1 TOUSSAINT-SAMSON, Adéle. Uma parisiense no Brasil. Rio de
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1 TOUSSAINT-SAMSON, Adéle. Uma parisiense no Brasil. Rio de
TOUSSAINT-SAMSON, Adéle. Uma parisiense no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Capivara, 2003. -Adèle Toussaint-Samson (1826-1911), filha de Joseph-Isidore Samson (1793-1871) ator, professor de teatro e autor de peças teatrais de sucesso na capital francesa, entre as décadas de 1820-1860. - Vem para o Brasil em 1850 – entre 1849-1850. Seu nome irá aparecer no Almanaque Laemmert em 1853, como professora de francês e italiano. O retorno provável se dá em 1870. No entanto, Adèle irá dizer em seu livro, que fez cinco viagens ao Brasil e que morou aqui por doze anos. Em uma das ocasiões que esteve na França teria ficado lá durante um ano. p. 23 - Lançamento na França em 1883, foi traduzido para o português no mesmo ano. Antes, texto foi publicado em folhetim pelo Jornal do Commércio, a então “principal folha diária da cidade do Rio de Janeiro”, no mês de março de 1883. A atual edição conta com prefácio e fotografias existentes na publicação original em francês. - Descreve os hábitos e costumes dos diferentes tipos sociais. - Ao falar do Mercado, que se encontra na frente do palácio do Imperador, aponta-o como um dos locais “mais pitorescos da cidade” e é neste mercado que a viajante ouve a língua africana. “É lá que se precisa ouvir falar aquela língua africana chamada língua da costa. Nada de mais estranho: parece que nela não entra nenhuma consoante; não se distinguem absolutamente mais que ohui, y a, ahua, o, y, o. Aprendi algumas dessas palavras, que logo esqueci; é quase impossível reter uma linguagem da qual se ignora inteiramente a ortografia”. p.78. - Adéle e seu esposo são convidados a passar uns dias em uma fazenda, São José, situada perto da cidade de Mauá. Segundo a autora, a fazenda “não tinha mais que cento e vinte negros e negras para o serviço de exploração agrícola”p.115. Ela irá descrever um diálogo entre o senhor, o feitor e dois escravos “que eram seus lugar-tenentes”. p. 116 - “Eis então as perguntas que foram feitas pelo senhor, num tom seco e duro, e as respostas dos escravos, pronunciadas com ar humilde e temeroso”: - O que foi plantado esta semana? - Arroz, senhor. 1 - Foi começado o corte da cana? - Sim, senhor; mais o rio transbordou, e vamos precisar refazer os canais. - Envie para lá vinte negros amanhã de manhã. Que mais? - Henriques fugiu. - O cachorro! Ele foi apanhado? - Sim, senhor, está no tronco. - Que lhe sejam aplicados vinte golpes de chicote e posto a canga no pescoço. - Sim, senhor. Um bando de porcos do mato está devastando todas as plantações de batatas e uma onça foi vista perto da torrente; precisaríamos dos fuzis. - Tereis três esta noite. É tudo? - Sim, senhor. - O engenho começará trabalhar amanhã. Está em condições? - Sim, senhor. - Está bem. Agora chama os negros para a reza. Pp.117-118. (...). “O feitor tocou um grande sino, depois gritou com um voz tremenda: ‘Salta para reza’! A noite estava quase completa. Os bois e os cavalos estavam deitados no pasto, na frente da habitação. E em volta, dispostas em círculos achavam-se as sanzales (senzalas) dos negros, mais ou menos setenta delas. Ao chamado do feitor, vimos erguer-se na sombra uma espécie de fantasmas: cada um saía da sua pobre senzala, um tipo de choupana feita de terra e lama, com folhas secas de bananeira por telhado, triste abrigo onde a água penetra quando chove, onde o vento sopra de todo lado e de onde sai uma terrível fumaça à hora em que o negro ali aquece sua refeição da noite, pois a senzala não tem chaminé nem janela, de sorte que o fogo é feito com um molho de lenha, muitas vezes verde, aceso no meio do quarto. Os negros atravessaram o pasto e subiram um a um as duas escadas da varanda, onde se havia aberto uma espécie de armário, formando o altar em um dos cantos. Foi lá que as misérias da escravidão apareceram para mim em toda sua hediondez. Negras cobertas de andrajos, outras seminuas, tendo por vestimenta apenas um lenço atado atrás do pescoço e sob os seios, que mal velava seu colo, e uma saia de chita, cujos rasgos deixavam ver seu pobre corpo descarnado; negros de olhar feroz ou embotado 2 vieram pôr-se de joelhos nas lajes da varanda. A maior parte deles trazia nos ombros as marcas das cicatrizes que o chicote ali imprimira; vários estavam afetados por horríveis doenças, como a elefantíase ou a lepra. Tudo aquilo era sujo, repugnante, hediondo. O temor ou o ódio, eis o que se lia em todos aqueles rotos, que eu nunca vi sorrir. Acenderam-se quatro círios, e os dois feitores subalternos postaram-se nos degraus do altar, onde o Cristo aparecia no meio de quatro vasos. Eram esses dois negros que conduziam o ofício à sua maneira; haviam retido alguns trechos do latim que um capelão, outrora ligado à fazenda, então lhes recitava, e com eles haviam composto um outro dos mais pitorescos, que servia de preâmbulo as litanias dos santos. Depois do Kyrie eleison, eles começaram a cantar em uníssono: ‘Santa Maria, mai de Deos, ora pro nobis’! Enfim, seu canto terminou por este grito dilacerante, que todos lançaram prosternando-se com a face contra o chão: ‘Miserere nobis’! Esse grito comoveu-me até às entranhas, e lágrimas correram silenciosamente de meus olhos, enquanto, depois da reza, os negros desfilavam um a um diante de nós, pedindo-nos a benção, ao que cada um dos brancos deve responder: ‘Eu te abençôo’. A reza era feita todos o sábados à noite; jamais a pude ouvir sem ficar profundamente impressionada. A visão daquelas misérias e daqueles sofrimentos, e aquele grito de desespero que me parecia elevar-se até Deus, tudo aquilo era espantoso e de uma horrível beleza, mesmo do ponto de vista artístico”. Pp 118-120. Adèle relata um diálogo que tem com uma escrava da fazenda pedindo sua intercessão junto ao seu senhor para que lhe fosse tirada a corrente que trazia no calcanhar e na cintura. - Aceito, disse eu à pobre escrava, pedir teu perdão, mas, que má ação cometeste para ter merecido esse castigo roubaste? - Não, senhor, eu fugi. - E por que fugiste? - Porque o escravo deve da escravidão sempre. - Se te tirarem a corrente, então fugirás de novo? - Não porque vejo que o branco é sempre mais forte que nós e sei recapturada e martirizada. Esta corrente me moi o corpo. - Assim, prometes-me, se eu conseguir teu perdão, não mais fugir? 3 - Prometo, respondeu a pobre africana com uma voz surda. - Que idade tens? - Não sei. - Como! Mais ou menos, não sabes tua idade. - Não - Faz muito tempo que foste trazida para o Brasil? - As canas foram cortadas cinco ou seis vezes depois. - Lembras-te de teu país? - Sempre! Respondeu ela com uma entonação selvagem e apaixonada. - Não trabalhava em tua terra natal? - Não. Quando achava de moer o arroz para as refeições, dançava e cantava o resto do dia. - Lembras-te das danças de seu país? - Se me lembro! Todas as noites quando os feitores dormem, nós nos levantamos e dançamos nossas danças até o amanhecer. - E se alguém te comprasse para te libertar, voltarias para a África? - Sim, se pudesse achar o caminho, pois é preciso atravessar muita água para chegar lá. - Esperas minha filha terás dias melhores. Voltei para casa muito triste naquele dia e não tive dificuldade em obter o perdão da jovem negra, pois um brasileiro nunca recusa um favor pedido para um escravo, com mais forte razão quando é uma mulher que o pede e essa mulher é madrinha de um de seus filhos, já que o titulo de compadre e de comadre é quase o laço de parentesco no Brasil. O Feiticeiro Um dos tipos mais estranhos da fazenda era seguramente o feiticeiro. Eis como o conheci. Uma manhã estava sentada na varanda, perdida naquele vácuo de pensamento em que o mergulham os vastos horizontes, quando vi voltar da mata uma das carroças que, de habito, retornavam apenas ao cair do dia. Tanto mais me surpreendi quando estava vazia não tinha por todo carregamento mais que dois negros, um dos quais era o feitor. 4 - Ô Ventura! gritou-lhe imediatamente nosso anfitrião, por que voltas com Luiz? - Senhor, Luiz foi mordido por uma cobra ao cortar cana, e vomitou sangue. - Avisaram o feiticeiro? - Sim, senhor; ele está chegando. De fato, logo vimos aparecer um negro muito alto, de cabelos encarapinhados e brancos, que tinha, ao que se dizia, mais de noventa anos e, no entanto, mantinha-se ainda firme e ereto. Estava envolto em uma capa raiada, trazia uma espécie de alforge pendurado de lado e tinha um bastão na mão. Seu rosto era sério e pensativo. Foi diretamente a enfermaria onde fora posto o negro doente, fechou-se com ele, o fez beber uma infusão de plantas de que só ele tinha o segredo, e afirmou que curaria o negro, com a condição, porem, de que nenhuma mulher entrasse, durante sete dias, no quarto daquele de quem cuidava; sem isso, não respondia por nada, dizia ele. Teve-se o cuidado, portanto de enviar a comida do negro apenas por homens; as prescrições do feiticeiro foram seguidas ao pé da letra, e o negro ficou perfeitamente curado. O Segredo Quis então conversar com o velho feiticeiro; e, depois de lhe ter dado alguns vinténs para seu café e seu açúcar, perguntei-lhe que plantas havia empregado para curar a mordida da jararaca, uma das piores cobras do Brasil. - É meu segredo, disse ele. - Por que não o revela aos outros? - Eu cuido deles quando estão doentes, é o bastante. - Mas, quando morreres? - Tanto pior para eles; se fossem bons comigo, eu lhes diria muitos segredos que sei, mas fogem de mim e ensinam seus filhos a me temer. Levarei meus segredos comigo. Eis tudo que pude tirar dele. Ele foi chamado ainda outra vez para um boi, que tinha uma bicharia. O feiticeiro aproximou-se do boi que estava deitado, sem dúvida aplicou-lhe também alguma planta moída no local doente: a bolsa de vermes caiu quase instantaneamente, e o animal ficou curado. Então, não houve um negro da fazenda que não repetisse que o feiticeiro só precisava recitar algumas palavras mágicas, e imediatamente ocorrera a cura. Pp.134-135. 5 173 – “A língua brasileira, com todos os seus diminutivos em zinha, zinhos, tem uma graça toda crioula, e jamais a ouço sem lhe descobrir um grande encanto; é o português com sua entonação nasal modificada. A língua-mãe abastardou-se, evidentemente. “É uma espécie de patoá”, dizem os portugueses. Não importa! Todas as suas denguices lhe caem bem e dão à língua brasileira um não-sei-quê que seduz mais o ouvido que a pura língua de Camões.” 6