João Calvino SUA VIDA
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João Calvino SUA VIDA
João Calvino SUA VIDA E SUA OBRA (1509-1564) V icente Themudo Lessa João Calvino SUA VIDA E SUA OBRA (1509-1564) EDITORA MONERGISMO BRASÍLIA, DF Todos os direitos em língua portuguesa reservados por E M Caixa Postal 2416 Brasília, DF, Brasil - CEP 70.842-970 Telefone: (61) 8116-7481 - Sítio: www.editoramonergismo.com.br 1ª edição, 2010 1000 exemplares Revisão: Túlio Costa Leite Capa: Raniere Maciel Menezes Projeto gráfico: Marcos R. N. Jundurian P , , . Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lessa, Vicente Themudo Calvino (1509-1564): Sua Vida e sua Obra / Vicente Themudo Lessa - Brasília, DF: Editora Monergismo, 2010. 358 p.; 21cm. ISBN 978-85-62478-45-1 1. Calvino, João, 1509-1564 2. Reforma 3. História CDD 230 À memória imperecível de seus estimados professores Dr. John Rockwell Smith Eduardo Carlos Pereira e Remigio de Cerqueira Leite Homenagem do AUTOR SUMÁRIO Prefácio à Edição de 2010 ............................................ 9 Ao Leitor ...................................................................... 13 Síntese Introdutória ...................................................... 17 Mocidade de Calvino ................................................... 33 Em Paris ....................................................................... 39 No Seminário ............................................................... 51 Novo Rumo ................................................................. 61 De Novo em Paris ........................................................ 71 Calvino Fugitivo........................................................... 77 O Ano dos Cartazes...................................................... 85 As Institutas ................................................................. 95 Peregrinação pela Itália ................................................. 109 A Conquista de Genebra .............................................. 117 Primeira Residência em Genebra .................................. 127 Banimento ................................................................... 137 Em Estrasburgo ............................................................ 145 Um Triênio Fecundo .................................................... 153 Genebra na Ausência de Calvino .................................. 163 Regresso de Calvino ..................................................... 173 Trabalhos Literários de Calvino .................................... 185 Experiências de Calvino................................................ 197 Conflitos e Amarguras .................................................. 205 Lutas de Calvino e de Genebra ..................................... 215 O Caso Serveto – Primeira Fase .................................... 225 Ainda o Caso Serveto – Segunda Fase ........................... 247 O Espírito de Intolerância ............................................ 269 Na França e na Inglaterra ............................................. 279 Influência de Calvino ................................................... 289 Na França e em Genebra .............................................. 297 O Doutrinador ............................................................. 307 Caráter e Hábitos de Calvino ....................................... 317 Últimos Dias de Calvino .............................................. 327 Calúnias a Propósito da Morte do Reformador ............. 337 Considerações Finais .................................................... 349 Bibliografia ................................................................... 353 Sobre o Autor ............................................................... 357 PREFÁCIO À EDIÇÃO DE 2010 “… deixemos desfilar o varão que tornou insigne o nome de Genebra”.1 Quando eu era estudante do curso secundário (curso “Clássico”, do colegial) em Rio Claro, SP), fui incumbido de apresentar aos jovens da União da Mocidade Presbiteriana um trabalho sobre João Calvino. Fiz pesquisa, escrevi um artigo e o apresentei numa reunião da UMP. Assim que terminou a reunião, um aluno ultimanista do Seminário de Campinas, criado como eu na I. P. de Rio Claro, procurou-me com ar interrogativo, e me perguntou: “Onde você encontrou tantos dados sobre a Reforma, principalmente sobre os precursores da Reforma?” Eu lhe respondi: “Ali na biblioteca da UMP, no livro de Vicente Themudo2 Lessa”. Realmente é de admirar quanta informação contém o livro que na edição que ora tenho em mãos (da Casa Editora Presbiteriana, sem data), traz o título: Calvino, 1509-1564, Sua Vida e Sua Obra. O livro não é produto de novato, nem de livre-atirador, nem de alguém amarrado por ideias fixas. É obra de um homem sério, honesto, equilibrado, criterioso e competente. Ministro presbi- 1 2 Palavras finais da palavra “Ao Leitor” na obra em apreço. Na referida edição é indevidamente eliminada a letra “h” de Themudo. 9 20 10 teriano, aderiu ao movimento separatista de 1903, vindo a ser ministro da Igreja Presbiteriana Independente. Sempre mostrou em seus escritos, muito citados, postura nobre e pronunciamentos judiciosos. Na breve apresentação do autor feita na edição acima referida, consta que Vicente Themudo Lessa foi “Sócio efetivo do Instituto Histórico de São Paulo e correspondente dos Institutos Históricos de Pernambuco, Paraíba, Espírito Santo e Santa Catarina”. Em sua palavra “Ao Leitor”, Lessa declara que traçou outros “perfis” e produziu outros “estudos… sobre vultos e eventos da Reforma”. Recorreu a fontes insuspeitas. Faz ele referência a numerosos personagens livre-pensadores e católicos romanos que deixaram testemunhos positivos, elogiosos, sobre a pessoa e a obra de João Calvino. A “Palavra ao Leitor” e a “Bibliografia” dão indícios claros desse fato. Vicente Themudo Lessa fez grande contribuição à história do protestantismo em geral e do presbiterianismo brasileiro. Haja vista sua monumental obra intitulada “Annaes da 1ª. Egreja Presbyteriana de São Paulo (1863-1903), edição da 1ª. Egreja Presbyteriana Independente de São Paulo, São Paulo, 1934”. A obra de Lessa sobre João Calvino é abrangente: dá informações sobre os antecedentes da Reforma (sobre o ambiente geral sócio-político-religioso, e sobre pré-reformadores ou precursores da Reforma); não poupa informações sobre as várias fases da preparação de Calvino, da infância em diante; registra uma relação das numerosas e variadas obras escritas pelo Reformador, fazendo uso de uma classificação feita pelo importante historiador Phillip Schaff; trata com proficiência do problema relacionado com Serveto; dá o devido tratamento a calúnias sofridas pelo Reformador, reduzindo as críticas à proporção correta; narra inspiradores e desafiadores fatos, dados, atos e atitudes de Calvino nos dias que antecederam sua morte; e registra edificantes testemunhos de Calvino e de outros que deixam para os pósteros um rastro de luz digno de ser seguido e um estimulante exemplo para os cristãos em geral e para os pastores em particular. 10 ( 1 509- 1 56 4) Quem ainda não leu, leia a preciosa obra de Vicente Themudo Lessa, que a Editora Monergismo em boa hora reedita. Não é a obra sobre um Reformador, ponto. É o relato fidedigno de um fiel ministro do Evangelho do Senhor Jesus Cristo, apreciado pelos que o conhecem, não só como importante teólogo, latinista, pai do francês moderno, prolífico escritor, primoroso exegeta, mas também um fiel, visitador e amoroso pastor. Rev. Odayr Olivetti 11 AO LEITOR A Reforma do século XVI, foi, antes de tudo, um verdadeiro despertamento religioso, que repercutiu até no seio da Igreja Romana promovendo a Contra-Reforma e melhorando a condição moral do Papado, fato este por todos reconhecido. Lutero e Melanchton na Alemanha, Zuínglio e Calvino na Suíça e John Knox na Escócia são tidos como os principais reformadores. Eram vultos de cultura, humanistas e teólogos, homens de coragem, de ação e de fé, que arriscaram suas vidas pelo ideal de uma Igreja firmada nos sãos princípios do Cristianismo; homens piedosos e de moral austera, a despeito do zelo de adversários, que tentam atrair sobre eles o ódio universal. Um deles, João Calvino, é o objeto de nosso estudo neste ensaio, trabalho que nos tomou mais de dois anos, devido a interrupções continuadas. É um dos personagens mais notáveis do movimento religioso do século XVI. Frases de admiração por ele tem sido colhidas não só no grêmio do protestantismo como de livres pensadores e até mesmo de católicos romanos – de pensadores, historiadores e críticos de vários países como Scaligero, De Thou, Amyraut, Bossuet, Richard Simon, Pierre Bayle, Montesquieu, Voltaire, Rousseau, D’Alembert, Guizot, Mignet, Michelet, Martin, Renan, Dorner, Baxter, Farrar, etc. Muito tem sido escrito sobre o chamado “Papa de Genebra”, sendo não pequeno o número de biógrafos de feição benigna ou adversa. Em nossa língua, porém, nenhuma obra foi publicada a seu respeito. 13 Forte entre nós é o prejuízo contra o teólogo francês. Para isso tem concorrido em boa parte vários de nossos compêndios didáticos, que se expendem em conceitos tendenciosos e pessimistas, não o poupando a crítica parcial e impiedosa. Como todos os mortais, teve Calvino os seus defeitos. Sua personalidade, contudo, destaca-se de maneira relevante. Intelecto vigoroso, escritor correto, teólogo emérito, filósofo austero, mestre esclarecido, exegeta notável, seu caráter adquire aspecto empolgante em muitos respeitos. Muitos o caluniaram, mas a crítica judiciosa tem reduzido a justas proporções os argumentos produzidos. Isso tentaremos demonstrar no decurso destas páginas. Outros perfis temos traçado e estudos temos feito sobre vultos e eventos da Reforma, que surgirão a seu tempo se a oportunidade o permitir. Por enquanto deixemos desfilar o varão que tornou insigne o nome de Genebra. 14 Capítulo I O mundo no tempo de Calvino. Transformações efetuadas. Na segunda metade do século XV. A Renascença. A imprensa. A Reforma, sua significação e seus precursores. Na Inglaterra – Occam e Wycliffe. Na Boêmia – Huss, Jerônimo e os hussitas. Na Itália – Arnaldo de Bréscia e Savonarola. Necessidade reconhecida de uma reforma na Igreja. A crise do Papado e os concílios reformadores. Julio II e Leão X. Lutero e a Reforma. A Contra-Reforma. SÍNTESE INTRODUTÓRIA Quando Calvino apareceu não havia muito que o mundo despertara do longo torpor da Idade Média. Durante séculos pagara a humanidade oneroso tributo de lágrimas e dores. Foram de opressão e tirania aqueles dias. Como escravo gemia o povo, movido à voz do exator. A invasão dos bárbaros semeara a crueldade e inundara de sangue a terra espezinhada. Novos poderes se iam constituindo sobre as ruínas de passadas glórias para logo se fragmentarem. Eram sonhos de ambição e guerras de conquista em sucessão ininterrupta. Em plena Idade Média surgiu o teuto Carlos Magno, a figura culminante de todo aquele período, a cujo aceno o mundo pareceu acordar por um momento. Guerreiro, legislador, administrador, deu braço forte à Igreja e protegeu as letras. Seus sucessores porém não lhe herdaram as qualidades varonis; o império se abismou em franca decadência. Adveio então o feudalismo, que se tornou na Europa o regime social. Conservavam os reis a dignidade apenas. O poder estava nas mãos dos bispos e barões como senhores feudatários e, ao império político, sucedia o império eclesiástico. Reis e príncipes curvavam-se ante o pontífice romano, que organizava as cruzadas do Oriente e mantinha o prestígio mediante as indulgências e as bulas de excomunhão. A ignorância dominava. As ciências e as letras refugiavam-se nos claustros e nos gabinetes dos raros estudiosos. Mesmo entre o clero, a classe privilegiada, era a instrução assaz restrita. 17 A Idade Média veio a ser igualmente uma época de fermentação. Na onda opressora formou-se a resistência que ia elaborar a nova sociedade. O fator germânico com suas fortes qualidades étnicas unia-se ao elemento latino para gerar nos povos o sentimento de liberdade e de independência, apanágios gloriosos do gênero humano. A segunda metade do século que precedeu o nascimento de Calvino foi o momento providencialmente determinado para o despertar das nações. Era o arrebol de uma nova civilização. As hordas do Crescente, em avanço decisivo, após décadas de ameaças e sobressaltos constantes, vingaram as fronteiras bizantinas e Maomé II assentou-se, em 1453, no trono de Constantino, o feliz propugnador da religião cristã. Largas consequências sobrevieram daí. As grandes repúblicas comerciais da Itália, como Florença, Gênova e Veneza, com os seus doges e gonfaloneiros, perderam o esplendor com a supressão das escalas do Levante em poder dos otomanos. A preponderância marítima e comercial passou então às nações ocidentais, que desferiram largo surto. Era a época das grandes descobertas marítimas, iniciadas aliás pela escola de Sagres. Vasco da Gama descobria o caminho das Índias. Colombo oferecia às Espanhas o Novo Mundo. Cabral doava aos portugueses o Brasil e os ingleses entravam na posse das terras árticas. Fernão de Magalhães, pouco depois, efetuava a circunavegação do globo. O comércio e a navegação tomavam grande impulso ante as novas conquistas, sem embargo da opressão a que se iam submeter os povos subjugados. Invenções como a da bússola e a da pólvora emprestavam valioso concurso a nova situação que se esboçava. Mas a invasão muçulmana não estimulou somente o comércio das nações ocidentais. Elemento de maior valia na transformação da sociedade foi a emigração dos sábios gregos, que trouxeram consigo preciosos tesouros literários, nos velhos manuscritos gregos e latinos. Primeiramente buscavam a Itália, de onde não havia desaparecido o pendor pelos estudos e pelas artes clássicas. Busca18 ( 1 509- 1 56 4) vam as universidades, davam preleções e difundiam o amor pelos antigos estudos. A corrente penetrou na França e na Alemanha, na península hispânica e na Inglaterra, na Suíça e na Holanda. Era a renascença das letras e das artes adormecidas nas longas trevas da idade medieval. E não faltaram espíritos brilhantes na cultura do humanismo como Ariosto e Machiavel, na Itália; Rabelais e Montaigne, na França; Reuchlin e Melanchton, na Alemanha; Thomas More e Colet, na Inglaterra; Erasmo e Zuínglio, na Suíça – para citar somente alguns. Entre os papas que fizeram o papel de Mecenas, com o seu apoio ao movimento das letras, citam-se Nicolau V, contemporâneo da revolução bizantina, que estipendiava copistas, tradutores e colecionadores e acolhia em Roma os sábios exilados; Júlio II, o papa belicoso; e Leão X, o brilhante pontífice dos primeiros dias do século XVI, século ao qual foi legado o seu nome. Em Florença, Cosme de Médicis e Lourenço, o Magnífico, fulguravam também como patronos das artes; na Inglaterra, Henrique VIII e, na França, Francisco I, eram outros tantos incentivadores do movimento clássico. Rafael e Miguel Ângelo, Celini e Leonardo, Donatello, Bramante e Ticiano, Ribera e Murilo, Rubens e Rembrandt, Holbein e Alberto Dürer, na pintura, na escultura e na arquitetura elevaram os países em que nasceram, naqueles dias de despertamento artístico e literário. A Renascença vinha dar expansão à sede do saber na transmissão do conhecimento dos antigos e no anseio de descobertas em outras direções. Por um lado tendia a exaltar o cristianismo. O gosto pelos clássicos levava ao estudo das sagradas letras nas línguas originais e na pesquisa dos ensinos dos Santos Padres. Humanistas, como Reuchlin, implantavam o gosto pelo hebraico, a língua do Antigo Testamento; Erasmo de Roterdã e Melanchton conseguiam o mesmo em relação ao grego e ao Novo Testamento. Não foram poucos os que, atraídos às fontes originais, tiveram uma melhor concepção do valor da religião cristã em sua elevada espiritualidade, determinando isso verdadeiras conversões. 19 Por outro lado, a tendência conduzia ao antigo pensamento grego e, na Itália, a Renascença ostentou fortes laivos de paganismo, que se refletiram até na brilhante sociedade de Júlio II e Leão X. Outro fator, na transformação da sociedade contemporânea, viu-se na descoberta da imprensa, pelo alemão Gutenberg, justamente na época em que eram restaurados os estudos clássicos. Em 1455, segundo alguns, dois anos depois da ascensão de Maomé II, era impresso o primeiro livro – a Bíblia – digno realmente de figurar na primeira plana, como o Livro dos Livros que é. O precioso invento divulgou-se em breve por toda a Europa civilizada. Só em Veneza se abriram duzentos estabelecimentos tipográficos, entre os quais a afamada tipografia Aldina.1 Intensificava-se a sede por tantos anos sopitada. Até então os manuscritos, nas mãos dos copistas e encerrados nos mosteiros e nas universidades, eram patrimônio dos raros privilegiados. A imprensa, vulgarizando o saber, expunha as valiosas coleções ao alcance popular. Com a Renascença, surgiu um movimento de mais alcance na evolução social que se elaborava. Foi a Reforma religiosa que explodiu no primeiro quartel do século XVI e da qual veio a ser Calvino figura preeminente. Mas a Reforma teve os seus precursores como os tivera igualmente a Renascença na Itália, na França, na Alemanha e em outros países, sendo Petrarca e Bocácio do número destes pioneiros das letras. Não foi o renascimento operado num momento como alguns o poderão supor. O contato com os mestres bizantinos e a proteção dada às letras constituíram a causa ocasional ou, melhor, a fase ascensional da Renascença. Assim com a Reforma religiosa. 1 20 Oliveira Lima, História da Civilização, p. 319.