Cisne Negro Sandra Viola Encenado no final do século XIX, Lago

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Cisne Negro Sandra Viola Encenado no final do século XIX, Lago
 Latusa Digital Ano 8 – N. 44/45 – Março e Junho de 2011.
Cisne Negro
Sandra Viola
Encenado no final do século XIX, Lago dos Cisnes, obra do compositor russo Tchaikovsky, é
um balé dramático em quatro atos, com o libreto de Vladimir Begitchev e Vasily Geltzer. Sua
estreia ocorreu no Teatro Bolshoi em Moscou, em 20 de fevereiro de 1877. A má interpretação
da orquestra e dos bailarinos, assim como a coreografia e a cenografia encomendados pelo
Teatro Bolshoi em 1876, foi um fracasso.
O libreto narra a história de amor entre o principe Siegrified e a princesa Odette, esta
encantada na forma de cisne pelo mago Rothbart, que a domina. Rothbart transformou Odette
e as suas companheiras em cisnes, e só à noite lhes permite recuperarem a aparência
humana. A princesa só poderá ser libertada por um homem que ame apenas e somente ela.
Siegfried jura que será ele a quebrar o feitiço do mago.
Surge, entretanto, na corte um nobre cavalheiro e sua filha. Siegfried se equivoca ao
reconhecer Odette em Odile, filha do cavalheiro. Na realidade, sob as figuras do nobre
cavalheiro e de sua filha escondem-se o mago Rothbart e a feiticeira Odile. Assim, enfeitiçado
por Odile, Siegfried anuncia sua escolha por ela, quebrando o juramento que fizera a Odette.
Destroçada pela decisão do príncipe, Odette aceita a sua má sorte. Ao descobrir, porém, seu
engano o príncipe pede perdão a Odette e os dois renovam os votos de amor um pelo o outro.
O mago Rothbart, impotente contra esse amor, decide se vingar dos dois e, então, inunda as
margens do lago. Odette e suas donzelas logo se transformam novamente em cisnes e o
príncipe Siegfried, tomado pelo desespero, se afoga nas profundas e turbulentas águas do lago
dos cisnes.
A capa do seminário IV “A relação de objeto”, traz a imagem de uma criança, Cronos,
devorada por Saturno. No capítulo XI deste mesmo seminário, Lacan se refere à mãe como a
boca escancarada: ”Esta mãe insaciável, insatisfeita, em torno de quem se constrói toda a
escalada da criança no narcisismo, é alguém real e como todos os seres insaciados ela
procura o que devorar, querens devoret. “p199 Como falo imaginário a criança se engajará no
jogo de engodo para tentar satisfazer o desejo a mãe. A ação do Nome do pai, este Um que
ex-siste fora da cadeia significante, engendrará a metáfora do significante do desejo da mãe,
deixando a criança com, pelo menos, um pé fora do jogo.
Entretanto se a falta de um significante na mãe for subjetivada como: aquilo que falta a ela é
meu eu inteiro e - se o Nome do Pai não cumprir bem sua função-, a criança se fará como o
objeto que realiza a fantasia materna. Sem poder contar com a ação da metáfora paterna para
significar a falta da mãe, a criança se encontrará em posição de complementar esta falta. Ou
seja, de ser Cronos de Saturno, ser aspirada pela boca aberta da mãe.
Lembro Lacan nas duas notas a Jenny Aubry, quando situa a criança em três posições como:
falo, sintoma do par parental, ou objeto da fantasia da mãe. Vamos ver por onde anda Nina, ou
melhor, por onde Nina dança.
Darren Aronofsky nos trouxe há pouco seu Cisne Negro, filme retirado do balé citado e
ambientado em Nova York. Com desempenhos admiráveis de seus vários atores, o filme teve
várias indicações ao Oscar deste 2011.
Mesmo que seja bastante arriscado teorizar sobre o caso de um personagem de uma obra de
arte, vou me deter naquilo que me parece ser o fundamento do resultado sofrido pela bailarina
Cisne Negro Latusa Digital Ano 8 – N. 44/45 – Março e Junho de 2011.
protagonista do balé e que, afinal, é nosso tema de estudo: a insuficiência do simbólico.
Thomas, o coreógrafo, bem encarnado por Vincent Cassel, procura, entre tantas, uma bailarina
que interprete com perfeição o Cisne Negro. A antiga bailarina, que uma Winona Ryder
irreconhecível interpreta, estava “velha” para o papel.
Erica, a mãe vivida por Barbra Hershey, é uma bailarina que desistiu da carreira por ter
engravidado de Nina que virá por realizar a fantasia materna. A menina responderá àquilo que
supõe seja o desejo da mãe, deixando evidentes as condições de prevalência das
identificações no eixo do eu ideal.
A mãe quer Nina a melhor, a perfeita, e é assim que a bailarina a ela responde com seu Cisne
Branco imbatível em técnica e suavidade. Nina mantém-se magra, disciplinada, e, muito
especialmente virgem para não repetir o que acontecera a própria mãe.
Junto às outras bailarinas, participa, então, dos testes para o desempenho do Cisne Negro, e
se esmera, se exige, se propõe, de todas as maneiras, a alcançar este lugar. Encontra, porém
no meio do caminho, uma contingência que desestabiliza seu arranjo sintomático como Cisne
Branco. Para o desempenho do Cisne Negro, o diretor convoca a manifestação de alguma
coisa muito estranha ao corpo de Nina. Ela é convocada a sentir desejo sexual e induzida à
pratica da masturbação. Esta novidade despertada pelo coreógrafo, na falta do Nome do Pai,
cai sobre Nina como um imperativo superegóico. Chamada ao encontro com o Outro sexo
rompe-se o laço imaginário com a mãe e na falta de recursos simbólicos para arranjar-se com
os significantes de que dispunha, Nina inicia um percurso decisivo que porá seu ser em risco.
Seu corpo desperta para a sua primavera, surgem suas primeiras experiências com o diretor
do balé, que tem por hábito seduzir a bailarina primeira para depois abandoná-la. Inicia-se,
também, uma acirrada disputa entre Nina e Lily, a colega do corpo de baile que disputa com
ela o mesmo lugar destacado do Cisne Negro. Quando o real do corpo e seu gozo entram em
cena, por exigência desse outro que lhe aparece como un pére (impar), o nó do imaginário
Cisne Branco se rompe. Para este unheimlich, Nina constituirá um delírio persecutório,
tomando Lily como seu duplo que “quer roubar seu lugar”. Nina alucina vários circuitos
chegando à cama com Lily num ato sexual nunca experimentado Assim, além de incrementar
os cortes no corpo de que já fazia uso, tentará articular, novamente real e simbólico.
Entretanto, a falta da incidência do Nome-do-Pai suscita nela um modo de gozo que se
evidencia pela ausência de ligação entre pulsão e objeto externo. Como ensina Lacan, mais
tarde, o Nome do Pai não apenas significa o desejo da Mãe, mas mantém junto, para cada
sujeito, um a um, Real, Simbólico e Imaginário. Os Nomes do Pai, como afirma Lacan, são
instrumentos para significar o gozo e velar o objeto como separado do corpo.
Não tendo chances de fazer da contingência do gozo estranho em seu corpo, um possível a
favor da vida, Nina evidencia que o amor não lhe trouxe socorro e o real foi mais rápido. Na
passagem entre o Cisne Branco e o Negro, Nina se corta em espelho e, ao tentar alçar o vôo
entre os dois, cai, como objeto, fora da cena.
Referências bibliográficas:
LACAN, J. O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
_________ Duas notas sobre a criança. Em: Opção Lacaniana, São Paulo, n.21, p. 5-6, abril
1998.
________ O Seminário, livro 5: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
________ O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
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