Notas franciscanas (séculos XIII ‑XVII): Identidade dos
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Notas franciscanas (séculos XIII ‑XVII): Identidade dos
Manuel Pedro Ferreira Notas franciscanas (séculos XIII‑XVII): Identidade dos livros litúrgicos menoritas. Iconografia e música no culto dos Mártires de Marrocos. por Manuel Pedro Ferreira* CESEM/FCSH Universidade Nova de Lisboa Abstract This paper discusses both the identity of Franciscan notated liturgical books and the iconographical and musical aspects of the early cult of the Five Martyrs of Morocco. (I) The first Franciscan friars followed local liturgical custom; the regional influence of the papal Curia led to the adoption of its books, revised and graphically updated within the Order in the mid‑13th century. Franciscan Graduals carry specific instructions to ensure its faithful copying, and the notated chant melodies can be identified by their uncommon or unique variants; both features are here exemplified. Contrary to their Roman counterparts, Franciscan books for the Mass service typically include at the end a sizable collection of sequences, which fed both public and private devotion. Antiphonaries were enriched with Offices * Doutorou‑se em Musicologia na Universidade de Princeton, Professor Associado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde coordena o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM). Tem‑se dedicado sobretudo ao ensino e à investigação da música da Idade Média e do Renascimento, sem descurar a interpretação musical: dirige desde 1995 o grupo Vozes Alfonsinas, com o qual gravou vários discos. Autor de diversos trabalhos de musicologia, artigos científicos e dirigiu vários projectos de investigação, destacando ‑se O Som de Martin Codax, premiado pelo Conselho Português da Música, Antologia de Música em Portugal na Idade Média e no Renascimento, A Sé de Braga ‑ Arte, Liturgia e Música, do final do século XI à época tridentina. É membro da Academia Europeia e da direcção da Sociedade Internacional de Musicologia. Tem exercido com regularidade o ofício de crítico musical com incursões pela composição musical e poesia. Itinerarium, LX (2014) 409 - ??? 410 Manuel Pedro Ferreira commemorating Franciscan saints; printers restricted themselves to the centrally approved proper of the saints, but manuscripts often mirrored local devotions and practices as well. A few sources of Portuguese origin illustrate here this variability. (II) The first Franciscan martyrs, killed in Morocco in 1220, were immediately venerated in Portugal, although papal canonisation had to wait until 1481. The earliest physical testimony of their cult is a stone reliquary from Lorvão, of c. 1300, presently at the Museu Machado de Castro in Coimbra. Published commentaries depend on both the assumption that its iconography embodies a narrative, and on hagiographical sources that postdate the year 1360 and have at their core a Franciscan legend. This paper proposes instead that the sculptor meant to represent a series of individuals, following, possibly through an intermediate model (the lost reliquary of Santa Cruz de Coimbra), narratives stemming from Portuguese prince Pedro Sanches and his confessor, an Augustinian canon from Santa Cruz, who were present at Morocco's court in 1220 and organized the transfer of the relics to the Coimbra monastery. A reconstruction of the damaged portrait of the Emir is attempted, and an allegorical interpretation proposed, inspired by patristic commentary and the rhymed Office that the canons of Santa Cruz composed in honour of the saints in the second half of the 15th century. The only notated portion of the Office identified so far, a Magnificat antiphon, is offered as an Appendix. O presente trabalho consta de duas partes. A primeira pretende apresentar os aspectos identitários da música conventual franciscana dos primeiros séculos, deixando de lado — sem pretender com isso diminuir a sua relevância — as ramificações informais e as extensões urbanas da actividade musical dos frades menores. A segunda parte centrar‑se‑á no culto dos primeiros santos franciscanos, os cinco mártires de Marrocos de 1220, na região de Coimbra, com especial referência à arca‑relicário de Lorvão e ao Mosteiro de Santa Cruz. No que se refere à música conventual, chamarei a atenção quer para as variantes próprias e adições típicas do Gradual franciscano, quer para alguns manuscritos de origem portuguesa até agora ignorados. Na secção seguinte, após discutir cada um dos personagens representadas no reli- Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 411 cário de Lorvão e os comentários que têm suscitado — segundo os quais eles configurariam uma única cena narrativa —, arriscarei uma interpretação alternativa, que inclui a reconstituição virtual da figura danificada. A coda final explora o culto dos protomártires em Santa Cruz de Coimbra, com destaque para o respectivo ofício rítmico, de que se publica a única melodia actualmente conhecida. I. A antiga identidade musical franciscana São Francisco e os seus seguidores, conhecendo os hábitos de itinerância e a típica pobreza, mas também a capacidade de atracção pública dos jograis, quiseram ser, de alguma maneira, jograis de Deus. Aos domingos e dias de festa, eles disputavam a atenção do povo, pregando o Evangelho; recorriam também a cânticos latinos e a canções em língua vulgar (os mendicantes acabaram por ser os grandes promotores da lauda devocional italiana). Não se esqueciam, contudo, de celebrar ao longo do dia o Ofício Divino, ainda que recitado; uma obrigação que se tornava mais evidente nos locais onde se concentravam durante os dias feriais. Esta prática criou a necessidade de regulação e sustentou a criação de uma vida conventual, progressivamente mais estável, no seio da qual o canto litúrgico ganhou crescente protagonismo. Nos primeiros anos da Ordem franciscana, o culto litúrgico entre os frades menores, onde quer que eles se encontrassem, seguia o costume local. O principal núcleo de menoritas concentrava‑se, porém, em Portiúncula, na Úmbria, perto de Assis, cidade que seguia, desde inícios do século XIII, o costume da cúria romana (pelo menos no que ao Ofício dizia respeito). Este costume tinha acabado de ser reformado por Inocêncio III, e estava muito próximo da tradição de Perugia, também vizinha de Assis. Entre os fundadores da Ordem contava‑se, para mais, um antigo alto funcionário da cúria. Assim sendo, quando em 1223 ou pouco antes se decidiu estender a todos os frades um mesmo costume litúrgico, o escolhido foi o costume papal. A partir daí a Ordem tomou como modelo, para os seus livros, os da cúria romana: um Missal plenário foi produzido em 1230 e revisto em 1255; o Gradual respectivo (com a música do Próprio da Missa) existiu independentemente antes de 1254. O breviário, mais o antifonário 412 Manuel Pedro Ferreira correspondente (com a música das horas do Ofício), foram preparados em 1230 e revistos em 1260. Entre 1230 e 1254, foi adoptada a notação quadrada, dita francesa, que substituiu a notação da Itália central, sendo que a mudança de sistema notacional pode ter sido acompanhada por algumas modificações (ou pontuais omissões) melódicas; e em 1243‑44, a organização litúrgica e as rubricas foram completamente refeitas procurando maior coerência e atenção às circunstâncias conventuais1. Lembremos que o canto gregoriano não é, como durante muito tempo se defendeu, um repertório nascido em Roma; o seu conteúdo textual seguiu o rito romano, mas as melodias foram reelaboradas e editadas por clérigos francos durante a segunda metade do século oitavo. Foi através da cúria papal, sob influência do imperador germânico a partir do século X, que Roma acabou por receber estas melodias do norte. A penetração do canto gregoriano foi gradual, sendo provável que o canto velho‑romano ainda se praticasse nas horas do Ofício até ao tempo de Inocêncio III. Os franciscanos copiaram, por conseguinte, a reinterpretação romana tardia de uma versão melódica gregoriana, das muitas que circulavam no centro da Europa em época pós‑carolíngia. Em finais do século XIII os livros menoritas foram, por sua vez, adoptados pela cúria e impostos progressivamente em toda a cidade de Roma, substituindo os antigos usos locais, incluindo as eventuais sobrevivências do canto velho‑romano2. A coincidência de identidades, romana ou franciscana, dos livros litúrgicos, não se tornou absoluta devido à permanência de certas rubricas próprias nos livros franciscanos, ausentes das suas cópias romanizantes; e foi seguidamente atenuada por contaminação melódica e pela presença ou ausência de adições reflectindo usos e devoções menoritas. Nos livros de canto, em particular, houve uma especial atenção em assegurar Esta síntese baseia‑se nos seguintes trabalhos, que cito por ordem de publicação: Stephen J. P. VAN DIJK & Joan Hazelden WALKER, The Origins of Modern Roman Liturgy: The Liturgy of the Papal Court and the Franciscan Order in the Thirteenth Century, Darton, Longman & Todd, London, 1960. Heinrich HUSMANN, “Das Brevier der hl. Klara und seine Bedeutung in der Geschichte des römischen Chorals”, Studi musicali 2 (1973), 217‑233. René‑Jean HESBERT, “L'antiphonaire de la Curie”, Ephemerides liturgicæ 94 (1980), 431‑59. Kajetan ESSER, Origi‑ nes et objectifs primitifs de l'Ordre des frères mineurs, Éditions Franciscaines, Paris, 1983. 2 Octave D'ANGERS, “Le chant liturgique dans l'Ordre de saint François aux origines”, Etu‑ des Franciscaines 25 (1975), 157‑306. Morné BEZUIDENHOUT, “The Old and New Historical Views of Gregorian Chant: Papal and Franciscan Plainchant in Thirteenth‑Century Rome”, Revis‑ ta de Musicología 16 (1993), 883‑900. 1 Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 413 normas claras e uniformes de escrita e condições para realização de cópias em tudo fiéis aos originais. Na primeira página de qualquer gradual franciscano (como o gradual da Capela de S. Miguel, na Universidade de Coimbra, escrito por volta do ano de 1500) deveria ser reproduzido o seguinte estatuto, ou lista de instruções: 3 (Statutum Ordinis Minorum)3 Ista rubrica ponatur in prima pagina gradualium singulorum: 1.a In primis iniungitur fratribus, ut de cetero, tam in gradualibus quam in antiphonariis nocturnis et aliis, faciant notam quadratam et quattuor <vel quinque> lineas, omnes rubeas sive nigras ; 1.b et littera aperte et distincte scribatur, ita quod nota congrue super suam litteram valeant ordinari. 1.c Et fiant lineae modo debito distantes, ne nota hinc inde comprimatur ab eis. 2 Secundo, quod custodiant eandem litteram, eandem notam cum suis ligaturis, easdem pausas, quae in exemplaribus correctis cum magna diligentia continentur, nihil scienter addito vel remoto. 3 Tertio, quod quemlibet librum scriptum post exemplaria ter ad minus, antequam ligetur vel ponatur in choro, corrigant diligenter tam in littera quam in nota, ne ista opera, sicut solitum est, propter defectum correctionis corrumpantur. Idem dicitur de ordinariis breviarii et missalis et missalibus, etiam postquam ea habuerint. 3 Este texto foi publicado e comentado por: Stephen J. P. VAN DIJK, Sources of the Modern Roman Liturgy, E. J. Brill, Leiden, 1963, 361. Michel HUGLO, “Règlement du XIIIe siècle pour la transcription des livres notés”, in Festschrift Bruno Stäblein zum 70. Geburtstag, ed. M. Ruhnke, Bärenreiter, Kassel, 1967, 121‑133. Id., “Comparaison du “Prototype” du couvent Saint ‑Jacques de Paris avec l’exemplaire personnel du maître de l’ordre des Prêcheurs (Londres, British Library, ADD. MS 23935)”, in Aux origines de la liturgie dominicaine : le manuscrit Santa Sabina XIV L 1. Sous la direction de Leonard E. Boyle et de Pierre‑Marie Gy avec la collaboration de Pawełs Krupa, CNRS Éditions – École Française de Rome, Paris – Rome, 2004 [Collection de l’École française de Rome, 327; Documents, Études et Répertoires publiés par l’Institut de Recherche et d’Histoire des Textes, 67], 197‑214. Entre parênteses oblíquos, assinalo a principal variante constatada no Gradual franciscano da Capela de S. Miguel, em Coimbra. Observa‑se aí uma única outra variante substancial (mas inócua), a substituição de “sive” (em 1.a) por “vel”. 414 Manuel Pedro Ferreira 4.a Quarto, ut postquam habuerint correcta gradualia, ordinaria praedicta et missalia, faciant officium secundum quod in eisdem continetur. 4.b Nec faciant huiusmodi opera scribi vel notari a secularibus aliqua ratione, si habere valeant fratres ordinis qui haec scribere [poterunt] et notare noverint competenter. Quod si nesciunt addiscant et cogantur ad hoc per suos superiores, quia seculares omnia fere quae scribunt vel notant corrumpunt. Ao texto citado, seguem‑se instruções musicais para os cantores: Item notandum quae quandocunque cantor vel cantores aliquid incipiunt ad graduale pertinens, dicunt usque ad duas pausas simul iunctas. Similiter, etc. Conservam‑se poucos manuscritos franciscanos de primeira época. Aqueles que registam em notação as melodias do Gradual são apenas três: um Missal plenário de meados do século XIII proveniente de Salerno, hoje na Biblioteca Nacional de Nápoles; outro Missal, escrito entre 1255 e 1260, hoje na Biblioteca Apostólica Vaticana; e um único Gradual, do terceiro quartel do século, que se mantém junto ao Convento onde foi usado, na vila de Carmignano, na Toscânia4. Se compararmos a tradição melódica franciscana com a tradição gregoriana em geral, encontramos, como é de esperar, uma concordância substantiva com a maior parte das fontes, salpicada por algumas divergências. Na verdade, não há nenhum manuscrito histórico que represente o canto gregoriano primitivo, de época carolíngia, usado na Missa; cada manuscrito representa somente uma aproximação, uma recriação particular desse repertório; e já em época primitiva teria provavelmente havido divergências de pormenor. O actual Gradual romano, na sua edição vaticana, é uma reconstrução melódica que surge como resultado tanto de um trabalho filológi4 Stephen J. P. VAN DIJK, “Sources of the Roman Gradual”, Scriptorium 14 (1960), 98‑100. Manuel Pedro FERREIRA, “Music at Cluny: The Tradition of Gregorian Chant for the Proper of the Mass. Melodic Variants and Microtonal Nuances” (Ph. D. diss., Princeton University, 1997; ProQuest 9809172), 134, 156. Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 415 co baseado na antiga notação neumática, como de um compromisso prático entre escolas de canto francesas e alemãs, que se confrontaram no seio da Igreja, de forma por vezes azeda, no início do século XX. Os monges de Solesmes participaram nessa edição mas, tendo as suas opiniões sido parcialmente derrotadas, tentaram, nas décadas seguintes, lançar as bases para uma edição crítica do Gradual. No estudo comparativo de variantes do Gradual levado a cabo pelos monges de Solesmes na década de 1950, usou‑se um único manuscrito franciscano autêntico, o Missal de Salerno. Os outros dois foram tidos em conta só na década de 1990, na minha própria dissertação de doutoramento; o Gradual de Carmignano foi usado como referência, tendo o Missal da Vaticana servido apenas, pontualmente, para confirmação das leituras5. As variantes franciscanas são normalmente partilhadas por alguma das outras tradições melódicas, podendo essas variantes ser comuns ou, pelo contrário, minoritárias, como se pode observar em diferentes passos do intróito Deus, in nomine tuo (Ex. 1). [As notas são aqui significadas por letras maiúsculas ou minúsculas, correspondentes aos diferentes graus da escala diatónica: A‑G na oitava mais grave, a‑g na oitava superior. O si natural é representado por um H, retendo‑se o B para o si bemol. As diferentes fontes manuscritas são identificadas por siglas convencionais, com destaque gráfico para os códices franciscanos (FRA)6] 5 Manuel P. FERREIRA, “Music at Cluny”, cit., 134‑36 e Apêndice I. Consulte‑se: VV. AA., Le Graduel Romain. Édition critique par les moines de Solesmes, II: Les sources, Abbaye Saint‑Pierre, Solesmes, 1957. Uso neste artigo oito siglas adicionais: CHA 3 (Missal de Chartres, destruído: reproduzido na série Monumenta Monodica Medii Aevi, IV), CIS 14 (Gradual cisterciense de Lorvão: Lisboa, Torre do Tombo, ms. Lorvão 15 / C. F. 102), CLU 3 (Breviário‑Missal cluniacense de Lewes: Cambridge, Fitzwilliam Museum, ms. 369), FRA 4 (Gradual franciscano: Carmignano, Archivio della Pieve, ms. [A]), FRA 5 (Gradual franciscano: Biblioteca Apostólica Vaticana, ms. Regin. lat. 2049), SAL (Missal de tradição aquitana: Biblioteca da Universidade de Salamanca, Ms 2637), SEN (Gradual de Sens: Lisboa, Biblioteca Nacional, ms. Iluminado 84), ULT (Missal de Utrecht: Utrecht, Catharijne Convent ABM 62). 6 416 Manuel Pedro Ferreira Intr. Deus, in nomine tuo (Graduale Triplex, p. 116), sobre De[us]: FGF E G F E G E D F E+ CAM 2, CHA 3, CIS 14, CLU 2, CLU 3, DEN 2, ITI 3, KLO 1, MET 1, PAR 6, ROP, SEN, VAN 2, ZIG DIJ 1, FRA 4, FRA 5, ROG 1 ALB, BEN 5, MIL 2, SAL, YRX STA 1 Idem, sobre [De]us: F F ALB, BEN 5, DIJ 1, ITI 3, MIL 2, SAL, TOU, VAN 2, YRX F KLO 1, ROG 1, STA 1 E F CAM 2, CHA 3, CIS 14, CLU 2, CLU 3, DEN 2, FRA 4, FRA 5, MET 1, PAR 6, ROP, SEN E ZIG Idem, sobre [tu]o: G F F G F F E+ F G E F F E E F E F ROG 1, SAL, TOU CHA 3, CIS 14, CLU 3, FRA 4, KLO 1, PAR 6, ROP, SEN, ZIG DIJ 1 CAM 2 ALB, BEN 5, DEN 2, ITI 3, LYO 3, MET 1, MIL 2, VAN 2, YRX CLU 2 STA 1 Idem, sobre et [in]: D G E E G E D G F F G F MIL 2 ALB, BEN 5, SAL, TOU, YRX FRA 4 todas as outras fontes consultadas Exemplo 1: variantes melódicas no Intróito Deus, in nomine tuo. Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 417 A tradição franciscana foi seguida à risca durante séculos, como atesta novamente o Gradual conservado em Coimbra (Ex. 2): Exemplo 2: Gradual da Capela de S. Miguel em Coimbra, fol. 70v, pormenor: intróito Deus, in nomine tuo (foto: D. A. Veiga / CESEM) No último ponto de comparação examinado, a versão franciscana surge isolada na amostra. Podem observar‑se outros casos de aparente particularidade franciscana, por exemplo nos graduais Qui sedes e Benedicam Dominum (Ex. 3): Grad. Qui sedes (Graduale Triplex, p. 22), sobre super: defd dG defd da effe eh efge ea egge e egge ea egge da eggd dG EGG'a aD EGGa aE CAM 2, KLO 1 DEN 2, ULT SEN STA 1 CLU 2, CLU 3 CHA 3, CIS 9, DIJ 1, ITI 3, PAR 6, ROG 1, ROP FRA 4 BEN 5 ALB, MIL 2, SAL, TOU YRX 418 Manuel Pedro Ferreira Grad. Benedicam Dominum (G. T., p. 316), sobre [me]o (parte final): aca aha KLO 1, STA 1, VAN 2, ZIG ALB, BEC, BEN 2, CHA 3, CLU 2, CLU 3, DEN 2, DIJ 1, ITI 3, NAR, PAR 6, ROP, SAL, SAR 1, YRX acaha aG CIS 14 ecaha aGaGSEN caha aG MIL 2 dcca CAM 2 a FRA 4 Exemplo 3: variantes melódicas em dois responsórios graduais, Qui sedes e Benedicam Dominum. O facto de haver instruções estritas para evitar modificações ao modelo copiado fez com que as tradições locais de canto litúrgico só se pudessem reflectir na prática conventual quando não houvesse ou estivesse disponível um modelo central a copiar, o que sucedeu apenas em peças que pertencessem ao Ordinário da Missa, vazadas em géneros que excediam o enquadramento litúrgico, ou que dissessem respeito a devoções sem projecção universal. Os Graduais e os Missais franciscanos incluíam frequentemente em apêndice sequenciários, ou seja, colecções de sequências latinas, que circulavam também em cadernos independentes, ou eram adicionados ao Kyriale (livro ou secção que recolhe os cânticos do Ordinário da Missa). O mais antigo Gradual de que tenho conhecimento com sequenciário apontado em apêndice pela mesma mão do livro principal foi escrito na década de 13207. As sequências tinham melodias silábicas e alcançaram grande popularidade. As ordens mendicantes tiveram um papel fundamental na expansão do seu uso catequético e pastoral entre os séculos XIII e XV. As sequências, nesta época, tinham igualmente uma função formativa, 7 Solothurn, Zentralbibliothek, Cod. S III 1, em linha: http://www.e‑codices.unifr.ch/en/zbs/ SIII‑0001/298r/. De época próxima (segundo quartel do século XIV) é o Kyriale‑sequenciário de Carmignano, Archivio della Pieve, ms. [B], descrito in Kees VELLEKOOP, Die ire dies illa — Studien zur Frühgeschichte einer Sequenz, A. B. Creyghton, Bilthoven, 1978, 211‑14. Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 419 apoiada por comentários redigidos em estilo académico8. O seu estilo permitiu uma fácil adaptação à notação mensural, que facilitava a junção de uma voz ou de um instrumento. Na verdade, desde meados do século XIII que os franciscanos usaram as sequências como base para uma polifonia simples a duas vozes; usaram‑nas na actividade missionária, tendo inclusive, na primeira metade do século XIV, traduzido uma sequência para língua cumânica, uma variedade do turco usada como língua franca na região do Mar Negro9. No entanto, a informalidade das práticas franciscanas não favorecia nem o registo escrito da música, nem a conservação desses registos. Nos Missais franciscanos impressos no século XVI existentes em arquivos portugueses, oferecem‑se em apêndice nunca menos de 150, e por vezes mais de 220 sequências, sem notação musical. Estes textos podiam ser cantados com melodias aprendidas de cor ou recitados ad libitum, alimentando a devoção privada ou a religiosidade pública informal10. Por outro lado, as extensões do Santoral franciscano, uma vez oficializadas, acabavam mais tarde ou mais cedo por reentrar no domínio do canto centralmente regulado. Os Ofícios de São Francisco e de Santo António foram compostos por Giuliano da Spira respectivamente por volta de 1231‑1232, e entre este último ano e 1242; cinquenta anos depois, juntou‑se‑lhes o Ofício de Santa Clara; o Ofício dos Sagrados Estigmas de S. Francisco data da primeira metade do século XIV11. Estas versões Erika KIHLMAN, “Medieval Sequence Commentaries”, The Journal of Medieval Latin, 17 (2007), 110‑24. 8 9 Agostino ZIINO, “Una sequenza mensurale per San Fortunato ed un Amen a tre voci nella biblioteca Comunale di Todi (con un' Appendice sul frammento di Cortona)”, in L'Ars Nova ita‑ liana del Trecento, V, ed. A. Ziino, Enchiridion, Palermo, 1985, 257‑70 & Tavole. Id., “Dal latino al cumanico, ovvero osservazioni su una versione trecentesca della sequenza Sagïnsamen bahasïz kanïnï in notazione mensurale”, in Trent'anni di ricerche musicologiche: Studi in onore di F. Al‑ berto Gallo, ed. Patrizia Dalla Vecchia e Donatella Restani, Torre d'Orfeo, Roma, 1996, 31‑47. 10 Arménio da Costa JÚNIOR, “Mosteiro de Jesus de Aveiro: Tesouros musicais” (dissertação de doutoramento, Universidade de Aveiro, 1996), 293‑315. Um exemplo de Missal romano com sequências oferecidas em suplemento é o nº 3457 da Biblioteca Pública de Évora, impresso em Paris em 1529. 11 Agostino ZIINO, “Liturgia e musica francescana nei secoli XIII‑XIV”, in Francesco d'Assisi ‑ Storia e Arte, ed. Francesco Porzio, Electa, Milano, 1982, 127‑57. A evolução do calendário litúrgico franciscano encontra‑se esquematizado na página: http://www.univ‑nancy2.fr/ MOYENAGE/UREEF/MUSICOLOGIE/CMN/calofmw.htm. 420 Manuel Pedro Ferreira oficiais circularam em manuscrito e foram depois impressas juntamente com outros Ofícios tardios. Podia, no entanto, haver desfasamentos temporais significativos entre as iniciativas relativas ao culto litúrgico, a sua oficialização e a sua generalização através da imprensa. Na segunda metade do século XV há indícios de que, através de orações e de leituras próprias, se tentou promover o culto dos primeiros missionários franciscanos a sofrer o martírio, ocorrido em Marraquexe em Janeiro de 1220 (tema da segunda parte deste texto). A causa destes cinco mártires de Marrocos recebeu um impulso decisivo com a canonização papal, ocorrida em 1481. Embora frei Jean Tisserand (falecido em 1494) tenha sido então encarregue de compôr um Ofício próprio para os protomártires, redigindo pelo menos as respectivas lições de Matinas, só em 1578 aparecerá num livro oficial impresso um texto (reformulado) para o correspondente Ofício12. O antifonário santoral preparado no norte de Itália por Franciscus de Brugis, impresso em 1503 com um tratado musical da autoria do mesmo franciscano, não lhe faz referência, provavelmente por se recorrer, nas peças de canto, ao Comum dos Mártires13. Há ainda que assinalar a subsistência de algumas particularidades regionais. Ao investigar as fontes portuguesas, haverá sempre que confronSalvatore BARBAGALLO, “La liturgia dei santi protomartiri francescani”, in Dai proto‑ martiri francescani a Sant'Antonio di Padova. Atti della Giornata internazionale di studi. Terni, 11 giugno 2010, a cura di Luciano Bertazzo ‑ Giuseppe Cassio, Centro Studi Antoniani, Padova, 2011, 167‑202. O artigo de Barbagallo só tem em consideração as fontes franciscanas e romanas. A partir de 1578 a Passio dos mártires de 1220 (baseada na Chronica XXIV generalium) ocupa somente o 2º nocturno de Matinas (de nove lições); há oração própria; os responsórios são retirados do Comum. Antes do século XIX não se encontram peças próprias para as horas diurnas nos livros oficiais impressos em Itália. 13 Francesco DE BRUGIS, Tractatus de musica /Antiphonarium de sanctis, Lucantonio Giunta, Veneza, 1503. Existe exemplar truncado em Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, MI‑42. O tratado ocupa os fólios preliminares 2 a 5; começa, no fólio 2, com a rubrica “Hoc opusculum in quo duodecim sunt capitula una cum manu perfecta compilavit et apposuit ille frater [...]”. Segue‑se, ainda no fol. 5v, o índice do volume (que permite desde logo caracterizá ‑lo como franciscano), uma secção não paginada com os tons de invitatório e a parte santoral do antifonário, parcialmente mutilada, que tem paginação própria. Dado que ao livro faltam o fólio inicial, uma larga fatia do conteúdo musical (entre os fols. 129v e 276r do santoral) e a folha ou folhas finais, foi assinalado como um Tractatus musice anónimo (atribuído às primeiras décadas do século XVI) no Inventário dos inéditos e impressos musicais (Subsídios para um Catálogo), Fascículo I, Coimbra, Biblioteca da Universidade, 1937 (p. 6 da secção de impressos musicais). A identificação correcta (embora com data aproximada) aparece em Maria Luísa LEMOS, Im‑ pressos musicais da Biblioteca Geral de Coimbra, Universidade, Coimbra, 1980, 21. 12 Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 421 tar as versões oficiais de data próxima com aquelas que foram copiadas nos manuscritos, pois as devoções vão mudando com o tempo e pode haver divergências, ou apêndices que digam respeito a tradições locais14. Assim, no livro miscelâneo do Convento de Santa Clara de Guimarães, hoje Livro de Coro nº 59 da Biblioteca Nacional de Portugal, escrito na primeira metade do século XVII, existem Ofícios tipicamente menoritas como o dos estigmas de S. Francisco, mas também Ofícios próprios de Santiago e do Anjo Custódio de Portugal, e uma Missa para S. Joaquim. Este livro contém também bradados polifónicos para a Paixão de S. Mateus, atribuídos ao compositor D. Pedro de Cristo, de Santa Cruz de Coimbra15. Há, finalmente, que ter em conta as modificações na prática musical ocorridas ao longo do século XVI, por influência de correntes reformistas, e aprofundada no século seguinte. No Gradual da Capela de S. Miguel, não é difícil deparar com melismas rasurados (p. ex. nos fólios 122v‑123): de facto, o estilo de execução coral do cantochão nos finais da Idade Média transformava os melismas em passagens especialmente lentas e pesadas, e não havia já memória da sua agilidade rítmica primitiva, que suspendia o ouvinte na contemplação, pelo que os cortes se tornavam musicalmente tentadores. Por outro lado, o uso de tropos no Ordinário da Missa foi desencorajado em certos círculos, e no seguimento do Concílio de Trento, oficialmente evitado. Testemunho deste facto é um livro de coro pouco comum, um Gradual sem notação musical, destinado a clarissas portuguesas, escrito na segunda metade do século XVI. As clarissas não estavam obrigadas a cantar o Ofício, somente a recitá‑lo; a mesma prática pode ter sido 14 Uma fonte acessível que requer um estudo particular é o antifonário‑gradual dedicado ao próprio dos santos escrito para o coro do Convento de Santa Clara de Coimbra, MM16 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra: Antiphonarium et graduale romano seraphicum, ad usum chori Monasterii S. Clarae Civitatis Conimbricensis, elaboratum de mandato, et expensis Adm. R. M. D. Annae Maximae de Alancastre, Forjás, ejusdem Monasterii Abbatissae, Porto, 1805 (http://digitalis.uc.pt/pt‑pt/search/site/mm16). Da mesma época, há um antifonário escrito para as clarissas de Évora em 1802, que inclui raras antífonas para a Festa do Bom Ladrão (Arquivo Distrital de Évora, Mús. Lit. Ms. nº 17). Um possível elemento comparativo é o suplemento ao breviário romano‑seráfico, Officia Propria Sanctorum Trium Ordinum S. P. N. Francisci, Lisboa: Typographia Regia, 1787. 15 Manuel Pedro FERREIRA (coord.), Harmonias do céu e da terra: A música nos manuscri‑ tos de Guimarães (séculos XII‑XVII), CESEM, Lisboa, 2012, 76‑77. 422 Manuel Pedro Ferreira estendida aos cantos da Missa: havendo clérigos ao serviço da liturgia junto ao altar, o Gradual que se colocasse por detrás das grades permitiria o seu acompanhamento. Este volume foi vendido em França a um livreiro‑antiquário norte‑americano, e esteve pela primeira vez exposto ao público, em Nova Iorque, no início de 201416. O ambiente franciscano da cópia é particularmente bem demonstrado pela ilustração dos Sagrados Estigmas de S. Francisco (Ex. 4). Exemplo 4: Inicial iluminada num Gradual de clarissas portuguesas — Les Enluminures TM 710 (foto: M. P. Ferreira). 16 Laura LIGHT & Susan BOYNTON, Sacred Song: Chanting the Bible in the Middle Ages and Renaissance [Textmanuscripts 4], Les Enluminures, Paris‑Chicago‑New York, 2014, 56‑59 (TM 710; Exhibition Catalogue, nº 15). Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 423 No final do volume, há rasuras na sequência Victime paschali laudes e o texto do Gloria tropado Spiritus et alme traz a indicação de que já não se encontra a uso: «estes versos de Nossa Senhora não dizem já». O Gloria em questão aparece com a sua música num Kyriale de origem desconhecida, mas provavelmente da região de Coimbra, pertencente à colecção do Museu Machado de Castro mas depositado no Palácio Ducal de Guimarães. Tal como no manuscrito anterior, o texto do Gloria aparece a negro, e as adições correspondentes à devoção mariana, a rubro17. II. A música e o culto dos Cinco Mártires de Marrocos A — Breve introdução histórica Temos feito referência a vários manuscritos ligados, de uma forma ou de outra, à cidade de Coimbra. Foi nesta cidade e na região circundante que se desenvolveu o culto dos primeiros mártires franciscanos, os Cinco Mártires de Marrocos: Beraldo (ou Berardo), Pedro, Otão, Acúrsio e Adjuto. Não há dúvida de que o exemplo dos Mártires de Marrocos calou fundo entre aqueles que, em 1220, viviam na cidade. Foi graças ao seu exemplo que Santo António, então em Santa Cruz, decidiu ingressar na Ordem. O Ofício que lhe é dedicado não deixa de fazer referência ao facto, contribuindo para que a sua memória tenha perdurado entre os menoritas, que conseguiram, em 1481, fazer reconhecer em Roma, através de um papa franciscano, a santidade dos cinco frades. No entanto a instituição que mais se destacou no desenvolvimento do seu culto foi aquela que abrigou desde o primeiro momento o que restou dos seus corpos: o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, panteão real de D. Afonso Henriques e D. Sancho I. Isto deveu‑se à conjunção de vários factores: os frades italianos, antes da sua partida para terras muçulmanas em 1219, passaram por Coimbra e ganharam o favor da rainha D. Urraca18; em Alenquer foram recebidos pela Infanta D. Sancha; 17 M. P. FERREIRA, Harmonias do céu e da terra, cit., 32‑33. Coimbra era não só a principal residência da família real, como — segundo Adel SIDARUS, “Arabismo e traduções árabes em meios luso‑moçárabes (breves apontamentos)”, Collec‑ tanea Christiana Orientalia 2 (2005), 207‑23 — o mosteiro de Santa Cruz poderia ser então conhecido por albergar conhecedores da língua árabe. 18 424 Manuel Pedro Ferreira depois de uma estadia em Sevilha, foram acolhidos em Marrocos pelo Infante D. Pedro Sanches, desde 1211 desavindo com o rei seu irmão D. Afonso II; estava nessa altura ao serviço do califa Yūsuf al‑Mustansir como chefe de uma força mercenária19. Foi o Infante que, após o martírio dos religiosos às mãos do califa almóada, ordenou que se recolhessem e acondicionassem as relíquias; uma vez regressado a Astorga, onde gozava da protecção do rei de Leão, foi ele que as enviou para Santa Cruz de Coimbra, facto a que não terá sido alheio o seu capelão pessoal, que era cónego de Santa Cruz20. 19 Sobre o Infante D. Pedro, veja‑se: António BRÁSIO, “O Infante D. Pedro, Senhor de Majorca”, separata dos Anais [da Academia Portuguesa da História], 2ª série, vol. 9, Lisboa, 1959. Isabel Rosa DIAS, “D. Pedro Sanches e a lenda dos cinco mártires de Marrocos”, in O imaginário medieval, coord. Carlos Guardado da Silva [Turres Veteras: XVI], Colibri/ C.M. Torres Vedras/ Instituto A. Herculano, Lisboa ‑ Torres Vedras, 2014, 123‑31. 20 Principais fontes históricas sobre os cinco mártires de Marrocos, anteriores a 1600, em circulação em Portugal: A. Surgidas em âmbito franciscano — Chronica XXIV generalium Ordi‑ nis Fratrum Minorum, in Analecta Franciscana, tomus III, Typographia Collegii S. Bonaventurae, Ad Claras Aquas (Quaracchi), 1897, 15‑23, incipit: “Eodem tempore beatus Franciscus de voluntate Domini misit sex fratres...” (Biblioteca hagiographica latina antiquae et mediae aetatis [BHL], Société des Bollandistes, Bruxelles, 1898‑1911: nº 1171a). Tradução portuguesa medieval: José Joaquim NUNES (ed.), Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209‑1285), volume I, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1918, 23‑36. Uma versão da Passio iniciada por “Sanctorum martyrum Beraldi... festiva gaudia nobis” (BHL nº 1171) pode ser encontrada no Breuiarium secundum usum insignis monasterii sanctem crucis colimbriensis ordinis diui augustini, Germão Galhardo, Coimbra, 1531 (Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, R‑3‑16; acessível em linha no sítio http://almamater.uc.pt), fols. 302‑5. As legendas atribuídas a Frei Francisco de Sevilha (BHL nº 1172) e a Jean Tisserand (BHL nº 1170) foram publicadas por Alexandre HERCULANO (ed.), Portugaliae Monumenta Historica a saeculo octavo post Christum usque ad quintumdecimum iussu Academiae Scientiarum Olisiponensis edita, Scriptores.Volumen I, fasciculus I, Typis Academicis, Olisipone, 1856 [http://purl.pt/12270], 104‑16 (respectivamente: 105 ‑13 e 113‑16). Frei MARCOS DE LISBOA, Primeira parte das Chronicas da orde[m] dos frades Menores do seraphico padre sam Francisco, seu instituidor, & primeiro ministro geral. Que se pode chamar Vitas patru[m], dos Menores, 2ª ed., Lisboa, 1566 [http://purl.pt/14772], Livro quarto, fols. 132v‑143v. B. Surgidas em âmbito cortês — Crónica de 1419 (lições dos principais manuscritos e edição crítica moderna): Artur de Magalhães BASTO (ed.), Crónica de cinco reis de Portugal, vol. I, Livraria Civilização ‑ Editora, Porto, 1945, 228‑48. Carlos da Silva TAROUCA, Crónicas dos sete primeiros reis de Portugal. Edição crítica pelo académico de número —, 3 vols., Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1952‑1953, vol. I, 198‑207. Adelino de Almeida CALADO, Crónica de Portugal de 1419. Edição crítica com introdução e notas de —, Universidade, Aveiro, 1998, 113‑19. Ruy De PINA, Chronica do muito alto, e muito esclarecido principe D. Afonso II, terceiro rey de Portugal / composta por —, Officina Ferreyriana, Lisboa, 1727 [http://purl.pt/310], 18‑28. C. Síntese de origem crúzia — António Gomes da ROCHA MADAHIL (ed.), Tratado da vida e martírio dos cinco Mártires de Marrocos. Texto arcaico reim‑ presso de harmonia com o único exemplar conhecido, com introdução, notas e índice de —, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1928. Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 425 Segundo as crónicas, os mártires operaram um prodígio pouco depois da chegada das suas relíquias. Trata‑se de um prodígio musical: «dom Pedro Nunez, canonico do dito moesteiro de Santa Cruz e comfessor da sobredita rainha [D. Urraca], claro em santidade, vyo fraires menores sem comto vinir ao coro, antre os quaaes era huum que preçedia com grande solenidade, e depois outros çinquo com homrra singullar que tinham excellemcia antre os outros. E emtrarom todos ao coro em preçiçom e camtarom as matinas com mellodia e camto que sse nom poderia dizer. E aquelle dom Pedro canonico, seendo todo espamtado, preguntou a huum delles que ou a que ou por quall lugar e[n] tall ora tantos frairees aviam entrado, como todas as portas do moesteiro estevessem çarradas. O quall lhe respomdeo: Todos nós outros quantos aquy vees fomoos frairees menores e agora gloriossos reinamos com Jesu Christo, e aquelle que vees estar com tanta ponpa he sam Framçisquo, o qual tamto desejaste veer em aquesta vida, e aquelles outros çinquo frades que teem exçelemçia sobre os outros som os frairees que forom mortos por amor de Jesu Christo em Marocos e estam emtarrados em este moesteiro [...]»21. B — Iconografia primitiva Infelizmente, a urna inicialmente elaborada para apresentar condignamente estas relíquias em Santa Cruz não sobrevive, e ignora‑se o programa iconográfico que poderia ter‑lhe estado associado. Independentemente da fortuna das caixas originais e da urna subsequente, a família real não deixou entretanto de se encomendar à intercessão dos mártires. A Infanta D. Teresa (antiga rainha de Leão), irmã e aliada do Infante D. Pedro, conseguiu obter parte das relíquias, pouco tempo depois da sua chegada a Coimbra, para o mosteiro de Lorvão (cerca de 20 km a nordeste), onde residia. O relicário primitivo em Lorvão não sobrevive. As relíquias foram depositadas na igreja em lugar de destaque, na capela ‑mor, à mão direita do altar. Mais tarde, entre 1290 e 1317, durante o abadessado de Constança Soares, foi encomendada uma arca esculpida 21 Crónica da Ordem dos Frades Menores, cit., 35‑36. Há relato correspondente na Crónica de cinco reis de Portugal, cit., 241‑43, nos textos franciscanos do final do século XV (A. HERCULANO, op. cit., 112, 115), em Ruy De PINA, Chronica, cit., p. 28, e no Breviário de Santa Cruz, fol. 302v. 426 Manuel Pedro Ferreira em pedra. Esta conserva‑se ainda no Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra (MNMC 578), cidade para onde foi transferida após a morte da última freira em 188722. A arca‑relicário encontra‑se, contudo, incompleta e danificada. Nas fotografias realizadas na primeira metade do século XX (Ex. 5), verifica ‑se que a figura mais à esquerda conservava a mão direita (que teria amparado um objecto perdido), a qual se apoiava sobre o pé esquerdo, colocado sobre o joelho oposto. Posteriormente, em data indeterminada, mão e pé desapareceram por fractura da pedra; mais recentemente o dano agravou‑se, vindo a afectar também o pulso direito e parte da perna esquerda (Ex. 6). Exemplo 5: Arca‑relicário dos cinco mártires de Marrocos, proveniente de Lorvão, no melhor estado de conservação documentado (foto da primeira metade do século XX, gentilmente cedida pelo Museu Nacional Machado de Castro) 22 Teresa de CASTELLO BRANCO, “As abadessas medievais de Lorvão: cronologia e esboço de identificação”, separata das Actas do 17º Congresso Internacional das Ciências Genealógica e Heráldica (Lisboa, 1986), Lisboa, 1990. Nelson Correia BORGES, Arte monástica em Lor‑ vão: sombras e realidade. Das origens a 1737, Fundação C. Gulbenkian / Fundação para a Ciência e Tecnologia, Lisboa, 2002, vol. I, 139, 146‑47. VV. AA., Guia de Portugal, 3º vol.: Beira, I: Beira Litoral, 3ª edição, Fundação C. Gulbenkian, Lisboa, 1993, 258, 373‑74. Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 427 Exemplo 6: Arca‑relicário no seu estado actual. Pormenor: zona esquerda (foto: M. P. Ferreira). O frontal da arca, única face trabalhada, remete certamente para o martírio africano, já que a passagem por Sevilha e o confronto dos frades com o emir local é um episódio pouco marcante em comparação com o destino final. À esquerda vê‑se, portanto, o califa de Marrocos, designado no tempo por Miramolim (Amīr al‑Mu'minīn, «Emir dos Crentes»); sob as restantes cinco edículas, outros tantos frades; todos os personagens se apresentam descalços23. É pacífico que o entorno representa um palácio islâmico (arcos trilobados suportados por colunatas com capitéis coríntios) dentro de uma cidade (casas com telhados inclinados dispostas sobre as arcadas), o que remete para o alcácer de Marraquexe; as interpretações suscitadas por este frontal têm sido, contudo, pouco esclarecedoras. Comecemos pelos frades, aos quais, em geral, pouca atenção foi dada. Aarão de Lacerda diz‑nos apenas que cada franciscano surge «no seu hábito característico, em atitudes diferentes, comunicando entre si, excepto o quinto — do lado esquerdo»24. A primeira descrição detalhada 23 Andar descalço era uma das características dos primeiros franciscanos (cf. Kajetan ESSER, Origines et objectifs primitifs, cit., 99‑100), embora na regra bulada de 1223 se admita já, excepcionalmente, o calçado. O facto de o califa estar descalço remete, por outro lado, para um contexto doméstico, informal. 24 AARÃO DE LACERDA, História da Arte em Portugal, vol. I, Portucalense Editora, Porto, 1942, 438‑39. 428 Manuel Pedro Ferreira na literatura alusiva deve‑se a Flávio Gonçalves: «dispostos em fila [à frente do califa], avultam os cinco franciscanos, todos de pé, descalços e enroupados nos hábitos. O da dianteira, de cabeça descoberta, ergue as mãos e põe os olhos no céu, aceitando o possível sacrifício. Atrás, os companheiros dialogam entre si, aos pares, manifestando também, em atitudes expressivas, a resolução de persistirem na sua fé. Só o último monge, ainda moço, toma uma atitude de quase indiferença — de rosto sereno e mãos enfiadas nas mangas do hábito»25. Recentemente Giuseppe Cassio retomou o tema: para este investigador, «o conjunto escultórico em alto‑relevo mostra uma única cena, organizada debaixo de uma galeria ritmada por seis colunelos esculpidos em vulto que sustentam elegantes arcos trilobados, sob os quais emerge o desfile dos cinco frades em “audiência” com o sultão de Marrocos, sentado no faldistório. [...] À sombra da galeria quatro frades conversam entre si com o intento de apoiar o companheiro que se dirige ao sultão; vestem o hábito preso nos flancos pelo cordão enquanto a cabeça está coberta por um capuz pontiagudo. [...] O único de cabeça descoberta no baixo ‑relevo conimbricense é São Berardo, o qual fala com o sultão – pois que, segundo a tradição, era capaz de falar a língua árabe – suplicando‑lhe, de mãos juntas, que abrace a fé cristã, simbolicamente anunciada pelo gesto de allocutio do companheiro que lhe está próximo». Quanto aos três frades que ladeiam este último, o autor não deixa de referir‑se sucessivamente «ao hábito levantado de um missionário que mostra os pés descalços, à mão aberta do seu vizinho (postura de acolhimento típica de tantas Nossas Senhoras da Anunciação), e aos braços ocultos entre as mangas do frade que se encontra na ponta direita, que se dirige ao confrade com um olhar sereno, quase satisfeito», considerando que se trata somente de «detalhes curiosos úteis para configurar o imaginário colectivo que levou o escultor a fabricar a primeira imagem oficial conhecida»26. Flávio GONÇALVES, “A representação artística dos «mártires de Marrocos»: os mais antigos exemplos portugueses”, separata da revista Museu, 2ª Série, n.º 6 (Dezembro de 1963), 20‑50, Porto, 1963, 11. 25 26 Giuseppe CASSIO, “Modelli da imitare e santi da acclamare. Tragedia e trionfo nell'iconografia dei protomartiri francescani tra Europa e Brasile”, in Dai protomartiri francesca‑ ni a Sant'Antonio di Padova. Atti della Giornata internazionale di studi. Terni, 11 giugno 2010, a cura di Luciano Bertazzo ‑ Giuseppe Cassio, Centro Studi Antoniani, Padova, 2011, 85‑166 [87 ‑88], e lâminas 1‑158, A‑G. JÜRGEN W. EINHORN, “Unter der Fuß gebracht. Todesleiden und Triumph der franziskanischen Märtyrer von Marokko 1220”, in Europa und die Welt in der Ges‑ Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 429 Todos estes comentadores supõem que se trata de uma cena única, colocada num mesmo plano espácio‑temporal, e que, assim sendo, o facto de os rostos das figuras estarem direccionados alternadamente para a esquerda e para a direita, formando pares, implica que os quatro frades no centro e à direita do frontal comunicam entre si. Não sabemos, no entanto, se a imagem esculpida tem carácter narrativo ou, pelo contrário, se limita a ilustrar o tema dos Mártires de Marrocos. Segundo François Garnier, uma imagem narrativa é constituída por um conjunto de elementos e de relações que apresentam um facto e contam uma história. Situada no espaço e no tempo, o desenrolar da acção lê‑se num sentido particular (normalmente da esquerda para a direita). A imagem temática escapa em todo ou em parte aos imperativos da distribuição temporal, centrando‑se, pelo contrário, nos conceitos. Mas esta distinção pode, na prática, ser menos nítida, pois o artista pode combinar ambas formas de expressão, o que é tanto mais provável quanto as imagens puramente narrativas são bastante raras antes do século XIV27. Na época gótica, a representação iconográfica tem na sua base uma codificação convencional de significados e um vocabulário visual restrito, que depois se multiplica em realizações muito ricas e variadas, que não excluem a audácia artística e, excepcionalmente, a invenção. A interpretação dos gestos e posições deve repousar no conhecimento da linguagem iconográfica do tempo, decifrada tendo em atenção as correlações e o contexto da representação. Vemos assim que o frade virado para o califa, avançando o pé esquerdo, acompanhado pela cabeça, junta as palmas das mãos com os dedos estendidos ligeiramente inclinados para cima, tendo os braços dobrados chichte. Festschrift zum Geburtstag von Dieter Berg, ed. R. Averkorn et alii, Bochum, 2004, 447‑83, descreve a urna de Lorvão em duas linhas apenas (agradeço a G. Cassio o envio da página correspondente). Outra publicação recente refere os mártires de 1220 só de passagem, ocupando‑se sobretudo dos mártires de Granada (de 1397), cuja legenda tem muitos pontos em comum com a dos mártires de Marraquexe: Alejandro Recio VEGANZONES, “Primeros franciscanos y clarisas en las fronteras de Jaén y Córdoba: sus protomártires e iconografía en la evocación martirial de su V y VI Centenario”, in El franciscanismo en Andalucía: conferencias del III Curso de Verano San Francisco en la cultura y en la historia del arte andaluz (Priego de Córdo‑ ba, 1 a 10 de agosto de 1997), ed. Manuel Peláez del ROSAL, Obra Social y Cultural CajaSur, Córdoba, 1999, 495‑534. 27 François GARNIER, Le language de l'image au Moyen Age [Vol. I]: Signification et Sym‑ bolique, Le Léopard d'Or, Paris, 1982, 40, 89. 430 Manuel Pedro Ferreira junto ao corpo. O seu gesto é o da prece e da confiança em Deus; a sua posição corporal representa um movimento, a interpretar como símbolo de deslocação geográfica e de intencionalidade missionária28. Ladeando o monarca e sendo o único frade em movimento e de cabeça descoberta, e ainda o primeiro na ordem convencional de leitura, surge como líder do grupo. Todos os outros têm postos os capuzes do hábito, como era devido, salvo especial ocasião29. O segundo frade tem a mão esquerda levantada com a palma aberta virada para o exterior, sinal da disposição receptiva e do acolhimento em Deus; a mão direita faz o sinal da bênção, de evocação divina ou de locução eficaz: virada para fora, com os três primeiros dedos estendidos (polegar afastado, indicador e médio juntos) e anelar e mindinho recolhidos30. O terceiro frade tem as mãos postas no hábito; o quarto levanta apenas a mão direita, com a palma aberta virada para fora; o último tem as mãos recolhidas nas mangas. A explicação desta variedade é, plausivelmente, a vontade de representar o estatuto eclesial dos frades. De facto, de acordo com a Crónica de Portugal de 1419 e os relatos de frei Francisco de Sevilha e frei Marcos de Lisboa, o principal pregador e único frade fluente em língua árabe era Beraldo, sacerdote famoso pela sua eloquência; na Crónica dos 24 Gerais, só ele surge a tomar a palavra; faz sentido que seja figurado como líder do grupo. O único outro presbítero era frei Otão; faz sentido que se lhe tenha reservado o sinal da bênção. Frei Pedro tinha a categoria de diácono, justificando a mostra de uma só mão; e tanto frei Ajuto como frei Acúrsio eram irmãos leigos, o que lhes retiraria autoridade gestual, pelo que se absteriam do uso simbólico das mãos31. A arca representa, pois, por esta ordem: frei Beraldo, frei Otão, frei Adjuto ou Acúrsio, frei Pedro e frei Acúrsio ou Adjuto. Trata‑se de uma série de retratos individuais justapostos; não é preciso imaginar uma cena de conversação, que na verdade teria sido bastante despropositada. 28 Cf. François GARNIER, op. cit., 129, 212‑13. 29 Giuseppe CASSIO, op. cit., ibidem. Cf. Adolphe Napoléon DIDRON, Iconographie chrétienne. Histoire de Dieu, Imprimerie royale, Paris, 1843, 415‑16. Marcello ANGHEBEN, “Le geste d'allocution. Une représentation polysémique de la parole (Ve‑XIIe siècles)”, Iconographica, 12 (2013), 22‑34. 30 31 Carlos S. TAROUCA, Crónicas, cit., p. 199. A. HERCULANO, op. cit., 105. MARCOS DE LISBOA, Primeira parte das Chronicas, cit., fol. 302v. Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 431 Mais difícil é interpretar a figuração do emir. Em geral, a decifração da imagem tem dependido da interpretação do frontal como cena narrativa de conjunto, unificada no espaço e no tempo. Tomás Lino da Assunção imagina o califa «insolente» perante frades representados com «uma leve ponta de ironia comica»32. Para António Gonçalves, «os pacientes esperam a sentença do suplício, que o sátrapa vai pronunciar»33. Vergílio Correia afina pelo mesmo diapasão, imaginando um «rei que decide» e «cinco frades que esperam a sentença real»34. José da Cunha Saraiva limita‑se a parafrasear os dois últimos autores35. Aarão de Lacerda vê já chegado o momento da decisão, com «a figura impertinente do rei ou juiz que condena os monges à morte, numa atitude interrogativa, um tanto irónica, na cabeça envolvida pelo turbante, e que se inclina para ouvir, com uma perna cruzada sôbre a outra, deixando indiferente o frade do extremo oposto, de mãos encafuadas nas mangas», enquanto o frade mais próximo «ergue as mãos em prece»36. Para Reinaldo dos Santos «o rei, à esquerda, com os cabelos anelados à maneira do século XIII, decide do destino dos franciscanos»37. Segundo Flávio Gonçalves, «o Miramolim, de túnica longa e turbante na cabeça, aparece‑nos sentado na primeira edícula, cruzando indolentemente uma perna, apesar da expressão atenta e reflexiva do rosto; parece rebater, num gesto, os argumentos dos frades — e medita a sentença»38. Na perspectiva de Nelson Borges, o Miramolim toma «uma atitude desdenhosa» perante os frades «que comunicam expressivamente entre si pela variada linguagem gestual»39. Para Milton Pacheco, o califa, arrastado sem querer para uma disputa teológica, está a ser acusado de idólatra por frei Beraldo, o único conhecedor da língua árabe, que no entanto aparece «em atitude de ma32 Tomás Lino da ASSUNÇÃO, As freiras de Lorvão, França Amado, Coimbra, 1899, 32. António Augusto GONÇALVES, Estatuária lapidar no Museu Machado de Castro, Coim‑ bra, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1923, 51. 33 34 Vergílio CORREIA, Três túmulos, Portugália, Lisboa ‑ Rio de Janeiro, 1924, 32. José da Cunha SARAIVA, “O século do Tosão‑de‑ouro em Portugal. Segunda parte: período artístico e monumental”, Arqueologia e História, 7 (1929), 41‑ 80 [63‑64]. 35 36 AARÃO DE LACERDA, op. cit., ibidem. Reinaldo dos SANTOS, A escultura em Portugal, vol. I, Academia Nacional de Belas ‑Artes, Lisboa, 1948, 19. 37 38 Flávio GONÇALVES, op. cit., ibidem. 39 Nelson BORGES, op. cit., 146. 432 Manuel Pedro Ferreira nifesta reverência à autoridade do tirano»40. Finalmente, para Giuseppe Cassio, o emir reage à proposta de Beraldo com «uma recusa clara, que o escultor realça através da cabeça reclinada para trás e o braço erguido ao interlocutor»41. Todas estas interpretações, excepto a última, supõem que o artista procurou representar um julgamento ou, no mínimo, um debate. Nenhuma das hipóteses é congruente com os relatos históricos, nos quais o rei mouro surge sempre irracionalmente assanhado contra os frades, os quais, antes de condenados, aparecem diante dele com marcas de tortura, nus e de mãos atadas42. Também a linguagem gestual usada na arca seria inadequada para esse tipo de representação: a figura do primeiro frade não tem nada a ver com a maneira como na época gótica se representava a argumentação ou a pregação43; a do califa não tem nada a ver com a maneira como se representava a ponderação44 ou a decisão45. Ainda que se ponha a hipótese de se tratar de um encontro anterior ao julgamento final, é legítimo duvidar que as duas edículas da esquerda formem uma unidade, com frei Beraldo a ser recebido pelo emir ou a dirigir‑lhe a palavra. Na verdade, o frade tem o rosto a três quartos (e não virado para o monarca) com os olhos aparentemente absortos no infinito, a boca fechada, e uma posição corporal contrária ao que em toda a cristandade se esperaria numa audiência, em sinal de respeito hierárquico (os franciscanos estavam obrigados a respeitar 40 Milton Pedro Dias PACHECO, “Os proto‑mártires de Marrocos da Ordem de São Francisco: muy suave odor de sancto martyrio”, Revista Lusófona de Ciência das Religiões, 15 (2009), 85‑108 [93]. 41 Giuseppe CASSIO, op. cit., 88. 42 Veja‑se por exemplo a Crónica de Cinco Reis de Portugal, cit., p. 236. 43 François GARNIER, op. cit., 170, 211; Marie‑Paule CHAMPETIER, “Faits et gestes du prédicateur dans l'iconographie du XIIIe siècle au début du XVe siècle”, Médiévales, 16‑17 (1989), 197‑208; Jean‑Claude SCHMITT, La raison des gestes dans l'Occident médiéval, Gallimard, Paris, 1990, 278‑87. 44 Vejam‑se as representações de jogadores pensativos, cristãos ou muçulmanos, no Libro de Ajedrez de Alfonso X, o Sábio, reproduzidas, p. ex. in: César Bordons ALBA, “El ajedrez, juego de reyes”, Alcanate 5 (2006‑2007), 191‑263; Jorge Nuno SILVA, O Livro de Jogos de Afonso X, o Sábio, Apenas Livros, Lisboa, 2013, 58 [folio 12r], 61 [folio 14r], 77 [folio 24r], 87 [folio 30r]. 45 François GARNIER, op. cit., 167, 185, 189. Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 433 o anfitrião): um joelho no chão 46. Também a representação de uma «recusa», tal como nos surgiria na figura do califa, seria totalmente irregular face aos exemplos na iconografia europeia que ilustram situações comparáveis: o braço de quem recusa é o mais das vezes esticado, e a mão surge ora fechada, ora com a palma virada para cima ou para o exterior, nunca virada para o tronco47. Parece assim que devemos considerar a edícula da esquerda como encerrando um significado próprio, independente da figuração dos frades. Segundo Garnier, nos séculos XI a XIII a posição sentada, sempre que não é imposta por uma actividade, «é reservada a Deus e aos personagens, reais ou alegóricos, que gozam de uma superioridade hierárquica e de um poder: o rei, o papa, o bispo, o juiz exercem as suas funções sentados»48. A perna traçada, que foi vista pelos autores acima citados como sinal de indolência, de insolência ou de desdém, é de facto nesta época, do ponto de vista iconológico, um atributo do poder temporal, e em especial do poder judicial49; na Península Ibérica aparece a caracterizar um Sultão no seu trono (Ex. 7), mas também um trovador que impõe aos subordinados o seu juízo estético50. 46 Veja‑se, por exemplo, a iluminura que representa um mouro dirigindo‑se ao sultão do Egipto sentado no trono, no “códice rico” (T) das Cantigas de Santa Maria, Real Monasterio de El Escorial, MS. T.I.1 (CSM nº165). Consulte‑se ainda o relato do encontro do franciscano Guilherme de Rubrouck com o imperador mongol, ocorrido em 1254, citado por Michèle GUERET ‑LAFERTE, “Les gestes de l'autre”, Le geste et les gestes au Moyen Age, Presses Universitaires de Provence, Aix‑en‑Provence, 1998, 237‑53. Disponível na Internet: <http://books.openedition. org/pup/3509> (consultado a 17 de maio de 2014). 47 François GARNIER, op. cit., 151, 175, 189, 193; id, Le language de l'image au Moyen Age. Vol. II: Grammaire des gestes, Le Léopard d'Or, Paris, 1989, 99‑100, 149‑51. François GARNIER, op. cit., Vol. I, p. 113. 48 49 François GARNIER, op. cit., Vol. I, p. 229; Vol. II, 158‑59. Vejam‑se a ilustração da Cantiga de Santa Maria nº 165 no códice T, atrás referida, e a primeira iluminura do Cancioneiro da Biblioteca do Palácio Real da Ajuda (c. 1300), segundo a leitura de Ria LEMAIRE, “Femmes, jongleurs et troubadours: La mise‑en‑forme du discours médiéviste”, in Les voix des femmes dans les cultures de langue portugaise: penser la différence, Actes du colloque international du Séminaire d’Etudes Lusophones, Maria Graciete Besse (dir.), Université Paris‑Sorbonne, 2008: http://www.crimic.paris‑sorbonne.fr. 50 434 Manuel Pedro Ferreira Exemplo 7: Pormenor da ilustração da Cantiga de Santa Maria nº 165 no «códice rico» (El Escorial, T.I.1: facsímile) No relicário de Lorvão o califa tem a cabeça inclinada para trás e a mão esquerda com a palma virada para dentro. Esta posição dificilmente pode ser a de um carrasco que segura o gládio; dado que o polegar surge desalinhado com os restantes dedos, é impossível que a mão segurasse um atributo simbólico do poder monárquico, como seja um corpo esférico (Ex. 8)51. A figuração também nada tem a ver com a representação con51 François GARNIER, op. cit., Vol. II, 163‑67, e figuras 78, 120. O corpo esférico (maçã de ouro?) surge também na iconografia ibérica da época, na representação do rei Alfonso XI (Madrid, Biblioteca Nacional, ms. Res. 9) reproduzido in Ana Domínguez RODRÍGUEZ, “Retratos de Alfonso X en el Libro de los Juegos de Ajedrez, Dados y Tablas”, Alcanate 7 (2010‑2011), 147‑161 [151]. Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 435 vencional do insensato ou do herege52. Poderia pôr‑se ainda a hipótese de que pudesse representar as aflições físicas sofridas pelo califa, por castigo divino, após o martírio; mas as crónicas são unânimes ao afirmar que a paralisia afectou o lado direito e que os membros secaram, o que aqui não é sugerido. Exemplo 8: Arca‑relicário de Lorvão. O califa (foto: M. P. Ferreira). 52 Joanna DOBKOWSKA‑KUBACKA, “Przedstawienia heretyka w sztuce łacińskiego średniowiecza” [“Representation of Heretics in Western Art of the Middle Ages”], Ikonotheka 18 (2005), 25‑49. ANA Maria GRUIA, “Fools, Devils, and Alchemy: Secular Images in the Monastery”, Studia Patzinaka, 6 (2008), 129‑45. 436 Manuel Pedro Ferreira Em suma, nenhuma tipologia iconográfica directamente relacionada com a história tradicional do martírio parece encaixar no facto escultórico. Assim sendo, tomei a liberdade de imaginar explicações alternativas. A primeira hipótese, ainda apoiada na narrativa hagiográfica, é ter o escultor usado as convenções de forma criativa, gerando significado através do contraste com um gesto exemplar. Na representação de um rei que acolhe a demanda de um súbdito, que encontramos no caderno do arquitecto Villard de Honnecourt, da primeira metade do século XIII, o rei inclina a cabeça e mostra a palma da mão, em sinal de receptividade ou aquiescência (Ex. 9)53. Exemplo 9: Rei cristão em audiência, segundo Villard de Honnecourt 53 Album de Villard de Honnecourt, architecte du XIIIe siècle: reproduction des 66 pages et dessins du manuscrit français 19093 de la Bibliothèque nationale, Berthaud Frères, Paris, 1906, Pl. XXV. Eduardo CARREIRA (ed.), Estudos de iconografia medieval: o caderno de Villard de Honnecourt, arquiteto do século XIII, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1997, Lâmina 13. Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 437 Ora, poderíamos supor que artista quis conciliar na figuração do Miramolim a sua precedência hierárquica e poder temporal, e a sua sanha contra os missionários. A posição sentada, a perna cruzada, e possivelmente também um ceptro ou espada que a mão direita primitivamente teria segurado, representariam o estatuto de rei; e a cabeça torcida, com a palma da mão também torcida e virada para dentro, representariam a sua ira. Embora corramos aqui o risco de valorizar excessivamente a inclinação da cabeça relativamente à linha dos ombros, não nos podemos esquecer de que no gesto convencional «todo o movimento de cabeça, de mão, de braço ou de perna pode tornar‑se um sinal simbólico, independentemente de uma eventual eficácia e por vezes em oposição à simples verosimilhança», e que na linguagem iconográfica medieval a instabilidade e o desequilíbrio revelam uma perturbação do campo do Bem54. Contudo, se olharmos para o rosto do califa, as sobrancelhas estão em paz, e a boca é neutra, estando mais próxima do sorriso do que da zanga: nada que se possa plausivelmente inscrever na expressão medieval da ira. Conclui‑se que esta nossa hipótese carece, afinal, de sustentação. Resta‑nos considerar a possibilidade de que o programa iconográfico da arca‑relicário de Lorvão se apoie, não na legenda dos mártires tal como foi consagrada pela tradição, mas em informações mais próximas da fonte. Na verdade, a história dos mártires recolhida por escrito não é anterior, no caso franciscano, ao terceiro quartel do século XIV55, e no caso português, ao século XV, constituindo‑se com base em testemunhos dispersos recolhidos na crónica de 1419, o mais antigo dos quais remontaria, alegadamente, ao tempo do bispo de Lisboa D. Mateus (1259‑1282)56. As fontes de Santa Cruz são tardias e, no que respeita ao 54 François GARNIER, op. cit., Vol. I, 43‑44 (cit.), 120, 141‑43. Nos anos imediatamente posteriores ao martírio marroquino a Ordem e o papado procuraram pôr um travão ao desejo de imitação dos missionários de Marrocos, visto como potencialmente suicidário, o que implicou travar também a formalização escrita de uma comemoração que tinha tanto de inspiradora como de perigosa nas suas consequências: cf. Isabelle HEULLANT ‑DONAT, “Les franciscains et le martyre au XIIIe siècle”, in Dai protomartiri francescani a Sant'Antonio di Padova, cit., 11‑29 [24‑28]. Luciano BERTAZZO, “I protomartiri francescani tra storia e agiografia”, ibidem, 30‑47 [35‑40]. 56 Sobre a tradição manuscrita relativa aos protomártires franciscanos, veja‑se Luciano BERTAZZO, op. cit., e Isabel Rosa DIAS, “La légende des cinq martyrs franciscains du Maroc (1220) dans son contexte portugais”, Franciscana. Bolletino della Società internazionale di studi frances‑ cani 11 (2009), 1‑28. Foram também consultados: Andrés IVARS, “Los mártires de Marruecos de 1220 en la literatura hispano‑lusitana”, Archivo Ibero‑americano. Estudios históricos sobre la or‑ den franciscana en España y sus misiones, tomo XIV: Nº 40 (Julio‑Agosto 1920), 344‑81. António 55 438 Manuel Pedro Ferreira relato do martírio (já que os milagres são um assunto à parte), dependem das narrativas entretanto elaboradas no exterior do mosteiro: hagiografia franciscana (BPMP 52 e Breviário de 1531) e cronística cortês (BPMP 886); essas narrativas encontram‑se fundidas no Tratado mandado compor pelo prior de Santa Cruz e impresso em 1568. Ora, havendo um conhecimento directo dos hábitos do califa por parte do Infante D. Pedro e do seu capelão, esse conhecimento foi certamente transmitido aos outros cónegos de Santa Cruz por via oral. Existiu ainda um relato escrito correspondente, copiado num livro alegadamente pertencente ao Infante D. Pedro depositado no convento franciscano fundado pela sua irmã Sancha em Alenquer em 122257. Estes testemunhos não podiam deixar de ser partilhados com o artista ou artistas que, em Santa Cruz, primeiro terão ilustrado o tema da missão a Marrocos na urna de pedra mandada fazer na década de 1220 para encerrar as relíquias dos franciscanos58. Dona Sancha estava então em frequente contacto com a sua irmã Teresa em Lorvão, onde recrutou parte das freiras que formaram a comunidade inicial do mosteiro de Celas (Coimbra) em 122159. A narrativa de D. Pedro, a história oral crúzia e, MADAHIL, Tratado, cit., xxxvi‑xxxvii. Mário MARTINS, “O ciclo franciscano na nossa espiritualidade medieval”, Biblos. Revista da Faculdade de Letras, vol. 27 (1951), 141‑247 [218‑23]. Henri GUERREIRO, “Del San Antonio de Padua a los cinco mártires de Marruecos. Ruy de Pina y Mateo Alemán”, Criticón 31 (1985), 97‑141. Adelino CALADO, Crónica de Portugal de 1419, cit., vii‑xxx. Filipe Alves MOREIRA, “A Crónica de Portugal de 1419: Fontes, Estratégias e Posteridade”. Dissertação de Doutoramento, Faculdade de Letras, Universidade do Porto, 2010 (pesquisável in: http://repositorio‑aberto.up.pt). A historiografia franciscana tardia é tratada por A. Ivars, que julga com severidade autores como, por exemplo: FR. FRANCISCO DE SAN JUAN DE EL PUERTO, Mission Historial de Marruecos, en que se trata de los martirios, persecuciones, y trabajos, que han padecido los Missionarios, y frutos que han cogido las Missiones, que desde sus principios tuvo la Orden Seraphica en el Imperio de Marruecos..., Francisco Garay, Sevilla, 1708, 88‑98. 57 Crónica de cinco reis de Portugal, cit., p. 236. Isabel DIAS, “La légende”, cit., p. 19. Flávio GONÇALVES, “A representação artística”, cit., 7‑9, demonstrou que o rei Afonso II mandou fazer uma urna de pedra para as relíquias de Santa Cruz de Coimbra e que esta urna foi só concluída postumamente, por volta de 1230. A urna era ainda visível no século XVII, tendo o cónego D. Marcos da Cruz registado que esta apresentava, em relevo, a história do martírio. A presença de uma superfície esculpida explicaria o facto de a conclusão do relicário ser vários anos posterior à morte do rei. O facto de a urna ter sido adjectivada, no século XV, como preciosa, poderá aludir aos relevos e à sua policromia. A hipótese de a urna ser despida de qualquer ornamento deixaria por explicar o tempo que levou a ser concluída e obrigaria a considerar como fantasiosa a sua descrição por D. Marcos da Cruz. 59 Maria do Rosário MORUJÃO, “O mosteiro de Celas em tempos medievais”, Cistercium 51 (1999), 1083‑1103. 58 Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 439 plausivelmente, o programa iconográfico da primeira urna de pedra teriam sido do conhecimento da Infanta Teresa, e consequentemente das freiras de Lorvão. O artista que esculpiu a arca‑relicário de Lorvão teria pois tido acesso a uma narrativa oral e/ou a um modelo escultórico pouco posteriores ao martírio, embora não se possa excluir a possibilidade de o programa iconográfico a que obedeceu ter sido contaminado por outras fontes. A suposição de que o artista se baseou em informações de primeira mão (ou, mais plausivelmente, num modelo iconográfico crúzio delas dependente) é suportada por dois indícios. O primeiro é o estilo dos hábitos franciscanos, com capuz pontiagudo cosido à túnica: corresponde a uma época anterior a 1260, ano a partir do qual se generaliza progressivamente um capuz redondo, ligado a uma gola ampla (redonda sobre o peito e bicuda sobre as costas) independente da túnica60. O segundo indício, não menos relevante, é o califa ser representado sem barba, contrariamente a todas as outras representações ocidentais de reis muçulmanos de época gótica61. Ora, estima‑se que em Janeiro de 1220 o califa não teria mais do que dezassete anos, talvez incompletos62; e um rapaz era necessariamente representado na época medieval como um homem imberbe63. Isto abre o caminho para outra explicação, algo especulativa mas com o atractivo da simplicidade: o escultor procurou representar o Miramolim segundo o modelo ou a informação histórica de que dispunha, e não segundo a demonização que viria a dar‑se na transmissão da legenda ao longo dos séculos XIII e XIV. Uma fonte árabe descreve Yūsuf II como «um jovem Pierre HELYOT, Histoire des ordres monastiques, religieux et militaires, et des congréga‑ tions séculières de l'un & de l'autre sexe, qui ont été établies jusqu'à présent [...], Tome septième. Cinquième Partie, qui comprend les Ordres de saint François, & autres qui ont des Règles parti‑ culières, Coignard, Paris, 1721, 35‑36. Consultado em linha (Google eBook). Frei TOMÁS GÁLVEZ, “O hábito franciscano, uma curiosa história da veste medieval”, texto de 2004 traduzido por Frei Marcelo Veronez para http://www.franciscano.org.br (22/03/2014). 61 Vejam‑se por exemplo, nas Cantigas de Santa Maria, as ilustrações das CSM 28 e 165; o próprio texto da CSM 28 fala de um “soldan barvudo”. A tradição é internacional, como se pode verificar nos conhecidos frescos de Giotto que retratam o encontro de S. Francisco com o Sultão do Egipto (“prova do fogo”). A caracterização do muçulmano como homem barbudo não se limitava aos reis: também na CSM 192 se fala de um “mouro barvudo, falss' e descreúdo”, e não falta barba ao instrumentista árabe representado no “códice dos músicos” (E) do Real Monasterio de El Escorial, b.I.2, junto à CSM 120. 62 Ambrosio Huici MIRANDA, Historia política del Imperio Almohade, vol. II, Editora Marroquí, Tetuán, 1957, 437‑38. 60 63 François GARNIER, op. cit., Vol. II, 88‑89. 440 Manuel Pedro Ferreira de boa estatura, tez rosada, feições formosas, nariz aquilino e ampla cabeleira», que logo após a sua entronização em Dezembro de 1213 foi poupado à política activa por não ter chegado ainda à puberdade (teria então, aproximadamente, dez anos de idade); nunca saiu de Marraquexe, a não ser uma vez para cumprir uma obrigação ritual, e era um líder débil e brando, mais dado aos entretenimentos do palácio do que às preocupações do governo64. A associação do califa à vida palaciana é confirmada noutra fonte, cujo autor alega que ao herdar o trono ele era uma criança tímida, e que os reis almóadas do tempo, «encerrados nos seus alcáceres, não se ocupavam dos negócios mais graves, antes se davam ao vinho, à música e aos prazeres»65. A menção à música aparece num contexto de depreciação moral dos últimos almóadas ao serviço do panegírico político da dinastia seguinte, os benemerins, cuja emergência coincide exactamente com o reinado de Yūsuf II. Não obstante o carácter convencional da associação pecaminosa, presente em vários passos da crónica, entre a música de corte, os jogos, o consumo de álcool e a luxúria, depreende‑se que a música era vista como um traço da vida de corte em Marraquexe, e por extensão, um traço apto a representar o jovem califa. Neste contexto, aquilo que falta no colo do califa não poderia ser um instrumento de braço central, cujas cordas a mão esquerda estaria em posição de premir? Não há falta, nesta época, de ilustrações com figuras de músicos com o braço esquerdo levantado, e a mão virada para dentro de modo a estabelecer o comprimento da secção sonante das cordas que correm ao longo do braço, correspondentes às notas que um plectro ou arco, na mão direita, faria ouvir. Esta figuração tanto pode ser muçulmana como cristã66. De acordo com a fotografia mais antiga da arca‑relicário, a mão 64 IBN ABI ZAR', Rawd al‑Qirtas. Traducido y anotado por Ambrosio Huici Miranda, 2ª ed., Vol. II, [Anubar], Valencia, 1964, 469‑73 [470]. Confrontado com Al‑Bayan al‑Mughrib, traduzido e anotado por Ambrosio Huici [Miranda]: El Anónimo de Madrid y Copenhague (texto árabe y traducción), Valencia, Hijo de F. Vives Mora, 1917, 124‑29. 65 ABEN ABI ZARA, El cartás: Noticia de los reyes del Mogreb e historia de la ciudad de Fez, por —, traducción castellana con prólogo y notas por A. Huici [Miranda], Hijos de F. Vives Mora, Valencia, 1918, 294 (ver também 278-79, 287, 289). 66 Alguns exemplos: A. Artistas muçulmanos — Tecto da Capela Palatina em Palermo (reproduções in Alessandro VICENZI [ed.], La Cappella Palatina a Palermo, Franco Cosimo Panini Editore, Modena, 2011, 42, 48‑49, 95). Outros testemunhos: figuras 21‑26, 42 e 68 in Basilio Pavón MALDONADO, Iconografía hispanomusulmana (texto de 2013 acedido a 12/4/2014 in www.basiliopavonmaldonado.es). B. Artistas cristãos — Rei David esculpido num capitel da Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 441 direita do Miramolim apresentava‑se fechada, com o polegar e o indicador unidos, posição adequada a segurar um plectro (maneira mais vulgar de pulsar um instrumento de corda na Idade Média). Havia espaço para colocar uma peça escultórica independente, representando um instrumento de pequenas dimensões, entre o tronco e as mãos do califa. Esta possibilidade permite a reconstituição hipotética da figura do Miramolim enquanto instrumentista: atribuímos‑lhe para o efeito um pequeno alaúde piriforme com quatro ordens duplas de cordas (Ex. 10)67. Exemplo 10: Reconstituição hipotética do retrato do jovem califa Yūsuf al‑Mustansir na arca‑relicário de Lorvão catedral de Jaca (século XII), cf. http://es.wikipedia.org/wiki/Catedral_de_San_Pedro_de_Jaca; reprodução in Románico 10 (Junio 2010), 49. Fresco com anjos músicos (século XIII, posteriormente repintado) na Capela de S. Martinho da Catedral de Salamanca, e pórtico da Capela de São Tomás, com reis músicos (século XIV), na Colegiada de Toro (em ambos os casos há várias imagens disponíveis na Internet). 67 O instrumento é de um tipo representado no friso de instrumentistas do túmulo de D. Inês de Castro e outros testemunhos do século XIV (vd. Manuel Pedro FERREIRA, Aspectos da mú‑ sica medieval no Ocidente Peninsular, vol. I: Música palaciana, Imprensa Nacional / Fundação C. Gulbenkian, Lisboa, 2009, 315‑16); para a forma do cravelhal, inspirámo‑nos nos grandes alaúdes e nos rababs que ilustram o “códice dos músicos” (El Escorial, b. I. 2) das Cantigas de Santa Maria do rei Afonso X, o Sábio: iluminuras das CSM 30, 110 e 170. 442 Manuel Pedro Ferreira A interpretação acima proposta coloca duas dificuldades, as quais não são, porém, insuperáveis. Primeiro, teremos de supor que se perdeu, juntamente com as secções adjacentes, o instrumento que o Miramolim teria apoiado no colo. Sendo muito provável, embora indemonstrável, que a mão direita estivesse a amparar um objecto, nada impede que este fosse um instrumento musical, o qual tem a vantagem de justificar cabalmente a posição da mão esquerda, de outro modo iconograficamente inconsequente, e também a inclinação da cabeça, devido ao espaço requerido pelo cravelhal; a perna traçada ajudaria, naturalmente, a amparar o instrumento. A solução musical resolve, com grande simplicidade, todos os problemas colocados pela posição em que o califa surge representado. A segunda dificuldade é a figuração do califa enquanto músico, num contexto que aparentemente não favorece esse tipo de representação. Já vimos que a escultura de Lorvão é verosímil como retrato histórico deste califa em particular: um rapaz dado testemunhos dispersos, o mais antigo dos quais 1459, distracções palacianas. Mas temos ainda que considerar o simbolismo que os instrumentos musicais, no Livro dos Salmos, ganharam em contexto cristão. Cithara, no latim medieval, aplicava‑se a qualquer cordofone com caixa de ressonância colocada na parte inferior do instrumento. Todos os cordofones de braço central entram nesta tipologia geral. A ter havido um instrumento apoiado no colo do califa, ele seria do tipo cithara (como, por exemplo, o alaúde árabe, ou a cítola medieval europeia). Uma longa tradição exegética que parte de Santo Agostinho interpreta a cithara de David, onde as cordas são esticadas como Cristo na cruz, como símbolo da Paixão e da mortificação corporal68; o martírio é a capacidade de sofrer na carne, em nome de Cristo, a sua Paixão. O califa a pulsar as cordas de uma cithara poderia ser visto como prefiguração de um martírio, de que ele próprio viria a ser o instru- 68 Frederick P. PICKERING, “The Gothic Image of Christ. The sources of medieval representations of the crucifixion”, in Essays on Medieval German Literature and Iconography, Cambridge U. Press, Cambridge, 1980, reprinted 2010. Consultado na Internet através da Google books. Como exemplos da tradição exegética dos salmos 32 e 56, citem‑se: SANCTI AURELII AUGUSTINI, Opera Omnia: Enarrationes in Psalmos, in Patrologiae Cursus Completus. Series Latina, ed. Jacques‑Paul Migne, vol. 36/iv, 1865, cols. 279‑81, 671‑72. BRUNO CARTHUSIANORUM, Expositio in Psalmos, ibid., vol. 152 /i, 1853, cols. 763B, 898A. Volumes consultados através do sítio http://latina.patristica.net. Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 443 mento, pelo menos enquanto juiz terreno (em contexto alegórico, a perna traçada cobraria esse significado). Ora, no Ofício dos Cinco Mártires de Marrocos, composto no mosteiro de Santa Cruz na segunda metade do século XV, a primeira antífona do 3º nocturno diz o seguinte: Confessi Deo cithara / mortificationis / contemnunt facta barbara / perversæ nationis, ou seja, «os confessos em Deus, pela cítara da mortificação, desdenham os actos bárbaros de nações perversas»69. Esta simbologia foi, portanto, aplicada aos mártires franciscanos. Assim sendo, um califa a tocar, por hipótese, um alaúde, retrataria não só o seu apego à vida de corte, historicamente confirmado pelas fontes islâmicas, como, num plano alegórico, o seu protagonismo no martírio dos missionários, atribuído pelas fontes cristãs. Em suma, o frontal esculpido da arca‑relicário de Lorvão não deve ser interpretado como uma cena narrativa, nem como uma instância da legenda hagiográfica tardia. Ele surge‑nos como uma justaposição de retratos individuais dos protagonistas do martírio reflectindo — possivelmente através da iconografia crúzia do século XIII, entretanto perdida — o relato oriundo do círculo do Infante D. Pedro, no qual o Miramolim é uma figura histórica concreta, que pulsa as cordas do martírio com a ligeireza costumada de um toque de cítara. C — Criação musical em Santa Cruz de Coimbra O Ofício rítmico citado mais acima foi composto em data incerta, em correlação com a promoção do culto dos Cinco Mártires pelo prior D. Gomes (1437‑1459) ou, o mais tardar, logo após a canonização papal de 148170. Os ofícios rítmicos requeriam, por regra, música própria, comBreuiarium secundum usum insignis monasterii sanctem crucis colimbriensis, cit., fols. 301-5 [304]. Com excepção das lições de Matinas e da antífona do Magnificat das segundas Vésperas, o ofício de 16 de Janeiro repetia-se no dia da trasladação dos protomártires no mosteiro de Santa Cruz, a 10 de Dezembro. 70 Os Mártires de Marrocos partilharam uma capela com Santo André a partir de Dezembro de 1458, na sequência da intensificação da devoção local ocorrida nas décadas anteriores. Uma nova urna‑relicário revestida a prata lavrada foi mandada fazer na mesma ocasião: cf. Saul António GOMES, “D. Gomes Eanes e a Capela de Santo André e dos Cinco Mártires de Marrocos do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra”, separata de Arquivo Coimbrão: Boletim da Biblioteca Municipal, vol. 35, 439‑540, Coimbra, 2002. Previa‑se que a capela, sustentada por rendimentos próprios, albergasse um culto solene. Dois capelães deveriam, entre outras obrigações rituais, 69 444 Manuel Pedro Ferreira posta e ordenada segundo os oito modos eclesiásticos; neste caso, não se identificou ainda um manuscrito que contenha o conjunto das melodias correspondentes. O texto poético foi impresso no Breviário crúzio de 1531, sem notação musical, e modernamente reproduzido na Analecta Hymnica71. No entanto não se tem dado atenção ao seu último item, uma antífona usada para o cântico de Magnificat nas segundas Vésperas, no aniversário da trasladação dos protomártires, e que podia facultativamente cantar‑se em qualquer dia do ano com o último versículo do Salmo 31 (normalmente salmodiado nas Matinas de segunda‑feira). Esta antífona aparece com a sua música no códice 29 de Santa Cruz (BPMP 52), o mesmo onde se copiaram as narrativas latinas respeitantes aos Santos Mártires, do final do século XV, de origem franciscana72. É o exemplo musical mais antigo que se pode associar à sua comemoração. Eis o respectivo texto, no latim original e em tradução portuguesa: rezar aí duas missas diárias (S. GOMES, op. cit., Doc. 36). A bula papal Apostolice nobis de 27 de Novembro de 1459 menciona pormenorizadamente vários ofícios e missas a cantar durante o ano, havendo menção a Matinas com leituras próprias a 10 de Dezembro, dia da trasladação dos protomártires para o seu novo local de repouso (vd. Breviário de 1531, fols. 517v‑518); mas a festa de 16 de Janeiro não é mencionada (S. GOMES, op. cit., Doc. 39). Sobre o culto dos mártires de Marrocos, veja‑se ainda: António CRUZ, Santa Cruz de Coimbra na cultura portuguesa da idade Média [Bibliotheca Portucalensis, vols. V‑VI (1963‑1964)], Biblioteca Pública Municipal, Porto, 1964, 325. Luís KRUS, “Celeiro e relíquias: o culto quatrocentista dos mártires de Marrocos e a devoção dos Nus”, Studium Generale 6 (1984), 21‑42, recolhido in id., A constru‑ ção do passado medieval, Instituto de Estudos Medievais, Lisboa, 2011, 133‑49. Maria De Lurdes ROSA, “Vom Hieligen Grafen zum Morisken‑Märtyrer: Funktionen der Sakralität im Kontext der nordafrikanischen Kriege (1415‑1521)”, in Novos Mundos‑ Neue Welten. Portugal und das Zeitalter der Entdeckungen, ed. Michael Kraus, Hans Ottomeyer, Deustsches Historiches Museum/ Sandstein Verlarg, Berlin/ Dresden, 2007, 89‑105; tradução portuguesa: “Do “santo conde” ao mourisco mártir: usos da santidade no contexto da guerra norte‑africana (1415‑1521)”, http://www.dhm.de/ausstellungen/neue‑welten/pt/docs/Maria_de_Lurdes_Rosa.pdf; republicado in id., Longas guerras, longos sonhos africanos. Da tomada de Ceuta ao fim do Império, Fio da Palavra, Porto, 2010, 93‑107. Milton PACHECO, op. cit., 101 e notas. 71 Clemens BLUME & Guido Mª DREVES (eds.), Analecta hymnica Medii Aevi, vol. 45b: Can‑ tiones et muteti. Lieder und Motetten des Mittelalters, III, O. R. Reisland, Leipzig, 1904, 209‑12 (suplemento ao vol. 45a: Historiae Rhythmicae. Liturgische Reimofficien des Mittelalters, VIII). 72 Aires A. NASCIMENTO e José F. MEIRINHOS (coord.), Catálogo dos códices da Livra‑ ria de mão do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Biblioteca Pública Municipal do Porto, Biblioteca Pública Municipal, Porto, 1997, 158‑64, 459‑60. Das duas legendas (atribuídas aos frades Francisco de Sevilha e Jean Tisserand), a composta por Francisco foi encomendada por frei João da Póvoa em 1471; sobre este último, veja‑se Vítor Gomes TEIXEIRA, “Fr. João da Póvoa e o movimento da Observância franciscana portuguesa entre 1147 e 1517”, Lusitania sacra, 2ª série, 17 (2005), 227‑54. As lições de Matinas, atribuídas a Fr. Jean Tisserand, não são anteriores a 1481. Ambas as hagiografias foram publicadas in A. HERCULANO, op. cit. (nota 20). Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 445 O regnum Portugaliæ, quod vergis ad occasum, te ditavit altissimus sanguine quinque fratrum; Ó reino de Portugal, voltado para o ocaso, O Altíssimo enriqueceu‑te com o sangue de cinco frades; Rex impius Marrochiorum tibi per Petrum obtulit thesaurum hunc minorum, quem beata crux suscipit. O rei ímpio de Marrocos proporcionou‑te, através de Pedro, este tesouro de menoritas que a bem‑aventurada cruz susteve. Gaude illorum meritis, o tam felix Hispania, sed tu iubila: præ ceteris devota plebs Colimbriana. Regozija‑te por seu mérito, ó tão afortunada Hispânia, mas tu rejubila, por todo o devoto povo de Coimbra. A correspondente notação quadrada dá‑nos uma imagem exacta da melodia, mas não nos esclarece sobre a duração das notas e das pausas. Uma edição musical com ritmo hipotético incorporado na transcrição melódica (representando uma das muitas formas de execução possíveis) pode encontrar‑se em apêndice no final deste artigo. O mosteiro de Santa Cruz de Coimbra continuou a celebrar os santos franciscanos através do Ofício próprio em cantochão, mas também em polifonia. Disso é testemunho um motete do célebre compositor crúzio D. Pedro de Cristo (c. 1550‑1618), modernamente transcrito, publicado e gravado em Inglaterra por Owen Rees, com o Cambridge Taverner Choir73. Não se poderia pedir um fecho mais apropriado a este trabalho: 73 Disco compacto: Music from Renaissance Portugal: Polyphony from the Royal Monastery of Santa Cruz, Coimbra, Cambridge Taverner Choir, dir. Owen Rees, Herald HAVPCD 155 (1993). Partitura: Owen REES (ed.), Pedro de Cristo (c. 1550–1618): Sanctissimi quinque mar‑ tires [Renaissance Performing Scores, Series A: Spanish & Portuguese Church Music, 178], Mapa Mundi, Lochs (Isle of Lewis), 2001. A congregação crúzia teve um papel importante, juntamente com a Ordem franciscana, na disseminação em Portugal do culto aos cinco mártires de Marrocos. A sua comemoração foi introduzida em meados do século XVIII em Travassô (c. 50 km a norte de Coimbra), que pertencia então aos cónegos de Grijó. Ainda aí se realiza anualmente, a 16 de Janeiro, a respectiva procissão. 446 Sanctissime quinque martires qui pro Christi amore maxima passi estis supplicia, ecce iam cum ipso summa gloria summoque honore felicis regnatis. Pro nobis quæsumus apud ipsum intercedite, ut suis promissionibus nos dignos efficiat. Amen. Manuel Pedro Ferreira Santíssimos cinco mártires, que por amor de Cristo sofrestes os máximos suplícios, vede que com Ele, na maior glória e na maior honra, reinais felizes. Rogamos que intercedais junto d'Ele a nosso favor, para que nos torne dignos das Suas promessas. Amen. Notas franciscanas (séculos XIIIXVII)… 447 Apêndice ? 22 œ œ œ œj œ œ œ œ œ œ ˙ J ? œ œ œ œ œj œ œ œ œ ˙ J O reg - num Por - tu - ga - li - ae, œ j œ œ œ œ œ Jœ œ œ œ œ œ œ ˙ quod ver - gis ad oc œ œ J œJ ? Œ œ œ œ œ œJ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ ˙ J te di - ta - vit al - ti - ssi - mus Rex im - pi - œœœœ˙ us ? j œœœ œœœ œ the - sau - rum hunc mi - no - rum, - œ œœ œ œ quem be - a - ta ? œ œj œ œ œ œ œ œ œ ˙ J Gau - de il - lo - rum ?Œ me - ri - rum œ tis, o tu iu - bi - la: prae ce - te U - - sum, fra - œ œJ œ œ œ J ti - bi per Pe - trum trum; œ œ œ œ œ. ob - tu - lit œ. œ œ œ œ œ ˙. crux sus - ci - Œ pit. œ œ œ œ œ œ œ œ œ œj ˙ J J J tam fe - lix jœ œ ˙ œ œ œ J œ œJ œ œ œJ œ sed ca œ œ œ œ œ œ ˙ san - gui - ne quin - que Mar - ro - chi - o - ris His - pa - ni - a, Ó = Œ. 3 œ œ œ 98 œ Jœ œ œ œ œ de - vo - ta plebs ? œj œ œ œ œ œ œ œ œ œ ˙ . Co - lim - bri - a - na. @