BREVE HISTÓRIA DA MEDICINA SOB O OLHAR DA PSIQUIATRIA

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BREVE HISTÓRIA DA MEDICINA SOB O OLHAR DA PSIQUIATRIA
BREVE HISTÓRIA DA MEDICINA SOB O OLHAR DA PSIQUIATRIA
Coordenação: Paulo F. M. Nicolau
Capítulo I
UM BREVE HISTÓRICO ÀS ORIGENS DA VIDA
Introdução
Sentimento, “sentimento é aquilo que só nós sentimos, mas quando o exprimimos, é o mesmo
que todos sentem”.
Dante Milano (1899)
Cultura “Sem o homem certamente não haveria cultura, mas do mesmo modo, e mais
significativamente, sem cultura não haveria o homem.”.
Clifford Geertz
É extremamente difícil, no estágio do conhecimento cientifico em que estamos,
falarmos acerca dos processos neuropsicológicos, sem que tenhamos inúmeras
discussões. Nossas ―verdades‖ são efêmeras. Mas conseguimos ―passar a limpo‖ os
rascunhos de nossos estudos e leituras, e temos que começar tudo novamente tal o
número de informações e reflexões a respeito do tema, pois a Ciência recoloca
permanentemente em discussão os conceitos, mesmo os mais solidamente
estabelecidos. O homem sempre possuiu um forte, ambicioso e intimo desejo de
conhecer a sua origem e a do mundo em que habita. E, depois de tantos estudos, de
tanta especulação, de tantas controvérsias, esta questão é ainda hoje um problema
sem solução científica, apesar de constituir a procura e a essência do conhecimento do
homem e de ser a questão central do pensamento filosófico.
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O sistema nervoso central é a porção do corpo humano mais protegido, a que possui
maior complexidade anatômica e funcional, e que é dotada de maior plasticidade
reacional, a que tem maiores potencialidades, aquela em que se verifica maior
capacidade evolutiva. Todos estes fatos estão relacionados com a sua intensa
atividade funcional e com a extrema delicadeza. Com efeito, na essência de qualquer
fenômeno da vida do homem, encontramos sempre o sistema nervoso, pois este
conduz e regula todas as funções e toda a evolução do gênero humano e do individuo.
O homem é, por excelência, um ser social que aprende de uma maneira mais
complexa, por essa razão, é mais eficiente que os outros seres vivos na medida que
possui um tipo único e especial de sistema de comunicação:a linguagem. O que uma
pessoa se torna eventualmente, em termos de comportamentos e crenças, depende da
cultura na qual está inserida. Não só o homem faz cultura, mas ele também é feito pela
cultura.
Fascinante é o estudo do sistema nervoso do homem, de sua organização
morfopsicofuncional que rege as necessidades do individuo e suas relações com o
ambiente físico e social, peculiares a nossa espécie que é por nós chamada de
personalidade.
Nosso modo de ser é único; é a distinção de nossa espécie.
Nosso cérebro faz muito mais que recolher, ele compara, analisa, sintetiza, e como
nenhum computador usa as emoções e as intuições, gerando abstrações novas e
inusitadas, projeta-nos no futuro, liberta-nos do presente.
Temos uma qualidade única: a de ver a nós mesmos e um desejo inextinguível de
querer saber que somos o instrumento de nossa sobrevivência.
Para conhecermos melhor o nosso cérebro, temos de ver os aspectos evolutivos de
nossa espécie, porque como todos os nossos órgãos, o cérebro evoluiu aumentando a
complexidade e o conteúdo das informações por milhões de anos.
Sua estrutura reflete todos os estágios pelos quais passou o encéfalo. Evoluiu de
dentro para fora. Sabe-se que as áreas relacionadas com o comportamento emocional
ocupam territórios grandes, de vários centros sub-corticais e do córtex cerebral. No
fundo da parte interior está a parte mais antiga o tronco encefálico onde estão
localizados vários núcleos de nervos cranianos viscerais ou somáticos como o centro
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respiratório e o vaso motor, isto é, coordena as funções biológicas básicas, inclusive os
ritmos de vida, exercendo sobre o córtex, através da formação reticular, papel ativador,
pré-requisito para várias formas de comportamento e manifestações emocionais, pois
contém estruturas destinadas a manter a vigília ou o sono.
O estudo do cérebro ocorre dentro de um princípio holístico (A. R. Luria), o qual baseiase na idéia de que processos psicológicos em larga escala operam em sistemas
funcionais intimamente integrados e desempenham cada qual um papel na atividade
psíquica. Sendo eles responsáveis pela manutenção do tono do córtex, estado
indispensável para o correto recebimento, processamento, elaboração e conservação
da informação, assim como pelos processos de formação e organização de
comportamentos e também pelo controle de suas execuções a partir do próprio corpo
do indivíduo.
DE ONDE VIEMOS ? TEORIAS (breves notas):
De repente, do nada, surgiu um espaço
chamado Universo.
O universo teria nascido entre 13 e 20 bilhões
de anos atrás, a partir de uma concentração de
matéria e energia extremamente densa e
quente. A teoria do Big Bang foi enunciada em
1948, pelo cientista russo naturalizado norteamericano George Gamow.
Big Bang. FONTE:www.if.ufrj.br/cosmo
Se há algo que tenha recebido um nome mais inadequado aí está ele. O Big Bang não
foi nem big nem bang. Geralmente traduzido para o português como "Grande
Explosão", porém não foi grande, nem tão pouco foi uma explosão. A inadequação do
nome pode ser entendida através do estudo da sua origem: o termo Big Bang foi
cunhado por Fred Hoyle, um astrônomo inglês que tentava desacreditar a teoria. Ele
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achou que se inventasse um nome jocoso, a comunidade científica não a levaria a
sério.
Não só a comunidade científica levou a sério a recém-criada teoria, como adaptou o
nome proposto por Hoyle, nome este que caiu no gosto popular. Pois bem, estamos a
falar do que exatamente? Quando Einstein criou a teoria da Relatividade por ser mais
abrangente, Einstein, e muitos dos seus contemporâneos, estavam preocupados com
as soluções cosmológicas, que dizem respeito ao Universo como um todo.
A sua conclusão final é a equação que leva jeito de citação arcana, de conjuração
misteriosa ou mantra sagrado.
Talvez isto assuste muita gente. Esta é uma das mais belas equações jamais escritas,
a culminação da Relatividade Geral, mas infelizmente não contém a simplicidade da
sua irmã E=mc2 (o apogeu da Relatividade Especial). Isto porque a Relatividade Geral
é escrita em termos do Calculo Tensorial, um ramo da Matemática que só costuma ser
ensinado no nível de Pós-Graduação...
Mas a beleza de uma equação não está na sua forma estética, mas sim no seu
conteúdo. E o que esta equação acima nos diz é que a geometria do espaço-tempo
(representada pelos tensores Ruv e guv) está ligada à quantidade de matéria e energia
existentes (o tensor Tuv). Ou seja, a existência de uma certa quantidade de matéria (ou
de energia) afecta a forma do espaço e o fluir do tempo.
O próximo passo, no roteiro de Einstein, foi escrever uma função que descrevesse a
distribuição média de matéria e energia do Universo, obtendo assim a forma espaçotemporal do Cosmos. Por razões pessoais, Einstein estava convencido que o Universo
não era mutável, mas sim estático, e acrescentou um termo extra à sua equação (L, a
constante cosmológica) para que isso fosse explicado matematicamente.
Os outros cientistas não tinham estas restrições, e ativeram-se às descrições do
Universo como era conhecido. A surpresa de todos: o Universo deveria de se estar a
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expandir (ou a contrair-se)! Einstein, como disse, refutava esta hipótese por razões
pessoais (crenças religiosas).
Foi necessária a comprovação observacional da expansão do Universo para que
Einstein percebesse o poder da sua equação original. Essa observação foi feita pelo
astrônomo Edwin Hubble, em 1929. O pai da Relatividade, após se ter confrontado com
os resultados de Hubble, declarou que a constante cosmológica tinha sido "o maior erro
de sua vida".
Mas se o Universo se expandia, isto significava que estava a aumentar de tamanho. Ou
ainda, que no passado ele tinha sido muito menor. Pensando assim, o físico George
Gamow construiu um modelo onde o Universo era denso, quente e microscópico,
tornando-se o que é hoje através de uma contínua e inexorável expansão.
Fred Hoyle achava esta idéia absurda, acreditando que o Universo sempre fora assim,
como nós o vemos hoje. Chegou a construir a Teoria do Universo Estacionário, que
admitia a expansão observada por Hubble, mas somava a ela o fato de que novas
galáxias surgiam nos vazios criados, de modo que a aparência do Universo permanecia
constante. Criou também o termo Big Bang para troçar da teoria de Gamow.
Mas Gamow estava certo, pelo menos em linhas gerais. O Universo realmente tinha de
ter passado por um estágio diferente do qual ocupa hoje, um Universo como o de hoje
não pode dar origem a grandes quantidades de matéria. Já um Universo quente e
denso...
A teoria de Gamow demorou a afirmar-se, pois logo que foi formulada ainda dependia
de muitas coisas desconhecidas. Entre os seus resultados mais absurdos estava a
idade do Universo, calculada em 2 mil milhões de anos, numa época em que já se
sabia que a Terra tinha mais de 4 mil milhões de anos
de idade!
Vários anos (e colaboradores) mais tarde, surgiu a
primeira comprovação do Big Bang: a radiação
cósmica de fundo. Encontrada por acaso por uma
dupla de radioastrónomos
“Explosão”.
FONTE:
Interessante-outubro 2002
Super
(Penzias e Wilson), em 1965, esta radiação originouse no Universo muito jovem, quente e denso, e pode
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ser captada até aos dias de hoje, em todas as direções do espaço.
Com o passar do tempo, o modelo do Big Bang foi sendo cada vez mais refinado.
Incorporou idéias da
Mecânica Quântica, da Teoria do Caos e da Mecânica Estatística. Abandonou o
conceito de singularidade, o "ponto geométrico" que teria dado origem a tudo. A
densidade de um ponto geométrico é infinita, e em física não podemos lidar com
quantidades infinitas.
Hoje sabemos que o Universo começou muito pequeno, denso e quente. O que havia
antes disto? Não sabemos. E, talvez, não possamos saber. As leis físicas, a matéria, a
energia, o espaço e o tempo surgiram a partir do início da expansão (o Big Bang). Se
havia algo antes disto, se havia o próprio conceito de "antes", não o podemos dizer com
as nossas equações. As leis físicas não podem explicar o nascimento das próprias leis
físicas!
Perguntar o que havia antes do Big Bang é a mesma coisa que perguntar o que há ao
norte do Pólo Norte. A pergunta em si não faz sentido!
O Big Bang continua a ser o modelo usado atualmente. As novas e futuras gerações de
cientistas continuam a incorporar idéias à sua base. O mapa fica cada vez mais
detalhado, o Atlas cada vez mais extenso. Mas o mapa,sabemos, nunca é o território...
Antes da Teoria do Big Bang
Séculos 6 a 5 a.C – Pré-socráticos
Os primeiros filósofos gregos tentaram elaborar várias explicações para o espaço. De
acordo com uma das teorias, o Anaximandro, o Cosmos surgira da água, e os humanos
surgiram dos peixes. O nosso planeta seria um disco achatado e flutuante, circundado
por tubos furados de névoa luminosa, com um circulo de fogo por fora.
Século 4 a.C – Modelo Geocêntrico
Aperfeiçoando idéias de Pitágoras ( VI a.C- V a.C), Eudoxo de Cnido ( 406 a.C- 355
a.C) criou um modelo geocêntrico do universo, ou seja, aterra era o modelo do
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Universo, e tudo existente nele girava em torno dela. Outros filósofos como Aristóteles
e Ptolomeu, 200 anos depois também acreditavam nessa teoria.
Século XVI d. C – Modelo Heliocêntrico
Depois de vinte séculos (aproximadamente 2000 anos) acreditando na mesma teoria,
Nicolau Copérnico (1473-1543) sugeriu que o sol era o
centro do universo, e não a terra ( teoria não aceita na
época).
Mais
tarde
Giordano
Bruno
(1548-1600)
acrescentou a teoria que o universo não tinha limites (e
por essa teoria ele foi julgado e queimado pela Santa
Heliocentrismo. FONTE: Super
Interessante- outubro 2002.
Inquisição Católica). Galileu Galilei (1564-1642), que
apoiava a teoria de Nicolau, quase teve o mesmo destino
de Giordano, mas ―deu pra traz‖, negou toda teoria na última hora e se livrou do fogo
Os cientistas admitem, mesmo sem comprovação definitiva, que o nosso planeta tenha
se formado há cerca de 5 bilhões de anos, e que a vida em sua forma mais primitiva
tenha surgido, um bilhão de anos depois. Foi então que apenas quinhentos milhões de
anos que ocorreu a ―explosão da vida‖ nos mares, e, bem mais tarde, cerca de 250
milhões de anos, os primeiros vertebrados se deslocaram para terra firme, quando
surgiram os répteis e os primeiros mamíferos.
Mas a partir de um pensamento mágico e evoluindo para um raciocínio filosófico e
depois científico, o homem encontrou diversas respostas para algumas de suas
perguntas. E a Ciência ampliou decisivamente o domínio da consciência humana. Há
cerca de um século o homem começou a descobrir uma parte de seus reais
antepassados. Através de Darwin começaram a surgir mais perguntas e dúvidas a
respeito da origem da vida. Tentativas de respostas criaram soluções materialistas e
religiosas. Mas a resposta histórica é simples e clara, o ser humano possui apenas dez
mil anos de vida civilizada nos dez bilhões de anos de vida planetária. (LIMA, 2003)
O aprendizado do segredo do fogo, a fala, a escrita, o uso da terra, o uso da roda, e do
sistema de transportes, o vôo mais pesado que o ar, a luz elétrica, as viagens espaciais
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e a energia nuclear, ocorreram rapidamente para esta espécie de animal que foi a
última coisa surgida na terra.
Charles Darwin, o homem-bicho e o cérebro dessa espécie
Embora os estudos arqueológicos e
científicos
comprovem,
até
hoje
o
homem insiste na dicotomia religião
versus Ciência, no que diz respeito
sobre a origem humana. Viemos de
Adão e Eva ou dos macacos? Religiões
à parte, estamos aqui para demonstrar o
maravilhoso estudo sobre a evolução
humana, que na cabeça dos cientistas
isto já se encontra bem resolvido.
Existe na Medicina uma dívida imensa
com a biologia.
As tecnologias criadas em toda a
revolução do século XX na física e na
química
FONTE: ILLUSTRATED HISTORY MEDICINE, 1987.
esqueleto de Neanderthal, PÁG 20
tem
instrumentais;
influencia,
a
papeis
mas,
contextuais
para
estrutura
falar
real
e
da
dos
progressos na medicina derivou de insights básicos sobre como os organismos vivem e
interagem, crescem e se reproduzem. A microbiologia e a bioquímica, a genética, a
embriologia e outras ciências da vida fundamentam as perspectivas contemporâneas
das doenças, bem como a poderosa terapêutica para tratá-las. Embora muitas figuras
essenciais tenham levado estas disciplinas a seu atual estado de sofisticação, quem
lançou os conceitos básicos que os fundamentam, merece um lugar de honra. Este é o
Charles Darwin.
Darwin nasceu em 12 de fevereiro de 1809, na prospera família Robert Waring Darwin,
um medico, e Susannah Wedgwood. Seu avo paterno era Erasmus Darwin, um famoso
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médico, poeta, filósofo e inventor. Depois da morte da mãe de Darwin, provavelmente
de câncer, quando ele tinha oito anos, suas irmãs, tomadas de desgosto, proibiram-no
de comentá-la. Na escola, ele tinha pouco interesse nos clássicos, mas desenvolveu
um ardor pela natureza. "A paixão por colecionar", escreveu Darwin em sua
Autobiography,"qae leva um homem a ser um naturalista
Embora Darwin pretendesse seguir seu pai e ingressar na medicina quando foi para a
Universidade de Edimburgo em 1825, ele a achou fatigante. A anatomia teria sido uma
habilidade útil, mas, como ele não gostava do currículo, nunca aprendeu a dissecar.
Acima de tudo, Darwin era sensível ao sofrimento. Tinha um medo mórbido de sangue
e não conseguia suportar a sala de operações. Em 1827, ele mudou de rumo,
transferindo-se para o Christ's College, em Cambridge, com a perspectiva de se tornar
ministro religioso. Mas seus amigos e mentores eram botânicos e geólogos, e o
interesse de Darwin na natureza subsistiu e cresceu.
Sabe-se há muito tempo que as melancólicas idéias de Thomas Malthus sobre a
população foram centrais para a teoria da evolução de Darwin e para o conceito de
"luta pela existência". Hoje em dia, entende-se que seu trabalho teve também outras
influências. As idéias econômicas de Adam Smith enfatizaram para Darwin a
centralidade do indivíduo. Ele também observou o
conceito do filósofo Auguste Comte de que uma
teoria científica devia ser profética e quantificável,
pelo menos em princípio.
Em 1842, fez o primeiro esboço da teoria da
evolução e o conceito da descendência das espécies,
empregando a expressão "seleção natural".
Darwin estava bem consciente de que sua teoria era
“A expulsão de Adão e Eva do Éden”,
afresco de Mosaccio( 1401-1428) FONTE:
Caderno Mais, Folha São Paulo, ed 2005.
potencialmente subversiva com relação à religião. Na
verdade, sua disposição de vencer as objeções
teológicas foi um de seus pontos fortes como
cientista. Mas isso também foi levado em conta em sua cuidadosa, e reticente,
abordagem à divulgação de suas idéias. Darwin continuaria refinando sua teoria e
concluiria o terceiro esboço em 1856.
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Quando Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural, ou a Preservação
de raças favorecidas na luta pela vida foi publicado em 1859, a primeira edição, de
1.250 exemplares, esgotou-se completamente em um único dia. O darwinismo tornouse muito discutido, adquiriu status científico e teve seus adeptos e oponentes. Embora
tenha sido demasiado lacônico sobre a evolução antes da publicação da Origem,
Darwin tornou-se excepcionalmente prolífico logo depois disso. Mas a mais famosa
destas últimas obras foi o controverso The Descent of Man (A origem do homem), de
1871. Ali Darwin expressou sua "principal conclusão" de que "o homem descende de
algumas formas menos organizadas de vida". Os elementos, incontroversos, são: "A
estreita similaridade entre o homem e animais inferiores em desenvolvimento
embrionário, bem como em inumeráveis pontos de estrutura e constituição, tanto de
alta como da mais insignificante importância (...)." Consoante a trajetória de grande
parte da ciência desde o século XVI, o conceito de Darwin da evolução humana
representou um afastamento distinto da visão dos seres humanos como privilegiados
no esquema da natureza.
Hoje, a influência de Darwin em toda a biologia é inquestionável. Sua reputação acabou
por se consolidar, e a gama de seu pensamento se ampliou alguns anos depois da
redescoberta das leis da hereditariedade de Mendel, em 1900. Embora não estivesse
inicialmente claro se o conceito de Darwin da seleção natural e a idéia de alteração por
mutação era compatível, em 1930 esta questão foi definitivamente resolvida. A seleção
darwinista e a genética mendeliana tornaram-se "mutuamente indispensáveis", escreve
Anthony Flew‖, e entre elas [estabelece-se] exatamente o mecanismo necessário para
a evolução por seleção natural". A genética clássica que surgiu das leis de herança
mendeliana encontra-se com a genética das populações no
cruzamento fornecido pela seleção natural.
O paradigma neodarwinista é a raiz de quase todo o pensamento
contemporâneo na biologia.
E o que isso tem a ver com a medicina? "O que os médicos
aprenderam com Darwin?", pergunta o historiador da medicina W. F.
Bynum."A resposta mais curta é que, como tantos cientistas da vida
Darwin, Charles
1809-1882
no século passado, eles aprenderam muito" Os médicos em geral
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eram receptivos ao pensamento darwiniano por seu poder explanatório em anatomia e
fisiologia comparativas, bacteriologia e farmacologia.
Durante os últimos cem anos, as principais descobertas nestes e em outros campos
foram influenciadas e condicionadas pelo pensamento evolutivo. (SIMMONS, 2004)
Os primatas que não são humanos
Existem apenas cinco espécies vivas da ordem dos macacos Pongid, também
conhecidas como antropóides (significa similares ao homem), dos quais três estão
representados abaixo: o chimpanzé, o bonobo (muito similar aos chimpanzés, mas
recentemente considerado uma única espécie), o gorila, o gibão (incluindo o siamang)
e o orangotango. Com exceção do orangotango, todas as outras espécies estão
distribuídas em regiões da floresta da África. O orangotango e gibão vivem nas
florestas chuvosas da ilha de Java, Sumatra, etc.
Como podemos ver aqui, seus crânios e cérebros são anatomicamente muito similares:
órbitas oculares grandes no mesmo plano frontal, cristas ósseas frontais e/ou laterais
no crânio, fossas nasais triangulares grandes, mandíbula superior avançada, maxila
pesada e dentes fortes com caninos grandes.
mpanzé
1 - Chimpanzé ( pan troglodytes)
2- Gorila ( Gorilla gorilla)
3- Orangotango ( Pongo pygmaeus)
FONTE: EVOLUTION OF INTELLIGENCE, SABBATINI, february/ april, 2001.
A capacidade interna do crânio é grande e seus cérebros são altamente evoluídos e
complexos, sendo apenas inferiores aos do homem moderno. Chimpanzés e gorilas
têm um tamanho cerebral médio de 400 a 500 cm 3, respectivamente. Em
conseqüência, os antropóides são muito inteligentes e capazes de manipulação
simbólica similar à linguagem, capacidade de resolução de problemas, comportamentos
altamente complexos, aprendizagem, emoções, etc.
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Os antropóides estão intimamente relacionados aos seres humanos em termos de
evolução. Eles foram separados de nós cerca de 36 milhões de anos atrás, a partir de
um ancestral comum que ainda não foi encontrado. Portanto, eles podem ser
considerados um ramo paralelo da árvore evolutiva dos humanos. Os antropóides
extintos que são os mais antigos que os primeiros hominídeos, tais como o
Ramapithecus ardinus (5 a 6 milhões de anos atrás) não são considerados hominídeos.
Estudos de biologia molecular mostraram que o Ramapithecus era mais similar aos
orangotangos.
As seqüências de DNA dos grandes antropóides são 96,4% similar àqueles dos
humanos. Em outras palavras, todas as nossas diferenças entre cérebro, inteligência,
dexteridade, linguagem, etc, são codificadas em somente 3,6% de todos os genes que
constituem nossos genomas.
Crânio da garota de Taung Girl, primeira descoberta de um homem
macaco. ( Pitecanthropus antigo nome para Australopithecus) feito por
Raymond Dart do sul da África. FONTE: EVOLUTION OF
INTELLIGENCE, SABBATINI, february/ april, 2001.
www.epub.org.br.
...LOGO SURGIU O HOMEM
Começando pelos ancestrais comuns que os seres humanos compartilham com os
antropóides, o ramo dos primatas humanos começou também na África, provavelmente
6 a 8 milhões de anos atrás e chegou até o homem moderno (que apareceu
provavelmente cerca de 150.000 a 200.000 anos atrás e depois se espalhou para o
resto do mundo). Eles são chamados de Hominídeos, e estão incluídos na superfamília
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de todos os antropóides, os hominóidea, membros dos quais são chamados
hominóides.
A árvore evolucionária do homem não é uma linha única e contínua ao longo do tempo
como muitas pessoas pensam. Os cientistas têm muitas evidências de muitos "troncos
mortos", ou seja, muitas espécies de hominídeos que se extinguiram sem deixar
descendentes. É muito difícil determinar nossa linha evolucionária direta, e existe ainda
vários elos faltantes, sem mencionar que algumas vezes existe discordância entre
cientistas sobre o que constitui a melhor probabilidade. (SABBATINI, 2001).
O Homo erectus foi o primeiro a sair da África para o resto do mundo,
incluindo Europa, Oriente Médio e Ásia. Esta espécie tornou-se extinta
em todos os locais exceto na África, onde deu origem ao chamado Homo
sapiens arcaico (ainda falta um elo perdido entre H. erectus to H.
sapiens). Portanto, a África meridional parece ser o "berço da
humanidade".
A evolução do homo sapiens arcaico foi incrementada pelo isolamento causado pelos
desertos e montanhas naquela parte do continente. Esta espécie mais tarde se
espalhou mais tarde para a África, Europa, Ásia, 200.00 e 100.000 anos atrás, onde
evoluiu para Homo sapiens neanderthalensis (o homem de Neanderthal, que é uma
adaptação a ambientes frios, e não é considerado um ascendente direto do homem
moderno, mas sim uma espécie muito relacionada), e o Homo sapiens sapiens, uma
adaptação ao clima quente da África.
O chamado modelo para fora da África também tem sido apoiado pela evidência da
biologia molecular. Estudos do DNA mitocondrial sugerem que todos os humanos
modernos se originaram de uma pequena população vivendo no Sul da África. Como o
DNA mitocondrial passa apenas de mulher para mulher, este ancestral nosso já foi
apelidado de "Eva Africana".
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TABELA DA EVOLUÇÃO DO HOMEM PELO CRÂNIO
Australopithecu
s afarensis
3 milhões de anos
atrás
Astralopithecus
africanus
3 to 2,5 milhões de
anos atrás
Homo habilis
1.8 to 2.4 milhões de
anos atrás
Homo erectus
1,600,000 a 250,000
anos atrás
Um hominídeo bípede, de baixa estatura,
de 1.2 a 1.5 de altura, que viveu na
África. É o segundo australopitecino mais
velho achado. As mãos e os dentes eram
similares aos de humanos modernos,
mas o cérebro não era maior que o de
chimpanzés. As pegadas fósseis dos A.
afarensis também foram descobertas.
Com um esqueleto robusto, A. africanus
foi o primeiro hominídeo a ser
descoberto, na África do Sul, e foi
semehante ao A. afarensis. Juntamente
com A. robustus, A. aethiopicus e A.
boisei, três outras espécies relatadas,
eles provavelmente não pertenceram à
linhagem Homo, mas formaram um
tronco distinto que desapareceu há 1.5
milhões de anos.
Foi o primeiro humano a criar
ferramentas de pedras e provavelmente
tinham comunicação pela fala. Foi a
evolução transitória entre H. erectus e os
hominídeos. Surgiu e foi limitado à África
meridional e do leste, e provavelmente
gastou parte de seu tempo em árvores,
porque tinha braços longos. Entretanto,
não foi muito mais alto que o
australopithecinos.
Foi o primeiro humano a viajar
amplamente
e
ocupar
muitos
continentes. Foi encontrados em Java,
Indonesia, China, Europa e África. Usava
ferramentas e fogo, viviam em cavernas,
caçavam em grupos e puderam
sobreviver em ambientes frios. Tinha
aproximadamente o mesmo peso e altura
dos humanos modernos.
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Homo sapiens
Neanderthalensis
Homo sapiens
sapiens
250,000 a 30,000
anos atrás years
ago.
250,000 anos até o
presente
Considerado uma subespécie ou espécie
que apareceu em paralelo com o homo
sapiens, ele tinha um crânio achatado e
uma pesada crista frontal. O corpo e o
tamanho do cérebro era maior que o do
homo sapiens. Viveu na África do Norte,
na Europa e Oriente Médio. Usavam
roupas, cavernas, fogo, enterravam seus
mortos e podem ter tido algum tipo de
religião. Existiu por algum tempo
simultaneamente com o H. sapiens, mas
desapareceu misteriosamente.
Este é o ser humano moderno atual e a
única espécie viva remanescente de
Homo. Foi precedido pelo arcaico Homo
sapiens, que apareceu 500.000 anos
atrás, viveu na Europa e Ásia, e tinha o
cérebro menos desenvolvido. Tem um
crânio alto, com o maior cérebro
comparado aos outros, não tem cristas
orbitais
e
a
face
é
plana.
FONTE:SABBATINI,R. Evolution of intelligence. Brain & Magazine,february/april 2001.
A face histórica estrutural da mente do homem
A mente humana levou cerca de milhões de anos para evoluir. Ela nos leva a uma
apreciação do que significa sermos humanos.
As últimas duas décadas presenciaram um notável avanço no campo do
comportamento e das relações evolutivas dos nossos antepassados. De fato muitos
arqueólogos estão certos de que chegou o momento de ir além das questões sobre a
aparência e o comportamento desses ancestrais e começar a indagar sobre o que se
passava nas suas mentes.
O que é possível aprender hoje sobre a mente moderna que irá nos ajudar na busca
das mentes dos nossos ancestrais?
É mais fácil começar olhando não para o intelecto, mas para o corpo. Se quisermos
descobrir como as pessoas eram ou se comportavam no passado, podemos ir a um
museu e olhar para os fósseis humanos ou as ferramentas líticas expostas. Se for um
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bom museu, talvez encontremos uma reconstituição; quem sabe, um peludo Neandertal
agachado na entrada de uma caverna, cozinhando ou afiando uma lança. Mas existe
uma maneira muito mais fácil de começar a aprender sobre o passado, mesmo sobre o
mais antigo dos ancestrais humanos. Basta simplesmente sentar em uma banheira
cheia de água. À medida que o banho esfria, ficamos com "pele de galinha". Isso nos
acontece porque nossos ancestrais da Idade da Pedra eram muito mais peludos; ao
sentir frio, suas peles se arrepiavam e os pêlos ficavam eriçados, seqüestrando uma
camada de ar quente que os aquecia. Hoje em dia não temos mais, grande parte dos
pêlos do corpo, mas a "pele de galinha" continua existindo. Ela nos dá uma idéia de
como éramos muitos milênios atrás.
Na verdade, nossos corpos são o paraíso de um detetive da Idade da Pedra.
Observando como um ginasta consegue balançar-se à maneira de um gibão, podemos
ver que nossos braços e ombros foram um dia projetados para essa atividade. A
incidência de doenças cardíacas nas populações ocidentais indica que nossos corpos
não foram feitos para consumir uma alimentação rica em gordura. Será que o mesmo
acontece com nossas mentes? Será que a natureza da mente moderna é capaz de
revelar a natureza da mente da idade da pedra?Nossa maneira atual de pensar pode
nos dar uma pista de como pensavam nossos ancestrais há milhares ou mesmo
milhões de anos atrás?
Ela é capaz disso sim, embora as pistas não sejam tão aparentes como as que tem a
ver com nossa anatomia. De fato, podemos descobrir mais que meras pistas, por que
nossa mente moderna possui uma arquitetura construída por milhões de anos de
evolução.
Em 1919, um arqueólogo americano chamado Thomas Wynn publicou
um artigo onde alegava que a mente humana já estava pronta há
trezentos mil anos. Antes que os neandertais - e menos ainda os
humanos anatomicamente modernos - tivessem aparecido no palco. A
evidência na qual Thomas Wynn se baseou foram os refinados e
simétricos machados de mão fabricados pelo Homo erectus e pelo
Homo sapiens arcaico. (MITHEN, 2002)
Página 16
Como ele chegou a tal conclusão? Começou utilizando uma idéia que, por muitos anos,
tem causado acaloradas discussões entre os acadêmicos: a de que as fases do
desenvolvimento mental na criança refletem as fases da evolução cognitiva dos nossos
ancestrais. Utilizando um jargão, dizemos que a "ontogenia recapitula a filogenia".*
Essa é uma "grande idéia",pensem nela como significando que a mente, por
exemplo,do Homo erectus ou talvez de um chimpanzé atual possa ter semelhança
estrutural com a de uma criança pequena, embora obviamente possuirão um conteúdo
muito diferente. Para usar essa idéia, Thomas Wynn precisava saber como eram as
mentes das crianças; precisava conhecer as fases do desenvolvimento mental. Não é
de surpreender que ele tenha se voltado para o trabalho do psicólogo infantil Jean
Piaget (1896-1980).
Piaget acreditava firmemente que a mente é como um computador. Segundo suas
teorias ela roda um pequeno conjunto de programas de utilidade geral que controlam a
entrada de novas informações e também reestruturam a mente de modo a que ela
passe a uma série de fases de desenvolvimento. Existe um período que é a última fase
dessas fases, chamado de operatório formal - que é quando a criança tem
aproximadamente 12 anos. Nesse período a mente é capaz de imaginar instrumentos e
eventos hipotéticos. Esse tipo de pensamento é absolutamente essencial para a
produção de um utensílio de pedra como o machado de mão. Por conseguinte Tom
Wynn sentiu confiança ao atribuir uma inteligência operatório-formal. A discussão dos
psicólogos sobre as idéias de Piaget na última década é de que a mente não opera
programas
de
utilidade
geral,
tampouco
é
uma
esponja
que
absorve
indiscriminadamente qualquer informação disponível. Os psicólogos introduziram um
novo tipo de analogia para a mente, que seria como um canivete suíço. Um desses
com capacidade de fornecer um monte de equipamentos úteis, como tesoura, serrinhas
e pinças. Cada elemento do canivete foi inventado para solucionar
um tipo de problema bem especifico. Quando fechado ninguém
imagina a quantidade de funções o canivete. Talvez nossa mente
se encontre além do nosso alcance. Mas se ela for como um
canivete suíço, quantos dispositivos existem?Quantos problemas
eles são capazes de resolver?
Página 17
Assim veio em 1983 A modularidade da mente de Jerry Fodor, propõe que devemos
dividir a mente em duas grandes partes, que chamamos percepção e cognição. Mas,
grosso modo, Fodor acredita que a mente possui uma arquitetura de dois níveis; o
inferior é como um canivete suíço e o superior como, bem, não podemos descrevê-los,
pois não há nada igual no mundo. (MITHEN, 2002)
A teoria das inteligências múltiplas de Howard Gardner (...), alega que os tipos distintos
de inteligência têm suas bases em diferentes regiões do cérebro. Portanto aqui temos
também uma arquitetura do tipo canivete suíço, com cada dispositivo agora sendo
chamado de inteligência.
As inteligências de Gardner são a lingüística, a musical, a lógica-matemática, a
espacial, a corporal sinestésica, e duas formas de inteligência pessoa, uma voltada
para dentro, para percrustrar nossa própria mente, e outra voltada para fora, para
compreender outras pessoas. As inteligências têm um histórico de desenvolvimento a
natureza de cada uma é fortemente influenciada pelo contexto cultural do individuo.
Os psicólogos evolucionistas desfilam sob a bandeira da psicologia evolucionista pela
simples razão de poder argumentar que podemos compreender a natureza da mente
moderna apenas se considerarmos um produto da evolução humana. O ponto de
partida dessa argumentação é a mente ser uma estrutura funcional complexa que não
poderia ter surgido por acaso. E se estamos dispostos a ignorar a intervenção divina, o
único processo conhecido que pode ter dado origem a tamanha complexidade é a
evolução pela seleção natural.
A mente como catedral
Podemos imaginar que a mente é como uma catedral em construção enquanto cada
pessoa se transforma de criança em adulto.
Uma catedral edificada segundo um plano arquitetônico codificado na bagagem
genética herdada dos pais, e que sofre a influencia do meio particular onde cada se
desenvolve. Na medida em que todos diferimos na herança genética ou ambiente de
desenvolvimento, todos temos uma mente única. Mas, sendo membros da mesma
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espécie, existem semelhanças consideráveis no plano herdado e na mente que
desenvolvemos.
O mesmo se aplica aos nossos ancestrais. Entretanto, a arquitetura tem sido
constantemente ajustada pela evolução. Transformações aleatórias foram introduzidas
pelas mutações genéticas. Grande parte dessas mutações não afetou a mente.
Algumas tiveram efeitos negativos: os planos arquitetônicos danificados não
sobreviveram por muito tempo no pool de genes, por que os indivíduos portadores
dessas mentes não se sobressaíram aos outros na competição por recursos naturais e
por parceiros. Algumas outras mutações acabaram sendo benéficas, transformando
indivíduos em melhores competidores e permitindo que eles passassem os planos
―melhorados‖ à geração seguinte. É claro que enquanto essas mutações aconteciam o
ambiente também se transformava. Nossos ancestrais constantemente enfrentavam
problemas, exigindo novos processos de pensamento para encontrar soluções.
(MITHEN, 2002).
A inteligência social, segundo a vida em grupo dos ancestrais
Para abordar a questão deve-se começar por uma breve digressão sobre problemas de
viver em grupo, as novelas e o tamanho do cérebro. Em geral, quanto maior o número
de pessoas com quem convivemos mais complicada a vida se torna: criam-se mais
escolhas de parceiros com quem dividir a comida ou fazer
sexo, e cada desses parceiros vai estabelecer um número
cada vez maior de relações diversificadas com outros
membros do grupo. Certamente é um desafio considerável
a ficar atento quem é amigo de quem, quem são os
inimigos, quem guarda rancor ou desejos. Todos nós de
alguma forma já passamos por isso, parece que gostamos
das manobras sociais que se tornam essenciais à medida
que o grupo vai aumentando, especialmente se somos espectadores. As novelas
causam fascínio devido ao surgimento de um novo personagem no elenco, que acaba
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desequilibrando a ordem, geralmente alguém fica com o coração partido, ou outra
pessoa arruma uma dor de cabeça.
Não é surpreendente, portanto que existem espécies de primatas nas quais se
observasse uma forte correlação entre o tamanho do grupo e o tamanho do cérebro.
Espécies que vivem em grandes bandos e tendem a apresentar um cérebro mais
avantajado. São menos vítimas dos predadores e de outras adversidades. Assim
mostra que a vida em grupo passa ser uma necessidade do homo habilis, escolher
viver em grupos relativamente grandes. Viver em grupos maiores exige mais poder de
processamento cerebral para dar conta de um número crescente de relações sociais
em constante mudança. Ao viver em grupo, os primatas tem que trocar mensagens
entre si, e a principal maneira de fazer isso é catando as pulgas e piolhos da cabeça do
outro – uma atividade que inglês chama-se grooming. O antropólogo Robin Dunbar,
sugere que esse comportamento equivale a uma ― barganha sexual‖. Observou ainda
que, o tempo que os primatas dedicam ao grooming aumenta à medida que aumenta o
tamanho do grupo, pois é preciso investir cada vez mais na comunicação social. Outro
meio de informação fora selecionado a linguagem. Dunbar argumenta que a linguagem
evoluiu para trocar informações dentro de grupos grandes e socialmente complexos, de
inicio suplementando o grooming, e mais tarde substituindo-o.
Em relação a consciência, na realidade temos consciência de apenas uma pequena
fração do que se passa nas nossas mentes. Por exemplo, não percebemos
conscientemente os processos utilizados para compreender e gerar elocuções
lingüísticas. Não temos consciência do numero de variações lingüísticas que usamos
na fala cotidiana ou das milhares de palavras cujo sentido conhecemos.
Criar elocuções gramaticalmente corretas e que façam sentido talvez seja a coisa mais
complexa que realizamos – e fazemos isso sem uma percepção consciente do que se
passa nas nossas mentes. Alguns indivíduos desafortunados apresentam um a
disfunção cerebral que leva a uma forma branda de epilepsia, com ataques de perdas
da consciência. No entanto as pessoas acometidas ainda são capazes de continuar
suas atividades diárias. Elas mantêm as ações dirigidas para um propósito, que
comportam respostas seletivas a estímulos do meio, sem uma percepção consciente do
processo de pensamento.
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Não é uma sugestão de que a mente de o homem arcaico equivaleria hoje a essas
pessoas que possuem esse ―pequeno mal‖. Todavia esse exemplo é utilizado como
demonstração adicional de que a não percepção consciente dos próprios processos de
pensamento não implicaria que estes não acontecem e nem podem gerar
comportamentos complexos. Portanto a possibilidade dos neandertais manufaturarem
ferramentas de pedra sem uma percepção consciente torna-se plausível.
Talvez a nossa dificuldade de imaginar o que deve ter sido pensar como um neandertal
pode simplesmente representar uma limitação do nosso tipo de pensamento, ali
colocada pela evolução.
O estudo da mente do homem ancestral pode nos revelar de que maneira evoluímos de
acordo com as exigências materiais e pessoais que foram urgindo. Os sentimentos e os
elementos afetivos do homem vão sendo moldados de tempo em tempo, ainda nos
primatas podemos apenas enxergar um instinto severo de preservação e seleção,
deixando a afetividade para mais tarde.
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Capítulo II
ORIGENS DA MEDICINA – A PRÉVIA DO CONHECIMENTO
CIENTIFICO
Sarcófago de Khonsu. Fonte: Medicina: Artes e
História, Paulo Lemos, 2004.
A trama da religião e a Ciência
A ciência dá ao homem conhecimento, enquanto a religião, a fé.
O fenômeno médico, que é essencialmente um fenômeno patológico, e antes de tudo
um fenômeno natural, posto que a entidade patológica ou doença ocorra na natureza
como fato natural, seja a doença contagiosa, a doença degenerativa, etc.
A função da religião é transmitir a verdade moral, a saber, a lei fundamental do
supremo legislador (Deus) ou deuses (politeísmo). Justamente essa primeira diferença
que está resolvida apenas na cabeça dos intelectuais. Já na cabeça dos desprovidos
de tais conhecimentos, especialmente do "povinho da Bíblia" há uma oposição radical.
Isto deve ser evitado, pois é anticientífico. Todavia é preciso ser cauteloso e não
descuidar da questão religiosa, pelo fator preponderante que absorve em nossas
mentes, inclusive como aspecto terapêutico. É preciso acentuar que a religião usa uma
linguagem simbólica, quase mítica para tentar uma compreensão (não explicação!) da
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realidade.
A
ciência
usa
uma
linguagem
objetiva,
precisa.
A
Matemática,
particularmente, é a mais precisa de todas as linguagens, não afetada pelas
peculiaridades lingüísticas de cada idioma.
A medicina, tomada como ciência biológica, usa o método das ciências naturais, ou
método experimental, o cientista não sabe nada até que ponha a mão na massa e
espere os resultados.
Na verdade, a oposição entre religião e ciência existe apenas na limitadíssima
(estupidez) alma humana, se olharmos para uma posição mais flexível no campo da
filosofia, e na realidade ontológica dos fatos, Deus convive muito bem com o universo
que criou de modo que somente Ele sabe como! Na verdade, religião e mito podem ser
tomados como sinônimos quando confrontados com o pensamento científico.
A ciência é uma estrutura aberta, mesmo teorias bem estabelecidas, como a
Mecânica Quântica ou a Teoria da Relatividade podem cair por terra, embora as
probabilidades sejam mínimas, o homem tem algo de absoluto em si, consegue
estabelecer verdades permanentes.
O primeiro psiquiatra
– o médico feiticeiro da tribo
tal como foi retratado por um
artista pré histórico na
caverna deTrois, na França.
FONTE: Livro: História da
Psiquiatria,1968.
Apontamentos ao Método Mágico – A Psiquiatria inaugura a Medicina
Nos tempos mais antigos a tentativa de explicar as doenças da mente, dados como,
acontecimentos inexplicáveis, tinha sua referencia na magia.
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As primeiras tentativas de explicar a doença foram igualmente intuitivas. A explicação
mais simples era que as doenças ―vinham de si próprias‖, embora houvesse certo
reconhecimento de causa e feito. Todavia, quando as causas de uma doença não eram
evidentes, o homem primitivo as atribuía às influencias malignas quer de outros seres
humanos, quer de seres sobre-humanos, e lidava com as primeiras pela magia ou
feitiçaria e com as últimas pelas práticas mágico-religiosas. Entendendo-se que esses
métodos de tratamento eram tentativas de mudar psicologicamente as conseqüências
malévolas, a psiquiatria é historicamente a mais antiga das especializações
médicas.
A medicina primitiva pode ser considerada principalmente psiquiatria primitiva. Não
havia separação entre sofrimento mental e físico, como não havia entre medicina,
magia e religião. A magia era dirigida contra algum ser mortal ou sobre humano que
maldosamente provocara uma doença em outrem.
O curandeiro primitivo logicamente lidava com esses seres e com os maus espíritos,
torturando seu paciente com recursos humanos, como apelo, reverencia, súplica,
suborno, intimidação, confusão e punição, tais que se expressavam através de
exorcismo, rituais mágicos e encantamentos. Achava-se que a doença era causada
pelo acréscimo de algo supérfluo, que era geralmente atirado para dentro do corpo por
um feiticeiro ou um deus. O conceito de retirada do corpo envolvia a idéia primitiva da
alma tal como se manifestavam em sonhos, sombras, alucinações etc.
Enquanto o corpo e a alma estavam juntos, o homem gozava de boa saúde, mas se a
alma ou parte dela o deixava, ou era seqüestrada, o homem ficava doente. De acordo
com a crença de cada tribo, a alma localizava-se em partes variadas do corpo, como o
coração ou o rim. O feiticeiro perverso enganava a alma de sua vitima, tirava-a dele e
assim criava doença dentro dele.
Outro principio importante na magia é a idéia de que duas coisas
separadas por certa distância podem produzir um efeito recíproco
por meio de uma relação secreta. Sir James Frazer (1854-1941)
chamava isso de ―magia simpática‖. Duas coisas que parecem
semelhantes afetam-se mutuamente por meio de sua semelhança
por que cada uma tem simpatia pela outra. Desse raciocínio deriva-se a mágica
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chamada mimética, imitativa e homeopática. O próprio curandeiro pode representar a
doença e o restabelecimento de seu paciente, fingindo estar próximo da morte,
contorcendo-se na agonia e depois se restabelecendo vagarosamente, incentivando
pela magia mimética o restabelecimento do homem agonizante. Uma forma de magia
simpática atua através da contigüidade, segundo a qual existe continuada ação
recíproca entre coisas outrora juntas, mas agora separadas. Os malaios (povo que
habita a península de Malaca) tentam criar desentendimentos conjugais amarrando a
figura de um homem e a de sua esposa de costas um para o outro, de modo que cada
um ―olhe para longe do outro‖.
A intenção má é, portanto a causa fundamental para essas doenças, em todas essas
teorias. O efeito é conseguido por meio da capacidade do feiticeiro para influenciar
psicologicamente sua sugestionável vitima. Não é de admirar que em sociedades
primitivas os indivíduos mais poderosos, mais empreendedores e muitas vezes mais
bem
dotados
sejam
médicos
feiticeiros.
O
efeito
da
magia
depende
da
sugestionabilidade da pessoa sobre a qual ela é feita.,do poder de sugestão do mágico
que influencia e finalmente de uma ligação simpática entre objetos.
A medicina primitiva consistia em processos psicológicos visando a influenciar todos os
acontecimentos naturais entre os quais as doenças de corpo e mente. Essa medicina
animística-mágica,reflete o ponto de vista do homem primitivo sobre o universo,
baseado em suas descobertas de leis psicológicas que governam seu próprio
comportamento. O homem mais antigo experimentou subjetivamente em seu próprio
comportamento certas seqüências de acontecimentos que lhe parecerem naturais,
evidentes por si próprias, axiomáticas. Parecia natural sentir-se enraivecido quando era
atacado ou amedrontado quando tinha impulso de atacar alguém que o derrotara
anteriormente. Essas seqüências de acontecimentos podem ser chamadas de ―
silogismos emocionais‖, que não exigem explicações ou provas. São sentidas como
seqüências naturais e inevitáveis, seguem a lógica das emoções.
O homem primitivo teve esse tipo de conhecimento antes de compreender a ordem das
coisas do mundo que o cercava. Não podia saber que bactérias causavam infecções
em ferimentos, mas sabia como usar seu próprio corpo e aplicava esse conhecimento
interior e subjetivo aos conhecimentos exteriores. O vento era destruidor; daí presumia
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a existência de um ser encolerizado que soprava para atacá-lo. A chuva era mandada
por espíritos para recompensá-lo ou castigá-lo. A doença era uma aflição mandada por
seres sobre-humanos invisíveis ou era resultado das manipulações mágicas de seus
inimigos. Ele animava o mundo que o cercava atribuindo a acontecimentos naturais as
motivações humanas que tão bem conhecia por suas próprias experiências subjetivas,
Assim, parecia-lhe lógico tentar influenciar os acontecimentos naturais pelos mesmos
métodos que usava para influenciar seres humanos: encantamento, oração,ameaça,
submissão,suborno, punição e expiação. (ALEXANDER;SELESNICK, 1968)
A etimologia da palavra Magia provém da Língua persa, magus
ou magi, significando tanto imagem quanto um ―homem sábio.
Um de seus significados é gupta-vidya (conhecimento divino),
que é o objetivo daqueles que trilham a senda da sabedoria.É
uma tentativa de controlar os poderes e as forças que operam
na natureza, costuma-se encontrar a magia em contextos
A Magia.FONTE:www.paulelisa.de/Cabral/magia/ciruelo
religiosos, e é difícil traçar uma linha divisória nítida entre a
magia e a religião. A distinção que mais sobressai é que pelo
fato de na religião, o individuo se sentir totalmente dependente do poder divino. Ele
pode fazer sacrifícios deuses ou se voltar para ele em oração; porém em ultima analise
deve aceitar a vontade divina. Já quando o ser humano se volta para os tiros mágicos,
ele está tentando coagir as forças e potencias a obedecer a suas ordens. Desde que os
rituais mágicos sejam realizados corretamente, o mago acredita que os resultados
desejados decerto ocorrerão, por uma questão de lógica. Se ele falhar irá culpar um
erro em seu ritual. (GAARDER, 2000.)
A magia já foi interpretada por alguns teóricos como origem da Ciência, ou um estágio
inicial desta. O que faz de um mago parecer com um cientista, é tentar descobrir um elo
entre causa e efeito. De qualquer modo ele é obrigado a fazer observações da natureza
e adotar processos empíricos de raciocínio. Assim, sem sombra de dúvida os magos
fizeram numerosas observações detalhadas sobre as relações naturais, e muitas das
plantas e ervas dos curandeiros podem ser utilizadas pela ciência. Todas as
abordagens médicas utilizadas pelo homem, seja onde for, são inspiradas em
tradições, se baseiam em diferentes métodos, nascidos em séculos diferentes.
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Admitindo, geralmente, que a Medicina a principio mágica, e depois religiosa, se teria
tornado pouco a pouco cientifica, vale dizer, resultante de ilustrações.
A Medicina encontrada na Bíblia
―Quem vê pelos olhos da alma vê mais longe e melhor.”
(Belmiro Braga)
A Bíblia foi escrita num período de 1400 anos, começou a
ser elaborada por volta de 1300 a.C, e foi finalizada cem
anos após o nascimento de Cristo. Antes de ser escrita foi
narrado, contado e organizado seu conteúdo pelo povo,
sendo assim, possui para historiografia hoje, muitas dúvidas em relação a sua
veracidade. Entretanto ainda é um documento de suma importância para relatar a vida
daqueles que permeiam a historia do nosso universo mental.
Muito antes que a maravilhosa civilização grega de Hipócrates, o médico grego que
nasceu na ilha de Cós em 460 a.C, e morreu na Tessália, em 377 a.C (o pai da
Medicina), existisse, povos de várias culturas e civilizações ligadas umas às outras, há
4 mil anos a.C, deram sua contribuição ao que entendemos por inicio da História, e que
até hoje ainda é a base de nossa estrutura. A ponte que ligou o homem primitivo ao
homem da cultura greco-romana são os povos que surgiram nesse tempo, como os
hebreus, que chefiados por Abraão, estabeleceram-se no deserto da Arábia. O
ancestral dos hebreus é Éber, descendente de Sem, seus descendentes são todos os
hebreus. Entre Éber e Abraão tem cinco gerações. Ao perder seu irmão Harã e seu
filho Arã, Abraão entrou em uma profunda depressão, o que lhe fez refletir muito
causando em seu cérebro uma estranha força, denominada de fé em Deus.
Pode-se dizer que ação da fé em Abraão provocou uma vitalidade num homem que já
estava com 75 anos de idade, e que ainda peregrinou, segundo o Antigo Testamento
por várias regiões em busca da terra que lhe fora assegurada e que melhoraria a vida
de sua família. Entretanto, na Bíblia, o primeiro tratamento na época para depressão foi
a força da fé, que segundo Eskin (2003), o cérebro sofre uma alteração ao entrar em
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estado de oração, como se ficasse mais harmonioso eletrencefalograficamente em
comparação a um cérebro normal.
Na época dos patriarcas a Medicina tinha um conhecimento ainda muito imperfeito.
Sendo difícil identificar os tratamentos para as doenças, devido também as expressões
difíceis da própria época. Entretanto há relatos de utilização da mandrágora, planta de
raízes carnosas, psicotrópica, da qual era possível extrair um suco capaz de incitar o
prazer sexual. Assim, o grande número de filhos de Jacó, fora devido a ajuda de Deus
e de psicotrópicos como a mandrágora.
Durante o tempo em que o povo judeu permaneceu na Babilônia como cativos,
entraram em contato com a medicina mesopotâmia, o qual recebia um valor
essencialmente de ordem mágico e de prática sacerdotal. A magia era uma medida
terapêutica e de grande responsabilidade de quem as praticava. Valorizavam muito a
relação da água, da terra e do céu.
O senhor te ferirá com as úlceras do Egito, com tumores, com sarnas e prurido, de que
não possas curar-te. (DEUTERONÔMIO 28:27). No Antigo Testamento é relatado o
conhecimento de tumores e úlceras, como pode ser visto nos dizeres acima. E sobre a
suas curas Isaías acrescenta: Tomai uma pasta de figos. Tomaram-na e a puseram
sobre o tumor, e o rei ficou curado (2 REIS 20:7).
Como a doença era interpretada como castigo divino, os já conhecidos enfermos na
Bíblia, como leprosos, paralíticos, mancos e loucos, estava cumprindo seu castigo
pelos erros cometidos. O livro de Jô reflete bem o medo da doença como temor a Deus,
e, portanto um meio de educar o homem pelo temor. Mas também, assumindo o
exercício da fé, disponível por meio do cérebro.
E assim não precisamos de muita leitura para reconhecer já no Novo Testamento o
medico Jesus de Nazaré, que dizia curar os enfermos com o próprio poder deles, quem
tivesse fé, seria curado.
Lucas, embora não tivesse tido contato com o mestre Jesus, foi o companheiro de
Paulo em suas viagens diárias. Relatou com maior precisão as doenças e a própria
Medicina, afinal era médico, estudou em escolas gregas, mas nasceu na Síria.
Escreveu o Terceiro Evangelho e Atos dos Apóstolos.
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A loucura relacionada à privação das faculdades mentais normais tinha na Bíblia
também suas definições. Jesus na cruz disse: pai, perdoa-os pois não sabem o que
fazem (LUCAS23:34). Seria o perdão aos seres humanos que cometem atos insanos
por terem a mente desequilibrada.
A
ignorância
do
bem,
sobretudo
a
falta
de
conhecimento das coisas divinas, da vida religiosa e
moral, poderia no Antigo Testamento ser entendido
como loucura.
Existia a loucura temporária produzida pelo álcool
segundo Jeremias, e ao profetizar contra todas as
nações inimigas de Israel: Por que assim me disse o
senhor de Israel: toma da minha mão este copo de
vinho do furor, e darás a beber dele a todas as
nações, as quais eu te enviarei. Para que bebam e
tremam, e enlouqueçam, por causa da espada, que
eu enviarei entre eles. (JEREMIAS 25:16). Por vezes
estados de ira ou mesmo de orgulho poderiam ser
considerados manifestações de loucura. (ESKIN,003)
São Cosme e Damião. Fonte:
portabaw.com.br/religião/Cosme-da.
De Médico e Santo, ambos têm um pouco de Ser Humano
Para se entender a complexa relação do médico com a sua profissão há de se avaliar
os domínios da medicina nos cuidados éticos com o ser humano. Tratar de um paciente
é mais que identificar os desarranjos físicos. É antes de tudo um comprometimento
assumido com o ser humano, com o seu bem estar mental, com o auxílio acima de
tudo.
Os princípios médicos são tão profundos que podem ser confundidos, se cumpridos à
risca, como um sacerdócio. Difícil é estabelecer os limites nessa profissão, pois ao
analisarmos a história da Medicina, com o avanço cada vez maior da tecnologia, o
médico foi se distanciando do paciente e deixando que a técnica por si só tratasse da
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pessoa. Por isso importante é conhecermos bem o tempo e seu contexto para
construirmos uma identidade do médico livre dos defeitos da vaidade, da ambição e do
lucro.
Lucas, o médico evangelista, amigo inseparável de Paulo, teve uma história de vida
ligada ao mundo escravocrata da Roma antiga. Estudou na escola de Medicina da
Alexandria, porém sabia onde estavam os necessitados. Foi filho de escravos gregos,
mas conseguira obter uma profissão devido ao apoio do senador Diodoro, para quem
seus pais trabalhavam. O conflito de Lucas foi o momento social em que viveu, o qual
não entendia o absurdo dos que menos tinham condições materiais, eram os mais
providos de doenças e males físicos. O questionamento de Lucas era como justificar os
contrastes da Elite politeísta romana à miséria da maioria escrava, submetida a
sofrimentos
tão
grandes.
Lucas
era
cético,
todavia
seus
questionamentos
ultrapassavam questões científicas, eram questões verdadeiramente humanas de
sentido. Resolveu ser evangelista pela profunda admiração que nutriu ao se informar do
judeu que se sacrificou pelo povo oprimido que vivia sob o julgo romano.
Foi o evangelista que escreveu com maior perfeição o Evangelho, devido a sua
formação cultural, e aquele que pesquisou afinco a vida de Cristo. Depois vieram
Cesário, Cosme e Damião, Panteileimon, Egidio de Santarém, Pedro Hispano, Filipe
Benicio,Antonio Della Torre, Antonio Maria Zacaria, Francisco - O Japonês, Joaquim -O
Japonês, Nicolau Stense, Jacques Desire Laval, Ricardo Pampuri, Joana Beretta Molla,
Hildegarde de Bingen e outros que talvez a Igreja nem tenha tomado conhecimento
(GIANNINI,2004).
Ainda, a Medicina e a sociedade contam com aqueles que não produziram milagres,
são tão humanos quanto os acima citados, porém não pregam nenhuma religião,
apenas entendem sua profissão como um domínio de grande comprometimento
humano. Como os médicos sem fronteiras, os médicos penitenciários, os médicos que
se deslocam e mudam sua vida em favor daqueles países com povos menos
favorecidos, como África, Indonésia e outros.
O médico Albert Schweitzer (1875-1965), é um exemplo de que não há necessidade do
chamado divino para perceber que a profissão de médico deve ―ser sensível a alma
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humana‖, nesse trecho que responde a um amigo íntimo sobre seu comportamento
médico, temos uma clara impressão de sua racionalidade diante da profissão.
―[...] Num determinado dia tomei a decisão de ser médico e de ir para África. Essa decisão não
foi conseqüência de um suposto chamado divino, mesmo por que confesso nunca tive a
ventura de ouvir a voz de Deus orientando-me para esse mister. Sem nenhuma dúvida houve
uma tomada de atitude absolutamente racional, resultado consistente de meus padrões morais
e de minha visão de vida. Alguns teólogos ainda disseram que mesmo assim eu tive a palavra
de Deus orientando-me para esse caminho. Eu nunca os contestei, mas lhes disse que
provavelmente meus ouvidos eram menos sensíveis que os deles.‖[...]
GIANNINI, 2004, pág 123 APUD SCHWEITZER.
Como em todas as profissões, o médico hoje precisa parar e refletir sobre seu cargo no
contexto civilizatório atual. E esse texto não é um chamado divino para cada um refletir
sobre sua vocação, nada disso. Mas sim para pensar que os santos médicos foram
pessoas como nós, como os médicos santos mais humanos ainda, e a partir disso
entender que não é preciso ser convocado, ter um sonho revelador, mas sim acreditar
mais na alma do mundo, e entender que nós não precisamos de heróis, precisamos de
seres mais humanos, para assim a prática médica jamais se
tornar um ato medíocre.
A Importância de Hammurabi
Na primeira metade do segundo milênio da era pré-cristã,
um grupo nômade MAR. TU-amorita – fixou-se em uma
localidade denominada Babila, ás margens do Eufrates. O
nome Babila deve ter sido imediatamente interpretado pelos
novos habitantes como Babi-ilim= ―Portal de Deus‖, e que foi
traduzido em nossas línguas modernas como Babel, que
acabou por se tornar a capital do Império Babilônico.
Provavelmente emigraram das montanhas da Pérsia.
Estela de diorito, Museu de Louvre,
França.Fonte:
employes.oneonta.edu/politics/hammurabi.
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Hammurabi foi o sexto rei da primeira dinastia babilônica. Conseguiu durante seu
reinado conquistar a Suméria e Acádia, tornando-se o primeiro rei do Império
Babilônico.
Hammurabi reinou de 1728 a.C até sua morte em 1686 a.C, tendo ampliado a
hegemonia da Babilônia por quase toda Mesopotâmia, iniciando pela dominação do sul.
Foi o primeiro grande organizador que consolidou o seu Império sobre normas
regulares de administração. Em sua política externa Hammurabi preocupou-se sempre
reconstruir as cidades vencidas, e em reedificar e ornamentar os templos dos deuses
locais, com isso captava a confiança dos povos vencidos. E uma das suas principais
preocupações foi com a ordem, e a implantação do Direito no país. Sem dúvida seu
sentido de justiça foi sua marca maior no Oriente Antigo.
E como todos pensam o código de Hammurabi não é o corpo legal mais antigo do
Oriente Antigo. Muitos anos antes, Urukagina de Lagãs, no terceiro milênio da era précristã, é apresentado pelos textos da época como legislador e reformador. Essas
inscrições, entretanto, não transmitem leis ou normas legais, mas apresentam as
medidas sociais adotadas para coibir abusos e corrigir as injustiças vigentes.
O código de Hammurabi foi descrito numa estela de diorito em três alfabetos distintos.
A estela do código de Hammurabi foi encontrada em Susa em 1901. Nela além dos 282
códigos de lei, pode se ver a imagem do rei Hammurabi, e provavelmente o deus
Shamash.
Uma das finalidades da estela de Hammurabi era sem dúvida enaltecer a figura do rei.
É um exemplo de sentenças justas. Ela dá aos que procuram o seu direito, confiança
na justiça do rei e, para os sucessores de Hammurabi no trono de Babel, o exemplo de
Hammurabi cria uma obrigação moral de imitá-lo em sua justiça e seu interesse pelo
bem comum. O seu valor moral é inestimável.
É interessante ressaltar que o Código de Hammurabi apresenta uma certa preocupação
moral com o uso de bebidas alcóolicas. Este é o único, entre os 282 artigos deste
Código promulgado entre os anos de 1.825 e 1787 a.C., que versa sobre bebidas
alcóolicas como uma causa de punição severa (morte com fogo) para mulheres da
classe superior do clero babilônico. Ressalto que não era aplicado a homens de
quaisquer classes ou às mulheres de classes inferiores.
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§ 110 – Se uma (sacerdotisa) nadïtum ou ugbabtum, que more em um convento, abriu uma
taberna ou entrou na taberna para (beber) cerveja, queimarão essa mulher.
O Código de Hammurabi, sendo um código prático, dispunha sobre lei e ordem; de
maneira geral, ignorava os sacerdotes e tratava principalmente do trabalho dos
médicos leigos.
Alguns parágrafos foram mencionados no Código sobre situações médicas:
Parágrafo 215 - Se um médico tratar a ferida de um individuo com a lanceta de bronze
e curá-lo, ou se fizer com essa uma incisão em seu olho a salvá-lo, deverá receber dois
siclos;
Parágrafo 216 – Se o individuo curado for um liberto o médico receberá cinco siclos
Parágrafo 217 – Se for um escravo seu proprietário deverá dar dois siclos ao médico;
Parágrafo 218 – Se um médico tratar a ferida de um indivíduo com a lanceta de bronze
e o matar, ou fizer uma incisão em seu olho e o olho se perder, deverão ser-lhes
cortadas as mãos;
Parágrafo 219 - Se um médico tratar a ferida grave do escravo de um liberto com a
lanceta de bronze e o matar, deverá dar em troca escravo por escravo;
Parágrafo 220 – Se um médico fizer uma incisão com a lanceta de bronze no olho de
um escravo, e o olho se perder, deverá pagar a metade de seu preço ao proprietário;
Parágrafo 221- Se o médico restabelecer o osso quebrado de um individuo, ou suas
partes moles doentes, o doente deverá dar cinco siclos ao médico;
Primórdios da Medicina- Mesopotâmia
Um dos oito portões monumentais da
Babilônia de Nabucodonosor II. Fonte: A
medicina e sua história, 1989. p 10.
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Onde atualmente se encontra o Iraque, há alguns milênios atrás foi o local de
nascimento de nossa civilização, e junto a ela, os primeiros indícios civilizatório de
conhecimento de Medicina.
Uma das mais antigas civilizações, a Babilônia, foi contemporânea do Egito prédinástico, mais ou menos do quarto milênio, antes que fossem construídas as
pirâmides, e organizadas a religião, a ciência e Arte. Isso aconteceu pelo menos três
mil anos antes do florescimento da cultura hebraica.
Estamos falando de por volta de 2500- 1400 a.c, nessa civilização a religião e magia
estiveram sempre presentes no cotidiano e nas instituições moldando às atitudes em
relação à doença e à saúde.
A Mesopotâmia, embora com toda sua criatividade e prosperidade da terra e do seu
povo, era, entretanto, constantemente ameaçada por pragas e doenças trazidas pelos
homens e animais, que faziam de rota das caravanas. Além disso, as tempestades de
poeira, o calor forte durante o dia e o frio à noite criavam grandes problemas nasais e
peitorais, como também a malária, disenteria e moléstias trazidas pelos canais de
irrigação poluídos e as moscas.
A idéia do pecado era crucial para se entender a relação de doença para os
mesopotâmicos, haja vista que a enfermidade era o castigo para qualquer pecado
cometido, ordenado pelos deuses e distribuído pelos demônios, que ocupavam o corpo
do pecador e lhe fazia estragos. A deusa Ishtar (deusa da feitiçaria) seria responsável
por esses demônios, e quem estivesse a seu serviço, seriam os demônios das
doenças.
A legislação mesopotâmia para imperícia médica era severa e cumprida. Caso uma
operação ocular causasse a perda de um olho, as mãos do médico seriam cortadas.
Como também se ocorresse a morte de um paciente nobre, o médico também perderia
a vida.
O médico na Mesopotâmia encarnava a autoridade e o conhecimento do saber médicoempírico. Seus honorários eram regidos por lei, como também eram as penalidades
caso algum tratamento causasse morte ou danos ao paciente.
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A prévia psiquiátrica na Mesopotâmia
Os médicos sacerdotes tratavam das doenças internas e
especialmente das doenças mentais, que eram atribuídas à
possessão demoníaca e curadas por métodos mágicos e religiosos; os médicos leigos
tratavam de anormalidades patológicas externas, geralmente causadas por ferimentos,
e empregavam meios de tratamento mais naturais.
Os processos mágicos eram auxiliados por práticas astrológicas e oraculares. Os
babilônios acreditavam que os astros eram divinos e possuíam inteligência superior, e
que na natureza tudo tinha um plano e uma inteligência. Sustentava-se que o ciclo
menstrual e a exacerbação e remitência de certas doenças tinham estreita relação com
a atividade cíclica de corpos celestes. Os órgãos de animais sacrificados eram usados
como augúrios. O fígado era especialmente apropriado para a profecia. Seu tamanho,
formato e cor, tinham valor prognóstico para o paciente enfermo em benefício do qual o
animal era sacrificado. Os médicos sacerdotais, que guardavam ciosamente o
conhecimento
secreto
de
seu
método
de
adivinhação,
eram
chamados
hepatoscopistas.
Empregavam-se drogas, mas acreditava-se que o tratamento mais eficaz era o
encantamento.
A grande farmacopéia babilônica foi preservada nas tábuas cuneiformes; os
encantamentos não foram codificados, da mesma forma como as preces silenciosas
dos pacientes não fazem parte dos manuais médicos modernos, embora o paciente
possa achar que são tão importantes quanto o remédio. De fato, o encantamento era
um poderoso instrumento psicológico; como diz o eminente historiador médico Sigerist
(1933): ―Um sistema de medicina que ra dominado pela magia e religião, e cujo
propósito era reabilitar o individuo e reconciliá-lo com o mundo transcendental,
evidentemente incluía psicoterapia. A pesquisa da alma do paciente que estava
convencido de sofrer por que havia pecado tinha efeito libertador; e os ritos executados
e as palavras proferidas pelo sacerdote encantador tinha profundo poder sugestivo.
Desse ponto de vista, Singerist conclui que ― a medicina mesopotâmia era
psicossomática em todos os seus aspectos‖.
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O mundo espiritual dos babilônios era povoado por muitos demônios, que combatiam
número maior ainda de espíritos benignos ou deuses. A deusa Ninkharsag, com o
auxilio de outros oito deuses e deusas, especializava-se em diferentes síndromes de
doença. Todos os médicos tinham seus próprios deuses pessoais; a principal divindade
dos médicos era o deus curador, Ninurta, que com sua esposa, Gula era o padroeiro da
arte de curar. Seu símbolo era a serpente. O sacerdote primeiro diagnosticava a
doença e depois apelava ao deus particular que se especializava naquela doença, ao
mesmo tempo em que invocava a divindade responsável pela cidade onde o paciente
morava.
Os deuses tinham sete inimigos, os demônios maus, que chefiavam um exército de
demônios menores dedicados a Ishtar, a deusa da feitiçaria e das trevas. Cada doença
tinha seu demônio especifico. A insanidade mental era causada pelo demônio Idta. Os
demônios eram servidos por feiticeiros, que empregavam mal olhado, preparações
especiais e certas cerimônias.
Embora a população da Mesopotâmia praticasse principalmente medicina mágica e
religiosa, ainda assim a medicina deve muito a ela, pois os mesopotâmios descreveram
muitas doenças correta e pormenorizadamente em suas tábuas cuneiformes. Não
apenas descobriram muitos princípios médicos, mas foram os primeiros a estudar o
histórico da vida do paciente. Além disso, entre os babilônios, a higiene e a medicina
social, e acima de tudo a ética médica atingiram grandes alturas.
Em psiquiatria como em todos os campos da medicina, a codificação das
responsabilidades do médico em relação aos seus pacientes é indispensável. Se a
medicina babilônica nenhuma outra coisa nos tivesse dado, esse já seria um progresso
significativo.
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O conhecimento do Egito
É muito sutil a diferença dessas civilizações, embora
se possa compreender que no Egito o governante
era o próprio deus; já na Mesopotâmia havia um
representante da divindade, o que deu possibilidade
a um maior grau de discernimento em relação ao
mundo. Haja vista que essas civilizações tiveram seu
desenvolvimento quase que concomitantemente, o
que podemos estabelecer diferenças e não aspectos
de maior ou menor desenvolvimento.
Assim como na civilização mesopotâmica, o médico
Máscara em ouro maciço,
Tutancamon.1360 a.C.Fonte: A medicina
e sua história,1989. pág 18.
egípcio era homem de grande erudição. Possuía o
que se chamava de julgamento empírico, recebia
uma formação manual e treinamento de outros médicos mais experientes.
O conhecimento médico egípcio estava inscrito nos vários papiros preservados de
dinastia a dinastia. Os babilônios desenvolveram profunda disciplina matemática, os
egípcios coligiam numerosos pormenores, mas muitas vezes deixavam de distinguir
entre fato e imaginação.
As tábuas cuneiformes de argila dos babilônios eram mais curtas, mais concisas que os
rolos dos papiros egípcios, longos, vagos e ás vezes incompreensíveis. Tem dito que
se os egípcios usassem uma cesta de papiro usado com mais freqüência, suas
contribuições médicas de valor não teriam ficado tão encerrada na massa de outros
pormenores inúteis.
Das duas principais influencias exercida sobre o povo do Nilo, uma veio do Oriente e
outra da África. Onde a influencia oriental foi maior, predominaram o misticismo e a
medicina sacerdotal; onde o contato com a natureza prevaleceu, como na civilização
africana, o empirismo foi dominante.
Os dois mais importantes papiros médicos egípcios que existem hoje são os chamados
papiros de Ebers e papiro de Edward Smith, ambos datados de aproximadamente a
mesma época, cerca de 1550 anos a.C. O papiro de Ebers trata exclusivamente da
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medicina interna e farmacologia, ao passo que o papiro de Smith descreve ferimentos e
tratamentos cirúrgicos. A cirurgia eficaz é uma questão de processo racional, não
sendo, portanto de surpreender que o papiro de Smith contenha pouca coisa em
matéria de encantamento religioso ou ritual mágico. Já o papiro de Ebers é abundante
em encantamentos e explicações ocultas de doenças cuja verdadeira etiologia era
desconhecida.
O papiro de Smith é importante também por que nele o cérebro é descrito pela primeira
vez na história, e por que mostra claramente que ele era reconhecido como a sede de
funções mentais.
Os médicos egípcios conheciam poucas coisas sobre nervos, músculos e vasos
sanguíneos. Acreditavam que as partes anatômicas eram governadas por espíritos
específicos e que o corpo era um microcosmo que, como o mundo exterior, se
compunha de quatro elementos. Os ossos e a carne do corpo correspondiam à terra. O
liquido do corpo correspondia à água e, assim como o Nilo subia e baixava
alternadamente, o liquido do corpo subia e baixava em seus vasos pulsantes. O
coração que aquecia o corpo era o equivalente do sol e do fogo, e o sopro era o
equivalente do vento.
Para a medicina egípcia a função vital estava na respiração e na circulação do sangue.
O corpo humano seria formado por um sistema de dutos para o transporte de ar, do
sangue, dos alimentos e esperma, as doenças eram, portanto, uma obstrução ou
inundação na circulação normal.
Um aspecto curioso na medicina egípcia era a crença na relação entre região anal e o
sistema cardiovascular. Um amplo número de prescrições dizia que enemas de
retenção eram importantes por que refrescavam o anus e o coração.
Os médicos egípcios eram sujeitos a leis sobre imperícia ou negligencia no exercício da
profissão, semelhantes às que vigoram no mundo moderno. As práticas tradicionais
eram reconhecidas e se o paciente morria por ter sido inconvenientemente tratado, o
médico era considerado culpado e responsabilizado. Indiscutivelmente a medicina
egípcia influenciou Moisés tanto quanto Hipócrates. Os médicos egípcios eram tão
sagazes em suas observações quanto mágicos em suas explicações e esotéricos em
seus ensinamentos.
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Princípios de Psiquiatria no Egito
Imhotep (2850 a.C), o curador egípcio
que se tem conhecimento. Seu templo
em Mênfis tornou-se uma escola de
Medicina e hospital onde se praticava o
sono
de
incubação
–
forma
de
psicoterapia mais desenvolvida pelos
sacerdotes esculápios. Muito tempo
antes dos gregos os egípcios estabeleceram em seus templos o tipo de ambiente que
em certos aspectos era mais moderno. Por exemplo, os pacientes eram encorajados a
se ocuparem nas suas horas de folga com atividades recreativas como voltas no Nilo,
musicoterapia, danças, pinturas, Arte etc. Essas atividades devem ter dado resultados
terapêuticos, exatamente como acontece em ambientes de hospital moderno, onde é
recomendada terapia ocupacional. Contudo, havia tão grande necessidade de
explicações sobre naturais, que as curas, quando conseguidas, eram atribuídas ao
santo padroeiro do Templo onde o paciente se encontrava.
O corpo humano seria formado por um sistema de dutos para o transporte de ar, do
sangue, dos alimentos e esperma. Os egípcios reconheceram a perturbação mental
que mais tarde os gregos chamariam de histeria; acreditavam que os sintomas era
devido a má posição do útero e por isso fumigavam a vagina, esperando atrair o útero
errante para sua posição natural. A fumigação era também tratamento muito conhecido
na Grécia, onde Hipócrates e Platão a recomendavam sem restrições.
No Egito ainda que os demônios fossem causadores de doenças, eles eram dominados
pelos deuses e os feitiços desfeitos por preces.
Quer os médicos fossem sacerdotes, leigos, mágicos ou uma combinação deles, a
medicina egípcia era predominantemente mágica e religiosa.
Na estrutura da prática médica egípcia havia uma divisão entre as classes de médicos,
o que distinguia dos mesopotâmicos, havia duas escolas, a empírica e a mágicoritualística. A primeira era destinada aqueles que possuíam riqueza, entretanto era
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cara, restrita a população rica. Já a segunda, era barata e popular. Na prática empírica
o diagnóstico era avançado. (ALEXANDER;SELESNICK, 1966).
A importante biblioteca de Alexandria
A tecnologia e o conhecimento recuaram, ou
retrocederam
na
catástrofe
que
foi
a
destruição da grande biblioteca em Alexandria
em 391 d.C, por fanáticos religiosos, e que
deixaram-nos regredir nosso conhecimento
por vários séculos.
Alexandria foi fundada em 332 a.C., por
Representação da Biblioteca de Alexandria
Alexandre Magno, para ser a melhor cidade
portuária da Antiguidade. O porto foi construído com um imponente quebra-mar que
chegava até a Ilha de Faros, onde foi erguido o famoso Farol de Alexandria, uma das
sete maravilhas do mundo.
A cidade começou a ganhar fama com a Biblioteca Alexandrina, seu nome original,
erguida nos jardins do palácio real. A antiga biblioteca, que se acredita que reunia a
maior coleção de livros do mundo antigo, foi fundada por Ptolomeu I Sóter, rei do Egito.
Os eruditos encarregados da biblioteca eram considerados os homens mais capazes
de Alexandria na época. Zenódoto de Éfeso foi o bibliotecário inicial e o poeta Calímaco
fez o primeiro catálogo geral dos livros.
Como o aumento do acervo virou uma verdadeira obsessão, filiais da biblioteca tiveram
de ser criadas em outros pontos da cidade para abrigar o material, boa parte adquirida
à força - consta que muitos originais emprestados para ser copiados acabaram não
sendo devolvidos.
O motivo de sua destruição ainda divide historiadores. A versão mais difundida diz que
o responsável teria sido Júlio César. Ele a incendiou por engano quando repelia um
ataque vindo do mar, durante a guerra contra Ptolomeu XIII, irmão e então inimigo de
Cleópatra. O tesouro que sobrou foi reunido numa das filiais da biblioteca, Serápis, um
templo pagão que acabou sendo destruído pelos cristãos em 391 d.C. Outra
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possibilidade é de que a biblioteca tenha sido destruída pelo fogo em três ocasiões: em
272 d.C., por ordem do imperador romano Aureliano; em 391 d.C., quando o imperador
Teodósio I arrasou-a, juntamente com outros edifícios pagãos, e em 640 d.C., pelos
muçulmanos, sob a chefia do califa Omar I.
Os Livros Proibidos
Demétrios de Phalére, o primeiro bibliotecário chefe, desde o
começo ele agrupou setecentos mil livros e continuou aumentando
sempre esse número. Os livros eram comprados a expensas do rei.
Demétrios foi o primeiro ateniense a descolorir os cabelos,
alourando-os com água oxigenada. Depois foi banido de seu
governo e partiu para Tebas. Lá escreveu um grande número de obras, uma com o
título estranho: 'Sobre o feixe de luz no céu', que é provavelmente, a primeira obra
sobre discos voadores. Demétrios tornou-se célebre no Egito como mecenas das
ciências e das artes, em nome do rei Ptolomeu I. Ptolomeu II continuou a interessar-se
pela biblioteca e pelas ciências, sobretudo a zoologia. Nomeou como bibliotecário a
Zenodotus de Éfeso, nascido em 327 a.C., e do qual ignoram as circunstâncias e data
da morte. Depois disso, uma sucessão de bibliotecários, através dos séculos,
aumentou a biblioteca, acumulando pergaminhos, papiros, gravuras e mesmo livros
impressos, se formos crer em certas tradições. A biblioteca continha, portanto,
documentos inestimáveis. Sabe-se que um bibliotecário se opôs, violentamente, à
primeira pilhagem da biblioteca por Júlio César, no ano 47 a.C., mas a história não tem
o seu nome. O que é certo é já na época de Júlio César, a biblioteca de Alexandria
tinha a reputação corrente de guardar livros secretos que davam poder praticamente
ilimitado. Quando Júlio César chegou a Alexandria a biblioteca já tinha pelo menos
setecentos mil manuscritos. Os documentos que sobreviveram dão-nos uma idéia
precisa. Havia lá livros em grego. Evidentemente, tesouros: toda essa parte que nos
falta da literatura grega clássica. Mas entre esses manuscritos não deveria
aparentemente haver nada de perigoso. Ao contrário, o conjunto de obras de Bérose é
que poderia inquietar. Sacerdote babilônico refugiado na Grécia, Bérose nos deixou de
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um encontro o relato com os extraterrestres: os misteriosos Apkallus, seres
semelhantes a peixes, vivendo em escafandros e que teriam trazido aos homens os
primeiros conhecimentos científicos. Bérose viveu no tempo de Alexandre, o Grande,
até a época de Ptolomeu I. Foi sacerdote de Bel-Marduk na babilônia. Era historiador,
astrólogo e astrônomo. Inventou o relógio de sol semicircular. Fez uma teoria dos
conflitos entre os raios do Sol e da Lua que antecipa os trabalhos mais modernos sobre
interferência da luz. A História do Mundo de Bérose, que descrevia seus primeiros
contatos com os extraterrestres, foi perdida. Restam alguns fragmentos, mas a
totalidade desta obra estava em Alexandria. Nela estavam todos os ensinamentos dos
extraterrestres.
A ofensiva seguinte, a mais séria contra a livraria, foi feita pela Imperatriz Zenóbia.
Ainda desta vez a destruição não foi total, mas livros importantes desapareceram.
Conhecemos a razão da ofensiva que lançou depois dela o Imperador Diocleciano (
284--305 d.C. ). Diocleciano quis destruir todas as obras que davam os segredos de
fabricação do ouro e da prata. Isto é, todas as obras de alquimia. Pois ele pensava que
se os egípcios pudessem fabricar à vontade o ouro e a prata, obteriam assim meios
para levantar um exército e combater o império. Diocleciano mesmo filho de escravo,
foi proclamado imperador em 17 de setembro de 284. Era ao que tudo indica,
perseguidor nato e o último decreto que assinou antes de sua abdicação em maio de
305, ordenava a destruição do cristianismo. Diocleciano foi de encontro a uma
poderosa revolta do Egito e começou em julho de 295 o cerco à Alexandria. Tomou a
cidade e nessa ocasião houve um massacre. Entretanto, segundo a lenda, o cavalo de
Diocleciano deu um passo em falso ao entrar na cidade conquistada, e Diocleciano
interpretou tal acontecimento como mensagem dos deuses que lhe mandavam poupar
a cidade. A tomada de Alexandria foi seguida de pilhagens sucessivas que visavam
acabar com os manuscritos de alquimia. E todos os manuscritos encontrados foram
destruídos. Eles continham as chaves essenciais da alquimia que nos faltam para a
compreensão dessa ciência, principalmente agora que sabemos que as transmutações
metálicas são possíveis. Seja como for, documentos indispensáveis davam a chave da
alquimia
e
estão
perdidos
para
sempre:
mas
a
biblioteca
continuou.
Apesar de todas as destruições sistemáticas que sofreu, ela continuou, sua obra até
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que os árabes a destruÍssem completamente. E se os árabes o fizeram, sabiam o que
faziam. Já haviam destruído no próprio Islã - assim como na Pérsia - grande número de
livros secretos de magia, de alquimia e de astrologia. A palavra de ordem dos
conquistadores era "não há necessidade de outros livros, senão o Livro", isto é, o
Alcorão. Assim, a destruição de 646 d.C. visava não propriamente os livros malditos,
mas todos os livros. O historiador muçulmano Abd al-Latif (1160-1231) escreveu: "A
biblioteca de Alexandria foi aniquilada pelas chamas por Amr ibn-el-As, agindo sob as
ordens de Omar, o vencedor". Esse Omar se opunha, aliás, a que se escrevessem
livros muçulmanos, seguindo sempre o princípio: "o livro de Deus é-nos suficiente". Era
um muçulmano recém-convertido, fanático, odiava os livros e destruiu-os muitas vezes
porque não falavam do profeta. É natural que terminasse a obra começada por Julio
César, continuada por Diocleciano e outros. (BERGIER, 1971).
A boa nova que nos chegou do Oriente Médio, região tão rara em produzir noticias
felizes, é o da inauguração da Nova Biblioteca de Alexandria, acontecido em outubro de
2002, um colossal empreendimento que visa recuperar a imagem da cidade como um
centro de sabedoria, posição que perdeu há
bem mais de 1500 anos. Que os espíritos dos
grandes do passado inspirem os que virão no
futuro nesta grandiosa tarefa.
Os Hebreus
A medicina do povo de Israel foi grandemente
influenciada pela de seus vizinhos babilônicos e
egípcios.
O ponto de vista fundamental que caracterizava
a medicina primitiva hebraica e a distinguia da
Moisés. Fonte: Enciclopédia Koogan-Houaiss
digital.www.granavenida.com/moises.
medicina antiga da Babilônia e do Egito residia
na crença em que um único deus era a origem
da saúde e da doença. ―Pois eu sou o senhor que te sara ( Êxodos 15,26) ―Eu mato e
eu faço viver, eu firo e eu saro‖ ( Deuteronômio 32,39). A cura de doença era, portanto,
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um atributo do Divino e o propósito da doença, inclusive a loucura, eram punir o homem
por seus pecados.
Os mais importantes médicos hebreus eram sacerdotes que tinham meios especiais de
apelar ao grande Curador. Provavelmente o primeiro paciente hebreu que se sabe ter
tentado separar os papeis de sacerdote e médico foi o rei Asa (950-875 a.C), que
conforme está registrado em II Crônicas 16,12 ― na sua enfermidade não recorreu ao
senhor, mas confiou nos médicos‖. Posteriormente quando médicos leigos se firmaram,
sua prática foi limitada, do mesmo modo que a prática dos babilônios e egípcios, para
que não tivessem jurisdição sobre as doenças ocultas – doenças internas, epilepsia e
doenças mentais. As funções dos sacerdotes-médicos eram igualmente bem definidas:
supervisionavam as leis dietárias e impunham as regras de higiene social.
O conhecimento anatômico era mais adiantado entre os hebreus do que entre os
babilônios e egípcios, pois a Bíblia aprovava a dissecação dos animas sacrificados.
Quase todos os órgãos e estruturas são mencionados na Bíblia – um que nunca
aparece é o cérebro humano – mas o órgão mais importante por ser considerado sede
das emoções e do intelecto, era o coração.
Talmude e os conhecimentos psicológicos
Talmude é uma palavra hebraica que significa ―estudo‖.
Ao contrário dos povos da Mesopotâmia e do Egito, os hebreus não tinham textos ou
inscrições médicas sistemáticas, mas o Talmude está cheio de histórias que
demonstram sabedoria psicológica.
O Talmude é a codificação do que era leis orais
passada pelo povo hebreu, através de uma
coleção de tradições rabínicas que interpretam a
lei de Moisés. Possui muitas passagens que
consta conhecimento psicológico.
O mecanismo psicológico de culpar o outro pelos
Talmude
próprios
pecados,
o
qual
chamamos
de
projeção, é descrito como anedota em Megile 25, cuja descreve um homem que fazia
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campanha contra o vicio e acusava Jerusalém de cometer aqueles crimes que ele
próprio era culpado. O rabino Hunnah, dizia que homens bons tinham sonhos maus. O
qual ele admitia que nossos sonhos revelam sentimentos que nossa conduta moral
consciente proibi. Quanto a psicoterapia o rabino Ami recomendava diversão como
tratamento para perturbação mental. Outro rabino, Asi defendia que o paciente falasse
livremente de suas perturbações. Demônios malignos eram considerados como causa
da insanidade mental, asma e outros estados obscuros relatados na Bíblia; no Talmud,
porém, poderes sobrenaturais são de menor grau e a influencia do Talmud tornou a
medicina hebraica menos mágica que a medicina da Babilônia e Egito Antigos.
No Deuteronômio está escrito: ―O senhor te ferirá com a loucura‖, o que indica que,
embora
demônios
fossem
os
acusados
os
agentes
provocadores da insanidade mental, a suprema força era
atribuída ao Divino. A doença mental de Saul, que é
cuidadosamente descrita no primeiro livro de Samuel, era
considerada como causada por um mal espírito mandado pelo
senhor. Vencido pela depressão, Saul tentou persuadir seu
Nabucodonosor, 605-562 a.C
servo a matá-lo; quando o homem recusou, Saul cometeu
suicídio (I Samuel 31,4). Há também várias descrições bíblicas de excitação catatônica
e ataques epiléticos. Existe mesmo na Bíblia uma descrição da estranha psicose da
licantropia (o delírio em que a pessoa acredita ser um lobo) de que sofreu um dos mais
famosos homens da antiguidade, Nabucodonosor ( 605-562 a.C) o rei que reconstruiu a
Babilônia.
O interesse hebraico pelos doentes exerceu sempre importante influencia sobre os
aspectos humanitários da medicina e psiquiatria, e já no ano 480 d.C, havia em
Jerusalém um hospital destinado exclusivamente aos doentes mentais. (ALEXANDER;
SELESNICK,1968).
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A contribuição dos Persas
O primeiro grande período da medicina
persa iniciou-se mais ou menos em
meados
do
primeiro
milênio
A.C,
e
floresceu sob o regime de Dario, O
Grande, quando a influencia persa era
generalizada em todo Oriente Médio. A
fonte principal de nossas informações
sobre
a
filosofia
Zendavesta,
do
persa
qual
um
antiga
é
o
volume,
o
Persas. Fonte: nomismatike.hpg.ig/grécia/persa
Venidad, tem vários capítulos dedicados à medicina. O Venidad diz que existem 99.999
doenças que afligem a humanidade, todas elas causadas por demônios. De fato,
―Venidad‖ significa literariamente ―a lei contra demônios‖.
Os persas de meados do segundo milênio abraçaram uma religião dualística. Ahura
Mazda que criou o mundo, era o deus de bondade e luz; era cercado por seus seis
anjos que representavam tudo quanto é dadivoso. Em oposição à Mazda havia Angra
Mayniu, que era o espírito do mau e das trevas. Como Mazda não tinha poder infinito
estava em constante luta com Mayniu e os gênios maus que eram seus ajudantes.
Mazda delegou o reino da medicina a um poderoso anjo chamado Thrita, que se tornou
o médico mitológico persa, mais ou menos como Imhotep e Esculápio, eram os santos
padroeiros no Egito e na Grécia, respectivamente.
Exorcismo perpétuo era o caminho da vida boa e o meio de derrotar a má influencia de
Mayniu. Em conseqüência os persas antigos eram sujeitos a tremendas exigências
para que fossem virtuosos, corajosos, humildes e caridosos.
Felizmente para ajudar o homem na sua luta contra o mal, surgiu o profeta Zoroastro
(Zaratustra) mais ou menos no sexto século antes de Cristo. Auxiliando Zoroastro em
sua catequização da estrada certa havia os sacerdotes conhecidos como Mah
(pronuncia-se MAg), o que significa os ―maiores‖. Deve-se lembrar de que o Novo
Testamento, fala nos três sábios magos, que vieram do Oriente para adorar Cristo
infante. Nos anos subseqüentes, porém, os grandes magos perderam a alta estima em
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que eram tidos e tornaram-se conhecidos como charlatães e embusteiros, daí a
significação da palavra ― magia‖.
Tal como Yang e Yin dos chineses antigos, no conceito dualístico dos persas o bem e o
mal estavam em constante luta; mesmo dentro do corpo humano travava-se a batalha.
As forças do corpo procuravam prazeres e, portanto o mal, encontrando oposição da
alma, que se inclinava para a bondade e a pureza.
Embora o Venidad mencione três tipos de médico – cirurgiões, médicos de ervas e
mágicos – a ênfase era quanto aos processos mágicos e religiosos, depositando-se
mais confiança nos curadores espirituais. ―Quando os médicos competem‖, disse
Mazda, ―o doutor da faca, o doutor da erva e o doutor da palavra (talvez equivalentes
aos nossos modernos cirurgiões, especialistas em doenças internas e psiquiatria),
então, o crente deve ir aquele que cura pela palavra sagrada, pois ele é o curador dos
curadores e beneficia também a alma‖. (ALEXANDER; SELESNICK, 1968).
Profilaxia, higiene da mente e do corpo, boas ações e bons pensamentos eram
considerados os meios de obter e manter a boa saúde. Conceitos éticos não podem,
porém, vencer epidemias, e neste sentido a medicina persa não era muito adiantada.
Dava ênfase às teorias demonísticas, como a medicina babilônica; incluía também a
espécie de tendência religiosa que estava presente na medicina egípcia, mas faltavalhe a maneira mais racional e empírica de encarar a prática médica naquelas outras
duas culturas.
O extremo Oriente e sua incrível contribuição à Psiquiatria
A medicina hindu antiga como é descrita nos livros sagrados
dos Vedas, uma coleção de hinos e orações, compreende o
período médico védico (até 800 a. C). Viver nos vales do rio
Ganges, onde se instalaram as tribos arianas, era realmente
árduo. Pequenos sátrapas governavam pequenos principados
divididos. A população castigada pela pobreza encontrava
consolo em crenças místicas, especialmente na transmigração
da alma, que prometia sorte muito melhor na próxima vida. A
Shri Ganesh. Fonte:
www/wikipedia/hinduism.
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possibilidade de redenção através da renuncia aos prazeres mundanos era muito mais
desenvolvida na Índia antiga, que nas outras terras antigas. A feitiçaria e a demonologia
floresciam, e ermitões e reformadores acéticos percorriam o país oferecendo salvação.
A medicina hindu antiga era semelhante à persa e à chinesa no fato de ter como base a
luta das forças do mal (Siva) com as forças da restauração (Vishnu). Como se
acreditava que demônios coléricos habitavam o corpo, práticas e orações animísticas e
exorcísticas eram oferecidas pelos sacerdotes védicos aos deuses, especialmente ao
maior dele, o Brama.
Os brâmanes, sucessores dos sacerdotes védicos, possuíam ―Brama‖ (poder) sobre o
mundo espiritual, e as práticas médicas era seu domínio exclusivo. No período
Brâmane (800 a.C -1000 d. C), textos
médicos
eram
preocupação
de
escritos
sem
separar
a
práticas
médicas de ritos de encantamento. No
entanto, os trabalhos de Charaka
(segundo
século
D.C)
e
Susruta
(quinto D.C) sugeriam que poderosas
emoções podiam estar relacionadas
com comportamento peculiar.
Teorias
místicas
sobre
possessão
demoníaca descreviam a localização dos agentes maus ofensivos. Localizadas também
dentro do corpo havia certas características de personalidade; por exemplo, a
ignorância localizava-se no abdômen, a paixão no peito e a bondade no cérebro. A
fisiologia brâmane considerava que o ar, a bílis e a fleuma, são vitais a todos os
processos da vida e que essas substancias eram necessárias nas proporções
adequadas para assegurar a saúde. Este harmonioso equilíbrio é semelhante à teoria
humoral dos hipocráticos gregos. Todavia não se sabe quanta comunicação houve
entre a medicina grega e a hindu. Não foi, porém, a medicina hindu, mas a budista, que
mais interessou o mundo ocidental.
O fator central da influencia indiana sobre a psiquiatria é a ênfase budista em afastar-se
de interesses do mundo exterior para o mundo interior. A meditação budista tem
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definido sabor psicoterapêutico; com efeito, tem sido divulgada não apenas como forma
de psicoterapia para os doentes mentais, mas também como ajuda no trato na vida
cotidiana.
A filosofia de Gautama Buda (568-488 a.C), um príncipe hindu, resultou de seu choque
diante da descoberta dos efeitos da idade, doença e morte. Sua extraordinária empatia
por todas as coisas vivas conquistou-lhe o nome de Buda, que significa o Iluminado.
Desenvolveu uma técnica psicológica de meditação com o propósito de atingir
oportunamente o supremo estágio de nirvana – um estado tranqüilo, desprovido de
todo esforço e paixão. Isso devia ser atingido por uma sucessão de quatro estágios de
meditação, que levam a uma anulação do nascimento, que é o começo e a causa dos
males do homem. O objeto portanto, é a regressão psicológica ao estado pré-natal de
aquecimento, de ser puro, no qual desaparece a diferença entre sujeito e objeto. No
primeiro estágio de ihana o mundo é renunciado como símbolo do mal; o desprezo pelo
mundo resulta na renuncia a todos os desejos mundanos e o monge mediativo é
perseguido pela tristeza. Isto é análogo a um estado de melancolia provocado
experimentalmente. Esses sentimentos de tristeza são substituídos no segundo estágio
por amor a si próprio, um esforço para tirar do eu todo sustento espiritual. Essa
condição representa regressão ainda maior e assemelha-se aos estados psicóticos que
em que o interesse se centraliza completamente sobre o eu. No terceiro estágio o
sentimento de prazer provocado pelo amor a si próprio diminui e se torna apatia, que
por sua vez se transforma – no quarto estágio – em completo vazio e uniformidade
mental. Aqui o meditador ascético é exaltado acima do prazer e da dor, é livre de amor
e de ódio, é indiferente à alegria e à tristeza, é de fato indiferente ao mundo inteiro, aos
deuses e homens, mesmo a si próprio. Emerge livre de toda emoção. Nesse ponto é
capaz de lembrar com clareza de todas as circunstancias da vida até os mínimos
detalhes. Significativamente, a lembrança de todo desenvolvimento da pessoa foi
descrita por Freud, como objetivo de tratamento psicanalítico para perturbações
mentais. Contudo, no treinamento budístico, o desenrolar do filme da vida em direção
inversa vai ainda mais longe, além do nascimento, de volta a todas reencarnações
anteriores até o próprio começo da vida, invertendo os desenvolvimentos através de
todas reencarnações anteriores. Isto é nirvana, o fim da jornada regressiva através dos
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quatro estágios da Jhana, durante a qual todas as formas de vida anteriores da pessoa
são experimentadas de maneira clarividente. Pode-se duvidar que essas recordações
sejam de fato verdadeiras, pois é admissível que uma pessoa decidida a fugir do
mundo e do eu possa, em seu fervor espiritual, aceitar suas visões como lembranças
de encarnações anteriores.
É difícil reconciliar o objetivo de absorção, nirvana, que é uma condição completamente
associal, co os preceitos éticos budistas, a cura e a devoção ao ―bem-estar e à ajuda
de deuses e homens‖. A absorção em si própria – afastamento do mundo e da
sociedade – é um abismo intransponível entre o budismo e o pensamento psiquiátrico
ocidental. A psicanálise, por exemplo, esforça-se por conquistar o eu, sem perder o
mundo exterior. Um afastamento completo é objetivo alheio à tradição cultural
ocidental, na qual o homem é imbuído de impulso para a realização. Esta oposição
fundamental de idéias explica por que a influencia do pensamento oriental sobre o
desenvolvimento da psiquiatria foi apenas esporádica. À medida que o interesse
extrovertido da cultura européia atingiu seu apogeu na moderna era da Ciência, a
própria psicologia assumiu com o tempo os objetivos e os princípios de empirismo e
experimentação.
A introspecção é, porém, atributo básico do homem. Através da introspecção o homem
encontra um caminho para o universo do qual faz parte. Este caminho não contradiz,
mas complementa a exploração do mundo físico. Não é de espantar por tanto, que no
decorrer da História, sempre que os problemas da existência social se impuseram
violentamente a ele, o homem ocidental teve despertado sua preocupação por si
próprio e tornou-se mais receptivo à filosofia oriental.
Grécia- A Medicina é grega
A passagem do centro das civilizações mais antigas
para a grega foi marcada essencialmente pela busca
de conceitos mais objetivos e pelo abandono de
muitas superstições. Vale dizer, que os gregos
Esculápio
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trouxeram uma visão mais científica da Medicina, estabelecendo aí sua fundamental
importância.
A ordem cronológica do desenvolvimento do pensamento científico, desde as
especulações cosmológicas até o estudo do homem e da sociedade não é acidental. O
homem primeiro descobre as estrelas, depois seu ambiente físico imediato, depois seu
corpo e só por ultimo sua personalidade e a sociedade em que vive. A tese de
Nietzsche de que o homem está mais distanciado daquilo que se acha mais próximo
dele – seu próprio eu – foi confirmado pela prova histórica, antiga e moderna. A história
do pensamento grego oferece a demonstração mais clara desse principio universal,
cuja explicação ao agora estamos começando a compreender.
Sem dúvida é na Grécia que encontramos a base para a maioria de nossas
concepções de moral, filosofia, Ética, política e como não a Medicina. Pois foi nela que
se despertou a razão através de um desprendimento da divindade.
Souberam muito bem aproveitar o contato com outros povos, ao estabelecer elos com
civilizações orientais mais amadurecidas através de Creta. Utilizaram dos domínios
egípcios com sabedoria, aprimorando-os com raciocínio.
Os médicos guerreiros conheciam ossos, juntas, músculos e tendões do corpo.
Sabiam quais eram os ferimentos mortais e os efeitos terríveis dos ferimentos com
espada de ferro.
As guerras eram o cotidiano dos gregos, e dentro disso fizeram várias observações
importantes. Observaram como o coração pulsando podia disparar no peito e como o
grande tendão do pescoço mantinha a cabeça ereta.
Os deuses dos gregos eram os mais humanos que a antiguidade pudera até então
conhecer, talvez, atribui-se a isso uma condição mais favorável para valorizar mais os
homens e assim descobrir mais os domínios da razão. Estavam crentes de que os
deuses não socorriam os fracos, e não eram iludidos quanto a isso.
Entretanto nós também não podemos nos iludir, pois como toda sociedade humana, a
grega também havia suas contradições. Na dita democracia, escravos e estrangeiros
não podiam votar, e a mulher era vista como ser inferior pelos filósofos.
Página 51
A Medicina na Grécia foi acompanhada pela Filosofia. Foram os primeiros a pensar que
os milagres eram acontecimentos explicáveis por sistemas e leis imutáveis. O Tratado
sobre a natureza de Alcameon de Cróton tornou-se um texto fundamental da Medicina.
O juramento de Hipócrates vem do mito de Esculápio, o qual os estudos racionais dos
filósofos não excluíram o valor da Medicina mágico-religiosa da Grécia, desta resultou
um conhecimento médico secreto que mais tarde fora partilhado com outros, que
fizeram o juramento. O entendimento desse mito é importante para se compreender
como o próprio mito destruiu a questão divina da Medicina. Em outras palavras, na
história de Esculápio, o médico-divino que caminhava com uma serpente, os enfermos
eram levados ao santuário onde lá com os sacerdotes eram feitas oferendas, banhos e
milagres. Acontece que os milagres de Esculápio despovoaram a tal ponto o Hades,
que Zeus ouvindo os protestos de Plutão, atingiu-o com um raio. Concomitantemente,
uma escola empírico-racional de Medicina,
florescia na Península de Cnidos, junto a
Costa da Ásia Menor. Depois na ilha vizinha
uma outra escola surgiu como rival, a escola
de Cós. Os mitos são destruídos, quando já
não se faz mais tão necessário sua presença.
Os gregos utilizaram a matemática egípcia e
a astronomia babilônica para fundamentar a
filosofia e a lógica da medicina grega.
Os médicos filósofos foram os pioneiros da medicina racional. Tales de Mileto,
Empédocles de Agrigentum, Anaxágoras e Anaxímenes foram alguns dos mais
famosos médicos-filósofos gregos.
Hipócrates – e os conhecimentos psiquiátricos
(460-377 a.C) Nasceu na ilha de Cós e recebeu sua instrução médica de seu pai. Cós
dava ênfase ao tratamento e ao prognóstico, em oposição à escola médica de Cnicos,
que acentuava o diagnóstico. Escreveu o primeiro tratado sobre climatologia médica,
Ares, águas e lugares, acerca dos efeitos do clima e do meio ambiente sobre as
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condições médicas, a difusão das epidemias preocupando-se com a natureza da água
e do alimento e com a natureza das próprias pessoas. Aplicou a especulações dos
filósofos à medicina e combinou-as com observações feitas a beira da cama do doente.
Por isso é chamado o pai da medicina e foi o primeiro que tentou explicar
coerentemente todas as doenças com base em causas naturais.
Hipócrates incutiu uma visão científica e usou métodos em uma área dominada pela
magia e pela superstição. Seus julgamentos eram cuidadosos e moderados.
Do
Corpus Hippocraticum, o tratado sobre epilepsia encarece que nessa doença o cérebro
é doente; a parte sobre dieta declara que a maioria das doenças pode ser prevenida
por meio de hábitos racionais de alimentação.
O juramento Hipocrático e os livros Da Moral e Dos Médicos contêm importantes
sugestões clinicas.
O estudante de medicina moderno aprende, em seu primeiro dia de escola de
medicina, o principio hipocrático de que é a natureza que cura o paciente, e que o
médico é mero assistente da natureza. Os médicos de hoje aprendem o principio
básico de harmonia – ―homeostase‖. A patologia hipocrática fundava-se sobre o
conceito de harmonia entre os humores. Os estudantes de medicina aprendem a
pensar em termos de síndromes – um coerente grupo de sintomas interligados - e não
de diagnósticos múltiplos baseados em sintomas isolados. Hipócrates ao contrário dos
esculapianos, não hesitava em relatar casos mal sucedidos. No que se referia a
tratamento Hipócrates usava sangria e purgativos, mas só depois de terem falhado
outras medidas; receitava remédios – por exemplo, helebro - especialmente para
pacientes que sofriam de insanidade mental, mas advertia quanto à importância da
dosagem correta e da cuidadosa observação das reações do paciente.
A psiquiatria deve muito a ênfase dada por Hipócrates à medicina clinica; deve-lhe
também o primeiro reconhecimento de que o cérebro é o órgão mais importante do
homem. ―Os homens deveriam saber que do cérebro e só do cérebro vêm nossos
prazeres, alegrias, risos e gracejos, assim como nossas tristezas, dores, pesares e
lágrimas... em razão do que eu afirmo que o cérebro é interprete da consciência.‖ No
entanto, acreditava que se o cérebro estivesse afetado por excessiva umidade, calor ou
frio podia seguir-se a loucura, e que se os humores estivessem corretamente
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equilibrados surgiam pensamentos saudáveis. Achava que a inteligência era devida a
inspiração de pneuma (ar), que circulava e entrava no cérebro.
Os médicos hipocráticos descreveram pela primeira vez delírios tóxicos orgânicos,
assim como o sintoma da depressão que chamamos de melancolia e que acreditava
ser causada pela acumulação de bílis preta. Notaram também as características da
insanidade puerperal – psicose pós-parto. Descreveram fobias e cunharam a palavra
―histeria‖ para designar uma condição ainda prevalecente que fosse especifico de
mulheres. Pensavam que a histeria era causada por um útero errante que se
desprendera de suas amarras na cavidade pélvica. Talvez suspeitassem da origem
sexual dos sintomas histéricos, pois recomendavam casamento e relações sexuais
como remédios para condição.
Os hipocráticos descreveram pela primeira vez a classificação de doenças mentais, que
era extremamente racional. Incluíram nesse esquema epilepsia, mania (excitação),
melancolia e paranóia.
Fizeram as primeiras tentativas de descrever a personalidade com base em suas
teorias humorais e ainda hoje falamos em pessoas coléricas, fleumáticas, sanguíneas
ou melancólicas.
Os hipocráticos conquistaram grande reputação por reconhecer e tratar doença mental.
Mais significativo é que Hipócrates não só obtinha a história completa de seu paciente,
como
reconhecia
a
fundamental
importância
da
relação
médica
paciente.
A Hipócrates são atribuídos 72 textos, 42 histórias clínicas que aumentaram a soma de
conhecimentos médicos de então. Ele concebia a doença como um processo natural
nascido de causas naturais. A saúde resultava da harmonia e da simpatia mútua de
todos os humores do homem.
Hipócrates separou a Filosofia da Medicina, dizia que a inexperiência humana é que
colaborava para a crença nas divindades. Não podemos esquecer que foi Hipócrates
com seu juramento que deu partida aos códigos morais e éticos da prática profissional.
E por fim o universo grego conheceu uma nova figura de médico, mais humano,
simples e moral.
Página 54
Roma e os domínios da Medicina
Como os EUA, Roma sonhava em conquistar o mundo, e se pudesse, anexaria até
mesmo
os
planetas.
Sua
ambição
estava
legitimada na sua inabalável certeza de ser
superior aos demais povos, devido ao seu
prestígio militar, sua economia próspera e ao seu
modo de vida, que tal como os EUA, ou um pouco
menos, talvez, queriam impor aos outros sua
cultura e manter sua hegemonia.
Os etruscos eram ricos em medicamentos e
Moeda romana (117-118),Imperador Adriano que
isentou os médicos do serviço militar e de
outros.FONTE: A medicina e sua história,1989.p 35
sempre cultivaram a Medicina, e depois que os
romanos os expulsaram, se apoderaram de muito
de seus conhecimentos.
Roma através de suas conquistas e domínios territoriais foi uma civilização marcante,
porém à custa dos demais, principalmente dos gregos e etruscos. Entretanto os
primeiros conquistadores da península italiana foram os etruscos. Estes partilharam da
mitologia grega e egípcia. Tinham divindades para todos os propósitos. Apolo e Marte
eram os principais protetores da saúde; as deusas febris e Methitis protegiam contra
febres, Scabies contra coceira e Angina contra dor.
Mais ou menos no ano 300 a.C, Roma foi o centro de uma grande epidemia e
embaixadores romanos foram procurar os conselhos dos sacerdotes esculapianos em
Epidauro. Durante a conferência entre a delegação romana e os sacerdotes, uma
serpente entrou no navio romano ancorado no porto. Quando o barco chegou a um
porto romano a serpente nadou para a terra. Quando logo depois, cessou a epidemia,
seu declínio foi atribuído a Esculápio e seus médicos sacerdotes, e o culto esculapiano
floresceu durante algum tempo em Roma.
Também no domínio da Medicina foi predominante a presença dos helênicos.
Entretanto os primeiros médicos de Roma foram gregos. Da Bithynia chegou um
professor de oratória chamado Asclepíades (125 a.c), que defendeu a crença de que os
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átomos se moviam pelos poros ou canais, e de que a saúde ou a doença dependiam da
contração ou relaxamento de partículas sólidas.
Asclepíades foi o primeiro médico na Roma imperial a acalmar os insanos com
gentileza, luz solar e música. Reconheceu os efeitos psíquicos da pneumonia e da
pleurisia e definiu claramente condições como frenesi, letargia e catalepsia.
Seus discípulos mais tarde criaram noções de patologia. Fundou uma escola em Roma
que combatia as doutrinas de Hipócrates.
Devido à maioria dos médicos em Roma serem estrangeiros, e estrangeiros eram
escravos na República romana, a prática
médica era vista como um serviço de
escravos. Júlio César concedeu a cidadania
aos gregos em 46 a.C. Daí por diante a
situação melhorou, todavia o contato com a
corte aproximou os médicos de intrigas
políticas e acusações perigosas como por
exemplo Stertinio Xenofonte, que ofereceu os
cogumelos
envenenados
que
matou
o
imperador Cláudio.
Nas escolas de Medicina, os estudantes
eram obrigados a receber certificado da
polícia local de boa conduta, eram proibidos
Galeno fazendo curativo em gladiador. Fonte:
mural.w.es/dosagar/imagens/Galeno/gladiador.
de vários costumes da sociedade. Entre a
variedade de médicos exercendo a profissão
em Roma, havia urologistas, ginecologistas e oftalmologistas.
O maior dos escritores médicos, Cláudio Galeno de Pérgamo (131-200 d.C), cuja
autoridade foi praticamente incontestável nos próximos 1500 anos.
Galeno começou sua carreira como cirurgião dos gladiadores em Pérgamo e, como
parte de suas funções, prescrevia regimes dietéticos para esses atletas. No ano de
161d.C terminou o prazo de sua nomeação e, no ano seguinte foi para Roma, onde
procurou conterrâneos de Pérgamo que estivessem em condições de ajudá-lo. A
ascensão de Galeno começou quando curou de febre o filósofo Eudemo.
Página 56
Galeno deixou Roma quando se aproximava uma epidemia, alguns contam que ele
abandonou Roma por temer a epidemia; outros já concluem que fizera inimigos em
Roma e que simplesmente os temia.
Galeno escreveu pelo menos quatrocentas obras, das quais ainda existem oitenta e
três livros. Era muito amigo de tomar emprestado, copiar, sintetizar, plagiava e
aprimorava. A perpetuação de sua influencia foi devida à firmeza com que defendeu
Hipócrates e sua aceitação de um criador. O Cristianismo da Idade Média não podia
encontrar o que condenar no monoteísmo galênico.
Observou que lesões cerebrais em animais produzem perturbações do lado oposto do
corpo. Localizou sete dos nervos cranianos, distinguiu entre nervos sensores e
motores, e mostrou que as artérias continham sangue. Embora soubesse que o sangue
era móvel, nunca formulou uma teoria sobre a razão ou a maneira de sua circulação.
Notou que o corte da medula espinhal em animais resultava na perda de movimento e
sensação abaixo da lesão e propôs a teoria de que os nervos transmitiam impulsos do
cérebro e da medula espinhal.
Ninguém teve tanto reconhecimento quanto à prática médica, na Roma Imperial, do que
o jovem Galeno, que percebeu a ação do cérebro sobre todas as manifestações físicas
dos doentes romanos. Ele enunciava suas teorias como dogmas infalíveis; a essência
do método de Galeno estava na fisiologia, e na criação de lesões cerebrais e
raquidianas para traçar o caminho nervoso, provou o mecanismo da voz encontrando o
elo entre o cérebro e a laringe.
A contribuição de Roma no tocante à Medicina pode ser avaliada, saúde pública,
higiene pessoal, inspeção de alimentos, controle da prostituição e campanhas antimalária. Os hospitais militares romanos foram os precursores dos civis.
Entretanto um dos pontos fracos de Galeno foi empatar o desenvolvimento da Medicina
durante alguns séculos, devido a sua grande carga teológica que correspondia à Igreja
católica, no entanto contrariá-la seria uma séria afronta.
O último século do Império Romano foi marcado por grandes desastres, como pestes,
guerras, epidemias que destruíram cidades inteiras. E depois de Galeno parece que
Roma não desenvolveu mais seu interesse pela Medicina, ficando passivamente como
mera expectadora.
Página 57
Os conhecimentos psicológicos em Roma
Das filosofias gregas que influenciaram o pensamento
romano, duas, epicurismo e estoicismo, eram extremamente
realistas em sua maneira de encarar os problemas da vida
cotidiana.
Nenhuma
delas
era
um
sistema
teórico
comparável às idéias cosmologistas pré-socráticos; pelo
contrário, cada uma delas oferecia um conjunto de princípios
éticos para governar a conduta humana. O objetivo final de
O grito ―expressionismo‖.
Fonte: geocites.yahoo.com.br
ambas filosofias era a obtenção da felicidade, que devia ser encontrada na paz de
espírito e na falta de tensão. Até onde os estóicos e epicuristas se interessavam pela
metafísica, sua filosofia era inteiramente materialística, era a teoria atômica de
Demócrito. O mundo consistia em átomos, acreditavam eles, e os movimentos dos
átomos seguiam suas próprias leis; a única posição sensata dos homens era
conformar-se com essas leis e aceitar o curso inevitável de acontecimentos
materialmente predestinados (estoicismo) ou procurar tirar delas o máximo excessivo
de prazer (epicurismo).
O principio ético central era a ―ataraxia‖ ou falta de perturbação. A pessoa sábia
reconhece que só pode obter felicidade tornando-se independente do inexorável e
inevitável curso dos acontecimentos mundiais ou pelo menos não se deixando
perturbar por ele. ―Perturbação‖ significava assim aflição mental, expressão que
durante séculos, era sinônimo de doença mental. As modernas drogas psicotrópicas,
usadas esperançosamente para livrar o homem de sua tensão emocional, são
chamadas ―ataráxicos‖. É característico de nossa era cientifica tentar alcançar com
substâncias químicas o mesmo objetivo que os antigos tentavam com filosofia.
O estoicismo e o epicurismo, como filosofias práticas mais que teóricas, contribuíram
pouco para a psicologia como ciência básica. A psicologia lida com fenômenos naturais
que são processos mentais, e não os avalia do ponto de vista do bem e do mal. É difícil
para o homem encarar sua própria natureza objetivamente, ele tende ver em si próprio
apenas o que deseja ver, ao mesmo tempo em que ignora e reprimi o que considera
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mal e inaceitável. No mundo antigo, como em épocas posteriores, a tendência a avaliar
e a moralizar em tentar de entender a natureza humana, foi o maior obstáculo ao
desenvolvimento da psicologia como ciência. Além disso, a orientação helenística
prática e ética foi, no que se refere à psicologia, reforçada no Império Romano pelo
definhamento do interesse cientifico pela natureza, pelo corpo humano e pela mente.
Os pensamentos psicológicos de Platão e Aristóteles eram abstratos demais para
serem aplicados ao comportamento de pessoas humanas. Eram na realidade
generalidades sobre esforços, memória, fantasia, emoções e impulsos humanos, e
essas elevadas abstrações não constituíam base adequada para explicar as
personalidades individuais, muito menos o comportamento de pacientes mentalmente
perturbados.
Não é de surpreender, naturalmente que a medicina romana refletisse o característico
pragmatismo do povo romano. Havia pouco interesse por anatomia e fisiologia, e a
orientação dos médicos era estritamente empírica: desejavam proporcionar conforto
aos seus pacientes por meio de terapias físicas agradáveis – qualquer processo,
banhos quentes, musica, choques de enguias elétricas, massagem - que produzisse
resultados imediatos e melhorasse o estado de espírito subjetivo do paciente contribuía
também para reputação do médico, e essa era a única que importava.
A duas mais significativas contribuições ao desenvolvimento da psiquiatria foram dadas
por um filósofo, Cícero (106-43 a.C), que combinou a virtude romana do pragmatismo
com excepcional clareza de pensamento e insuperável capacidade de penetrar no
âmago de um problema, comentou assuntos médicos a sua incisiva maneira. Embora
não fosse – ou talvez mesmo por que não era – médico, reconheceu a significação
central da doença mental e perguntou: ―por que para o cuidado e conservação do corpo
foi idealizada uma arte... enquanto por outro lado a necessidade de uma arte de curar a
alma não foi sentida tão profundamente... nem foi estudada tão de perto?‖ Cícero
declarou ousadamente que as doenças corporais podiam ser resultado de fatores
emocionais. Por isso pode ser considerado como o primeiro psicossomata.
Discutindo diferenças e semelhanças entre doenças corporais e mentais, reconheceu
as diferenças fundamentais entre as duas. Considerou que as desordens e
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perturbações mentais decorrem de um descuido da razão; essas desordens são,
portanto, limitadas ao homem.
Esta idéia é fundamental à psicoterapia moderna, pois, quando uma pessoa aceita e
compreende as origens psicológicas de sua perturbação mental, torna-se capaz de
mudar as circunstancias que causaram seu problema. Essa talvez seja a mais clara
declaração que um homem antigo fez sobre a responsabilidade do homem sobre seu
próprio comportamento, normal ou mórbido. Cícero diz ainda: ―a cura da aflição e
outras desordens é uma só e a mesma, por serem todas elas voluntárias e fundadas
em opinião; tomamo-las sobre nós por que parece certo fazer isso. A filosofia empenhase em erradicar esse erro como raiz de todos os nossos males, deixemo-nos ser
instruídos por ela, e deixemo-nos ser curados‖. Hoje não chamamos o tratamento de
filosofia, mas de psicoterapia.
O médico metodista Sorano (93-139 d.C), teve um discípulo, Célio Aureliano, que
registrou algumas das idéias de seu mestre em um volume intitulado Da Doença aguda
e Da doença Crônica. Dezessete capítulos desse livro são dedicados a doenças da
mente.
Sorano era um médico muito esclarecido em sua atitude com relação aos doentes
mentais e recusava tratá-los com dureza.
A maneira de tratar doentes mentais empregadas por Sorano era diretamente oposta
aos métodos preconizados por Celso, o qual acreditava que tratamento rude faria com
que o paciente deixasse a doença mental por medo. Celso acorrentava os pacientes,
deixava-os passar fome, trancava-os em quartos escuros, e aplicava-lhes catárticos em
seus esforços para devolver-lhes a saúde pelo medo. Em contrário Sorano acreditava
que podia diminuir o desconforto dos doentes mentais falando com eles e recomendava
discutir com o paciente sobre sua ocupação ou outros assuntos que pudessem
interessá-lo.
Uma das espantosas lições que Sorano deixou a posteridade psiquiátrica e que tem
sido com freqüência repetida na história da psiquiatria consiste no fato, embora
descrevesse a doença mental em termos de perturbação mecânica orgânica, ter tratado
os doentes mentais com medidas psicológicas, Sorano subestimou a utilização de
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drogas e outros métodos físicos, acentuando a importância da relação entre o médico e
o paciente.
A Medicina na dimensão da psiquiatria Bizantina e os árabes
Ao estudar a História da Medicina é importante
estar atento à relação de todos os aspectos da
vida humana. Apesar de ora um, ora outro,
assumir
um
igualmente
caráter
dominante,
importantes,
embora
todos
o
são
aspecto
determinante do modo de vida de uma sociedade
seja a forma pelo qual elas se organizam entre si,
afim de, agindo sobre a natureza, produzirem os
alimentos e os recursos de que necessitam para
sobreviverem.
O Império Bizantino, também conhecido algum
Médico escriba monástico num Mosteiro da
Capadócia. FONTE: A medicina e sua história,
1989.pag 46.
tempo por Império Romano do Oriente, ofereceu
grandes contrastes com as sociedades da Europa
Ocidental. Afinal resistiu ás invasões bárbaras enquanto o Império de Roma Ocidental
se desfacelou e quase todo Ocidente se feudalizou. Isso foi quando por volta de 395
quando os dois Impérios definitivamente se separam, quando o último imperador
romano foi deposto pelos bárbaros, Bizâncio se manteve como uma fortaleza.
O império Bizantino, contudo, teve origem romana, e os imperadores do Oriente
sempre afirmaram serem os herdeiros de Roma. A crescente decadência e ruralização
do Ocidente levaram o Imperador Constantino a fundar no Oriente a cidade de
Constantinopla, destinada a ser a nova capital do Império Romano (330), e se manteve
até 1453, quando foi invadida pelos turcos otomanos. A região do Império consistia a
Grécia, parte da Iugoslávia e Ásia Menor. Essa civilização conservou um conhecimento
clássico, encorajou a pesquisa e promoveu a educação.
O dogma cristão prevalecia na Medicina, baseado numa fé que recorria aos espíritos.
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O mais antigo médico bizantino de renome foi Oribásius (325-403 d.C), que compilou
escritos médicos gregos e romanos. Um compilador posterior, Aétius de Amida (527565 d C) transcreveu dezesseis livros de seleções de escritores anteriores. Descreveu
três tipos de ―phrenitis‖, isto é, doença mental. Nas partes anterior, mediana e posterior
do cérebro, afetando memória, razão e imaginação. Alexandre de Tralles (525-605 d.C)
e Paulo de Aegina (625-690) seguiram Aétius na localização de perturbações
emocionais no cérebro.
A ciência e a medicina bizantinas, assim como o Império Bizantino, travaram uma
batalha perdida contra o crescente e inevitável destino do declínio helenístico. O
dogma cristão, que venerava a autoridade de Aristóteles e Galeno, conservou durante
certo tempo sua função preservativa. Esta forma de função preservativa, porém,
não podia proibir para sempre a decadência de seu estimado objeto, que era a
ciência grega racional.
No terreno da psiquiatria Rhazes (865-925 d.C) foi tão bom quanto o melhor dos
médicos hipocráticos. Descreveu cuidadosamente todas as doenças, mesmo as
doenças mentais. Combinava métodos psicológicos e explicações fisiológicas de uma
maneira que fazia lembrar os hipocráticos e empregava psicoterapia de modo primitivo,
mas dinâmico. Rhazes foi certa vez chamado para tratar de um famoso califa que sofria
de grave artrite. Aconselhou um banho quente e, enquanto o califa se banhava,
ameaçou-o com uma faca, proclamando que ia matá-lo. O califa, que estava ajoelhado
no banho, levantou-se e saiu correndo. Rhazes deixou o palácio e escreveu depois
explicando a razão de seu comportamento. [...] ―Havia... uma deficiência na caloria
natural e este tratamento teria sido desnecessariamente prolongado, por isso eu o
abandonei em favor de psychotherapeusis, e quando os humores mórbidos haviam
experimentado suficiente cocção no banho, eu vos provoquei deliberadamente a fim
de aumentar a caloria natural que assim adquiriu força suficiente para dissolver os
humores já amolecidos." [...] Browne, 1921 apud Alexander; Selesnick 1968, p 98.
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A
doença
e
a
morte
eram
consideradas como uma visitação
divina;
os devotos portanto
necessitavam
exercício.
de
higiene
ou
Posteriormente
não
de
foi
considerado como uma ofensa ao
corpo
essas
médicos
atitudes,
passam
a
então
serem
os
mais
valorizados.
Os médicos árabes não foram
capazes de oferecer contribuição real à teoria psiquiátrica porque dependiam
inteiramente das especulações orgânicas de Hipócrates. Contudo, alguns médicos
árabes perceberam que existia relação entre doenças físicas e emoções. Uma
mulher que sofria de cãibras nas juntas tão severas que não conseguia levantar-se foi
curada por um médico que ergueu sua saia, deixando-a assim envergonhada. "Um
fluxo de calor produziu-se dentro dela e dissolveu o humor reumático‖
Avicena (980-1037 d.C.) foi reconhecido como criança prodígio aos dez anos de idade,
quando decorou o Alcorão. Antes dos vinte anos era médico da corte real e, depois de
adulto, foi considerado o mais brilhante de todos os médicos árabes. Seu livro O
Cânone foi uma tentativa sistemática de correlacionar a filosofia aristotélica, a
observação hipocrática e a especulação galênica. O livro tornou-se a bíblia médica na
Ásia e posteriormente na Europa, tendo sido usado até o
alvorecer da experimentação anatômica no século XVI.
Robinson, o historiador médico, considerava O Cânone
"o mais influente manual já escrito‖. Como nos escritos de
Galeno, há nele páginas de excelente exposição médica
lado a lado com páginas cheias de tolices médicas.
Avicena foi o primeiro a usar cateter em pacientes que
tinham constrição uretral causada por gonorréia; no
Abu Ali al Hussain Ibn Sina (Avicena)
980-1037.Fonte:www.islam.org.br
entanto aconselhava também a colocação de um piolho
no meato da uretra para pacientes que sofriam de
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retenção urinária.
A importância histórica da obra de Avicena na formação do pensamento ocidental a
partir de sua tradução do árabe para o latim em meados do século XII d.C. Procura-se
mostrar como seus temas tornam-se relevantes nos dias de hoje tanto nas discussões
filosóficas de caráter mais geral quanto nos temas de psicologia e de epistemologia de
modo mais particular e como, nessa medida, a presença das teses de Ibn Sina se
mostra de grande importância.
Avicena, como Rhazes, tentava correlacionar reações fisiológicas e estados emocionais.
Conta-se que tratou de um paciente, terrivelmente mal, colocando o dedo sobre o pulso
do doente e recitando em voz alta os nomes de províncias, distritos, cidades, ruas e
pessoas. Notando como a pulsação do paciente se acelerava quando eram
mencionados os nomes, Avicena deduziu que o paciente estava amando uma moça
cuja casa ele conseguiu localizar pelo exame digital. O homem seguiu o conselho de
Avicena, casou-se com a moça e sarou de sua doença.
Avicena interessou-se também por delírios psicóticos e seu tratamento. Quando um de
seus pacientes afirmou que era uma vaca e mugiu como vaca, Avicena disse-lhe
que um carniceiro ia abatê-lo. O paciente foi amarrado pelas mãos e pelos pés; depois
Avicena proclamou que ele estava magro demais e precisava ser engordado, e
desamarrou-o. O paciente começou a comer entusiasticamente e se sentiu curado,
segundo os relatos de Avicena. A obra desse médico, filósofo, astrônomo, físico,
músico e poeta, foi usada nas escolas de medicina durante mais de 700 anos.
Escolas de medicina e bibliotecas se ligavam aos hospitais. Os alunos aplicavam o que
tinham aprendido na sala de aula no atendimento aos doentes, na ala masculina ou na
feminina. No século 11, já havia clínicas móveis, que levavam assistência médica aos
que
moravam
longe
ou
estavam
enfermos
demais
para
ir
ao
hospital.
A ciência da visão combinava conhecimentos de disciplinas muito diferentes: a
anatomia do olho e do sistema nervoso óptico foi descrita na literatura médica; a
psicologia da percepção era uma questão de filosofia; a natureza da luz era abordada
pela física propriamente dita. Um dos primeiros tratados farmacológicos foi feito em
760, por Jabir ibn Hayyan, considerado o pai da alquimia árabe. A farmacopéia era
extensa e incluía a descrição da origem geográfica, das propriedades físicas e dos
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métodos de aplicação do que pudesse ser útil ao tratamento. Os farmacêuticos
muçulmanos introduziram vários medicamentos na prática clínica, como a cânfora, o
sândalo, a mirra, o mercúrio e outros.
No início do século 9º, as primeiras farmácias particulares foram abertas em Bagdá - os
preparados eram disponibilizados sob várias formas: pomadas, pílulas, elixires, tinturas,
supositórios e inalantes. Na cidade iraquiana, que foi um grande centro civilizatório ao
lado de Damasco e Cairo, Ibn Barmak inaugurou o primeiro hospital particular em 803.
Produziu-se um conjunto significativo de literatura científica na língua árabe, com livros
traduzidos do grego, sânscrito, siríaco e pérsico, além de muitos tratados originais. O
islã serviu como uma ponte entre a antiga cultura grega e a chamada Idade Moderna.
Segundo o filósofo palestino Edward Said, "toda a criação de uma retórica científica em
ótica, em física e em astronomia, principalmente do século X ao século XV, foi invenção
dos árabes".
Foram matemáticos árabes que introduziram na Europa os algarismos indianos
(também conhecidos como arábicos) e o conceito do número zero, fundamental para
chegar aos números negativos. A trigonometria e a álgebra (aljbr) foram desenvolvidas,
sobretudo por adeptos do islã.
No decorrer do século XII, Avenzoar (1113-1162) e seus discípulos Averróis (1126-1198)
e Maimônides (1135-1204) influenciaram a medicina árabe com suas especulações
filosóficas. Avenzoar era um muçulmano espanhol e, foi um dos poucos árabes que
ergueram a voz contra Galeno. Os árabes, que se opunham ao derramamento de
sangue e que por isso recusavam usar o escalpelo, empregavam o cautério (engenho
para matar tecido por meio da aplicação de substâncias quentes) como principal
instrumento cirúrgico. Era usada também em pacientes que sofriam de doença mental,
prática que Avenzoar condenou.
Averróis era declaradamente aristotélico, mas transigia com a religião sustentando que
"existe uma dupla verdade", uma produzida pela fé e a outra pela "filosofia racional‖.
Essa conciliação era importante para a psicologia médica; firmava a tradição de um
médico manter suas convicções religiosas e, apesar disso, acreditar em descobertas
científicas.
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Maimônides, que é mais conhecido por seus comentários bíblicos e seus escritos
filosóficos do que por seus tratados médicos, deu ênfase aos aspectos mentalmente
higiênicos de uma vida ética, na tradição dos sábios hebraicos. Considerava a
medicina mais uma arte que uma ciência e, como médico intuitivo, interessava-se muito
mais pelo paciente em sua totalidade do que pela doença. Como Averróis, não
considerava a fé religiosa e as explorações científicas incompatíveis e foi uma das raras
vozes que se ergueram contra o autoritarismo na Idade Média.
Os hospitais europeus, assim como os árabes, fundados nos primeiros séculos da Era
Cristã eram impregnados de orientação humana. Na Europa, o primeiro hospital
construído foi provavelmente o de Lyon, fundado em 542 d.C. O Hôtel-Dieu foi erguido
em Paris no ano de 652 d.C. Provavelmente o primeiro hospital italiano foi o de
Santa Maria della Scala, em Siena, construído em 898 d.C. No século XII foram
instalados mais hospitais para cuidar dos cruzados que ficavam doentes ou eram
feridos.
dedicado
mentais
O
primeiro
hospital
exclusivamente
foi
construído
em
a
europeu
doentes
1409
em
Valência, na Espanha.
Cassiodorus e São Benedito lançaram os
alicerces da medicina monástica. A cura
de ferimentos e ossos partidos exigia,
porém, mais do que fé e o desenvolvimento
de uma medicina leiga empírica e prática era inevitável. Mesmo porque o trabalho
médico dos monges era limitado por muitas doutrinas eclesiásticas: executar deveres
clericais fora do mosteiro, cobrar honorários e tocar carne eram práticas inaceitáveis.
Assim, quando os concílios de Clermont e Latrão, no século XII, proibiram que
monges deixassem os mosteiros para cuidar de pacientes, a medicina leiga começou a
evoluir na Universidade de Salerno.
Salerno sempre foi uma cidade cosmopolita e, de acordo com uma lenda, a escola que
lá existe foi fundada no século IX por um judeu, um árabe, um grego e um italiano.
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Quando a Medicina européia começou a florescer no século XV, o Império Bizantino
estava em desintegração. Os primeiros passos estavam dados na prática médica em
terreno árabe.
A Arábia era povoada por umas poucas cidades e comunidades, mas principalmente
por povos nômades, vivendo uma vida pastoral.
A vida religiosa era confusa e diversificada: a maioria das tribos acreditava num
panteão com cerca de 300 deuses; na Arábia Meridional um reino que aceitara o
judaísmo guerreou com os cristãos abissínios, enquanto no reino Setentrional de Hira
florescia uma importante e prospera comunidade cristã, em sua maioria composta por
nestorianos. A Arábia na verdade apresentava-se bem madura para uma unificação
política e religiosa, que acabou acontecendo em 632 com a morte de Maomé, que se
autodenominou o último dos profetas, e responsável pelas revelações que mais tarde
deram origem ao Corão, O Livro Sagrado do Islã.
Ao contrário dos mongóis que por onde passaram deixaram rastros de destruição, os
muçulmanos deixaram intactas as sedes de sabedoria ao longo de sua trilha de
conquista. Um centro intelectual brilhante era Jundishapur, fundado no século IV pelo
rei persa Shapur. Sua academia e seu hospital atraiam médicos e filósofos de várias
terras.
A pregação de Maomé (570-632), cujas idéias refletem a influencia de outras religiões,
fez-se inicialmente em Meca, e atemorizou os coraixitas, guardiões da Caaba e
beneficiados com o controle do comércio. Enriquecidos com as rendas proporcionadas
pelos peregrinos que iam à Meca cultuar os ídolos das 300 divindades da Caaba, os
coraixitas rejeitaram os prescritos de Maomé. Considerando o marco inicial da
cronologia mulçumana, a saída de Maomé de Meca para Iatrib, denominado de Hégira (
expatriação, emigração).
Os árabes sempre estiveram peregrinando e assim sua grande contribuição foi como
nenhum outro povo soube aproveitar dos contatos com outras populações.
Os curandeiros eram em número elevado, usando as mesmas artimanhas que iriam
persistir ao lado da Medicina européia durante séculos. Um dos estratagemas favoritos
era contratar cúmplices que posavam como pacientes e circulavam louvando as curas
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miraculosas de um charlatão. Há casos de alguns médicos que recorriam á astrologia
para um diagnóstico.
As escolas Árabes introduziram na Medicina um grande número de drogas, herbáceas
e químicas, e desenvolveram também a arte da farmácia. Os árabes fizeram
progressos rápidos na ciência, desenvolvendo novos métodos no tratamento de
doenças, seguindo linhas farmacológicas de modo tal que sua terapia era considerada
superior à dos gregos e hindus. Já no século XIII o judeu Kohen Al-Attar, estabeleceu
padrões profissionais para todos os farmacêuticos no seu livro sobre a arte da farmácia.
Outro aspecto a ser observado na história muçulmana de grande contribuições para
Europa, principalmente no que diz respeito a infra-estrutura mais humanas, foram os
hospitais, que eram compostos de bibliotecas, capelas, salões de leitura, músicos para
embalar o sono dos pacientes, contadores de histórias para sua distração. Esse modelo
de hospital era essencial, principalmente no tratamento dos insanos.
A primeira palavra revelada ao profeta Muhammad, dizem os muçulmanos, foi "Leia"
(Iqra'). Entre os ahadith (ditos atribuídos a Muhammad), há vários que incentivam a
pesquisa, como "busque o conhecimento do berço até o túmulo" e "a tinta do sábio vale
mais que o sangue do mártir".
A Medicina árabe conservou para o Ocidente o brilhantismo dos gregos, e aprimorou-os
com seus próprios avanços. Interessante que duas civilizações cresceram próximas
mais de mil anos, sendo base de ambas a Medicina grega. Os árabes construíram o elo
entre Oriente e Ocidente, o que permitiu o
desenvolvimento da Medicina. As Cruzadas,
também
foram
fator
de
grande
responsabilidade na troca de conhecimentos.
E
assim
quando
a
Medicina
islâmica
estacionou, já havia plantado suas sementes
na Europa, que na Idade Média contribuiu para
o Renascimento.
Representação divina de Santo Agostinho.
Fonte: ciarte.no.sapo.pt/imagens/agostinho.htm
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Por uma busca de compreensão à Psiquiatria na Idade Média
As características típicas da Idade Média não fizeram o sujeito desse período menos
competente, pois a cultura medieval se comparada com a do mundo greco-romano, foi
redefinida. A Ciência perde a vitalidade e a velha união com a se dissolveu. Esta
contraiu uma nova aliança com a teologia: durante séculos a vida intelectual se
processaria sob a orientação da Igreja. É cabível indagar da História se há alguma
razão válida para supor que o gênio humano chamejou com menos brilho quando os
homens, por boas razões pessoais e da época, transferiram o pensamento especulativo
da Ciência-filosofia, para Teologia-filosofia.
A expressão Idade Média foi criada durante o Renascimento, no século XV.
Demonstrando repúdio ao mundo feudal, os renascentistas forjaram tendenciosamente
a concepção de que a Idade Média fora ―uma longa noite de mil anos‖, a ―Idade das
Trevas‖ em que mergulhara a cultura clássica após a queda de Roma.
Na verdade o desprezo dos humanistas do Renascimento pela Idade Média apenas
refletia a adoção de novo valores culturais, contrários ao do período medieval.
Durante os primeiros séculos da Idade Média constituíram-se os reinos bárbaros dos
celtas, godos, vândalos e francos, todos partilhando traços comuns como um vínculo
radical entre membros da mesma família, o hábito de tomar decisões tribais através de
assembléias de cidadãos e a poderosa instituição dos domínios.
Os séculos medievais, nos quais foram assentadas as bases políticas e espirituais da
cultura Ocidental, uma mistura de costumes bárbaros, resíduos da lei romana, teologia
e organização da Igreja.
Nestes primeiros séculos antes que Carlos Magno fundasse o novo Império do
Ocidente (800 d.C), os reinos bárbaros eram uma sociedade indefinidamente formada,
ainda não restringida pelas regras feudais. Entretanto, com o declínio do sistema de
segurança romano foi produzido um retrocesso geral à crença na magia, misticismo e
demonologia, da qual sete séculos antes, o homem se libertara graças ao gregos.
As causas fundamentais da queda do Império são complexas. Todavia as mais
importantes são as constantes invasões bárbaras e as revoltas internas. Nessas
épocas de catástrofes as explicações sobrenaturais voltaram a serem muito
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procuradas, e o cristianismo assumiu papel importante uma vez que supria as
necessidade emocionais da população mas desprovida. O dogma cristão em medicina
predominava completamente. Santos eram reverenciados, e como no passado pagão,
eram invocados para prevenir doenças. São Sebastião protegia contra as pestes e São
Jô contra a lepra; Santo Antonio prevenia contra todas as espécies de doenças, desde
distúrbios intestinais até fraturas. Os sacerdotes cristãos davam conselhos a maneira
de curar corpos tanto quanto almas, e sábios religiosos registravam para a posteridade
descrições de curas milagrosas. As igrejas tornaram-se santuários de sofredores, e a
medida que cresceu o numero de pacientes à procura dos mosteiros, as igrejas
construíram hospitais nas proximidades.
No século IV, Constantino, procurando a ajuda dos cristãos contra seus inimigos, fez do
cristianismo a religião oficial. Estabeleceu-se a lealdade entre o Estado e a Igreja. O
papa Leão III foi apoiado por Carlos Magno que, por sua vez foi sagrado Imperador do
Santo Império Romano. Nos séculos XII e XIII, As Cruzadas marcharam para Terra
Santa contra os mouros e traziam de volta novas idéias e produtos do Oriente. Foi
nessa época que as comunas prosperaram, o comércio voltou a se desenvolver, e
assim o poder dos senhores feudais começou a declinar, enquanto monarcas
buscavam supremacia, novas nações foram formadas com terras derrotadas. Não é de
admirar que a Idade Média se tenha caracterizado como uma era de espantosos
contrastes.
A força ideológica da fé consolidou e reforçaram as desmoralizadas e empobrecidas
massas e assegurou a continuidade da civilização. Ainda assim, a fé era uma amante
ciumenta. Não tolerava concorrência, particularmente da ciência. O lema medieval
credo quia absurdum est (acredito nisto por que é absurdo) está em oposição à posição
científica que se baseia na razão e na observação. O racionalismo como força social
desapareceu ou, para ser mais exato, precisou agir subterraneamente durante séculos.
A tradição do empirismo cético grego, a erudição Alexandrina e as adaptações práticas
da herança grega pelos romanos foram preservadas em bibliotecas monásticas e pelos
árabes. Foram, porém, meramente preservadas, não desenvolvidas. A técnica de
organização do Império Romano, foi a única força dinâmica que sobreviveu, quando a
religião se institucionalizou em escala até então desconhecida na história humana. A
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hierarquia católica era uma reprodução clerical da hierarquia política de Roma, leis
romanas foram os modelos das leis canônicas, e o bispo de Roma foi a peça
correspondente ao imperador. Esta rigidez de organização ajudou a preservar a cultura
ocidental, mas no referente à história das idéias médicas, e particularmente ás idéias
que conduziram à psiquiatria moderna – durante os séculos entre o declínio de Roma e
a Renascença houve, não só uma estagnação, mas também uma espécie de
retrocesso ao pensamento não racional que existira antes do século IV a.C.
Não é de surpreender que na parte inicial da Era cristã, quando a medicina orgânica
estava em tão completa paralisação, a maneira psicológica de encarar a doença tenha
conservado certa vitalidade. A fé e a ética tem relação com a psicologia: salvar almas
tem estreita relação com curar mentes perturbadas, embora os métodos empregados
sejam diferentes.
A psiquiatria da Idade Média dificilmente poderia ser distinguida da demonologia précientífica, e tratamento mental era sinônimo de exorcismo. Isto se aplica
particularmente àquela antiga doutrina herética chamada maniqueísmo, que embora
seja persa e não cristã em sua origem, exerceu grande atração em seus primeiros
séculos cristãos. Existia lado a lado com a religião ortodoxa, embora fosse denunciada
por homens da autoridade de Santo Agostinho. Era a mitologia dualística da luta eterna
entre Ormuzd, o espírito bom, e Ahriman, o demônio que possui o corpo e a mente das
pessoas mentalmente doentes.
No exorcismo medieval a mitologia cristã e a demonologia
pré-histórica estabeleceram uma curiosa união.
Escolásticos
cristãos
e
considerável
contribuição
médicos
à
árabes
assistência
prestaram
psiquiátrica
humanitária, particularmente no começo da Idade Média,
Exorcismo na Idade Média. Fonte:
www.personal.us.es/ignacio_exorcismo.
quando o espírito cristão de caridade foi responsável pelo
oferecimento de conforto e apoio aos doentes mentais. No
período medieval posterior, quando esses primeiros ideais foram depreciados e a
confiança na autoridade e na explicação sobrenatural das doenças caracterizou a
medicina monástica, a assistência psiquiátrica deteriorou-se, a ponto de tornar-se
indistinguível do exorcismo demonológico. Originariamente, o exorcismo não era
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punição. Os ritos exorcísticos dirigiam-se contra o demônio que tomara posse do corpo
e alma de um homem, não contra o próprio homem.
Ainda há o conceito de que os leigos na Idade Média exerciam uma visão mais
esclarecida em relação às doenças mentais do que os profissionais, pois a poesia e
outras formas de literatura apresentavam visões muito realísticas dessas questões.
Como o poema Amadas (de fins do século XII) e posteriormente o poema sobre
―Tristão‖, indicam também o conhecimento da idéia de que crises emocionais podem
resultar de graves perturbações emocionais e podem ser corrigidas por um método
psicológico realístico.
Quer a insanidade fosse considerado resultado de perturbação emocional ou de
possessão diabólica durante o período medieval inicial, a assistência propriamente dita
ao individuo doente, era coisa de responsabilidade coletiva. Não foi senão no século
XIV que os doentes mentais passaram a ser considerados feiticeiros e tornaram-se
vitimas de perseguição. Além disso, a assistência física aos doentes mentais era
melhor no começo da Idade Média que nos séculos XVII e XVIII.
Um dos primeiros asilos para doentes mentais, o Bethlehem Hospital, em Londres, era
originariamente muito diferente do inferno que depois se tornou conhecido como
Bedlam. Naqueles primeiros dias os pacientes eram tratados com muito mais interesse.
Quando estava em condições de deixar o Hospital sob os cuidados dos parentes,
recebiam braçadeiras para usar, a fim de poderem voltar ao Hospital se seus sintomas
reaparecessem. Esses pacientes recebiam tanta atenção e simpatia da coletividade
que vadios freqüentemente falsificavam braçadeiras para serem tomados como ex
pacientes de Bethlehem. No século XIII, em Gheel, na Bélgica, fundou-se uma
instituição para cuidar de crianças retardadas e psicóticas, que eram muitas vezes
adotadas por famílias compreensivas das vizinhanças. E um monge franciscano
Bartholomaeus
Anglicus
(1480),
que
escreveu
sobre
doenças
mentais
nos
prevalecentes termos demológicos de anjos e demônios, nem por isso deixava de
recomendar métodos racionais de tratamento, banhos, ungüentos e dietas.
De todos os escritores medievais, Santo Agostinho, prestou a mais significativa
contribuição à psicologia quando demonstrou que a introspecção é importante fonte de
genuíno conhecimento psicológico. Acreditava na revelação divina como fonte de
Página 72
conhecimento psicológico. Todavia o acréscimo que fez da introspecção como
instrumento importante para o conhecimento da psicologia humana foi uma contribuição
essencial à psicologia dinâmica. Foi ele o primeiro a descrever vivida e minuciosamente
experiências emocionais subjetivas, e ao fazê-lo empregou um principio metodológico
que ainda continua sendo básico na psicologia de hoje. Sem conhecimento de si
próprio a psicologia não poderia existir. Emoções, ira, alegria, medo, só podem ser
experimentadas subjetivamente. As Confissões de Santo Agostinho são um trabalho de
autoanálise profundamente incisivo. Brett disse em sua ―História da Psicologia‖: ...[...]
Ele permanece entre os maiores, com Platão e Aristóteles, em um aspecto superior a
ele. A psicologia atinge um segundo grande clímax quando seu expositor pode dizer
que o fundamento da alma é continua autoconsciência, e que o pensamento é
simplesmente a vida refletida em si própria.[...] Brett APUD Alexander, Selesnick,
História da Psiquiatria, pág 87,1968.
Santo Agostinho pode ser considerado com segurança, o precursor da psicanálise.
O
monólogo
de
Santo
Agostinho
e
sua
importância para a psicologia
Aurelius
Augustinus,
conhecido
como
Santo
Agostinho, nasceu em Tagaste (Numídia, África
do Norte) em 354 d.C. Seu pai, Patricius, era
pagão, homem de grandes paixões, que levava
uma vida desregrada e encorajou em seu filho a
ambição
mundana
de seguir uma lucrativa
carreira como retórico. Sua mãe, Mônica, era uma
piedosa cristã e a influência que teve sobre o filho
Representação de Santo Agostinho.Fonte:
geocites.yahoo.com.br
mostrou-se mais forte que a do sensual pai.
Quando moço Agostinho teve relação ilícita com
uma mulher que lhe deu um filho e até seu batismo aos trinta e três anos de idade
sua vida consistiu em constante luta entre o amor a Deus e o desejo de dar
expressão às suas paixões carnais.
Página 73
Estudou retórica em Cartago, onde foi muito influenciado pelos escritos de Cícero. Em
um esforço para resolver seu conflito interior sobre o bem e o mal, tornou-se ardoroso
adepto da doutrina ascética persa do maniqueísmo, mas desiludiu-se com essa
crença depois de uma disputa com um eminente bispo maniqueísta. Passou um ano
em casa com sua mãe e depois voltou a Cartago para continuar os estudos. Mônica
era atormentada pela falta de fé de seu filho e Agostinho relata um sonho que ela
teve, no qual se via junto com ele em pé sobre uma régua de madeira. A régua pode
ser tomada como símbolo das regras do catolicismo, pois Agostinho considera o
sonho como uma expressão do desejo de sua mãe de partilhar seu modo de vida com
ele, e assim conduzi-lo à graça.
Os conflitos interiores de Santo Agostinho aumentaram, à medida que, presenciava e
participava da licenciosa vida de estudante em Cartago. Foi a Roma passar um curto
período de tempo, mas não se sentia mais à vontade com seus amigos maniqueístas
e por isso aceitou um cargo em Milão como professor de retórica. Quando abandonou
o maniqueísmo continuou a procurar solução para seu conflito interior, primeiro na
escola cética e mais tarde na escola neoplatônica, cujos ensinamentos monísticos o
atraíam. Sua determinação final de abandonar a sensualidade ocorreu quando caiu
sob a influência direta de Alípio, amigo e discípulo do grande eclesiástico Ambrósio, e
depois que leu as epístolas de São Paulo.
Sua concubina seguiu-o até Milão e os dois ficaram noivos, mas em sua luta contra a
sensualidade Agostinho abandonou-a. A aceitação total do catolicismo não veio com
facilidade, e Agostinho teve outro romance. O conflito da carne opondo-se ao espírito
e o espírito opondo-se à carne atingiu um pico dramático, em seu trigésimo segundo
ano de vida e é descrito vividamente em suas Confissões. Um ano depois, seu amigo
Alípio, Agostinho e o filho de Agostinho ingressaram na Igreja, realizando assim o
sonho de Mônica. No ano seguinte, ela morreu contente. A descrição de sua morte
nas Confissões é um dos numerosos trechos em que Santo Agostinho, com
insuperável realismo, expressou sua constante luta para reconciliar as emoções
terrenas com o êxtase religioso. ― [...] Fechei os olhos; e uma enorme tristeza entrou
em meu coração, que se extravasou em lágrimas; meus olhos ao mesmo tempo, pela
violenta ordem de minha mente, beberam na fonte delas até deixá-la seca; e, ai de
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mim, que luta! E estando muito descontente por essas coisas humanas terem tanto
poder sobre mim...Com uma nova aflição, afligi-me por minha aflição e assim fui
dominado por dupla tristeza [...].‖ Santo Agostinho p. 190-192, 1949 APUD, Alexander,
Selesnick., p 89. 1968.
Seu filho morreu pouco depois e Agostinho a partir de então dedicou sua vida à Igreja.
Fundou uma comunidade religiosa monástica em sua cidade natal e, dois anos e meio
mais tarde, aceitou convite para servir como padre em Hipona, de onde
posteriormente se tornou bispo. Lá morreu em 430 durante um sitio imposto pelos
vândalos.
Agostinho acreditava que o homem é tão fraco e corruptível que a redenção só se
torna possível através da Graça Divina, e sustentava esta opinião com intransigente
severidade. Essa atitude era profundamente influenciada pela própria luta interior que
Agostinho travou a vida inteira contra suas paixões mundanas, que somente foi capaz
de dominar renunciando completamente a elas, e dedicando-se inteiramente à
divindade. As controvérsias em que se envolveu permitiram à Agostinho externalizar
seus conflitos combatendo seus próprios pecados em outros, e atacando seus
adversários, atacava tudo quanto fora outrora parte de seu próprio eu.
Agostinho atacou decididamente a hipocrisia daqueles que tentavam subestimar as
profundas motivações não reveladas que são inaceitáveis pela personalidade
consciente. Como faria Sigmund Freud (1856-1939) séculos mais tarde, oferecendo
como fulcro da teoria psicanalítica a afirmação de que não se pode combater um
inimigo invisível.
Agostinho, plenamente cônscio das forças associativas da mente, era pessimista em
relação à natureza humana, mas via um caminho para o domínio da maldade inerente
na completa devoção e de pendência em relação a Deus, como única fonte de graça
que cura.
O que o torna Agostinho como um grande contribuinte na história da psicanálise são
os métodos psicológicos por ele empregados para chegar às conclusões em que se
baseavam suas teorias religiosas. Suas Confissões são um exemplo sem precedente
de autoanálise; nesse trabalho apresenta metodicamente suas recordações anteriores
e desnudas a sua alma sem reservas. Tenta mesmo reconstruir aqueles anos
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perdidos na amnésia infantil com base em observações de crianças e em toda
lembrança de sua própria infância inicial que conservasse.
Agostinho não acreditava na inocência Angélica das crianças. ―[...] Na fraqueza dos
membros da criança, não na sua vontade, está sua inocência. Eu mesmo já vi e
conheci um bebê invejoso; ele não podia falar, mas ficava pálido, e olhava
rancorosamente para seu irmão de criação. Quem não sabe disso? Mães a pajens
contavam-nos que refreiam essas coisas, não sei com que remédios. Será isso
também inocência, quando a fonte de leite está fluindo com rica abundancia, não
suportar que outro partilhe dela?... Toleramos gentilmente isso tudo, não por não
serem males ou por serem males leves, mas por que desaparecerão com o crescer
dos anos; pois embora tolerados agora, os mesmos temperamentos são
absolutamente intoleráveis quando encontrados em idade mais avançada‖ [...]. ibid. p
91 .
Também passa a discutir como a criança adquirir a fala, mostrando que as
necessidades subjetivas são a força dinâmica por trás desse processo de
aprendizagem: ―[...] Saindo da infância cheguei à meninice, ou melhor, ela chegou a
mim, substituindo à infância. Ora, aquilo partiu (pois para onde foi?) e, no entanto, não
existia mais. Pois eu não era mais um bebê sem fala, mas um menino que falava.
Disto eu me lembro; e desde então observei como aprendi a falar. Não foram os mais
velhos que me ensinaram palavras (como fizeram logo depois em outra
aprendizagem) por qualquer método estabelecido; mas eu, desejado por meio de
gritos, sons entrecortados e vários movimentos de meus ombros expressarem meus
pensamentos, para poder impor minha vontade, e ainda incapaz de expressar tudo
quanto eu queria ou a quem eu queria, eu mesmo, pelo entendimento que Tu, meu
Deus, me deste, pratiquei os sons em minha memória. Quando diziam o nome de
alguma coisa e ao falar se viravam em direção a ela, eu via e me lembrava que
chamavam e apontavam pelo nome que pronunciavam. E que sua intenção era essa,
e nenhuma outra tornava-se claro pelo movimento de seu corpo, a linguagem natural,
por assim dizer, de todas as nações, expressada pelo semblante, por olhares, pelos
gestos dos membros e tom da voz, indicando as tendências da mente, quando
persegue, possui, rejeita ou se esquiva. E assim, ouvindo, constantemente palavras, à
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medida que ocorriam em variadas sentenças, eu deduzi gradualmente o que
significavam; e tendo treinado minha boca com esses sinais, dei assim expressão à
minha vontade. Assim, troquei com aqueles que me cercavam esses sinais coerentes
de nossas vontades e me lancei mais profundamente na tempestuosa relação da vida
humana, ainda dependendo da autoridade paterna e da ordem dos mais velhos.‖ [...]
ibid..p 91.
Santo Agostinho confessa como era suscetível às ―vaidades‖ do mundo e como
enganava seus pais e professores, escondendo deles seu desejo de ver espetáculos
baratos e reproduzi-los. Confessa também que furtou quando tinha dezesseis anos,
demonstrando notável compreensão das motivações do furto e mesmo da psicologia,
da cleptomania. ―[...] No entanto, eu desejava furtar e roubei, sem ser forçado pela fome
ou pela pobreza... Pois furtei aquilo de que eu já tinha o suficiente, e de muito melhor
qualidade. Não cuidei de desfrutar aquilo que furtei, mas senti prazer no próprio furto e
pecado. Havia uma pereira perto do nosso vinhedo, carregada de frutos, que não
tentavam pela cor nem pelo gosto. Alguns jovens licenciosos entre nós foram sacudir e
furtar esses frutos... E apanhamos enormes quantidades, não para comer, mas para
lançarmos aos próprios corpos, apenas experimentando-os. E isso, não só para fazer o
que gostávamos, mas por que causava desagrado... Pois se alguma coisa daquelas
pêras entrou em minha boca, o que a adoçava era o pecado.‖ [...] ibid 93
Agostinho avançou mais em sua busca de motivações secretas, demonstrando
conhecimento da psicologia das quadrilhas de adolescentes, com sua descoberta de
que cometer um crime na companhia de outros aumenta ainda mais a satisfação dele
tirada; isto segundo a linguagem da psicologia hoje, descobre-se que as ações são
determinadas não por um único motivo, mas por muitos.
A maneira como Agostinho procura compreender o pesar que sentiu quando um amigo
querido morreu, demonstra sua genialidade. Descreve vividamente a pessoa falecida,
pervertendo-se na miséria e chega quase a reconhecer que a função do ódio no luto é
ajudar a desapegar-se da pessoa amada e perdida. Do mesmo modo é interessante é
sua análise do amor à fama. Reconhece que o admirador de um grande homem não o
admira pelo o que ele diz e faz, mas por que deseja estar em seu lugar e ter para si o
amor e admiração das pessoas.
Página 77
Agostinho refere-se mais de uma vez àqueles que procuram explicar a conduta do
homem apenas em termos físicos, contornando assim a responsabilidade individual e
ignorando a capacidade do homem para responder por seu comportamento em termos
psicológicos.
Há mil e quinhentos anos alguém acreditava que o sofredor deveria compreender-se
psicologicamente e corrigir seu comportamento. Em sua grande obra A cidade de Deus,
a metáfora que emprega para explicar o que seria a vida sem tumulto interior é de uma
cidade de Deus governada por homens realmente religiosos cujas almas estão livres
dos de todos os impulsos destruidores. A cidade de Deus dizia Agostinho, não pode ser
construída por meio de recursos tecnológicos e políticos. Seu aparecimento exige uma
mudança de valores interiores; e é esse sincero interesse por questões psicológicas
que torna Agostinho e seus escritos tão pertinentes para a psiquiatria do século XX.
Ele consegue tornar concreta e real a psicologia, ao contrário da abstração de Platão e
Aristóteles. A psicologia de Santo Agostinho fala de sentimentos, aflições e angustias
de um individuo de maior sinceridade e capacidade introspectiva, e pode ser com razão
considerada como a mais antiga contribuição à psicanálise.
Nos primeiros séculos após a queda de Roma, monges atuavam ao mesmo tempo
como médicos e teólogos.
No século XIII, a filosofia natural de Aristóteles foi revivida
no
Ocidente,
transmitida
em
manuscritos
gregos
preservados pelos árabes. Santo Tomás entrou em
acordo com essa força intelectual vital reconciliando os
ensinamentos de Aristóteles com o dogma cristão através
de sua subordinação a revelação religiosa. Assim, as
obras do grande observador e racionalista grego
foram colocadas na paradoxal posição de empecilhos
dogmáticos ao desenvolvimento da ciência e da livre
investigação. De grande importância foi a descrição que
Santo Tomás (1225-1274) Fonte:
Ust.cl/médios/cet/santo tomas
Tomás de Aquino fez da separação entre o corpo e a
alma. Acreditava ele, que o corpo é governado pela alma, mas que a alma pode existir
independentemente do corpo. Sustentava que as funções vegetativas dependem do
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sistema alimentar e de alguns outros órgãos, e que a faculdade sensitiva opera
através dos órgãos sensoriais; mas não considerava os poderes racionais como
funções de algum órgão corporal ou dependente do cérebro. O que Santo Tomás fez
com os ensinamentos de Aristóteles é um exemplo clássico do padrão histórico comum
pelo qual uma realização originariamente pioneira, depois de ser institucionalizada,
pode tomar-se dogma rígido e o maior obstáculo ao desenvolvimento futuro. Esses e
outros princípios ficaram tão institucionalizados que mesmo no século XVIII Aristóteles
continuava sendo a inflexível fortaleza do pensamento reacionário e opressivo. A
influência de Santo Tomás na história da psiquiatria deve ser assim encarada como
regressiva.
A maior contribuição das cidades medievais para a Medicina e a saúde pública foram
seus hospitais, muitos dos quais sobrevivem nas grandes cidades. Os hospitais
floresceram nos impérios bizantino e muçulmano, como já foi comentado acima, mas
somente quando o Papa Inocêncio III interessou-se pessoalmente, fundando um
hospital em Roma, no século XIII, é que o movimento expandiu-se por toda Europa
cristã.
A Medicina e a psiquiatria na renascença – A
caça as bruxas
A Renascença caracterizou mais uma crença no
futuro do que uma homenagem ao passado. O
ideal de valorização do homem, o qual poderia
com seu próprio esforço, sem a ajuda de Deus
ou do sobrenatural, criar e evoluir culturalmente
recebeu a denominação de humanismo. Este
“Bruxa” Fonte: cranik.com/imagens/bruxas2.gif
movimento superou o costume medieval da
teologia e filosofia escolástica e, principalmente,
da autoridade eclesiástica. Que por sinal essa ultima mantinha, grande parte da
população em estado de ignorância e passividade.
Página 79
Uma grande força que revolucionou a vida do homem e seu pensamento durante o
Renascimento foi a invenção da imprensa, que transferiu a literatura dos mosteiros para
os lares e universidades.
Entre os médicos humanistas, a grande maioria lutava arduamente para desligar o
ensino médico dos imprecisos textos árabes.
A invenção das armas de fogo e dos canhões durante o renascimento tornou as
guerras mais sangrentas e os ferimentos mais mutiladores o que estimulou o
crescimento da cirurgia na doutrina médica renascentista.
A arte de curar, segundo Paracelso, fundamentava-se na Filosofia, na Astronomia, na
alquimia e na virtude. A nosologia paracelsiana encarava as doenças como entidades
reais.
A sífilis faria sua dramática entrada no cenário renascentista em 1493. Em poucas
décadas, a natureza sexual da ―doença do amor‖ seria reconhecida. E todos, médicos,
religiosos e curandeiros, fariam de tudo para controlá-la.
A caça às feiticeiras surgiu na Europa exatamente quando o espírito da Renascença
estava começando a provocar reações de inquietação entre os guardiões do status
quo. O feudalismo foi ameaçado pela descoberta da pólvora; a invenção da imprensa
tornou possível a autoeducação; os abusos da Igreja estavam sendo atacados pelos
precursores da Reforma. Além disso, ocorreriam varias epidemias de peste que
mataram cinqüenta por cento da população da Europa. As instituições sociais que
estavam começando a ruir não tinham condições para suportar descontentamento
político ou religioso e a Igreja, os monarcas e os senhores feudais arregimentaram
suas forças para a defesa. Essa era precisava encontrar seu bode expiatório e a
severa perseguição aos judeus parecia não ser suficiente para conter a maré.
Um das mais importantes ameaças surgiu nas fileiras da própria Igreja. Séculos de
celibato compulsório não haviam inibido os impulsos eróticos de monges e freiras.
Sabia-se que existiam passagens subterrâneas ligando conventos de monges e de
freiras. A gente das cidades muitas vezes precisava enviar prostitutas aos mosteiros a
fim de proteger as donzelas da localidade. Tornava-se cada vez mais imperativo que a
Igreja iniciasse um movimento antierótico, que tornasse suspeitas as mulheres,
estimuladoras da licenciosidade dos homens. Os impulsos condenáveis dos homens não
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podiam mais ser tolerados, por isso foram projetados sobre as mulheres à sombra
de um estandarte misógino cujo lema era: "A mulher é um templo construído sobre
uma cloaca." Bronberg, 1959 APUD Alexander; Selesnick, 1968 p 105.
As mulheres despertavam as paixões do homem, portanto deviam ser transmissoras
do demônio. Mulheres psicóticas com pouco controle quanto à manifestação de suas
fantasias sexuais e sentimentos sacrílegos eram os exemplos mais claros de possessão
demoníaca; e voltando-se contra elas a Igreja aumentou o medo já crescente dos
perturbados mentais. Os séculos XIII e XIV caracterizaram-se por movimentos
psicóticos coletivos que aterrorizavam a Igreja porque não podiam ser controlados.
Na Hungria, por exemplo, em 1231, apareceu um grupo sustentando que as
pestes eram causadas por pecados individuais. Marchavam através de grande
parte da Europa cantando hinos, ostentando cruzes vermelhas no peito e
carregando chicotes com nós dos quais pendiam pontas de ferro. Quando passavam
pelas aldeias, demonstravam sua penitência publicamente açoitando a si próprios e a
todos os prosélitos confessos que pudessem atrair. Essa fraternidade de flagelantes
tomou-se excessivamente poderosa, tanto que ameaçou usurpar a prerrogativa de
perdoar os pecadores, até então exclusiva da Igreja. O imperador Carlos IV e o papa
Clemente proibiram finalmente sua organização. Todavia continuavam a surgir
outros grupos de descontentes e psicóticos; por exemplo, em 1418, milhares de
maníacos dançavam nas ruas de Estrasburgo diante de espectadores que se
identificavam com essas orgias auto-humilhantes e assim aliviavam vicariamente
seus sentimentos de culpa por seus próprios desejos corporais.
Tão logo se desfraldou plenamente o estandarte misógino, a ideologia do movimento
coletivo de caça às feiticeiras foi codificada por Johann Sprenger e Heinrich Kraemer,
com típica meticulosidade germânica, em seu livro Malleus Maleficarum ("O Martelo
das Feiticeiras") (1487), que é ao mesmo tempo um manual de pornografia e um
manual de psicopatologia. Malleus foi traduzido para o inglês em 1928 pelo reverendo
Montague Summers. Em 1484 os autores obtiveram do papa Inocêncio VIII aprovação
para publicar seu "Manual da Inquisição"; em seguida, Maximiliano I, rei de Roma,
aprovou o documento em 1486; e, finalmente, um ano depois, a faculdade de teologia da
Universidade de Colônia aprovou o Malleus.
Página 81
O Malleus expõe pormenorizadamente a destruição dos dissidentes, cismáticos e
doentes mentais, todos os quais são incluídos no termo "feiticeiro". O livro dividese em três partes. A primeira parte tenta provar a existência de demônios e
feiticeiras; se o leitor não se deixar convencer pelos argumentos dos autores, é
porque ele próprio está sendo vítima de feitiçaria ou heresia. A segunda parte diz
como identificar feitiçaria; a terceira parte descreve como as feiticeiras devem ser
julgadas por tribunais civis e punidas. A maneira preferida de destruir o demônio era
queimar seu hospedeiro, a feiticeira. O Malleus sustenta que, se um médico não
puder encontrar a razão para a causa da doença ou "se o paciente não puder ser
aliviado por medicamentos, mas pelo contrário parecer ficar pior devido a eles, então
a doença é causada pelo demônio". Assim, toda doença desconhecida era
considerada como causada por feitiçaria; hoje, quando não é possível encontrar
razão orgânica para uma doença, pensa-se que seja provocada psicologicamente.
O Malleus acentua que: "Toda a feitiçaria provém de desejo carnal que existe em
mulheres insaciáveis" e, além disso, que ―três vícios gerais parecem ter especial
domínio sobre mulheres más, a saber, infidelidade, ambição e luxúria. Portanto,
são mais inclinadas para a feitiçaria do que as outras as que são mais dadas a
esses vícios do que as outras. Sendo as mulheres insaciáveis segue -se que são
mais profundamente contagiadas entre as mulheres ambiciosas aquelas que são
mais ardentes em satisfazer seus desejos imundos. Os autores do Malleus
justificavam seu ataque às mulheres declarando que elas provinham da costela
inferior de Adão e eram assim imperfeitas em sua estrutura física e sua alma‖.
Deve-se reconhecer também que as feiticeiras acusadas muitas vezes favoreciam os
planos de seus perseguidores. Uma feiticeira aliviava sua culpa confessando suas
fantasias sexuais em tribunal público; ao mesmo tempo, obtinha certa satisfação
erótica demorando-se em todos os pormenores diante de seus acusadores do sexo
masculino.
Essas
mulheres
com
graves
perturbações
emocionais
eram
particularmente suscetíveis à sugestão de que abrigavam demônios e diabos, e
confessavam que coabitavam com o espírito mau, da mesma forma como hoje em dia
indivíduos perturbados, influenciados pelas manchetes dos jornais, se imaginam
assassinos procurados pela polícia.
Página 82
A opinião medieval de que o corpo nu é pecaminoso e deve ser coberto estava sendo
superada pelos artistas da Renascença com sua ousada representação da forma
humana despida em toda sua realidade nua e voluptuosa. As representações
dinâmicas do corpo humano nas obras importantes de artistas italianos do fim do século
XV e começo do século XVI, como Leonardo da Vinci, Botticelli, Rafael, Michelangelo,
Ticiano, Tintoreto e Signorelli, contrastam flagrantemente com os corpos rígidos, irreais,
empertigados e imóveis pintados durante a Idade Média. Com efeito, o corpo
humano foi tão informativo para os pintores da Renascença quanto para os
médicos e é perfeitamente compreensível que médicos e artistas do século XVI
pertencessem às mesmas guildas.
O maior representante da combinação de talento
artístico e científico da Renascença foi Leonardo da Vinci
(1452-1519),
pintor,
biologista,
escultor,
arquiteto,
engenheiro, poeta, músico, filósofo, químico, geólogo e
mecânico.
Leonardo
compreendeu
que
o
artista
precisava ter conhecimento da estrutura anatômica.
Estudou corpos vivos e mortos, desenhando o que via
com tanta precisão que seus desenhos anatômicos foram
usados por médicos durante muitos séculos depois de
sua morte. Chegou a seccionar o cérebro e desenhar
com precisão cavidades desse órgão por meio de uma
Leonardo da Vinci . Fonte:
www.visi.com/reuler/vinci/self
nova técnica de injetá-las com cera.
Os estudos anatômicos de Leonardo foram relativamente desconhecidos de seus
contemporâneos; em conseqüência, a idéia de desenhar corpos dissecados foi
atribuída, não a Leonardo, mas ao médico Berengarius, de Capri (1470-1530).
Berengarius acreditava na vantagem de fazer observações em primeira mão, mas não
se libertou completamente do ponto de vista humanista de que as descobertas
essenciais haviam sido feitas pelos sábios da Antigüidade. Conseqüentemente, não
era capaz de decidir se seguia a palavra de Galeno ou sustentava suas próprias
observações. De grande importância é o fato de ter publicado em 1521 parte de
seus trabalhos e seus contemporâneos terem podido estudar seus desenhos quase
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exatos de cortes transversais do cérebro. Foi, naturalmente, acusado de vivissecção, da
mesma maneira que Herófilo e Erasistrato, os anatomistas de Alexandria, haviam
sido acusados por seus contemporâneos.
O mais alto clamor daqueles
que defendiam a autoridade
dos antigos foi erguido contra,
o
maior
de
todos
os
anatomistas e o homem a
quem
a
medicina
moderna
deve seus alicerces: Andreas
Vesálius (1514-1564). O pai de
Andreas,
um
Wessale,
farmacêutico
Carlos
V.
Vesálius
anatômicos
belga
era
de
renomado
na
côrte
Quando
leu
de
criança
escritos
antigos
e
dissecou animais mortos. O
Fetus – de Leonardo da Vinci
estudo da anatomia continuou
sendo sua paixão, tanto assim que mais tarde, quando estudante em Paris, onde a
dissecação não era permitida, violava túmulos para obter espécimes nos quais
pudesse continuar seus estudos da estrutura anatômica.
Vesálius começou seus estudos médicos na Universidade de Paris em 1533, sob a
orientação dos ilustres anatomistas Vidus e Sylvius. Esses dois homens seguiam
Galeno, mesmo quando o que ele dizia contradizia aquilo que viam com seus
próprios olhos. Sylvius declarava, por exemplo, que como Galeno havia afirmado
que o osso da coxa era curvo, se parecia reto era porque no decorrer dos anos os
homens haviam usado calças justas e assim modificado a curvatura do osso. Em
1535, Vesálius não pôde mais tolerar que lhe ensinassem a anatomia galenica e
decidiu transferir-se para a Universidade de Pádua, que tinha reputação de
liberdade intelectual. Pádua conferiu-lhe um diploma de doutor em Medicina.
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A Psicologia no Renascimento
Na época em que o movimento em direção ao realismo psicológico se realizou,
Giotto, o pai da pintura moderna, estava irrompendo através da rigidez
despersonalizada do formalismo bizantino e atrevendo-se a pintar Cristo como um
homem entre outros. No trabalho de Giotto, escreve André Malraux, ―a Psicologia
substituiu o símbolo e a pintura descobriu por sua vez que, um dos métodos mais
eficientes de sugerir uma emoção é retratar sua expressão‖. Para trazer de volta à
vida a adormecida população de estátuas antigas, era necessário apenas o
alvorecer do primeiro sorriso sobre a primeira figura medieval. No rosto de Maria
(Giotto) instila algo daquele supremo pato que encontramos no sofrimento das
criancinhas.
Ham e Eckhart, contemporâneos filosóficos de Giotto, estavam também revivendo,
depois de seiscentos anos, o conceito de Santo Agostinho sobre a realidade das
experiências interiores do homem.
A idéia de que os impulsos e sentimentos do homem são dominantes e que o
intelecto é seu servo representou uma completa inversão da posição escolástica
medieval inicial, segundo a qual o raciocínio dedutivo é um instrumento da verdade
revelada, que em si própria está além da competência do homem. Com essa
inversão a psicologia humanizou-se e foi aberta a porta para o estudo do homem
como organismo biológico cujas faculdades psicológicas servem a sua vontade de
viver. As contribuições que esses primeiros voluntários prestaram aos fundam entos
da psicologia como ciência natural jamais poderão ser exageradas; deve-se notar,
porém, que a origem espiritual de seu pensamento remonta à importantíssima
ênfase dada por Santo Agostinho ao auto-conhecimento.
A literatura tanto quanto a arte tornou-se mais realística. Os talentos literários de
Rabelais e Boccaccio expressaram de maneira nova os impulsos básicos e
naturalmente terrenos do homem, que haviam sido ignorados durante séculos. Seu
trabalho indica que depois de longos anos de contemplação abstrata e repressão
instintiva os homens estavam ficando realistas em relação a si próprios e ao
mundo. Os sentidos - tanto aqueles que transmitem impulsos interiores como
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aqueles que transmitem percepções do mundo exterior - não eram mais negados e
a negação das forças da vida cedeu lugar à sua aceitação. Este realismo
psicológico, naturalmente, foi apenas outra manifestação de que a mentalidade
européia estava sendo libertada do dogma medieval.
O século XV é a era de transição entre os
mundos medieval e moderno. O mundo
medieval
tornara-se
formalizado,
cristianismo perdera tanto seu espírito que
o ritual superara a fé e o mundo secular era
governado
por
complicado
e
estático
sistema de estereótipos tradicionais cuja
completa rigidez está bem simbolizada na
arquitetura gótica mais recente. O mundo
sobrenatural ainda existia na mente do
homem,
“Inocentes”. Giotto. Fonte:www.artchive.com/
Giotto_inocentes.
mas
perdera
sua
vitalidade.
Ortega y Gasset fala do homem do século
XV como vivendo em dois mundos, como
sendo "arrancado de um sistema de convicções e ainda não instalado em outro...
Ele ainda acredita no mundo medieval, isto é, no outro mundo sobrenatural de
Deus, mas acredita sem fé viva. Sua fé já se tornou uma questão de hábito...
embora isso não signifique que seja insincera.‖.
O único denominador comum entre os grandes movimentos intelectuais deste
século, que em muitos aspectos parecem contradizer-se entre si, é uma nova
confiança na capacidade do homem para adquirir conhecimento sobre a natureza
através do emprego de suas próprias faculdades de observação e raciocínio descobrir a verdade, em lugar de recebê-la através da revelação divina ou prová-la
por raciocínio silogístico. O emprego da razão e observação para descobrir a
verdade foi uma completa fuga à prática medieval dos teólogos que usavam o
raciocino dedutivo a fim de provar a verdade revelada. Esta revolução intelectual
iniciou-se no século XIII com a redescoberta da filosofia de Aristóteles. As idéias de
Aristóteles foram usadas por Alberto Magno e Santo Tomás para apoiar o dogma
Página 86
revelado; mas, no século XV, os humanistas descristianizaram Aristóteles apesar
de sua declarada intenção de reconciliá-lo com o Cristianismo e ao fazê-lo abriram
caminho para a verdadeira Renascença.
A contribuição dos humanistas foi principalmente na literatura, nas artes plásticas,
na filosofia ética e só tangencialmente na medicina e psiquiatria. A psicologia sempre
esteve mais profundamente ligada à tradição religiosa do que as ciências naturais, por
ser a alma do homem o objeto de ambas, e por isso a psicologia teve de esperar mais
tempo para beneficiar-se dessa reorientação espiritual. Como sempre acontecera, a
necessidade que o homem tem de encontrar o meio de viver uma vida ética interferiu
com o desenvolvimento da psicologia como ciência.
A descoberta da existência concreta do homem ocorreu primeiro no reino da religião,
que era a principal arena cultural da época. Desidério Erasmo (1465-1536), em
quem o humanismo atingiu sua plena realização, foi um eclesiasta que, como
Petrarca, atacou o formalismo e a corrupção da Igreja, o estéril ritual despido de
espírito. Seu Elogio da Loucura, que escreveu quando visitava seu amigo inglês Sir
Thomas More, outro grande humanista, tornou-se um dos livros mais lidos na Europa.
“Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo". (Erasmo, ed. s/d., p.15)
Nascido em Roterdã em 1469 e falecido em Basel em 12
de julho de 1536, Desiderius Erasmus foi o maior
intelectual europeu do século dezesseis. Usando a
filologia de que haviam sido pioneiros os humanistas
Italianos, ajudou a lançar os fundamentos para o estudo
histórico-crítico do passado, especialmente em seus
estudos do Novo Testamento grego e dos Padres da
Igreja. Suas obras educacionais contribuíram para a
substituição do velho currículo escolástico pela nova
ênfase
Erasmo de Roterdã.
dada
aos
clássicos
pelo
humanismo
renascentista. Por criticar os abusos eclesiásticos,
enquanto apontava para uma época melhor no passado distante, ele encorajou a
urgência por reformas, as quais encontraram expressão tanto na Reforma Protestante
como na contrarreforma Católica. Finalmente, sua posição independente em uma
Página 87
época de controvérsias religiosas ferozes - rejeitando tanto a doutrina de Lutero da
predestinação quanto os poderes que eram reivindicados pelo papa -- fez dele um alvo
da suspeita dos partidários dos dois lados e um farol para aqueles que valorizavam a
liberdade mais do que a ortodoxia. Órfão junto com um irmão escolheu ser padre
Agostiniano.
A psicologia teórica dos humanistas era aristotélica ou platônica e continha pouca coisa
original. Porponazzi (1462-1525), famoso professor da Universidade de Pádua,
instruiu-se tanto como filósofo quanto como médico; suas maiores contribuições
tratam da relação da mente com o corpo e da imortalidade da, alma. Seus
escritos mostram de maneira impressionante o dilema em que se encontravam os
pensadores sérios da época, espremidos, como estavam, entre as tradições
prevalecentes da filosofia escolástica e o aristotelismo avarroísta. Pomponazzi tentou
uma conciliação. Apoiava ambas as teses, de que a alma é mortal e imortal, de
que a mente precisa do equipamento físico do corpo para expressar-se e também
de que a razão, como pregava Tomás de Aquino, tinha existência independente.
Havia pouca observação efetiva em seu trabalho; ele foi principalmente um intérprete
de Aristóteles e o novo espírito dos tempos manifestou-se em seus escritos apenas pelo
fato de suas reafirmações serem mais claras e mais simples que a dos comentadores
anteriores.
Se nossa medida para avaliação das contribuições do
passado é seu modernismo, dois escritores da
Renascença merecem o mais alto reconhecimento:
Montaigne e Maquiavel. Esta medida de modernismo é
justificada na ciência, pois a ciência é um corpo de
conhecimento em contínuo crescimento, um tipo
verdadeiramente
cumulativo
de
atividade
cultural.
Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) não foi
Michel De Montaigne-1533-1592
senão um sistemático pensador ou teórico. Era um
realista psicológico, interessado apenas pela grande riqueza dos sentimentos, caráter e
comportamento humanos, e sem o menor interesse por princípios abstratos gerais.
Página 88
Contentava-se em compreender as ações humanas em termos psicológicos e - talvez
possamos usar justificadamente o termo ―psicodinâmico‖.
Niccolò Maquiavel (1469-1527) partilhava da aversão de Montaigne pela abstração.
Passou a ser um costume considerar Maquiavel como o primeiro psicólogo social, mas
seria melhor considerá-lo como o primeiro estudioso das relações interpessoais. Seu
conselho ao príncipe não se baseia primordialmente em um conhecimento da dinâmica
social, mas em um astucioso conhecimento intuitivo de interações humanas e
particularmente da psicologia de liderança.
O que há de mais característico tanto em Montaigne como em Maquiavel é que, ao
contrário dos humanistas, eles distinguiam entre a psicologia do comportamento humano
e a moral. Tentaram descrever como os seres humanos efetivamente se comportam, sem
fazer julgamento moral a respeito de seu comportamento, e por esta razão, embora
nenhum deles tenha contribuído diretamente para o desenvolvimento da psicologia do
anormal ou psiquiatria. Encarar fenômenos naturais desapaixonadamente, sem distorções
convenientes, é bastante difícil; estudar o comportamento humano dessa mesma maneira
objetiva é talvez a mais difícil de todas as tarefas científicas.
O maior sugestionador da Renascença não foi um médico, mas um homem que servia
como tenente nas fileiras do exército de Cromwell, Valentine Greatrakes (1628-1666), o
qual utilizava a crença popular na eficácia do "toque do rei" - crença em que doenças
podiam ser curadas pelo toque de um líder divinamente inspirado. Na Europa Ocidental o
primeiro governante a tocar para curar foi Eduardo, o Confessor, no século XI. Depois
dele, tanto na França como na Inglaterra, acreditava-se que os reis eram capazes
de curar doenças por esse processo e a tuberculose do pescoço - o "mal do rei" - era
popularmente considerada como especialmente sensível à mão do rei. Cromwell não
praticava o toque ritual e, após Carlos I ter sido degolado em 1649, considerou-se
que o toque do rei fora conferido a Valentine Greatrakes, curandeiro irlandês
"divinamente inspirado". A princípio Greatrakes teve poucos clientes, mas
gradualmente sua clientela aumentou até que, por fim, milhares de pacientes
apresentavam-se para serem curados pelo impressionante irlandês e "seus celeiros e
dependências externas estavam repletos de inúmeros espécimes da humanidade
sofredora". Walter Bromberg, historiador psiquiátrico, considera Greatrakes significativo
Página 89
por ter praticado como leigo uma forma de psicoterapia que até então pertencera
aos membros da classe dominante.
Astrologia, quiromancia, toque mágico, sugestão e outras magias praticadas
durante a Renascença eram empregados para aliviar ansiedade e medo. Medidas
mais drásticas para aliviar ansiedade resultante de impulsos inaceitáveis consistiam
em atribuí-los a certas mulheres e em seguida perseguir e executar as mulheres como
feiticeiras.
O laço do enforcador e a tocha do
executor
estavam
sempre
preparados naqueles tempos. È
espantoso que tenha sido erguido
contra a fobia da feitiçaria algum
protesto, ainda que fraco, mas
houve alguns homens corajosos
que não, puderam dar aprovação
ao
homicídio,
embora
acreditassem no demônio. Dois
Representação do sobrenatural na renascença.
dos que mais alto protestaram
contra os caçadores de feiticeiras são figuras importantes na história da psiquiatria.
Um deles, Paracelso (14931541), foi um místico excêntrico; o outro, Johann Weyer
(15151588), foi um observador seguro. Ambos eram médicos e exerceram
considerável influência em seu mundo.
Philippus Aureolus Paracelsus nasceu com o nome de Theophrastus Bombastus von
Hohenheím em Maria-Eísíedeln, na Suíça. Quando jovem preferia ser chamado de
Theophrastus, nome do distinto sábio que sucedeu a Aristóteles, mas posteriormente
latinizou seu nome, com característica falta de humildade, para Paracelsus - "maior
que Celsus". (Era tão violento e turbulento que o vocábulo Bombastus foi introduzido
na linguagem para descrever homens como ele.) Seu pai, Wilhelm Von Hohenheim,
era um médico que provinha de família nobre; depois que sua esposa se
suicidou, levou seu raquítico filho para uma cidade mineira, onde Paracelso
cresceu e iniciou seus estudos de alquimia. No começo da adolescência, Paracelso
Página 90
tornou-se um vagamundo. Foi educado em seis cidades de três países. Seu
sucesso como médico começou em Basiléia em 1526, quando curou um influente
cidadão que estava com uma perna gangrenada. Depois curou o famoso teólogo
Erasmo e, em resultado, foi nomeado professor de medicina na Universidade de
Basiléia. Imediatamente se dedicou a um programa de solapamento da autoridade
dos antigos. Apelava aos estudantes que, em lugar de confiar nos antigos,
confiassem nele e em suas experiências. Quando os estudantes e o corpo
docente exigiram sua resignação, o violento iconoclasta queimou livros de Avicena e
Galeno, proclamando: "Pois eu vos digo ousadamente que o cabelo de minha
nuca sabe mais que todos os vossos escritores juntos; as fivelas de meus sapatos
conêm mais sabedoria que o próprio Galeno ou Avicena e minha barba mais
experiência do que toda vossa academia.‖ (") Seus clamores contra as
autoridades,
antigas
e
modernas,
só
encontravam
paralelos
em
suas
recomendações aos médicos para "seguirem apenas as pegadas de Paracelso"?
Permaneceu na universidade menos de um ano e passou os anos restantes de sua
vida vagueando de novo. Finalmente voltou a Salzburg,
onde morreu.
Contemporâneos seus disseram que morreu de cansaço causado por suas
peregrinações e complicado por intensa sede pelo álcool.
Embora Paracelso fosse astrólogo, não pensava que a doença fosse causada pelas
estrelas ou por demônios. Pelo contrário, acreditava em um "espírito natural" que
se utilizava de substancias alquímicas básicas sais, enxofre e mercúrio - para formar o complexo
corpo
humano.
Imaginava
a
personalidade
humana como um todo, constituído de partes
espiritual e corporal intimamente ligada à alma.
A doença mental era uma perturbação dentro
da substância interna do corpo e não podia ser
considerada como resultado de efeitos externos.
Acreditava que toda doença, mental ou física,
podia ser curada pelo medicamento adequado,
mas fazia objeção à polífarmácia da época e
Paracelso- 1493-1541.
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receitava drogas simples em dosagens precisas. Seu rancor e seu desprezo eram
aparentemente reservados à autoridade e nunca se dirigiam contra os pacientes,
pelos quais sempre demonstrava apenas simpatia. Vangloriava-se de que, embora
tivesse sido O obscurantismo de Paracelso e sua tendência ao misticismo tornaram
ambíguas
suas
contribuições
filosóficas
e
psiquiátricas.
Tornou-se
quase
costumeiro em alguns círculos afirmar que o escritor que tem o germe de uma
idéia original, mas cujas idéias são mal definidas e confusas, não é compreendido
porque fica fora do âmbito de seus contemporâneos e sucessores. Se Paracelso
tivesse revoltado contra a autoridade de Galeno sem insinuar seu próprio
dogmatismo, poderia ter sido com razão designado como um grande reformador
médico. Na questão da caça a feiticeiras foi inegavelmente alto e claro. Um dos
mais trágicos iconoclastas da história da medicina,foi ele o segundo médico a falar
acidamente contra o Código dos queimadores de feiticeiras; o primeiro foi Agrippa,
cuja maior razão à fama médica provém de ter sido o mestre de Johann Weyer.
Johann Weyer, ao contrário de Paracelso, não atacou a autoridade pelo gosto da
autopublicidade. Weyer era um individuo calmo, metódico e consciencioso; seu
objetivo consistia em provar que as feiticeiras eram doentes mentais e deviam ser
tratadas por médicos em lugar de interrogadas pelos eclesiásticos. Weyer nasceu
no ano de 1515 em Grave, no território que hoje constitui a Holanda. Pouca coisa se
sabe de sua vida; parece ter sido dotado de imensa curiosidade e seu pai, um
plebeu, mandou-o estudar com Cornelius Agrippa Von Nettesheim (14861535),
médico e filósofo alemão. O inspirador tratado de Arippa Da Nobreza e Proeminência
do Sexo Feminino ensinou Weyer a sentir empatia pela situação das mulheres
perseguidas. Depois de estudar três anos com Agrippa, Weyer, então com 19 anos,
viajou para a França a fim de estudar medicina em Paris e Orleans. Intelectual
brilhante, foi convidado em 1945 pelas autoridades de Arnheim para ser seu médico
oficial, posto que ocupou até 1550 quando se tornou médico particular do duque
William de Clèves. O duque sofria de depressão crônica e tinha muitos parentes que
haviam ficado insanos. Observara que as feiticeiras manifestavam muitos dos
mesmos sintomas de seus parentes e simpatizava com a idéia de Weyer de que
essas mulheres eram realmente vítimas de doença mental. Quando, em 1578, o
Página 92
duque sofreu episódios temporários psicóticos, em resultado de um ataque, não foi
mais capaz de manter sob controle os caçadores de feiticeiras em seus ducados;
conseqüentemente Weyer precisou deixar o serviço do duque e durante o resto de
sua vida ocupou um cargo sob a proteção da condessa Anna de Tchlenburg. É
perfeitamente justo que esse homem, que defendeu mulheres contra as hordas
assassinas de caçadores de feiticeiras, tenha sido protegido por uma mulher.
Enquanto estava com o duque William, Weyer visitou Julich e Berg para investigar
todos os casos noticiados de feitiçaria. Acumulou dados, entrevistou acusadores e
acusados, e depois, de maneira cuidadosa e sistemática, destruiu as acusações
com explicações naturalísticas. Um dos melhores exemplos de seu método de
investigação é o caso de uma menina de 16 anos que acreditava que o demônio
havia posto em seu estômago pano, unhas e agulhas. Weyer examinou
cuidadosamente um pedaço de pano que tinha supostamente saído do estômago
da menina e descobriu que estava úmido só de saliva, não de sucos gástricos, prova
convincente de que a menina estava mentindo. Em um de seus panfletos, De
Commentitiis Jejuniis ("Do Alegado Jejum"), descreve que, segundo contavam seus
pais, não comia nem bebia desde seis meses antes. Weyer levou a menina para
sua casa e convenceu-a a confessar que sua irmã de 12 anos a alimentara
secretamente durante todo aquele tempo.
Os cuidadosos estudos de casos de Weyer contêm
excelentes descrições psiquiátricas de diferentes
perturbações
mentais.
Weyer
continuou
suas
investigações sobre os abusos envolvidos
na
identificação de feitiçaria durante doze anos e
finalmente,
em
1563,
publicou
De
Praestigiis
Daemonum ("A Ilusão de Demônios"), que quatro
anos depois traduziu para o alemão. De Praest ig iis
é uma refutação ponto por ponto do Malleus
Maleficarum e revela que Weyer não era um
Johann Weyer (15151588).
renegado
réprobo
rebelado
ímpio;
era
e
amargurado
um
homem
nem
um
religioso,
Página 93
respeitoso e reverente, cujo único desprezo era pelo carrasco. Em sua introdução
Weyer diz: "Quase todos os teólogos estão observando em silêncio essa impiedade
(a queima de feiticeiras). Doutores toleraram-na, juristas tratam-na ainda sob a
influencia de velhos preconceitos." Acreditava firmemente que "essas doenças cujas
origens são atribuídas a feiticeiras provêm de causas naturais. Weyer tinha plena
consciência de que ainda não era possível explicar todas as doenças mentais, mas
sabia "que feiticeiras não podem prejudicar ninguém através da mais perversa
vontade ou do mais feio exorcismo, que é antes sua imaginação inflamada pelos
demônios de maneira para nós incompreensível e a tortura da melancolia - que as
leva a imaginar que causaram toda espécie de mal.
A renascença assinalou a reorintação do homem em direção à realidade.
Embora a luta contra a superstição não tenha sido vencida n esse período, o
ponto crítico foi atingido; o homem ocidental comprometeu -se a procurar a
verdade a seu próprio respeito.
O diálogo entre o Iluminismo e a Medicina – Questões da Psiquiatria
recém-descoberta eletricidade demonstraram
que o corpo humano é um bom condutor
elétrico,
O
menino
suspenso
por
cordas
Isolantes recebe estímulos elétricos nos pés, os
quais são transmitidos à outra criança (à
esquerda), a quem esta dando a mão. Fonte:
saberhistoria.hpg.ig.com.br/.
O contínuo desenvolvimento das idéias científicas não pode ser nitidamente dividido
em séculos. É simplesmente por uma questão de conveniência que se rotula o
Página 94
século XVIII como a época do "Iluminismo", e o leitor deve ter em mente que a
herança empírica, racional e observacional do século XVII continuou a florescer
durante todo o século XVIII e constituiu realmente muito do impulso para os
progressos feitos em todo o Século Iluminado. Iluminado, sim, mas também uma
era cheia de contradições internas. Tendências paralelas, velhas e novas, fundiramse e misturaram-se: embora se esposasse o conceito da bondade do homem,
instintos destruidores encontraram vazão em sangrenta revolução; embora os
insanos tivessem sido libertados de seus grilhões, inventou-se a guilhotina.
A característica saliente do século XVIII, porém, é que a crença na razão substituiu a
tradição e a fé em todos os aspectos da sociedade. No começo do século XVIII a
experimentação já expulsara definitivamente a abstração dedutiva nas investigações
científicas e médicas. George Stahl, um vitalista, estava debatendo com seu
colega Friedrich Hoffmann (1660-1742) na Universidade de Halle e perdendo para
a posição deste ultimo, segundo o qual a experiência devia suplantar a razão na
pesquisa biológica. John Hunter (1728-1793), cujo epitáfio na Abadia de Westminster
proclama ser ele o "Fundador da Cirurgia Científica", escreveu a seu amigo Edward
Jeimer (1749-1823), o inovador da vacina contra varíola: "Não pense, faça a
experiência"; e parece que toda a investigação médica do século XVIII obedeceu
ao conselho deste eminente cirurgião. O ponto de vista objetivo finalmente expulsara
o demônio da doença humana e a psiquiatria estava a ponto de ingressar na medicina
através de canais orgânicos. Nas primeiras décadas do século, médicos procuravam
matéria destruída no cérebro para explicar doença mental e conceitos como os da
sede da alma e de ―espíritos animais" estavam gradualmente caindo no
esquecimento.
O progresso nas ciências exatas durante o Iluminismo foi atordoante. Luigi Galvani
(1737-1798), fisiologista italiano, e o conde Alessandro Voltam (1745-1827), físico
italiano, fizeram trabalho pioneiro em eletricidade; John Dalton (1766-1844), químico
inglês, revolucionou a física com sua teoria atômica; Joseph Black (17281799), químico
escocês, descobriu o dióxido de carbono. Henry Cavendish (1731-1810), Daniel
Rutherford (1749-1819) e Joseph Priestley (1733-1804) descobriram e descreveram o
hidrogênio, o nitrogênio e o oxigênio, respectivamente. O oxigênio foi também
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identificado independentemente por Karl Wilhelm Scheele (1742-1786), da Suécia. Na
Alemanha, a embriologia foi modernizada pelo trabalho do microscopista Kaspar
Friedrich Wolff (1733-1794) e na Suíça Albrecht Von Haller (1708-1777) iniciou
progressos na fisiologia e compilou em seu Elementa physiologiae corporis human
(1757-1768), todo o conhecimento fisiológico então existente. Em todos os terrenos da
tecnologia, progresso juntou-se a progresso. Apareceram novas invenções - o rolo de
fiar, a locomotiva, o pára-quedas, o balão. Na medicina, novos instrumentos de
diagnóstico foram acrescentados ao arsenal do médico. Stephen Hales (1677-1761),
teólogo inglês, desenvolveu um método para tomar a pressão do sangue e estudou
a dinâmica da circulação do sangue. Leopold Auenbrugger (1722-1809) aprendeu
quando criança que, batendo em barris de vinho, podia ficar sabendo o nível do
liquido existente dentro. Como médico, batia no peito dos pacientes e deixou para a
posteridade médica o valioso método de avaliar doença torácica por percussão. O
médico francês René Laennec (1781-1826) inventou o estetoscópio, tomando assim
possível para os médicos ouvirem mais claramente os sons dentro do peito. Os
princípios do conhecimento dos processos digestivos foram feitos por um naturalista
francês, René de Réaumur (1683-1757), e um abade italiano, Lazaro Apallanzani
(1729-1799). As doenças passaram a ser diagnosticadas com mais exatidão e
localizadas com mais precisão, e, como o conceito de localização é essencial ao
desenvolvimento da história da psiquiatria orgânica.
A riqueza dos dados médicos e científicos estabelecidos durante os séculos XVII e XVIII
foi tão grande que se tornaram necessárias síntese e sistematização. A ciência precisa
dar sentido aos fatos coligidos fazendo generalizações e inventando um sistema de
ordem. O século XVIII tornou-se necessariamente a Idade dos Sistemas. A química foi
sistematizada por Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794), que desenvolveu também
muitos dos pontos essenciais da combustão e da respiração; e a marcha no sentido da
sistematização continuou quando Carolus Linnaeus (1707-1778), médico e botânico
sueco aplicou os princípios de organização á matéria viva em seu Systema naturae
(1735).
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ATENÇÃO:
A PESQUISA SOBRE O ILUMINISMO AINDA ESTÁ SENDO ELABORADA, UMA VEZ
QUE A PARTIR DESSE CONTEXTO A PSIQUIATRIA PROPÕE NOVAS QUESTÕES
E SEU APROFUNDAMENTO HISTÓRICO EXIGE CUIDADO E REFLEXÃO PARA
DEIXAR BEM ESCLARECIDO O PROCESSO EVOLUCIONISTA QUE ESSA CIÊNCIA
SOFRE A PARTIR DESSE MOMENTO.
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A Medicina Iluminista
Esta foi a era que divinizou a ciência, buscando reduzir todos os processos intelectuais
e morais a preciosos princípios newtonianos de matéria, movimento, espaço, tempo e
força. Homens talentosos descobriram dados básicos em Química e Física, que
indiretamente beneficiaram o progresso da Medicina.
Neste século nasceu a tendência para a especialização: a Cardiologia teve origem na
obra de Antonio Giuseppe Testa (1764-1814); na Alemanha, o poeta Paul Gottlieb
Werlhof (1699-1767) lançou as bases da Hematologia com a descrição da púrpura
hemorrágica.
O século XVIII não introduziu nenhum método revolucionário de terapia; continuaram
em moda a sangria, a aplicação de ventosas, a purgação e a dieta; as doenças
venéreas, desenfreadas numa época de libertinagem, eram ainda tratadas com doses
maciças de mercúrio, flebotomia e banhos.
A Medicina do século XIX
O século XIX produziu mudanças mais radicais na estrutura da sociedade humana do
que os mil anos anteriores. O mais revolucionário pensador do século foi Charles
Robert Darwin, cuja teoria da origem das espécies, dividiu o mundo vitoriano,
desencadeando décadas de debates entre cientistas e entre os naturalistas e o clero.
O legado mais interessante do século XIX foi o trabalho do francês Marie-François
Xavier Bichat (1771-1802). Ele desenvolveu a idéia de que o corpo vivo não era apenas
uma associação de órgãos que podiam ser estudados em separado, mas uma
intrincada rede de ―membranas‖ ou tecidos. Para ele o tecido era uma unidade
fisiológica e morfológica da criatura viva, independentemente do órgão do qual era
derivado. Esse ensinamento levou à teoria celular de Virchow, algumas décadas
depois. A ambição de Bichat, frustrada por morte prematura, era transformar a Medicina
numa ciência exata baseada na Anatomia e na Patologia.
A teoria microbial da doença, o maior presente do século à Medicina, veio de um
cientista que não era médico, chamado Louis Pasteur (1822-1895). Em seu precário
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laboratório mal iluminado, Pasteur fez sua histórica contribuição à Imunologia, com
vacinas de vírus contra a cólera nas galinhas, o carbúnculo nos porcos e a raiva. Ele
observou os efeitos do Penicillium glaucum em fermentos e demonstrou que as
bactérias podiam ser usadas umas contra as outras.
Robert Koch (1845-1910) descobre o bacilo da tuberculose e relata que a peste
bubônica é quase sempre transmitida pela pulga do rato.
A Medicina passou a depender em grande parte da ciência. O laboratório assumiu
papel dominante nos problemas de doença e morte mudando a imagem do médico do
século XIX que não era mais um homem com poderes miraculosos, mas sim alguém
que compartilhava da tendência positivista da época, reconhecendo apenas as
conclusões que se baseavam em fatos objetivos.
A corrente que conduziu a Medicina aos caminhos do diagnóstico clínico-laboratorial e
à especialização despontou no fim do século.
A Medicina do século XX
O
médico
na
Mesopotâmia
encarnava
a
autoridade e o conhecimento do saber médicoempírico. Seus honorários eram regidos por lei,
como também eram as penalidades caso algum
tratamento causasse morte ou danos ao paciente.
As doenças na Mesopotâmia eram tratadas com
O Doutor” – 1950 – de Grandma Moses – quando o
médico rural fazia suas visitas a cavalo
drogas, fumigação, banhos medicinais, água fria
ou quente. Os médicos reconheciam doenças nos olhos e ouvidos, reumatismo,
perturbações cardíacas e doenças venéreas dentre outras. A civilização vivia na crença
de que o fígado era o centro da vida e onde ficava a alma.
Página 99
A Medicina atual
“O bom médico é aquele que me atende como se eu
fosse o único paciente do dia”. Anônimo
 A medicina progrediu mais nos últimos 50 anos do que nos 50 séculos
precedentes.
A mídia divulga os prodígios da ciência médica criando uma nova mitologia: a
doença sob controle.
 O corpo humano é visto como uma máquina que pode ser analisada em suas
diferentes peças.
 A doença é encarada como mau funcionamento dos mecanismos biológicos.
O modelo biomédico reduz a doença a um projeto biológico centrado ora na
patologia celular ou molecular, ora num agente infeccioso, tóxico ou coisa
semelhante.
Os avanços técnico-científicos ao lado do modelo cartesiano do corpo humano
foram responsáveis pela pulverização da medicina em especialidade.
 Chegamos à era do médico tecnotrônico.
Em linhas gerais este modelo sugere:
1. o doente como objeto.
2. o médico como mecânico.
3. a doença como avaria.
4. o hospital como oficina de consertos.
 A escola médica deve se constituir num espaço crítico proporcionando ao
médico uma visão global dos problemas de saúde.
 A promoção da saúde depende também do saneamento básico, da alimentação,
da habitação, da educação ou seja das condições socioeconômicas adequadas.
 A epistemologia (estudo crítico da teoria da ciência) precisa fazer parte da
formação médica.
Página 100
“A ciência é um enunciado que permanece como tal até que venha outro para refutá-lo”
Karl Popper
Uma das lições a ser aprendida com as histórias das realizações científicas é que
nenhuma teoria sobrevive para sempre. Muitas vezes, quando as coisas parecem
solidificadas, novas observações e novas idéias a substituem por conceitos atualizados.
Isso é parte da aventura que é a ciência, parte da conquista do enigma que é o mundo
natural, na qual o homem está empenhado desde os primeiros dias da mais antiga
civilização.
Uma Discussão sobre o Símbolo da Medicina: Tradição e Heresia
O valor de um símbolo não está em seu desenho, mas no que ele representa.
Dois símbolos têm sido usados ultimamente em conexão com a medicina: o símbolo de
Asclépio, representado por um bastão tosco com uma serpente em volta, e o símbolo
de Hermes, chamado caduceu, que consiste em um bastão mais bem trabalhado, com
duas serpentes dispostas em espirais ascendentes, simétricas e opostas, e com duas
asas na sua extremidade superior.
Ambos os símbolos têm sua origem na mitologia grega; o de Asclépio, deus da
medicina, é o símbolo da tradição médica; o de Hermes, deus do comércio, dos
viajantes e das estradas, introduzido tardiamente na simbologia médica, constitui a
heresia (fig.1).
1-Símbolo de Asclépio
2-Símbolo de Hermes
Em várias esculturas gregas e romanas e em descrições de textos clássicos, Asclépio é
sempre representado segurando um bastão com uma serpente em volta. [3][4]
Página 101
Não é nosso objetivo no momento discutir o significado do bastão e da serpente e sim
analisar as razões pelas quais o símbolo de Hermes tem sido usado em substituição ao
de Asclépio.
Hermes, na mitologia grega, é considerado um deus desonesto e trapaceiro, astuto e
mentiroso, deidade do lucro e protetor dos ladrões. [5][6][7][8][9][10][11] Seu primeiro
ato, logo após o seu nascimento, foi roubar parte do gado de seu irmão Apolo, negando
a autoria do furto. Foi preciso a intervenção de Zeus, que o obrigou a confessar o
roubo. Para se reconciliar com Apolo, Hermes presenteou-o com a lira, que havia
inventado esticando sobre o casco de uma tartaruga, cordas fabricadas com tripas de
boi. Inventou
a
seguir a flauta
que também
deu
de presente
a
Apolo.
Apolo, em retribuição, deu-lhe o caduceu. Caduceus, em latim, é a tradução do grego
kherykeion, bastão dos arautos, que servia de salvo-conduto, conferindo imunidade ao
seu portador, quando em missão de paz. O primitivo caduceu não tinha asas na
extremidade superior, as quais foram acrescentadas posteriormente. [12][14][15]
Hermes tinha a capacidade de deslocar-se com a velocidade do pensamento e por isso
tornou-se o mensageiro dos deuses do Olimpo e o deus dos viajantes e das estradas.
Como o comércio na antiguidade era do tipo ambulante e se fazia especialmente
através dos viajantes, Hermes foi consagrado como o deus do comércio. Outra tarefa a
ele atribuída foi a de transportar os mortos à sua morada subterrânea (Hades).[5][7][9]
Com a conquista da Grécia pelos romanos, estes assimilaram os deuses da mitologia
grega, trocando-lhes os nomes: Asclépio passou a chamar-se Esculápio e Hermes,
Mercúrio.
Segundo os filólogos, a denominação de Mercúrio dada a Hermes pelos romanos
provém de merx, mercadoria, negócio.[13] O metal hydrárgyros dos gregos passou a
chamar-se mercúrio por sua mobilidade, que o torna escorregadio e de difícil
preensão.[11] O planeta Mercúrio, por sua vez, deve seu nome ao fato de ser o mais
veloz do sistema planetário.
O caduceu é de longa data, o símbolo do comércio e dos viajantes, sendo por isso
utilizado em emblemas de associações comerciais, escolas de comércio, escritórios de
contabilidade e estações de estradas de ferro.
Página 102
Surge, então, a questão principal do tema que estamos abordando. Por que o símbolo
do deus do comércio passou a ser usado também como símbolo da medicina?
Mais de um fato histórico concorreu para que tal ocorresse.
No intercâmbio da civilização grega com a egípcia, o deus Thoth da mitologia egípcia
foi assimilado a Hermes e, desse sincretismo, resultou a denominação de Hermes
egípcio ou Hermes Trismegistos (três vezes grande), dada ao deus Thoth, considerado
o deus do conhecimento, da palavra e da magia. No panteão egípcio, o deus da
medicina correspondente a Asclepius é Imhotep. [16]
Na antigüidade e, posteriormente, na Idade Média, desenvolveu-se uma literatura
esotérica chamada hermética, em alusão a Hermes Trismegistos. Esta literatura versa
sobre ciências ocultas, astrologia e alquimia, e não tem qualquer relação com o Hermes
tradicional da mitologia grega. O sincretismo entre Hermes da mitologia grega com
Hermes Trismegistus resultou no emprego do caduceu como símbolo deste último,
tendo sido adotado como símbolo da alquimia. Segundo Schouten, da alquimia o
caduceu
teria
passado
para
a
farmácia
e
desta
para
a
medicina.[17]
Um segundo fato a que se atribui a confusão entre o bastão de Asclépio e o caduceu
de Hermes se deve à iniciativa de um editor suíço de grande prestígio, Johan Froebe,
no século XVI, ter adotado para a sua editora um logotipo inspirado no caduceu de
Hermes e o ter utilizado no frontespício de obras clássicas de medicina, como as de
Hipócrates e Aetius de Amida. Outros editores na Inglaterra e, posteriormente, nos
Estados Unidos, utilizaram emblemas semelhantes, contribuindo para a difusão do
caduceu. [12]
Admite-se que a intenção dos editores tenha sido a de usar um símbolo identificado
com a transmissão de mensagens, já que Hermes era o mensageiro do Olimpo. Com a
invenção da imprensa por Gutenberg, a informação passou a ser transmitida por meio
da palavra impressa, e eles, os editores, seriam os mensageiros dos autores. Outra
hipótese é de que o caduceu tenha sido usado equivocadamente como símbolo de
Hermes Trimegistos, o Hermes egípicio ou Thoth, deus da palavra e do conhecimento,
a quem também se atribuía a invenção da escrita. Em antigas prensas utilizadas para
impressão tipográfica encontra-se o caduceu de Hermes como figura decorativa.
Página 103
Outro fato que certamente colaborou para estabelecer a confusão entre os dois
símbolos é o de se conferir o mesmo nome de caduceu ao bastão de Asclépio, criandose uma nomenclatura binária infundada de caduceu comercial e caduceu médico.
Este erro vem desde o século XIX e persiste até os dias de hoje.
Em 1901, o exército francês fundou um jornal de cirurgia e de medicina chamado Le
caducée, no qual estão estampadas duas figuras estilizadas do símbolo de Asclépio,
com uma única serpente. [12]
O terreno estava, assim, preparado para que ocorresse a maior heresia na história do
símbolo da medicina, que foi a adoção pelo Exército norte-americano, do caduceu de
Hermes, como insígnia do seu departamento médico.
As justificativas e argumentos para essa adoção são falhas, inconsistentes, e denotam,
no mínimo, ingenuidade ou ignorância dos que detinham o poder para promover a
mudança. As informações que se seguem sobre este episódio foram colhidas em
grande parte no livro de Walter Friedlander, The golden wand of medicine. [12]
O caduceu fora usado, entre 1851 e 1887, como emblema no uniforme de trabalho do
pessoal de apoio nos hospitais militares dos Estados Unidos para indicar a condição de
não combatente. Em 1887 este emblema foi substituído por uma cruz vermelha idêntica
a da Cruz Vermelha Internacional fundada na Suíça em 1864.
Os oficiais médicos usavam nas dragonas as letras M.S. (Medical Staff). Em 1872, as
letras M.S. foram substituídas por M.D. (Medical Department).
O Departamento Médico, contudo, possuía o seu próprio brazão de armas com o
bastão de Asclépios, desde 1818.[15]
Em março de 1902, os oficiais médicos passaram a usar um emblema inspirado na cruz
dos cavaleiros de São João, ou cruz de Malta, cujo simbolismo em heráldica é o de
proteção, altruísmo e honorabilidade.
Em 20 de março de 1902, o capitão Frederick P. Reynolds, Comandante da Companhia
de Instrução do Hospital Geral em Washington propôs substituir a cruz de Malta pelo
caduceu.
O general G. Sternberg, chefe do Departamento Médico, deu o seguinte despacho: "A
atual insígnia foi adotada após cuidadoso estudo e é atualmente reconhecida como
própria desta corporação. A alteração proposta, portanto, não é aprovada". Em 14 de
Página 104
junho do mesmo ano, o capitão Reynolds endereçou nova carta ao Chefe do
Departamento, refazendo sua proposta com novos argumentos. Em certo trecho de sua
carta diz o seguinte: "Desejo particularmente chamar a atenção para a conveniência de
mudar a insígnia da cruz para o caduceu e de adotar o marrom como a cor da
corporação, em lugar do verde agora em uso. O caduceu foi durante anos a insígnia de
nossa corporação e está inalienavelmente associado às coisas médicas. Está sendo
usado por várias potências estrangeiras, especialmente a Inglaterra. Como figura,
deve-se reconhecer que o caduceu é muito mais gracioso e significativo do que o atual
emblema" (cruz de Malta). "O verde não tem lugar na medicina".
Nesse ínterim, houve mudança na Chefia do Departamento Médico e esta segunda
carta foi recebida pelo General W. H. Forwood, quem, não somente aprovou a proposta
como providenciou a confecção da nova insígnia. O desenho elaborado tem sete
curvaturas das serpentes, o que também revela desconhecimento do caduceu
tradicional, que contém, no máximo, 5 espirais.[12] (fig. 2).
Fig. 2. Insígnia do Army Medical Department.USA
Os argumentos usados pelo Cap. Reynolds revelam, no mínimo, ignorância. O caduceu
jamais fora a insígnia da corporação, mas do pessoal de apoio (steward) dos hospitais.
O bastão de Asclépio e não o caduceu é que está historicamente associado à medicina.
Tanto na Inglaterra, como na França e na Alemanha, os serviços médicos das forças
armadas utilizavam o bastão de Asclépio em seus emblemas e não o caduceu de
Hermes.
Finalmente, a cor verde tem sido usada em conexão com a medicina; tanto assim que
no Brasil o anel de médico tem, incrustada, uma pedra verde - esmeralda ou imitação.
O argumento de ordem subjetiva de que a figura do caduceu é mais estética do que a
cruz de Malta ou o bastão de Asclépio é irrelevante, porquanto não diz respeito ao
significado de tais símbolos.
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Deste modo, o caduceu foi implantado e se mantém até hoje como insígnia do
Departamento Médico do Exército norte-americano, o que contribuiu sobremaneira,
sobretudo após a Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918), para a sua difusão,
dentro e fora dos Estados Unidos, como símbolo da medicina.
A Marinha norte-americana adotou igualmente o caduceu como emblema de seu corpo
médico, ao contrário da Força Aérea, que mantém em seu emblema o bastão de
Asclépio.
Os Serviços de Saúde Pública dos Estados Unidos, por sua vez, adotaram um antigo
emblema do Serviço Médico da Marinha, no qual o caduceu se cruza com uma âncora
e cujo simbolismo anterior era o do comércio marítimo. [12]
O primeiro comentário desfavorável à decisão do U.S. Medical Department apareceu
sob a forma de editorial em final de julho de 1902 na publicação Medical News. Desde
então, de tempos em tempos, surgem artigos na imprensa médica, ora justificando, ora
condenando o uso do caduceu como símbolo da medicina.
Fielding Garrison, notável historiador da medicina nos Estados Unidos e também
Tenente-Coronel do Corpo Médico no período de 1917 a 1935, procurou defender a
posteriori a adoção do caduceu pelo Departamento Médico a que servia. Inicialmente,
alegou que se tratava de um símbolo administrativo para caracterizar os militares não
combatentes, reconhecendo que o símbolo autêntico da medicina era o bastão de
Asclépio. Posteriormente, procurou justificar o uso do caduceu como símbolo médico
com base nos achados arqueológicos da civilização mesopotâmica.
Nas escavações realizadas em Lagash fora encontrado um vaso talhado em pedra
sabão, de cor verde, dedicado pelo governador Gudea ao deus Niginshzida, ligado à
medicina. Neste vaso há duas serpentes dispostas de maneira semelhante a do
caduceu de Hermes. Garrison refere-se à figura como caduceu babilônico, que teria
precedido o caduceu da civilização grega. [18]
A verdade é que toda a nossa cultura baseia-se na civilização grega. Todos os
aspectos conceituais, técnicos e éticos da profissão médica, tiveram seu berço na
Grécia com a escola hipocrática. Foi na Grécia que a medicina deixou de ser mágicosacerdotal para apoiar-se na observação clínica e no raciocínio lógico. O símbolo mítico
de Asclépio, o bastão com uma única serpente, representa a medicina grega em suas
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origens e nenhum outro símbolo, muito menos o caduceu de Hermes, deverá substituílo.
Em 1932, S. L.Tyson escreveu um artigo na revista Scientific Monthly, no qual dizia que
o errôneo símbolo era o emblema do deus dos ladrões e não do médico imortal.[7] Em
resposta, Garrison voltou a afirmar que o caduceu fora adotado no Departamento
Médico do exército como símbolo dos não combatentes e considerou a questão como
"uma fútil controvérsia".[12]
Em material informativo recente de divulgação pela Internet, do Army Medical
Department, encontra-se a seguinte explicação para a adoção do caduceu de Hermes
como símbolo da medicina: "Rooted in mythology, the caduceus has historically been
the emblem of physicians symbolizing knowledge, wisdom, promptness, and skill." [19]
Parece evidente a confusão entre Hermes da mitologia grega tradicional com Hermes
Trismegistos, o deus Thot da mitologia egípcia.
A Associação Médica Americana manteve o símbolo de Asclépio em seu emblema,
assim como a maioria das sociedades médicas regionais norte-americanas de caráter
científico ou profissional. De 25 associações médicas estaduais que utilizam a serpente
em seus respectivos emblemas, 23 usam o bastão de Asclépio. São elas as dos
Estados de Alabama, Califórnia, Flórida, Geórgia, Idaho, Illinois, Kansas, Kentucky,
Massachussets, Michigan, Mississipi, Missouri, Nebraska, New Hampshire, New
Mexico, New York, North Dakota, Oklahoma, Oregon, Pennsylvania, Utah, Wisconsin e
Wyoming. O caduceu é usado pelas associações dos Estados de Maine e West
Virginia. [19]
A Organização Mundial de Saúde, fundada em 1948, como não poderia deixar de ser,
adotou o símbolo de Asclépio. A Associação Médica Mundial, reunida em Havana em
1956, adotou um modelo padronizado do símbolo de Asclépio para uso dos médicos
civis (fig.3).
Fig. 3. Emblema adotado pela
Associação Médica Mundial
para uso dos médicos civis;
a serpente tem duas curvaturas
à esquerda e uma à direita
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As organizações médicas de caráter profissional e de âmbito nacional de vários países,
que possuem emblema com serpente, adotam, em sua grande maioria, o símbolo de
Asclépio, a começar pela Associação Médica Americana, já citada. Entre as
associações que assim procedem citaremos as do Brasil, Canadá, Costa Rica,
Inglaterra, França, Alemanha, Suécia, Dinamarca, Itália, Portugal, África do Sul,
Austrália, Nova Zelândia, países do sudeste asiático, China e Taiwan..[19]
Sociedades de história da medicina, sociedades científicas de especialidades médicas,
faculdades de medicina, revistas médicas e até empresas de seguro-saúde como a
aliança Blue Cross-Blue Shield utilizam o símbolo de Asclépio.
É óbvio que todo símbolo pode ser estilizado, porém não pode ser substituído por outro.
Como estilizações originais do símbolo de Asclépio, podemos citar os seguintes
exemplos:

Da Associação Paulista de Medicina e o da Academia Brasileira de Medicina Militar,
em que o bastão toma a configuração de uma espada;

Escola Paulista de Medicina, em que o bastão é o próprio tronco de uma árvore;

Sociedade Espanhola de Medicina do Trabalho, em que o bastão assume a forma
de uma chave inglesa como instrumento de trabalho.
Algumas poucas organizações médicas de âmbito nacional utilizam o caduceu de
Hermes em seus emblemas, ou em sua forma original, ou modificado, tais como as da
Korea, Hong Kong e Ilha de Malta.[19]
O caduceu de Hermes, estilizado, foi também adotado pelo Serviço Médico da Royal
Air Force, da Inglaterra, divergindo do Serviço Médico do Exército, que mantém seu
clássico emblema com o símbolo de Asclépio desde 1898, tendo comemorado o seu
centenário em 1998.[19]
Variantes do caduceu têm sido igualmente utilizados, resultantes de duas alterações
introduzidas no modelo original: a primeira delas consiste em eliminar uma das
serpentes, mantendo as asas, tal como nos emblemas da American Gastroenterological
Association e da Facoltà di Medicina e Chirurgia de Florença; a segunda, conservando
as duas serpentes e eliminando as asas, como nos emblemas da Società Italiana di
Medicina Interna e da empresa de seguro-saúde Golden Cross.
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Nos Estados Unidos, onde é mais difundido o caduceu de Hermes como pretenso
símbolo da medicina, o mesmo é usado em algumas poucas Universidades e
sociedades médicas, sendo mais comum o seu emprego em hospitais e instituições
públicas e privadas ligadas à saúde.
Segundo um levantamento realizado até 1980, o caduceu é usado principalmente pelas
empresas que vendem serviços médicos ou gerenciam planos de saúde naquele país,
chegando a 76% de quantas utilizam a serpente em seus emblemas.[12]
No dizer de Geelhoed, o caduceu tornou-se um símbolo condizente com a medicina
atual, se considerarmos que os aspectos econômicos da saúde tornaram-se mais
importantes que os seus aspectos humanos.[10] Com a intermediação dos serviços
médicos por empresas de fins lucrativos, a medicina tornou-se objeto de comércio por
parte de terceiros. O médico passou a ser apenas um prestador de serviços e o
paciente um consumidor, sujeitos ambos a normas contratuais previamente
estabelecidas. Neste sentido, estaria justificado o uso, por essas empresas, do caduceu
de Hermes, símbolo do comércio.
Para os que desejarem preservar os ideais da tradição médica, no entanto, só há um
símbolo aceitável, que é o de Asclépio.
Como sugeriu Tyson, o símbolo de Hermes poderia ser usado, no máximo, em carros
funerários, já que uma das atribuições de Hermes era a de conduzir os mortos à sua
morada subterrânea.[7] Fora disso, o caduceu de Hermes, como símbolo médico, é
uma heresia.
No Brasil, prevalece no meio médico o símbolo de Asclépio. A Associação Médica
Brasileira, assim como as sociedades estaduais a ela filiadas que possuem emblema
com a serpente, utilizam o símbolo correto do deus da medicina.
Assistimos, porém, a disseminação do caduceu de Hermes entre nós, através dos
meios de comunicação: televisão, jornais, impressos, anúncios, adesivos, desenhos em
objetos e utensílios destinados a médicos e estudantes de medicina. Conforme
ressaltou o Prof. Alcino Lázaro da Silva, "a mídia brasileira, por engano, por falácia, por
má-interpretação, por má-informação ou por má-fé passou a usar o símbolo do
comércio como ilustração quando se refere a notícias médicas".[20]
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Também os softwares destinados a hospitais e consultórios médicos, importados dos
Estados Unidos, ou neles inspirados, muito têm contribuído para a propagação do
caduceu, ao utilizá-lo como identificador de sua destinação.
Lamentavelmente, o caduceu como símbolo da medicina já pode ser encontrado em
nosso País em revistas e sociedades médicas de fundação mais recente, e até mesmo
em impressos de algumas universidades.
Cremos ser necessária uma campanha de esclarecimento, sobretudo nas Faculdades
de Medicina, junto aos estudantes do curso de graduação, no sentido alertá-los sobre o
único e verdadeiro símbolo da medicina: o bastão de Asclépio com uma só serpente. O
caduceu de Hermes, símbolo do comércio, deve ser visto como um símbolo degradante
dos nobres ideais da medicina.
Saber erudito e saber popular na Medicina do Brasil Colônia
Durante os três primeiros séculos da colonização brasileira, a sociedade branca
recorreu indiferentemente às formas de cura trazidas da Europa ou àquelas a que
diversas etnias, com as quais se manteve em constante contato, utilizavam para lutar
contra os males que as acometiam. Mesmo os portugueses, muito embora se
tratassem com seus médicos, cirurgiões e barbeiros vindos de Portugal, não hesitavam,
quando precisavam curar suas feridas, em se servir do azeite de copaíba utilizado
pelos indígenas para esse fim, depois, com a vinda dos escravos africanos, aderiram
igualmente a certas curas relacionadas com a magia, como podemos ver pelas visitas
inquisitoriais.
Nas correspondências avulsas encetadas entre metrópole e colônia enfatizava-se com
freqüência a falta de médicos, remédios e hospitais. Mas, ao contrário da avaliação
apressada realizada por alguns historiadores que afirmavam ser a falta de médicos o
fator responsável pelo grande número de curandeiros e charlatães, é preciso que se
pergunte: quais os setores da população que se ressentiam da escassez desses
profissionais? Ora, o florescimento das demais artes de cura esteve intrinsecamente
ligado às diferentes raízes culturais das populações aqui residentes. Além disso, os
missionários jesuítas — principais suportes da educação colonial — que tomaram para
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si o papel de curadores aproveitaram muito da medicina indígena, tornando as plantas
medicinais brasileiras famosas em todo o mundo. Pelas mãos dos jesuítas, a Triaga
Brasílica, uma panacéia composta de elementos da flora nativa, que chegou a ser a
segunda fonte de renda da ordem jesuíta na Bahia, ganhou fama internacional. Aos
jesuítas deve-se imputar a iniciativa de intercâmbio entre esses universos da medicina,
já que eles também absorviam o saber dos físicos, cirurgiões e boticários, aplicando-os
nos precários hospitais da Santa-Casa da Misericórdia.
Mas que relações mantinham os físicos, cirurgiões e boticários portugueses com os
demais agentes de cura? Embora geralmente preconceituosos em relação a outros
elementos pagãos e "selvagens" da cultura indígena, os colonizadores se interessaram
em recolher informações sobre como os indígenas e seus pajés faziam para combater
as doenças que grassavam no lugar. Observavam, imitavam, experimentavam e
descreviam as propriedades terapêuticas das novas espécies e seus usos, e
divulgavam-nas nas metrópoles, ampliando os saberes sobre a Matéria Médica. Mais
tarde, tal saber retornava à colônia em compêndio de farmacopéia, informando a
atividade de boticários profissionais, religiosos ou leigos. Tal roteiro não foi tão linear,
entretanto como possa parecer. Bernardino Antônio Gomes, médico português que veio
para a colônia em fins do século XVIII, observou em certa ocasião, o pouco uso feito
pelos médicos portugueses das plantas medicinais do país, entendendo que isso
ocorria porque tendo aprendido medicina das universidades européias, eles curavam
tudo "à européia, bem ao contrário do que fez [Wilhelm] Piso — o famoso médico e
naturalista trazido por Nassau, no século XVII —, desprezam miudamente a medicina
indígena".
De todas as práticas terapêuticas, o uso das ervas medicinais era a que maior
legitimidade popular possuía como atesta o famoso comentário do naturalista Von
Martius — "a mata é a farmácia deste povo". Mezinheiros, curandeiros africanos e
pajés utilizavam folhas, frutos, sementes, raízes, essências, bálsamos e resinas, partes
lenhosas e brancas que esmagavam entre as pedras, pulverizavam, carbonizavam,
dissolviam, maceravam. Coziam, para ingerir, aspirar, friccionar ou aplicar em
cataplasma numa extensa série de doenças. Não se pode esquecer que o emprego
dessas plantas tinha um sentido mágico ou místico. Determinados minerais, bem como
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partes do corpo de animais, eram usados como medicamentos ou amuletos. Se a
antropofagia ritual era encarada com horror pelos europeus, a utilização da saliva, da
urina e das fezes humana ou animal era compartilhado como recurso terapêutico,
embora possuindo um significado distinto para ambas as culturas. Enquanto a sucção
ou sopro dos espíritos malignos, a fumigação pelo tabaco, os banhos, fricções com
cinzas e ervas aromático, o jejum ritualístico, era desprezada como elementos
bárbaros, a teoria das assinaturas, que supunha existir, radicado em cada região, o
antídoto das doenças do lugar, autorizava a assimilação da farmacopéia empírica
popular.
Se em ampla variedade de aspecto o saber erudito e o popular eram indissociáveis na
experiência dos distintos extratos sociais, os representantes da arte oficial lutavam
ferrenhamente contra os que praticavam as curas na informalidade. Reivindicando para
si o controle do corpo, a medicina oficial esvaziava o sentido dos conhecimentos
terapêuticos populares e reinterpretava-os à luz do saber erudito. A fluidez entre o
domínio da medicina e aquele da feitiçaria, com o emprego de cadáveres humanos e
de animais associados ao universo demoníaco, como o sapo, o cão negro, o morcego e
o bode na produção de remédios, impunha aos portadores de diploma a tarefa de
distinguir o procedimento "científico", das crenças populares "supersticiosas". Nesta
tarefa encontravam o apoio da Igreja e das ordenações do Reino. No imaginário
popular, os santos, vistos mais como especialistas do que como clínicos gerais, seriam
responsáveis por um grande número de curas. Fazendo restrições no que respeitava à
intervenção dos santos e das palavras sagradas, a não ser quando praticados ou
recomendados pelo clero, a Igreja e os médicos reforçavam a idéia de que Deus
distribuíra com parcimônia o acesso ao domínio do
sagrado, vetando-o aos indivíduos rústicos. Tal
como as confrarias iriam amolecer a rigidez da fé
oficial da Igreja, quebrando a unidade da religião
luso-brasileira e tornando-a mais humana e
consoladora para os distintos grupos sociais, os
curandeiros leigos seriam até certo ponto bem
tolerados.
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