma Santaella e Nöth (op.cit., p. 15) e, no seu interior, a alma adquire também um papel relevante que culmina na articulação do ethos com o pathos. Essa noção de articulação pode ser reforçada também pelo sentido da ideia imprementada pelo dialogismo de Bakhtin, não sob a premissa de “dois”, mas sim o dialogismo em que subjazem as “vozes”, através dos elementos ilocutórios e 186 SANTAELLA, op.cit., p. 15. 98 perlocutórios187, como também segundo Baccega (op.cit. p.6) pelo entendimento de que “... as palavras vestem-se de significados”. Trabalhamos, nesse sentido, com a etimologia do termo dialogismo como composto pelo prefixo grego dia, indicador de movimento - “através de” - que ao se juntar a logos, “palavra” e ao sufixo ismo denota, entre outros significados, um modo de proceder ou de pensar. Embora o termo seja aplicado com referência às palavras, caso o analisemos sob a ótica do discurso, percebemos que a imagem produzida pelos manga também possui seus sentidos. Cremos que isso possa ser comprovado pelo trecho que destacamos acima de que a “imagem não é o resultado da percepção... “(SANTAELLA e NÖTH, op.cit., p.78) Complementando os nossos raciocínios, o ponto de vista pode ser respaldado também ao nos remetermos, mesmo em se tratando de imagens, à teoria polifônica de Ducrot que explicita que as palavras provocam um efeito de sentido a partir de determinados procedimentos discursivos, ou marcas lingüísticas, como o emprego de onomatopeias, por exemplo. Embora se trate de imagens, nos manga encontramos, por exemplo, a presença dos shinigami, “Deuses da Morte”, na obra de Death Note, as quais atuam como “marcas” que determinam a produção de sentidos. Destarte, assim como a língua é dialogicamente apresentada sob as formas polifônicas, os manga também são passíveis de um entendimento das “vozes”, que produzem efeitos de sentidos e daí advindo, conforme expomos a página 20, toda a empatia ou catarse que provocam no leitor aficcionado e que caracterizam esse gênero de literatura como uma cultura de massa. Já pela ótica de estudiosos dos manga como McCloud (op.cit., p.06), numa forma objetiva este define os quadrinhos como “uma forma artística que é um recipiente que pode conter diversas ideias e imagens” e que “são imagens pictóricas e outras justapostas em seqüência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador”. (p.20, grifo nosso). A acepção “pictórica e outras justapostas” empregada por Mccloud, assinala um elemento pictográfico em que ideias são expressas por cenas figuradas ou por símbolos e nesse ato dotam-nas, por conseguinte, de sentidos, isto é, acabam se 187 Elementos ilocutórios: atos da fala que realizam ou tendem a realizar a ação nomeada. Elementos perlocutórios: funções da linguagem que não estão eliciadas diretamente no enunciado, mas dependem inteiramente da situação de fala. Cf. Dicionário de Lingüística (op.cit., p.330 e 465) 99 tornando-se suscetíveis de um pathos, principalmente porque, assevera McCloud, (op.cit., p. 20) que as imagens produzem uma resposta no espectador e, sobretudo, porque a imagem não é o resultado somente da percepção visual. McCloud acrescenta ainda que “o segredo dos quadrinhos não está no que a definição diz, mas no que ela não diz” (op.cit., p. 21), pois esses não abarcariam todos os gêneros ou assuntos e que, embora houvesse a tentativa de definição, os quadrinhos serão sempre um processo contínuo. Desse modo, embora o conceito de imagem também exija cuidado, dado o seu conceito controverso, no presente trabalho foram dados destaques igualmente aos sentidos produzidos pelo aspecto visual dos manga, ou seja, o que o visual do manga apresenta” e “representa” ao mesmo tempo, atuando, por vezes, como um ícone188 em conjunto com os recursos linguísticos. Já Tezuka (op.cit., p. 19), considerado o “Deus dos manga” pelos nipônicos, expõe que o manga reflete o “espírito crítico da massa” popular”. Isso porque os manga, nascidos de traços, a princípio, sem um propósito definido, são manifestações originárias de alguma insatisfação que o homem tem frente ao mundo em que ele vive ou oriunda das próprias inquietações humanas. Desse modo, percebemos que as produções quadrinhísticas têm o seu linguajar peculiar com os seus traçados e técnicas que transmitem uma emotividade ao leitor. Estendendo um pouco mais a linguagem imagética dos manga, encontram-se também as abordagens de Antonio Vicente Pietroforte 189 e Adir Peruzzolo 190 que reforçam o enfoque do nosso trabalho. Peruzzolo considera a comunicação entre uma linguagem falada e escrita a maior invenção do homem e que quando essa comunicação se dá no âmbito de imagens, igualmente o discurso nela inserido (op.cit., p.15) passa a representar um “jogo”, como o apresentado na Figura 14: 188 Segundo Santaella (op.cit, p.37), uma imagem pode ser um ícone, mas nem todos os signos icônicos são imagens visuais. 189 PIETROFORTE, Antonio Vicente. Análise do texto visual – a construção da imagem. São Paulo: Contexto 2007; Idem, Semiótica visual – os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2007. 190 PERUZZOLO, Adiar Caetano. Elementos de semiótica da comunicação - quando aprender é fazer. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2004. 100 Figura 14: os sentidos dos manga numa brincadeira In: PERUZZOLO, Adair Caetano. Elementos de Semiótica da Comunicação – quando aprender é fazer. Bauru, SP: EDUSC, 2004, p. 15 O que Peruzzolo propõe é que o leitor visualize as mensagens do código verbal, no caso o da língua portuguesa, escrita e do código numeral (2003, p.16), ponderando que: 101 (...) indo de um sinal ao outro, de uma matéria gráfica a outra e ligando as associações mentais que se criavam em você, você foi constituindo um sentido do que se propunha e articulou um novo conjunto de idéias que o levou a uma resposta (conduta) solicitada. 191 Chamamos a atenção para a “resposta (conduta) solicitada” que equivale à ideologia de bens simbólicos (apud SOARES, 1996, p.60) ou, a “manipulação a cognição social” de Van Dijk, anteriormente mencionada (cf. p. 27). Tal ideia é desenvolvida dentro da relação da tríade da retórica, em que o ethos e o logos determinam um pathos, mostrando o papel do “ethos” tanto na relação entre “dominantes” e “possuidores”, quanto entre “dominados” e “possuídos”. As imagens seguem a mesma relação. A noção do discurso perpassa as questões do código verbal e passam a produzir sentidos igualmente em imagens, daí nosso entendimento do manga como um elemento da cultura de massa. O fenômeno em que o manga se tornou mundialmente, diga-se de passagem, é uma cadeia de signos composta de unidades semiológicas192, em que os aspectos denotativos passam a produzir os conotativos, configurando-se numa forma especial de sentidos. Isso equivale a dizer que, num percurso visual de uma história em manga, as imagens atuam como uma sintaxe de uma frase e, motivadas, provocam um pathos nos leitores. Assim, tanto Tezuka quanto MacCloud apontam para os critérios dos traços desenvolvidos em narrativas manga. Os personagens, suas fisionomias, suas características, os recursos lingüísticos, enfim, os traços devem ser únicos, de modo a atingir o ethos do leitor e, ao mesmo tempo, carregar um potencial expressivo, em que alguns indicadores abstratos sejam apreendidos pelos leitores num “mundo invisível do símbolo” (op.cit., p.130). MacCloud (op.cit., p.131) explicita também que, para a constatação de um símbolo, mesmo pertencente a uma cultura específica, existe sempre a tendência à ampliação do seu vocabulário visual e, por que não dizer também, à ampliação de seus sentidos. 192 Conforme Peruzzolo,op. cit., p.109. 102 Figura 15: A apreensão numa extensão de sentidos Death Note volume 3, p. 59 Temos assim, retomando Peruzzolo, que toda comunicação pressupõe uma RELAÇÃO, mas nem toda relação é comunicação. Para o autor, a relação possui uma amplitude maior que a comunicação. Ou seja, para que uma relação possua o seu efeito é preciso que tenha os seus componentes específicos marcados, para que a mensagem transmitida possa ser captada pelos leitores. Percebemos que as colocações de estudiosos de áreas distintas culminam, quando se trata de manga ou desenhos quadrinhísticos, num mesmo ponto convergente: é uma linguagem específica capaz de, nas entrelinhas das suas histórias, provocar uma inter-ação, remetendo assim a uma mais ampla e complexa apreensão da linguagem como prática social. Numa rápida exemplificação do que vimos expondo, temos no desenho acima, figura 15, os recursos onomatopaicos de âmbito sonoro, pois na língua japonesa sua representação serve também para demonstrar um estado ou de que forma determinadas ações ocorrem, que ratificam a situação do trem partindo da estação e do personagem no seu interior. 103 O quadro inferior a direita, com o ponto de interrogação dentro do balão, expõe a estranheza da menina diante do personagem subindo às escadas não respondendo à saudação tôdaisei okaeri “já chegou, universitário de tôdai 193 ?”. Entretanto, o estranhamento pode expressar tanto o porquê de ter chegado naquele momento ou quanto à forma anormal de como sobe as escadas. A menção à Universidade de Tokyo, uma Instituição tradicional, dá margem a especulativa interpretativa de que o personagem pertence a uma classe elitizada. O hiato, a sequenciação das cenas, é responsável pela transformação das imagens distintas, a princípio, em uma única ideia dos leitores ativando o imaginário dos mesmos. Pietroforte (2007, p.8)194 já pondera a mesma questão a partir de um outro ângulo: a questão da discursividade da imagem, focando no processo de significação como capaz de gerar as relações entre o plano de expressão e o conteúdo que o autor denomina de semi-simbólicas. Segundo o autor, a manifestação do conteúdo é obtida de acordo com o plano de expressão. Uma relação, por exemplo, numa categoria semântica vida vs. morte tem a sua categoria plástica luz vs.sombra, de modo que a sombra se refira à morte e a luz à vida. É possível assim depreendermos que a apreensão dos estudiosos, embora pertença às áreas distintas e oscilem nas suas formas conceituais, tende a ser congruente. Desse modo, podemos inferir que toda linguagem, como prática social, perpassa pelo que Bakhtin denomina de dialogismo e que se refere às relações dos enunciados produzidos. Trata-se do dialogismo, no caso, compreendido não somente sob a perspectiva de diálogo, como já mencionado, mas dotado de uma estruturação interna “mascarada” ou “escondida” sob um conjunto de “marcas” lingüísticas ou imagéticas, expressando “ideias através de logos” Os discursos tornam-se dessa maneira polifônicos, ou seja, “vozes”, conforme destacado acima, passando a se expressar e provocando um pathos do leitor que, repetidamente reiteramos, permite que compreendamos o porquê dos manga terem se tornado uma parte integrante da cultura de massa. 193 Universidade de Tôkyô. Nome de uma das tradicionais instituições de ensino federal. Tem inicio como Universidade de Tôkyô, Tôdai, em 1877. 194 PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica visual – os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2007. 104 Os manga, com os recursos imagéticos e linguísticos interagem, “agem”, respondem e correspondem às expectativas dos seus leitores, pois discursivamente atendem ao que Kymlicka entende como multiculturalismo e que se caracteriza pela igualdade e liberdade sem que as camadas distintas estejam numa posição estanque ou existam lacunas. Segundo o autor, a questão da existência de partidos políticos de esquerda ou de direita não contempla integralmente os interesses dos indivíduos de uma sociedade contemporânea, pois aqueles são, a princípio, estabelecidos tradicionalmente sob a hegemonia no âmbito da política ou econômica. Na verdade, o que Kymlicka questiona é a questão das minorias, dada a sua diversidade e que deveriam ser tratadas de forma inclusiva, acrescentando que “... tecer uma reflexão política é algo que deve, estando no seu interior, compreender organismos dos costumes e tradições” (op.cit., p.3)195. Destarte, os manga, como manifestação de cultura de massa, com os seus elementos multiculturais expressos, conforme veremos nas análises, representam uma defesa das minorias, não somente no seu sentido econômico, mas ao mesmo tempo inserindo a própria questão da identidade. Retomando as ideias de Detienne, percebe-se que tais fatores, mormente expressos em “fundar”, “fundação”, culminam no binômio Justiça/justiça, destacadamente justiça, como veremos a seguir. 3.3 – Comparando as duas obras: os seus sentidos. 3.3.1 Death Note Os corpora da nossa reflexão foram selecionados dos volumes números 1, em sua grande maioria, 2, 5, 7, 12 e 13 já que a situação dos questionamentos se define no primeiro e é desenvolvida nos volumes seguintes. Os demais números relatam as justiças todas sendo feitas por “mortes naturais” como ataques cardíacos daqueles que tem os seus nomes escritos no caderno e confrontos psicológicos entre as autoridades que passam a caçar o “criminoso” Light, não sendo, portanto, mencionados. 195 「政治的判断とは、われわれ自身がすでにその内部にあって一心同体の関係を保持している諸種 の伝統や習慣を解釈するという問題にはほかならない。 」Seijiteki hihantowa, wareware jishinga sudeni sono naibuni atte isshindôtaino kankeiwo hojishiteiru shorui no dentôya shuukanwo kaishakusuruto iu mondaniwa hoka naranai. 105 Logo a partir da capa do primeiro volume “Tédio”, chamam a atenção algumas características de elementos multiculturais. A questão da justiça começa a ser estabelecida logo no início da trama: vê-se o protagonista, Kira ou Light, trajando roupas formais com uma foice e atrás dele dois elementos que seriam possíveis shinigami. Do mesmo modo encontramos a disposição das letras romanizadas em maiúsculas junto a escrita katakana196 do título Death Note (Figura 16). Figura 16: Death Note capa do volume 1 Observa-se também no Vol 1, p. 12, a escrita vertical com emprego da palavra em inglês e ao lado em japonês. Trata-se de um recurso de leitura empregado na escrita japonesa, quando vertical, cujos ideogramas tem as suas leituras facilitadas com o emprego dos chamados furigana197 (Figura 17). 196 197 Uma das escritas da língua japonesa, normalmente usada para grafar termos estrangeiros. Uma das escritas da língua japonesa, normalmente usada para grafar termos do próprio idioma. Exemplo: 夢ゆ め 106 DEATH NOTE デ ス ノ ー ト Figura 17: a disposição da escrita vertical Death Note, volume 1, p.12. Os exemplos abaixo deixam entrever, assim como o nome do personagem Light/Kira, o aspecto duplo da existência humana. O E, na direção contrária, o T, na vertical e, como aspecto multicultural, o Death Note transcrito em uma das grafias japonesas (Figura 18). Figura 18: a letra E ao contrário e A e T na horizontal Death Note, capa do volume 2. No exemplo abaixo verificamos que a disposição da tradução how to use é efetuada semelhante à figura 17, cujo termo em japonês, na escrita hiragana, é disposto como se fosse a leitura do termo em inglês, como how to use fosse um ideograma. Além disso, a expressão à esquerda zenbu eigoka mendoudana, “que chato, está tudo em inglês”, pode denotar uma crítica ao mesmo. (Figura 19). 107 HOW TO USE つ か い か た Figura 19: How to use e a sua tradução ao lado na escrita vertical. Death Note, volume 1, p. 12. Esse recurso é empregado também na página 21, com a palavra 空想 (Figura 20) na escrita horizontal: grafia katakana (de image) イメージ 空想 ideograma, cuja leitura é kûsô Figura 20: Recurso da escrita, cuja leitura adota a escrita inglesa, embora adaptada Death Note, volume 1, p. 21. Na questão discursiva observa-se que o início é marcado, por um lado, por Light, representando o mundo dos humanos, na condição de tédio e, de outro, no mundo dos shinigami também encontramos o mesmo sentimento, configurando deste modo uma igualdade em sentir-se no mundo. Destacam-se as falas do Shinigami, Itsumo onajikotono kurikaeshi, tsumarane. “Todos os dias são a mesma coisa, sempre repetindo, que chato!” e Kono yowa kusatteiru , “Que mundo podre!” aludindo ao mundo dos humanos. “Todos os dias são a mesma coisa” já induz o leitor a perceber um estado de tédio, principalmente pelos semas do termo como enfado, desprazer, aborrecimento, incômodo, lassidão, os quais remetem a um 108 entendimento não somente da “falta do que fazer”, mas também a todo um estado de negatividade. Inclusive a expressão facial já demonstra o estado de sentimento do personagem. Observamos que no enunciado da segunda fala, ”o mundo está podre”, o balão se situa numa posição em que deixar transparecer que o próprio Light estaria se manifestando dessa forma. Não fica claro qual dos dois “mundos”, o humano ou dos shinigami, estaria sendo mostrado e causando já uma certa tensão. (Figura 21). Figura 21: as falas do “mundo humano” e a do “mundo dos shinigami” Death Note, volume 1 p. 5 109 Os personagens encontram-se em convergência e passam a agir em cumplicidade, Light, a princípio, na luta contra os malfeitores e, Shinigami, para satisfazer o seu tédio, usando Light como diversão. Yagami Além disso, o nome completo Yagami Light( ;夜神)cujo significado de Light Yagami como Deus da noite e Light( ideogramas poderia ;月)- lua - conforme a disposição dos ser entendido como “Deus da noite” que “ilumina”, principalmente pelo ideograma de lua que indicaria “claridade”. No entanto, ele é o personagem central que provoca as mortes. Pode-se aventar o nome Light a partir de uma outra perspectiva: a claridade também é possuidora do lado escuro. Isso faz com que possamos interpretar o personagem como representante de os dois lados do ser humano, o claro/positivo e o sombrio/negativo. Neste sentido, a disposição de alguns dos caracteres romanizados, traçados de forma contrária (demonstrado na Figura 18), é um aspecto recorrente para mostrar o aspecto reverso inerente aos seres humanos. Light ama contraditoriamente a justiça, pois ocasionando as mortes de supostos malfeitores, ele estaria justamente transgredindo as leis ou as normas legais passando a “agir” após ter o caderno em suas mãos como justiceiro para expurgar o mundo dos criminosos. No entanto, embora malfeitores, o que acontece são assassinatos perpretados por Light. Esta maneira do personagem conceber a justiça/justiça talvez possa advir do fato de seu pai ser policial, o que conferiria a Light, contudo, a sua própria conduta e seu próprio e peculiar código de justiça. Entretanto, a personagem deixa-se atrair pelo poder e passa a cometer vários assassinatos dada a facilidade para isto, pois bastava para isso escrever os nomes dos “marginais” no seu “caderno da morte”. Abaixo observa-se a mudança na fisionomia do personagem Light quando do contato inicial com o caderno, com um ar despreocupado, e quando começam as “condenações” dos malfeitores que culminam nas mortes (Figura 22). 110 B A B A Figura 22: Mudança nas fisicionomias de Light. Figura A: Death Note Volume 1, p. 14. Figura B: Death Note Volume 7, p. 24. Suas ações levam a polícia japonesa e até as forças policiais estrangeiras a estarem em encalço do “assassino” com a finalidade de desvendar as mortes súbitas dos malfeitores. A concepção de poder em Light fica clara desde o princípio, quando ele constata o potencial do caderno e o poder de quem o possuir. A evolução dos enunciados demonstra a tensão da questão do poder ou a Justiça ou justiça própria do personagem (Figura 23). 111 A B C Figura 23: Evolução dos enunciados. A) “Bokunishika dekinainda” (Somente eu posso fazer); B) Bokuninara dekiru (Se sou eu, consigo) e C) “Death Note de yononakawo kaeteyaru” (Mudarei o mundo com o Death Note) Death Note volume 1, p. 45. Outros discursos são encontrados nos volume 1 à p. 49 (Figura 24), volume 7 à p. 128 (Figura 25) e volume12 à p. 130 (Figura 26). Figura 24: “shin sekai no kami to naru” (Serei o Deus do novo mundo) Death Note volume 1, p. 49. 112 Figura 25: “Bokuwa shin sekai no kami to naru” (Eu me tornarei o Deus do novo mundo) Death Note, volume 7, p. 128. 113 Figura 26: “Bokuwa shin sekai no kamida” (Eu sou o Deus do novo mundo) Death Note volume 12 p. 130 Inclusive a homepage de Light à figura 27 já o considera um killer justiceiro, pois o mundo passa a concebê-lo como tal após as primeiras mortes dos malfeitores. A imagem criada no homepage é reforçada pela palavra 「救世主」, kyûseishu, literalmente “Salvador do mundo”, podendo ser aludida ao Messias de acordo com a concepção ocidental. Acrescente-se que a frase Kira samano fukkatsuwo shinjiteirumono nomi kono iriguchi kara ohairikudasai - “Entrem por este portal somente aqueles que acreditam na ressurreição do Senhor Kira” - expressa no início da página do homepage, reforçando o discurso pelo poder. 114 Figura 27: Homepage de Light Death Note volume 1, p. 64 A foice, inclusive, vista na capa do volume 1 (Figura 16) , sendo empunhada por Light, já sugere a morte e, neste sentido, uma possível justiça. Quanto aos shinigami, nenhum ser humano pode enxergá-los a não ser que toquem no caderno, mas os mesmos atuam como se fizessem parte do mundo dos humanos com as suas preferências como, por exemplo, o gosto por maçãs do shinigami Ryuk. O gosto por essa fruta é algo recorrente. Apesar de mostrar que seu interesse recairia, num primeiro momento, na justiça/justiça, Ryuk, por possuir a característica de odiar o tédio, tem em Light e no caderno, mais precisamente no “mundo dos humanos”, uma nova forma de diversão (Figura 28). Com esse fato subtende-se metaforicamente a questão do consumismo do mundo atual, já que a ociosidade provocaria uma tensão na procura de “atividades diferentes”. 115 c Figura 28: a maçã Death Note, vol. 13, capa No caso das maçãs, podemos aventar duas hipóteses de interpretação: a simbologia do pecado pela fé cristã e a cor vermelha como uma representação do sangue que não é derramado, pois os “condenados” morrem de causas naturais. Os sentimentos de Ryuk pelos humanos eram baseados apenas em sua utilidade contra o seu tédio, não nutrindo este nenhuma afeição por aqueles. O envolvimento de organizações reais como FBI ou fictícias como SPK, Secret Provision for Kira, sediada nos Estados Unidos, ou da polícia japonesa, não é capaz de trazer uma “solução” às mortes, culminando no final na morte de Light. Embora o personagem central Light sentisse inicialmente receios após as primeiras “condenações”, o mesmo começa posteriormente a se sentir fortalecido, pois sabe que não será descoberto. É o aspecto duo da existência humana, aqui emblematizado no personagem Light. Não há um questionamento se é justo ou não alguém ter o direito de fazer a justiça pelas próprias mãos. Na sociedade à qual pertence Light, aparentemente em uma cidade do Japão, não há menção quanto às leis da Justiça que regulam o 116 comportamento dos homens, embora haja a presença de organizações de combate ao crime. Aqui, o verossímil provoca no ethos do leitor uma impressão do real, já que a identificação com a situação passa, por um instante, por uma alteridade, levando-o a mergulhar na questão. O imaginário do real e o irreal misturam-se de tal forma com personagens em cenas impossíveis de acontecerem, entretanto o desenvolvimento da trama chama a atenção sobre a sociedade em que se vive na contemporaneidade, mostrada, por exemplo na figura 29, na fala do shinigami Rem: Figura 29: “ningen to iu ikimonowa jitsuni minikui” (Os seres humanos realmente são repugnantes). Death Note, vol. 5, pág. 69 Além disso, a organização da história em 108 capítulos teve como origem as 108 badaladas de joya no kane 「 除 夜 の 鐘 」 , ideogramas que significam literalmente “sinos do último dia do ano”, que representam os 108 prazeres do homem198 de acordo com a crença budista. Podemos aventar, nesse sentido, que o Death Note traz discursivamente no seu âmago o clamor das inquietudes e inseguranças do homem moderno, que tem os seus relacionamentos dificultados pela necessidade de uma busca de soluções para as contingências que lhe são pertinentes. 198 Death Note n°.13, 2008, São Paulo: JBC, p. 196. 117 Não há uma menção na obra sobre a passagem do tempo, apenas um horário fictício ou dos momentos que antecedem as mortes e um jogo de “esconde esconde”, pois a polícia estava no encalço de Light, que por fim acaba sucumbindo. Segundo McCloud (1995, p. 94-104), o tempo nos manga é marcado pela ação psicológica e não cronológica. Aparentemente, tal concepção do tempo é influenciada pelo Budismo, pois segundo seus princípios a efemeridade não é uma sucessão cíclica do tempo histórico, mas ligada ao sentido da vida em que tudo tem o seu início e fim, denotando a transitoriedade espiritual. Nesse sentido, o mundo encontra-se em constante evolução, e do mesmo modo a questão de Justiça. As mudanças são inerentes a tal processo. Portanto, essas mudanças, sob um questionamento da evolução histórica do Japão, principalmente no que diz respeito à abertura após cerca de 250 anos de isolamento, culminam na necessidade de uma reflexão a partir de uma ótica do multiculturalismo. De acordo com o desenvolvimento dos conceitos de fundar, fundação de Detienne, efetuados no cap. 1 e do dialogismo, igualmente expostos, fica evidente o embate que o personagem Light trava numa sociedade de “benrisa” e “yutakasa”, por nós já abordado. O aspecto duo, do embate bom x mau, do ser humano e expresso na conduta do personagem reflete a tensão de valores que o mundo globalizado impõe. Trata-se da globalização que coloca em cheque uma mudança, fragmentada em seus aspectos variados como o das questões de identidades culturais, etnia ou nacionalidade. A presença do shinigami representaria, figurativamente, o lado da tensão bom/mau, do lugar das indefinições do homem até porque, embora sendo um personagem fictício, kami, esta é uma divindade considerada superior à condição humana. Sintaticamente, o sentido vem modificado pelo ideograma shini, forma substantiva do verbo shinu, morrer, enquanto o caderno representa a sociedade de consumo, pois é o “material” concreto, diga-se de passagem, que pode ser empregado para satisfazer os desejos do personagem. Nesse sentido então, tem-se o aspecto do multiculturalismo evidenciado como defesa das minorias. Por meio de um percurso figurativo 199 , a obra remete ao 199 Encadeamento de figuras que manifesta um dado tema. Cf. FIORIM, José Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2000, p.82. 118 tema 200 dessas minorias que são decorrentes dos embates que o mundo atual, inevitavelmente, gera e nos quais a identidade é posta em questionamento. Um tratado de inclusão, dessa forma, deverá ocorrer aeternum, adequandose às mudanças das estruturações social e cultural de um mundo globalizado e que expõem as diversidades e seus conflitos. Destarte, o binômio Justiça/justiça - justiceiro em Death Note enfatiza as contingências e culmina na manifestação do multiculturalismo em justiça/justiceiro do seres humanos, corroborando o sucesso dos manga como elementos de um tipo de cultura de massa, os manga, podendo ser relacionado na triade ethos, logos e pathos 3.3.2 Vagabond Nesta obra, embora a mesma continue a ser publicada, examinamos os vinte primeiros volumes por considerarmos suficientes para a nossa proposta de trabalho e entendermos que tornar-se “exímio espadachim” ou “ascensão espiritual”, os objetivos do personagem central Musashi, são metas sem um fim. E isso é demonstrado em lutas contínuas nos demais volumes. Os corpora foram selecionados dos volumes 1, que já define o foco das análises, 2, 3, 4, 11 e 13, pois apresentam em imagem e texto os aspectos relevantes para a nossa reflexão sobre Justiça/justiça – justiceiro. Assim como em Death Note, nos demais volumes é apresentada a ocorrência das mortes, sendo que em Vagabond, conforme as figuras inseridas neste trabalho, as lutas e mortes são descritas com extrema violência. Neste manga, percebemos que as primeiras páginas do volume 1 apresentam-se coloridas. A trama é iniciada com Matahachi, amigo de infância de Musashi, recobrando os sentidos após a Batalha de Sekigahara201. O colorido das páginas iniciais (Figura 30) tem o objetivo, segundo Scott202, de atender às demandas comerciais e tecnológicas. De fato, trata-se de uma forma de cultura de massa, em que os recursos são empregados também com vistas a “convencer” o leitor do teor da obra que permeia entre o real e a ficção, 200 Elemento discursivo que não corresponde a nenhum elemento do mundo natural, mas antes a categoria que o ordena. Por exemplo: honra, solidariedade, vulgaridade etc. Cf. FIORIM, Jose Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2000, p.83. 201 Batalha de Sekigahara é a batalha que dá início ao Período Edo. Vide página 98. 202 MACLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. Tradução Hélcio de Carvalho e Marisa do Nascimento Paro. São Paulo: Makron Books, 1995. 119 caracterizando um “agir na comunicação” 203, que instaura uma relação intrínseca entre ethos e pathos ou aquilo que as diferentes “vozes” captadas nas imagens tendem a mostrar nas apreensões dos seus sentidos Caso sigamos as ponderações de Tezuka, pelo fato de ser o primeiro volume, possivelmente tratou-se de um recurso empregado para prender a atenção do leitor, fato esse que caracterizaria também um “agir na comunicação”. Figura 30: Páginas iniciais de Vagabond. Volume 1, p. 5 - 8. À guisa de exemplificação, a onomatopeia ドドドド ”do do do do” grafada de caracteres maiores para menores, no quadro à direita, denota a aproximação da cavalaria, provocando no leitor a impressão do barulho do tropel dos cavalos. Os coloridos das páginas iniciais são encontrados em todos os volumes observados (1 - 20), entretanto, verificamos que em alguns deles há, no interior, a inserção de páginas também coloridas e que correspondem aos volumes 3, 5, 6, 8, 11, 12, 13, 16, 17, 19, e 20, que asseguram um efeito moderno - um dos aspectos multiculturais presentes no manga -, embora a história da obra gire em torno da Era Edo (1603 – 1867). Reiterando Tezuka (2010, p.173), o manga deve atrair logo nas primeiras páginas o interesse do leitor, com estratégias como a apresentação de cenas violentas ou, no caso, páginas coloridas nos volumes acima mencionados ou, como o de atender objetivos comerciais conforme aponta MacCloud. Em Vagabond, chama-nos a atenção o fato da ausência da numeração das páginas em todos os volumes destacando a ocorrência do hiato, a sequenciação das 203 Termo empregado do “comunicar é agir”, emprestado da obra Linguagem e ideologia, de Jose Luiz Fiorim. São Paulo: Ática, 2000. 120 cenas, de modo que o imaginário do leitor seja ativado de forma conjuntiva. Esse fator propicia uma sequencialidade cinematográfica, evitando assim provocar qualquer interpretação disjuntiva das cenas e possibilitando ao leitor uma interação maior, conduzindo-o a mergulhar no imaginário da narrativa da obra, principalmente em relação às cenas de lutas muito violentas, pois estas atuariam como uma catarse. As dezenas de combates de Musashi lembram um herói em defesa dos oprimidos e comparáveis aos heróis de desenhos ocidentais, pois o personagem nunca sucumbe aos inimigos. Todas as lutas são retratadas detalhadamente, passo a passo, desde os momentos em que os “inimigos” se encontram frente a frente, concentrando-se para iniciar o combate. Todas possuem cenas de extrema violência resultantes dos cortes profundos provocados pelas espadas, fazendo jorrar sangue e tornando o imaginário um aspecto real, para tanto lançando mão inclusive do recurso das onomatopeias. Nas cenas abaixo quando o golpe é desferido, sua representação é feita pela onomatopeia ドカ DOKA! (na escrita katakana) cujos caracteres são grafados em destaque. Os mesmos mostram a violência como o corte é efetuado e este pode ser traduzido como DAA!! ou algo semelhante de forma que a grafia expresse o momento do golpe. E quando Musashi percebe que a madeira que servia de espada se quebra, finca a mesma no pescoço do adversário expresso com a onomatopeia ズグ ZUGU!, que acentua a cena do golpe. É um recurso que Tezuka chama de “ryûsen”, uma “linha tangente” que vai conduzir ao contexto da cena provocando uma apreensão do “real” da luta (Figura 31). 121 Figura 31: Recurso da onomatopeia grafado amplamente que demonstra o momento que o golpe é desferido. Vagabond volume 1, p. 28. A onomatopeia também pode ser visto no volume 3 no momento de desembainhar a espada. O ponto de exclamação sugere a surpresa do adversário seguido do ataque mostrando no visual a representação de elementos sonoros. (Figura 32). Figura 32: O momento em que a espada é empunhada e desferida. Vagabond volume 3, p. 62-63. 122 A maioria das cenas em todos os volumes, principalmente as iniciais do 1, são descritas de forma a provocar um entendimento da negação da condição humana, exemplificada desde a diarréia provocada por não ter tido uma alimentação devida e até as cenas de vômitos, entre outras, provocando inclusive uma interpretação da pobreza em todos os sentidos. Tudo é sombrio, negro e, como anteriormente salientado, observa-se que o personagem central Vagabond está à procura de realização tanto como espadachim quanto como ser humano de alma elevada. Um elemento que sugere negatividade é o desenvolvimento em cor negra e, por vezes, há do mesmo modo a presença de corvos 204 (Figuras 33 e 34) os quais pela simbologia japonesa estariam relacionados à gratidão filial. Em Vagabond as aves são descritas sempre em situações de mortos, de batalhas, destacando situação de negatividade, refletindo deste modo a versão mais moderna que enfatiza a questão multicultural. O contexto é ressaltado pelas falas kittekitte kirimakutte kirijini surundarô “cortar, cortar ... e provavelmente será a morte ...” além da onomatopeia GYA GYA do corvo que sintetiza todo um estado de negação à condição humana. 204 O simbolismo do corvo como figura de mau agouro e de temor da desgraça aparentemente está preso a uma ótica mais recente. É a ave negra dos românticos, planando por sobre os campos de batalha a fim de se cevar na carne dos cadáveres. No entanto, no Japão seria o símbolo da gratidão filial. Na China, o fato de o corvo alimentar o seu pai e a sua mãe é considerado como signo de um prodigioso restabelecimento da ordem social. Cf. Dicionário de símbolos. CHEVALIER, Jean et. al. Trad.Vera da Costa e Silva et al. 18a.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. 123 Figura 33: os corvos e em destaque a cor negra. Vagabond, volume 2 p. 69. Figura 34: o corvo atacando o homem agonizando e arrancando os seus olhos. Vagabond Volume 13 p. 200. Inclusive, a onomatopeia normalmente adotada em corvos pela versão japonesa seria ka, ka, no entanto, a cena é demonstrada sonorizada em gya, gya que ressalta a situação de lutas violentas com a troca dos fonemas /k/, surdo, por /g/, sonoro. Trata-se de “representar o som pelo visual” (MacCloud, op.cit., p. 134) e que “possa evocar uma resposta emocional ou sensual” (p. 121). Para marcar o momento da agonia do homem, tem-se a onomatopeia ZUN! quando o corvo dá uma sua primeira bicada e o ZURU! arracando os olhos, pormenorizados pelas figuras. O nome Vagabond, um errante, demonstra claramente o estado em que se encontra o personagem. Tudo reflete a sua insatisfação, revolta, penúria. As páginas em preto e branco, destacadamente em preto, expressam claramente o estado da 124 alma dos personagens. Curiosamente após a estabilização desejada 205, embora as cenas de lutas continuem sendo motivadas ora por conflitos pessoais, ora devido aos desafios diante de supostos inimigos, a necessidade de vencer, suas estratégias de defesa, libertação dos oprimidos e a própria fisionomia do personagem passam a mudar. Caracteriza-se a mudança de tempo, mas não há a explicitação da passagem do tempo cronológico, apenas poucas menções como “1 ano se passou” ou “...17 anos”, mas sem uma sequenciação. Todavia, como desenvolvido anteriormente, o tempo expresso em Vagabond origina-se da concepção budista que enfatiza o sentido da vida e denota transitoriedade espiritual. O personagem Vagabond, Takezo, passa a adotar o nome de Miyamoto Musashi, incorporando do mesmo modo o sobrenome da mãe, Miyamoto. Já o segundo nome, Musashi, possui duplo sentido: um, como verbo, tem a acepção de “aquele que serve ao superior” ou “estar ao lado de um superior”, mas é ao mesmo tempo, o ideograma correspondente à designação de samurai. Na época Edo, os samurai recebiam um tipo de pensão de seus chefes diretos ou daimyô ou shôgun aos quais haviam jurado fidelidade incondicional até a morte. No entanto, com relação ao personagem, na obra nada é especificado nesse sentido. Ao contrário, o personagem é independente, daí o nome Vagabond, um andarilho à procura de um ideal de vida. A busca por uma elevação espiritual dá-se, aparentemente, pela influência da crença budista que vê a vida como um lugar de sofrimento e, consequentemente, a necessidade de salvação. Durante toda a obra não há menção, por exemplo, sobre a distinção das 4 camadas sociais, shi, no, kô, shô, da estratificação social da época sob o domínio dos Tokugawa. Não há, por exemplo, a referência aos shôgun da época. De modo conclusivo, percebe-se pelas cenas descritas em todos os volumes, que a história transcorre em vilarejos e se centra apenas nas lutas de Vagabond. Não he uma referência concreta ao sistema organizacional da Era Edo. Observa-se uma possível alusão da crença budista com a presença dos monges, ora aconselhando no desejo de ascensão espiritual ora até ensinando as “técnicas” de combate. 205 A obra continua ainda em circulação. Optamos por terminar a análise no volume 20, quando a busca que o personagem tanto almeja começa a se concretizar, no entanto, embora haja uma certa estabilidade, não se concretiza em nenhum momento. A busca reflete a transitoriedade espiritual. 125 Os objetivos do desejo de ascensão de Vagabond, a princípio, como espadachim ou buscando a ascese de sua alma não ficam claros, pois só é possível visualizá-los a partir do seu encontro com um monge que, além da prática ascética, ensina o aperfeiçoamento das técnicas de combate. Conforme explicitadas acima, tais técnicas seriam uma influência da crença budista. O tão desejado desenvolvimento harmonioso das forças físicas e do espírito representa um arquétipo do padrão ideal que o samurai deveria reunir, segundo Nitobe206. Musashi é autor da obra “Gorin no sho”207, Tratados dos cinco círculos, escrito por volta de 1643, descrevendo, conforme citado a página 96, os 5 elementos que compõem o espaço, a saber, a Terra, Água, Fogo, Vento e Céu. Com relação a Terra, objetivou traçar os mandamentos da arte militar, mostrando que é difícil alcançar a plenitude somente pelo armamento. No item Água, discorre sobre a limpidez da imagem do espírito humano. Em Fogo, expõe a questão dos combates, explicitando que a vitória ou a derrota devem acontecer de modo rápido e violento. No tópico Vento, faz referência ao estilo antigo e ao atual para adaptá-los às diferenças nas questões de combate. Por último, em Céu desenvolve a experiência pessoal do autor. De fato, as ideias reunidas nesse livro refletem no modo de agir do personagem Vagabond. É digno de menção o fato de que o original do livro nunca foi encontrado 208. Atribui-se a Miyamoto a autoria a partir das cópias existentes. As interpretações acerca da obra focam questões estratégicas para as conquistas, com o aperfeiçoamento das técnicas de combate, ao mesmo tempo visando também a elevação espiritual, objetivando a integração perfeita entre corpo e alma. Vagabond, o seu protagonista, apesar de exímio espadachim, insatisfeito, percorre vilarejos e trava lutas sangrentas, tencionando encontrar-se consigo próprio. Ao mesmo tempo em que enfrentava os seus inimigos, precisava de uma paz interna e almejava a elevação espiritual. 206 NITOBE, Inazo. Bushido – Alma de Samurai. Trad. Emilio Carlos de Albuquerque. São Paulo: Tahyu, 2005. 207 MIYAMOTO, Musashi. Gorin no sho – a estratégia de vencer sempre. Tradução: José Yamashiro. São Paulo: Cultura Editores Associados, 1996. 208 Cf. http://www.geocities.jp/themusasi2g/gorin/g00.html, acesso: 07/09/2013. 126 Somente nos 3 primeiros capítulos há cerca de 12 cenas de lutas violentas, cujo foco aparente eram as manifestações pelo poder209. Em Vagabond, a procura que é protagonizada tem um enfoque filosófico no aspecto duo, a tensão do positivo e do negativo, do bem e do mal, do homem que ao “redescobrir” o mundo em que vive expõe as contradições do “real”. O sentido sugere, inclusive, uma crítica ao sistema político da Era Tokugawa, já que Musashi teria vivido nessa época. Naquele tempo, o poderio atuante pertencia aos shôgun e Musashi, no entanto, não se enquadrava ao que era comum aos espadachins. Curiosamente, apesar de o nome Musashi possuir um sentido de “servir a um senhor’’, não há ninguém na história a quem ele se vincule. O personagem, ao almejar a realização espiritual, representa a necessidade de ser compreendido nas suas visões de mundo, coincidentemente conforme o mito platônico das cavernas anteriormente explicitado. A obra Vagabond continua a ser editada até os dias de hoje. Embora não saibamos o motivo exato, ao entendermos o que Musashi almeja, ou seja, uma “realização espiritual”, seria difícil sua procura apresentar um término e, sobretudo, encerrar-se com um final feliz. Conforme exposto nas análises de Death Note, pelo fato de o mundo encontrar-se em constante evolução, mudança/movimento a plenitude objetivada também requer uma adaptação e deve acompanhar as mudanças prementes. A cultura de massa dos manga apresenta recursos que se coadunam com os elementos multiculturais e, de uma certa forma, os aspectos imagéticos tendem a “reforçar” o discurso. No manga Vagabond encontramos as seguintes características multiculturais: (Figura 34). O título em japonês bagabondo, adaptação fonética de Vagabond, é transcrito em katakana, escrita criada para grafar, entre outras finalidades, palavras estrangeiras. Musashi foi um andarilho e a designação do termo em japonês como tal, mais apropriada, é rônin. Seu olhar não corresponde aos traços fisionômicos normalmente encontrados dentro da população japonesa, embora saibamos que não devemos 209 Apesar de ter vivido no Período Tokugawa ou Era Edo, não existem referências se Miyamoto Musashi teria atuado nessa época. O primeiro capítulo inicia-se com um encontro com o colega de infância Matahachi acordando, após aparentemente ter combatido na batalha de Sekigahara, que culminou no início da Era. 127 criar estereótipos classificatórios para um povo ou raça. Além disso, nos capítulos seguintes, quando ele começa a atingir a desejada plenitude, sofre uma transformação física maior com feições que mais lembram um ator americano ou europeu. Vagabond by Inoue Takehiko 井上雄彦 a disposição do nome do autor em caracteres latinos e em língua inglesa, junto aos ideogramas (Figura 35). Figura 35: Vagabond, capa do Volume 1. A transformação fisionômica de Vagabond é perceptível, na medida em que o personagem começa a atingir a plenitude como espadachim e elevar-se espiritualmente. (Figura 36). Figura 36: Fisionomia distinguida do Vagabond. No próprio volume 1, já se tem fisionomia distinguida, por exemplo, da capa, que traz uma fisionomia mais oriental 128 Do mesmo modo não há uma menção na obra sobre a passagem do tempo. Embora haja a grande transformação visual em Musashi, não se observa o envelhecimento do personagem, ao contrário, este está sempre revigorado. Conforme desenvolvido à página 115 e 122, segundo McCloud (op.cit., p.96104), o tempo nos manga é marcado pela ação psicológica e não cronológica, como se vê inclusive em Death Note. Aparentemente tal concepção do tempo é reforçada pelo Budismo, dada a época Edo. Apesar de o período ter sido marcado pelas influências cristãs e estas acabarem sendo proibidas, a população foi submetida ao retorno da fé budista. Nesse sentido, no caso de Musashi, o sentimento de ascensão é contínuo. Percebe-se o embate metafórico morte x vida do personagem Musashi, pois a morte estaria ligada à não concretização dos seus ideais, enquanto que a vida seria associada a sua ascensão espiritual. A obra, embora tendo como localização temporal sugerida no Período Edo, pelo fato de começar no final da Batalha de Sekigahara é contemporânea. Baseando-nos no discurso da arte seqüencial, imagético e pela metáfora apresentada, podemos aventar o sentido de uma busca por uma identidade num mundo globalizado de hoje. A vida para Musashi centra-se em sua ascensão espiritual e a plenitude é entendida como algo infinito, cuja tensão se configura também, conforme visto em Death Note, na procura de um equilíbrio dentro de uma sociedade fragmentada. Lembramos que a presença do arquiinimigo Kojirou Sasaki na obra Vagabond veicula uma forma de representação da procura que Musashi empreende. Se as disputas para Kojirou são simplesmente questões de poder, para Musashi é notório o objetivo de se testar a sua habilidade como espadachim e este trata de desafiá-lo a uma luta sangrenta que culmina na derrota de Kojirou. A necessidade que Musashi sente em atingir o auge da espiritualidade é representada pelos combates que trava, a princípio, contra os inimigos ou malfeitores. A espada representa o seu ethos que expressa tanto o aspecto construtor (o lado da justiça) quanto destruidor associado à morte. Embora Musashi seja retratado como aquele elemento implacável, destemido e que sai em combates para alcançar o seu objetivo de engrandecimento espiritual e como espadachim, polifonicamente sua atitude simboliza o poder almejado. Para isso não se intimida diante de nada, travando inúmeros combates sangrentos, sempre saindo-se 129 vencedor, quase podendo ser comparado a um super-homem das histórias ocidentais. Em uma leitura mais trivial, uma obra de ficção, como tal, pressuporia certamente um “final feliz”, pois o herói venceria o mal. No entanto, Vagabond continua sendo editado, já se encontrando em sua 35ª edição210. Nem a plenitude como espadachim é alcançada, embora o personagem adquira uma certa mestria, pois a habilidade é aperfeiçoada, nem tampouco o lado espiritual, mostrando que o ser humano se encontra em uma eterna busca pela sua própria existência. As falas “Orega tenka musôda” (“Sou o poder único!) 「俺が天下無双だ」, presente no volume 4, p. 113, “Ken towa, tenka musô towa, inochiwo toruka torareruka darô (A espada, o poder único, significa matar ou morrer) 「剣とは天下無双とは、命を取るか取られる か」no volume 11, p. 55, “Tenka musôtowa, tadano kotobaja...” (O poder único não é um termo comum...) 「 天 下 無 双 は 、 た だ の こ と ば じ ゃ 。 。 。 」 também encontrada no Volume 11, p. 104 e “Mugen“ (o infinito) 「無限」 do mesmo modo presente no volume 11 na página 105, indicariam a princípio os anseios pelo poder. Entretanto, o que se ressalta é um “poder filosófico”. Contudo, as dezenas de combates descritos de forma pormenorizada, aos quais o próprio protagonista Musashi se dedica como se fosse um tipo de auto-mutilação, representariam uma metáfora dos embates do ser humano. A espada representa uma dádiva divina por meio da qual o personagem tenta combater as “lutas” da vivência humana. Indicariam, a princípio, os anseios pelo poder. As onomatopeias que por sua vez acompanham geralmente as cenas das lutas são congruentes, numa demonstração da intensidade e tamanho das 210 http://en.wikipedia.org/wiki/Vagabond_%28manga%29), acesso em: 15/10/2013. 130 contingências e a necessidade de transpô-las. Trata-se, desse modo, de um manga que poderia ser chamado de Bildungsroman211 Assim, os binômios Justiça/justiça – justiceiro na obra de Vagabond podem ser entendidos como os desafios que o mundo moderno nos impõe e, destarte, ratificamos que as questões multiculturais presentes nos manga e que traduzem o fato da necessidade de uma reflexão sob o enfoque de uma visão multiculturalista discutiriam, no nosso modo de entender, a “identidade cultural na pós-modernidade” 212 . Em síntese, trata-se de um discurso que enfatiza as mudanças e os valores que começam a ser perder em função do novo mundo marcado pelas fragmentações. O desejo de ascensão e os discursos destacados representam, além disso, nada mais que um questionamento das conseqüências das mudanças do mundo globalizado e o desejo de um mundo melhor, o que podemos aventar devido principalmente ao enfoque na concepção budista inserida na narrativa. Os recursos imagéticos adotados nos manga são congruentes. São produções da relação com o mundo, cujas verossimilhanças das enunciações culminam no pathos do leitor. Visualizamos em ambas as obras analisadas, destacadamente em Vagabond, o aspecto da necessidade de uma reflexão sobre o sentido de multiculturalismo. Em Death Note, as cenas apresentam-se mais simples sem derramamento de sangue, as mortes ocorrem de forma natural e não em combates como em Vagabond. Inclusive os fukidashi, as falas dos personagens envoltos num balão, se em Vagabond são curtos, grafados em caracteres maiores, sobretudo as onomatopéias dos combate e com um número reduzido de falas, em Death Note tem-se justamente o contrário: com as falas mais longas, as onomatopéias menos impactantes traduzem todo o teor das narrativas. Deste modo, percebemos que a sequencialidade da linguagem dos manga adota uma sintaxe motivada e sua evolução encontra-se articulada aos recursos lingüísticos e imagéticos que, voltamos a reiterar, podem ser expressos a partir do esquema da tríade da retórica (Figura 37): 211 “Romance de formação”. Tipo de ficção que manifesta a necessidade de expressar os embates do mundo concreto e a necessidade de os superar. Cf. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=50100512X20050002, acesso em 27/12/2013. 212 Termo empregado por Stuart Hall, op. cit., 2006, para o título da sua obra. 131 Figura 37: sequencialidade da linguagem dos manga Para uma síntese mais precisa elaboramos o seguinte quadro comparativo dos resultados até então alcançados em nossa análise: 3.4 Comparando as duas obras: quadro sinótico. QUADRO COMPARATIVO E ANÁLISE GERAL DAS DUAS OBRAS Características DEATH NOTE Contemporâneo 2003 - 2010 Período abordado Personagens centrais Volumes Examinados Características dos volumes Sugerem o Período Edo 1608 - 1867 A obra começa no final da A história é desenvolvida no Batalha de Sekigahara quando período de 2003 - 2010 o Período Edo começa. Yagami Light, Vagabond, apelido Kira (de Killer) Miyamoto Musashi 13 Paginação toda em preto e branco e numerada em algumas. Passagem do tempo Imaginário contemporâneo Descrição dos personagens VAGABOND Pacato e considerado um “bom filho” 20 Paginação inicial e no interior coloridas e sem numeração. Inespecífica, mas o imaginário relacionado ao Período Edo Valente e Revoltado 132 QUADRO COMPARATIVO E ANÁLISE GERAL DAS DUAS OBRAS Características Justiça/justiceiro Elementos representativos da justiça nas obras Transformação DEATH NOTE VAGABOND Ausente Filosófico A Justiça/Justiceiro é o próprio personagem. Tentativa de expurgar os malfeitores com a sua própria “justiça”. Poder e procura da própria existência. justiça/justiceiro. Ascensão espiritual e como espadachim. Poder e a procura da própria existência no mundo controverso. justiça/justiceiro Foice – como símbolo da morte, igualando todas as coisas vivas. O imaginário sobre os shinigami que “usa” os humanos, sugere personagens do mundo real, como as tentações do consumismo. Espada – como símbolo do estado militar e da sua virtude, a bravura, bem como de sua função, o poderio (tanto nos seus sentidos de “destruidor” e “construtor”) Como construtor, no caso é a ascensão pessoal diante das intempéries da vida. Sucumbe, complicando-se com os inúmeros assassinatos que comete. Revigora-se, as feições adquirem traços mais ocidentais. Variados Variados Emprego da língua inglesa, fisionomias dos personagens Presença de lembram um estrangeiro elementos ocidental ou elementos que multiculturais remetem à uma fé cristã, como a maçã. Por retratar um período mais moderno, há a inclusão de elementos multiculturais, que são apreendidos naturalmente Respeito à diversidade O multiculturalismo provocada pelas mudanças e a inclusão das minorias Destaque no olhar do personagem central da trama, que foge às feições normalmente encontradas nos orientais, inserção de expressões em inglês (vol. 26) “It finds the way”. Democracia com respeito às diferenças, a reflexão para construção sócio-politico. 133 QUADRO COMPARATIVO E ANÁLISE GERAL DAS DUAS OBRAS Características DEATH NOTE Contingências humanas Contingências humanas e cosmogonia Defesa do oprimido numa primeira instância. Posterior apego ao poder. Necessidade de autoafirmação. Funcionalidade dos elementos multiculturais Conseqüências de uma presentes nos sociedade de “yutakasa” e manga: “benrisa” caracterização de sociedades distintas, mas de “mundos” semelhantes Cultura de massa Aspecto religioso “Fukidashi”: balões das falas dos personagens Recurso às onomatopeias VAGABOND Embora a trama transcorra na Era Edo, é uma obra que expressa o embate de uma sociedade contemporânea e a necessidade de valorização espiritual: a diversidade do mundo atual, a competitividade e a necessidade de estar “incluído”. Virtude moral Catarse Catarse De algum modo “responde” e “corresponde” às instabilidades do ser. Pathos De algum modo “responde” e “corresponde às instabilidades do ser. Pathos Caráter laico, não há menção a alguma religião e nem sugere uma crença em específico. No caso são os shinigami representativos de alguma crença. Sugerido o caráter budista Menores e discretos Amplos: expressam as cenas de violência e o perfil dos personagens, conforme o teor da obra. Discretas Chamativas/apelativas 134 QUADRO COMPARATIVO E ANÁLISE GERAL DAS DUAS OBRAS Características Aspectos em comum das duas obras 213 DEATH NOTE VAGABOND Embora em Death Note haja uma certa menção sobre o tempo decorrido, este é o do imaginário na obra. Em Vagabond, embora não haja nenhuma referência específica, os tempos cronológicos sugerem o imaginário da Era Edo. Presença de um elemento “regulador”: em Death Note é o Shinigami , em Vagabond é o monge que detem as forças de um “ensinamento” seguido do domínio das técnicas de combates. Os personagens centrais convergem a procura da própria existência/identidade. Discursos lingüísticos e imagéticos: dialógicos. Elementos discursivos: polifônicos. A Justiça e leis: não pertencem à Justiça de um Órgão regulador do Estado. Emprego de onomatopeias, recurso que se destaca em Vagabond. Presença de mulheres bonitas e sensuais. O imaginário retratado adquire características “reais”, demonstrando uma formação ideológica. Ryûsen 213 : a dinâmica nos traços que expressam os sentidos que se desejam imprementar. Haikei e os kôzu214: fundos das cenas e a composição em convergência com o contexto narrado. TEZUKA, Osamu. Manga no kakikata. (Como desenhar manga).Tôkyô: Kôbunsha, 2010, p. 88. TEZUKA, Osamu. Manga no kakikata (Como desenhar manga). Tôkyô: Kôbunsha, 2010, p. 111113. 214 135 IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao iniciarmos as considerações finais deste trabalho realizado sob “olharesplurais”, destacamos, primeiramente, o papel dos manga, uma expressão de cultura de massa, e os tomamos como objetos de uma reflexão relativa às questões que o mundo moderno nos impõe. Os discursos dos manga refletem muito além de uma leitura de entretenimento. Como desenvolvido ao longo do trabalho, ao nos determos por um instante e lançarmos o olhar ao nosso redor, percebemos que mudanças oriundas da chamada globalização ou da própria evolução dos tempos tem atuado sobre os homens que sentem a necessidade de estarem sempre “inseridos”. Os vieses para tal inserção são de um modo geral determinados pelos aspectos econômico e tecnológico, os quais, de alguma forma, criam exclusões. A proliferação das redes sociais, por exemplo, cujo objetivo seria inicialmente o de aproximar as pessoas, tornou-se ao mesmo tempo um meio também de distanciamentos. Foi através dos “olhares-plurais” que pudemos observar que os manga analisados retratam o conflito da sociedade atual, que se reflete principalmente em grupos minoritários, conforme a nossa apreensão de Detiene de “fundar” e “fundação”. De acordo com o exposto no capítulo I, as questões de Justiça/justiçajusticeiro tornam-se a tônica nos embates cotidianos do homem moderno, já que a exposição às diferenças/diversidades acaba por influir no pensamento e no comportamento, fazendo surgir uma justiça/justiceiro do ethos-homem. Embora tenhamos demonstrado a evolução da Justiça legal ao longo da história do Japão, as recorrências encontradas nas obras analisadas baseiam-se nas perspectivas de uma justiça/justiceiro entendida a partir de um enfoque filosófico. Embora contemporâneas, mas oriundas de tempo das narrativas distantes, as narrativas demonstraram as verossimilhanças no tocante às contingências humanas, cujas manifestações nas obras se expressam de formas distintas. O comportamento de Musashi perseguindo, dada a sua voracidade, e não simplesmente almejando tamanha é a sua necessidade de combates pela ascensão espiritual, reflete uma busca de uma sociedade mais igualitária que pode ser exemplificada através da 136 exposição que Yamashita215 efetua: estar focalizando o período do golpe que ficou conhecido como ni-niroku-jiken 216 até a 2ª.Guerra Mundial, quando os japoneses viveram sob a tensão de vida-morte. Além disso, o sucesso de Vagabond, na forma em que a narrativa é desenvolvida, com predominância da cor negra e expressando uma modalidade alocutiva que implica na transmissão de uma mensagem ao interlocutor, no caso os leitores, pode apresentar também uma alusão a uma outra “guerra”: a escassez de alimentos e a inflação enfrentada pelos japoneses do pós2ªGuerra. O fato é que a procura de Vagabond reflete uma faceta do multiculturalismo e Death Note expressa uma justiça que é própria, numa simbologia ao poder que se concentra num mundo capitalista. Foi possível debruçarmo-nos no presente estudo sob “olhares-plurais” da História Comparada, lançando mão de uma metodologia que abarcasse os sentidos produzidos em Vagabond e Death Note através dos seus imaginários, estendendose a questão ao multiculturalismo diante das interrogações surgidas da inserção de elementos multiculturais nos manga e à análise do discurso na investigação dos recursos lingüísticos, cujos comportamentos enunciativos expressam uma variável dos “possíveis interpretativos” entre o encontro de processos de produção e de interpretação217. Embora tais modalidades não estejam totalmente lexicalizadas e exemplificadas na fonte original da teoria, pois é ocidental, foi possível demonstrar através das formas dos discursos citados nas análises que a apreensão de “efeitos de sentidos” produzidos sob a base do dialogismo e das polifonias foi convergente. Destarte, no caso de Death Note e seu personagem central Light, o embate efetua-se com relação às mudanças trazidas por uma sociedade capitalista, a partir da qual ele tenta conquistar o mundo ou, porque não dizer, transformar o mundo com a sua própria concepção de justiça. 215 YAMASHITA, Hôrô suru Musashi – Miyamoto Takezô kara Bagabondo, Musashi Takezô e (O vaguar de Musashi – de Miyamoto Takezô ao Vagabond, Musashi Takezô). In: https://www.researchgate.net.../publication/33426893, acesso em 01/11/2013. 216 Golpe de Estado abortado em 26 de fevereiro de 1936, feito pelo ultranacionalistas ... visando a derrubar o governo e a assassinar vários parlamentares. .. 17 foram condenados à morte e executados e 65 foram condenados à prisão. Cf. Fréderic, op. cit., p.878. 217 Cf.CHARAUDEAU, Patrick, Linguagem e discurso: modos de organização. Trad. Ângela M.S.Corrêa & Ida Lúcia Machado. São Paulo: Contexto, 2008. p. 63. 137 Os discursos produzidos tanto em uma obra quanto na outra tendem a focalizar um mundo em que grupos em desvantagem sejam incluídos e aceitos sem abrir mão de suas diferenças e em defesa de grupos minoritários. Esses são os manga: narrativas quadrinhísticas que através de um emprego peculiar de linguagem e de recursos imagéticos contem mensagens ideo-politicas que implicam, em nossos corpora, na existência de uma justiça/justiceiro. Dessa forma, as verossimilhanças são trabalhadas criativa e paralelamente aos códigos existentes, caracterizando um gênero literário com articulação de saberes interdisciplinares ou multidisciplinares e que somente por meio de “olhares-plurais” ligados a outros “olhares-plurais” poderão ser refletidos. Encerramos aqui o nosso presente trabalho, mas acreditamos que este não esteja totalmente findo, pois outras indagações certamente surgirão para uma reflexão construtiva e nos lançarão a outros desafios, sobretudo na tentativa de responder a alguns elementos considerados “diferentes”. “ ... quão importante se faz tomar o óbvio como objeto de nossa reflexão criítica e, adentrando-se nele, descobrir que ele não é, as vezes, tão óbvio quanto parece” (Paulo Freire) 138 REFERÊNCIAS: Fontes primárias OBA, Tsugumi. Death Note. Tokyo: Jump Examinados do 1 ao 13. Extração dos corpora: volumes 1, 2, 3, 5, 7, 12, 13. Comics. (original), 2003. INOUE TAKEHIKO. Vagabond . Tokyo: Kôdansha, 1999. 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Ashikaga Yoshimasa (1436–1490) 「足利善政」 65, 66 Shogun do período Muromachi, governou entre 1449-1474 Azuchi Momoyama 「あずち桃山 」 66 Designação do período 1582-1600 sob o domínio de Oda Nobunaga, em Azuchi e Toyotomi Hideyoshi, em Momoyama. –B– Benrisa 「便利さ 」 30, 60, 88-89, 117, 133 “Útil”, “conveniente”, “cômodo” Bugyô 「奉行 」 40, 41, 42, 44, 48-49, 55-56 Funcionários que, na época de Heian, eram encarregados unicamente de fazer executar um decreto ou uma ordem imperial. Durante o período Edo, inúmeros bugyô foram criados, cada um com uma tarefa determinada passando a agir como governadores e eram escolhidos entre os fudai-daimyô, conforme alguns exemplos abaixo: 146 Bugu-daimyô – 「 武 具 奉 行 」 funcionários encarregados dos armamentos militares. Jisha-bugyô – 「 寺 社 奉 行 」 funcionários encarregados do controle dos templos. Kanjô-bugyô – 「勘定奉行」encarregados do controle judicial e financeiro dos domínios dos shogun. Machi-bugyô – 「町奉行」uma espécie de governador civil das grandes cidades, dependentes da autoridade dos shogun de cidades como Edo, Osaka, Nara, Nagasaki e Nikkô entre outras. Bujutsu 「武術 」 27 Arte marcial Buke「 武家」 52 Designação dada aos samurai e outros guerreiros e que também recebiam o nome de bushi. Bukeshohatto 「 武家諸法度」 52, 72, 74 Código de normas da classe dos samurai Bunraku 「文楽」 80, 82 Teatro de marionetes, remonta ao século XVI. As peças são acompanhadas por um instrumento de 3 cordas, shamisen, junto à narração do enredo. Bushi 「武士」 125 Termo aplicado desde o ano 721 aos que possuíam a profissão de guerreiro. A partir do período Kamakura, os bushi compunham a “casa dos guerreiros” e a partir da era Edo, foram classificados de acordo com a hierarquia, sob o controle absoluto dos shôgun, conforme as designações daimyô, hatamoto, gokenin, hanshi, etc. Esse sistema de hierarquia foi abolido em 1869, mas os bushi e os seus descendentes recebem uma outra designação, a de shizoku. Somente em 1947 todas as distinções sociais são abolidas. 147 Bushidô 「武士道 」 125 Conjunto de leis que regiam o comportamento dos bushi, fundamentado na fidelidade devida por um vassalo ao seu senhor em troca de algum benefício. – C– Chônin 「町人」 83 Designação da população citadina. De um modo geral designava os comerciantes e artesãos. Chûkun aikoku 「忠君愛国 」 85 “Senhor soberano da Pátria amada”, enaltecendo o amor e a dedicação ao soberano. Chûsei 中世」 62 Designação do período entre 1185-1573, considerada a Idade Média japonesa. –D– Daimyô 「大名 」 52, 54, 56, 57, 61, 65, 66, 67, 69, 71, 72 77, 78 124 “Senhores feudais”. Termo controverso em razão da etimologia remeter à Europa. Dansonjohi 「男尊女卑」 73 “Supremacia dos homens sobre as mulheres” – expressão que mostra o papel da mulher relegado ao segundo plano Dekasegi 「出稼ぎ」 90 Aqueles que trabalham em locais distante de suas casas (cidades, estados ou países). Literalmente, “sair para ganhar o sustento de suas vidas”. –E– 148 Edo, Era 「江戸時代」 14-15, 20, 27-28; 33-34, 37, 40, 43, 44, 47-50, 52, 55-59, 61, 67-69, 71, 73, 76-79, 83-85, 95, 119, 124, 128, 131, 133-134 Período que vai de 1603 a 1868 correspondente ao shogunato dos Tokugawa. Emakimono 「絵巻物」 14 Literalmente, “rolos de desenhos” de narrativas. En 「円 」 58, 88 Unidade monetária do Japão, yen. Eta 「えた」 42, 56, 73 Classe social que abarcava os indivíduos de grupo de “impuros”, aos quais eram reservados trabalhos considerados indignos ou baixos como o de coveiros. –F– Fumiê 「踏み絵」 72 Prática adotada para descobrir quem seriam os seguidores de Cristianismo. Consistia em fazer com que as pessoas pisassem nas imagens de Cristo e da Virgem Maria. –G– Gekokujô 「下克上」 66 Literalmente, “conspiração dos subalternos”. Conquistas dos guerreiros de classes menos privilegiadas sobre superiores. Subversão hierárquica. Genkei 「減刑」 Pena rigorosa 54 Giri 「義理 」 53, 60, 65, 91 “Obrigação” “Dever”. Compromisso imperioso de um homem para com outro na preservação da sua imagem e demonstração de gratidão por algum favor recebido. Um comportamento ancestral existente na sociedade japonesa, pois os giri são manifestados a nação, ao imperador, para com chefes, aos pais, e principalmente com relação aos superiores. 149 『五輪の書』 Gorin no sho 96, 125 “Escrita dos cinco anéis” destacando os conceitos de Terra, Água, Fogo, Vento e Céu da concepção budista. Obra escrita por Miyamoto Musashi por volta de 1643 com reflexões sobre táticas militares. –H– Hâfu 「ハーフ」 89 Do inglês half, metade. Designação daqueles que nasceram de uma miscigenação étnica. Mestiço. Haikai 「俳諧」 67, 79 Poema de 17 sílabas divididas em versos de 5, 7 e 5 sílabas. Haji 「恥」 53, 57-59 Vergonha Haku 「伯 」 33 Título de nobreza criado na Era Meiji, equivalente ao conde no Ocidente. Abolido em 1945. Harakiri 「腹切り」 43, 46-48, 91 Ou seppuku. Suicídio por abertura do ventre. Hatamoto「旗本」 41-42 Nome dado aos homens que guardavam o campo militar e vassalos diretos dos Tokugawa. Heiji no Ran 「平治の乱 」 62 Guerra ocorrida em dezembro de 1159 entre o shogun Minamoto no Yoshitomu e Taira no Kiyomori pela disputa do poder central, da qual Taira sai vitorioso. 150 Heimin 「 平民」 33 Classe adotada na Era Meiji e correspondente ao povo comum. Hentai 「変体 」 16 (Manga) pornográfico. Hikikomori 「引きこもり」 31 Pessoas acometidas por problemas psicológicos ou emocionais devido a algum problema social, tal como vitimas de bulling. Afeta tanto os mais idosos, pela condição, na sua maioria, de viverem isolados, quanto os jovens. Hinin 「非人」 42, 47, 56, 59, 73, 83 Literalmente, ”não gente/pessoa” “não humanos”. Grupo social do Período Edo, fora das 4 classes shi, nô, kô, shô, que tinha atribuições de executar trabalhos como o de coveiros, executando as mesmas tarefas que os indivíduos pertencentes ao eta. Hôgen no Ran 「保元の乱」 (1156) 62 Guerra civil ocorrida em 1156 pela disputa do poder envolvendo os clãs Taira e dos Minamoto com envolvimento dos Fujiwara. Hôken shakai「封建社会」 “Sociedade feudal”. 73 Hokuriku 「北陸 」 79 Região que compreende as Províncias de Fukui, Ishikawa, Toyama e Niigata Honnôji no hen 「本能寺の変 」 66 Ataque ao Templo Honnôji, onde Oda Nobunaga se suicida após a traição de Akechi Mitsuhide. Hôritsu「法律」 Lei, Direito. 54 151 Hyakushô ikki 「百姓一揆 」 75 Levantes camponeses. Revoltas ocorridas devido ao alto preço dos impostos do Período Edo. Hyôjôsho 「評定所」 40 Órgão político-administrativo criado na Era Edo que reunia os jisha-bugyô, o machi-bugyô e o kanjô bugyô. –I– Ikenobô Senkei 「池坊せんけい」 80 Autor da introdução de arranjo floral. Teria teria atuado entre 1457 e 1466, seguindo a prática do arranjo floral em vasos e que deixou o legado do destaque à beleza na simplicidade do ato de levar flores a recintos fechados. Insei「 院政」 61, 73 “Governo do imperador enclausurado”. Sistema de governo adotado pelo imperador Shirakawa em que esses “imperadores-retirados” governavam no lugar do imperador titular como forma de desarticular a influência da família Fujiwara, cujos imperadores desde o século IX eram seus descendentes. Inu shôgun「犬将軍」 77 Apelido do shôgun Tokugawa Tsunayoshi que, com problemas mentais, estabelece a proteção a todos os seres vivos, em particular aos cachorros. Ishida Mitsunari 「石田光成 」 68 Guerreiro (1560-100) a serviço de Toyotomi Hideyoshi –J– Jinsei 「仁政」 73 “Governo benevolente” - medidas que viriam atender ao benefício do povo. Jôdoshû 「浄土宗」 “Seita da Terra Pura”, da devoção ao Buda Aminda, trazida de China. 67 152 Joya no kane 「除夜の鐘」 116 “Sino da passagem do ano”. As 108 badaladas que representam as tentações do homem conforme a crença budista. Junshi 「殉死」 77 Suicídio por fidelidade. –K– Kabuki 「歌舞伎」 27, 79-80 Teatro que reúne 3 elementos: canto, ka, 歌、bailado, bu 舞 e arte, ki 伎, encenado somente por atores do sexo masculino. Kadô「華道 」 80 “Caminho das flores”, conhecido como ikebana, arte do arranjo floral. Kakusa shakai 「格差社会 」 32 Diferenças sociais. Kamakura jidai 「鎌倉時代」 62, 65-67, 72 Perído Kamakura, da história japonesa (1185-1333) Kangôbôeki 「勘合貿易」 65 ”Comércio exterior de comum acordo” entre a China e o Japão em 1404. Kankai 「勘戒 」 39 Desenvolvimento do “bem” obedecendo às normas vigentes, segundo a crença budista. Kanpaku 「関白」 Conselheiro do imperador. 61 153 Kansai 「関西」 90 Região de Kyôto. Katakana 「カタカナ」 105, 120, 126 Uma das formas da escrita japonesa. Normalmente é usada para grafar palavras de origem estrangeira ou quando destaca algum termo num texto, por exemplo, a onomatopéia. Katana 「刀 」 48, 56, 67, 74, 79 Espada. Katana gari「刀狩」 67 “Caça às espadas”. Medida de recolhimento das armas de todos aqueles que não pertenciam à classe dos samurai. . Katsushika Hokusai 「北斎葛飾」 (1760 – 1849) 14, 82 Artista de ukiyo-e do final da Era Edo. Kazoku 「華族」 33 “Classe das flores”. Segundo grau nas classes sociais criadas pelo Imperador Meiji em 1869: Kôzoku (família imperial), kazoku (nobreza), shizoku (guerreiros) e heimin (plebeus). Classe que substituiu as antigas divisões de nobreza em kugyô e daimyô. Kenin ou Kerai 「家人 ・家来」 61 Serviçal de um guerreiro ou de um nobre nos tempos antigos e na época Kamakura. Na época Edo, deu-se o nome de gokenin a todos os vassalos do shogunato. Também chamado kerai no caso de um vassalo de um daimyô. Kenjôsha「健常者」 Designação de pessoas saudáveis de corpo e alma. 25 154 Kirisute gomen 「斬り捨てごめん」 74 Literalmente, “te corto e deixarei jogado, desculpe”, expressão empregada no Período Edo pelos samurai diante dos assassinatos que eram cometidos por estes. Kitakantô 「北関東」 79 Engloba as regiões norte das Provincias de Tôkyô, Chiba, Saitama, Kanagawa, Gumma, Ibaraki e Tochigi. Kobayakawa Hideaki 「小早川秀秋」 69 Daimyô de 1582-1602. Na batalha de Sekigahara (1600) traiu seus aliados e permitiu a vitória dos Tokugawa. Kobayashi Issa 「小林一茶」(1763-1827) 80 Poeta de haikai. Kokkaankou 「国家安康 」 70 Paz e harmonia da “Nação”. Kôkaku 「光格天皇」 61 Imperador Kôkaku (1771 – 1840). Kokugaku 「国学 」 83 Estudos voltados aos pensamentos do povo japonês, buscando os seus elementos nos primórdios da cultura japonesa que antecederam a introdução do Budismo e do Confucionismo. Kome sôdô 「米騒動」 86 “Movimento, tumulto de arroz”. Manifestação da população japonesa ocorrida em 1918 devido ao alto preço do arroz. Kujigataosamegaki「公事方御定書」 43, 50 “Resoluções para assuntos oficiais”, de 1747, a “Carta-Magna” da época. 155 Kyôgen 「狂言」 67, 80-82 Teatro kyôgen. Teatro clássico cômico japonês e, como o nô, criado no Período Muromachi (1392-1573). Não se pode classificá-lo sempre como um gênero de comédia, pois seu humor nem sempre é feliz, e algumas peças fazem uso de sátira. Algumas chegam a alcançar os limites da tragédia e das lágrimas ou focalizam o isolamento e a solidão humana. Kyô kô 「姜 こう」(1567 – 1618) 69 Coreano que habitava no Japão no Período Edo e que seria autor do registro. Sui in kan´yô roku 「 睡 陰 看 羊 録 」 , sendo os significados dos ideogramas: Sui 「睡」 adormecido In 「 陰 」sombra/oculto Kan「看」percepção Yô「羊」carneiro Ku「録」registro Embora os ideogramas possuam isoladamente os significados acima elencados, não foi possível empreendermos uma tradução dos termos em geral. Como proposta de tradução geral aventaríamos um “Registro/informe/relatório de algo em segredo” Kyûshû 「九州 」 52, 72, 75 Ilha localizada no extremo sul do arquipélago japonês。 –M– Maccha 「抹茶」 68 Uma variedade de chá normalmente usado em sadô ou cha no yu (cerimônia de chá). Matsuo Bashô 「松尾芭蕉」(1644-1694) Poeta de haikai. 79 156 Meiji, Era 「明治時代 」 14, 32-33, 37, 53, 55, 57, 84,-85, 87 Período compreendido entre 1868 a 1912 correspondendo ao reinado do imperador Mutsushito. Meiyôkei 「名誉刑」 59 Pena contra a honra. Miyamoto Musashi 「宮本武蔵」 15, 95-96, 124-125, 131 Autor do livro Gorin no sho e protagonista de Vagabond. Monzen barai 「門前払い」 48 Expressão de o “dar com a cara na porta” numa alusão a uma visita indesejada, sem que a entrada do visitante seja permitida. Muromachi jidai 「室町時代」 65-66, 81 Período Muromachi (1336-1573). –N– Nichibei washin jôyaku 「日米和親条約 」 76 Tratado de Amizade firmado em 1854 entre Japão e Estados Unidos, pondo fim aos cerca de 250 anos de isolamento do Japão. Nichibeishûkô tsûshô jôyaku 「日米修好通商条約 」 76 Tratado de Amizade e de livre intercâmbio Comercial firmado em 1858 entre o Japão e os Estados Unidos. Nichiren(shû) 「日蓮宗」 Seita budista,fundada por Nichiren (1222 – 1282). 67 Nihondaibunten 「日本大文典」 68 Primeiro manual de gramática nipônica feita por estrangeiros. Nijûroku seijin 「二十六聖人」 22 157 26 mártires cristãos que perderam as suas vidas na defesa da sua fé ao Cristianismo: 6 Padres da Ordem dos Franciscanos, 17 cristãos japoneses e 13 japoneses da Companhia de Jesus foram mortos em 1596, sob o governo Toyotomi Hideyoshi, antecessor de Tokugawa. (Todos foram elevados à santidade entre 1861-1862). Ni-niroku-jiken「二・二六事件」 136 Golpe de Estado abortado em 26 de fevereiro de 1936. Em 1936, os rebeldes rendem-se e são julgados por um tribunal militar. 17 são condenados à morte e 65 condenados à prisão. Ninjô 「人情」 91 Calor humano. O espírito humanitário. Nô 「能 」 67, 79-82 Teatro nô, criado no período Muromachi (1392-1573). Nôwa nônari” 「農は納なり」 69 A “agricultura como fonte de renda”, destacando a cultura do arroz como a base da economia. –O– Oda Nobunaga 「織田信長」 66 Guerreiro (1534-1582), primeiro unificador do Japão. Cria o Castelo de Azuchi Momoyama de onde passa a comandar as suas tropas. Suicida-se após a traição de Akechi Mitsuhide, seu homem de confiança. O episódio foi denominado de Honnôji-no-hen, literalmente pelo fato do ataque ter sido no templo Honnô-ji. Oitsuke 「追いつけ」Oikose 「追いこせ」 14, 37, 84 “Alcançar”, “ultrapassar”. Lema adotado após a abertura de portos com o intuito de igualar economicamente o Japão aos países estrangeiros após cerca de 250 anos de isolamento. 158 Okuno Hosomichi『奥の細道 』 79 Coletânea de haikai de autoria de Matsuo Basho publicado em 1702. Ômetsuke 「大目付」 40, 42 Posto estabelecido na Era Edo para manter a vigilância dos daimyô. Ônin do Ran 「応仁の乱」 Revolta do período Ônin (1467 – 1469). Guerra civil ocorrida em 1467. 65 「御定め百か条」 50 Osadamegaki hyakkajô Denominação das Leis de 100 artigos establecidos na Era Edo. Osaka fuyu no jin 「大阪冬の陣」 70 2ª.guerra dos Tokugawa contra Toyoromi ocorrida no inverno de 1612. Osaka natsu no jin 「大阪夏の陣 」 70, 76 Guerra dos Tokugawa contra Toyotomi no verão de 1612 com êxito dos Tokugawa. –R– Rangaku「蘭学」 78 Ran, designção de Holanda e gaku, estudos. Estudos efetuadas na Era Edo durante o fechamento de portos aos estrangeiros. Ri 「里」 50 Unidade de distância equivalente a aproximadamente 3,9 km. Ritsuryô 「律令」 39, 54, 59 Conjunto de códigos civis e criminais criado no final do século VII. Visava a supremacia política e moral do imperador e dos grandes nobres da época. Rôjû 「老中」 40-41 159 Vassalos diretos do shôgun durante o período de Muromachi. Mais tarde, passam a atuar como conselheiros. Rokushoji ou Rikushou「六勝寺 」 62 Nome dos seis templos (法勝寺 Hosshôji、尊勝寺 Sonshôji、最勝寺 Saishôji、 円 勝 寺 Enshôji 、 成 勝 寺 Seishoji 、 延 勝 寺 Enshôji) em cujos nomes são empregados 3 ideogramas, vindo, em segunda posição, o ideograma 勝 katsu “vencer/conquistar” e finalizados com “templo”. Hô – 「法 」leis Son –「尊」respeito Sai – 「最」prefixo o “mais” Em-「円」circulo Sei – 「成」tornar En - 「延」extensão Rônin「浪人」 72, 126 O samurai sem o seu senhor. Andarilho. Errante. Atualmente designa o estudante que não passou no vestibular e aguarda a seleção seguinte, freqüentando cursos pré-vestibulares. Ryô 「りょう」 47 Unidade monetária de ouro e cunhada em folhas finas e largas de forma oval e gravada com tinta, os koban da Era Edo A desginação do termo tem origem no chinês como unidade de massa. Ryûsen 「流線」 120, 134 Recurso empregado nos manga. Uma linha tangente que provoca a apreensão do “real” no leitor. –S– Sadô 「茶道」 Ou cha-no-yu, cerimônia de chá. 68 160 Saibansho 「 裁判所」 40 Tribunal de Justiça. Saimin 「細民」 33 Designação adotada na Era Meiji para a população em comum. Destacam-se os ideogramas que compoem o termo que aludem às “pessoas extremamente pobres” ou “pessoas de classe inferior”. Sakoku 「鎖国」 (1639-1853) 74 Política de Isolamento do Período Edo quando foi proibido o intercâmbio com países estrangeiros. Sankin kôtai 「参勤交代」 71-72, 77 Sistema por turno na corte de Tokugawa. Os daimyô residiam alternadamente em suas fortalezas, geralmente distantes da capital, e na residência de Edo. Seki 「せき」 42 Unidade de medida de arroz; 1 seki ou 1 koku= 180 litros. Sekigahara, batalha de 「関が原の戦い」 42, 68-69, 76, 118, 128, 131 Batalha que dá início aos 250 anos do Período Edo do clã Tokugawa. Sengoku daimyô 「戦国大名」 66 Daimyô do período de guerras de “feudos”. Sengoku jidai 戦国時代 65-66 Período de guerras entre “feudos” de 1467 a 1568 pela disputa de poderes. Senno Rikyû 「千利休 」 68 Mestre de cerimônia do chá. Sesshô 「摂政 」 39, 61 161 Regente imperial. Shamisen 「三味線」 82 Instrumento musical de 3 cordas semelhante ao alaúde. Shimabara no ran 「島原の乱」 72, 77 Levante dos cristãos e camponeses ocorrido na Ilha de Shimabara, na região de Kyûshû e nas ilhas próximas em dezembro de 1637, liderado pelo jovem Amakusa Shirô. Shinigami 「死神」 93-94, 98, 105, 107-109, 114, 116-117, 132-134 “Deus da morte”. Personagem do manga Death Note. Uma divindade que conduz os homens à morte. Shi, nô, kô, shô 「士 農 工 商」 70, 73, 76, 124 A estratificação social da Era Edo entre samurai, agricultores, artesãos e comerciantes. Shite 「シテ」 81 Protagonista do teatro Nô. Shizoku 「士族」 33, 85 Literalmente “povo de origem guerreira”. Nome dado a todos os antigos samurai em 1869, segundo a nova designação das classes sociais. Shoen 「荘園 」 40, 61 Sistema de terras privadas pertencentes às famílias aristocratas ou aos templos. Shôgun 「将軍」 40-42, 44, 52, 54, 61, 65-68, 70, 72, 74-78, 124, 126 Ditadores militares que mantinham a liderança das suas comunidades no lugar do imperador. Shômin 「小民」 33 162 Povo comum. Shôtoku Taishi 「聖徳大使」 39 Príncipe imperial do período entre 574-622. Filho do Imperado Yômei e regente da imperatriz Suiko. Autor da “Constituição em 17 artigos”. Shôwa 「 昭和」 84, 86 Período japonês do imperador Hirohito entre 1926 a 1989. Sui in kan´yôroku「睡 陰 睡 看 羊 録」 69 Obra atribuída ao coreano Kyôkô (1567 – 1618) que vivia no arquipélago japonês na Era Edo. Não se tem registro do seu significado, pois o termo não é japonês. Entretanto de acordo com os ideogramas isoladamente tem-se: Sui 「睡」 adormecido In 「 陰 」sombra/oculto Kan「看」percepção Yô「羊」carneiro Ku「録」registro tendo um sentido aproximado de “Registro/informe/relatório de algo em segredo” Sumô「相撲」 82 Modalidade esportiva tradicional japonesa, corresponde a lutas de corpo a corpo sobre um tipo de ringue. Os lutadores são corpulentos e são preparados exclusivamente visando adquirir maior resistência física. –T– Taishô 「大正」 32-33, 84-86 Era do imperador Yoshihito durante o período de 1912-1926. Tenkawake no tatakai 「天下わけの戦い 」 69 Literalmente, “batalha de divisão do estado”. Outro nome da Batalha de Sekigahara. Disputa do poder entre grupos do oeste, que acreditavam que a fonte de renda do Japão seria o arroz, e o grupo do leste, que acreditava numa “ponte de prata”, referindo-se ao intercâmbio com os estrangeiros. Terakoya 「寺子屋」 83 Escolas criadas em templos budistas ao longo do Período Edo com o objetivo de ensinar a população chônin a ler e escrever. Toba 「鳥羽」 61 Imperador Toba (1102 – 1156) . Tôhoku 「東北」 79 Região nordeste do Japão que engloba as províncias de Aomori, Iwate, Akita, Miyagi, Yamagata e Fukushima. Tokugawa 「徳川」 76-78 Clã que governaram o período Edo por cerca de 250 anos. Toyotomi Hideyoshi 「豊臣秀吉」 (1536 -1598) 52, 66-68, 70-72 Em 1587 proibiu o Cristianismo que começara a crescer. Samurai guerreiro a serviço de Oda Nobunaga. Em 1587 proibiu o Cristianismo e após assassinar Akechi Mitsuhide, tenta estender os domínios até a Coréia, entre outros territórios, e não obtendo êxito acaba doente e falece em 1598. É no governo de Toyotomi que ocorre a execução dos 26 mártires cristãos (nijûroku seijin). –U– ukiyo-e 「浮世絵」 14, 79, 82 “Imagens do mundo flutuante” - ukiyoe, o mundo flutuante, conforme os ideogramas que compõem a palavra: uki 浮 flutuante, yo 世 mundo e e 絵 gravuras/imagens. São ilustrações que retratam o cotidiano. 163 164 –W– Wakadoshiyori 「若年寄」 40-42 Assistente dos rôju. Wakashû「若衆」 80-81 Às vezes “homossexual”. O termo wakashû origina-se das peças de kabuki encenadas por adolescentes, de 1629 a 1652. Devido ao homosexualimo existente entre os atores elas foram proibidas. Wakeiseijaku 「和敬静寂」 68 Wakei 和敬 representa o espírito de honrar a cerimônia dos participantes numa cerimônia de chá concentrando a sua atenção, e seijaku 静寂 os objetos ao redor que complementam o cenário como o recinto, o jardim e os utensílios da cerimônia, enfatizando a paz e a harmonia. Waki「ワキ」 81 Coadjuvante do teatro Nô –Y– Yarô kabuki 「野郎歌舞伎」 80 Designação aos homens do Período Edo que tinham o cabelo raspado da testa até o centro de cabeça. O termo yarô literalmente possui a acepção de insulto como “velhaco”, “desgraçado”, “patife”. Yosa Buson 「与謝蕪村」(1716-1783) 80 Poeta de haikai Yutakasa 「豊かさ」 30, 60, 88-89, 117, 133 “Rico”, “farto”, “abundante”. –Z– 165 Zenshû (zen) 「禅宗 」 Seita budista. Introduzida da China por Eisai, em 1192. 51, 67, 80