Memórias da beatificação de Antônio Frederico Ozanam. [páginas

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Memórias da beatificação de Antônio Frederico Ozanam. [páginas
Vol. I N. 1 Jul – Dez / 2005 pp. 45-50
ISSN 1809-3604
MEMÓRIAS DA BEATIFICAÇÃO DE ANTÔNIO FREDERICO
OZANAM
Simone Pettersen Nunes*
RESUMO: No presente artigo propomos uma reflexão voltada para analisar a beatificação de
Antônio Frederico Ozanam, a memória coletiva e individual dos vicentinos presentes em Paris
no ano de 1997. Num segundo momento refletimos sobre a importância da História Oral e do
Resgate da Memória.
PALAVRAS-CHAVE: Igreja – beatificação – santidade – memória individual –
memória coletiva.
ABSTRACT: The present article we intend to carry out a reflection about the analysis of Antonio
Frederico Ozanam’s beatification, the collective and individual memory of Vicentines who were in
Paris in 1997. In the second part of the discussion we think about the importance of oral history and
memory regain.
KEY-WORDS: Church – beatification – holiness – individual memory – collective
memory.
Introdução:
No ano de 1997 o fundador da Sociedade de São Vicente de Paulo, Antônio
Frederico Ozanam foi beatificado pelo papa João Paulo II na catedral de Notre Dame
em Paris. Passados alguns anos começamos a nos questionar o que significou essa
beatificação para os vicentinos e qual seria a importância desse fato para a SSVP1.
Nesta oportunidade estivemos em Paris coletando dados para a pesquisa de mestrado e
depoimentos dos vicentinos da delegação brasileira. Nos deparamos com muitas histórias de
vida, culturas e memórias que estiveram presentes não apenas na França, mas no mundo todo.
Analisando o Pontificado de João Paulo II, notamos que ocorreu um
empreendimento e um aumento no número de santificações e beatificações, sendo
considerado o pontífice que mais canonizou e beatificou, nesse século. João Paulo II
já realizou cerca de 200 beatificações e mais de 50 canonizações e santificou mais
personagens do que todos os seus antecessores juntos.
*
1
Mestre em História na FHDSS/UNESP/Campus de Franca.
Sigla da Sociedade de São Vicente de Paulo.
Trajetórias de uma memória individual e coletiva:
E por que estudar memória? Estudar as memórias coletivas fortemente
constituídas, como a memória nacional, implica preliminarmente, a análise de sua
função.(POLLAK. 1989, p. 9). Outro autor que retrata a memória é Maurice
Halbwachs (HALBWACHS. 1990, p. 60) que retrata a história mencionando que esta
não é a história aprendida, é na história vivida que se apóia nossa memória.
A beatificação representou não apenas um desejo de milhares de pessoas
espalhadas pelos 135 países onde a SSVP atua, mas a concretização de uma
história, a história de Frederico Ozanam, um jovem que aos 18 anos contestou o seu
tempo, questionou os cristãos e reescreveu a história da caridade no século XIX.
Num de seus vários escritos, Ozanam deixa transparecer sua preocupação com a
Universidade Católica, suas propostas de trabalho, sobretudo aqueles que diziam
respeitar a liberdade de credo e de culto. Nota-se essa postura quando diz:
“Protestamos ainda, em nome daqueles que não comungam com nossas crenças
mas que desejam o livre desenvolvimento de todas grandes aspirações, de todas
intenções generosas e de todas as obras úteis” (Conselho Geral da S.S.V.P. 1953,
p.77).
Nesse protesto acima elucidado nota-se a postura de Ozanam na defesa da
Igreja e da Universidade Católica.
Ozanam foi, primeiramente, o apóstolo, apóstolo da caridade e da justiça
social. Por outro lado, se a caridade não foi para Ozanam restrita à esmola material
nem ao socorro à vida corporal, seu ideal atender os que sofrem da miséria com o
auxílio que ele podia.
Segundo informações do Conselho Nacional do Brasil da Sociedade de São
Vicente de Paulo “A presença de Ozanam junto às classes desprotegidas nele
desenvolvia elevado senso social. E do apostolado da Caridade ao apostolado social
não houve quase intervalo. Como Professor de Direito Comercial penetrou fundo no
problema da vida operária, apontando soluções depois aproveitadas na encíclica
RERUM NOVARUM, de Leão XIII. Foi ele que esclareceu o "justo salário", afirmando
haver exploração quando a retribuição real do assalariado é inferior às suas
necessidades normais” (IDEM. Ibidem).
Portanto, seu ideal não ficou restrito apenas a servir camadas excluídas da
sociedade minimizando os sofrimentos materiais, mas lutou para que todos
sentissem a necessidade da justiça social.
Segundo Jacques Le Goff: “a memória é a propriedade de conservar certas
informações, propriedade que se refere ao indivíduo atualizar
impressões ou
informações passadas, ou reinterpretadas como passadas” (LE GOFF. 1994).
A memória nos remete a refletir fatos que marcaram nosso cotidiano, nossas
histórias, nossas lembranças. Faz parte dos alicerces da história a memória visto
que no final do século XX ela tornou-se reflexão da historiografia com o surgimento
de trabalhos com Nova História.
Lembrar é muito mais uma atividade do presente do que deslocar para os
presente fatos já vividos. Rememorar não é o mesmo que viver novamente o
passado,mas sim a releitura do sujeito
que produz, numa sociedade que se
diferencia daquela à qual se refere a lembrança. A memória reescreve a realidade
vivida pelo grupo, e as lembranças são imagens construídas, produzindo o conjunto
das representações dos entrevistados (BOSI. 1987, p. 17) e que adquirem caráter
coletivo.
Num outro trecho Jacques Le Goff enfatiza que é preciso diferenciar as
sociedades de memória oral e as de memória escrita. A cerimônia de beatificação de
Antônio Frederico Ozanam foi marcada pela espiritualidade, ritual, missa e
comunhão. Nesta oportunidade bispos e padres do mundo inteiro participaram
ativamente da celebração.
Na Regra da Sociedade de São Vicente de Paulo encontra-se a Homilia de
Beatificação de Antônio Frederico Ozanam que relata: “ «O amor vem de Deus» (I Jo
4, 7). O Evangelho deste dia apresenta-nos a figura do bom Samaritano. Mediante
esta parábola, Cristo quer mostrar aos Seus ouvintes quem é o próximo citado no
maior mandamento da Lei divina: «Amarás ao Senhor teu Deus, com todo o teu
coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu
entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo» (Lc 10, 27). Um doutor da Lei
perguntava o que devia fazer para ter parte na vida eterna; encontrara nestas
palavras a resposta decisiva. Sabia que o amor de Deus e do próximo é o primeiro e
o maior dos mandamentos. Apesar disso, pergunta: «Quem é o meu próximo?» (Lc
10, 29). O fato de Jesus propor um samaritano, como exemplo para responder a
esta pergunta, é significativo. Com efeito, os samaritanos não eram particularmente
estimados pelos hebreus. Além disso, Cristo compara a conduta deste homem
àquela de um sacerdote e de um levita, que viram o homem ferido pelos salteadores
e deixado meio morto na estrada, e continuaram a sua caminhada sem lhe prestar
socorro. Ao contrário o samaritano, que ao ver o homem sofredor, «encheu-se de
piedade» (Lc 10, 33); a sua compaixão levou-o a uma série de ações. Em primeiro
lugar ligou-lhe as feridas, depois levou-o para uma estalagem a fim de que
cuidassem dele; e, antes de partir, deu ao estalajadeiro o dinheiro necessário para
se ocupar do ferido (cf. Lc 10, 34-35). O exemplo é eloqüente. O doutor da Lei
recebe uma resposta clara à sua pergunta: quem é o meu próximo? O próximo é
todo o ser humano, sem exceção. É inútil perguntar sobre a sua nacionalidade, a
sua pertença social ou religiosa. Se está em necessidade, é preciso ir ajudá- lo. É
isto que pede a primeira e a maior Lei divina, a lei do amor de Deus e do próximo.
Fiel a este mandamento do Senhor, Frederico Ozanam acreditou no amor, no amor
que Deus tem por todos os homens. Ele mesmo se sentiu chamado a amar, dando o
exemplo de um grande amor de Deus e dos outros. Ia ao encontro de todos os que
tinham mais necessidade de ser amados, daqueles a quem Deus-Amor não podia
ser efetivamente revelado senão pelo amor duma outra pessoa. Ozanam descobriu
nisto a sua vocação, viu o caminho para o qual Cristo o chamava. Encontrou nisto o
seu caminho rumo à santidade. E percorreu- o com determinação.
Num outro trecho da Homilia de Beatificação o Papa João Paulo II menciona
que:
“Frederico Ozanam amava todos os necessitados. Desde a sua juventude,
tomou consciência de que não bastava falar da caridade e da missão da Igreja no
mundo: isto devia traduzir-se num empenho efetivo dos cristãos no serviço dos
pobres. Estava assim em sintonia com a intuição de São Vicente: «Amemos a Deus,
meus irmãos, amemos a Deus, mas que isto aconteça com os nossos braços e com
o suor do nosso rosto» (São Vicente de Paulo, XI, 40). Para o manifestar de maneira
concreta, com a idade de vinte e cinco anos, com um grupo de amigos, criou as
Conferências de São Vicente de Paulo, cuja finalidade era a ajuda aos mais pobres,
num espírito de serviço e de partilha. Bem depressa, estas Conferências difundiramse fora de França, em todos os países da Europa e do mundo. Eu mesmo, como
estudante, antes da segunda guerra mundial, fiz parte de uma delas” (IDEM.
Ibidem).
Quando perguntamos a alguns vicentinos o que marcou você na homilia de
beatificação? A maioria respondeu que foi a frase do Papa João Paulo II dizendo
que ele fez parte de uma conferência vicentina. Muitos de nós da delegação do
Brasil ficamos felizes em saber que o Papa era vicentino. Outro fato que recordaram
foi que Ozanam serviu de modelo para a juventude durante a XII Jornada Mundial da
Juventude em Paris.
Dentre os entrevistados podemos resgatar essa história de beatificação e os
fatos mais significativos da lembrança.
O que me marcou nesta viagem à Paris para participar da beatificação de
Antônio Frederico Ozanam foi o encontro de várias culturas em torno de um ritual. Lá
haviam diferentes delegações da Europa, América do Norte, América Latina,
Oceania, Ásia e África que se reuniram não apenas para assistir a beatificação, mas
que foram testemunhar a concretização de um sonho que estava em análise no
Vaticano desde 1926. Dentre os vicentinos brasileiros era comum ouvir o hino em
louvor a Ozanam. Os vicentinos da África faziam danças típicas em agradecimento,
os da Guatemala e da República Dominicana se integraram aos vicentinos
brasileiros.
E pensar que todos estávamos reunidos e que este sonho só pode ser
concretizado após constatarem um milagre de Antônio Frederico Ozanam que
ocorreu no Brasil. No ano de 1926, Ozanam, invocado durante uma reunião de
Conferência Vicentina, teria feito o milagre de salvar o engenheiro Fernando Ottoni,
73 anos, quando este era bebê. Quando questionamos alguns vicentinos sobre o
miraculado muitos não tinham referências de seus dados, mas sabiam que era um
bebê e que morava no Rio de Janeiro. Esse fato pode ser explicado porque nesta
época a grande maioria não havia nascido, no entanto estavam comemorando a
beatificação.
Sobre essas lembranças Maurice Halbwachs menciona em sua obra que:
“nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros,
mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e
com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós”
(HALBWACHS. 1990, p. 26).
A memória tem toda uma trama, existem múltiplas interpretações da memória
visto que ela seleciona o que é relevante, portanto ela é subjetiva e parte de coisas
que experimentamos. Cada um tem sua memória de acordo com suas crenças e
valores. A memória é a vida e esta está em constante evolução.
Algumas pessoas quando foram questionadas sobre quais foram os textos
utilizados durante a Homilia de Beatificação não se recordaram, no entanto tinham
guardado documentos que continham esses dados.
A respeito da história o autor Maurice Halbwachs explica que:
A história não é todo o passado, mas também não é tudo aquilo que
resta do passado. Ou, se o quisemos, ao lado de uma história escrita, há uma
história viva que se perpetua ou se renova através do tempo e onde é
possível encontrar um grande número dessas correntes antigas que haviam
desaparecido somente na aparência (IDEM. 1990, p. 67).
E complementa num outro trecho de sua obra: “O mundo histórico é como um
oceano onde afluem todas as histórias parciais” (IDEM. 1990, p. 85).
O autor acima mencionado retrata o mundo histórico como amplo entrelaçado
com as histórias individuais. Num segundo momento retrata a memória coletiva
enfocando que esta é marcada pelos sujeitos envolvidos no processo. Esse sujeito é
um ser social, político e tem um discurso.
Considerações finais:
Nossa memória se apóia nas nossas vivências, portanto é uma história vivida.
Estudar sobre a memória individual e coletiva nos remete a um universo amplo de
interpretações e análise.
Hoje mais do que nunca a História Oral, a História das Mentalidades e o
Estudo da Memória se faz presente na historiografia nacional e internacional. Os
depoimentos, os relatos e as vivências podem ajudar os sujeitos a reconstituírem os
fatos históricos.
Referências bibliográficas:
CONSELHO GERAL DA SOCIEDADE DE SÃO VICENTE DE PAULO (org.). Cartas
de Frederico Ozanam. Trad. João Pedreira Duprat. 1.ed. Rio de Janeiro: Conselho
Nacional da Sociedade de São Vicente de Paulo, 1953. v. 1.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo, T. A .
Queirós, 1987.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas. Ed. Unicamp, 1994.
POLLACK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. In: Revista Estudos Históricos.
Rio de Janeiro, vol. 2, nº 3, 1989.

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