O rabo do macaco

Transcrição

O rabo do macaco
O rabo do macaco
E OUTRAS HISTÓRIAS
Carlos Aníbal Pyles Patto
O rabo do macaco
E OUTRAS HISTÓRIAS
Carlos Aníbal Pyles Patto
Brasília • 2005
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OO autorautor
Carlos Aníbal Pyles Patto nasceu em Taubaté, estado de
São Paulo, em 1946. Passou toda a infância e adolescência
em Tremembé, cidade vizinha a Taubaté. Saiu de casa com
dezoito anos, ao ingressar na carreira militar, durante a qual
se deslocou por todo o território nacional e por diversos países estrangeiros.
Nessas andanças conheceu e casou-se com Maria Laura
Santos Germano, gaúcha de Rio Grande. Tiveram dois filhos,
Cláudio Eduardo Germano Patto e Sérgio Augusto Germano
Patto, nascidos em Belém do Pará.
Em 1998 foi diagnosticado como tendo Parkinson, tendo
passado pelas fases de negação, da revolta, da depressão e
de aceitação da doença.
Atualmente, já aposentado, reside em Brasília com a mulher e com o filho mais novo e passa o tempo trabalhando no
condomínio, escrevendo e fazendo pequenas esculturas em
madeira e pedra-sabão.
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Agradecimentos
Agradecimentos do autor
Agradeço ao meu Anjo da Guarda que, conforme poderão constatar no decorrer da leitura, trabalhou muito para
me proteger.
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Apresentação
Apresentação
Houve uma ocasião que decidi fazer terapia, talvez por
influência da Laura, minha mulher, que é psicóloga. Como
não sabia o que apresentar, fiz uma lista dos eventos que
considerava marcantes em minha vida. Isso me fez resgatar episódios de vida divertidos e interessantes, que passei a narrar para parentes e amigos, quando a ocasião era
oportuna.
Recentemente uma amiga da Laura, que mora na França, esteve em Brasília e veio nos visitar. Conversando,
contei-lhe algumas de minhas histórias, que lhe despertaram vivo interesse. Solicitou-me, então, que as escrevesse
e enviasse para ela, para serem publicadas em um site de
sua autoria.
Assim foi feito e as histórias se acumularam, resultando
neste livro, de caráter auto-biográfico e contendo, na maioria dos relatos, fatos e episódios vivenciados por mim e que
considerei como de interesse para outras pessoas.
Esses episódios estão organizados cronologicamente e
por área geográfica, visando facilitar o entendimento.
Procurei, também, evitar os termos técnicos, o que nem
sempre foi possível. Nesses casos, usei o recurso das notas de rodapé para esclarecer o significado.
Com essas palavras de apresentação convido a você,
leitor, para percorrer e curtir essas páginas, esperando que
sejam de seu agrado.
E, havendo interesse de realizar contato, estarei à disposição no endereço [email protected]
Carlos Aníbal Pyles Patto
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Prefácio
Prefácio
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Sumário
Sumário
O AUTOR
AGRADECIMENTOS
PREFÁCIO
02
03
05
TREMEMBÉ-SP
INFÂNCIA
ADOLESCÊNCIA
11
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BARBACENA-MG
CHEGADA NA ESCOLA
CEMITÉRIO DA BOA MORTE
GURU DO MÃO-DE-ONÇA
MÃO DE MERDA
BALALAICA
O MATERIAL DA CLARABELA
JUIZ DE BRIGA
CACHORRADA
EXAME DE FEZES
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RIO DE JANEIRO-RJ
LUTANDO CARATÊ
OUTRA DO MÃO-DE-ONÇA
ACAMPAMENTO
GOTEIRA
TIRANDO FÉRIAS
APROXIMAÇÃO SOLO
AULA DE RESISTÊNCIA DOS MATERIAIS
ANTI-HERÓI
CALOTA
PEGA
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35
PIRASSUNUNGA-SP
SOLO EM AVIÃO À JATO
SOBREVIVÊNCIA NO XINGU
ALVORADA
ORIENTAÇÃO NOTURNA
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41
CANOAS-RS
COMEMORAÇÃO
INCIDENTE NO TRÂNSITO
ACIDENTE EM SÃO JERÕNIMO
DE PIJAMA NO CASAMENTO
COMPRANDO CACHIMBO
PRIMEIRA DISCUSSÃO
O JOGO DOS TRÊS COPINHOS
ULTRAPASSAGEM
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44
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50
51
52
53
AMAZÔNIA
SEVERINO, UM BRASILEIRO
REGULADOR XAVIER
LAURA EM BELÉM
SUPER-HOMEM
A FORMAÇÃO DO UNIVERSO SEGUNDO OS IANOMÂMI
PIADINHA AMAZÔNICA
QUESTÃO DE NOME
POLIGLOTA
OUTRA GRÁVIDA
A MÃO DECEPADA
O RABO DO MACACO
O MISTÉRIO DOS PEIXES
O PARTO DA ÍNDIA IANOMÂMI
AINDA IANOMÂMI
COLHENDO CASTANHA
PERNOITE NA CLAREIRA
PLANTAS CARNÍVORAS
CACHOEIRA DO ARACÁ
PISTA EM UAI-UAI
12
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68
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71
72
73
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INCESTO
CONVERSA
POR FALAR EM CHEFE
DESARMANDO BOMBA
NUVEM DE TEMPESTADE
QUEM ESTÁ PILOTANDO?
VOANDO MONOMOTOR
MORDENDO A ORELHA DO BURRO
CHUPA-CHUPA
AFRODISÍACO
STRIKE
GUERRA DE ÍNDIOS
QUEM TIRA A CORDINHA
NADANDO PELADO
NOIVO
PEGANDO
CRÍTICA
PATANÃO
DESCENDO DE RAPEL
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BRASÍLIA-DF
MOVIMENTOS INVOLUNTÁRIOS
INTERFERÊNCIA ELETROMAGNÉTICA
HURRICANE
CAVALO DE PAU COM MINISTRO À BORDO
MÍMICA
O PIANO DA VIZINHA
ENÓLOGO
PASSEANDO DE BONDE
DE FÉRIAS NA PRAIA
TROTE INFANTIL
FURTO NO ÔNIBUS
PARKINSON
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100
102
103
104
105
106
107
108
109
URUGUAI
OZUMA
PILOTANDO HELICOPTERO
111
112
13
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TREMEMBÉ-SP
Infância
Infância
Passei a minha infância em um misto de ambiente urbano com ambiente rural.
Desde cedo demonstrei gostar de alturas. Havia uma
árvore com muita erva de passarinho. Subia nela, deitava
naquele colchão de ervas e ficava lá, de papo pro ar, olhando as nuvens.
Gostava, também, de me equilibrar. Não podia ver uma
vala com uma prancha em cima – passava. Devagar, mas
passava. Subia nas chaminés das fábricas e andava na borda. E, em dias de ventania, subia em um pé de eucalipto e
ficava balançando no topo.
Também gostava de cavalos. Meu pai possuía alguns cavalos de raça, e eu costumava montá-los, em pêlo, sem
sela e sem freio, apenas com uma corda passada sobre o
focinho, como se fosse um cabresto. Certa vez, andando a
galope, perdi o controle e a égua passou por dentro de um
bambual. Ela passou... Eu não. Fiquei trançado nos bambus.
Era arteiro. Um dia, cortava algumas ramas de mandioca. O facão resvalou e decepou-me um dedo. Um tio, que
era cirurgião, colocou-o no lugar.
Sempre gostei de armas. E de bombas. Fabriquei uma
colocando carbureto e água dentro de um vidro. Tampei
bem e joguei longe, aguardando estourar. Passou um tempo e, como não estourava, fui verificar. Foi levantar o vidro
e ele estourou. Um pedaço bateu em minha costela e entrou por debaixo da pele. Saiu a caminho da farmácia.
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Certo dia, meu pai chamou a mim e ao caseiro para
prendermos a Vaca Preta no curral. Cerca daqui, cerca de
lá, e a vaca, sentindo-se acuada, escolheu o setor mais fraco para escapar – o meu. Já ia “bater em retirada”, quando
meu pai deu um de seus famosos berros. Em uma fração
de segundo, olhei para a vaca, olhei para o meu pai e decidi
– enfrentei a vaca.
Tive cinco irmãs. Como era o único varão, tinha um quarto só para mim. Minhas irmãs dormiam em outro. O meu
quarto era cheio de atrativos. Havia cobras conservadas
em álcool, criação de escorpiões, arco voltaico. Fiz uma demonstração do funcionamento do arco voltaico para uns
amigos. Todos feriram a vista. Passamos dias sem poder
enfrentar a luz do sol. Como minhas irmãs menores gostavam de mexer nas minhas coisas, liguei, com o auxílio de
um transformador, uma armadilha na maçaneta. Era tocar e
levar choque. Quem levou o choque foi a minha mãe.
Nunca gostei que prendessem passarinhos. Como minha mãe achava que eu deveria ter alguma educação musical, colocou-me para ter aulas de piano com uma tia. Lá, na
varanda de sua casa, havia dezenas de gaiolas com passarinhos. Um dia em que não havia mais ninguém por perto,
abri todas as gaiolas e nunca desconfiaram de mim.
Afinal, eu tinha a fama, perante as mães, de ser um menino educado, atencioso e gentil. Um exemplo para os seus
filhos – que sabiam que eu aprontava.
O curioso é que vários passarinhos, já acostumados com
a gaiola, permaneceram nos arredores e foram facilmente
recapturados.
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Adolescência
Adolescência
Em outra ocasião, meu pai passou a andar de moto.
Sempre que podia, eu a pegava, escondido, e saía a passear. Foi com ela que aprendi alguns dos princípios da física – como quando, inadvertidamente, “levantei vôo” numa
rampa natural, na subida da ponte do Rio Paraíba.
Gostava de trabalhar. Levantava cedo, às vezes ainda
escuro, e ia tirar leite. Com duas vacas, tirava mais de trinta litros, em duas ordenhas: uma de manhã e outra à tarde. Seguia, depois, para uma leiteria, onde era entregador.
Entregava leite até o meio dia, equilibrando uma caixa com
dez litros sobre o guidom de uma bicicleta. Quando recebia
meu pagamento, entregava todo o dinheiro para a minha
mãe. Ela ficava emocionada. Depois, eu conseguia, aos
poucos, mais do que havia dado.
Não tinha armas. Usava, escondido, as de meu pai – ou
fabricava. Fiz uma garrucha que precisava de duas pessoas para atirar: uma apontava e o outro colocava fogo no
estopim. Era difícil saber se acertara, pois produzia muita
fumaça.
Também fabriquei, com a ajuda de um amigo, uma espingarda, um garruchão. Ainda bem que resolvemos estreála amarrando-a em um mourão e pondo fogo à distância,
usando um bambu equipado com uma tocha na ponta.
Arrebentou tudo: arma, mourão e bambu.
Cursava o ginasial. Havia um valentão que batia em todo
o mundo. Um dia, já não sei por quê, arranjei uma encrenca
com ele e combinamos brigar depois das aulas. Como nunca fui de briga, tinha certeza de que iria apanhar. Mas fui.
Tinha que ir. Já prontos para a briga, o valentão me disse:
– Espera eu tirar o relógio.
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E, ato contínuo, deu-me um tapa na cara. Fiquei de tal
forma indignado que avancei de guarda aberta, atraqueime com ele e dei-lhe uma joelhada no estômago. O golpe
foi tão certeiro que ele caiu de joelhos e não conseguiu
levantar-se. Estava terminada a luta. Eu havia vencido o
valentão. Mas o que eu não sabia é que eu herdara o título.
Agora eu era o novo valentão. E a toda hora havia quem
quisesse disputar o título.
Demorei a aprender a nadar.
Houve um dia em que não consegui companhia e fui, sozinho, nadar no Paraíba. O rio estava cheio e, como eu nadava mal, a correnteza me levava e eu não conseguia voltar. Resolvi parar no pilar da ponte. Estava cheio de paus,
galhos e folhas, mantidos pela força da água. Tentei agarrar-me aos paus, mas, como estavam soltos, afundei com
eles num turbilhão. Lá embaixo, senti, tateando, a textura
do concreto e subi por ele. Arrebentei as unhas e esfolei os
dedos. Mas saí.
Tempos depois, nadando melhor, fui com três amigos tirar uma pessoa que estava com câimbras e pedia ajuda.
Era um sujeito grande, bem mais forte que nós. Ficamos
com medo que nos agarrasse, mas ele garantiu que se deixaria levar. Agarrou, no entanto, o primeiro que se aproximou. Foi preciso ir ao fundo para ele largar. Resolvemos,
então, que era necessário nocauteá-lo. Começamos a esmurrá-lo, mas ele não cooperava. Não desmaiava. E a situação estava ficando crítica. De repente, avistei um tronco
de bananeira boiando próximo e o reboquei até o afogado
– que, a essa altura, já não sabia se ficava desesperado
ou furioso. Rebocamos, um pouco, o tronco de bananeira
com o afogado e, assim que constatamos que poderia sair
sozinho, saímos d’água e nos mandamos.
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Tinha muitos amigos. Em especial, uns de uma mesma
família, com os quais me identificava. Uma vez, a avó deles veio visitá-los e fizeram fila para pedir a bênção. Entrei
na fila e tomei a bênção, quando chegou minha vez. A avó
disse para a mãe de meus amigos: “Maria, estou ficando
esquecida. Não me lembro do nome desse aí”!
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BARBACENA-MG
Chegada na escola
Chegada
Cheguei à Escola Preparatória de Cadetes do Ar à noite.
Apresentei-me no portão da guarda, e me arranjaram um
lugar para dormir.
Já havia amanhecido quando acordei ao som de uma corneta – era o toque de alvorada. Vesti minha roupa, perguntei
onde se tomava o café e segui a orientação.
Próximo ao local indicado, encontrei uma porção de jovens,
todos enfileirados e com uma expressão assustada. Em volta,
outros jovens com uma postura arrogante. Achei estranhos
esses novos colegas.
Como ninguém me incomodou, passei direto e desci as escadas em direção ao refeitório.
Entrei numa fila, apanhei um prato de mingau, uma banana,
uma caneca de café com leite e um pão com manteiga. Achei
um lugar para sentar, em uma mesa de oito lugares onde havia
seis “assustados”.
Nem bem havia sentado quando se aproximou um “empombado”. Não pediu licença e sentou-se ao meu lado. Já não gostei do cara. A seguir, ele descascou sua banana e – assombro
– jogou a casca no meu prato de mingau. Ela mal havia tocado
o prato, e eu já o estava esfregando na cara dele.
Foi um tumulto.
Apareceram dezenas de “empombados” a favor do maleducado. Defendi-me com cadeiradas. Logo apareceu uma
pessoa que, mais tarde, soube tratar-se do oficial de dia, e pôs
fim ao imbróglio.

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Cemitério
Cemitério da Boa Morte
Houve um ano, se não me engano 1966, em que o dia treze
de agosto caiu em uma sexta-feira.
O mês de agosto, o dia treze e a sexta-feira eram considerados azarados. Por isso mesmo, aquela data era tida como
sendo especialmente azarada, como se multiplicássemos as
respectivas cargas de azar.
Travou-se uma discussão em que eu e mais dois colegas, o
Mário Lúcio e o Costa Pinto, afirmávamos que isso era besteira, que azar não existia. Como não chegávamos a uma conclusão, fizemos uma proposta: nós três iríamos ao cemitério da
Igreja da Boa Morte, à meia-noite dessa data, para desafiar o
azar. E, para provar que estivemos lá, traríamos alguns ossos,
uma cruz ou algo do gênero.
Do planejamento, passamos à ação. Na data prevista, pouco antes da meia-noite, saltamos o muro (era comum fugirmos
à noite) e nos dirigimos para o cemitério. Ao chegarmos na
esquina da igreja, discutimos quem de nós faria um reconhecimento. Para continuar bancando o valente, prontifiquei-me.
Havia um pátio à frente da igreja e uma portinha que estava
aberta. Passei por ela e contornei o pátio, em direção ao cemitério.
Cheguei à grade que o cercava, porém não tive coragem
de pular.
A iluminação da rua já não alcançava aquela área, no entanto havia luar suficiente para distinguir as coisas. Aproximei-me
da grade, estendi o braço e alcancei um copo-de-leite caído no
chão, pelo lado de dentro.
Fiz o caminho de volta esforçando-me para não correr.
– Então? Como foi? – perguntaram.
– Foi tranqüilo. Entrei e apanhei esse copo-de-leite – menti.
Ao que Mario Lúcio retrucou:
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– Agora, vamos todos.
Costa Pinto negou-se a entrar. Eu tinha que ir. E lá fomos
nós dois.
Ao chegarmos na grade, Mário Lúcio perguntou:
– Como é que você entrou?
– Escalando essa pilha de tijolos – menti novamente, apontando para uma pilha de tijolos que estava encostada na grade.
Com cuidado, conseguimos escalar os tijolos, saltamos a
grade e começamos a andar, procurando o que levar. Já não
pensávamos em ossos. Impossível consegui-los.
Foi então que avistei duas velas sobre uma tumba – uma em
pé e a outra deitada. Peguei a que estava em pé e a entreguei
ao Mário Lúcio. Essa saiu com facilidade. Fui então apanhar a
outra. Puxei-a, mas não saiu. Fiz mais força... e nada. Nervoso, apoiei o pé na lateral da tumba e puxei com toda a força.
E a tampa da tumba cedeu, vindo em minha direção!!! Dei um
pinote e tratei de alcançar Mário Lúcio que já havia disparado
em direção à grade. Saltamos a grade não sei como. A portinha... levamos no peito.
Costa Pinto, quando viu aquilo, desapareceu. Era corredor.
Nunca o alcançaríamos.
Corremos mais um pouco e paramos para analisar o ocorrido. Concluímos que eu havia puxado alguma fenda ou saliência e, com o nervosismo, não percebi.
Já mais calmos, prosseguimos rumo à Escola. Saltamos o
muro em um dos locais que utilizávamos e fomos para o alojamento. Lá chegando, notamos que havia uma aglomeração
bem no centro. Fomos verificar e constatamos ser o Costa
Pinto. Estava deitado, com os olhos arregalados.
Só dizia:
– Ah... Ah... Ah...

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Guru do Mão-de-Onça
Guru
Mão-de-Onça tinha-me por seu guru. Estava sempre
procurando conselho e fazia tudo que eu indicasse.
Houve uma ocasião em que veio falar comigo, mas eu
não estava com cabeça para dar conselhos.
Perguntou-me:
– Você acha que uma pessoa mais fraca pode bater em
uma mais forte?
– Lógico, Mão-de-Onça. É tudo uma questão de cabeça,
de acreditar, de ter fé.
E lá se foi ele, satisfeito.
Não demorou muito e ouvi um barulho forte vindo do
fundo do alojamento. Todos corriam para lá. Fui verificar e
cruzei com o Mão-de-Onça, todo sorridente, fazendo-me o
sinal de positivo.
Logo soube do ocorrido. O Rangel havia dado uns cascudos no Mão-de-Onça, que, depois de falar comigo, dirigiu-se ao armário do Rangel, ganhou velocidade e jogou os
dois pés contra a porta do armário, encaçapando o Rangel
lá dentro, desmaiado.
Quando acordou, deu o troco no Mão-de-Onça.
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Mão de merda
Mão
Mão-de-Onça estudava na sala de aula até bem tarde.
Quando voltava ao alojamento para dormir, procurava a
chave do armário, embaixo do capacete (os capacetes ficavam sobre os armários). Levantava o capacete e tateava,
ou melhor, batia com as mãos à procura da chave. Com o
barulho, acordava aqueles que dormiam nos arredores.
Várias vezes, pediram que parasse com isso, que não
fizesse barulho.
Não adiantou.
Continuava.
Para resolver o problema, um dos incomodados colocou,
sob o capacete, um troço fresco.
E o desfecho foi o esperado.
O Mão-de-Onça chegou, levantou o capacete, bateu... E
ficou com a mão cheia de merda.
E ficou bravo. Acordou quase todo o alojamento.
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24
Balalaica
Balalaica
Ia haver uma demonstração e praticávamos balalaica1
na Praça de Esportes da Escola Preparatória de Cadetes
do Ar.
Acima de nós, entre a Escola e a Praça de Esportes, passava a estrada de ferro. Uma locomotiva fazia manobras, o
que era comum. De repente, um de nós gritou:
– Olhem aquela menina! Ela está na linha do trem, e a
locomotiva vem vindo.
Paramos a balalaica e começamos a berrar e a gesticular. Não adiantou. Ela não entendeu, e a locomotiva pegoua em cheio. Corremos para lá, com alguma esperança, mas
só encontramos pedaços triturados e um cheiro característico de carne macerada.
No almoço, todos ainda estavam abalados com a morte
da guria. Então, um dos colegas que havia assistido ao acidente fez um infeliz comentário:
– O que lembra o cheiro desse picadinho de carne?
Houve quem vomitasse.

1
Ginástica com mosquetão, ou seja, com uma espécie de espingarda.
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da Clarabela
OO material
material
Estávamos em uma aula prática de Biologia, com a professora Clarabela. Como explicava o processo da fecundação humana, comentou que, infelizmente, não dispúnhamos
de material para observarmos o processo pelo microscópio. Nesse momento, um colega pediu licença para ir ao
banheiro, voltando com a mão cheia:
– Pronto professora. Eis aqui o seu material.

26
Juiz
Juiz de briga
Quase todo dia havia alguma briga. Eram marcados: local, hora e juiz de briga.
O local era, geralmente, atrás do almoxarifado e o juiz
de briga, um aluno convidado para assistir a briga e apartar, quando necessário. Eu era escolhido com freqüência
para essa função.
Deixava se estapearem um pouco e apartava, tentando
fazer que considerassem empate.

27
Cachorrada
Cachorrada
Havia um colega que detestava cachorros.
Outro, valendo-se disso, colheu um pouco da secreção
da genitália de uma cadela no cio e aplicou no sapato do
primeiro. Por onde ele andava, ia uma cachorrada atrás.
E ele não entendia nada!

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Exame de fezes
Exame
Havíamos recebido uma latinha para colher fezes destinadas a serem examinadas.
Como alguns não estavam com vontade de defecar, colocaram fezes de cachorro nas latinhas.
Deu merda.

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RIO DE JANEIRO- RJ
Lutando caratê
Lutando
Já nos Afonsos, no Rio de Janeiro, como aluno do terceiro ano da Preparatória, senti necessidade de praticar uma
luta e minha preferência era o caratê – modalidade que não
havia na Escola de Aeronáutica.
Solicitei e me concederam licença para treinar toda noite, em uma academia, em Madureira. Lá, fiz amizade com
um carateca. Ao término da aula, costumávamos descer
para tomar uma vitamina. Nessas ocasiões, meu amigo
provocava as pessoas que estavam por ali.
Perguntei-lhe por que procedia dessa forma, e ele me
respondeu:
– Lá em cima é a teoria; aqui, a prática.

30
Outra do Mão-de-Onça
Outra
Estava no Campo dos Afonsos, cursando o terceiro ano
da Preparatória.
Vieram me falar que o Mão-de-Onça havia perseguido
o cadete de dia com uma faca na mão e que se encontrava
baixado à enfermaria.
Fui até lá para ver como ele estava. Notei que vários
baixados estavam saindo, assustados. Entrei e deparei-me
com o Mão-de-Onça, com um bibico1 atravessado na cabeça, uma mão no peito, enfiada no camisolão, e a outra mão
às costas. Rindo, me dizia:
– Estou fingindo que sou Napoleão, e eles pensam que
eu sou doido.
– O que você tem na outra mão? – perguntei.
– Não é nada, não.
– Mão-de-Onça, mostra a outra mão.
Tanto insisti que mostrou. Tinha uma faca na outra mão.
Algum tempo após, o Mão-de-Onça pediu transferência
para a Academia que forma os oficiais do exército. Um dia,
estava parado, com aquele olhar distante que, às vezes,
apresentava, quando passou um oficial.
Como ele não fez a continência, o oficial parou e perguntou:
– Cadete, cadê o cumprimento do militar?
E o Mão-de-Onça lá, sem responder, com aquele olhar
distante.
– Cadete! – repetiu o oficial, balançando o dedo à sua
frente – Estou falando com você.
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Mão-de-Onça não tolerava que lhe apontassem o dedo.
Caiu de dentadas no braço do oficial.
  
1
Peça de fardamento. Espécie de chapéu.
32
Acampamento
Acampamento
Estava prevista a realização de um acampamento no
próprio Campo dos Afonsos em que participariam a minha
turma e a outra logo acima.
Os cadetes seriam divididos em dois grupos: um que
comporia e defenderia o acampamento, e outro – o dos
guerrilheiros – que atacaria o acampamento. Eu pertencia
aos que defenderiam o acampamento.
Entusiasmei-me com o exercício. Andava de um posto
para outro, fiscalizava tudo, bolava táticas e estratégias.
Como sempre concordei com o adágio de que a melhor defesa é o ataque, sugeri aos outros passarmos à ofensiva.
O acampamento ficava numa elevação, e metade de seu
perímetro era barranco, o que se constituía numa proteção
natural. O restante era mais vulnerável e, fatalmente, propiciaria o acesso dos guerrilheiros. Daí a importância de
partirmos para a ofensiva.
Tracei o seguinte plano: sabíamos que os guerrilheiros
estavam rastejando lá em baixo, em direção ao acampamento. A noite era escura e não era possível avistá-los a
olho nu. Dispúnhamos, no entanto, de uma pistola de sinalização e de alguns cartuchos. Combinamos, então, que
formaríamos uma fileira lá embaixo e que sairíamos correndo em frente e berrando. Nesse momento, um dos nossos,
posicionado no morro, lançaria, em seqüência, uns três tiros com os sinalizadores. Acreditávamos que os guerrilheiros se julgariam descobertos e se levantariam para fugir,
dando-nos a oportunidade de apanhá-los. Era a “Operação
Levanta Perdizes”. Assim fizemos, e foi um sucesso.
Várias “perdizes” tentaram levantar vôo.
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Ainda nessa noite, foram me chamar para ir a um determinado posto, na beira do barranco. Lá chegando, encontrei vários cadetes debruçados no barranco, discutindo.
Perguntei do que se tratava.
– É esse vulto ali embaixo, colado no barranco. Não sabemos se é pedra ou guerrilheiro.
Ao que respondi:
– Não tem problema. Quem está com vontade de mijar?
Apresentaram-se vários voluntários.
Chamei o mais próximo e disse:
– Mija na pedra.
E lá se foi a primeira mijada. E a pedra não se mexia.
Chamei o próximo.
– Mija na pedra.
E nada. A pedra continuava imóvel.
Chamei o terceiro e repeti:
– Mija na pedra.
Dessa vez, a “pedra” não agüentou. Levantou-se, xingou a mãe de todo mundo, ameaçou dar porrada...
Era o Japonês.
Agüentou três mijadas.

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Goteira
Goteira
Chovia muito no Campo dos Afonsos. E havia muito pernilongo.
O Japonês era o único a possuir mosquiteiro, em todo o
alojamento. Era daquele tipo quadrangular, armado sobre
a cama.
Depois que o Japonês dormiu, um outro colega foi até lá
e colocou uma pedra de gelo sobre o mosquiteiro, à altura
da cabeça. O gelo derretia e pingava no rosto do Japonês.
Esse acordava e, julgando ser uma goteira, arrastava a
cama para outra posição. Voltava a deitar, a “goteira” continuava, e a cama era arrastada – até derreter todo o gelo.

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Tirando férias
Tirando
Transcorria o ano de 1968. Eu estava conflitado, não sabia se continuava na Academia, nem o que fazer da vida.
Resolvi que precisava de umas férias para pôr a cabeça
no lugar e, como a tirada e o processamento das faltas estavam atrasados, demorariam a descobrir.
Assim fiz.
Levantava todos os dias, colocava a farda, ia para o rancho tomar café, voltava, colocava o uniforme de Educação
Física e ia para a quadra de esportes ou para a piscina. Na
hora do almoço e do jantar, eu repetia o processo. Fiz isso
por um mês. Ninguém me incomodou durante esse período.
Passados uns quinze dias do término das “férias”, fui
chamado para justificar as faltas. O tenente chefe da esquadrilha começou a ler as fichas de controle:
– Faltou à aula de Resistência dos Materiais do dia tal;
faltou à aula de...
Interrompendo, eu disse:
– Pode parar, tenente. Foram trinta dias de faltas.
– O que houve, Patto? Esteve baixado ao hospital?
– Não, senhor. Estava estressado e resolvi tirar umas
férias.
– Como é?!
– Sim, senhor. Passei trinta dias sem assistir às aulas.
Ficava na praça de esportes ou na piscina.
– Um momento – disse o tenente.
E foi conversar com um colega meu que estava um pouco afastado, voltando logo a seguir.
– Olhe, não sei o que faço com você. Seu colega garantiu que você não é louco, mas tenho minhas dúvidas. Vou
36
lhe dar quatro dias de detenção e ficar de olho em você.
Qualquer alteração e você estará a caminho da rua.
Saiu barato.
É como dizem: “não há crime de exceção”.

37
Aproximação solo
Aproximação
Corria o segundo ano de cadetes na Escola de Aeronáutica.
Recebi o briefing1 de meu instrutor de vôo e seguimos
até o avião, um Fokker T-21, monomotor de treinamento
básico.
A missão consistia em um vôo solo de aproximação2. O
instrutor permanecia no solo, na cabeceira da pista, e o
aluno decolava e fazia aproximações de noventa, cento e
oitenta e trezentos e sessenta graus. O instrutor avaliava
cada aproximação.
Dei a partida e taxiei até a cabeceira. Ali o instrutor desceu, com algumas almofadas. Havíamos combinado alguns
códigos sinalizados com as almofadas.
Em seguida, tomei posição e decolei para a primeira
aproximação.
Saiu perfeita. Toquei logo na cabeceira. Mas, para meu
espanto, o tenente estava dormindo ao lado da cabeceira,
deitado sobre as almofadas.
Bateu o conflito. Como eu seria avaliado se ele continuasse dormindo?
Resolvi que teria que acordá-lo. E teria que ser com o
avião.
Fiz a outra aproximação como previsto, mas bem próxima ao tenente. Ao tocar, dei todo o motor para fazer barulho, na esperança de acordá-lo. Mas nada. Continuava
dormindo.
O pouso seguinte foi radical. Levei o avião a tocar a roda
esquerda a uns dois ou três palmos do dorminhoco. E vim
dando rajadas de motor. Dessa vez, deu certo. Lá de cima,
depois de fazer a volta, era possível enxergá-lo pulando e
38
gesticulando. Mas não fazia nenhum dos sinais que havíamos combinado.

Termo em inglês. Significa instrução ou orientação para executar um procedimento ou
ação.
2
Manobra que consiste em “tirar o motor” (desacelerar o avião) em posições preestabelecidas em relação ao local de pouso. Destina-se ao treinamento para pouso em
emergência.
1
39
Aula de Resistência dos Materiais
Aula
Havia um major, no Campo dos Afonsos, que nos dava aulas de Resistência dos Materiais.
Em uma de suas aulas, eu me distraía lendo o livro de História, quando, interrompendo a aula, veio falar comigo.
– Patto, você não devia estudar outra matéria em minha
aula. Mesmo que você já esteja com nota suficiente para passar na matéria, prestando atenção à aula você vai tirar uma
nota maior e isso vai melhorar a sua classificação. Eu sei que
vocês não se preocupam com a classificação hoje, mas, amanhã, vão sentir falta...
– Eu não tenho esse problema – argumentei.
– Por que não?
– Porque me considero o primeiro colocado da turma que
vem a seguir.
Todos riram, menos o major. Resolvi, então, colocar uns panos quentes, antes que me desse mal.
– Mas faço um acordo com o senhor: eu tiro a melhor nota
na próxima prova, e o senhor deixa-me ler o que eu quiser.
– Feito.
E voltou a dar a aula.
Em conseqüência, parei de estudar tudo o mais. Só estudava Resistência dos Materiais. Tirei a maior nota de toda a
turma. E a prova foi de lascar. O major ficou supersatisfeito.
Cumprimentou-me, elogiou-me, disse que eu podia fazer o que
quisesse na sua aula...
Mas é lógico que parei de estudar aquela matéria e tratei de
me recuperar nas outras. E, na prova seguinte de Resistência
de Materiais, tirei zero.
O major nunca mais falou comigo.

40
Anti-herói
Anti
Eu estava na praia, na Barra da Tijuca.
O mar estava puxando, e a bandeira vermelha estava
hasteada.
De repente, todos começaram a apontar para o mar.
Olhei na mesma direção e vi uma pessoa nadando ao longe, aparentando estar com problemas. Olhei para todos os
lados e nada. Não havia salva-vidas, ninguém se movimentava para ajudar.
Fiquei indignado. E, sem mais pensar, entrei n’água e
comecei a nadar, decidido a socorrer aquela pessoa.
À medida que avançava, as ondas ficavam maiores. Ora
eu estava no topo da onda, ora lá embaixo. Logo perdi de
vista o afogado. Foi quando olhei para a praia e constatei
que me afastara demais e comecei a nadar de volta. Havia
uma corrente que me desviava de onde havia saído. Avançava pouco, o que me obrigou a um maior esforço. Nesse
ínterim, avistei vários salva-vidas, unidos por uma corda,
entrando no mar em um ponto distante, alcançando o afogado e tirando-o d’água. E vi todos na praia olhando para
mim, inclusive os salva-vidas. Agora, eu era o afogado.
A muito custo, consegui alcançar a praia... e um salvavidas me ajudou a sair d’água.

41
Calota
Calota
Um colega foi de Chevete assistir a um jogo no Maracanã.
Enquanto estacionava, aproximou-se um “flanelinha” e
perguntou:
– Vai um polimento aí, doutor?
E meu colega, depois de olhar para um lado e para o
outro, respondeu:
– Não. Mas você está vendo aquela roda dianteira, do
lado esquerdo, sem calota?
– Estou sim.
– Pois quando eu voltar, se estiver com uma calota igual
às outras, você leva uma boa gorjeta.
E o “flanelinha”:
– Deixa comigo, doutor.
Ao retornar do jogo, meu colega constatou que a roda
estava com uma calota.
Satisfeito, deu uma boa gorjeta para o “flanelinha” e foi
para casa.
Lá chegando, desceu do carro, deu a volta para abrir o
portão e, com surpresa, constatou que faltava uma calota
do outro lado.

42
Pega
Pega
Somente um dos meus colegas de turma tinha carro
novo.
Era um Fuscão todo incrementado: tinha kadron, suspensão rebaixada, tudo...
Certo dia, andava pelo Rio, quando um sinal fechou, e
ele avançou um pouco a faixa. Engatou a ré e chegou o
carro para trás.
Nesse momento, parou, bem ao seu lado, um “boyzinho”, acelerando para um “pega”. Meu colega aceitou o
desafio e passou, também, a acelerar.
Acelera daqui, acelera de lá, e eis que abre o sinal.
Arrancaram ambos a toda velocidade – o “boyzinho”
para a frente, e meu colega batendo no carro de trás.
Havia esquecido de tirar a marcha à ré.

43
PIRASSUNUNGA-SP
Solo em avião à jato
Solo
Já estava na Academia da Força Aérea.
Taxiava para a cabeceira da pista com o T-37, um jatinho
de treinamento avançado para os cadetes aviadores do último ano. Faria meu primeiro vôo solo, no tráfego. O vôo
consistia em cinco toques e arremetidas.
O esquema de segurança era pesado. Havia um instrutor na torre de controle, um na cabeceira da pista, numa
Kombi que tinha uma bolha em cima e comunicação com os
aviões, e mais um instrutor voando no tráfego, juntamente
com os outros três cadetes solos.
Quando autorizado, entrei na pista, tomei posição para
decolagem e, ao ser liberado, dei cem por cento de potência e disparei pista afora. Ao atingir a velocidade prevista,
tirei o avião do solo, recolhi o trem de pouso e desci, acelerando cada vez mais. Voava tão baixo que alguns colegas
que assistiam do pátio me disseram que eu quase sumia,
tapado pela grama alta. Ao final da pista, dava uma puxada
no manche, observando o avião à frente e, num relance,
já me encontrava na “perna com o vento”1. Foi então que
o instrutor que estava na cabeceira da pista entrou na freqüência e disse:
– Patto, não foi isso que combinamos no briefing. Não
faça mais isso.
Mas ele falou de uma forma tão gentil e educada que
pensei que estava gostando. E continuei repetindo aquilo
que chamávamos de “americana”.
Quando terminou o vôo, todos os instrutores estavam
44
furiosos comigo. Uns queriam me bater, outros prender e
alguns queriam me levar a Conselho.
Felizmente, com o decorrer dos dias, os ânimos se acalmaram.
Não sei se fui a Conselho, mas se fui, passei. Tanto é
que estou aqui – já aposentado.

1
Voando paralelo à pista, normalmente a mil pés de altura.
45
Sobrevevência no Xingu
Sobrevivência
Ainda como cadetes, fomos realizar um curso de sobrevivência na selva, ministrado pelo Parasar. O curso seria
prático, às margens dos rios Ronuro e Kolueno, formadores
do Xingu. Fomos de avião até o Posto Leonardo Villas Boas
e, de lá, prosseguimos de lancha.
Já no primeiro dia, nosso grupo deu uma bobeada. Passamos o dia limpando a área e fazendo a barraca com lona
de pára-quedas e não designamos ninguém para providenciar comida. Já estávamos no pôr-do-sol, quando um tucano, inadvertidamente, pousou bem acima de nossas cabeças. Saquei a pistola quarenta e cinco e, com sinais, pedi
silêncio. Fiz pontaria e atirei. O tucano caiu num rodopio.
Mistério! Não estava ferido!
A partir de então, fui designado caçador do grupo.
Mas tucano só tem bico... e penas. Depois de limpo, tinha o corpo de um passarinho. Mesmo assim, foi para a
panela. Deu um pedacinho para cada um, que foi comido
com ossos e tudo.
O exercício durou cinco dias, como previsto. Voltamos
para o Posto Leonardo e ficamos aguardando o avião que
nos levaria de volta para a Academia.
Enquanto isso conversava com um índio Yualapiti. Era
um índio forte, bem maior que qualquer um de nós. Como
eu era bom de braço-de-ferro – ninguém me ganhava na
Academia –, o pessoal queria que eu jogasse com o índio.
Expliquei para ele como era, e jogamos. Não era de nada.
Ganhei fácil. A pressão, agora, era para jogar dedo. Eu não
queria, pois esse jogo pode quebrar o dedo. Mas tanto insistiram que resolvi jogar. Expliquei ao índio, com detalhes,
como era o jogo, e o avisei:
46
– Se eu falar para parar, pare. Esse jogo quebra o dedo.
Entrelaçamos os dedos e apertei bastante.
O índio não apertou e torceu a mão.
Deu para ouvir o estalo. O dedo dele quase que fica em
minha mão. Queríamos levá-lo para nosso médico, mas ele
não quis. Sem mudar de expressão, colocou o osso no lugar
e ficou massageando, enquanto o dedo inchava. Pergunteilhe como faria, e ele me explicou:
– Fico raspando por vários dias (não me lembro quantos), com dentes de piranha, e pronto. Fica bom.
A técnica consistia em manter o inchaço, que servia de
gesso.
Perguntei-lhe se faziam assim para qualquer osso quebrado e me explicou que servia para vários. Alguns eram
mais difíceis, como os ossos da clavícula. Outros, como os
da coluna, não tinham solução. Quebrou, morreu.

47
Alvorada
Alvorada
Todos os dias acordávamos ao som do toque de alvorada. Logo a seguir, o cadete de dia colocava para tocar
um disco de sua preferência (havia um sistema de avisos e
música ambiente nos apartamentos).
E todos os dias tocavam a mesma música: “Meu violão
caiu de cima do armário...”. E todos os dias era aquela gritaria:
– Arrego aí ô...
– Desliga essa...
– Enfia...
Até que um dia, um cadete mais irritado desceu até a
Sala do cadete de dia e, usando a própria agulha do tocadisco, arranhou todo o disco.
No dia seguinte, logo após o toque de alvorada, começou a música: “Meu violão... crik... de cima... cruoque... armário... crunch...

48
Orientação noturna
Orientação
Realizávamos um exercício de orientação noturna em um
bosque localizado dentro da própria Academia.
Eram vários grupos, cada um identificado por uma cor.
O exercício consistia em localizar, com o auxílio de uma
bússola e de uma lanterna, uma primeira placa de sinalização, colorida, posicionada a uma determinada distância
e num determinado rumo. Nessa placa, havia o rumo e a
distância para a próxima, e assim por diante.
Como o nosso grupo não encontrou a primeira placa,
passamos a andar rápido, em qualquer direção, recolhendo
todas as placas que encontrávamos.
Foi uma confusão.
Ninguém conseguia encontrar o caminho.

49
CANOAS-RS
Comemoração
Comemoração
Era dia de festa.
Íamos comemorar o milésimo pouso de instrução sem
nenhum acidente.
O evento ocorreria no 1º Esquadrão Misto de Reconhecimento e Ataque, sediado na Base Aérea de Canoas, no Rio
Grande do Sul, onde eu fazia estágio de piloto de ataque.
Voávamos o NA T-6, um avião em “tandem”1, monomotor,
à época utilizado como avião de ataque ao solo.
Estava tudo preparado. A banda já estava a postos, os
salgadinhos já estavam à mesa, e o comandante da base já
se encontrava no pátio de manobras, onde seria realizada
a cerimônia.
Eu estava voando. Recebi a incumbência de permanecer no tráfego e realizar quatro pousos, em “toque e arremetida”2, para que um outro colega realizasse o milésimo
pouso.
Fiz o primeiro pouso sem utilizar “flaps”3 e arremeti; fiz
o segundo com flaps, arremeti e recolhi os flaps após a
decolagem; entrei na final para realizar o terceiro pouso e,
para variar, resolvi fazê-lo com flaps e recolhê-los durante a
arremetida (o que era proibido aos estagiários, pela pouca
experiência, pois havia uma tendência a olhar para dentro,
o que, normalmente, resultava na perda de controle da aeronave).
Assim planejei e assim fiz. E não deu outra. Perdi o controle da aeronave, saí da pista e fui parar dentro de uma
vala de drenagem, com o avião pilonado4. Sempre de pron-
50
tidão, logo estavam, ao meu lado, o carro dos bombeiros e
a ambulância. Como eu estava bem, levaram-me para o local da cerimônia, onde, logo em seguida, a banda começou
a tocar. Meu colega havia completado o milésimo pouso
de instrução. O comandante da base foi ao microfone e
anunciou:
– Comemoramos hoje o milésimo pouso de instrução do
1º EMRA e o primeiro acidente. Aspirante Patto venha cá.
E lá fui eu, envergonhado, para aquele palanque improvisado.

Outra palavra em inglês. Na aviação significa “avião de dois lugares, sendo um atrás
do outro.”
2
Pousa, mas não pára o avião. Acelera o motor e decola novamente.
3
Extensão da asa que propicia um aumento de sustentação.
4
De ponta-cabeça, apoiado na hélice e nas rodas do trem de pouso.
1
51
Incidente no trânsito
Incidente
Caía uma chuva fina sobre Porto Alegre.
Naquela época, o calçamento das ruas do centro era de
pedras polidas, muito escorregadias quando molhadas.
Éramos aspirantes. O Pontes, andando pelo centro com
seu Karmann Ghya, sem saber que o calçamento estava
escorregadio, freou um pouco em cima, deslizou e bateu no
carro da frente. Desceu para conversar com o motorista,
que aparentava estar furioso:
– Olha o que você fez. Não sabe dirigir?
Ao que o Pontes respondeu:
– Calma. Se houver algum estrago, eu pago.
– Calma coisa alguma. Pessoas como você não deveriam
dirigir...
Perdendo a paciência, o Pontes retrucou:
– Quer saber de uma coisa? Se não quer conversar, então vá à merda.
– O quê? Sabe com quem está falando? – retrucou o
outro.
– Não – respondeu o Pontes.
– Pois saiba que eu sou capitão da Polícia Militar.
Ao que o Pontes prontamente respondeu:
– Bem feito. Quem mandou não estudar?

52
Acidente em São Jerônimo
Acidente
Estávamos no fim do ano. A pilonagem havia sido esquecida, e todos já haviam acumulado experiência.
Minha função era coordenar a construção da nova pista,
em São Jerônimo, em terras do Exército, onde tínhamos
um stand de tiro aéreo.
Como sempre, decolei de Canoas e rumei para São Jerônimo.
A pista em uso era crítica. Era de cascalho, tinha seiscentos metros de comprimento, uma cerca de arame farpado em uma cabeceira, uma depressão na outra e uma
ribanceira num dos lados.
Havia, também, um tambor posicionado a dois terços do
comprimento da pista, destinado a marcar o ponto limite
para arremeter, no caso de não estar com o avião dominado e com a bequilha1 no chão. O vento estava forte, de través. Entrei alto na final, o que me custaria alguns metros a
mais de corrida pós-pouso.
Ao chegar no tambor, ainda estava com a bequilha no ar,
mas não arremeti (afinal, eu era um dos poucos que nunca
havia arremetido nessa pista). Em conseqüência, precisei
frear muito. Derrapei no cascalho, e o avião saiu da pista,
descendo a ribanceira. Voltei a dar motor e colei o manche para evitar uma pilonagem. Pretendia parar o avião
no pasto, logo abaixo. Entretanto, eu não sabia que ali era
um charco, camuflado pela vegetação. Ao atingir o charco,
o avião capotou. Não me recordo da pancada. Devo ter
desmaiado por algum tempo. Quando acordei, estava de
cabeça para baixo, a cadeira estava quebrada na base, o
capacete estava rachado devido à pancada no painel, eu
estava com o topo da cabeça dentro d’água (um olho estava dentro d’água) e com os braços presos, imobilizados.
53
Havia cheiro de gasolina e dava para ver a “luz da bruxa”2
acesa. No início, desesperei-me. Fazia força para soltar os
braços, tentava erguer o avião.
Aos poucos, consegui me acalmar. Foi então que percebi que um braço podia movimentar-se para frente. Foi só
esticá-lo, dar uma torção, e ele estava livre. Num instante,
soltei o outro, livrei-me do pára-quedas e passei a apalpar
a fuselagem, com a faca na outra mão, procurando um local
para romper a lataria. A impressão que eu tinha era de que
a aeronave estava parcialmente enterrada no charco, e que
o único meio de sair era rompendo a fuselagem. Foi então
que ouvi passos.
Perguntei:
– Tem alguém aí?
E alguém respondeu.
Voltei a perguntar:
– Está com alguma ferramenta?
E a pessoa informou que estava com uma enxada.
– Cutuca com a enxada por aqui para eu ver se entra luz
– e batia na chapa da fuselagem. Na primeira enxadada,
apareceu luz. Em segundos, eu cavei uma saída com as
mãos.
Antes de sair, enterrei minha faca no barro pensando
em não me machucar. Mais tarde a encontraram a mais de
meio metro de profundidade.
Dirigi-me à sede do stand. Lá chegando, encontrei o suboficial encarregado que regressava da estação do Exército. Havia escutado o barulho do avião pousando e foi até a
pista. Ao ver o avião naquele estado, chamou e não obteve
resposta. Pensou que eu estivesse morto e foi até a estação de rádio do Exército, para informar à base. Rascunhei,
então, um rádio, nos seguintes termos: “Acidente grave
1244. Perda material total”. Ocorre que o suboficial havia
54
informado “... perda total...”. Como a mensagem passava
por vários pontos, minha mensagem chegou antes e a do
suboficial após, o que confirmou a minha morte.
Assim, foram desencadeados, na base aérea, os procedimentos previstos para acidentes com morte: lacraram
meu armário; mandaram avisar a Laura (minha futura mulher); solicitaram à Escola de Sargentos de Guaratinguetá que enviasse o capelão para avisar os meus pais, em
Tremembé; compraram meu caixão e prepararam um C-47
para buscar meu corpo. Enquanto isso, eu tomei um banho,
coloquei meu macacão para secar e aguardei. Já mais calmo, perguntei ao suboficial:
– E aquela caipirinha que vocês fazem para o almoço?
Ao que ele respondeu:
– Mas, tenente, o senhor tomou toda a caipirinha!
E eu pensava que havia tomado um copo duplo de limonada!!
E a caipirinha não fez o mínimo efeito.
Como pensavam que eu havia morrido, o C-47 demorou
um pouco. Deu tempo de secar, parcialmente, o macacão.
Mas eu ainda estava com um calção emprestado, quando
o avião pousou. Fui até o pátio recebê-lo. Dentro do avião,
um de meus companheiros reconheceu-me pela janela e
exclamou:
– Olha o Patto ali.
Mas lá havia muitos patos. Pensaram que ele estava
fazendo trocadilho e quase lhe bateram. Só quando desembarcaram é que o mal-entendido foi desfeito. O Comandante do C-47 mandou o rádiotelegrafista passar uma
mensagem em morse, avisando que eu estava vivo e bem.
Nesse ínterim, o comandante da base em exercício (o titular estava de férias) foi chamado à Sala de Meios, encarregada das comunicações, e tomou conhecimento da situa-
55
ção. Saiu em seguida para desfazer todas as providências
em andamento. Mas ele gaguejava, quando ficava nervoso.
Naquele momento, estavam entrando no prédio de comando com meu caixão. Segundo dizem, gaguejou como nunca
havia gaguejado antes.
Houve tempo para cancelar a ida do capelão que avisaria os meus pais e, também, o pai da Laura. Como ela
estava na faculdade, não chegou a ser informada de minha
morte.
De regresso, o C-47 pousou no V Comando Aéreo Regional, para me deixar no hospital.
Era um procedimento de rotina – ficar um período em
observação.
Havia uma enfermeira que me conhecia e estava desolada com minha morte. Ao me avistar, ficou alegre:
– Pensei que fosse o senhor que houvesse morrido.
Ao que respondi:
– Fui eu, sim!
Enquanto esses acontecimentos se sucediam, um outro
colega, sediado na Base Aérea de Santa Maria, passou
pela Base Aérea de Canoas com destino a São Paulo ou
Rio de Janeiro. Ficou sabendo de minha morte e foi espalhando a notícia.
No regresso, alguns dias após, pernoitou na Base Aérea de Canoas, devido ao avançado da hora. Dirigiu-se ao
alojamento, abriu a porta de meu quarto (estava frio e eu
estava coberto, só com a cabeça de fora) e perguntou:
– O Vaca está?
– Não – respondi.
– Obrigado.
E fechou a porta. Mas a maçaneta permaneceu abaixada.
E a porta foi abrindo devagar.
56
Eu me preparei, colocando a cabeça bem para fora das
cobertas.
Com os olhos arregalados, olhou novamente para mim
e exclamou:
– O Patto!!!
Quando fui transferido da Amazônia para Brasília, costumava contar histórias de caçador e de pescador no ônibus que nos levava para o trabalho.
Quando acabou meu estoque amazônico e me perguntaram qual ia ser a história do dia, eu respondi:
– Hoje eu vou contar uma história diferente, em que eu
morro no final.
Não me deixaram contar.
E era a única verdadeira.

1
2
Nessa aeronave, roda pequena posicionada na sua parte traseira.
Lâmpada no painel que indica baixo nível de combustível.
57
De pijama
no casamento
De
pijama
Havia um aspirante da reserva fazendo o Curso de Ataque conosco, em Canoas. Não tinha aquela malícia adquirida na Escola Preparatória, na Escola de Aeronáutica e na
Academia da Força Aérea.
Na véspera de meu casamento, estavam todos os meus
colegas e instrutores combinando o que fariam no dia seguinte. Entre outras coisas, combinaram ir de pijama para
a igreja.
No dia seguinte, lá estava o mencionado aspirante, à
espera de uma carona. Notou que, dentre os presentes,
só ele estava de pijama. Os demais estavam com o quinto
uniforme, adequado para essas ocasiões. Explicaram para
ele que aqueles que ali estavam iam cruzar as espadas e
que os demais iriam de pijama. Deram-lhe uma carona até
a igreja e, somente quando chegou lá, percebeu o logro.
Ninguém se prontificou a levá-lo de volta. E só lhe emprestaram o suficiente para voltar de ônibus.

58
Comprando cachimbo
Comprando
Andava no centro de Canoas quando vi, em uma vitrine,
um paletó que me agradava, com um cachimbo no bolso. E
o cachimbo me agradava mais ainda.
Entrei e pedi para experimentar o paletó, que me serviu
perfeitamente.
Resolvi comprá-lo e pedi à vendedora que o embrulhasse.
– E não se esqueça do cachimbo – comentei.
– Mas o cachimbo não está à venda. É só um enfeite
– replicou.
– Nada feito. Estavam na vitrine paletó e cachimbo. Ou
levo os dois ou não levo nada.
– Aguarde um momento que vou consultar o dono da
loja.
E voltou logo a seguir.
– Tudo bem. O senhor pode levar o cachimbo. Vou embrulhá-lo juntamente com o paletó.
Saí da loja todo satisfeito. Estava querendo mesmo fumar cachimbo.
Mas ao chegar na base e desembrulhar o pacote, constatei que o cachimbo não tinha furo, não funcionava. Era
enfeite mesmo.

59
Primeira discussão
Primeira
Com pouco tempo de casados, tivemos nossa primeira
discussão. E ela foi crescendo, ficando acalorada.
Em um dado momento ameacei, ríspido:
– Cale a boca, senão...
E a Laura, pondo a mão na cintura:
– Senão o quê?
– Senão calo eu – respondi.
Foi nossa primeira e última discussão.

60
dos três copinhos
OO jogojogo
Ainda era aspirante a oficial.
Passeava por Canoas, quando deparei com dois indivíduos jogando alguma coisa em cima de um caixote.
Fui ver de que se tratava.
Havia três copinhos e uma bolinha. A “banca” colocava
um dos copinhos sobre a bolinha e manipulava os copos,
mudando suas posições. Invariavelmente, o outro sujeito
errava. Invariavelmente, eu sabia onde estava a bolinha.
Resolvi apostar.
E, invariavelmente, passei a perder.
De repente, percebi que estava sendo enganado. Saquei
o 38 e fiz os dois marcharem, de pernas abertas, até a delegacia.
Coisa de aspirante – à época.

61
Ultrapassagem
Ultrapassagem
Fui com alguns colegas ao casamento de um outro, em
uma cidade ao norte do Paraná.
Estávamos em quatro e viajávamos em um Fuscão emprestado. Naquele momento, eu dirigia.
Estava difícil ultrapassar uma carreta à minha frente. O
Fuscão não tinha potência e, nas descidas, a carreta acelerava ainda mais.
Numa daquelas descidas, mais acentuada que as anteriores, resolvi ultrapassar. Acelerei tudo que podia, emparelhei com a carreta e fui avançando devagar.
Foi quando surgiu, lá à frente, uma outra carreta, também na descida. Achei que conseguiria e continuei a acelerar.
Logo ficou patente que não daria para ultrapassar.
Voltar era impossível.
Sem alternativa, continuei acelerando e cheguei o mais
para a direita que me foi possível, esperando que a estrada
comportasse os três.
Não comportou.
A carreta, à minha frente, tirou uma roda para fora da
estrada e, entre buzinadas, freadas e poeirada, passamos
os três.
Só então me dei conta de estar sozinho à frente. O companheiro que estava no banco ao lado havia sumido. Na
confusão, havia pulado para o banco de trás.
Paramos para respirar e para desabafar.
Desabafaram inclusive na minha mãe, que não tinha
nada a ver com isso.

62
AMAZÔNIA
Severino, um brasileiro
Severino
Houve uma época em que participei do projeto Radam,
destinado a levantar o potencial da Amazônia nos aspectos
de extração de madeiras, fertilidade do solo e presença de
minérios. Consistia em levar, de helicóptero, uma equipe
de quatro homens para descerem de rapel1 na selva, em
pontos predeterminados, com a finalidade de abrir uma clareira que permitisse o pouso do helicóptero. Deixávamos
a equipe no ponto e voltávamos para recolhê-los no prazo
por ela estipulado. Posteriormente, levávamos os técnicos
para essas clareiras.
Certa vez levamos uma equipe de rapel para um ponto
distante sete minutos e trinta segundos de vôo, a partir de
uma pequena ilha fluvial no rio Roosevelt, a cerca de quatrocentos quilômetros ao sul de Porto Velho. Na ida, notamos que era possível aguardar, pousado nessa ilha, até o
término da abertura da clareira. Desse modo, economizaríamos combustível.
Notamos, também, que havia uma cabana bem próxima,
a única moradia das redondezas. Uma outra nas proximidades situava-se a cerca de quarenta quilômetros rio acima.
Além dessa, o vazio de seres humanos e a plenitude da
floresta.
Sabíamos que o barulho do helicóptero atrairia os moradores ali ao lado.
Dito e feito.
Deixamos a equipe no ponto previsto e pousamos na pequena ilha. A seguir, fizemos fogo para aquecer a “meia-
63
trava” – denominação da comida que levávamos. Não
demorou nada e eis que surge o morador da cabana mais
próxima. Vinha em uma canoa cheia de crianças. Atracou,
cumprimentou e o convidamos para comer. Recusou, mas
aceitou um cigarro com filtro que alguém lhe oferecera. E
começamos a conversar:
– Como é seu nome? – perguntei-lhe.
– Severino – respondeu.
– Você é filho de um “soldado da borracha”2?
– Sim, senhor.
– Já tinha visto um desses? – perguntei, apontando para
o helicóptero.
– Não, senhor.
Uma observação: essa resposta nos dá uma idéia da
imensidão da Amazônia. A Amazônia legal corresponde a
cinqüenta e um por cento do território nacional.
– Há quanto tempo você mora aqui?
– Eu nasci aqui.
– Teve muitos irmãos?
– Sim, senhor.
– E o que foi feito deles?
– Pegaram o regatão e saíram pelo mundo.
– Suas irmãs também?
– Sim, senhor. Casavam e iam embora.
– Casavam como?
– Algum homem no regatão se engraçava e as levava
embora.
Detalhe: o regatão é um barco que faz comércio com os
ribeirinhos, na base da troca, do escambo. Permanece em
cada local o tempo suficiente para efetuar as trocas – no
64
caso, alguns minutos.
– E quantos anos tinham suas irmãs quando foram embora?– voltei a perguntar.
– Uns treze – respondeu-me.
– E essa menina? – perguntei, apontando para sua filha,
aparentemente entrando na puberdade.
– Já está quase no ponto.
– E quantos filhos você tem?
– Tive treze, mas só vingaram cinco.
– Você não acha que vive muito isolado?
– Não. Meu compadre mora perto (referia-se à cabana
distante quarenta quilômetros rio acima).
– Se você, de alguma forma, ganhasse muito dinheiro, o
que faria?
– Ah! Eu compraria tecidos nas Casas Pernambucanas,
em Porto Velho.
– Por quê?
– Porque a chita está muito cara no regatão.
– E como você sabe que em Porto Velho é mais barata?
– É que meu pai me levou lá quando eu era criança.
– Você não gostaria de ir a uma cidade maior que Porto
Velho?
Olhou-me cheio de espanto e exclamou:
– Maior que Porto Velho?!
Continuei a perguntar:
– O que você acha do governo?
E ele me respondeu:
– Ah! O governo está muito bom.
– Por quê?
– Porque o regatão já passou por aqui duas vezes este
ano.
65
Não me lembro de toda a conversa, mas ficou em minha
memória esse encontro com Severino, um brasileiro que
vive com sua família no coração da Floresta Amazônica.

Técnica de descida, deslizando por uma corda.
Nordestino deslocado para a Amazônia durante a II Grande Guerra, para extrair borracha.
1
2
66
Regulador Xavier
Regulador
Havia um colega cujo irmão possuía um regatão e com
ele navegava pelos rios da Amazônia, efetuando as trocas.
Como sempre lhe pediam remédios, embarcou, em uma de
suas viagens, um grande estoque de Regulador Xavier, próprio para regular a menstruação.
Na ida, enquanto subia o rio, ia deixando o Regulador
Xavier para qualquer queixa apresentada. Receitava para
tudo – de dor de cotovelo a unha encravada.
No regresso, vinha preocupado. Será que não estariam
bravos com ele?
Para seu espanto, todos ficaram satisfeitos e queriam
mais “daquele remédio bom para qualquer coisa”.

67
Laura em Belém
Laura
Laura estava grávida do Cláudio, e o parto estava previsto para aqueles dias.
Eu havia saído para uma viagem de oito dias, já se haviam passado vinte e não havia previsão de regresso.
Laura decidiu resolver o problema. Foi até a casa do comandante da base, bateu e foi atendida pelo próprio comandante.
– Pois não, minha senhora.
– O menino vai nascer e quero meu marido de volta.
– Mas quem é seu marido?
– O tenente Patto.
– Mas, minha senhora, é impossível tirá-lo de lá. Estamos sem helicóptero e lá não dá para pousar avião.
– Isso é problema do senhor. O meu é ter meu marido
aqui. Lugar de pai é com a mãe no nascimento do filho.
No dia seguinte, um Sêneca1 pousou aos trancos e barrancos no local onde eu estava.
– Viemos te buscar para o nascimento de teu filho. Tua
mulher está ameaçando bater no comandante – comentou
o piloto.

1
Pequeno avião bimotor.
68
Super-Homem
Super-Homem
Logo que chegamos a Belém, eu estava tomado pelo
“Complexo de Super-Homem”. Era jovem, estava no auge
do vigor e destreza física e achava que podia tudo, que
nada ocorreria comigo.
Como na Amazônia há muita malária, tomávamos antimalárico (Fancidá, Aralem e Primaquina) como medida
preventiva. De vez em quando, tomávamos também um
anti-helmítico (Flagil). Na bula, estava escrito que a dose
máxima diária era de quatro comprimidos.
Eu tomava oito!
Pior ainda. Era comum, na região do Amapá, ficar infestado por um tipo de carrapato minúsculo – o micuim.
Era difícil livrar-se dele. Então, criei um processo infalível:
colocava a roupa para ferver e passava Detefon em todo
o corpo.
Haja complexo! Mas só muito depois teria consciência
de que os abusos da juventude têm um preço. E até que
saiu barato. Somente vim a ter o Parkinson.
“Se os jovens soubessem, se os velhos pudessem...”

69
A formação
do universo,
A
formação
segundo os Ianomâmi
Em visita a uma tribo de índios Ianomâmis, em Roraima,
conversava com um missionário que ali estava havia trinta
anos. Curioso, pedi-lhe que contasse alguma história a respeito desses índios.
Atendendo a meu pedido, passou a narrar o que denominei “a formação do universo segundo os Ianomâmi”:
“Há muito, muito tempo, tudo que existia era um mundo
em forma de bloco, boiando no espaço. Nele viviam os Ianomâmi e todos os bichos e plantas. E viviam muito bem.
Todavia, como os Ianomâmi desagradaram a seus deuses,
eles deixaram que este mundo apodrecesse e esfarelasse.
E esses farelos se espalharam, como podemos constatar
a noite, no céu. São as estrelas. E, em cada um desses
farelos, vivem, ainda hoje, Ianomâmi, bichos e plantas. E
acreditam que, um dia, os deuses vão perdoá-los e permitirão que esses farelos se aglutinem, voltando ao estado
original.
E vai ser bom, porque reunirá, novamente, todos os Ianomâmi”.

70
Piadinha amazônica
Piadinha
João e Maria viajavam de regatão.
Entraram já ao anoitecer e penduraram suas redes.
Caiu a noite. Era uma noite particularmente escura.
Não havia reflexos na água, nem se viam estrelas no
céu.
Não dava para enxergar a ponta do nariz.
Maria chama João:
– João!
– O que é Maria?
– Tu tá em mim?
– Tô não.
– Então tão!

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Questão de nome
Questão
Numa ocasião, um dos tenentes do esquadrão voava
com um T-25, de São Luís, no Maranhão, para Fortaleza, no
Ceará, e teve uma parada de motor. De imediato, executou
o procedimento de emergência previsto e, como o motor
não deu nova partida, prosseguiu planando até pousar na
pista de uma pequena cidade do interior.
Pousou bem, mas como não havia conseguido comunicar-se com o centro de área para informar que iria pousar,
dirigiu-se à telefônica local, explicou a situação para a telefonista e solicitou à mesma que enviasse um recado para o
esquadrão, para que alguém fizesse uma ligação de retorno. E permaneceu aguardando.
Recebi o recado e, de imediato, liguei para a telefonista
local, tendo-me identificado como capitão Patto, ao que ela
respondeu:
– Como é seu nome?
– Patto – repeti.
E ela desligou o telefone. Pensava que era trote.
E eu tinha pressa de falar com o tenente.
Voltei a ligar.
Atendeu outra telefonista e foi logo perguntando:
– Como é seu nome?
– Paton – respondi. O mesmo nome do general americano.
Só então fui atendido.
Mas um nome desse tem muitas vantagens.
Uma delas é que todos lembram, e você fica logo conhecido.
A outra é que gera piadas e brincadeiras, o que facilita
um relacionamento bem-humorado. E, para adiantar as coi-
72
sas, costumo fazer eu mesmo as chacotas.
Mas a melhor foi feita por um grande amigo, a quem prezo muito. Ele passou vários dias me chamando de “Patto,
o Polivalente”. E eu deixava passar. Mas, depois de alguns
dias, a curiosidade venceu e perguntei o porquê. Ao que ele
respondeu:
– Pato: anda, nada, mergulha e voa... mal.
Mas o que me contraria nessa questão de nome é que
todo mundo acaba “pagando o pato” – e até agora não recebi nem um centavo. Aquele que estiver devendo, queira,
por gentileza, enviar o montante, em cheque, para o meu
editor.

73
Poliglota
Poliglota
Como tenente, fui encarregado de realizar uma Investigação de Acidente Aeronáutico, envolvendo uma aeronave
de procedência norte-americana que estava sendo trasladada para um país africano.
O motor apresentou falha em vôo, e o piloto pousou em
uma cidade interiorana para verificar o problema. Ao pousar, a bequilha quebrou, o que causou alguns danos à aeronave.
Eu já sabia que o piloto não falava português – e eu não
entendia inglês.
Lá chegando, em conversa com o guarda-campo1, manifestei minha preocupação lingüística, ao que ele retrucou:
– Pode deixar comigo, tenente. Por aqui passam muitos
americanos, e eu sei falar com eles.
Estranhei. Mas permanecemos aguardando.
Não demorou muito e chegou o piloto envolvido no acidente.
E o guarda-campo foi logo dizendo:
– Mim querer saber problema...
E achava que estava falando inglês!

Indivíduo encarregado de manter o campo desimpedido para pouso e de manter, em
livro próprio, o movimento de aeronaves.
1
74
Outra grávida
Outra
Um colega, piloto do outro esquadrão, ia ficar noivo e
nos convidou, Laura e eu, para a festa de noivado. Não
conhecíamos a noiva. Como eu viajava muito, não fomos
ao noivado e, protelando, acabamos por não enviar nem
mesmo um telegrama.
Passou o tempo.
Eis que um dia recebemos novo convite, dessa vez para
o casamento.
Novamente, ocorreu o mesmo. Não comparecemos e
não enviamos presente ou congratulações.
Passados vários meses, estávamos no Clube, quando
nos deparamos com o casal. Ainda com a consciência pesada devido ao descaso anterior, fui cumprimentá-los, todo
efusivo:
– E então? Há muito queria conhecê-la.
E, sem titubear:
– E o nenê, para quando é?
Ao que ela respondeu, pausadamente:
– Eu não estou grávida!
Era gordinha por natureza.

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A mãomão
decepada
A
Eu estava, novamente, em operação no Radam.
O acampamento era grande. Cerca de cem civis e vinte
e cinco militares.
Contávamos com quatro helicópteros para cumprir a
missão, um avião Islander, de apoio logístico, barracas de
cobertura dupla, gerador, freezer, fogões, máquina de lavar
roupa, cozinheiros, uma enfermaria, médico, enfermeiro...
À época, eu era primeiro-tenente e, naquela manhã, o
militar de patente mais elevada. Como tal, eu chefiava a
fração aérea.
Os civis tinham sua própria chefia, mas era comum recorrerem aos militares quando ocorria algo mais grave.
Não havia terminado de tomar o café quando vieram me
chamar:
– Tenente, o administrador do Radam está aí e quer falar
com o senhor.
Fui até ele. Estava acompanhado de dois peões, um deles com a mão quase que totalmente decepada. Mandei
chamar o médico e acionei o piloto do Islander para uma
decolagem imediata, com destino a Manaus. Em poucos
minutos, decolaram o piloto, o médico e o peão ferido.
Voltei-me, então, para o outro peão:
– Foi você quem fez aquilo? – inquiri.
– Sim, senhor.
– Bebida? (Era proibido o ingresso de bebidas no acampamento).
– Sim, senhor.
– Como foi?
– Com facão.
– Prepare suas coisas que amanhã você segue de Islander para Manaus, para ser entregue à polícia.
76
Era o que eu podia fazer, naquela situação. Eu achava
que ele fugiria à noite, entrando na mata.
Mas, no dia seguinte, lá estava ele, com sua trouxa,
aguardando o Islander para seguir preso para Manaus.

77
do macaco
OO raborabo
No folclore amazônico, há muitos talismãs destinados
a dar sorte. Um dos mais conhecidos é o rabo do macaco
prego.
A esse respeito, contam que, certa vez, viajavam pela
Amazônia, de Catalina1, um brigadeiro, pilotando, e sua esposa, de passageira.
Em um dos locais em que pousaram, alguém deu à esposa do brigadeiro um macaco prego. Fazia, porém, muito calor no Catalina, e a viagem era demorada.O macaco
começou a passar mal e, com o decorrer da viagem, foi
piorando. Foi então que o mecânico de bordo perguntou à
esposa do brigadeiro:
– Madame! Se o macaco morrer a senhora me dá o
rabo?
Fez-se silêncio total.
Achando que havia dado mancada, resolveu consertar:
– Do macaco, é lógico.

1
Avião anfíbio. Foi muito utilizado na Amazônia.
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dos peixes
OO mistério
mistério
Lembro-me também de um dia em que aguardávamos o
término da abertura de uma clareira, pousados numa formação rochosa parecida com o Pão de Açúcar, na região de
São Gabriel da Cachoeira.
Ali, no topo, havia uma depressão onde se acumulara
água da chuva. Como na Amazônia chove todo dia, era razoável esperar que aquele laguinho fosse perene. O que
nos garantiu isso foi a presença de peixinhos nesse lago.
Daí a pergunta: como os peixinhos foram parar lá?
Fiquei com essa dúvida durante anos até que, um dia,
meu filho, já biólogo, explicou-me:
– Os passarinhos ciscam nas margens dos riachos e ficam, às vezes, com barro grudado nos pés. Nesse barro,
pode haver ovas de peixes, o que se constitui um meio de
transporte até o topo da formação rochosa.
Quem diria!

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da índia Ianomâmi
OO partoparto
A índia Ianomâmi, quando vai parir, embrenha-se na mata
e tem o filho sozinha. Assim que nasce, se for o seu desejo,
ela o mata e enterra – o que faz, normalmente, quando está
amamentando outro filho.
Caso retorne à aldeia com a criança, perde esse direito.
O filho passa a ser da tribo, e não mais dela.

80
Ainda Ianomâmi
Ainda
Novamente operando a partir da tribo Ianomâmi, conversava com o padre Carlos, missionário que lá estava havia anos, quando passaram dois índios com o corpo todo
pintado. Andavam abraçados, ou melhor, parecia que dançavam.
Perguntei ao padre Carlos do que se tratava, e ele explicou:
– Às vezes, quando o índio vai caçar, e passa vários dias
fora, sua mulher deita com outro índio. Quando o marido
regressa, ela tem que escolher com qual ficar, pois não
pode ficar com os dois. Ambos se pintam dessa maneira,
para ficarem enfeitados e bonitos, e ficam desfilando pela
aldeia, abraçados, aguardando a decisão da índia.

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Colhendo castanha
Colhendo
Voava de regresso de mais um dia de Radam, com o professor Murça a bordo. Ele era um cientista do museu Emílio
Goeldi, em Belém, e, às vezes, vinha voar conosco. Era um
prazer conversar com ele. Era botânico, sabia tudo.
Naquele momento, estávamos passando por uma espécie de bosque. As árvores eram todas iguais. O professor
Murça ficou logo indócil. Perguntei ao artilheiro:
– O que está havendo?
– É o professor Murça. Quer saber se é possível apanhar
uma castanha daquelas árvores.
– Você está com o “rabo de gato”1?
– Sim, senhor.
– Então, diga a ele que sim, mas que permaneça com os
cintos fechados.
Fazendo um flare (manobra que desacelera o helicóptero), pairei sobre uma daquelas árvores e fui mergulhando
nela até onde foi possível.
O artilheiro, de pé no esqui2, não teve dificuldade – apanhou uma castanha e fomos embora.
Quando chegamos ao acampamento, fomos, de imediato, falar com o professor Murça, para saber o motivo de
tanto entusiasmo.
Como sempre, brindou-nos com uma aula. Disse que
aquelas árvores viviam em simbiose com determinadas
formigas – daí terem o mesmo nome (não me recordo o
nome). Essa árvore leva seis anos para crescer, florescer e
dar a castanha e floresce uma só vez. Quando isso ocorre,
sua seiva torna-se adocicada, e a formiga alimenta-se dela.
Com isso mata a árvore.
82
Nesse meio tempo, a formiga protege a árvore do ataque de outros insetos.

1
2
Colete dotado de um tirante que fica preso à fuselagem. Provê segurança.
No UH-1H, substitui as rodas.
83
Pernoite na clareira
Pernoite
Numa ocasião em que operávamos no Radam, tínhamos
que deixar uma equipe de rapel para abrir uma clareira que
já se sabia trabalhosa. No dia anterior, havíamos tentado,
mas a corda, normalmente utilizada, era pequena (cinqüenta metros). As árvores, nesse local, eram altas, mas agora
levávamos uma corda de oitenta metros. O chefe da equipe
de rapel já havia combinado que, por via das dúvidas, eles
só deveriam ser resgatados no dia seguinte. Pernoitariam
na clareira.
Deixamos a equipe no local e regressamos.
À tardinha, porém, recebemos um comunicado da equipe, via rádio, que houvera um acidente e estavam precisando de um médico. Perguntei se era possível pousar e
afirmaram que sim, alertando, porém, que a única aproximação possível era de frente a uma castanheira, por dentro
de um “túnel” de árvores.
Devido ao avançado da hora, se fôssemos de imediato,
chegaríamos ao local ao anoitecer. Teríamos que pousar de
qualquer maneira, e o risco era grande. Consultei a tripulação e o médico, e todos concordaram em fazer a missão.
Decolamos de imediato e para lá nos dirigimos, com a
velocidade máxima permitida pelo helicóptero. Chegamos
ao anoitecer e, realmente, só havia aquela opção para aproximação e pouso.
Felizmente, o acidente não havia sido grave – um pau
havia caído na cabeça de um dos peões, e ele havia desmaiado.

84
Plantas carnívoras
Plantas
Em outra ocasião, estávamos na Serra do Aracá, e o
professor Murça estava conosco. Comíamos a “meia-trava”, à beira de um riacho.
A certa altura, perguntei:
– Professor, na Amazônia existem muitas variedades de
plantas carnívoras?
Ao que ele respondeu:
– Você está sentado em cima de uma.
Não pude me conter. Levantei-me de um pulo.
– Onde está, professor?
– Procurem que vocês acham
Todos já estavam procurando.
Procura daqui, procura dali e nada. Ninguém encontrava.
– Estão vendo essas florzinhas vermelhas, bem pequeninas? – e apontou para uma flor que devia ter, no máximo,
uns dois milímetros de diâmetro.
– Apanhem uma dessas – voltou a observar.
– Agora, olhem para ela, pondo-a contra o sol. O que
vêem?
– Umas bolinhas meio transparentes – disse eu.
– Pois essas bolinhas são como uma cola. Pequenos insetos pousam aí, ficam grudados, e a planta os digere.
– Agora, apanhem, no riacho, uma daquelas que está
boiando. Essas coisas que parecem raízes são, na realidade, tentáculos. Servem para capturar pequenos animais
aquáticos.
Ficou uma lição. Os olhos servem para ver, não para enxergar. Para enxergar, é preciso saber ver.

85
Cachoeira do Aracá
Cachoeira
A Serra do Aracá faz parte de uma formação montanhosa da Venezuela. É um platô com escarpas íngremes no
lado brasileiro.
Toda a região é rica em ouro e diamantes. O terreno tem
uma composição argilosa que o torna parcialmente impermeável. O riacho às margens do qual conversávamos com
o professor Murça é um dos escoadouros do platô. Normalmente com pouca água, deve aumentar dezenas de vezes seu volume quando chove pesado e por muito tempo.
Isso pode ser deduzido ao observarmos o seu leito e as
suas margens, com suas pedras arredondadas, sinal de forte erosão. O riacho termina em uma cachoeira, adentrada
no platô por mais de um quilômetro, por força da erosão.
Ficamos imaginando, então, que lá embaixo, no pequeno
lago no qual deságua a cachoeira, devem estar o ouro e os
diamantes, arrastados pela força das águas no acúmulo do
tempo.
Por isso desejávamos ir até lá.
A única maneira era de helicóptero. Mas não por cima. O
vento, batendo naquelas fendas e protuberâncias, turbilhonava forte. Com certeza derrubaria o helicóptero.
Resolvemos ir por baixo, pelo canyon cavado na rocha.
Ventava muito, também. Avançamos devagar, quase na velocidade de um homem a pé. Às vezes, dava para ir mais
rápido, quando o vento amainava.
Quando chegamos, pousei numa das pedras que víamos
lá de cima e cortei o motor. O espetáculo era alucinante: a
água da cachoeira descia de modo convencional até uma
certa altura. Daí para baixo, o vento a transformava em
uma cortina d’água, mudando suas formas, como se fosse um bailado. E o sol, beijando as fímbrias dessa cortina,
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tornava-a multicolorida, cambiando as cores, a todo momento.
Medi a altura da cachoeira comparando a indicação do
altímetro com o helicóptero pousado lá embaixo e lá em
cima. Deu duzentos e oitenta e dois metros.

87
Pista em Uai-Uai
Pista
Havia uma equipe de militares abrindo uma pista em
Uai-Uai, numa região próxima à Guiana Inglesa. O local era
mata fechada, ao lado de um riacho (não mais que vinte
metros de largura). O apoio só era possível de helicóptero.
Ocorre que houve uma falha em um componente dos helicópteros, o que ocasionou a interdição de todos os helicópteros da FAB, daquele tipo, enquanto se aguardava uma
remessa dos componentes, vinda do exterior.
E os dias foram passando.
Informaram, pelo rádio, que a comida estava acabando.
Isso não preocupava, pois havia muito peixe no riacho.
Alguns dias depois, informaram que estava acabando a
farinha. A situação começou a ficar grave.
Mais alguns dias e veio a mensagem: estava acabando a
cachaça. A situação ficou crítica.
Planejamos, então, um apoio aéreo realizado com L-19,
um Cesna de Ligação e Observação que tinha, como uma
de suas peculiaridades, a capacidade de realizar pousos
extremamente curtos, necessitando de pouca pista para
pousar. A equipe que trabalhava na abertura da pista garantiu-nos que já havia limpado e destocado duzentos metros de área para pouso.
Como não era possível alcançar o local a partir de alguma outra pista, decidimos pousar na estrada vicinal que a
Andrade Gutierrez estava abrindo em direção ao traçado
da Perimetral Norte. Solicitamos que essa empresa levasse
combustível para o local, de caminhão, a partir de Cachoeira da Porteira. Assim foi feito e seguimos para o pouso na
estrada, eu e outro piloto, cada qual em um avião.
Cada um de nós levava duzentos quilos em mantimentos
e mais um tamborete de combustível, necessário para o
88
regresso.
Pousamos na estrada sem problemas, abastecemos e
seguimos para Uai-Uai. Lá chegando, passamos a circular.
A copa das árvores tampava quase tudo. Mal dava para ver
o chão. Do solo, a equipe reafirmava que era tranqüilo, que
havia bastante espaço e podíamos pousar tranqüilamente.
Fui o primeiro.
Fiz a aproximação o mais baixo possível, rente às árvores e com um mínimo de velocidade. Ao chegar à borda da
clareira, tirei o motor, mergulhei e voltei a dar todo o motor,
para amortecer o impacto (o L-19 era muito resistente a
impactos com o avião alinhado).
Parei com algumas dezenas de metros de corrida no
solo.
Realmente, havia muito espaço pela frente.
Pelo rádio, passei as informações para o outro piloto e
logo ele estava no chão.
A alegria da equipe era gratificante.
Agradeceram muito e prometeram que, quando a pista
ficasse pronta, haveria lá uma placa com o nosso nome.
Acho que esqueceram.

89
Incesto
Incesto
Havia deixado uma equipe de rapel para abrir uma clareira e pousei o helicóptero num roçado ao lado de uma casa
de pau-a-pique, coberta de palha, para aguardar o tempo
necessário para o recolhimento do pessoal.
Para o morador devia ser apavorante aparecer, em seu
quintal, uma máquina esquisita que, provavelmente, nunca havia visto, fazendo uma barulheira infernal, bufando,
ventando e, quem sabe, até derrubando a casa! Por isso
mesmo, após desligar o motor, fui explicar ao proprietário
o porquê daquela intrusão. Vestia o uniforme de vôo: macacão de vôo, bibico, cinto com um Taurus 38 de um lado e
uma faca no outro. Naquele contexto, nada simpático.
No caminho, avistei, na janela, uma mocinha com um
bebê no colo. E encontrei, à minha espera, um senhor de
meia idade e entabulei conversa:
– Então! O senhor é o dono?
– Não, não. O dono da casa está no mato. É caçador de
onça.
– E o senhor, quem é?
– Eu sou o professor da criança.
– A que estava no colo da moça?
– Ela mesma.
Expliquei o porquê de estarmos ali e passamos a conversa para outros assuntos.
O que ocorreu?
Para mim, aquele senhor ficou assustado e inventou a
história do caçador de onça para me intimidar (o caçador
de onça é tido como um homem muito valente). E a menina
na janela era, com certeza, filha daquele senhor. Provavel-
90
mente, quando a esposa morreu, ele passou a ter relações
com a filha – com a qual teve aquele bebezinho.
Um caso típico de incesto, comum na região amazônica.

91
Conversa
Conversa
O comandante do esquadrão era gago; o chefe da manutenção, ansioso.
Era dia de jogo da Copa do Mundo, e o comandante
mandou chamar o chefe da manutenção. Após os cumprimentos de praxe, entabulou-se a seguinte conversa:
– Fulano, vo...vo...você, dis...dispensa se...seu pe...pe...
pessoal...
– Não, senhor! Não dispenso ninguém. Não sem falar
com o senhor.
– Na... não – o esforço aumentava e a gagueira piorava
– vo... vo...vo... você dis... dis... dis...
– Não, senhor. De modo algum. Eu jamais dispensaria
alguém sem antes falar com o senhor.
Foi difícil passar a mensagem de que era para dispensar
o pessoal para que pudessem assistir ao jogo da Copa do
Mundo.

92
Por
Por falarfalar
em chefe...
O cidadão entra na loja que vende animais e pergunta:
– Quanto custa este papagaio?
– Mil reais – responde o dono da loja.
– Tudo isso? O que ele faz?
– Ah! Ele cumprimenta, chama o cachorro, assobia...
– E esse outro?
– Dois mil reais.
– Puxa vida! E o que ele faz?
– Também cumprimenta, fala uma porção de coisas, assobia todo o Hino Nacional ..
– Muito bem. E aquele na vitrine?
– Ah! Aquele é caro. Cinco mil reais.
– Mas é muito caro. E o que ele faz para valer tudo
isso?
– O que ele faz eu não sei. Mas os outros dois chamam
ele de chefe.

93
Desarmando bomba
Desarmando
Inicialmente, nosso esquadrão contava com três tipos
de aviões: de Ataque ao Solo (NA T-6), de Ligação e Observação (L-19) e o Helicóptero (UH-1H).
Certa vez, fomos a Manaus com quatro NA T-6 para participar de uma manobra do Exército. Cada aeronave estava
municiada com quatro bombas de duzentas e cinqüenta libras, que deviam ser jogadas para explodir dentro de uma
clareira. Se explodissem antes, pegariam a tropa verde; se
depois, a amarela. Por esse motivo, lançamos as bombas
na menor altura possível, dentro dos limites de segurança.
Deu para sentir a onda de choque na cauda do avião.
O comandante da esquadrilha, no entanto, era brincalhão... um gozador.
Ao pousarmos, regressando à Base Aérea de Manaus,
inventou dizer ao oficial de armamento que uma bomba não
havia explodido, e que ele deveria ficar alguns dias para
desarmá-la.
Tanta coisa inventou que deixou o outro preocupado. E
mais: convenceu-o a escrever uma carta à esposa, para ser
entregue numa eventualidade.
É claro! A brincadeira foi desfeita antes do regresso à
sede, e a carta devolvida.
Deve estar guardada até hoje.

94
Nuvem de tempestade
Nuvem
Como eu tinha Cartão de Vôo por Instrumentos, fiz muitos vôos noturnos para o Nordeste com outros pilotos que
precisavam de treinamento para obter o cartão.
Num desses vôos, decolamos de Recife e, na subida,
passamos por uma camada de nuvens e deparamos com
um espetáculo sempre renovado. O céu estava limpo, e a
lua brilhava ofuscando as estrelas. Um pouco à direita na
rota erguia-se, majestoso, um Towering Cumulus (TCU),
uma nuvem de tempestade.
Voávamos um Universal T-25, um pequeno avião de treinamento avançado, com dois assentos, lado a lado.
Talvez inspirado pela majestade do TCU, meu companheiro perguntou:
– Já entrou em um desses?
– Não – respondi.
– Vamos entrar?
– Vamos – respondi, sem pensar.
E começamos a nos preparar.
Checamos se havia alguma coisa solta, apertamos cintos e suspensórios, selecionamos a viseira do capacete.
Conhecíamos a teoria e revisamos todos os procedimentos.
E entramos.
E era muito pior do que havíamos imaginado.
O avião saltava de tal modo que mal conseguíamos evitar a entrada em atitude anormal.
Durou apenas alguns segundos.
Saímos, de repente, a noventa graus com a proa de entrada.
95
O TCU, literalmente, nos cuspiu para fora.
E o meu companheiro, virando-se para mim, disse:
– Você é uma besta.
Ao que respondi:
– E você é outra.

96
Quem está pilotando?
Quem
Eu estava de passageiro em um C-47, avião de transporte bimotor, com capacidade para vinte e tantos passageiros. Por injunções outras, estava à paisana. Havíamos
decolado de Belém e nosso destino era Tucuruí, ao sul do
Pará. Havia, a bordo, um general, com sua comitiva, que
tinha fama de não gostar de voar.
Num dado momento, o piloto em comando mandou o outro ir conversar com o general. Logo a seguir, determinou
ao sargento que me chamasse, instruindo-o para não me
tratar de tenente.
Quando cheguei à cabine, ele pediu-me que fosse pilotando e também foi conversar com o general. Com os dois
pilotos ao seu lado, o general ficou nervoso.
– Afinal! Com vocês dois aqui, quem está pilotando a
aeronave?
Ao que o piloto em comando respondeu:
– Aquele civil que estava aqui.
– Mas ele sabe pilotar?
– Não, mas ele aprende rápido.

97
Voando monomotor
Voando
Embarquei em um C-47 como passageiro, juntamente
com um colega de esquadrão cuja característica mais marcante era sua presença de espírito, no sentido de perceber
o inusitado e o ridículo e reagir prontamente de forma inteligente e criativa, se bem que normalmente com ironia.
Estava previsto que embarcariam nesse avião vinte e
poucos militares do Exército, e o plano de vôo, já entregue,
continha essa informação.
Passou a hora da decolagem e, como o pessoal do Exército não chegava, o piloto resolveu partir. Deu ordem para
embarcar algum material que estivesse aguardando transporte e lá fomos nós com sacos de mantimentos, aparelhos
de rádio transmissão e outras cargas.
Quando estávamos no través de Tucuruí, um dos motores
começou a falhar e, em seguida, parou. O piloto “embandeirou”1, mas o avião não se agüentava com um só motor.
Começou a descer. Nós aguardávamos, com ansiedade, a
ordem de alijar carga. Finalmente, veio a ordem. Amarreime com uma cinta de amarração de carga, para não correr
o risco de cair, e fui para a porta. Enquanto isso, o mecânico
e meu companheiro passavam-me a carga a alijar. Aliviado
de peso, o avião se manteve e foi possível chegar à Base
Aérea de Belém. Como o C-47 não taxia monomotor, o piloto cortou o motor ainda na pista e aguardamos a chegada
do oficial de operações. Esse, não tendo conhecimento da
mudança – levar carga no lugar de pessoas –, estranhou ao
olhar dentro do avião. Meu colega, percebendo a sua dúvida, pôs a mão no ombro do militar e exclamou:
98
– Negão, foi barra. Tivemos que jogar quase todo mundo
para fora do avião, para aliviar o peso.

Colocou o passo da hélice para uma posição de mínima resistência ao avanço. É um
procedimento necessário no caso de parada do motor.
1
99
Mordendo a orelha do burro
Mordendo
Certa ocasião houve a necessidade de transportar um
burro no helicóptero.
O trecho a ser voado era de mata fechada, sem possibilidade de pouso.
Como não havia com o que dopar o animal, tratou-se de
amarrá-lo bem. Todavia, tanto esforço fez que, já em vôo,
começou a se soltar. O mecânico, por sua vez, não conseguia acertar as amarras, pois o burro se debatia, não ficava
quieto.
Vendo isso, o tenente Oscar, piloto em comando, berrou
para o mecânico:
– Morde a orelha dele! Morde a orelha dele!
E o mecânico não entendia, não mordia.
Percebendo que não seria atendido, passou a pilotagem
para o 2P1, soltou o cinto e os suspensórios, desconectou
o capacete, passou por cima do painel central e deu uma
senhora mordida na orelha do burro. O muar baixou a cabeça, esticou as pernas e aquietou, possibilitando ajustar
novamente as cordas.

1
Segundo piloto.
100
Chupa-chupa
Chupa-chupa
Certa vez, apareceu, por vários dias consecutivos, um
Objeto Voador Não Identificado, em algumas localidades
ribeirinhas, a nordeste de Belém do Pará.
A investigação realizada por ordem da Força Aérea não
conseguiu esclarecer as aparições. Havia, também, denúncias de que várias moçoilas haviam sido atacadas por tripulantes ou passageiros desses objetos voadores, os quais
chupavam as moças no pescoço. Dessa vez, a investigação
obteve bons resultados. Os exames realizados no Hospital
de Aeronáutica de Belém confirmaram – as chupadas eram
humanas mesmo.

101
Afrodisíaco
Afrodisíaco
Eu estava viajando.
Laura foi com um amigo nosso e sua esposa passear no
Ver o Peso1. Meu amigo havia se distanciado um pouco,
quando Laura e a amiga viram algo estranho pendurado
em uma das barracas. Curiosas, perguntaram ao vendedor
o que era aquilo, e ele não quis dizer.
Pediram, então, ao meu amigo para averiguar. Ele foi e
perguntou:
– O que é isso?
– É o órgão sexual da bota – respondeu o vendedor.
– E para que serve?
– Para dar potência.
– E como usa?
– Pode fazer chá, fazer pomada ...

1
Mercado a céu aberto, típico de Belém do Pará.
102
Strike
Strike
Liderava uma “esquadrilha de T-25”1.
Após darmos a partida, taxiamos em direção à pista e,
quando autorizado, tomei posição com a esquadrilha, na
cabeceira da pista, e iniciamos a decolagem.
Já estávamos quase com a velocidade de tirar os aviões
do chão, quando avistei algo na pista. Logo a seguir, consegui identificar: eram urubus.
Não havia como parar. Se abortasse a decolagem, os
aviões poderiam se chocar. E a colisão com os urubus era
iminente.
Falei pelo rádio:
– Urubus na pista. Mantenham.
Foram penas para todos os lados.
Pousamos em seguida para verificar o estrago.
Não houve danos. Matamos quatro urubus.
Escore: Esquadrilha quatro, Urubus zero.

1
Quatro aviões voando juntos.
103
Guerra de índios
Guerra
Estávamos em Surucucu, em uma Operação Radam.
Havíamos acabado de chegar, e vieram nos avisar que
os índios estavam guerreando na pista de baixo (havia duas
tribos).
Decolou uma tripulação com o helicóptero UH-1H e foi
para lá, acabar com a briga. Realmente, lá estavam as duas
tribos, uma de cada lado da pista, atirando flechas uns nos
outros. O piloto fez, então, um vôo pairado sobre os índios
para dispersá-los. Mas eles gostaram. Tanto é que, no dia
seguinte, à mesma hora, lá estavam eles novamente, esperando o “fazedor de vento”.
Detalhe: a briga era motivada pela carência de mulheres. Como havia poucas, os índios de uma tribo roubavam
as mulheres da outra, em uma sucessão interminável de
seqüestros.

104
Quem tira a cordinha
Quem
Os índios Ianomâmi usam uma cordinha na cintura, com
a qual amarram o pinto. Não sei exatamente qual a vantagem ou qual a finalidade. Mas sei que eles só desamarram
para urinar.
Para relações sexuais, quem desamarra é a índia.

105
Nadando pelado
Nadando
A maioria dos índios andam nus ou seminus.
Numa ocasião em que estava em uma tribo, fui com eles
nadar em um lago próximo à aldeia.
Para ficar igual, resolvi nadar pelado também.
Para minha surpresa, os índios apontavam para meus
genitais e riam a valer.
Eu tinha pentelhos, e eles não.
E achavam engraçado.

106
Noivo
Noivo
Fui noivo várias vezes.
No primeiro noivado, compareceram meus pais. Já no
segundo, meu pai negou-se a comparecer.
Da Laura não fiquei noivo. Argumentei que era fora de
moda, mas nunca disse à Laura que havia sido noivo.
Passados dois anos de casados, ao chegar em casa,
Laura me acusou:
– Você não me disse que já foi noivo.
Ao que respondi:
– Você não me perguntou!

107
Pegando
Pegando
Estávamos com um helicóptero em Porto Velho.
Um dos tripulantes era loiro, de olhos claros (verdes ou
azuis), o que, na época, era uma raridade na região. Andava ele pela cidade, quando foi abordado por uma garota,
acompanhada de sua irmã. Conversa vai, conversa vem,
foram os dois para a casa da guria e mandaram brasa. Dali
saiu e foi tomar um refrigerante, no centro da cidade. Não
demorou muito e apareceu novamente a irmã da garota
com quem havia ficado.
– Oi! Cadê sua irmã? – perguntou por perguntar.
– Está em casa pegando– respondeu.
– Pegando o quê?
– Venha comigo que eu lhe mostro.
E se foram novamente para a casa da garota.
Lá chegando, encontraram a guria, deitada, com as pernas para cima.
Estava pegando filho!

108
Crítica
Crítica
Estávamos operando no Radam, com sede em Cruzeiro
do Sul, no Acre.
Como os helicópteros estavam indisponíveis, devido
à falta de algumas peças, eu passava o dia planejando a
operação Radam com a utilização dos Napaflu1 da nossa
Marinha de Guerra.
Como a Bacia Amazônica permite a navegação fluvial
por quase toda a Amazônia, minha idéia era operar a partir
dos Napaflus com os nossos helicópteros, o que substituiria a estrutura atual por outra menor, mais ágil e menos
dispendiosa.
Ao concluir um esboço desse planejamento, dirigi-me ao
major que comandava a fração aérea e apresentei-lhe minha idéia.
Para minha surpresa, ao invés de fazer os comentários
de praxe, aceitando alguns pontos e rejeitando outros, argüiu:
– Façamos um acordo, Patto. Você apresenta esse planejamento a todos os oficiais na Reunião do Pôr-do-Sol2.
Após a apresentação pedirei a todos que apontem os deméritos. Mas você não deverá retrucar, seja qual for a crítica apresentada. Depois disso, conversaremos.
E assim foi feito.
Apresentei aquele esboço de projeto e, após terminar, o
major solicitou a todos que apontassem as falhas e que não
poupassem criticas.
Quando terminamos, chamou-me para uma conversa:
– Muito bem, Patto. Agora você reformula seu planejamento com base nas críticas apresentadas e, quando estiver pronto, faremos nova apresentação.
Fizemos mais duas ou três apresentações, e as críticas
109
foram diminuindo até o ponto em que a maioria concordava
com o projeto, que ficou bastante modificado.
Após a última apresentação, o major fez o seguinte comentário:
– Encerramos a apresentação do Projeto Radam com
Apoio de Napaflu. Como puderam notar, esse projeto que,
inicialmente, era inteiramente da autoria do tenente Patto,
ficou bastante modificado e, hoje, é um projeto de todos
nós. E não há duvida de que está bem mais completo, praticável e exeqüível. Se o projeto Radam, na Amazônia, não
estivesse próximo de seu término, seria bom tentarmos
levá-lo adiante. Mas creio que a experiência serviu para demonstrar a utilidade da crítica – e do trabalho em grupo.
– Valeu, major.

Navio Patrulha Fluvial, de nossa Marinha de Guerra. Possui acomodações para pessoal
e espaço para levar material. Possui, também, um heliponto no convés.
2
Reunião após o termino da jornada de trabalho, destinada a comentar e registrar as
missões do dia e a preparar as missões do dia seguinte.
1
110
Patanão
Patanão
Quando acampados, era comum reunirmo-nos à noite ao
pé do fogo, jogando conversa fora, enquanto esperávamos
o sono chegar.
Em uma dessas ocasiões, a conversa descambou para
histórias de caçador e de pescador, com tudo exagerado:
cobras imensas, que engoliam um boi sem engasgar; lambaris de trinta quilos, depois de limpos ...
Lá pelas tantas, decidido a entrar na roda, perguntei:
– Algum de vocês já ouviu falar do patanão?
Como ninguém tinha ouvido nada parecido, iniciei a narrativa:
“O patanão pode ser encontrado lá pelas bandas do Cafundó, na virada da Serra da Mantiqueira, onde meu pai
possuía uma fazenda.
A última vez que o encontrei foi durante uma caçada, na
qual, infelizmente, eu estava sozinho, não havia quem pudesse testemunhar. Mas vocês podem acreditar que tudo
que vou narrar é a mais pura expressão da verdade.
Eu pretendia caçar o que viesse e pudesse. Para isso
levava uma cartucheira, munição e um bornal. Mas tinha
esperança de encontrar patos selvagens, pois o caseiro havia visto alguns pela região por aqueles dias.
Anda daqui, anda de lá e nada. Passavam as horas e
nada de patos, nada de bichos, nada de nada. Já estava
quase desistindo, quando ouvi um barulhinho bem baixinho,
como se viesse bem de longe. Esse barulhinho me era familiar: era de um animal com que deparara havia muito, muito
tempo. Julgava até que estivesse extinto. Mas estava lá,
com seus quaquinhos. E o quaquejar baixinho prosseguia
ao redor de minha cabeça.
Logo a seguir, avistei-o. Levei a mão para apanhá-lo e,
111
para minha surpresa, pousou nela suavemente. Era um
pato de pouco mais de um centímetro de comprimento.
Um patanão, como era conhecido na redondeza. E era dos
grandes. O que eu havia visto, anos atrás, não era maior
que um pernilongo. E aquele tinha uma mancha branca no
peito. Então, examinando bem, constatei que esse também
tinha a mesma mancha branca. Era o mesmo patanão! E
me reconheceu.”
Depois dessa, fomos dormir.

112
Descendo de rapel
Descendo
Já estava com o helicóptero pairando sobre a copa das
árvores e a equipe de rapel preparava-se para descer e
abrir a clareira necessária para a pesquisa do Radam.
O primeiro a descer passou a corda pelo mosquetão, foi
para o esqui, iniciou a descida, mas parou antes de chegar
ao solo. E o artilheiro, que monitorava a descida, continuou
informando:
– Ainda está parado, tenente. Está fazendo uma porção
de sinais, mas não entendo a que quer dizer.
– Ele deu a laçada? – perguntei. (Era previsto que, no
caso de a corda trancar, o rapelista deveria dar uma laçada,
para garantir que se mantivesse preso, e sinalizasse para
que subíssemos. Só então o levaríamos pendurado até um
local em que pudéssemos colocá-lo no chão).
E o artilheiro respondeu:
– Não, senhor. Não fez a laçada, não fez sinal para subirmos... Espere. Reiniciou a descida.
E desceram todos os quatro, sem mais novidades.
Mais tarde, depois de recolhermos a equipe, perguntamos o que havia ocorrido.
Havia uma sucuriju bem debaixo do helicóptero. Ficou
aguardando ela se afastar para reiniciar a descida.

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BRASÍLIA-DF
Movimentos involuntários
Movimentos
Passei um ano no Rio de Janeiro fazendo o último curso da
carreira, no Campo dos Afonsos – Curso de Política e Estratégia Aeroespaciais. Na ocasião, o Parkinson já se manifestara,
e eu não sabia ao certo como estava evoluindo. Assim, de três
em três meses, mais ou menos, eu ia ao médico, no Hospital
da Força Aérea do Galeão, para um acompanhamento.
Quando regressei de uma dessas visitas, um colega, preocupado com minha saúde, veio falar comigo:
– Então, Patto, como está?
Respondi bem sério:
– Estou bem. O médico receitou-me novos remédios... O
ruim são os efeitos colaterais.
– Quais efeitos colaterais?
– O pior deles são os movimentos involuntários.
– Como assim?
– É como o nome diz. São movimentos que independem de
sua vontade. São involuntários, imprevisíveis e incontroláveis.
– Ah!
E a conversa parou por aí.
Passados alguns minutos, esse colega se distraiu, deu-me
as costas e passou a conversar com outra pessoa. Aproveitei
a distração e dei-lhe um “telefone” nos ouvidos. Ele virou-se
rápido, para revidar, e eu disse:
– Ah, ah!!! Movimentos involuntários, imprevisíveis e incontroláveis.

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Interferência eletromagmética
Interferência
Almoçava no Rancho do Grupo de Apoio de Brasília com
outros coronéis. A conversa girava em torno do tema de
sempre: vôo e Força Aérea.
Lá pelas tantas, num daqueles vazios que ocorrem em
qualquer conversa, um desses colegas perguntou-me:
– Patto, como está seu problema com o Parkinson?
De imediato, todos ficaram muito sérios.
– Está sob controle – observei.
– Não há possibilidade de uma cirurgia?
– Há três tipos de cirurgia. A que vem apresentando melhores resultados é uma em que se coloca um eletrodo no
centro do cérebro e, com um controle remoto, se aplica, de
vez em quando, uma pequena descarga elétrica que estimula a “substância negra” a produzir dopamina. O problema são os efeitos colaterais.
– Que efeitos colaterais?
– Como o comando é realizado por controle remoto,
pode ocorrer que um portão de garagem que esteja sendo
acionado nas redondezas cause interferência, fazendo com
que automaticamente a pessoa levante a perna esquerda
e mije.

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Hurricane
Hurricane
Sobrevoávamos as Antilhas de regresso para o Brasil,
e as condições meteorológicas eram razoáveis. Sabíamos,
porém, que estavam piores mais ao Sul. Foi quando o Controle Miami nos informou que havia um hurricane na rota e
perguntou o que desejávamos fazer. Como nenhum de nós
sabia o que era hurricane, somente respondemos “Roger”
(entendido). O controlador repetiu a mesma mensagem e,
novamente, respondemos “Roger”. Então, o controlador
nos desviou da rota por algumas dezenas de milhas e encerrou o assunto.
Ao pousarmos, fomos ver quem era esse tal de hurricane.
Era furacão!

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Cavalo-de-pau
Cavalo-de-pau com ministro à bordo
Pilotei HS durante seis anos. É um jato executivo para
cinco passageiros, utilizado, na FAB, para transporte de
autoridades, normalmente ministros de Estado.
Em uma dessas missões, fui a Congonhas, São Paulo,
transportando um ministro com sua esposa.
Ao chegarmos em Congonhas, chovia muito e tivemos
que aguardar. Éramos os primeiros da “prateleira”. Apesar
de voarmos baixo, onde o consumo de combustível é maior,
não estávamos preocupados porque havia visibilidade. O
controlador só queria aguardar um pouco o amainar da
chuva. A pista, no entanto, era restrita, em comprimento,
para o HS. Uma vez reduzido o motor para pousar, não era
possível arremeter e, além do mais, já era noite, o que sempre dificulta um pouco. Mas nada além da tensão normal
que antecede um pouso.
Passados alguns minutos, fomos liberados para pousar.
Entrei na final, realizando uma descida com o auxílio dos
instrumentos e, na curta final, reduzi um pouco o motor
para tocar logo no início da cabeceira. Ainda chovia e o
controlador nos alertou para o excesso de água na pista.
– Isso é que é pouso suave! – comentei.
Mas, logo em seguida, quando fui frear, nada! O avião
deslizava, o freio não pegava. Gritei para o 2P:
– O freio não pega!
De imediato, o 2P tentou seu freio e nada. O avião estava em hidroplanagem. Com uma velocidade de toque
em torno de duzentos e cinqüenta quilômetros por hora, o
avião não desacelerava o suficiente.
Sabíamos que, num dado momento, ele sairia da hidroplanagem. Mas sairia a tempo de pararmos a aeronave?
O final da pista se aproximava rapidamente. Aos poucos,
117
o avião começou, aparentemente, a desviar para a esquerda, o que aumentava ainda mais os riscos, pois, a partir de
um determinado ponto, havia um barranco também desse
lado. Foi quando, instintivamente, ou talvez pelo condicionamento no vôo em aeronaves menores e mais lentas, pisei no freio esquerdo. O freio pegou e a aeronave girou
violentamente para a esquerda, dando um cavalo-de-pau.
Com o giro, a asa direita subiu, juntamente com o nariz da
aeronave, a ponto de sumirem as luzes da cidade. Quando
terminou o giro, o 2P já havia desligado os motores, a bateria – tudo.
Disse, então, a ele:
– Fale com a torre que eu vou ver como está o pessoal
lá atrás.
E fui falar com o mecânico, com o ministro e sua esposa.
Todos estavam bem. Havia somente o susto.
Nesse ínterim, o 2P, ao ligar o rádio, ouviu a Torre autorizar o pouso de um Boeing. De imediato, ele entrou na
freqüência e mandou o Boeing arremeter, pois estávamos
na pista.
Havíamos parado a trezentos metros do final da pista e
estávamos alinhados no centro dela – o que significava que
havíamos deslizado de lado.

118
Mímica
Mímica
Em uma das viagens do Grupo de Transporte Especial
onde eu voava, havia três taifeiros que não falavam nem
entendiam inglês. E a viagem era para os Estados Unidos.
Ao chegarem ao hotel, o comandante da aeronave os
orientou para seguirem um funcionário que os levaria até
o quarto.
Lá chegando, constataram que só havia duas camas.
Um deles comentou:
– Só há duas camas. Como vamos pedir mais uma?
E o mais extrovertido respondeu:
– Deixa comigo.
E deitou no chão, cruzou as mãos no peito e começou a
roncar.
E o funcionário saiu em disparada.
Levantando-se, o extrovertido comentou:
– Que tal? É a mímica. Linguagem internacional. Todo
mundo entende ...
Mas foi interrompido pela entrada do mesmo funcionário... acompanhado por outros dois trazendo uma padiola...

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da vizinha
OO piano
piano
Bem diz a etiqueta que elevador não é lugar de conversar.
Havia chamado o elevador para subir ao meu apartamento, em Brasília, e aguardei a chegada de minha vizinha.
Cumprimentamo-nos, entramos e começamos a subir.
Então ela me perguntou:
– O piano está incomodando muito? (Ela havia comprado um piano havia alguns meses).
– Não – respondi. Aliás, a senhora está de parabéns.
Nesses poucos meses, melhorou muito, está tocando muito melhor...
Ao que ela retrucou:
– Mas eu sou professora de piano há vinte anos!!...

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Enólogo
Enólogo
Em Brasília, era moda conversar sobre vinhos, comprar
vinhos, estocar vinhos, beber vinhos.
Decidi “entrar no clima”.
Comprei um livro sobre vinhos e o estudei detalhadamente, como se fosse para realizar uma prova. Com esses
conhecimentos, discorria sobre o assunto por duas horas
seguidas.
E a noticia se espalhou. Fiquei com fama de ser um grande conhecedor de vinhos, quando, em verdade, eu era um
enólogo de um livro só.

121
Passeando de bonde
Passeando
Passeávamos, eu e a Laura, pela Áustria, quando resolvemos andar de bonde. Como eu gosto de mexer nas
máquinas em geral, fui tentar comprar os passes em uma
delas. As instruções, no entanto, estavam em alemão, e
eu não entendo nada de alemão. Mesmo assim, coloquei
uma moeda, apertei alguns botões e consegui um passe.
Repeti a seqüência e consegui outro passe. E fomos andar
de bonde. Como não havia lugar para depositar os passes
e ninguém apareceu para pedi-los, ficamos com eles.
Dias após, já na Suíça, na casa de uma prima, contei-lhe
o episódio, e ela pediu para ver os passes.
Ao vê-los, começou a rir.
Havíamos comprado e utilizado passes de cachorro.

122
De férias
na praia
De
férias
Alugamos uma casa na praia, no litoral de Santa Catarina,
e para lá fomos, com amigos e parentes, para curtir uns dias
de férias.
O relacionamento era ótimo, e o clima descontraído, como
é normal nessas ocasiões.
Foi então que, plagiando uma historia antiga, resolvi descontrair ainda mais.
Fui ao comércio, comprei uma barra de chocolate crocante,
escondi em nosso quarto e aguardei a noite chegar e avançar.
Quando todos estavam dormindo, levantei em silêncio, levando a barra de chocolate e fui a um dos banheiros da casa.
Desembrulhei o chocolate, amassei bem com as mãos e lambuzei o vaso, a tampa do vaso, as paredes ...
Lavei as mãos e voltei para a cama.
Acordei cedo, acordei a Laura e ficamos aguardando.
Logo começou o zumzumzum.
Aguardamos mais um pouco e saímos do quarto.
O circo estava armado.
– Venham ver – dizia um.
– É um absurdo – comentava outro.
– Mas o que houve? – perguntei.
– Veja você mesmo o que fizeram no banheiro.
– Olhe! Está todo lambuzado de cocô.
– Isso é coisa de homem – dizia uma.
– Alguém entrou aqui – dizia outro.
E eu, fingindo surpresa:
– Com os diabos! – e, passando um dedo e levando-o à
boca – E é merda mesmo!...
Uma amiga nossa quase vomitou.

123
Trote infantil
Trote
Em outra ocasião, passeávamos, Laura e eu, na praia de
Porto de Galinhas.
Próximo ao final da praia, havia várias crianças, todas
olhando para dentro de um laguinho.
Ficamos curiosos e fomos para lá.
Ao nos aproximarmos, ouvimos os garotos dizendo:
– Sete, sete, sete.
E, ao chegarmos, passaram a dizer:
– Nove, nove, nove.

124
Furto no ônibus
Furto
Uma senhora da terceira idade, conhecida nossa, entrou
em um ônibus lotado. Como não havia assento vago e ninguém lhe oferecera lugar para sentar, permaneceu em pé.
E o ônibus foi enchendo mais. Já estava apertado, e as
pessoas se esbarravam. Em um certo momento, um senhor
que estava ao seu lado deu-lhe um forte esbarrão. Nesse
instante, olhando para o braço, deu-se conta de que seu
relógio havia sumido. Não teve dúvidas. Apanhou uma escova que trazia na bolsa, pressionou o cabo contra as costelas do referido senhor e disse-lhe:
– Sem movimentos bruscos, ponha o relógio na minha
bolsa.
E assim foi feito.
– Agora, puxe a cordinha e saia do ônibus, sem olhar
para trás.
E novamente foi obedecida.
Ao chegar em casa, ainda nervosa, contou para suas filhas o ocorrido, ao que uma das filhas retrucou:
– Mas, mãe. Você esqueceu o relógio aqui em casa!

125
Parkinson
Parkinson
O Parkinson, de que sou portador, costuma trazer uma
depressão associada que me incomodava, e os antidepressivos que me foram receitados tinham efeitos colaterais
indesejáveis e não resolviam o problema.
Foi, então, que solicitei à minha mulher, que é psicóloga,
que me ensinasse uma forma comportamental para lidar
com a depressão.
O primeiro procedimento que ela me passou foi para
identificar e evitar o que denominei de “Coitadinho de Mim”
– que consiste em uma atitude de autopiedade. Essa atitude pode ser evitada simplesmente adotando-se a prática
de se interessar por outras pessoas, tentando ajudá-las.
Outro procedimento é o da “Inofensividade” – que consiste em não pensar mal de ninguém. Todavia, como isso é
muito difícil, inicie não falando mal de ninguém.
Passei a praticar esses procedimentos em minha convivência com as pessoas, e obtive excelentes resultados: não
tenho mais episódios ou postura depressiva e meu relacionamento com as pessoas melhorou em termos de tolerância, aceitação e compreensão. Deixei de cultivar a raiva e o
ódio, minha conversa ficou mais agradável, minhas tensões
físicas e emocionais diminuíram, passei a conviver melhor
com a doença e – o mais importante – o Parkinson até
mesmo parece ter regredido. Não apresentei mais nenhum
episódio off, diminuíram os movimentos involuntários, e as
distonias1 quase desapareceram.
É bem verdade que tenho um excelente médico e que
estou muito bem-medicado. Mas até meu médico é de opi-
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nião de que minha postura e meu modo de viver atuais têm
contribuído significativamente para uma boa qualidade de
vida.

Contração muscular involuntária. No meu caso, ocorria nos pés, nos quadris e no ombro, dificultando o deslocamento.
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URUGUAI
Ozuma
Ozuma
Passei dois anos no Uruguai, como Adido Aeronáutico
àquele país.
Dentro da programação das Forças Armadas para os
adidos militares estrangeiros, havia, às vezes, viagens pelo
interior do Uruguai, algumas delas realizadas de avião.
Em uma dessas ocasiões, estávamos acomodados dentro de um Casa (avião de transporte de fabricação espanhola), enquanto esse taxiava em direção à pista em uso.
Íamos visitar um quartel do Exército.
Sentado um pouco à minha frente, encontrava-se o coronel Ozuma, adido naval paraguaio. Parecia preocupado.
E todos sabiam que detestava voar. Tinha lá seus receios.
Levantei-me de meu lugar e fui conversar com ele:
– Ozuma, notei que você está preocupado. Se for em
função do vôo, não há motivos para isso. Sabidamente,
esse é um ótimo avião, e a sua estatística de performance
é excelente. Imagine que a incidência de acidentes graves
é de um para cada dez mil horas de vôo.
– Não diga, Patto. Gostei de saber disso.
– É. Mas tem um detalhe. Este avião no qual estamos
está completando agora as dez mil horas de vôo sem nenhum acidente grave!
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Pilotando helicóptero
Pilotando
Atendi ao telefone, na Adidância1. Era o comandante da
base aérea em Montevideu.
Após os cumprimentos, disse-me que estavam com um
problema e perguntou-me se eu poderia ir até lá.
Nem mesmo perguntei do que se tratava. Avisei que já estava indo e saí. Lá chegando, dirigi-me para a área operacional, conforme o combinado, e qual não foi minha surpresa: lá
estavam o comandante da base, seu assistente com um macacão de vôo nas mãos, o tenente-coronel que era o oficial
de ligação com os adidos estrangeiros, um helicóptero UH-1H
pronto para a partida, um capitão instrutor e um mecânico de
bordo.
– Vista o macacão e vá pilotar – disse-me o comandante.
Ainda surpreso, vesti o macacão e fui voar. O oficial de ligação foi conosco, como passageiro. Dei a partida e decolei após
autorizado pela Torre. Só então comentei:
– Nada mal para quem está a dezessete anos sem pilotar,
hein?
Ao que o oficial de ligação retrucou:
– Dá para pousar para eu descer?
Pilotei por uma hora e quarenta minutos. Fiz decolagem e
pouso normais, decolagem e pouso corridos, pouso com o sistema hidráulico desligado, auto-rotação com pouso, área restrita...
Creio que esse vôo inesperado tenha ocorrido em função
das histórias que eu contava sobre meus vôos na Amazônia...
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1
Como já mencionado, fui adido aeronáutico no Uruguai.
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Comentários
Comentários
Se o leitor quer divertir-se e surpreender-se, está convidado a penetrar no bem-humorado mundo das histórias do Carlos Patto, que relata
causos pitorescos de sua vida movimentada. Da infância em Tremembé
até a reforma como coronel-aviador, da convivência na selva com índios ao relacionamento na vida diplomática, dezenas de incidentes são
contados de forma positiva por este cinqüentão de espírito jovial que
se concentra no que a vida tem de bom.
Glenda Wiedmann Chaves
As histórias do Patto retratam exatamente quem ele é: um intuitivoespontâneo-brincalhão de muito bom caráter do qual me orgulho de
ser amiga.
Para você, caro leitor, desejo que reserve uma tarde preguiçosa
para ler esse livro e tenho a certeza de que, como eu, ao final, você
estará de alma leve, revivendo as suas próprias histórias.
Conceição de Maria Couto Machado
Os pais em geral são nossos heróis da infância, com suas histórias
fantásticas e normalmente inacreditáveis. Mas as do meu pai eram as
melhores e ainda por cima verdadeiras. Eu cresci ouvido-o contá-las,
vezes e mais vezes. Várias eu já sabia de cor e outras eu até implementei, acrescentando minhas próprias doses de aventura e fantasia. E até
hoje, 30 anos depois, ainda me empolgo e peço mais uma vez: “Conta
aquela que você morre no final...”
Cláudio Eduardo Germano Patto
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