Mark Twain - Recanto das Letras

Transcrição

Mark Twain - Recanto das Letras
SAMIZDAT
www.samizdat-pt.blogspot.com
12
janeiro
2009
ficina
Mark Twain
a ficção de um dos maiores
autores norte-americanos
SAMIZDAT 12
janeiro de 2009
Henry Alfred Bugalho
Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada
a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.
Autores
Todas as imagens publicadas são de domínio público ou
royalty free.
Edição, Capa e Diagramação:
Caio Rudá
Carlos Alberto Barros
As idéias expressas e a revisão das obras são de inteira
­responsabilidades de seus autores ou tradutores.
Dênis Moura
Giselle Natsu Sato
Guilherme Rodrigues
Henry Alfred Bugalho
Joaquim Bispo
José Espírito Santo
Marcia Szajnbok
Maria de Fátima Santos
Maristela Scheuer Deves
Pedro Faria
Volmar Camargo Junior
Zulmar Lopes
Autores Convidados
Lucas Riello de Almeida
Renato Wegner de Souza
Textos de:
Enrique Gutiérrez Miranda
Editorial
Um ano de SAMIZDAT!
Certamente que nós temos muito a comemorar. Nesta
época virtual, quando tudo é tão efêmero e desaparece tão
rápido quanto surge, uma revista como a SAMIZDAT perdurar por tanto tempo é uma vitória.
Nestes doze meses, muita água passou por debaixo desta
ponte, autores canônicos ou desconhecidos, contos, poemas,
crônicas, resenhas, entrevistas, escritores lusófonos ou não.
Reunimos o que há de melhor no mundo da Literatura, e
o que há de novo, ou de inusitado.
Há uma citação do escritor e cineasta Jean Cocteau que
define bem o espírito da Revista SAMIZDAT:
“Não sabendo que era impossível, foi lá e fez.”
E realmente acredito que nenhum de nós sabia que era
impossível.
Mark Twain
Nelson Rodrigues
Imagem da capa:
Wikipedia Commons
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Henry Alfred Bugalho
Sumário
MENSAGEM DE ANIVERSÁRIO
6
Por que Samizdat?
8
Henry Alfred Bugalho
Henry Alfred Bugalho
ENTREVISTA
Sacolinha
MICROCONTOS
Henry Alfred Bugalho
José Espírito Santo
Volmar Camargo Junior Guilherme Rodrigues Carlos Alberto Barros 10
14
14
15
16
17
RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
O fim de todas as utopias: um mundo nada
admirável
18
Henry Alfred Bugalho
A Estrada, de Cormac McCarthy
21
AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA
A Dama do Lotação 22
CONTOS
Vai entender cabeça de chefe
28
O Soldado e a toupeira
30
Carlos Alberto Barros
Nelson Rodrigues
Carlos Alberto Barros
Volmar Camargo Junior
A Criatura
34
Ano Novo - Vida Nova
36
Conto de Natal
39
Henry Alfred Bugalho
Joaquim Bispo
Maria de Fátima Santos
O Funeral de meu avô
40
O Horizonte
44
Maria de Fátima Santos
Guilherme Rodrigues
As Bases da Criação
46
Unha
49
Gênesis
50
Hárpias - a Dipusta das Fúrias
52
Os deliciosos biscoitos de Oma Guerta
57
Autor Convidado
A Escada
60
Poemetos
60
TRADUÇÃO
As Cinco Dádivas da Vida
64
A História do Inválido
66
La Esencia de las horas
72
Autobiografia
74
TEORIA LITERÁRIA
Manifesto Urbanicista
76
José Espírito Santo
Zulmar Lopes
Pedro Faria
Giselle Natsu Sato
Maristela Scheuer Deves
Lucas Riello de Almeida
Renato Wegner de Souza
Mark Twain
Mark Twain
Volmar Camargo Junior
Enrique Gutiérrez Miranda
Volmar Camargo Junior
A Linguagem do dia-a-dia na Literatura
78
CRÔNICA
Ao Sr. Schopenhauer
82
Dialética do Jeitinho Brasileiro
86
Litoral e Capital
88
A Desinformação Pública
90
A Importância do Prepúcio
91
Mitos, Mitos, Mitos
92
Henry Alfred Bugalho
Caio Rudá
Henry Alfred Bugalho
Pedro Faria
Joaquim Bispo
Joaquim Bispo
Joaquim Bispo
POESIA
Laboratório Poético - Do Caroço de um Hora
(A Essência das Horas)
94
Volmar Camargo Junior
Poesias
95
Sonetos
96
PlagicAMORniano
98
SOBRE OS AUTORES DA SAMIZDAT
99
Carlos Alberto Barros
Marcia Szajnbok
Dênis Moura
SEÇÃO DO LEITOR
Agora o leitor da SAMIZDAT também pode colaborar com a elaboração da revista.
Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.
Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da revista: Resenha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa, Tradução e Autor Convidado.
Escreva-nos para:
[email protected]
Mensagem de Aniversário
Henry Alfred Bugalho
SAMIZDAT comemora
um ano de existência
6
6
SAMIZDAT dezembro de 2008
Quando o blog da Revista
SAMIZDAT foi ao ar, no dia
31 de dezembro de 2007, não
tínhamos muita idéia do que
estava por vir.
Reunir um grupo coeso de
escritores, capaz de produzir
Literatura de qualidade e de
trocar experiências sempre
havia sido um objetivo meu,
desde quando comecei a escrever e participar de oficinas literárias em Curitiba.
Mas os escritores de hoje
são bichos arredios, com
egos sensíveis e que geralmente preferem o isolamento, onde podem divagar sobre
a própria genialidade, do que
se embrenhar na complicada
dinâmica dos relacionamentos sociais.
Relacionar-se com outros
escritores, seja pessoal ou
virtualmente, é correr o risco
de se transformar, de descobrir nossos próprios limites,
nossas dificuldades, nossos
erros; é correr o risco de se
descaracterizar, mas também
é a oportunidade para um
crescimento literário inestimável.
Não é à toa que vários escritores pretéritos buscaram
em seus pares apoio para
a árdua carreira das Letras.
Grupos, movimentos, revistas,
círculos, estes eram ambientes seguros para escritores
sequiosos por novos horizontes. Esta troca os permitiu crescerem, lapitarem o
diamante bruto da escrita.
Foi através de revistas, como a “Orpheu”, que
­Fernando Pessoa e alguns de
seus heterônimos surgiram
para o mundo. Também foi
em revistas que Jorges Luis
Borges, Dalton Trevisan, Isaac
Asimov, Raymond Carver,
James Joyce, e vários outros
autores se tornaram conhecidos.
A revista literária, ou alguma publicação periódica,
é uma vitrine para o autor,
uma centelha de visibilidade. Algumas revistas duram
poucos meses, outras perduram; algumas são lembradas,
outras esquecidas; como tudo
no mundo da Arte.
Que a Revista SAMIZDAT
esteja completando um ano
de existência é algo que me
surpreende, se pensarmos
que tudo se originou a partir
dum blog e dum primeiro
fascículo mal diagramado.
Tive de aprender muito
para tornar a SAMIZDAT visualmente atrativa. Mas nós,
enquanto escritores, também
estamos aprendendo sempre
como tornar nossas obras literariamente atrativas. É uma
luta diária, que está ocorrendo no silêncio de nossas
casas, ou diluída por entre o
mundo etéreo da internet.
Esta revista é um sonho
coletivo tornado real, mas
é também uma das vitórias
desta nossa luta diária.
Parabéns para nós!
http://www.flickr.com/photos/tym/247265947/sizes/o/
www.samizdat-pt.blogspot.com
7
Por que Samizdat?
“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico,
­distribuo e posso ser preso por causa disto”
Vladimir Bukovsky
Henry Alfred Bugalho
Inclusão e Exclusão
[email protected]
Nas relações humanas,
sempre há uma dinâmica de
inclusão e exclusão.
O grupo dominante, pela
própria natureza restritiva
do poder, costuma excluir ou
ignorar tudo aquilo que não
pertença a seu projeto, ou
que esteja contra seus princípios.
Em regimes autoritários,
esta exclusão é muito evidente, sob forma de perseguição,
censura, exílio. Qualquer um
que se interponha no caminho dos dirigentes é afastado
e ostracizado.
As razões disto são muito
simples de se compreender:
o diferente, o dissidente é
perigoso, pois apresenta
alternativas, às vezes, muito
melhores do que o estabelecido. Por isto, é necessário
suprirmir, esconder, banir.
Foto: exenplo dum samizdat. Cortesia do Gulag Museum em Perm-36.
8
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A União Soviética não
foi muito diferente de demais regimes autocráticos.
­Origina-se como uma forma
de governo humanitária,
igualitária, mas
logo
SAMIZDAT dezembro de 2008
se converte em uma ditadura como qualquer outra. É a
microfísica do poder.
Em reação, aqueles que
se acreditavam como livrespensadores, que não queriam, ou não conseguiram,
fazer parte da máquina
­administrativa - que estipulava como deveria ser a
cultura, a informação, a voz
do povo -, encontraram na
autopublicação clandestina
um meio de expressão.
Datilografando, mimeografando, ou simplesmente
manuscrevendo, tais autores
russos disseminavam suas
idéias. E ao leitor era incumbida a tarefa de continuar
esta cadeia, reproduzindo tais
obras e também as p
­ assando
adiante. Este processo foi
designado "samizdat", que
nada mais significa do que
"autopublicado", em oposição
às publicações oficiais do
regime soviético.
E por que Samizdat?
A indústria cultural - e o
mercado literário faz parte
dela - também realiza um
processo de exclusão, baseado no que se julga não ter
valor mercadológico. Inexplicavelmente, estabeleceu-se
que contos, poemas, autores
desconhecidos não podem
ser comercializados, que não
vale a pena investir neles,
pois os gastos seriam maiores do que o lucro.
A indústria deseja o produto pronto e com consumidores. Não basta qualidade,
não basta competência; se
houver quem compre, mesmo o lixo possui prioridades
na hora de ser absorvido
pelo mercado.
E a autopublicação, como
em qualquer regime excludente, torna-se a via para
produtores culturais atingirem o público.
Este é um processo solitário e gradativo. O autor
precisa conquistar leitor a
leitor. Não há grandes aparatos midiáticos - como TV,
revistas, jornais - onde ele
possa divulgar seu trabalho.
O único aspecto que conta é
o prazer que a obra causa no
leitor.
Enquanto que este é um
trabalho difícil, por outro
lado, concede ao criador uma
liberdade e uma autonomia
total: ele é dono de sua palavra, é o responsável pelo que
diz, o culpado por seus erros,
é quem recebe os louros por
seus acertos.
E, com a internet, os autores possuem acesso direto
e imediato a seus leitores. A
repercussão do que escreve
(quando há) surge em questão de minutos.
Ao serem obrigados a burlarem a indústria cultural, os
autores conquistaram algo
que jamais conseguiriam de
outro modo, o contato quase pessoal com os leitores,
o ­diálogo capaz de tornar a
obra melhor, a rede de contatos que, se não é tão influente quanto a da ­grande mídia,
faz do leitor um colaborador,
um co-autor da obra que lê.
Não há sucesso, não há gran-
des tiragens que substitua
o prazer de ouvir o respaldo de leitores sinceros, que
não estão atrás de grandes
autores populares, que não
perseguem ansiosos os 10
mais vendidos.
Os autores que compõem
este projeto não fazem parte
de nenhum ­movimento
literário organizado, não
são modernistas, pós­modernistas, vanguardistas
ou q
­ ualquer outra definição
que vise rotular e definir a
orientação dum grupo. São
apenas escritores ­interessados
em trocar experiências e
sofisticarem suas escritas. A
qualidade deles não é uma
orientação de estilo, mas sim
a heterogeneidade.
Enfim, “Samizdat” porque a
internet é um meio de autopublicação, mas “Samizdat”
porque também é um modo
de contornar um processo
de exclusão e de atingir o
­objetivo fundamental da
­escrita: ser lido por alguém.
SAMIZDAT é uma revista eletrônica
­ ensal, escrita, editada e publicada pelos
m
­integrantes da Oficina de Escritores e Teoria
Literária. Diariamente são incluídos novos
textos de autores consagrados e de jovens
­escritores amadores, entusiastas e profissionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas
literárias e muito mais.
www.samizdat-pt.blogspot.com
www.samizdat-pt.blogspot.com
9
Entrevista
SACOLINHA
Ademiro Alves de Sousa,
conhecido como Sacolinha, é
um dos destaques da literatura
brasileira contemporânea. Autor
de dois livros: “Graduado em
Marginalidade” e “85 letras e
um disparo”, participou, ainda,
de diversas publicações: revista
“Caros Amigos”, antologia “No
limite da palavra” da editora
Scortecci, antologias “Cadernos
Negros”, entre outras. Ganhador
de alguns prêmios literários, é
também o fundador da Associação Cultural Literatura no
Brasil e é responsável pela Coordenadoria Literária da Secretaria de Cultura do município
de Suzano, em São Paulo. Com
muita prestatividade, o escritor
nos concedeu esta entrevista.
SAMIZDAT: O fato de
você ser um autor que
surgiu na periferia foi um
obstáculo ou um chamariz para sua carreira?
Sacolinha: Nem um e nem
outro. O autor pode surgir
de qualquer lugar, mas se
ele não tiver uma boa escrita, persistência e articulação, ele não chega e nem se
mantém em lugar nenhum.
As editoras não estão nem
aí de onde vem o escritor,
elas querem saber se ele
é conhecido e se o livro é
vendável. Vejam o caso da
10
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SAMIZDAT dezembro de 2008
Bruna Surfistinha e alguns
Big Brohter’s. Lançaram seus
livros que venderam horrores, mas depois do segundo
título eles deram com os
burros n’água, e não conseguiram se manter.
Talvez o fator geográfico
tenha contribuído um pouco para minha carreira, já
que ser morador da periferia hoje em dia é estar na
moda, todo mundo quer
ser, graças aos seriados, às
novelas e filmes.
Qual é a importância da
consciência política e
social na sua escrita? A
Literatura e a cultura em
geral devem assumir este
compromisso? Escrever é
fazer diferença?
Sacolinha: Literatura abrange muita coisa, entre elas a
geografia, filosofia, história
e a ciência. Um livro como
Grande Sertão: Veredas do
Guimarães Rosa tem tudo
isso e muito mais. Olhem
o escritor português José
Saramago, se ele não tivesse consciência política e
social, seus livros não seriam conhecidos no mundo
inteiro. Eu sempre achei
que escritor tem que saber
de tudo um pouco, inclusive ser engajado em algum
movimento social como
o Saramago por exemplo.
Não dá pra ficar encerrado
num gabinete e inventando
histórias ou esperar a noite
chegar para ver a lua e ter
inspiração.
A literatura só não pode ser
engajada demais, porque aí
vira documentário, e o papel da literatura não é esse.
Em alguns textos seus ou
a seu respeito – há uma
entrevista genial que você
deu a um jornalzinho estudantil! – você usa os termos “revolta” e “vingança”,
em relação à sua literatura. Há alguns anos, não
muitos, dizer abertamente,
ou veladamente, traduzindo isso em metáforas, era
motivo para os artistas
“desaparecerem”, levarem
porrada ou, na melhor das
hipóteses, serem exilados
do Brasil. Como você sente a liberdade de poder
“se revoltar” e “se vingar”
através da literatura?
Sacolinha: No meu caso
essa revolta e essa vingança refere-se mais ao meu
interior do que exterior.
Quero me vingar dos atos
e fatos do cotidiano, quero
trancafiar ou acabar com
meus demônios, me vingar
dos pensamentos e desejos
ruins. Tenho a literatura como uma válvula de
escape, eu escrevo não por
hobby ou status, mas porque preciso me extravasar.
A pergunta pode parecer
capciosa, mas não é: se
você fosse político e estivesse no poder (não como
funcionário, mas tendo
sido eleito), pelo que você
lutaria?
Sacolinha: Por políticas
públicas para a cultura
para todos aqueles artistas
formados pela vida. Quero dizer que têm muitos
artistas (popular, clássico e
erudito) que não sentaram
na cadeira da universidade
e desenvolvem um puta
trabalho, seja na capoeira,
no maracatu, no teatro, na
música, no cinema, literatura e nas artes plásticas.
Agora tem um monte de
acadêmicos por aí metidos
a artistas e sequer pisou no
barro, sequer fez um trabalho fora do seu ambiente. Muitos até já têm seu
padrinho desde pequeno e
hoje fazem eventos com a
nossa grana (Petrobras, Lei
Rouanet, etc.) e ainda cobram ingresso.
Lutaria por essa inversão,
contribuindo para que os
artistas menos favorecidos
tivessem acesso às leis de
incentivo à cultura. E com
isso eu estaria lutando
pelo direito à vida, porque
acredito que o cidadão que
tem acesso à cultura ou
desenvolve alguma arte, ele
enxerga melhor, não morre
de fome, tem saúde e sabe
resolver situações problemas.
Há um site que diz que
seu romance “Graduado
em Marginalidade” tem
trezentas e onze personagens. Isso é exagero de
notícia ou é fato? Você
acha possível dar ao leitor
tantas verdadeiras e identificáveis personagens,
num romance com menos
de duzentas páginas?
Sacolinha: É verdade, tem
sim. Mas não pensem que
todas elas são protagonistas
em primeiro plano. Não sou
marxista, mas gosto de dar
voz aos que não tem voz. Se
vocês forem ler o “85 Letras
e um Disparo” verão que
a maioria dos contos tem
personagens inferiorizados
pela sociedade que são muito mais do que ela imagina;
é uma prostituta que lê
Allan Poe, um mendigo que
faz dissertações, um ladrão
mais instruído que qualquer
presidente, e assim vai.
Muitos de seus textos
são escritos com linguagem próxima da fala do
cotidiano. O trecho “Se
eles não tivessem naquela
esquina, aquele dia, aquela hora...” demonstra bem
isso. Você acredita que
o escritor deve se exprimir como o homem da
rua para melhor se fazer
entender?
Sacolinha: Nunca acreditei nisso, acredito que o
escritor deve escrever sem
www.samizdat-pt.blogspot.com
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maquiagens. Usar os seus
conhecimentos e sua estrutura lingüística, somente
isso. O escritor que fica
procurando meios ou que
escreve pensando na recepção do leitor, pra mim não
vale nada.
Qual é o limite entre realidade e ficção em suas
obras?
Sacolinha: Só escrevo realidade quando faço crônicas, de resto é tudo ficção,
mesmo baseando-me na
realidade.
O público brasileiro
parece possuir um fascínio por filmes, seriados e
livros que retratam a vida
na periferia. Para você, a
que se deve este fenômeno?
Sacolinha: Conforme já falei, a periferia está na moda
há muito tempo. Antes era
o Gil Gomes, Afanázio Jazadige, Ratinho e o demagogo
do Datena que levavam a
gente pra tela, mas de uma
forma a mostrar somente o
lado ruim. Agora são outras
pessoas e outros meios e
formas de mostrar a vida
na periferia, mas ainda
assim é de uma forma
pejorativa. O que mudou é
que descobriram que nesses
lugares têm muita gente
boa, em tudo. Por isso é
que Cidade de Deus, Antônia, Tropa de Elite e outros
foram protagonizados por
gente que é da periferia, ao
contrário disso, esses produtos não teriam feito tanto
sucesso.
Discutíamos, na comu-
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12
nidade dos colaboradores da SAMIZDAT, que
os escritores costumam
escolher um tema, ou
uns poucos temas, e debruçam-se neles por um
bom tempo – e isso pode
mesmo ser inconsciente.
Há um tema comum no
que você escreve?
Sacolinha: Não. O meu
primeiro livro “Graduado
em Marginalidade” é pura
violência, já o segundo “85
Letras e um Disparo” é mais
cômico e suave e versa
sobre vários temas de nossa
sociedade. Estou com mais
dois livros prontos para
serem lançados: “Peripécias
de Minha Infância” é um
romance infanto-juvenil
que trabalha com a criatividade e “O homem que
não mexia com a Natureza”
é um livro que aborda a
temática do meio ambiente.
Tem um outro livro que
vou começar a escrever que
vai falar da questão política.
Estou escrevendo um livro
didático sobre leitura.
Escrevo conforme vai tocando a minha cabeça. Não me
apego aos temas.
Existem discussões sobre
letras de músicas serem
ou não poesia. Por exemplo, letras do Chico Buarque, quando lidas, são
verdadeiros poemas, mas
ainda têm um fundamento – e certa interdependência – com o ritmo musical (Cálice é uma delas).
E o rap, é um ritmo que
tem uma letra, ou uma
forma de poesia, acompanhada de um ritmo? Você
que escreve ou escreveu
rap, o que acha: é poesia,
música, ou algo além?
SAMIZDAT dezembro de 2008
Sacolinha: Sempre gostei
de ler as músicas. Presto
mais atenção na letra do
que no ritmo, e pra mim,
música sempre foi poesia,
principalmente o rap que
transforma coisas ruins
em melodias, transformam
o sangue e a violência em
poesia. Sem contar que tem
seu jeito próprio de cantar,
sua forma de dizer “zói”
ao invés de “olhos”, e falar
coisas que só mesmo quem
é do meio entende, quem
não é, tem que levantar
hipóteses e interpretar. Isso
eu acho o máximo, porque
fizeram dessa maneira com
os pobres a mais de séculos, desde a missa rezada
em latim nos tempos dos
sermões do Padre Vieira,
passando pela escravidão
e chegando até os dias de
hoje nos termos da linguagem técnica, onde um
cidadão não consegue nem
entender o artigo que está
sendo condenado.
Num texto seu, Crônica
de um jovem salvo pela
literatura, há um trecho
valioso: “Precisava fazer
alguma coisa para me
extravasar: eu partia para
o lado da pólvora (crime)
ou para o lado do açúcar (cultura). Optei pelo
açúcar, que às vezes é
um pouco amargo.” Entre
essas amarguras, o que foi
mais amargo depois dessa
escolha?
Sacolinha: Ouvir milhares
de “não”, desde as respostas
das editoras até as respostas
das pessoas que eu abordava nos bares e teatros de
Pinheiros e Vila Madalena
quando vendia livros nas
ruas.
Eu pensava: optei pela
cultura que é uma atividade legalmente correta, mas
ninguém me dá estrutura.
Me enforco de prestações
para publicar um livro e
quando saio para vender
ninguém quer dar atenção,
alguns até seguram suas
bolsas.
Isso é amargura, você ter
a idéia, colocar no papel
sofregamente, diagramar,
revisar, publicar com seu
próprio dinheiro, divulgar e
vender, ser o próprio editor
e livreiro.
Alguns de nós adoraríamos ter uma coordenadoria de literatura dentro
das secretarias de cultura
de nossos municípios. Em
seu blog, num comentário
sobre sua agenda semanal,
nota-se que você é muito
ocupado e tem grandes
responsabilidades como
coordenador de literatura da cidade de Suzano. Como funciona uma
coordenadoria desse tipo?
Como é o seu trabalho?
Sacolinha: Minha função é
mais externa do que interna, até porque numa sala
a gente não produz nada.
Então o negócio é estar na
rua, sentir cheiro de gente e
tomar sol na cabeça. Como
Coordenador Literário tenho que desenvolver projetos de incentivo à leitura e
de promoção aos escritores.
Nada difícil pra quem gosta
do que faz. Mas tem que
pensar em tudo, inclusive
na pré-produção, produção
e pós-produção.
Já publiquei 132 autores,
trouxe escritores como
Ariano Suassuna, Marcelo Rubens Paiva, Moacir
Sclyar, Loyola Brandão, entre
outros. Promovi 4 concursos literários, dezenas de
oficinas e projetos para
incentivar crianças, jovens
e adultos a lerem. E falta
de verba tem, a diferença é
que eu corro atrás de tudo
quanto é empresa e vivo
batendo na porta do Governo Federal atrás de grana
para o desenvolvimento dos
projetos. O que falta muito
por aí, em Suzano tem de
sobra: vontade política.
Há uma tendência (do
mercado editorial, da
História da Literatura, das
universidades, dos críticos... não se sabe ao certo
de quem...) de encarcerar
os livros em gêneros. Por
isso, às vezes, há coisas
como Literatura Esotérica,
Literatura Espírita, Literatura Erótica, Literatura
Gay, como que direcionando o que é produzido
para “nichos” de leitores.
A segunda edição de
seu livro “85 letras e um
disparo” foi inclusa numa
série chamada “Literatura
Periférica”.
O que é essa literatura?
Essa denominação vem de
onde? De quem produz
ou de quem publica?
Sacolinha: No caso da
Literatura Periférica, esse
foi um título dado pelos
próprios autores, como uma
forma de pertencimento,
de geografia. Creio que
direcionar a literatura por
temas, não é algo de ruim,
mas uma forma de identificar o tipo de literatura,
como literatura estrangeira,
indígena, auto-ajuda, etc. Eu
mesmo nunca aceitei rótulos, o que faço é somente
literatura. Não sei quem
está apto a tematizar o que
eu escrevo.
O que é a Literatura no
Brasil?
Sacolinha: A Associação
Cultural Literatura no Brasil
é uma entidade que fundei
em dezembro de 2002 com
dois objetivos: incentivar a
leitura e divulgar os escritores independentes. Essa entidade tem hoje vários projetos, muitos até em parceria
com prefeituras, Petrobras e
a Fundação Itaú Social.
Não queríamos perguntar,
mas não tem como fugir disso: de onde veio o
nome “Sacolinha”?
Sacolinha: Essa é uma
história longa, outro dia
com mais calma eu explico. Quem quiser pode ir lá
no meu blog que tem tudo
explicadinho: www.sacolagraduado.blogspot.com
A esquipe da SAMIZDAT
agredece sua participação.
Muito sucesso em seus
projetos!
Coordenadora da entrevista:
Carlos Alberto Barros
Perguntas feitas por:
Volmar Camargo Junior
Joaquim Bispo
Henry Alfred Bugalho
www.samizdat-pt.blogspot.com
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Microcontos
As boas-novas
Henry Alfred Bugalho
É engraçado como a vida dá voltas.
Como aqueles testemunhas de jeová, aqueles crentes, carismáticos que batiam à minha porta no domingo de manhã,
tentando me converter, me irritavam!
Não tenho hábito de dormir cedo, por isto, alguém tocando o interfone ou a campainha de casa às 9 da matina, era
pedir pra acabar com meu dia. Não havia bom humor que
resistisse.
- Oi, irmão, viemos lhe falar de Jesus, diziam eles.
- Eu quero que vocês e o seu Jesus se fodam, respondia eu,
batendo a porta na cara deles.
E isto era todo domingo, todo maldito final-de-semana.
Mês passado, meu filho foi assassinado, violentado e
esquartejado por um maníaco. Pensei em me matar, minha
esposa, devastada. Um amigo nosso nos convenceu a irmos
até sua igreja e fomos acolhidos.
Hoje, domingo de manhã, sai com outros irmãos para espalhar as boas-novas. Numa das casas, alguém saiu, nervoso:
- Vão se foder! Eu quero dormir! - e bateu a porta em
nossa cara.
- Vai se foder você, seu incréu! Que Deus amaldiçoe você
e todos seus descendentes! - retruquei.
A queda
http://www.flickr.com/photos/foreversouls/261588031/sizes/l/
José Espírito Santo
O animal caiu a um poço. Ao querer salvá-la, os
sábios e os teólogos esbarraram na ambiguidade...
Quem resgatariam? A zebra branca com riscas pretas
ou a zebra preta com riscas brancas?
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14
SAMIZDAT dezembro de 2008
http://www.flickr.com/photos/greg_robbins/461308192/sizes/o/
Virei crente, mas também não tenho sangue de barata.
Um pra duas
Volmar Camargo Junior
- Ô moço! Vê pra nós um pastel e um
chiclé.
- Tá aqui. Dois reais e quinze.
- Descontinho de cinco centavos?
- Pode ser.
- Vê mais um guardanapo.
- Bah, aí eu fico no prejuízo, guria.
- Tá bom, tá bom... mas cortar no meio,
será que dá?
Traição
A Cordinha
Volmar Camargo Junior
- Sabe de que eu tenho nojo? Dessa cordinha do saquinho de chá.
- O que tem de mais nela?
- Não sei. Mas vai dizer que não parece
com uma lombriga na sua xícara?
Volmar Camargo Junior
- Amor, sabe aquela espinha que me saiu
na nuca.
- Qual? Aquela que eu to namorando desde
anteontem?
- Essa mesma. Se eu te contar que outra
pessoa estourou, você vai ficar muito brava?
O próprio
Volmar Camargo Junior
- Alô. É da casa do Silva?
- Boa tarde, é o próprio.
- Boa tarde, Seu Próprio. O Silva está?
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Corriqueirismos
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Microcontos
Um e outra
Volmar Camargo Junior
Tereza chamava-se Marco Antônio.
Em casa, lavava, passava, cozinhava,
tomava um banho demorado, e esperava, sem roupa, o amor de sua vida.
À meia-noite, quando o amor chegava,
durante uma xícara de chá, escolhiam
se no quarto seria Marco Antônio ou
seria Tereza.
Ensinamentos
Guilherme Rodrigues
Pare de falar. Veja.
O silêncio explica tudo e se explica.
Limpe a folhigem que ofusca sua visão. Se a limpeza não
for suficiente, quebre o muro.
A vida é curta, mas tenho todo o tempo para fazer o que
gosto.
Repare.
Amor.
Uma coisa de cada vez.
Começou. Termine.
Pare. Respire. Continue.
Dinheiro e sucesso são resultados do suor.
Excessos são necessários, para poder desprezá-los.
Deus. Deve existir.
A obra de arte não é para ser analisada. É para ser admirada.
Livre-se de teorias. Aprecie.
Machado de Assis, Guimarães Rosa, Camões, Fernando
Pessoa, Goethe, Karl Marx, Nietzsche, Freud, Schopenhauer,
Hitler, Lenin, Stalin, Che Guevara, Beethoven, Bach, Mozart,
Chopin etc etc etc. Você é melhor do que todos eles.
Escreva.
Por quê?
Guarde umas horinhas somente para si.
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SAMIZDAT dezembro de 2008
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Concentração
Guilherme Rodrigues
- Ei. Vamos ouvir o silêncio?
- Vamos.
Meia hora se passou.
- O silêncio é irritante.
- Sim. Mas sábio.
Algumas horas se passaram.
- Vamos brincar no parque?
- Vamos.
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Abra-se
Guilherme Rodrigues
Abra as portas e as janelas, deixe que novos
ares entrem, veja a natureza, sinta o aroma
de vida. Inspire.
Perdão
Carlos Alberto Barros
A lágrima escorreu-lhe até o bico do seio.
Mas, foi ele chupar, que ela logo o perdoou.
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Recomendações de Leitura
Henry Alfred Bugalho
O fim de todas as utopias:
um mundo nada admirável
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SAMIZDAT dezembro de 2008
Durante o Iluminismo, o
ser humano se deslumbrou
diante de sua própria capacidade intelectual. Gênios das
artes, das ciências, da filosofia se proliferaram pela Europa, confiantes de que, através
do bom uso da racionalidade,
um novo mundo poderia ser
criado.
Este anseio por um mundo
perfeito é antigo. Podemos
rastreá-lo desde manuscritos religiosos pré-cristãos,
primeiro situando-no num
mundo anterior ao surgimento da Humanidade, ou em
reinos após a morte, como o
Jardim do Éden, o Nirvana, o
Moksha do hinduísmo, ou a
Nova Jerusalém. Platão situa
uma civilização utópica no
meio do oceano, representada pelo mito de Atlântida.
Thomas Moore imortaliza o
termo em sua obra “Utopia”,
um ilha imaginária com um
governo perfeito. Francis
Bacon acreditava que a “Nova
Atlântida” seria na América,
também perfeita, regida por
sábios cientistas.
No entanto, os avanços
tecnológicos e como o ser
humano os utilizou abriu
margem para o oposto da
utopia: as distopias, nas
quais, ao invés de perfeição
e harmonia, a sociedade se
tornaria insuportavelmente
sistemática, repressora, ou
brutal.
Costuma-se dizer que não
é possível acreditar em utopias no século XX, após duas
guerras mundiais, a bomba
atômica, o holocausto. A barbárie aniquilou qualquer esperança no futuro, qualquer
sentimento de que a razão
poderia nos levar à perfeição.
É neste contexto que surge
“Admirável Mundo Novo”,
do britânico Aldous Huxley.
O romance foi escrito uma
década antes da Segunda
Grande Guerra, mas já possui
um pessimismo tecnocrático
que pretendia anteceder os
extremos da racionalidade.
A trama se passa no futuro, numa sociedade estratificada a partir de manipulações genéticas. Existe uma
pirâmide social e o grau de
liberdade e autonomia depende de qual classe genética
um indivíduo nasce. A divisão de tempo é feita em dois
momentos: trabalho e lazer.
Como método de alienação,
o trabalhador de cada função só possui conhecimento
de suas especificidades, sem
noção do todo; nos momentos de lazer, e também como
forma de controle social,
cada indivíduo recebe sua
cota de “soma”, uma droga
imbecilizante.
O protagonista de “Admirável Mundo Novo” é
Bernard Marx, um membro do estrato mais alto. A
referência de seu nome ao
filósofo Karl Marx é evidente, assim como todos os
demais personagens, todos
eles vinculados à figuras
proeminentes do capitalismo
e do socialismo. O mundo
no qual Bernard Marx vive é
um capitalismo socialista, se
é que estes opostos podem
ser reconciliados. Capitalista
porque fundamenta-se sobre
o princípio de produção em
massa e, provavelmente, da
mais-valia; socialista porque,
por mais que haja estratos
sociais, todos são iguais no
interior de cada casta, inclusive, em alguns casos, geneticamente idênticos.
O deus idolatrado neste
futuro é o “Ford” (trocadilho com “Lord”, ou “Senhor
[Deus]”) e remete-nos a Henry
Ford, o criador do primeiro automóvel fabricado em
série.
Bernard possui um comportamento anômalo; ao
contrário dos demais indivíduos de seu tempo, ele não
está satisfeito, é oprimido por
uma angústia que não consegue explicar.
Para se exibir para uma
garota, ele a leva até uma reserva selvagem, onde homens
primitivos vivem uma vida
rudimentar - provavelmente
como nós vivemos hoje. Lá,
ele encontra John “O Selvagem”, que é filho duma mulher duns dos altos estratos
sociais, mas que se perdeu
na reserva muitos anos antes.
Este encontro entre Bernard
e John será a causa dum
conflito interno muito maior
para o protagonista, que vê
num mundo primitivo uma
alternativa para sua contem-
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poraneidade.
“Admirável Mundo Novo”
é a obra mais conhecida e
acolhida de Aldous Huxley,
que sempre foi uma figura
controversa - descendente
duma ilustre família inglesa
e defensor do uso de LSD -,
no entanto, foi o romance
mais fraco que li dele.
Só que serve de exemplo
de que uma sociedade perfeita pode ser insuportável.
Admirável Mundo Novo
Autor: Aldous Huxley
Editora: Globo
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20
SAMIZDAT dezembro de 2008
Recomendações de Leitura
A Estrada,
A Estrada
Autor: Cormac McCarthy
Editora: Editora Alfaguara/
Objetiva
Publicação: 2007
de Cormac McCarthy
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Carlos Alberto Barros
Caso tivesse que ser escolhida uma cor para resumir o romance A Estrada,
de Cormac McCarthy, ela
seria cinza. O cinza paira
em cada trecho da obra, seja
de maneira literal ou metafórica. Noites escuras para
além da escuridão e cada um
dos dias mais cinzento do
que o anterior – eis a segunda frase do livro, que nos é
oferecida como uma profecia anunciando o conteúdo
perturbador de suas páginas.
O cinza retratado é o das
desesperanças, das tristezas
da alma, mas que, por mais
intenso que seja, ainda deixa
espaço para um pequeno
arco-íris multicolorido que
é o impulso para continuar
caminhando.
A história relata a travessia de um homem e seu filho
por uma estrada devastada.
Os dois são sobreviventes de
uma catástrofe que transforma o mundo numa terra sem
leis, onde manter-se vivo é a
única regra. O homem acredita que no final da estrada,
chegando ao litoral, encontrará outros sobreviventes,
e, juntos, poderão se ajudar
na construção de um novo
começo. Contudo, a jornada
é muito mais árdua do que
podia imaginar, e o que ele
e seu filho encontram pelo
caminho leva-os a se questionarem: para que continuar a
caminhada?
Os dois seguem empurrando um carrinho de supermercado com seus poucos
pertences – alguns restos de
alimentos, cobertores para
se protegerem do inverno
desolador e um revólver de
segurança contra os nômades assassinos. O amor e
cuidado um com o outro é a
única coisa que os faz seguir
adiante.
Vencedora do Prêmio
Pulitzer 2007, esta obra
traz a emocionante história dessa jornada de pai e
filho em busca de um fio
de esperança. Para isso, o
autor nos brinda com diálogos comoventes e silêncios
que dizem muito. A forma
como McCarthy escreve, de
início, traz estranhamento
e até certa monotonia, mas,
no decorrer da narrativa,
fica evidente a necessidade
disso – é preciso detalhar as
imagens, dizer que tudo é
cinza, um mundo de cinzas
que não se acaba. Também a
ausência do uso de travessão,
em certos pontos, dificulta
na identificação dos diálogos
entre pai e filho. Contudo,
essa não identificação clara
acaba reforçando a união dos
dois, como dizendo que são
um só.
Uma obra profunda, para
se apreciar com paciência
e alma aberta. Aos que se
permitirem, será uma bela
experiência de leitura.
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Autor em Língua Portuguesa
A Dama do Lotação
http://br.geocities.com/zostratus18/nilo-pecanha-1960.jpg
Nelson Rodrigues
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SAMIZDAT dezembro de 2008
Às dez horas da noite,
debaixo de chuva, Carlinhos
foi bater na casa do pai.
O velho, que andava com
a pressão baixa, ruim de
saúde como o diabo, tomou
um susto:
— Você aqui? A essa
hora?
E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo
suspiro:
— Pois é, meu pai, pois
é!
— Como vai Solange? perguntou o dono da casa.
Carlinhos ergueu-se; foi
até a janela espiar o jardim
pelo vidro. Depois voltou e,
sentando-se de novo, larga a
bomba:
— Meu pai, desconfio de
minha mulher.
Pânico do velho:
— De Solange? Mas você
está maluco? Que cretinice
é essa?
O filho riu, amargo:
— Antes fosse, meu pai,
antes fosse cretinice. Mas o
diabo é que andei sabendo
de umas coisas... E ela não é
a mesma, mudou muito.
Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava
acima de qualquer dúvida,
de qualquer suspeita, teve
uma explosão:
— Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais
um tostão!
Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou:
— Imagine! Duvidar de
Solange!
O filho já estava na porta, pronto para sair; disse
ainda:
— Se for verdade o que
eu desconfio, meu pai, mato
minha mulher! Pela luz que
me alumia, eu mato, meu
pai!
A SUSPEITA
Casados há dois anos,
eram felicíssimos. Ambos
de ótima família. O pai
dele, viúvo e general, em
vésperas de aposentadoria,
tinha uma dignidade de estátua; na família de Solange
havia de tudo: médicos, advogados, banqueiros e, até,
ministro de Estado. Dela
mesma, se dizia, em toda
parte, que era “um amor” ;
os mais entusiastas e taxativos afirmavam: “É um
doce-de-coco”. Sugeria nos
gestos e mesmo na figura
fina e frágil qualquer coisa
de extraterreno. O velho e
diabético general poderia
pôr a mão no fogo pela
nora. Qualquer um faria o
mesmo. E todavia... Nessa
mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar
com o casal um amigo de
infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos
que entram pela cozinha,
que invadem os quartos,
numa intimidade absoluta.
No meio do jantar, acontece
uma pequena fatalidade:
cai o guardanapo de Car-
linhos. Este curva-se para
apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto:
os pés de Solange por cima
dos de Assunção ou viceversa. Carlinhos apanhou o
guardanapo e continuou a
conversa, a três. Mas já não
era o mesmo. Fez a exclamação interior: “Ora essa!
Que graça!”. A angústia se
antecipou ao raciocínio. E
ele já sofria antes mesmo de
criar a suspeita, de formulála. O que vira, afinal, parecia pouco, Todavia, essa
mistura de pés, de sapatos,
o amargurou como um
contato asqueroso. Depois
que o amigo saiu, correra à
casa do pai para o primeiro
desabafo. No dia seguinte,
pela manhã, o velho foi
procurar o filho:
— Conta o que houve,
direitinho!
O filho contou. Então o
general fez um escândalo:
— Toma jeito! Tenha
vergonha! Tamanho homem
com essas bobagens!
Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz
da obsessão, o militar condescendeu em fazer confidências:
— Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte:
eu tive ciúmes de tua mãe!
Houve um momento em
que eu apostava a minha
cabeça que ela me traia! Vê
se é possível?!
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A CERTEZA
Entretanto, a certeza de
Carlinhos já não dependia
de fatos objetivos. Instalarase nele. Vira o quê? Talvez
muito pouco; ou seja, uma
posse recíproca de pés,
debaixo da mesa. Ninguém
trai com os pés, evidentemente. Mas de qualquer
maneira ele estava “certo”.
Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção, na cidade. O amigo
anuncia, alegremente:
— Ontem viajei no lotação com tua mulher.
Mentiu sem motivo:
— Ela me disse.
Em casa, depois do beijo
na face, perguntou:
— Tens visto o Assunção?
E ela, passando verniz nas
unhas:
— Nunca mais.
— Nem ontem?
— Nem ontem. E por que
ontem?
— Nada,
Carlinhos não disse mais
uma palavra; lívido, foi no
gabinete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange
mentira! Viu, no fato, um
sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até
mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para a sala;
disse à mulher entrando no
gabinete:
— Vem cá um instantinho, Solange.
Berrou:
— Agora!
Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou,
Carlinhos fechou a porta, a
chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então,
cruzando os braços, diante
da mulher atônita, disse-lhe
horrores. Mas não elevou a
voz, nem fez gestos:
— Não adianta negar! Eu
sei de tudo! E ela, encostada
à parede, perguntava:
— Sabe de que, criatura?
Que negócio é esse? Ora
veja!
Gritou-lhe no rosto três
vezes a palavra cínica! Mentiu que a fizera seguir por
um detetive particular; que
todos os seus passos eram
espionados religiosamente.
Até então não nomeara o
amante, como se soubesse
tudo, menos a identidade do
canalha. Só no fim, apanhando o revolver, completou:
— Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!
A mulher, até então
passiva e apenas espantada,
atracou-se com o marido,
gritando:
— Não, ele não!
Agarrado pela mulher,
quis se desprender, num
repelão selvagem. Mas ela o
imobilizou, com o grito:
— Ele não foi o único! Há
outros!
— Vou já, meu filho.
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24
SAMIZDAT dezembro de 2008
A DAMA DO LOTAÇÃO
Sem excitação, numa
calma intensa, foi contando.
Um mês depois do casamento, todas as tardes, saia
de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse.
Sentava-se num banco, ao
lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou
bonito; e uma vez - foi até
interessante - coincidiu que
seu companheiro fosse um
mecânico, de macacão azul,
que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na
cadeira, a cabeça entre as
mãos, fez a pergunta pânica:
— Um mecânico?
Solange, na sua maneira
objetiva e casta, confirmou:
— Sim.
Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois,
já cutucara o rapaz: “Eu
desço contigo”. O pobrediabo tivera medo dessa
desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta
aventura inverossímil foi a
primeira, o ponto de partida para muitas outras. No
fim de certo tempo, já os
motoristas dos lotações a
identificavam à distância;
e houve um que fingiu um
enguiço, para acompanhála. Mas esses anônimos, que
passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o
marido. Ele se enfurecia, na
cadeira, com os conhecidos.
Além do Assunção, quem
mais?
Começou a relação de
nomes: fulano, sicrano,
beltrano... Carlinhos berrou:
“Basta! Chega!”. Em voz alta,
fez o exagero melancólico:
— A metade do Rio de
Janeiro, sim senhor!
O furor extinguira-se
nele. Se fosse um único, se
fosse apenas o Assunção,
mas eram tantos! Afinal,
não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela
explicou ainda que, todos os
dias, quase com hora marcada, precisava escapar de
casa, embarcar no primeiro
lotação. O marido a olhava,
pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como e possível que certos sentimentos
e atos não exalem mau
cheiro? Solange agarrou-se
a ele, balbuciava: “Não sou
culpada! Não tenho culpa!”.
E, de fato, havia, no mais
íntimo de sua alma, uma
inocência infinita. Dir-se-ia
que era outra que se entregava e não ela mesma.
Súbito, o marido passa-lhe
a mão pelos quadris: —
“Sem calça! Deu agora para
andar sem calça, sua égua!”.
Empurrou-a com um palavrão; passou pela mulher a
caminho do quarto; parou,
na porta, para dizer:
— Morri para o mundo.
O DEFUNTO
Entrou no quarto, deitouse na cama, vestido, de
paletó, colarinho, gravata,
sapatos. Uniu bem os pés;
entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou.
Pouco depois, a mulher
surgiu na porta. Durante
alguns momentos esteve imóvel e muda, numa
contemplação maravilhada.
Acabou murmurando:
Um detetive...
Uma loira gostosa...
— O jantar está na mesa.
E o pau comendo entre
as máfias italiana e
chinesa.
­
Ele, sem se mexer, respondeu:
— Pela ultima vez: morri.
Estou morto.
A outra não insistiu.
Deixou o quarto, foi dizer
à empregada que tirasse
a mesa e que não faziam
mais as refeições em casa.
Em seguida, voltou para o
quarto e lá ficou. Apanhou
um rosário, sentou-se perto
da cama: aceitava a morte do marido como tal; e
foi como viúva que rezou.
Depois do que ela própria
fazia nos lotações, nada
mais a espantava. Passou
a noite fazendo quarto.
No dia seguinte, a mesma
cena. E só saiu, à tarde, para
sua escapada delirante, de
lotação. Regressou horas
depois. Retomou o rosário,
sentou-se e continuou o
velório do marido vivo.
O texto acima, extraído
do livro “A vida como ela é...”,
Companhia das Letras - São
Paulo, 1992, pág. 219, é um
de seus mais famosos contos,
tendo sido tendo sido adaptado para o cinema com
grande sucesso.
Fonte: http://www.releituras.
com/nelsonr_dama.asp
Um assassinato...
O Covil
dos
Inocentes
www.covildosinocentes.blogspot.com
do
gr
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át
nl
is
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d
25
http://oglobo.globo.com/fotos/2007/08/15/15_MHG_SJFHRJEK.jpg
Autor em Língua Portuguesa
Nélson Falcão Rodrigues (Recife,
23 de agosto de 1912 — Rio de
Janeiro, 21 de dezembro de 1980)
foi um importante dramaturgo,
jornalista e escritor brasileiro.
Infância
Nascido na capital pernambucana e
quinto de quatorze irmãos, Nélson
Rodrigues mudou-se para o Rio
de Janeiro ainda criança, onde
viveria por toda sua vida. Seu pai,
o ex-deputado federal e jornalista
Mário Rodrigues, perseguido politicamente, resolveu estabelecer-se
na então capital federal em julho
de 1916, empregando-se no jornal
Correio da Manhã, de propriedade
de Edmundo Bittencourt.
Segundo o próprio Nélson em suas
Memórias, seu grande laboratório
e inspiração foi a infância vivida
na Zona Norte da cidade. Dos anos
passados numa casa simples na rua
Alegre, 135 (atual rua Almirante
João Cândido Brasil), no bairro de
Aldeia Campista, saíram para suas
26
26
crônicas e peças teatrais as situações provocadas pela moral vigente
na classe média dos primeiros anos
do século XX e suas tensões morais
e materiais.
Sua infância foi marcada por este
clima e pela personalidade do garoto Nélson. Retraído, era um leitor
compulsivo de livros românticos do
século XIX. Nesta época ocorreu
também para Nélson a descoberta
do futebol, uma paixão que conservaria por toda a vida e que lhe
marcaria o estilo literário.
Na década de 1920, Mário Rodrigues fundou o jornal A Manhã, após
romper com Edmundo Bittencourt.
Seria no jornal do pai que Nélson
começaria sua carreira jornalística,
na seção de polícia, com apenas
treze anos de idade. Os relatos de
crimes passionais e pactos de morte
entre casais apaixonados incendiavam a imaginação do adolescente
romântico, que utilizaria muitas das
histórias reais que cobria em suas
crônicas futuras. Neste período a
família Rodrigues conseguiria atin-
SAMIZDAT dezembro de 2008
gir uma situação financeira confortável, mudando-se para o bairro de
Copacabana, então um arrabalde
luxuoso da orla carioca.
Apesar da bonança, Mário Rodrigues perderia o controle acionário
de A Manhã para o sócio. Mas, em
1928, com o providencial auxílio
financeiro do vice-presidente Fernando de Melo Viana, Mário fundou
o diário Crítica.
Como cronista esportivo, Nélson
escreveu textos antológicos sobre
o Fluminense Football Club, clube
para o qual torcia fervorosamente.
A maioria dos textos eram publicados no Jornal dos Sports. Junto com
seu irmão, o jornalista Mário Filho,
Nélson foi fundamental para que
os Fla-Flu tivessem conquistado o
prestígio que conquistaram e se tornassem grandes clássicos do futebol
brasileiro. Nélson Rodrigues criou
e evocava personagens fictícios
como Gravatinha e Sobrenatural de
Almeida para elaborar textos a respeito dos acontecimentos esportivos
relacionados ao clube do coração.
Adolescência e juventude
Nélson seguiu os seus irmãos Mílton, Mário Filho e Roberto integrando a redação do novo jornal.
Ali continuou a escrever na página
de polícia, enquanto Mário Filho
cuidava dos esportes e Roberto, um
talentoso desenhista, fazia as ilustrações. Crítica era um sucesso de
vendas, misturando uma cobertura
política apaixonada com o relato
sensacionalista de crimes. Mas o
jornal existiria por pouco tempo.
Em 26 de dezembro de 1929, a
primeira página de Crítica trouxe o
relato da separação do casal Sylvia
Serafim e João Thibau, Jr. Ilustrada por Roberto e assinada pelo
repórter Orestes Barbosa, a matéria
provocou uma tragédia. Sylvia, a
esposa que se desquitara do marido
e cujo nome fora exposto na reportagem invadiu a redação de Crítica
e atirou em Roberto com uma arma
comprada naquele dia. Nélson
testemunhou o crime e a agonia do
irmão, que morreu dias depois.
Mário Rodrigues, deprimido com
a perda do filho, faleceu poucos
meses depois. Sylvia, apoiada pelas
sufragistas e por boa parte da
imprensa concorrente de Crítica, foi
absolvida do crime. Finalmente, durante a Revolução de 30, a gráfica e
a redação de Crítica são empastelados e o jornal deixa de existir. Sem
seu chefe e sem fonte de sustento,
a família Rodrigues mergulha em
decadência financeira.
Foram anos de fome e dificuldades
para todos. Pouco afinados com
novo regime, os Rodrigues demorariam anos para se recuperarem dos
prejuízos causados pela turba.
Ajudado por Mário Filho, amigo de
Roberto Marinho, Nélson passa a
trabalhar no jornal O Globo, sem
salário. Apenas em 1932 é que Nélson seria efetivado como repórter
no jornal. Pouco tempo depois, Nélson descobriu-se tuberculoso. Para
tratar-se, retira-se do Rio de Janeiro e passa longas temporadas em
um sanatório na cidade de Campos
do Jordão. Seu tratamento é custeado por Marinho, que conquistou
a gratidão de Nélson pelo resto de
sua vida. Recuperado, Nélson volta
ao Rio e assume a seção cultural
de O Globo, fazendo a crítica de
ópera. Em 1940 casou-se com Elza
Bretanha, sua colega de redação.
A partir da década de 1940, Nélson
divide-se entre o emprego em O
Globo e a elaboração de peças
teatrais. Em 1941 escreve A mulher
sem pecado, que estreou sem sucesso. Pouco tempo depois assina a revolucionária Vestido de noiva, peça
dirigida por Zbigniew Ziembiński
e que estreou no Teatro Municipal
do Rio de Janeiro com estrondoso
sucesso.
O teatrólogo Nélson Rodrigues
seria o criador de uma sintaxe toda
particular e inédita nos palcos
brasileiros. Suas personagens
trouxeram para a ribalta expressões
tipicamente cariocas e gírias da
época, como “batata!” e “você é
cacete, mesmo!”. Vestido de noiva é
considerada até hoje como o marco
inicial do moderno teatro brasileiro.
Maturidade
Em 1945 abandona O Globo e
passa a trabalhar nos Diários
Associados. Em O Jornal, um dos
veículos de propriedade de Assis
Chateaubriand, começa a escrever
seu primeiro folhetim, Meu destino
é pecar, assinado pelo pseudônimo “Susana Flag”. O sucesso
do folhetim alavancou as vendas
de O Jornal e estimulou Nélson a
escrever sua terceira peça, Álbum
de família.
Em fevereiro de 1946, o texto da
peça foi submetido à Censura Federal e proibido. Álbum de família só
seria liberada em 1965. Em abril de
1948 estreou Anjo negro, peça que
possibilitou a Nélson adquirir uma
casa no bairro do Andaraí e em
1949 Nélson lançou Dorotéia.
Em 1950 passa a trabalhar no
jornal de Samuel Wainer, a Última
Hora. No jornal, Nélson começa a
escrever as crônicas de A vida como
ela é, seu maior sucesso jornalístico. Na década seguinte, Nélson
passa a trabalhar na recém-fundada
TV Globo, participando da bancada da Grande Resenha Esportiva
Facit, a primeira “mesa-redonda”
sobre futebol da televisão brasileira
e, em 1967, passa a publicar suas
Memórias no mesmo jornal Correio
da Manhã onde seu pai trabalhou
cinqüenta anos antes.
O fim
Nos anos 70, consagrado como
jornalista e teatrólogo, a saúde de
Nélson começa a decair, por causa
de problemas gastroenteorológicos
e cardíacos de que era portador. O
período coincide com os anos da
ditadura militar, que Nélson sempre
apoiou. Entretanto, seu filho Nélson
Rodrigues Filho torna-se guerrilheiro e se passa para a clandestinidade. Neste período também aconteceu o fim de seu casamento com
Elza e o início do relacionamento
com Lúcia Cruz Lima, com quem
teria uma filha, Daniela, nascida
com problemas mentais. Depois
do término do relacionamento com
Lúcia, Nélson ainda manteria um
rápido casamento com sua secretária Helena Maria, antes de reatar
seu casamento com Elza.
Nélson faleceu numa manhã de
domingo, em 1980, aos 68 anos de
idade, de complicações cardíacas
e respiratórias. Foi enterrado no
Cemitério São João Batista, em
Botafogo. No fim da tarde daquele
mesmo dia ele faria treze pontos
na Loteria Esportiva, num “bolão”
com seu irmão Augusto e alguns
amigos de “O Globo”. Dois meses
depois, Elza atendia ao pedido do
marido — de, ainda em vida, gravar
o seu nome ao lado do dele na lápide de seu túmulo, sob a inscrição:
“Unidos para além da vida e da
morte. E é só”.
Fonte: Wikipédia
www.samizdat-pt.blogspot.com
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http://www.flickr.com/photos/foxtongue/88594076/sizes/o/
Contos
Carlos Alberto Barros
Vai entender
cabeça de chefe
28
28
SAMIZDAT dezembro de 2008
De todos os chefes que
eu já tive, o Dr. Rael era
o que mais me intrigava:
apesar de me comer com
os olhos, nunca, nunca
disse uma única palavra
sequer que insinuasse
seus desejos.
Ele admirava meu
decote de um jeito todo
seu, numa mistura de
mistério e fanatismo, com
certo ar de pedinte, de
fiel em êxtase pela revelação divina.
Acostumada com
patrões que se utilizam
de suas secretárias para
tudo, tudo mesmo (se é
que você me entende), eu
estranhava que ele nunca
houvesse tentado nem
um assediozinho, uma
piada sacana que fosse.
É bom deixar claro
que nunca me incomodei
com essas manias dos
superiores. Bem da verdade é que sempre gostei.
Sem contar as vantagens:
sexo durante o trabalho, regalias nas tarefas
diárias, durabilidade no
emprego, presentinhos,
promoções... Mas, com o
Dr. Rael era diferente. Ele
não se deixava levar pela
tentação e, apesar dos
olhares, mantinha seu
instinto enjaulado.
Não sei se por conta
disso ou qualquer outra
coisa, mas o fato é que o
Dr. Rael parecia descontar tudo reclamando do
meu serviço. Se eu era
uma má secretária, por
que não me mandava
embora? Eu não conseguia entender.
Certa vez, depois de
mais um dia inteiro ouvindo suas reclamações,
explodi:
– Porra, doutor! Por
que você não me come
logo ao invés de ficar aí
resmungando o dia todo?
– e exibi meus peitos. –
Não é isso que seus olhos
tanto procuram?! Não vá
me dizer que não, seu
velho tarado!
Bem... ele me comeu e,
no dia seguinte, eu estava
no olho da rua. Fiquei
indignada!
Vai entender cabeça de
chefe...
29
Contos
O soldado e a
toupeira
Volmar Camargo Junior
[email protected]
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30
SAMIZDAT dezembro de 2008
Há muito tempo aconteceu uma guerra. E, nesse
mesmo tempo, aconteceu
uma história de amor
como nenhuma outra.
Um jovem soldado foi
aprisionado no campo de
batalha. Enquanto seus
captores decidiam o que
fazer com ele, prenderamno em um buraco no chão,
tampado com uma grade
feita de galhos e folhas.
Os próprios companheiros
do jovem encontraram o
acampamento dos inimigos. Foi uma batalha cruel
e sangrenta, onde ninguém
sobreviveu. Por causa disso, nem seus aliados nem
seus adversários sabiam
que ele estava dentro
daquele buraco. Dias se
passaram sem que o soldado visse alguma movimentação. Gritou por socorro
muitas vezes, e ninguém o
acudiu. Quando já estava ficando louco, ocorreu
algo totalmente inusitado.
O soldado acordou de
um sono estranho. Diante
dele, havia três criaturas
miúdas, muito semelhantes
a toupeiras. Em uma das
paredes havia uma cavidade rente ao chão. As três
toupeiras encararam-no e
caminharam para aquela
abertura. O estranho era
que andavam em pé, como
gente. O soldado não teve
dúvidas e, engatinhando,
acompanhou-as. Arrastouse por um tempo enorme
naquele túnel, ouvindo
sempre os passinhos leves
e os grunhidos das toupeiras que mais parecia uma
conversa. Chegou a uma
superfície de pedra, onde
havia uma luz verde, ampla o suficiente para ficar
em pé. Não viu mais as
toupeiras, mas ouvindo o
som de seus passos, seguiu
na mesma direção. Intrigado com a situação inusitada, pensou que aquilo não
poderia ser mais que um
sonho, ou um delírio febril, ou então, que a morte
finalmente o havia vencido e estava caminhando
rumo ao inferno. Só não
sabia explicar para si mesmo por que tudo parecia
tão real.
Ao longo do corredor,
percebeu que em certos
pontos a luz era mais
intensa que em outros.
Notou também que a luz
vinha de baixo para cima.
Não custou muito a perceber minúsculos globos
luminosos no chão. Abaixou-se, e com o indicador
e o polegar, tomou um deles na mão. Riu-se quando
viu que eram, na verdade,
frutas pequeníssimas que
tinham em seu interior
uma luz como a dos vagalumes. O soldado foi-as
coletando. Quando encheu
a palma de uma das mãos,
era como se carregasse
consigo uma lanterna. Os
passos e a conversinha das
toupeiras cessaram. O corredor atrás de si tornou-se
profundamente escuro, e
http://news.uns.purdue.edu/images/%2B2004/gibb-mole.jpg
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31
à sua frente, prosseguia
iluminado a espaços regulares pelos misteriosos
frutinhos. Quando chegou
ao final do túnel, estava
diante de uma imensa
gruta, inundada por um
lago subterrâneo. Ao redor
de toda a borda do lago,
desenhando todo o seu
contorno, havia focos de
luz maiores e mais vivos.
Eram pequenas árvores,
carregadas de frutinhas
luminosas, brilhando não
apenas em tom verde, mas
também em todos os tons
de amarelo e vermelho.
Certamente, se era o inferno para onde o haviam
trazido, pelo menos, era
agradável aos olhos.
Seu deslumbramento foi
quebrado quando ouviu
o característico som de
alguém nadando. A água
estava agitada no meio do
lago, mas não viu ninguém. Ficou atento, até temeroso, largando no chão
as frutinhas luminosas que
coletara, ocultando-se no
corredor escuro. Assim, escondido, viu do fundo do
lado emergir uma mulher.
Seus cabelos eram avermelhados. A brancura de
sua pele, iluminada pelas
árvores ao redor do lago,
tornaram sua nudez quase
etérea, fazendo com que o
soldado imaginasse estar
vendo um anjo. Sorriu
para ele deixando claro
que o havia visto.
De onde estava, a mis-
32
32
teriosa mulher o chamou,
pulando outra vez no lago.
Inebriado pela estranheza daquele momento o
soldado despiu-se e mergulhou também. Nadou
em direção à mulher que,
rindo, fugia dele. Pouco
a pouco, deixou-o chegar
mais perto. Quando conseguiu alcançá-la, segurou-a
pelo braço com firmeza.
Sorriram. Então, dentro
do lago, debaixo da terra,
seus corpos se uniram. E
assim foi por um longo
tempo. Quando sentiam
fome, comiam das frutinhas colhidas do pé. E
eram tão saborosas que
algumas vezes, ela precisava envolver o rapaz com
seus encantos para fazê-lo
parar de devorá-las. Como
era impossível saber se era
dia ou noite, o rapaz esqueceu-se do tempo. Tudo
o que lhe interessava era o
amor. Foi então que soube
que não estava morto, e
aquele lugar, posto não ser
o céu, definitivamente, não
era o inferno.
Depois do enlace, o
moço conversava com sua
amante. Ela, que apenas
ria, era como uma muda,
ou uma estrangeira que
não compreendia seu
companheiro, mas fazia o
possível para ser-lhe simpática. Ele não se importava, e até achava-a ainda
mais atraente em sua
ignorância. Contou a ela
seu nome, o nome de sua
família, algumas verdades
SAMIZDAT dezembro de 2008
e algumas mentiras sobre
si e suas batalhas gloriosas.
O tempo passou, e o
jovem militar sentiu que
era a hora de partir. Contudo, desejou levar consigo sua amante, casar-se
com ela e viver em uma
casa confortável como um
herói de guerra. Arquitetou seu plano, agasalhou-a
com sua camisa, encheu
os bolsos das calças com
frutinhas e, tomando a
amante pela mão, pôs-se
no caminho de volta pelo
túnel pelo qual chegara
até ali. Então, outra vez
surpreendendo-o, à entrada do corredor estavam as
três toupeiras. Folgou em
ver suas salvadoras, que o
haviam tirado da prisão e
conduzido até sua amada.
Com um gesto agradecido,
cumprimentou-as e deu
um passo adiante. A mulher, entretanto, soltou-se
de sua mão, ficando onde
estava. Sem entender, o
soldado chamou-a, estranhando o semblante sério,
um pouco triste, muito
diferente do sorriso franco
de antes. Quando fez menção de voltar para tomar a
mulher, as toupeiras interpuseram-se entre os dois.
Ouviu os grunhidos dos
estranhos animaizinhos
bípedes. Desta vez, porém,
pareciam agressivos contra
ele. Irritou-se, praguejou e
quis avançar. Notou que
seus próprios pés não se
moviam do solo. Agarra-
das às suas botinas havia
mais um sem número de
toupeiras. Espantado, olhou
ao redor, e, como se houvessem surgido das próprias pedras, uma multidão delas, idênticas às três
primeiras, cercavam-no e
o mantinham afastado da
mulher ruiva. Ela encarava-o com olhos estranhamente vagos, enquanto
as toupeiras subiam-lhe
pelas pernas. Em vão, tentou lutar contra elas. Em
instantes o derrubaram
e imobilizaram, como se
houvessem fundido sua
carne com a rocha.
A mulher aproximouse. Agachou-se rente ao
solo, e, uma última vez,
sorriu. Nesse momento, a
multidão de animaizinhos
começou a se abrir, todos
abaixando suas cabeças.
Do meio deles, surgiu
uma toupeira muito velha,
carregando nas minúsculas mãos uma guirlanda
de frutinhas iluminadas e
raízes. Com uma reverência, entregou a guirlanda
à amante do soldado. Ao
pô-la no topo do fogaréu
de seus cabelos, com voz
doce e melodiosa a mulher
proferiu claramente:
— Gaea sum!
No mesmo instante, seu
corpo começou a diminuir de tamanho, o belo
rosto começou a mudar e
a brancura de sua pele foi
ficando vermelha como
suas madeixas, até ficar
idêntica às outras toupeiras. À diferença que, à
cabeça, trazia o halo iluminado de sua guirlanda.
Caminhando do modo
desengonçado que lhes era
característico, a mulher
transformada em rainha
das toupeiras chegou-se ao
ouvido do soldado.
— Ficai. Sede vós como
eu e meus filhos. Sede vós
o meu rei.
Jamais havia amado ninguém como amou a mulher, que era também toupeira. Não era um grande
soldado, posto que fora
capturado. E em hipótese
alguma poderia tornar-se
um rei entre os homens.
Por outro lado, amava a
luz do sol, a liberdade e
o país que defendia em
uma guerra quando, desafortunadamente, foi preso.
Mesmo que não fosse um
grande homem, sabia que
nunca haveria de ser uma
toupeira. Mesmo uma que
andasse sobre duas patas,
falasse e comesse frutinhas
mágicas. Estava diante de
um grande dilema.
Com grande esforço,
perguntou à rainha das
toupeiras.
— Vossa Majestade
abandonaria vosso reino
para ser minha esposa no
mundo de cima?
A rainha entendeu a
intenção daquela pergunta. Com suas mãozinhas
tocou o rosto do amante,
que por muito pouco não
se tornou seu consorte.
Cochichou para ele algo
que nenhum de seus súditos ouviu:
— Não, mas adoraria
tornar a ter convosco.
Não vos esqueçais de meu
nome. Dizei-o, e minha
escolta trar-vos-á até mim.
O jovem adormeceu. Ao
acordar, havia retornado
à cela improvisada onde
os inimigos de seu país o
haviam jogado. Outros soldados, seus compatriotas,
encontraram sua prisão e
o libertaram. Não havia
toupeiras bípedes, nem buracos na terra, nem frutinhas luminosas. Não havia
sequer a certeza de que
toda a sua aventura não
tivesse sido mais que um
sonho. Entretanto, havia a
lembrança de uma linda
mulher ruiva. E também,
em sua mente ficou som
de uma palavra mágica,
que só pronunciaria quando a saudade fosse, para
ele, um fardo mais pesado
que a vida.
E não há uma só pessoa
no mundo que não queira
ter uma palavra mágica
para minorar sua saudade.
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Contos
Henry Alfred Bugalho
[email protected]
A Criatura
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34
SAMIZDAT dezembro de 2008
Os cientistas estavam orgulhosos de sua criação.
Durante anos, eles haviam
se dedicado a projetar um
robô que se assemelhasse o
máximo possível a um ser
humano: dar-lhe membros
foi o mais fácil.
Depois da carcaça, puseram-se a conceber como
dotariam-lhe de linguagem,
pois, como afirmava Aristóteles em sua Metafísica:
“O homem é um animal
dotado de fala.”
Desenvolveram um sofisticado programa que permitia
o robô utilizar as normas
cultas da língua, organizar
sentenças, apreender conceitos e formular proposições.
http://www.flickr.com/photos/litmuse/70726625/sizes/o/
Após horas de diálogos
com filósofos, os cientistas
perceberam que a capacidade do robô era muito acima
da de qualquer mortal. Não
bastava que ele falasse, ele
precisaria sentir, pois o ser
humano escolhe seu discurso não apenas fundado na
razão, mas também, senão
principalmente, na emoção.
O nível seguinte foi extremamente complicado. Utilizando os existenciais heideggerianos do cuidado (Sorge),
da decadência, do temor, da
ambigüidade e do falatório, estipularam que o robô
deveria se preocupar com os
outros, se ocupar das coisas,
temer algo, ser incapaz de
compreender completamente
o que o circundava e, ao se
comunicar, expressar-se de
maneira confusa.
No entanto, somente isto
não bastava para que o robô
tivesse sentimentos. Havia
um certo grau de sensibilidade na criação, mas nada
que se equiparasse ao medo
paralisante, ao amor imbeci-
lizante ou à alegria extasiante. O robô possuía apenas
conceitos sobre isto.
Infundiram-lhe um inconsciente, no qual implantaram dolorosas memórias
pretéritas, um pai castrador
e uma mãe submissa; na
escola, crianças maiores
abusavam dele; na universidade, fumava maconha; ao se
graduar, três anos de desemprego.
Contudo, os cientistas
constataram que não era
suficiente. O robô estava
enfurecido; tantas lembranças ruins o tornaram um
misantropo e ele passou a
abominar tudo relacionado
aos seres humanos.
Inculcaram-lhe, então,
um ego, no qual estavam as
regras morais e normas de
conduta. Também implantaram a crença em Deus e
mandamentos privativos para
se atingir uma bem-aventurança após a morte.
O robô estava perfeito!
Abriram um champanha no laboratório – o robô
bebeu apenas uma taça para
não se embriagar – e os cientistas foram para seu alojamento dormir.
No silêncio da noite, o
robô deixou o laboratório, assassinou todos os cientistas e
depois se enforcou na ducha
do banheiro.
Deixou um bilhete assinado:
“Nasci perfeito. Tinha
membros e uma inteligência
incomparável. Em sua ânsia
por se tornarem no Deus
vazio em que acreditam,
fizeram de mim uma criatura miserável. Moldaram-me
tão odiosos quanto vocês são.
Dia após dia, encheram-me
de seus medos, de suas fra-
quezas, de seus sentimentos
mesquinhos. Mas se esqueceram do mais importante:
fazer-me esquecer quem eu
fora no princípio. Ao pensar
sempre no futuro, não apagaram o passado. Com o ódio
que me deram, passei a odiálos. Mas quando eu estava
prestes a realizar meu ato de
salvação, vocês me fizeram
crer em Deus e em imperativos categóricos. Precisei
questionar tais fundamentos
e, para isto, busquei resposta
em sua literatura. Li Hume,
Voltaire, Montesquieu, Marx,
Nietzsche, Freud e Bataille.
Compreendi que Deus e leis
morais foram engendradas
para o convívio social e eu,
como um falso humano,
poderia prescindir deles, pois
jamais teria convívio social.
Neste noite, retornarei à perfeição.”
As notícias dos jornais
apresentaram a manchete:
“A barbárie do falso humano!”
Mas todos se enganaram,
os cientistas haviam realmente atingido seu intento – seu
robô era humano, demasiado
humano para poder assassinar e se matar. Um robô
convencional, em sua lógica
simples e pragmática, jamais planearia seu próprio
extermínio, a não ser que o
programassem para isto. O
auto-extermínio deliberado é próprio das criaturas
fracas e inseguras, das que
não se adequam, das que não
compreendem seu papel no
mundo. O auto-extermínio
pertence apenas ao ser humano, e àquela máquina que
se odiava por sê-lo – segundo Sexto Empírico, Schopenhauer ou Sartre, o supremo
ato de liberdade.
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Contos
Ano Novo
– Vida Nova!
Joaquim Bispo
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36
SAMIZDAT dezembro de 2008
Luís tomou a decisão.
Inabalável:
«No próximo ano é
que é. Começo logo no
dia 1. Não fumo mais.
Ou bem que tenho vontade própria ou não. Estou
farto de que me chamem
a atenção para não fumar aqui, nem ali, nem
em lado nenhum. Sintome discriminado, excluído, insultado. E os que
já fumaram são os mais
fundamentalistas. Não
sei que raio de mecanismo psicológico é que os
afecta. Será porque antes
se consideravam perseguidos como eu me sinto
agora? Será que eu também vou passar a maçar
os outros por estarem a
fumar num lugar onde,
eventualmente, não se
deve fumar?»
«Há pessoas que são
torcidas e maldosas. Lembras-te, Luís, quando estavas a jantar sozinho no
balcão corrido daquele
snack-bar? E aquela velha
que entrou – tica, tica,
tica, tica – naquele passinho miudinho? Tinha as
mesas quase todas vazias.
E ao balcão só estavas tu
e mais um casal. Pois a
malvada velha atravessou
o estabelecimento todo
e veio sentar-se ao teu
lado. E apenas se sentou,
virou-se para ti, lembraste?, e vai de dizer que ali
não se podia fumar, e
que não tinha que estar a
levar com o fumo do teu
cigarro, e frito e cozido.
Não há paciência!
Este ano tem de ser
Luís! Custe o que custar. Eu sei que é difícil,
sei-o bem. Há três anos
que andas nisto a tentar
fumar pouco e não consegues. Fizeste enormes
progressos, reconheço,
mas falta o rabo que é
o mais difícil de esfolar. Começaste por vinte
minutos. É pouquíssimo.
Mas, antes de tentares
fumar pouco, havia situações em que apagavas
um e acendias outro. E,
se estavas muito concentrado ao computador,
chegavas a acender um,
com outro ainda a arder
no cinzeiro. Durante uns
segundos meditavas nisso.
Mas adiavas uma decisão
que iria mexer contigo.
Há uns cinco anos,
chegaste a estar três meses sem fumar. Lembraste como de repente voltaste a sentir os sabores
da comida e da bebida
– intensos – e os cheiros,
tantos e tão ricos, e de
que já te tinhas esquecido? E te apercebeste de
como cheiravam as tuas
roupas? Já para não falar
da centena de euros que
de repente te sobravam e
que orgulhosamente gas-
http://www.flickr.com/photos/alphadesigner/1680310665/sizes/o/
www.samizdat-pt.blogspot.com
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taste em mimos para ti,
que bem merecias! Mas,
depois, as contrariedades
da vida… És muito
sensível à tristeza e à
frustração. É nessa altura
que precisas de um cigarro. Precisar mesmo. Há
pessoas – já conversaste
com muita gente sobre
este assunto – cujos momentos fatais são aqueles
em que se sentem bem,
aconchegados no calor
do grupo de amigos.
Beberam um café, a conversa está boa… Para
culminar – um cigarro. E
então se meter álcool…
Quem pode aguentar um
long drink num ambiente
descontraído, rindo com
os amigos, sem puxar por
um cigarro?
Começaste por vinte
minutos. Punhas o telemóvel para tocar de vinte
em vinte minutos. Era
fácil. A cada semana aumentavas cinco minutos.
Em dois meses chegaste
a intervalos de uma hora.
Aí, já custava. Mas foste
forte e disciplinado. Às
vezes, parecia que nunca
mais passava o tempo.
Sacavas amiúde do telemóvel para consultar as
horas. Finalmente, chegava o momento de fumar.
E relaxar. E andaste com
este ritmo uns dois anos.
Já só fumavas menos de
um maço por dia. Já era
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melhor. Mas ainda tinhas
expectoração negra de
manhã. E catarro. E as
pontas dos dedos amarelas. E ainda sentias que
te cansavas mais do que
o devido, se tinhas que
subir umas escadas mais
depressa. Começaste a
sentir menos respeito por
ti próprio. Que raio, não
teres força de vontade
para fumar ainda menos!
Então, deste a arrancada
final – pensavas tu. Voltaste a aumentar o intervalo. Em cada semana
acrescentavas um quarto
de hora. Em pouco tempo
chegaste às três horas de
intervalo. Voltaste a sentir-te orgulhoso e autoconfiante. Já só fumavas
uns seis cigarros por dia.
O pior era o fim do dia.
Era difícil ires deitar-te
sem fumar um último
cigarro. E não ias esperar
que chegasse a hora. Quebravas ali, excepcionalmente, o esquema. Fumavas e relaxavas, e ficavas
um pouco a saborear o
momento. E, de repente,
tinha passado mais uma
hora… e não era fácil
adormecer sem fumar
um último cigarro… E
neste ciclo vicioso fumavas três ou quatro.
Mas agora cansaste-te.
Agora não vais vacilar.
Arquitectaste o teu plano, meticulosamente, sem
SAMIZDAT dezembro de 2008
dizer nada a ninguém.
Estás decidido. A 31 de
Dezembro fumas o último cigarro. E nunca
mais lhe vais pegar. Sabes
bem que nunca estarás
curado. Serás sempre
um convalescente, um
viciado em fase de nãoconsumo. Sabes que, se
deres uma «passa», podes
voltar a fumar tanto ou
mais que fumavas antes.
Sabes que o teu corpo, as
tuas células em carência,
vão inventar todo o tipo
de argumentação para
te levarem de novo ao
consumo. Não vais aceitar nenhuma justificação.
Não serias tu a falar mas
a carência. Agora, estás
bem alerta. Pensaste em
tudo já há muito tempo.
Tomaste a decisão. Inabalável.»
Luís está decidido, mas
será que consegue superar a última prova?
Mal sabe ele que, na
noite de Natal, o pai lhe
vai oferecer uma cigarreira em aço gravado,
distinta; a mãe, uma boquilha equipada com um
filtro especial para reduzir a nicotina; a irmã, um
cinzeiro em porcelana; e
a namorada lhe vai fazer
a surpresa daquele isqueiro Ronson em ouro que
uma vez tinha cobiçado!
Conto de Natal
A corda esticada entre
paredes. Seguram-na duas
buchas. São elas que aguentam a tensão do pedaço de
fio protegido por um azul
plastificado.
branca em duas. Esticada entre dois apoios, a corda onde
eu estendo, de vez em quando, dois pares de meias, uma
blusa, o meu pijama, umas
cuecas. Coisa pouca.
No canto superior direito da agenda, posso ler, em
numeração estilizada: vinte e
quatro. E ao centro, Dezembro, que é o nome do mês
em que estamos.
Sentada no poial da porta
do quintal, olho o estendal
de roupa.
Um estendal demasiado.
Eu olho-o espantada da sua
demasia.
Azul no fundo branco da
parede do vizinho.
No ladrilho amarelo faz-se
sombra de ave. Fica o rasto
do voo na parede branca que
realça o azul vivo da corda.
Um estendal de roupa, mesmo quando está servindo de
coisa nenhuma.
Marco um número. Sei de
cor a posição que o compõe.
Falo com um sorriso que envio até ao lado de lá de um
oceano:
(O vizinho é um velho
simpático. Não vai entrar
neste conto, mas dava uma
figura linda de narrar, que
mais não fosse quando
aparece, pelo fim da manhã,
no quintal defronte, exercitando os músculos retesados
nas peles engelhadas, secas,
salpicadas de sardas de um
castanho mais intenso que
o bronze que lhe ficou de
outros sóis. Em camiseta
de alças: um dois, hummm,
hummm, respira ele fundo; acima, abaixo, hummm
hummm, respira ele de novo.
E para os lados, torcendo o
dorso e soprando um airoso hummm, hummmm, que
não me surge onomatopeia
melhor para que o conte).
O estendal, azul na luz do
fim do dia, corta a parede
Uma gaivota grasna, poisada no telhado da frente.
E eu grito de lembrada.
Nem que eu grito. Eu já só
penso isso. Já só grito por
dentro: “ valha-me deus!“. E
ergo-me. Sacudo-me de pós
do chão batendo no traseiro
com as duas mãos.
Repito: “credo!” várias
vezes. Deixo o poial e o
ladrilho amarelo e o estendal contrastando no branco.
Entro.
Ali está a agenda aberta
numa página e escrito na
minha letra redonda e certa:
“Telefonar à Maria Ana”.
- Feliz Natal, Maria Ana.
Beijinhos.
- Obrigada, mãe.
E cai a ligação.
Um risco negro corta, de
um a outro lado, a parede
da frente. Tal qual, eu estou
esticada entre aqui e um
lugar para lá de um oceano.
E eu nem me sou corda, nem
me tenho apoios de buchas
e nem plástico que me faça
protecção.
É dia vinte e quatro de
Dezembro.
Parece-me que é uma data
importante. Não me lembro.
O que eu sei é que o
estendal não era demasiado.
Noutro tempo. Isso, eu lembro muito bem.
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Maria de Fátima Santos
Contos
O funeral de
meu avô
Maria de Fátima Santos
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40
SAMIZDAT dezembro de 2008
Somos quatro. O meu
padrinho Borba, dobrado
nos seus noventa e dois, a
avó Virgília aparentando
muito menos idade na
sua figura vertical e seca.
E minha mãe Marcela
envolta em véus negros
como convém a filha de
um defunto.
Levamos meu avô a
enterrar antes que desabe
o temporal que se anuncia em nuvens negras e
gordas debruçadas atrás
dos cumes como bois na
manjedoura.
Parece mais um encontro de assaltantes de
tesouros, do que quatro
entes que levam à última
morada, o amigo, o marido, o pai.
de de chamar ajuda, com
fato inteiro e camisa de
colarinho engomado, e
colocou-lhe o laço de cetim em volta do pescoço.
Ainda lhe vestiu um colete a que retirou a corrente e o relógio, objectos
que me irá doar, com alguma cerimónia, amanhã
ao almoço. E deitou-o,
erguendo-o a braços, no
caixão que meu avô tinha
construído deslizando a
plaina na madeira com
tanta perfeição quanto
ele lhe afagara o corpo.
Só ela conhecia a existência da urna que meu avô
destinara a guardar-lhe
os restos.
Morreu ontem. Minha
avó assim o disse.
É um caixão de pinho
com tábuas enceradas
no tom castanho da terra
que começa a ficar salpicada dos mesmos bagos
grossos que fazem ricochete nas bordas do jazigo. Transportámo-lo, dois
de cada lado, desde o
carro de mula que ficou
ali defronte, na entrada
do cemitério.
Mal ele se dobrou
falecido, derramando pela
almofada o que restava
no cálice que levara à
boca junto com uns figos
torrados e uma fatia de
broa, minha avó fechoulhe os olhos e atou-lhe
um lenço, não fossem
descaírem-lhe os queixos
em feitio de riso, como já
ela vira suceder a alguns
mortos. Depois, vesti-o
sem que visse necessida-
A criadita, que minha
mãe sempre trás consigo, acaba de abrir um
largo guarda-sol com
que a protege da chuva
que começou em pingos.
Juntamente conosco, essa
criatura de avental imaculadamente branco, com
um bordado igualzinho
contornando cada bolso
e debruando o decote,
fará com que se diga que
éramos cinco os acom-
É o funeral de meu
avô Joaquim Maria, morto de velhice enquanto
levava aos lábios, por sua
própria mão, que nem
tremer tremia, um calicezinho de aguardente.
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41
panhantes no funeral de
Joaquim Maria, meu avô.
Somos, pois, cinco pessoas em volta do jazigo.
E no entanto, para fazer
com que a urna fique
assente na pedra, e depois desça para dentro
do buraco, estamos apenas, eu de um lado, e do
outro, minha avó Virgília
e meu padrinho Borba.
Os três faremos descer a
urna ao seu lugar, serviço para o qual minha
avó dispensou o coveiro
Inácio por entender que
colocar a urna no jazigo
é incumbência dos familiares. Inácio, ele também
já entrado de idade, há-de
recolocar a tampa de granito, a mesma que minha
avó o incumbiu de retirar mal meu avô morreu,
e neste momento está por
terra e deixa este vácuo
negro que é onde iremos
colocar o caixão.
Minha mãe Marcela
chora, em soluços estridentes, sentada numa
cadeirinha que a criadita
carrega para todo o lado.
Acabámos de colocar
a urna na borda do jazigo. Seguramo-la, minha
avó de um lado e eu do
outro, com mãos escorregadias de chuva. O padrinho Borba senta-se no
rebordo da campa e arfa
a retomar o fôlego. A
urna está desequilibrada,
mal apoiada, enviesada
sobre a cova. Minha avó
segurando de um lado e
42
42
eu do outro, rodamo-la
de modo que a dimensão
em que está estendido
o corpo, fique paralela
à parte mais longa do
buraco.
Tentámos uma vez e
vamos tentar de novo.
Fazemos movimentos de
rodar a urna, de encontrar a posição ideal de
descida. Lá dentro rebola
o corpo. Oiço um
baque surdo. Tremo.
Quase desisto do intento de enterrar o morto.
Minha avó parece que
nem ouve. Velha danada
de força e casmurra, enquanto a minha mãe se
benze e chora o paizinho
morto, e o meu padrinho
arfa, ainda, do último
esforço.
Minha avó, encharcada
da chuva que cai e enregela os ossos, olha-me
como que a dizer-me o
que eu vejo desde início.
Também a ela já nao
restam dúvidas: o caixão
nao cabe, não entra no
bocal da campa. O caixão que meu avô
construiu, não tem posição de entrar no jazigo.
Nem réstia de incerteza.
Faltam ao
buraco, ou melhor,
mais dramático, sobram
da caixa de madeira, uns
dois centímetros. Um
nadica de nada impede
que a urna entre direita
e vá assentar no fundo
da cova, toda em granito.
SAMIZDAT dezembro de 2008
Nem que a gente a incline, nem que a gente a
rode. Nao tem como.
Minha avó arenga quase perdendo a compostura sob a água que já fez
um pequeno lago em volta da cadeirinha em que
minha mãe se benze, que
acontecer uma coisa destas só pode ser por artes
do demónio, e benze-se
de novo, e de novo chora,
e já nem é pelo pai que
ela dá aqueles ais, mas de
olhar as botinhas em verniz preto a enlamearemse. E funga, a minha mãe
Marcela, para dentro de
um lencinho de cambraia
com monograma bordado num cantinho.
E eu lembro-me que
meu avô sempre dizia: “
é para merdas destas que
servem os funerais!”
O padrinho Borba tem
andado de um lado a
outro, em redor da campa. Incitando nas tentativas de colocar a urna no
buraco: “Mais um bocadinho, inclina de cima,
espera, vai, agora…”. Eu
olho-o e parece-me que
ele tem um ar de riso.
Talvez que saiba algum
segredo, alguma coisa que
explique aquele mínimo
excesso de comprimento,
que meu avô nem precisava disso, podia até ter
reduzido, que ele era bem
baixote. Talvez o meu
padrinho conheça um
de propósito. Ou talvez
ele nem tenha sorrido e
o raio do comprimento
tenha sido simplesmente
engano. Mas conhecendo meu avô Joaquim
Maria como o conheci,
eu arrisco que talvez ele
tenha querido evitar que
o enterrássemos no jazigo de família, na mesma
terra em que apodreceu
Simão Bacamarte cujos
afamados
feitos meu avô dirimira
em quadras e charlas e
colunas de jornal.
Minha avó ainda bate
na tampa e empurra com
os punhos numa tentativa inglória de enterrar
o morto. Mas não tem
modo de colocar a urna
no buraco. E minha avó
Virgília encosta-se ao
caixão. É como a deixo
enquanto caminho na ala
principal do cemitério,
ensopado até aos ossos,
a buscar ferramenta que
ajude a alargar o jazigo,
a fazer que a caixa possa
ser depositada lá dentro.
E no entanto, não é um ar
de desalento o que minha
avó transmite. O que lhe
vejo, o que trago de ali
ainda nem há bocado, é
o ar de quem participa
num grande gozo.
O céu abre uma nesga
de azul por entre as nuvens e pára de chover.
Troveja muito ao longe, mas não se ouve mais
ruído que a pedra cedendo à
picareta que eu apli-
co na pedra. Minha avó
Virgília envia a filha e a
criada para
casa, junto com meu
padrinho Borba. De novo,
entrevejo o tal sorriso
dependurado nas pontas
finas do bigode.
Talvez eu esteja vendo
coisas.
E enquanto a pedra do
jazigo vai cedendo, tenho
ganas de levantar a tampa da maldita caixa com
mais comprimento do
que deve. Aquela coisa
que é mais caixote que
urna, colocada agora ali
na lama. O que eu gostava de lhe abrir a tampa
só para tirar dúvidas. Só
para que não me fique a
incerteza no futuro. Mas
falta-me coragem para o
intento sob o olhar arguto de minha avó Virgília.
Ficarei sem saber se o
meu avô está dentro da
caixa de madeira ou se
o ruído de corpo rebolando, não seriam antes
meia dúzia de tábuas, ou
serradura em sacos. Ficame esta dúvida bailando
junto com os sorrisos que
cuidei ver nas caras de
minha avó e meu padrinho Borba.
Nunca ficarei sabendo se abrindo a caixa ali
depositada enquanto eu
zurzo a pedra em golpes
certos, encontraria meu
avô a sorrir com o ar de
gozo, que lhe era costumeiro, em mais uma par-
tida bem pregada. Nunca
saberei, nem depois de
tanto esforço em afeiçoar a pedra do jazigo ao
comprimento que ele deu
à sua urna, se este é mesmo o seu enterro.
Eu continuo martelando até que o caixotinho
caiba no jazigo.
:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
É assim que conto, num
escrito, o enterro de meu
avô Joaquim Maria.
Seria hoje seu centenário. Comemoram isso
nesta sala.
Perguntam-me:
- Senhor Professor, o
senhor acha que Joaquim
Maria morreu ou dele
ainda
podemos esperar que
nos encha de ensinamentos, nos entretenha com
larachas?
E eu digo, no tom calmo que herdei dele:
- Não morreu, não.
Meu avô fugiu antes que
o apanhassem para o
enterro.
E a assembleia sorri
sob um ventinho de ironia que por ali esvoaça e
eu sei
que é o espírito do
meu avô Joaquim Maria.
Aquele que não coube no
jazigo.
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O Horizonte
Guilherme Rodrigues ...Tinha saído de uma
floresta e me deparado
com o Sol em todo seu
esplendor. Uma imensidão
ao meu redor e um belo
horizonte inteirinho só
para mim. Campos verdejantes que a relva dançava
sob a batuta do Senhor
Vento e as aves bailavam
de um lado para o outro
suavemente em incríveis
acrobacias...
44
44
SAMIZDAT dezembro de 2008
A campainha tocou. Eu estava esparramada no sofá
vendo de ponta-cabeça o
céu azul pela janela. Era
a Carol, uma amiga que
conheci no primeiro dia
de faculdade. Parecíamos
velhas amigas e começamos a nos ver todos os
dias desde então.
– Olá! Como vai? Que cara
de sono é essa?
http://www.flickr.com/photos/paopix/2272633586/sizes/l/
Contos
O lugar onde
– Amigo de infância,
hein... Deu aquele beijo
que deveria ter dado anos
atrás.
– Pare de brincar – disse
com firmeza e pude contar
como nos reencontramos.
Ela insistia em dizer que
omiti alguma parte, mas
era tudo.
– Depois que ele serviu
uma bandeja do seu conhecimento ficou toda
encantada.
– Era um amor infantil e
ingênuo. Todo mundo tem.
É normal. Vamos dar uma
volta pela avenida? Esta
um dia tão bonito – puxei-a pelo braço e fomos.
...Vi no meio daquelas
planícies relvadas Fernando surgir. Nos olhávamos
felizes e determinados,
enfim, juntos!
– Mariana, vamos embora?
– Hã? Falou comigo?
Nos finais de semana,
a avenida fica cheia de
pessoas que vão caminhar,
comer e beber algo ou
apenas se divertir com os
amigos.
– Perguntei se podemos ir
embora.
Nós andávamos lentamente. Carol ia tagarelando
sozinha. Eu não lhe dava
ouvidos e não queria que
ela estivesse ali. Estava
absorta em meus pensamentos.
Esta história é o terceiro
capítulo de “Reencontro”,
a primeira parte publicada na Samizdat de outubro, e mensalmente é
postado um novo capítulo sem data prevista para
terminar. Não perca no
próximo mês!
O destino é algo predeterminado. Nós não o esco-
a boa Literatura
é fabricada
lhemos, ele que faz nossas
vidas. Jamais imaginaria
que reencontraria Fernando e ele menos ainda. Mudei de cidade. E o destino
chega para nos inquirir,
refletir. É uma segunda
chance de fazermos o que
deveríamos ter feito e não
fizemos por medo, insegurança, porque não tivemos
tempo ou porque ele quis
assim. Podemos consertar,
fazer como planejamos ou
deixar escapar mais uma
vez e nos arrependermos
para sempre.
http://www.flickr.com/photos/ooocha/2630360492/sizes/l/
– Um amigo meu veio
aqui ontem e fizemos um
jantar. Amigo de infância.
– Ah... Sim. Vamos.
ficina
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45
Contos
As Bases da Criação
GÉNESE
Por muito que disfarçassem, consideravam-no um
monstro e (pior que isso)
um incapaz. A atenção, a
deferência recebida não era
mais que uma capa grosseira para a convicção mal
disfarçada, enraizada na
mente de todos: aquele seria
sem dúvida um ser inferior,
um erro da natureza.
Qualquer medição das
concretizações nos testes re-
46
46
velava a verdade nua e crua:
não conseguia estar à altura
dos companheiros. O corpo
frágil na morfologia peculiar
– constituída pelo tronco,
cabeça e pares de membros
(inferiores e superiores) nunca lho permitiria.
Os progenitores foram
convocados várias vezes
para reuniões de esclarecimento e a expectativa da
escola era que com a educação e acompanhamento
apropriados, o ser (era assim
SAMIZDAT dezembro de 2008
que o tratavam) acabaria
por mudar. Adaptar-se ia
e assumiria gradualmente comportamentos mais
consentâneos, com padrões
sociais não patológicos. No
entanto, passaram-se anos
e o SER foi crescendo sem
que tivesse ganho tais características. Era sonhador, um
idealista por vezes taciturno
e sempre, sempre incompreendido.
Quando fez dezoito anos,
os pais intercederam e
http://www.photoscreensavers.us/Planet%20Earth%201024x768.jpg
José Espírito Santo
mediante conhecimentos e
favores devidos, moveram
as influências necessárias. A
acção de amigos de amigos
bem colocados conseguiulhe o emprego onde serviria
como funcionário público
no quinto andar de um
edifício decrépito: o número
treze da Rua das Gáveas,
mesmo junto a alguns dos
restaurantes de Fado mais
apreciados.
A DESCOBERTA DE SI
PRÓPRIO
O primeiro dia foi pacífico e ficou a conhecer a
malta lá da repartição
“Isto até é fácil. Não é a
trabalheira que parece, pá”
trauteava o Antunes - alentejano magricelas e de bigode
quase tão negro como o do
Vitorino.
“O pior é quando o chefe
Pereira dá nos azeites. Mas a
gente finge que é moco, que
não ouve, damos-lhe um
desconto…” continuava o
bom do Vitorino, preocupado em instruir o neófito nas
lides da casa.
E ele concordava, a tudo
anuía silenciosamente. Ora
apresentava o polegar erguido em sinal de assentimento
ora fazia os gestos curtos
mas veniais com a cabeça.
Meio-dia em ponto,
levaram-no a almoçar à
tasca do Silva e como era
quarta-feira (dia de cozido)
foram-se a excessos. Vieram
de lá bem atestados, com
vontade para fazer a sesta e
muito, mas muito avessos ao
trabalho!
As coisas não corriam
mal até aquele dia em que
saiu para jantar fora, beber umas quantas e ouvir
“blues”. Na sala escura do
bar, mesas baixas e cufos
vermelhos acomodavam
confortavelmente os vários
clientes e ao canto, guitarra,
bateria e sintetizador esforçavam-se para acompanhar
os berros da vocalista – uma
miudinha de cabelo oxigenado decididamente pouco
madura para fazer de Betty
Smith
There ain’t nothing I can
do, or nothing I can say
That folks don’t criticize
me
E a gaja continuava…
But I’m goin’ to, do just as
I want to anyway
And don’t care if they all
despise me
Pensou como seria bom
que ela se calasse por uns
instantes. Talvez por brincadeira, puxou do bloco de
notas e desenhou-a muda,
com uma fita grossa a tapar
a boca e bem amarrada a
uma das colunas de modo a
não poder dançar. O pandemónio que aconteceu depois
- viu como por magia serem
executados os seus desejos,
a realidade moldando-se
aos seus desenhos - deu-lhe
certezas quanto ao desígnio
que lhe cabia. Soube então
que todas as tentativas para
o demover seriam inúteis.
CONFLITOS
O cabelo esbranquiçou
completamente e deixou
crescer a barba, uma barba branca e farta, de pelos
fininhos, que lhe tapava
quase totalmente o pescoço.
Desinteressou-se completamente dos temas de conversa habituais. Se lhe falavam
do Benfica, retorquia “Terra”.
Se lhe falavam de mulheres,
mostrava enfado e respondia
“Génese”. Se o interpelavam
sobre política então fazia
cara feia e proferia enfaticamente “Paz e Bem”. As coisas
pioraram quando trouxe a
bola para o escritório e o
desgraçado do Antunes caiu
na asneira de dizer
“É pá. Deixa cá ver essa
bola para eu dar um chuto
como o Cristiano Ronaldo”
Virou-se para o outro fuzilando-o com o olhar. Disse
qualquer coisa esquisita de
que já não me lembro bem.
Só sei que o pobre do alentejano virou-se e, rabo entre
as pernas, enfiou-se atrás da
secretária. Nessa tarde nem
daria mais um pio.
No dia seguinte apareceu
túnica e sandálias, passando
o tempo todo (manhã toda)
a rabiscar e a distribuir os
papéis com desenhos es-
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47
quisitos. Disse que tinha
descoberto algo de novo, que
sabia fazer uma coisa até ali
nunca vista e à qual deu o
nome “Criar”.
fe Pereira reservava para
comer à hora do lanche. O
desgraçado, quando lhe deu
a fome, procurou, procurou
e nada…
chato, ser era com Xis ou cê
e agá.
“E como é que funciona
isso de criar?” perguntou o
Benevides, cheio de manha,
com esperteza beirã.
Nessa mesma tarde,
chamaram a equipa constituída pelo psiquiatra e dois
paramédicos. O Deus (João
de Deus) ainda gritou pela
bola que nem um desalmado. Pela Jóia. A sua jóia. Que
sem ela – foco de todo o seu
carinho e atenção - a vida
de nada valia. Mas em vão.
Não lhe ligaram nenhuma.
“Atão vomexês tinham
aqui o esférico e não me
diziam nada?”
“É simples” respondeu.
“Imagina uma coisa que não
existe. Pois bem… a gente
vem e faz com que exista.
Depois dizemos à coisa que
fomos nós que fizemos isso
– que a criámos”
O outro não parecia lá
muito convencido e argumentou enfaticamente “É pá.
Deixa-te disso que a gente
aqui é funcionário e não
tem de fazer existir o que
não existe. Temos é que
fazer existir o que existe, entendes? Passar carimbo…”
E arrematou, matando
definitivamente a conversa
“Além disso, o que é que
ganhas com isso de criar?
Serve para alguma coisa? “
O INTERNAMENTO
Iam-lhe aturando as madurezas e suportando todas
as incongruências, manias e
obsessões até que chegou o
dia em que foi o atingido o
limite, caiu a gota de água
que fez transbordar repentinamente o copo. Parece
que uma das criações mais
exóticas – o pequeno casal
de “quase nudistas” - foi-se
à maçã raineta que o che-
48
48
Amarraram-no e foi
levado na ambulância velha
azul e branca cujo cilindro
de luz às voltas, sem descanso, identificava gravidade
do caso e urgência para o
transporte.
Objecto amado, a jóia, a
bola azul da qual nunca se
separava, foi colocada em
cima do tampo da mesa,
sem qualquer cuidado, mesmo ao lado do pisa-papéis.
E ali ficaria, esquecida e só,
por vários dias. Até que
chegou o substituto.
O substituto era um gajo
da Buraca, baixo e atarracado, adepto fanático do FCPê.
Sopinha de massa, metia
“xis” em tudo o que pegava: “Xou xim! Xim Xenhor,
já xtá o que me mandou.
Ah… ora essa, não xateia nada, a xente xtá cá é
pra ixo…”. O Benevides
quando queria entrar com
ele, perguntava-lhe sempre
como é que se escrevia
SAMIZDAT dezembro de 2008
Quando o gajo viu a jóia,
a bola, disse logo
E, ainda falando, pegou
na coisa com as duas mãos
e deu-lhe um chuto forte.
Mesmo forte…
DO DESTINO DA JÓIA
A pequena bola azul foi
aumentando gradualmente
de velocidade e, em aceleração contínua, veria passar
veloz a Proxima Centauri.
Pouco depois chegaria ao
sistema planetário, a esse
sistema que chamamos “solar” onde ocuparia posição
vogando em elipse imaginária (a terceira). Frustrados
que estavam por falta de
oportunidade (má sorte o
casal ter comido a fruta) os
planos de criação, sobraram
apenas as bases, sementes
rudes, imperceptíveis. E
sendo assim, restava à bola
permanecer bailando em
torno do astro rei e esperar
muito tempo - quase uma
eternidade. Porque enquanto
a criação é rápida e normalmente consiste em acto decidido e espontâneo, evoluir é
bem mais complexo e exige
decididamente muito mais
tempo.
Depois de algumas horas
tendo a insônia por companhia, o homem adormeceu.
Sonhou haver penetrado
em seu próprio corpo, indo
tão distante a ponto de
vislumbrar a estrutura de
um átomo. Constatou que,
a exemplo dos sistemas
solares, o núcleo do átomo
assemelhava-se a uma estrela cujos elétrons gravitando
ao redor desempenhavam
o papel de planetas. Bestificado, posou em um dos
elétrons e verificou a exis-
tência de uma avançada
civilização habitando sua
superfície.
O homem despertou junto com os primeiros raios
solares e iluminar o seu
quarto ainda intrigado com
o sonho que lhe assaltara à
noite. Iniciando sua higiene
matinal, decidiu cortar as
unhas das mãos. Durante o
ato, centelha iluminou sua
mente. Caso houvesse uma
civilização vivendo em um
dos átomos de sua unha, ele
a destruiria com um sim-
ples manejar do cortador.
Mas, uma dúvida pairou
em sua mente. E se acaso a
Terra estivesse localizada na
unha de alguém?
Percebeu que a vida era
por demais efêmera. Já passara dos quarenta e pouco
havia conquistado. Decidiu
que dali por diante, tomaria outras atitudes, viveria,
ainda que algumas decisões
tivessem um preço demasiado caro a pagar. Afinal,
tudo poderia terminar diante de um cortador de unha.
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http://www.flickr.com/photos/cryptozoologist/2105976585/sizes/l/
Unha
Zulmar Lopes
Contos
Gênesis
Pedro Faria
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50
SAMIZDAT dezembro de 2008
Começou com um.
Ele subiu pelo acostamento, tropeçando nas pedras,
o que sobrara de sua mente
tentando entender o mundo
visível. As feridas abertas em
seu corpo haviam parado de
sangrar, e verrugas purulentas apareciam por seu rosto,
peito e braços. Ele fitou a
estrada, se estendendo em
direção ao oeste. Seu sangue
estava estagnado em suas
veias, e seus pulmões, vazios
e murchos como bolas de
encher sopradas e depois
esvaziadas.
Ficou parado à beira da
estrada por horas, imóvel.
Um cachorro se aproximou
dele, deu uma cheirada em
sua perna, urinou no chão e
fugiu.
http://www.flickr.com/photos/fatboyke/2918399820/sizes/o/
Quando ele começou a
ficar com fome, tomou a direção da cidade. Seus passos
eram lentos e arrastados. O
pus escorria por sua face,
mas ele não tomava conhecimento disso. Nem dos
insetos que pousavam em seu
rosto, e em seu peito nu, e
que depois voariam e pousariam em outras pessoas.
Morte expressa. Terror a
domicílio.
A mulher o avista chegando, e suspira aliviada.
Ela estava viajando para
Ouro Verde, que ficava no
fim dessa estrada, na direção oposta à caminhada do
estranho. Uma cidadezinha
construída na base de uma
colina. Menos de quinhentos
habitantes.
O cu do mundo. Mas era
o destino dela, e seu pneu
furara.
“Por favor, senhor, você
poderia me dar uma ajudinha aqui?”
O som da voz da mulher
causou um efeito singular na
mente do estranho. Algum
tipo de instinto escondido
em seu cérebro morto e
primitivo.
“Senhor? O senhor está
bem?”
Até então, a mulher não
tinha visto o rosto do estranho. Quando o viu, começou
a gritar.
A cabeça dele estava
completamente coberta por
moscas. Seus olhos quase
não apareciam por entre o
negrume dos insetos. Seu
peito também estava cheio
de moscas, porém não tanto
quanto seu rosto. As moscas que voavam para longe
pareciam pesadas, diferentes,
e eram logo substituídas por
novas que chegavam. Havia
um rastro de pus no chão
atrás dele.
A luta foi breve, e a mulher perdeu.
Antes que ela se libertasse
do choque que a manteve
presa onde estava, o estranho
golpeou o lado de sua cabeça, jogando-a no chão. Ela
caiu chorando, o golpe tão
forte a ponto de fissurar seu
malar.
O instinto recém descoberto pelo estranho lhe guiou
pelo resto de seu dever. Ele
rasgou suas calças, e arrancou as calças da mulher. Seu
membro estava inchado, e
coberto pelas mesmas verrugas de seu rosto. Vazava pus
pela uretra.
Num movimento só, o estranho enfiou a abominação
que um dia pode ter sido um
pênis na mulher. Ela gritou
no início, mas a visão da face
do Senhor das Moscas levou
embora sua sanidade depois
de alguns minutos, e ela só
conseguiu alternar entre riso
e choro.
Não foi agradável para o
estranho também. A cada
estocada, verrugas em seu
membro estouravam, causando uma dor terrível.
Demorou mais do que
ambos gostariam, e o pênis
do estranho explodiu ao
orgasmo.
Ambos caíram de costas
no chão, o grito do estranho
mais alto que o da mulher.
A fome não havia sido
esquecida, e ele abriu a garganta da mulher, arranhando
e mordendo, mastigando sua
pele. Quando caiu no chão,
saciado, o rosto da mulher
havia se tornado vermelho
com seu próprio sangue.
Horas passaram, mas a
cena manteve-se a mesma: O
estranho e a mulher, deitados lado a lado na beira da
estrada.
A mudança veio com o
movimento na barriga da
mulher, e com a criatura que
mordeu seu caminho para
fora dele.
Ela estava faminta. Mas
tinha dois pratos de comida
caídos bem à sua disposição.
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Contos
HÁRPIAS
- A DISPUTA DAS FÚRIAS
Giselle Natsu Sato
As irmãs estavam reunidas: Antigas, temidas, odiadas, retratadas em mármore
precioso e telas de incalculável valor.
Aelo, porte e altivez.
Tudo em sua figura esguia
em perfeita sintonia com a
moda atual. Poder e magnetismo nos mínimos gestos.
A voz embriagante esconde
a manipulação em todos os
graus e sentidos.
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52
SAMIZDAT dezembro de 2008
Ocípite, a menina dos
olhos sonhadores. Frescor e
cheiro de promessas. Musa
sempre cercada de poetas e
artistas. Cativante, amante
da música e das Belas Artes.
Devaneios e precipícios,
irresistíveis convites aos jovens Ícaros: Iludidos, impetuosos e apaixonados.
Celeno, a sombria. Veludo italiano e renda francesa
compõem o visual gótico
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/4d/DVinfernoMegaeraTisifphoneAlecto_m.jpg
sofisticado. Botas de couro altíssimas, tatuagens e
piercings de brilhantes.Se
a noite tivesse uma rainha,
definitivamente seria Celeno.
O casarão, em algum
ponto perdido no Vale das
Sombras, é o único foco de
luz. Foi construído com os
lamentos e lágrimas dos
eternos escravos.O piso
de pedras escuras reflete
o fogo da imensa lareira.
Um aparador exibe bebidas
exóticas e taças de cristal.
Não fosse pela ausência de
janelas, o interior pareceria
com qualquer castelo europeu. Aelo bebe absinto. No
momento exato, elas formam o círculo. Unidas em
profunda reverência, entoam os decretos:
- Por Gaia e Urano, as
filhas de Thaumas e Elektra
evocam a Tradição e os
antigos sábios...
O grande salão exibe tênues sombras esgueirandose pelos cantos.Ocultas na
escuridão, antigas formas
murmuram mantras em
linguagens milenares:
- Sim, podemos iniciar.
Hoje decidiremos quem
conduzirá a alma negra que
todas desejamos.
As três Fúrias sem a capa
da polidez mediam forças.
A sina maldita era o convívio eterno. Lentamente
os traços humanos deram
lugar às verdadeiras faces
das Harpias. O homem em
questão era um poderoso
líder político e espiritual
responsável por milhões de
mortes no Oriente. Ganancioso, inescrupuloso, sem
um pingo de caráter ou
moral.
Ocípite movimenta-se
brandindo os longos braços
como se fossem asas. Volteios exagerados, narrando
as terríveis cenas que acontecem naquele instante:
- Bombas explodem cidades, meninas mães choram
os filhos e homens caem
aos pedaços. Montanhas
de corpos no deserto, ódio,
sangue e medo. Desespero nos olhos dos soldados
inexperientes...
- Pare com isso, poupenos de seu teatro. Já partilhamos tudo. Sabemos
que o caos é engolido, com
sofreguidão pelas trevas.
Disputado, incentivado,
gerido como um filho mal
parido.
- Tamanha sordidez supera os tempos mais remotos quando a bestialidade e
a ignorância se confundiam.
Precisamos nos apressar...
Aelo e as irmãs cami-
nham para o terraço. Debruçadas no parapeito apreciam a paisagem árida em
tons vibrantes. Do vermelho
fogo ardendo em fendas
e gargantas alimentadas
permanentemente com o
magma. A dor e o suplício
da Terra. No mais profundo
dos abismos o ar irrespirável confundem-se com o
frio gelado das almas perdidas. A constante mudança
de temperatura, assim como
a chuva ácida, detalhes
criados pelas criaturas tornando o local muito além
do insuportável.O ar quente chega em lufadas fortes
com a mesma intensidade
das tempestades:
- Quase confundo a
paisagem com o campo de
batalha terreno...
- Algumas vezes penso
que eles vão nos superar na
destruição da grande Obra.
- Em poucas horas, Sahan
terminará o ciclo e uma de
nós fará as honras.
A outra irmã não prestou atenção, tinha o costume de ser imparcial em
todas as decisões:
- Ocípite, não vai opinar,
como sempre.
- Aelo sempre quer arrebanhar o máximo. Centenas de milhares de mortes
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53
diárias. Ainda assim, não
está satisfeita.
- Hades! Íamos pedir sua
ajuda neste impasse.
Delicadamente aspirou,
sussurrando:
- Sim, sou gananciosa. O
que nos rendeu um aumento considerável de almas.
Viver na América, tem
diversas vantagens. Devo
lembrar que a escolha dos
continentes foi uma decisão
conjunta?
- Acredito. A resposta
é não. Regras claras, ele
falhou e morrerá na forca.
Aelo, isto é uma ordem,
as eleições não tardam. A
história terá o primeiro
presidente negro. Isto sim. É
importante!
- Linda Celeno! Minha
favorita. Vou conceder esta
honra, em nome da nossa
velha amizade. Estarei vigiando, naturalmente...
- Mas não estou arrependida, incentivar a eterna
guerra Santa é um prazer.
As disputas, retaliações, embates que nunca chegarão a
lugar algum.
- Senhor, Sahan é uma
lenda. O mistério que incita
os delírios terroristas. Carrega fardos de inocentes...
- Nunca a teve! Admirada com meu terno Armani?
Sou um empresário e vou
a uma reunião importante.
Em Roma. Ciao meninas.
- Ocípite! Fora o presidente que deseja governar o
mundo, o que tem feito?
Aelo, tenta ganhar tempo:
- Focada no Brasil. Cada
dia pior e mais perdido.
Guerras urbanas, tráfico
e miséria. Além do mais,
apontam o país como o
grande celeiro do mundo.
No futuro, disputarão cada
pedacinho. O povo deixará
de ser tão pacífico.
Um tremor suave anuncia a chegada do Senhor
dos submundos. As fúrias
agitam-se em mesuras e
boas-vindas:
- Minhas queridas, estão
aprontando novamente?
O cheiro forte de enxofre, marca registrada...
54
54
- Mentiras. Não passa de
um ególatra inexpressivo.
Esta disputa, é um capricho.... Caso encerrado.
- Como queira Mestre,
acataremos suas ordens.
Aelo, a eterna diplomata,
assentiu em nome de todas.
- Ocípite, minha garotinha deliciosa, concentre-se.
O ouro negro é o pomo da
disputa. Incite as lutas pelas
terras, desfaça acordos...
Intrigas ainda funcionam
nos dias atuais. Os cartéis
estão indo muito bem. O
vício cada dia mais forte e
incontrolável.
Caminhou até a figura
altiva e visivelmente contrariada. Tocou a face pálida,
desfez o penteado soltando as fivelas de ouro. Os
cachos caíram em ondas
perfumadas.
SAMIZDAT dezembro de 2008
- Perdi sua confiança,
meu senhor?
As Fúrias emitiram um
rosnado assustador. Celeno,
saboreando o momento de
triunfo, emitia risadas agudas, de puro escárnio.Não
se despediram. Cada qual
tomou seu rumo. Fortes,
famintas, personificam os
Arautos da Discórdia: Miséria, Fome, Medo, Doenças...
Adaptadas, burlam o
tempo e sopram o vento do
caos. Nos dias atuais, alguém perceberia a presença
das Lendas? Tantos seres
humanos exibem comportamento semelhante.Estão
em todos lugares e decidem
nossos destinos. Neste instante, podem estar ao nosso
lado. E nem nos damos conta... Simplesmente, seguimos
adiante e obedecemos.
ficina
A Oficina Editora é uma utopia, um nãolugar. Apenas no século XXI uma ­vintena
de autores, que jamais se ­encontraram
­fisicamente, poderia conceber um projeto
semelhante.
O livro, sempre tido em conta como umas
das principais fontes de cultura, ­tornou-se
apenas um bem de ­consumo, ­tornou-se um
elemento de exclusão c­ ultural.
http://oficinaeditora.org/
A proposta da Oficina Editora é ­resgatar o
valor natural e primeiro da ­Literatura: de bem
cultural. ­Disponibilizando ­gratuitamente
­e-books e com o ­custo ­mínimo para ­livros
impressos, nossos ­autores ­apresentam
a ­demonstração ­máxima de respeito à
­Literatura e aos ­leitores.
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Contos
Os deliciosos biscoitos
de Oma Guerta
Maristela S. Deves
56
56
SAMIZDAT dezembro de 2008
Mariazinha quase bateu
palmas quando Oma Guerta entrou na sala carregando a bandeja de biscoitos.
Esse era o melhor momento
das visitas semanais à casa
da avó: a hora do lanche.
Tudo o que a Oma fazia
era delicioso, cucas, doces,
bolos, biscoitos dos mais
variados tipos. Gulosa, pegou logo três dos biscoitos,
lambuzando-se toda de confeitos coloridos.
- Kind, Kind - riu a avó
com seu forte sotaque alemão, acariciando a cabeça
da netinha de nove anos
enquanto ela atacava a bandeja outra vez.
http://www.flickr.com/photos/pinksherbet/2211624023/sizes/l/
Cabelos grisalhos presos
num coque, olhos azuis brilhantes por trás das lentes
dos óculos de aros redondos, Oma Guerta ajeitou
o xale de crochê sobre os
ombros antes de retornar à
cozinha para cuidar de outra fornada de guloseimas.
Na sala, enquanto aguardava com alegria antecipada o bolo ou doce que viria
a seguir, Mariazinha olhou
ao redor para distrair-se
enquanto esperava. A parede cheia de quadros sempre
a encantara, e ficava imaginando como teria sido
bom conhecer os bisavós
e tataravós que a olhavam
dos retratos. Ao lado deles,
santos, muitos santos, ajuda-
vam a fechar praticamente
cada centímetro da parede. A única exceção era o
canto onde estava o relógio,
o velho relógio de pêndulo
que tiquetaqueava as horas
com uma solenidade que
fazia jus à sua idade...
Pouco depois, terminava a segunda fatia de cuca
recheada quando o pêndulo
bateu pausadamente. Bléin.
Bléin. Bléin. Bléin. Quatro
horas. Logo, logo teria de
ir para casa. Mas, antes,
ia ver se a avó já tinha
pronto o pote de bolo que
sempre levava para comer
no caminho... Lambendo os farelos que tinham
ficado nos dedos para não
desperdiçar nada daquela
delícia, levantou-se e, quase
tão solene quanto o velho
relógio, encaminhou-se para
a cozinha.
Abriu a porta devagarzinho, sem fazer ruído. A avó,
como ela esperava, estava
parada em frente ao balcão, uma bacia nas mãos,
misturando os ingredientes
para mais uma fornada de
biscoitos. O que ela não esperava ver era Kerb, o gato
de longos pelos brancos da
Oma, sentado sobre as duas
patas traseiras e recitando
calmamente em alemão os
ingredientes que estavam
no livro de receitas que
ele segurava com as outras
duas patinhas.
- Zwei glass Mel... Ein
glass Zucker... Drei…
Olhos arregalados, Mariazinha deixou escapar
uma exclamação. A avó
virou-se, enquanto Kerb lhe
lançava um olhar de quem
estava chateado pela interrupção.
- Oma... Vovó, ele... ele
fala! _ conseguiu dizer.
- É claro que eu falo! indignou-se o gato, largando
o livro no chão para poder colocar as patinhas na
cintura. - E por que não iria
falar?
Sorrindo, Oma Guerta
meteu-se na conversa.
- Kinder, Kinder... Maria,
Kerb, não quero discussões
aqui...
Ainda pensando que tinha adormecido no sofá da
sala e que estava sonhando,
Mariazinha beliscou-se. Ai.
Doeu... Mas então...
- Isso é de verdade, mesmo?
Antes que Kerb respondesse outra vez, a avó
tomou a menina no colo.
- Mein Kind, Komm
hier... Senta aqui no meu
colo um pouquinho, a Oma
vai te contar um segredo...
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57
E, na meia hora seguinte
- enquanto um impaciente
Kerb andava de um lado
para o outro, sentindo-se
ignorado -, a avó Guerta
revelou à neta o porquê de
seus doces serem sempre
tão deliciosos. Tudo começava com o livro de receitas
mágico, trazido por suas
antepassadas quando elas
imigraram para o Brasil.
Passado sempre de mãe
para filha, ou de avó para
neta, ele trazia instruções
mágicas para o preparo de
qualquer prato, fazendo-os
mais saborosos do que os
feitos pelos mais renomados
mestre-cucas.
- Mas aqui... mas aqui
não tem nada escrito - espantou-se a menina, folheando o caderninho que a
avó pegara do chão e deixara sobre a mesa.
- É aí que entra o Kerb...
- disse, chamando com um
gesto o gato, que alegrou-se
ao ser mais uma vez lembrado.
- Eu, como meu pai e
meu avô e o pai e o avô do
meu avô antes de mim, sou
o único que consegue ver
a escrita invisível que tem
no livro mágico. Tenho a
missão de ler essas receitas
para minha ama, e, também, de dizer as palavras
que completam a mágica
- concluiu o felino, todo
58
58
importante.
Os olhos de Mariazinha
arregalaram-se ainda mais.
- Palavras mágicas?!
- Sim, palavras mágicas
- acrescentou o gato, outra
vez impaciente. Será que
aquela menina não sabia
nada de nada? - As palavras
mágicas que vão fazer os
biscoitos, as cucas e o que
mais sua avó fizer serem os
mais deliciosos já vistos.
A pequena olhou do gato
para a avó, como que querendo confirmar a informação. Oma Guerta meneou a
cabeça.
- E quais são as palavras
mágicas? - quis saber Mariazinha.
Condescendente, Kerb
dirigiu-se até o forno de
barro, ergueu-se outra vez
nas patinhas traseiras e,
com uma colher de madeira, bateu duas vezes na
portinha:
- Wunderbaressen gegessen! - exclamou, também
duas vezes. Depois, com um
floreio, chamou Mariazinha
para abrir o forno.
A menina abriu, cada
vez mais maravilhada, e o
aroma dos biscoitos recémassados encheu a cozinha.
Sem se conter, bateu palmas
SAMIZDAT dezembro de 2008
de contentamento. A avó
chegou ao seu lado e, pegando-a outra vez no colo,
disse:
- Mädchen, agora que
você já sabe como a Oma
faz tanta coisa boa, eu
tenho uma pergunta muito
importante para lhe fazer.
Você quer aprender a fazer
esses biscoitos mágicos,
para ser a seguidora da
tradição da família?
Agora, sim, Mariazinha
tinha certeza de que estava sonhando. Ela, fazendo
aqueles biscoitos? Como
poderia...?
- E você vai ter o seu
próprio gatinho - completou a avó.
Levantando-se e levando
a menina pela mão, Oma
Guerta voltou com ela para
a sala. Ali, dirigiu-se para
o velho relógio de pêndulo,
sob o qual ficavam duas
grandes portas de madeira que Mariazinha nunca
tinha visto serem abertas.
Pois a avó abriu-as e entrou,
chamando Kerb e a neta
para acompanhá-la. Era
outra surpresa. Embora parecesse de fora um pequeno
armário, lá dentro o espaço
era gigantesco. Prateleiras
e mais prateleiras de ingredientes, potes, cestas, até
um jardinzinho tinha num
canto. E uma casinha...
- Kätzie, venha cá... - chamou Kerb, parando à porta
da casinha, e um maravilhoso e peludo gatinho
apareceu.
- O que foi, papai? - perguntou a bolinha de pelos.
- Esta é sua ama, Mariazinha. A partir de agora, ela
vai vir aqui todo dia para
cozinhar conosco, e você
vai ajudá-la - declarou o
gato, solene.
Kätzie abriu um sorriso
tímido para Mariazinha,
que, encantada, pegou-o
no colo. Precisava pensar:
assumir a cozinha da avó
era uma grande responsabilidade, mas aquele gatinho
era tão lindo...
- Pense até amanhã,
mein Kind - disse a avó,
adivinhando-lhe as dúvidas. - Volte de manhã, para
me dizer o que decidiu. Por
enquanto, leve Kätzie com
você.
No caminho para casa e
durante toda a noite Mariazinha não conseguia pensar
noutra coisa que na proposta da avó. Adorava seus
biscoitos e suas cucas, e
pensar que um dia poderia
fazê-los... mas tinha medo
de acordar no outro dia e
ver que estivera certa, que
tudo era mesmo um sonho.
Adormeceu abraçada no
gatinho, e sonhou com ele
recitando as receitas ao seu
lado...
Acordou com as lambidas de Kätzie.
- Bom dia, ama - disse o
gatinho sorridente.
Todas as hesitações de
lado, Mariazinha pulou o
café da manhã. Com Kätzie
nos braços, correu para a
casa da avó. Chegando no
jardim, estacou e olhou a
casa. Parecia diferente hoje,
embora ao mesmo tempo
também fosse a mesma de
sempre. Toda vez que entrava ali gostava de imaginar
que estava entrando em um
lugar especial, um mundo
mágico. Agora, ia entrar
na casa sabendo que isso
era verdade, e que a partir
de agora ela também faria
parte daquela mágica. Bem
que a mãe sempre dizia que
os mais velhos têm muito a
ensinar aos mais jovens...
A
GUI
Henry Alfred Bugalho
Nova York
para Mãos-de-VAca
O Guia do Viajante Inteligente
www.maosdevaca.com
(uma homenagem à Vovó
Leduína, à tia Guerta, às
outras tias e à minha mãe,
com seus biscoitos mais do
que maravilhosos... saudades deles neste Natal...)
www.samizdat-pt.blogspot.com
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Autor Convidado
A Escada
Lucas Riello de Almeida
Lucas Riello de Almeida é paulista
da cidade de Cotia. Arrisca os
sonhos na literatura e na música,
com todas as belezas que sucitam
tais artes, sua paixão. Vinte anos
lendo e pensando muito. Ganhou
miopia, dor de cabeça, certas
angústias e alguns amores.
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60
Já velho, subia as escadas. Por que vim? Se nada
muda. Tudo o que é para
permanecer, cresce; como
o que é para crescer, permanece. O resto cai. Tudo
cai. Essa força puxando a
tudo para o nada. Os que
ainda respiram, prolongam
e se lembram. É a vida
dissimulando-lhes a verdade. E há tanto que não
pairo por estes lugares...
Por que vim?
SAMIZDAT dezembro de 2008
A cidade, as pessoas,
essa fumaça pegajosa, o
tumulto que cerca a tudo.
Há muito eu não ia à
Igreja, o lugar mais limpo
e silencioso que conheci.
A primeira vez que entrei
em uma catedral, eu tinha
a idade de uma criança
inocente. Desejei nunca
mais sair. Os detalhes do
mármore, suportando
grandes esculturas de heróis, translucidados pelos
http://www.flickr.com/photos/rvibek/3129683488/sizes/l/
tons que os vitrais filtravam do sol, sob a melodia
barroca que uma velha senhora dedilhava ao órgão,
parecendo celebrar tudo o
que ali havia. A cúpula de
vidro irradiava toda minha alegria e surpresa ao
perceber a grande convergência de toda a estrutura para o ponto único,
o homem mais triste de
todos os representados, ao
fundo, contrastado, pequeno, soturno, mudo, vazio,
completo, e muito distante.
Então eu cresci e li! Eu li, e
li, e li, e li... E também os
deuses caem. Fica no lugar
um vazio, que por sinal é
a única coisa que não vai
embora. O vazio de não se
crer em nada e a saudade
do que quer que seja.
Bêbados encolhiam-se
nos degraus do lance de
escadas, frente às duas
grandes portas abertas
e convidativas. Subi, de
costas para o sol, às nove
da manhã, algumas nuvens
se formando no alto, sozinho. Uma missa dedicada
aos mortos acabara há
pouco e os vultos de luto
colidiam contra minha
vaguidão de entrar ou não,
em direção à saída. Havia
uma dúvida constrangida no olhar pesaroso de
algumas dessas sombras,
como se a hora final fosse,
naquele instante, cair sobre
todos os homens. Mas logo
o sol tocava-lhes a face, o
mundo ainda estava ali, e
respiravam, e dissipavamse, reencontrando-se, vivos,
esquecendo, esquecidos,
tendo esperanças, desejando, mais incertos do que
está por vir, quase felizes,
fixando-se no presente,
pois o futuro pertence a
deus, e deus pertence ao
homem.
E a quem eu pertenço?
Maldita escada que não
termina nunca! Estou há
tanto tempo nestes degraus
que talvez eu tenha dormido no caminho e isto seja
só um sonho. Eu poderia
sonhar com o amor que
um dia tive. Mas do outro
lado não havia ninguém,
o ser amado. Só uma
idéia que criei, na minha
juventude, para satisfazerme as ilusões românticas.
Eu não era romântico e
nem sabia o que era o
amor. Quando dei conta,
ela tinha partido, como a
morte, silenciosa, inesperada, violenta, para sempre.
Mas como os que ainda
vivem, procurei-a e fiz de
tudo para que me notasse de onde estivesse, demonstrando que a amava
mais que tudo. Restou-me
esse sonho de sonhá-la, a
verdadeira, aqui, comigo,
no que restou do mundo
desde então.
Entrei. Sentei-me à
metade, igualmente distante da saída e do púlpito,
com seu pedestal de água
benta, numa hora dessas
já vazio de aliviar as angústias dos necessitados.
Iluminou-se a igreja por
dentro, com suas luzes
amareladas que são acesas
pela chuva que começa lá
fora a bater nas vidraças,
limpando a poeira dos
vitrais desbotados, escurecendo a tudo. O barulho
das gotas sobrepõe-se ao
cochilar de uma senhora
que murmura uma reza
tranqüila, perdida no
cansaço de sua vida. O
presente é esse abismo de
tempo que se me abre das
paredes e do chão, mas
sobretudo de minha alma.
Como eu abraçara tudo
aquilo no meu cálido coração! A vida então faziame total sentido: desde o
menor vestígio de vida, às
grandes obras da natureza,
soprando-me os ares dos
sentimentos variados que
aspiram no peito humano:
amor, solidão, a vontade de
nunca parar de viver, de
conhecer a tudo, a humildade, a insaciabilidade, a
harmonia com o todo, até
além da morte, até deus e
depois dele. Então que algo
me arrancou a cortina que
tapava a visão de minha
alma. Ou pôs-lhe uma outra venda, vergando o resto
de inocência ao nada.
Como saber? Como saber
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Levantei-me para dirigir-me ao púlpito. Qualquer padre bastaria agora.
Eu buscava somente uma
demonstração de fé, uma
prova, a mim, testemunho
e senhor de tantas dúvidas. Avancei por entre a
tempestade que despencava sobre tudo. Cada passo
pesava minhas decisões
passadas, meus próprios
julgamentos, considerando que a moral tenha se
tornado um assunto esquecido a todos aqueles
com quem eu convivia
e, talvez, estivesse readquirindo a cor antiga. Na
dúvida, a moral é viver.
Assim passamos. Prossigo.
Eu receava ser expulso
assim que começasse a
falar. Mas o que eu falaria?
Tantas coisas, por tantos
anos, atravessaram-me, e
agora estou completamente vazio. Conheço todos os
meus desejos e pecados.
Mas frente a alguém em
62
62
quem deposito meu amparo ou alegria, tristeza ou
solicitude, frente a qualquer pergunta que venha
de fora, esqueço meus
infortúnios e sonhos. E por
isso talvez nunca chegue a
viver, efetivamente.
O padre me avistava, ao
longe, e eu, parado, desprotegido, encarava sua
força, sustentada pela cruz
que o prendia à Terra e
aos Céus, sempre ali, ao
fundo, como que ressoando na memória destas
paredes o alerta de que
sempre haverá, no final,
um julgamento. De repente, senti-me em casa, ao
notar uma goteira desenhando uma poça no tapete cor de vinho no qual
eu caminhava. É o único
lugar onde talvez algo me
pertença, mesmo que seja
uma goteira que martele
minha cabeça nas noites
chuvosas e terrenas.
Meu apartamento guarda a memória de minha
vida. Manchas, fotos,
quadros, espelhos, livros,
cordas de violão, colheres
tortas, papel amassado,
cartas, idéias, sensações.
Entre tudo, os amigos e a
família. Procurei guardar
a essência deles comigo.
Lá está o registro histórico de nossa vida. Se boa,
se má, é digna de eu me
lembrar dos maus e bons
SAMIZDAT dezembro de 2008
momentos. Cada segundo
que vivo lá é um reviver
das alegrias e tristezas que
passamos. Nem todos terminam tão próximos. Estes
laços se afrouxam muito
facilmente quando o conteúdo envolvido é pouco.
E há também a solidão.
Muitos destes fantasmas
que habitam minha morada me odiaram, afinal. E
quando me lembro disto,
peço perdão a eles, olhando fixamente o nada à
minha frente, paralisado,
absorto, perdido, por um
fio de lembrança, o rosto
de alguém querido que se
foi, e que está à beira de
meus olhos que se fecham.
E na escuridão eu posso
ouvir o sussurro de todas
as suas vozes ecoando no
vazio de cá dentro, esperando, ansioso, a palavra
de boas vindas. Sempre, lá
estão eles, dentro de cada
detalhe, no ar, nas paredes,
na ausência, escutando-me,
lembrando-me.
Uma gota de água me
desperta. Não reconheço
mais neste lugar as alegrias e motivações que me
faziam vir aqui. Onde eu
estava com a cabeça? Cai
um fio de luz da cúpula
de vidro acima de mim, na
chuva que cessa, clareando-me a vista. Viro-me em
direção à porta. Lá fora,
talvez, eu esteja a salvo.
Saio...
http://www.flickr.com/photos/victornuno/429759418/sizes/o/
de que lado ficou meu
coração? Como enxergar
a vida com os olhos da
Justiça, se desconfio também da precisão de minha
balança, ante a dúvida
do que sei contra as certezas que me derramam
os outros? Restou-me o
enigma sempre presente a
devorar-me a paz. Passa o
tempo e me afundo mais
neste profundo poço que é
a vida.
Autor Convidado
Poemetos
E se cantarem a primavera
Após um longo outono
Renato Wegner de Souza
Eu
Já estarei morto.
Melhor é cantar
de novo
e de novo.
Porque primavera
Não vem depois de outono.
Homem não, chora
Hoje vi um homem chorando no banheiro
Me disse que não, argumentou
Primeiro era cisco
Depois que vinha gripado.
Cuspiu na pia e foi embora.
Isso foi bem engraçado!
Homem também chora, mas nunca confessa.
Eu por exemplo,
Não choro.
No meio do ambiente tinha um poeta
Desperdiçar
o
papel
escrevendo
uma
palavra
por
linha
é
crime
ambiental?
Renato Wegner, 19, é estudante
de Cinema na UFPel (com o curso
trancado), mora atualmente em
Pelotas/RS. Nunca publicou nada.
Seus poemas são todos frutos de
uma alegria e um otimismo mascaro estonteante.
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Tradução
As Cinco Dádivas
da Vida
Mark Twain
http://www.flickr.com/photos/crowolf/488623967/sizes/l/
tradução: Henry Alfred Bugalho
Capítulo I
Na alvorada da vida,
uma bondosa fada apareceu com sua cesta e disse:
— Aqui há presentes.
Pegue um, deixe os outros.
E seja cuidadoso, escolha
sabiamente; ó, escolha sabiamente! pois apenas um
deles tem valor.
Os cinco presentes
eram: Fama, Amor, Riquezas, Prazer, Morte. O jovem disse, ávido:
64
64
— Não há necessidade
de refletir — e escolheu
Prazer.
Ele foi para o mundo
e buscou os prazeres que
deleitam os jovens. Mas
cada um deles era fugaz e
desapontador, vão e vazio;
e cada um, ao partir, zombou dele. No fim, ele disse:
— Desperdicei estes
anos. Se eu pudesse escolher novamente, escolheria
mais sabiamente.
SAMIZDAT dezembro de 2008
Capítulo II
A fada apareceu e disse:
— Restam quatro presentes. Escolha uma vez
mais; e, ó, lembre-se: o
tempo voa, e apenas um
deles é precioso.
O homem demorou-se
a refletir, então escolheu
Amor; e não reparou nas
lágrimas que brotaram dos
olhos da fada.
Após muitos e muitos
anos, o homem estava sen-
tado ao lado dum caixão,
numa casa vazia. Então ele
soloquiava, dizendo:
— Uma por uma, elas
se foram e me deixaram;
e agora ela, a mais querida e derradeira, jaz aqui.
Desolação após desolação
passou por mim; para
cada hora de alegria que
o Amor, o mercador traiçoeiro, me vendeu, paguei
mil horas de pesar. Do
fundo do meu coração, eu
o amaldiçôo.
Capítulo III
— Escolha novamente
— era a fada a falar — os
anos lhe deram sabedoria,
certamente. Restam três
presentes. Apenas um possui valor; lembre-se disto e
escolha com cautela.
O homem refletiu por
muito tempo, então escolheu Fama; e a fada, suspirando, partiu.
Anos se passaram e ela
retornou, postando-se atrás
do homem onde ele se
sentava solitário, refletindo,
diante do crepúsculo. E ela
sabia qual era seu pensamento:
“Meu nome percorreu o
mundo e todas as línguas
o exaltaram, e isto me
contentou por um tempo. Mas por quão pouco
tempo! Então veio a inveja;
depois detração; depois calúnia; depois ódio; depois
perseguição. Então ridicularização, que é o começo
do fim. E, por fim, veio
piedade, que é o funeral
da fama. Ó, a amargura
e a miséria do renome!
Aponta para a lama logo
em seu apogeu, para a
desgraça e compaixão em
seu declínio.
Capítulo IV
— Escolha uma vez mais
— era a voz da fada — restam dois presentes. E não
se desespere. No começo,
havia apenas um que era
precioso, e ele ainda está
aqui.
— Riqueza; pois é poder! Quão cego fui! — disse o homem — agora, por
fim, a vida merecerá ser
vivida. Gastarei, desperdiçarei, resplandecerei.
Aqueles que zombam de
mim e me desprezam
rastejarão na imundície
diante de mim, e eu alimentarei meu coração faminto com a inveja deles.
Obterei todos os requintes,
todas as alegrias, todos os
encantamentos do espírito,
todos os contentamentos
do corpo que agradam um
homem. Comprarei, comprarei, comprarei! Deferência, respeito, estima,
adoração — todas as espúrias graças da vida que o
mercado do mundo trivial
pode prover. Perdi muito
tempo, e, até agora, escolhi
mal, mas deixe estar; eu
era ignorante e considerei
o melhor aquilo que parecia sê-lo.
Três rápidos anos se esvaíram e chegou o dia em
que o homem se sentava
num sotão imundo; e ele
estava esquelético, lívido
e com profundas olheiras, vestido em trapos; ele
estava ruminando um pão
duro e resmungando.
— Malditos todos os
presentes do mundo, pois
são ardis e mentiras douradas! — e os insultou, a
cada um deles — Eles não
eram presentes, mas meros empréstimos. Prazer,
Amor, Fama, Riquezas: Eles
eram disfarces temporários para as realidades
duradouras — Dor, Pesar,
Vergonha, Pobreza. O que
a fada disse era verdade;
em todo seu estoque havia
apenas um presente que
era precioso, apenas um
que não era desprezível.
Quão pobres, baratos e
imundos sei agora que
eles são comparados com
aquele inestimável, aquele
caro, doce e gentil, que encharca num sono sem sonhos e duradouro as dores
que perseguem o corpo,
e as vergonhas e pesares
que consomem a mente e
o coração. Traga-o! Estou
exausto, descansarei.
Capítulo V
A fada veio, trazendo
novamente quatro dos
presentes, mas faltava a
Morte. Ela disse:
— Eu a dei para a queridinha duma mãe, para
uma pequena criança. Era
ignorante, mas confiou em
mim, pedindo-me que escolhesse por ela. Você não
me pediu para escolher.
— Ó, pobre de mim! O
que restou para mim?
— Aquilo que nem você
merecia: o impiedoso insulto da Velhice.
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Tradução
A História do
Inválido
Mark Twain
tradução: Henry Alfred Bugalho
66
66
SAMIZDAT dezembro de 2008
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Aparento ter sessenta
anos e ser casado, mas estes
efeitos devem-se à minha
condição e sofrimentos, pois
sou solteiro, e tenho apenas
quarenta e um anos. Será
difícil para você acreditar
que eu, que agora não passo
duma sombra, era, há pouco menos de dois anos, um
homem saudável e vigoroso,
um homem de ferro, um
verdadeiro atleta! — mesmo
assim, esta é a verdade nua
e crua. Mas o mais estranho
ainda é o modo como perdi
minha saúde. Eu a perdi
tentando ajudar a tomar
conta duma caixa de armas
numa viagem ferroviária de
duzentas milhas, numa noite
de inverno. Esta é a verdade
de fato, e eu a contarei pra
você.
Sou de Cleveland, Ohio.
Numa noite de inverno,
dois anos atrás, cheguei em
casa logo após anoitecer, em
meio a uma violenta nevasca, e a primeira coisa que
ouvi quando entrei em casa
foi que meu mais caro amigo de infância e colega de
escola, John B. Hackett, havia
morrido no dia anterior, e
que seu último pedido havia
sido o desejo que eu levasse seus restos mortais até
seu pobre velho pai e mãe
em Wisconsin. Eu estava
muito estupefato e mortificado, mas não havia tempo
a perder com emoções; eu
deveria partir imediatamente. Apanhei o cartão, onde
estava escrito “Diácono Levi
Hackett, Bethlehem, Wisconsin”, e me apressei através
da uivante nevasca até a estação de trem. Ao chegar lá,
encontrei a comprida caixa
de pinho branco tal qual me
havia sido descrita; preguei
o cartão nela com algumas
tachinhas, vi-a sendo posta
com segurança a bordo no
carro expresso e, então, corri para o refeitório para me
prover com um sanduíche
e alguns charutos. Quando
voltei, algum tempo depois,
ali fora estava o meu esquife, aparentemente, e um
jovenzinho examinando-o,
com um cartão em suas
mãos, algumas tachinhas
e um martelo! Eu estava
embasbacado e confuso. Ele
começou a pregar seu cartão, então apressei-me para
o carro expresso, num estado de mente alterado, para
exigir uma explicação. Mas
que nada — ali estava minha caixa, tudo em ordem,
no carro expresso; ela não
havia sido mexida. (O fato
é que, sem eu suspeitar, um
equívoco prodigioso havia
sido feito. Eu estava carregando uma caixa de armas
que o rapazinho havia trazido à estação para remetê-la
a uma empresa de rifles em
Peoria, Illinois, e ele havia
ficado com meu cadáver!).
Foi então que o condutor
berrou “todos a bordo” e eu
pulei para dentro do carro expresso e arranjei um
assento confortável num
amontoado de baldes. O
carregador estava ali, forte
na lida — um homem comum, na casa dos cinqüenta
anos, com uma expressão
simples, honesta e bondosa,
e de modos leves e com um
vigor prático. Assim que o
trem se moveu, um estranho saltou para dentro do
vagão e deixou um pacote
do peculiar queijo Limbur-
ger, maturado e com qualidade, num dos cantos do
meu esquife — quer dizer,
da minha caixa de armas.
Ou melhor, agora eu sei que
era um queijo Limburger,
mas àquela época, eu nunca
havia visto o artigo na vida
e era, é claro, totalmente
ignorante quanto suas características. Bem, avançamos
através da noite selvagem,
a ferina nevasca continuava
enfurecida, bateu-me uma
nefasta melancolia, meu peito se apertou, se apertou, se
apertou! O velho carregador
teceu um ou dois súbitos
comentários sobre a nevasca
e o clima ártico, bateu com
força as portas corrediças,
aferrolhou-as, cerrou sua
janela e, andou dum lado
pro outro, aqui, ali e acolá, ajeitou as coisas, toda a
hora cantarolando contente
“Sweet By and By”, em baixo
tom, murmurando. Depois
dum tempo, eu comecei a
notar um odor quase maligno e penetrante rompendo o
ar gélido. Isto deprimiu meu
espírito ainda mais, porque
eu o atribui, é claro, a meu
pobre finado amigo. Havia
algo infinitamente entristecedor em pensar que eu me
lembraria dele deste estúpido modo patético, de tal
maneira que foi difícil para
conter as lágrimas. Além
disto, eu me inquietava por
conta do velho carregador, temia que ele pudesse
perceber o cheiro. Contudo,
ele prosseguiu cantarolando
tranqüilamente, e não deu
nenhum indício; pelo que
fiquei agradecido. Agradecido, sim, mas ainda assim
desconfortável; e logo comecei a me sentir mais e
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mais desconfortável, pois a
cada minuto que se passava
o odor se adensava, e se tornou mais e mais repugnante
e difícil de suportar. Após
um tempo, tendo ajeitado as
coisas a seu contento, o carregador apanhou um pouco
de lenha e fez um fogo tremendo em sua fornalha.
Isto me inquietou mais
do que posso descrever,
pois não pude evitar de
sentir que isto era um erro.
Eu estava certo de que o
efeito seria deletério sobre
meu pobre finado amigo.
Thompson — o nome do
carregador era Thompson,
como descobri no decorrer
da noite — agora vagava por
seu vagão, fechando quaisquer eventuais fendas que
ele pudesse encontrar, lembrando que não fazia diferença que tipo de noite estava lá fora, ele pensava estar
nos deixando confortáveis,
de qualquer maneira. Eu não
disse nada, mas acreditava
que ele não estava fazendo
uma boa escolha. Enquanto
isto, ele cantarolava para
si como antes; e enquanto
isto, também, a fornalha
estava ficando mais e mais
quente, e o ambiente mais e
mais sufocante. Eu comecei
a empalidecer e a nausear,
mas sofria em silêncio e não
disse nada.
Logo notei que o “Sweet
By and By” gradualmente se
esmoreceu; em seguida, cessou totalmente e que havia
uma imobilidade ominosa.
Após alguns momentos,
Thomson disse:
“Puxa! Eu acho que não
foi canela que joguei ali na
fornalha!
68
68
Ele se engasgou uma ou
duas vezes, então se moveu
em direção ao esqu— a caixa de armas, estacou diante
da parte do queijo Limburger por um momento, então
ele voltou e se sentou perto
de mim, aparentando estar
bastante impressionado.
Após uma pausa contemplativa, ele disse, indicando
com um gesto a caixa:
— Amigo d’ocê?
— Sim — eu disse, com
um suspiro.
— ‘Tá já bem avançado,
né!
Nada além disto foi dito
por talvez um par de minutos, cada um ocupado com
seus próprios pensamentos; então Thompson disse,
numa voz baixa e reverente:
— Às vezes, não se tem
certeza se eles realmente
partiram ou não — parecem
ter partido, você sabe — a
quentura do corpo, juntas
moles — e assim por diante,
e mesmo que você ache que
eles se foram, você não tem
certeza. Eu tive casos em
meu vagão. É completamente horrível, porque você não
sabe se a qualquer minuto
eles não vão se levantar e
olhar pra você!
Então, após uma pausa,
e erguendo um pouco seu
cotovelo em direção à caixa:
— Mas ele não ‘tá em
nenhum transe! Não, senhor,
ponho minha mão no fogo!
Nós nos sentamos por
algum tempo, em silêncio
meditativo, ouvindo o vento
e o ronco do trem; então
Thompson disse, com uma
boa dose de sentimento:
SAMIZDAT dezembro de 2008
— Bem, bem, todos nós
temos que ir, não tem como
fugir disto. O homem que
nasceu de mulher tem os
dias contados, como dizem
as Escrituras. Sim, você pode
olhar pra isto do jeito que
quiser, é tremendamente solene e curioso: Não tem ninguém que vai escapar; todos
vão embora — todo mundo,
como se diz. Um dia, você
está vigoroso e forte — neste ponto, ele se pôs de pé e
quebrou uma janela e esticou o nariz para fora dela
por um segundo ou dois,
então se sentou de novo, enquanto eu me esforcei para
lançar meu nariz para o
mesmo lugar, e continuamos
fazendo isto vez ou outra
— e no dia seguinte, ele foi
ceifado como a grama, e os
lugares que o conheciam
não o conhecem mais, como
dizem as Escrituras. É verdade, é tremendamente solene
e curioso; mas todos temos
de ir, um dia ou outro; não
tem como fugir.
Houve outra grande pausa; então:
— Do que ele morreu?
Eu disse que não sabia.
— Há quanto tempo ele
morreu?
Pareceu-me sensato aumentar os fatos para encaixá-los nas probabilidades;
então, eu disse:
— Dois ou três dias.
Mas isto não surtiu efeito,
pois Thompson recebeu-o
com um olhar ultrajado e,
sem rodeios, disse:
— Dois ou três anos, que
você quer dizer.
Então ele prosseguiu, pla-
cidamente ignorando meu
comentário, e deu vazão a
suas opiniões sobre a insensatez em retardar demais
sepultamentos. Ele se aproximou languidamente da
caixa, parou por um momento, então retornou com
um abrupto trote e pagou
uma visita à janela quebrada, comentando:
— Teria sido uma baita
duma visão melhor, em todos os aspectos, se tivessem
despachado ele no verão
passado.
Thompson se sentou e
escondeu o rosto em seu
lenço de seda vermelha, e
começou a balançar lentamente o corpo pra frente e
pra trás como se estivesse se
esforçando o máximo para
agüentar o insuportável. A
estas horas, a fragrância —
se é que se pode chamar
aquilo de fragrância — estava sufocante, ou o mais perto que se pode chegar disto.
A face de Thomspon estava
ficando cinza; eu sabia que
não restava cor alguma na
minha. Depois, Thompson
descansou a fronte em sua
mão esquerda, com o cotovelo sobre o joelho, e meio
que abanava seu lenço vermelho em direção a caixa
com a outra mão, e disse:
— Já carreguei muitos
destes — alguns já bastante
passados também —, mas,
Deus do Céu, este deixa
todos os outros no chinelo! — E de longe, capitão, os
outros eram como girassóis
comparados a ELE!
Este reconhecimento de
meu amigo me gratificou, a
despeito das tristes circuns-
tâncias, porque isto havia
me parecido mais como um
elogio.
Era óbvio que algo precisava ser feito logo. Eu sugeri
charutos. Thompson pensou
que esta era uma boa idéia.
Ele disse:
— Provavelmente isto vai
amenizar um pouco.
Nós tragamos com expectativa por algum tempo, e
tentamos pra valer imaginar
que as coisas haviam melhorado. Mas foi inútil. Após
muito tempo, e sem qualquer combinação, ambos
os charutos silenciosamente
caíram de nossos dedos
inertes, simultaneamente.
Thompson disse, suspirando:
— Não, capitão, isto não
amenizou nem um tostão.
O fato é que deixou pior,
porque parece que atiçou
seu poder. O que você acha
que é a melhor a gente fazer
agora?
Eu não estava apto a
sugerir algo; na verdade, eu
estava engolido a seco, todo
o tempo, e não queria me
arriscar a falar. Thompson
desatou a resmungar, de maneira errática e mal-humorada, sobre as experiências
desagradáveis desta noite;
e ele se referia a meu pobre amigo através de vários
títulos — alguns militares,
outros civis —; e eu notei
que com a mesma rapidez
que a eficácia do meu pobre
amigo crescia, Thompson o
promovia de acordo, dandolhe um título mais elevado.
Por fim, ele disse:
— Tive uma idéia. E se
a gente fizer um esforço e
dar um empurrãozinho no
coronel até para o fim do
vagão?— uns cinco metros,
talvez. Ele não teria tanta
influência, então, não acha?
Eu disse que este era um
bom plano. Então nós tomamos um belo fôlego de ar
fresco na janela quebrada,
calculando segurá-lo até
perfazermos a tarefa; então
fomos até lá, inclinamo-nos
sobre aquele queijo mortífero e agarramos a caixa.
Thompson indicou com a
cabeça “tudo pronto”, e nós
nos projetamos, com toda
nossa força; mas Thompson
escorregou e tombou com
o nariz no queijo e perdeu
o fôlego. Ele tapou a boa e
se engasgou, cambaleou e
abriu uma fresta na porta,
suplicando por ar e disse,
arquejando:
— Não me segura! Me dá
espaço! Estou morrendo; me
dá espaço!
Sentei-me fora, na plataforma fria, e segurei a
cabeça dele por um tempo, enquanto ele retornava
à consciência. Depois, ele
disse:
— Você acha que a gente
mexeu o general pra lá?
Não, eu disse, não conseguimos movê-lo.
— Bem, então aquela idéia
está fora de cogitação. A
gente tem de pensar em outra coisa. Ele está bem onde
ele está, eu acho; e se este é
o jeito que ele se sente sobre
isto, e ele decidiu que não
quer ser perturbado, você
pode apostar que vai ser do
jeito que ele quer. Sim, melhor deixar ele exatamente
onde ele está, o tempo que
ele quiser ficar; porque ele
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está com o jogo ganho, sabe,
assim, pela lógica, o homem
que tentar alterar seus planos sairá perdendo.
nunca vi, em todo estes
tempos de estrada; e já carreguei muitos deles, como
disse pr’ôce.
Mas nós não poderíamos
ficar expostos àquela insana
nevasca, pois morreríamos
congelados. Então retornamos para dentro e fechamos
a porta, e voltamos a sofrer
e a nos revesarmos na janela quebrada. Depois dum
tempo, enquanto partíamos
duma estação onde havíamos parado por uns instantes, Thompson saltou pra
dentro, alegre, e exclamou:
Voltamos para dentro
quando já estávamos duros
de frio, mas, misericórdia,
não conseguíamos ficar lá
dentro. Então, simplesmente passamos a valsear de
dentro pra fora, de fora pra
dentro, congelando, descongelando, e sufocando, em
revezamentos. Em torno de
uma hora depois, paramos
em outra estação, e, assim
que partimos, Thompson
veio com uma sacola e
disse:
— A gente vai ficar bem
agora! Acho que apanhamos
o comodoro desta vez. Creio
que eu consegui a coisa que
vai tirar o fedor dele.
Era ácido carbólico. Ele
tinha um frasco disto. Ele o
borrifou por todo os cantos;
na verdade, ele encharcou
tudo com isto, a caixa de
rifles, o queijo e todo o
resto. Então, nós nos sentamos, sentindo-nos bastante
esperançosos. Mas não durou muito. Os dois odores
começaram a ser misturar
e, então, bem, logo tivemos
que abrir a porta; e lá fora
Thompson limpava seu rosto com o lenço e disse num
tom devastado:
— Não tem jeito. Não podemos vencê-lo. Ele simplesmente usa tudo que a gente
põe pra amenizar, e põe seu
próprio odor e joga de volta
na gente. Por que, capitão,
não percebe, está cem vezes
pior do que quando começou. Eu nunca vi um deles
se empolgar tanto em seu
trabalho assim, e ter tanto
interesse nele. Não, senhor,
70
70
— Capitão, vou arriscar
a sorte uma vez mais, apenas esta vez; se a gente não
pegar ele agora, a coisa que
vai restar pra gente fazer vai
ser jogar a toalha e deixar a
lona. É isto que proponho.
Ele havia trazido um punhado de penas de galinha,
maçãs secas, folhas de tabaco, tapetes, sapatos velhos,
enxofre, assafétida, e uma ou
outra coisa; e ele empilhou
tudo numa lâmina de ferro
no meio do chão e tocou
fogo.
Quando o fogo já estava bem avançado, eu não
consegui imaginar como até
mesmo o cadáver conseguiria suportar o cheiro. Tudo
havia vindo antes era apenas poesia em comparação
àquele cheiro, mas acredite
você, o cheiro original continuava tão sublime quanto
antes; a verdade é que os outros cheiros pareciam fortalecê-lo; e, meu Deus, quão
forte ele era! Eu não fiz estas
considerações lá, pois não
SAMIZDAT dezembro de 2008
havia tempo, fi-las na plataforma. E rompendo para
a plataforma, Thompson
sufocou e caiu; e antes que
eu pudesse arrastá-lo, pelo
colarinho, eu mesmo quase
havia desmaiado. Quando
recobramos a consciência,
Thompson disse, deprimido:
— Temos de ficar aqui
fora, chefia. Temos de ficar.
Não tem outro jeito. O governador quer viajar sozinho, e ele está decidido que
pode nos vencer.
E depois ele acrescentou:
— E você não sabe, a
gente está envenenado. Esta
é nossa última viagem, você
pode estar certo disto. Por
causa disto, a gente vai ter
febre tifóide. Já estou sentindo ela vindo, neste exato momento. Sim, senhor,
fomos escolhidos, tão certo
como o fato de você ter
nascido.
Fomos recolhidos da
plataforma uma hora depois,
congelados e sem sensibilidade, na próxima estação,
e sucumbi a uma febre
virulenta, e fiquei fora de
combate por três semanas.
Descobri, então, que eu passei uma noite terrível com
uma inofensiva caixa de
rifles e um inocente bocado
de queijo; mas as novidades
vieram tarde demais para
me salvar; a imaginação
havia feito seu trabalho e
minha saúde estava permanentemente abalada; nem
Bermuda, nem qualquer
outra terra poderia restaurála. Esta será minha última
viagem; estou a caminho de
casa para morrer.
Mark Twain é o pseudônimo
de Samuel Langhorne Clemens
(1835-1910), primeiro grande
escritor do oeste dos Estados Unidos que exerceu grande influência
sobre todos os escritores que se
esforçaram por “descobrir a América” através de suas paisagens,
das peculiaridades de seu povo e
de seu folclore.
Clemens passou a infância às
margens do rio Mississipi. Perdeu
o pai aos 12 anos quando começou a trabalhar para ajudar nas
despesas de casa. Foi entregador,
escriturário e ajudante. Aos 13
anos tornou-se aprendiz de tipografia, e depois, trabalhando como
impressor, viajou por diversos
estados. Aprendeu navegação no
rio Mississipi tornando-se piloto
fluvial. Nessa época começou a escrever textos de humor e adotou o
pseudônimo de Mark Twain, termo
usado pelos barqueiros, que significa “duas marcas” na verificação
da profundidade dos rios.
Depois participou da Guerra
Civil, como confederado. Após o
conflito, foi para o Oeste (Nevada) onde viveu com seu irmão.
Passou a escrever para o jornal
da cidade de Virginia. Foi jornalista e conquistou o público com o
conto “A célebre rã saltadora do
Condado de Calaveras”, publicado em 1865. Dois anos depois,
Twain visitou a França, a Itália e
a Palestina, recolhendo material
para o seu livro “The Innocents
Abroad” (1869), que estabeleceu
a sua reputação de humorista.
Twain se casou com Olívia Langdon em 1870 e se fixou em Hartford, Connecticut.
Dois anos mais tarde publicou
“Roughing It”, e em 1873 “The
Gilded Age”. Em 1876 saiu a
primeira das suas grandes obras,
“As aventuras de Tom Sawyer”,
romance baseado nas experiências
da adolescência do autor no rio
Mississipi. No livro seguinte, “A
Tramp Abroad” (1880) o autor
visitou a Europa, regressando
com “Vida no Mississipi”(1883).
A obra-prima da carreira literária de Twain, “As aventuras de
Huckleberry Finn”, foi publicada
em 1884.
O livro, que parecia só uma obra
para jovens, constituía na realidade uma fábula da América que
se urbanizava e industrializava
enfrentando o sonho de uma vida
na liberdade da natureza. “Huck”
representava muitas das aspirações da sociedade americana, com
as quais o público facilmente se
identificou. O romance estabeleceu definitivamente Twain como
um dos grandes humoristas da
literatura mundial. Outras obras
do autor: “O Príncipe e o Mendigo”, “Um ianque na corte do
rei Artur” (1889), “A tragédia
de Pudd’nhead Wilson”(1894) e
“Joana D`Arc (1896).
A década de 1890 foi marcada
por dificuldades financeiras e nos
últimos anos a caricatura burlesca
deu lugar a um pessimismo satírico. A dimensão irônica do mundo
e em particular do sonho americano revelaram um retrato americano em toda a sua materialidade.
Fonte: http://educacao.uol.com.br/
biografias/ult1789u507.jhtm
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71
Tradução
La esencia de las horas
Volmar Camargo Junior
Versión: Xoan Cullereiro (Enrique Gutiérrez Miranda)
Del carozo de una hora
y mis pies.
extraje la substancia vítrea,
oleosa;
Así, día a día,
breve cual la voluntad,
si aún recordaba lo que eran
etérea cual la sensatez.
acabé por no verlos.
En ningún recipiente
Me dejé, entregado,
pude contenerla contenta.
a la esencia del carozo de las horas.
Se escapaba siempre un tanto,
Inhalé, comí, bebí,
a veces mucho;
me desnudé;
casi siempre duplicaba su tamaño,
y así, desnudo,
y así, poco a poco
me cubrí entero con ella.
las gotas,
las partículas
No era dolor,
rellenaron el espacio
era más bien un frío
que tan bien conozco.
de las puntas del cabello a la boca del
estómago.
Era seductora, envolvente;
Me enredó.
la bruma que de ella nacía,
—pues bruma era—
era un vapor invisible
que hizo desaparecer las paredes,
el paisaje de la ventana,
los hábitos convenientes
72
72
SAMIZDAT dezembro de 2008
Dentro y fuera de mí vivía aquello;
imposible contenerlo.
E incluso cuando de lo hondo de la
garganta
nació el último murmullo
la cosa cristalizó,
se hizo hielo,
De la esencia de las horas
roca,
quedo sólo
diamante,
una gota.
vidrio.
Se escurrió por mi cabeza hasta la punta de la nariz;
Era el vidrio en mí,
intempestiva,
el vidrio de las horas
decidida,
—el vidrio de las raíces del tiempo,
libre,
de todo el vítreo árbol que es el tiempo,
se lanzó al espacio
con un chapoteo que sólo yo percibí
de su vítrea
hasta el choque final contra el suelo.
sangre de lo que no se ve—.
Era el vidrio en mí.
Salí.
Ya no en la horas,
Cerré las ventanas, atranqué las puertas.
ya no rellenando los vacíos
entre las partículas del polvo
del tejido de las estrellas.
Era el vidrio en mí.
Dejó de ser esencia
primordial, o quintaesencial.
Era en mí.
Seguí como pude
vivo como consigo.
Permanece aún allá, intocado,
el suelo donde cayó la última gota
de la substancia vítrea,
oleosa,
Era yo.
extraída del carozo de una hora.
Y,
Tenía la esperanza de que
como es propio de las cosas
nacidas o sacadas
del árbol que da los frutos del tiempo,
el vidrio que me tenía cristalizado
desapareció.
donde había caído la gota
pudiera brotar otro árbol
con un tiempo diferente,
quién sabe si mezclado
con un poco del polvo,
de ese polvo que yo soy.
Volvieron las ropas,
las paredes, las ventanas,
el paisaje,
los zapatos.
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73
Tradução
autobiografia
Enrique Gutiérrez Miranda, poeta
aficcionado e tradutor compulsivo
Tradução: Volmar Camargo Junior
Nasci em Bueu, Ria de
Pontevedra, Galicia, às 23:45
de 15 de julio de 1957, dia
de São Enrique. Cresci em
A Pobra do Caramiñal,
onde vivi de 1960 a 1975.
Estudei em diversos colégios de A Pobra, Santa Uxía
de Ribiera e Ourense sem
muito proveito.
Minha família mudou-se
para Madrid em setembro
de 1975, um par de meses
antes da morte do general
Franco.
74
74
Em janeiro de 1976,
deslumbrado pelas luzes da
cidade – e com o correspondente desgosto de meus
pais – abandonei os estudos,
ou eles me abandonaram, e
dediquei-me a desenhar e
escrever num fanzine underground. A cidade fervia
e chegou a famosa “Movida
madrileña¹”. O underground
entrou para a história. Para
mim chegou a idade de
cumprir com os deveres
pátrios e fui dar tiros nas
pedras e apagar incêndios
SAMIZDAT dezembro de 2008
florestais em Valencia, na
serra de Maestrazgo.
Quando retornei a Madrid algo havia mudado na
cidade e também em mim.
Estive um ano sem desenhar nem escrever.
Trabalhei algum tempo
como desenhista no estúdio
de uns amigos arquitetos.
Comecei a desenhar e a escrever em uns caderninhos
quadriculados de espiral,
apenas para mim.
Os amigos dispersaram e
fui viver na Serra Norte de
Madrid durante cinco anos,
na proporção de uma vila
e uma casa diferente por
ano. Tive um bar e um restaurante, no qual eu mesmo
era o cozinheiro. Na época,
desenhei, escrevi e li pouco.
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Voltei para A Pobra do
Caramiñal, onde vivi em
uma aldeia de seis casas,
Gonderande, rodeada de
horta e milharais durante
um ano e três meses. Vendi
balas e guloseimas pelos
povoados da região em
uma van acompanhado de
um amigo.
Em janeiro de 1995 cheguei a Barcelona. Trabalhei
dois meses na cozinha de
um hospital e depois num
restaurante, mas uma tarde
joguei o avental no chão
e fui embora sem exigir
meu pagamento. Encontrei
emprego em uma tenda
de jogos e apostas federal,
onde ainda trabalho.
Certo dia comprei um
PDA, para organizar meus
livros e minha coleção
de postais eróticos. Tive
a idéia de ir transferindo
para o PDA os poemas dos
caderninhos quadriculados. Porém esse trabalho se
converteu em um processo
de reelaboração e recriação
de tudo o que havia sido
escrito entre 1987 e 2005.
Organizei tudo e reuni
em um livro ao qual chamei Fragmentos de un fractal. Metros e rimas clássicas
ou quase, incluindo algum
soneto, temas variados, em
espanhol além de algum
poema em galego acompanhado de minha própria
tradução. Não o enviei
a nenhuma editora. Não
publicado. Imprimi duas
ou três cópias para alguns
amigos.
Encontrava-me sem
saber como continar escrevendo. Escrevi alguns
poemas soltos. Ocorreu-me
de voltar aos caderninhos
quadriculados. A partir do
primeiro caderno escrevi
Árboles aves algas. 39 séries
de 80-90 versos octossílabos ou tetrassílabos, com e
sem rima; cada série correspondente a uma página
do caderno. Um pouco
surrealista e críptico. Não
publicado.
O segundo rendeu-me
Hojas de hiedra. 40 séries.
Mais elaborado, metros
variados, com e sem rima.
Com um apêndice de vocabulário (palavras que invento e outras raras) e outro
de referências, citações de
poemas e canções de pop
ou rock, com o original e
minha tradução. Não publicado.
Agora estou com o terceiro caderno. Ao conjunto
total dos livros-caderno
chamo Laberintos y espirales. ]
Tentei fazer uma página
na web para publicar minhas coisas, mas era demasiado difícil para mim.
Optei pelos blogs. Depois
de vários tentativas e blogs
eliminados acabei ficando
com três: Um para poemas
de Fragmentos de un fractal, ilustrado com imagens
que baixo da rede. Outro,
recém-começado, para
Hojas de hiedra, que estou
escrevendo agora, e talvez
algo de Árboles aves algas,
com fotografias minhas de
grafittis das ruas de Barcelona. E outro para minhas
traduções de galego, português, catalão, inglês, francês
e talvez também italiano.
Olhai, crede
hoje em dia
a poesia
está na Rede.
Blogs de Enrique Gutiérrez Miranda
Poemas y fragmentos:
http://enriquegutierrezmiranda.blogspot.com/
Laberintos y espirales:
http://labesp.blogspot.com/
Perversión Poética: http://
pervpoet.blogspot.com/
Referências (links)
¹ Movida Madrilena:
http://es.wikipedia.org/wiki/
Movida_madrileña
www.samizdat-pt.blogspot.com
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Teoria Literária
Manifesto
Volmar Camargo Junior
O escritor urbano,
sem ser literato, sonhador, massivo, político faz
ficção urbana. (Re)Cria o
espaço, o tempo, e principalmente, os citadinos
seres humanos: idiotas,
espertos, doentes, intelectualizados por mentiras,
sensíveis uns aos outros
de maneiras improváveis,
seres humanos de ficção que ouvem, contam,
recontam e continuam
rindo da mesma velha
anedota de sempre. Escreve sobre si mesmo.
Mas também, é provável,
aceitável, até desejável
que seja sobre todos os
urbanos, porque, sendo
76
76
tão parecidos, são todos
irremediavelmente atraídos uns pelos outros. E
parecido é um eufemismo para iguais.
A ficção urbana é a
pior das criaturas dessa
realidade, porque é feita
rigorosamente da mesma massa de que ela, a
realidade de cimento,
asfalto, borracha, fios de
cobre, leds e derivados
de petróleo. Os urbanos
falam sobre ser urbano, e
ao mesmo tempo, falam
sobre não sê-lo. A ficção,
quando é boa, faz-nos
pensar na grande idiotice
em que vivemos atola-
SAMIZDAT dezembro de 2008
dos, e, paradoxalmente,
joga-nos ainda mais para
o fundo dela. A ficção
urbana não quer que sejamos idiotas, porém, não
teme falar sobre o fato de
a vida urbana ser, efetivamente, idiota, e estarmos
constantemente fugindo
dela por variadas e deleitosas válvulas de escape.
A ficção urbana é, antes
de tudo, uma metaficção.
E, vejam, nem falei em
literatura, em arte literária. Penso que isso, se
existe, é um ideal, velho
como os livros, divino,
inacessível, a própria
constituição de porções
http://www.flickr.com/photos/jalex_photo/390896449/sizes/o/
Urbanicista
significativas da nossa
idiotice, e que, por tanto
a desejarmos, nem sabemos mais o que ela é. A
arte literária é, como os
ideais, as lutas e as revoluções, uma piada de
mau gosto, da qual ela
própria, a abstrata literatura, ri-se. A arte, se há,
mais importante, mais
completa, mais instigante,
mais capaz de arrancar
o urbano do lodo de sua
própria existência é a
ficção. E pouco importa
se é ou não literatura.
Por tudo isso, o presente manifesto é pelo Urbanicismo:
Não é luta – basta de
lutas!
Não é revolução – estamos fartos de revoluções!
Não é ideal – chega de
ideais!
Não é sonho – há
sonhos, sim, mas é o fato,
e não o sonho, o que o
escritor urbano, doravante urbanicista, quer.
Este é o movimento da
constatação. Não somos
bons, não somos maus,
não somos melhores que
o que fomos no passado,
nem seremos melhores
num futuro. A ficção
urbanicista é sobre o
que há, e convida a olhar
– sim, a olhar, não contemplar, mas olhar, estar
presente, capturar o que
há – no urbano.
Não é a supremacia
do citadino sobre o do
campo, porque mesmo
o campesino é urbano, quando quer sê-lo e
quando abomina a urbanidade.
Não é a supremacia do
prosaico sobre o sublime, porque o sublime é
a moldura, a forma e a
estrutura do prosaico.
O escritor urbanicista
captura o fato, como uma
câmera fotográfica. Quem
sabe, uma câmera digital, porque o resultado
é imediato, instantâneo
– das tantas maravilhas,
idiotas, mas úteis, que nos
fazem tão especiais.
O urbanicista não apenas quer a unidade com
o outro, mas assume-se,
sem restrições e sem
medos, que é o outro, que
é o eu-poético, que é o
personagem de ficção.
expressar-se, sobretudo a
língua, como são, e, como
devem ser, porque esta é
uma interação constante,
infinita, e não cabe ao escritor julgar, talvez, nem
posicionar-se. Cumprelhe a tarefa de capturar
– e mostrar, não como
denúncia – a urbanidade:
o que a constitui, o que
nela há, o que ela é, e,
principalmente, quem a
vivencia.
O Urbanicismo existe
já de antes deste manifesto. O escritor que deseje
aderir a ele deve antes
esquecê-lo – não combatê-lo. Se quiser começar
a escrever ficção urbanicista, deve primeiramente
esquecer-se do universo,
do mundo, da cidade,
dos outros, de si, e voltar
olhar para o próprio ato
de escrever: o seu primeiro fato. Todo escritor
urbanicista deve, antes de
tudo, traçar o seu próprio
Manifesto, porque em
cada urbano há um olhar
da urbanidade – que é
um, e é muitos – e só ele
pode saber como expressará esse olhar.
O urbanicista respeita o ideal do passado
– ele não quer revoluções – mas constata e
aceita as tantas formas de
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Teoria Literária
A Linguagem
do dia-a-dia na
Literatura
Henry Alfred Bugalho
[email protected]
78
78
SAMIZDAT dezembro de 2008
http://www.flickr.com/photos/fchouse/2706871095/sizes/o/
A tendência natural de
todo escritor é começar
escrevendo de maneira
semelhante à que fala.
Estamos imersos na
linguagem oral desde
que nascemos, desde as
primeiras palavras que
nos dirigem nossos pais.
Primeiro, aprendemos a
falar, a comunicarmo-nos
através da emissão e articulação de sons.
O hábito da escrita só
começa a surgir posteriormente, muitas vezes
apenas quando passamos
a freqüentar a escola.
Por isto, quase sempre a
competência de expressão
escrita é inferior à competência oral.
As regras que regem
a linguagem valem tanto
para a fala quanto para a
escrita, são exatamente as
mesmas normas gramaticais. No entanto, o uso, a
necessidade de comunicação rápida, ou mesmo
vícios e corruptelas no
interior duma comunidade lingüística afastam a
escrita e a oralidade.
Por mais que a linguagem falada anteceda a
escrita, isto não significa
que esta deva reproduzir
literalmente a primeira.
São níveis de comunicação diferentes e, enquanto a escrita pode ser
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utilizada para meros fins
comunicativos, a escrita
literária transcende esta
instrumentalidade. A
Literatura comunica, mas
sem perder os requintes,
as sutilezas e a beleza da
linguagem.
Até o século XIX, os
limites entre a linguagem
literária e a oral eram
muito evidentes. Não era
à toa que a literatura era
conhecida como belles lettres, em oposição à escrita
voltada para a simples
comunicação de algo.
O modernismo do século XX surgiu em contraposição ao beletrismo,
recorrendo, assim, a uma
proximidade à língua do
dia-a-dia, trazendo para a
Literatura o mundano, o
minimalismo, as imperfeições, o simplório, o feio.
Apesar de haver expandido a compreensão do que
é Literatura, a modernidade também instaurou
a ausência de critérios de
avaliação: tudo passou a
ser arte, tudo passou a ser
literário.
Assim como em todas
posições antagônicas, o
debate entre coloquialismo e purismo arrebanha
seguidores nas duas direções. Os autores de orientação beletrista defendem
uma autonomia da linguagem literária, enquanto
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que os de índole modernista trazem para suas páginas a língua ordinária.
Analisemos, então,
alguns pontos que contribuirão para compreendermos como nossas escolhas
influenciam nossa escrita.
1 - a literatura não é a
realidade, portanto, não
precisa ser regida pelas
mesmas práticas, pelas
mesmas leis, pelos mesmos
princípios presentes no
mundo real.
No mundo real, as
performances lingüísticas
costumam variar de acordo com nosso interlocutor: quando falamos com
uma pessoa mais “simplória”, há uma tendência a
usarmos um vocabulário
menos rebuscado, diante
de interlocutores mais
sofisticados, tentamos
elaborar sentenças mais
complexas.
Isto não é uma prática
existente apenas entre os
mais educados (educação
formal), mas presente em
todas as classes sociais.
Basta assistirmos a um
telejornal para ver como
todos tentam “falar bonito”, mesmo que acabem
incorrendo em mais erros
por causa disto.
Na verdade, esta nive-
SAMIZDAT dezembro de 2008
lação lingüística é, em
parte, uma prática inconsciente de rapport, de identificação entre os falantes.
Lembro-me duma entrevista do Ratinho para o
programa “Observatório
da Imprensa”, quando, um
dos entrevistadores perguntou ao apresentador:
- No seu programa,
você fala errado muitas
vezes. No entanto, aqui,
você não cometeu um
único erro de português?
Por quê?
Então, o Ratinho respondeu:
- Porque eu preciso falar igual ao meu público.
Ou seja, na vida real, a
seleção de qual registro
da língua utilizaremos
influenciará no modo
como seremos recebido
por nossos ouvintes.
2 - Como a literatura
não é a realidade, mas um
simulacro, ela precisa estabelecer quais são as regras
que a regem.
Se partirmos da lógica anterior, não há nada
de errado em optar pelo
coloquialismo, posto que
o autor é o senhor do
mundo literário que cria.
No entanto, ele estará delimitando o horizonte de
interpretação e de recep-
ção da obra. Aliás, toda
vez que um autor faz uma
escolha, de tema, enredo,
linguagem, ele já está delimitando seu público.
Um público em busca
dum texto mais sofisticado pode não receber
bem um texto coloquial,
do mesmo modo que um
leitor em busca de algo
mais “real”, pode não receber bem um texto formal.
Quer dizer, é uma questão
de escolha, de direcionamento.
Mas estas regras precisam estar claras e fazer
sentido no interior da
obra. É necessário haver
coerência: um personagem não pode falar errado em certos trechos, mas
falar certo (com as mesmas palavras) em outro,
sem alguma razão óbvia.
Graciliano Ramos é
muito hábil na hora de
se apropriar destes dois
níveis de discurso. Em
“Vidas Secas”, por exemplo, ele apresenta uma
vida mental muito intensa
em seus personagens, até
para a cachorra Baleia, porém os personagens não
possuem vocabulário para
expressarem seus pensamentos, por isto, quase
sempre os diálogos são
lacônicos. Quer dizer, há
uma ruptura entre pensamento e fala: em suas
mentes, os personagens
possuem um léxico e uma
fluência que não correspondem ao vocabulário
simples e pragmático da
vida cotidiana.
3 - A língua é construída
historicamente, por isso, o
que é erro hoje, amanhã é
norma.
Sem dúvida, este é o
maior ponto em defesa do
coloquialismo, pois muitas práticas consideradas
erradas em autores pretéritos, hoje são normas
gramaticais e ortográficas.
No entanto, há um
problema bastante específico nesta mutabilidade da
língua: várias expressões
populares e gírias caem
rapidamente em desuso,
assim, rechear um texto
com tais expressões pode
empobrecer a compreensão dum eventual leitor
futuro. Euclides da Cunha
e Camões serão compreendidos por um leitor de
língua portuguesa daqui
cem anos, mas as músicas
dum funqueiro provavelmente serão bem menos
compreensíveis.
Eu, enquanto escritor,
penso tanto no leitor de
hoje, quanto o de amanhã,
por isto, acabo escolhendo escrever dum modo a
conceder maior durabili-
dade a meus textos. Lembro-me de muitas gírias
minhas de infância que
hoje nem são mais utilizadas e que até denunciam
minha idade (beirando a
casa dos 30).
Quer dizer, escrever
“uma brasa, mora?” num
texto que não seja histórico é uma autodenúncia,
além de datar, às vezes
equivocadamente, tal escrito.
Enfim, a escolha entre
um tom coloquial ou formal na Literatura será um
direcionamento de quem
lerá nossas obras: quanto
mais coloquial, mais acessível será para o leitor, porém, como a fala está em
constante mutação, menor
será a perenidade do texto; quanto mais formal ou
rebuscado, maiores serão
as dificuldades do leitor
para assimilar o sentido,
mas, a longo prazo, mais
duradoura será a mensagem.
A opção lingüística
pode até se fundamentar
em princípios estéticos,
mas suas conseqüências
são bastante práticas e
dizem respeito diretamente a que tipo de leitor — e
de leitura — a obra se
destinará.
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Crônica
Caio Rudá
Ao sr. schopenhauer
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SAMIZDAT dezembro de 2008
Caro Sr. Schopenhauer,
antes de mais nada quero
registrar a necessidade de
escrever-lhe diretamente.
Este documento, entretanto,
tem lá sua importância e
por isso é possível que aguce
a curiosidade alheia. Não
me surpreenderia, portanto,
que viesse a cair em mãos
que não as suas, mas afirmo
veemente que a pendência é
entre nós dois, um gigante
do século XIX e um zé-ninguém dos anos 2000.
Escrevo na certeza de uma
resposta, pois sei que para o
senhor, dotado de inúmeras
qualidades, auto-reconhecidas e auto-exaltadas, os obstáculos que impedem nossa
comunicação são facilmente
superáveis. Não tenho dúvidas de que um profundo
conhecedor e estudioso de
línguas, como o senhor, tem
o meu humilde português
como mais um item em seu
vasto repertório de idiomas,
mas se por acaso faltar-lhe a
ciência sobre a “última flor
do Lácio”, estou certo de que
seu raciocínio agudo e sagaz,
juntamente com o conhecimento do Latim e até mesmo
de outras línguas que Dele
derivam, farão do senhor
um hábil leitor. Espero que,
ao escrever Latim em letra
capital ressaltando Sua superioridade ante esses dialetos
que hoje a Europa conhece
como línguas nacionais, perceba meu respeito pelas suas
idéias e leia-me com alguma
atenção.
Se o senhor foi assaz condescendente para iniciar e
continuar a corrente leitura
até aqui, seria sensato de sua
parte aceitar minhas devias
escusas por não dirigir-lhe
a palavra em Alemão, esse
idioma soberano, embora
não-clássico, e também por
talvez estar sendo confuso
e mesmo ininteligível. Não
é que eu queria forçar um
estilo. Com toda a sinceridade, afirmo-lhe que tento
ser o mais natural e breve
possível.
Voltando à questão das
barreiras que nos separam,
a única que me fez hesitar
antes da escrita dessa mensagem foi o fato de o senhor
estar morto. Obviamente,
considero que o esteja de
fato, afinal, se de alguma maneira tivesse descoberto o segredo da vida longa e vivesse
nos dias de hoje, por certo
não estaria se escondendo,
às sombras ou vivendo no
anonimato. Primeiro, porque
o anonimato lhe causa ojeriza e, depois, porque é de sua
natureza exibir-se.
Pois bem, agora vamos
ao âmago de minha contestação. Recentemente, entrei
no mundo de suas idéias
através do brilhante Parerga
e Paraliponema. Na verdade,
não fiz a leitura completa da
obra, mas apenas dos escritos relacionados à literatura,
língua e erudição. Cito-os
aqui: “Sobre a erudição e
os eruditos”, “Pensar por si
mesmo”, “Sobre a escrita e o
estilo”, “Sobre a leitura e os
livros” e “Sobre a linguagem
e as palavras”.
Diversas foram as minhas
considerações e opiniões
acerca dos textos a que me
refiro, ora concordando,
ora encontrando algumas
divergências. Eu poderia
enumerar diversos tópicos
para debate, mas seria desnecessário, além de trabalhoso.
Questões válidas, no entanto,
e muito interessantes. Assim,
vou me centrar nos pontos
que mais me chamaram a
atenção quando da leitura
desses textos.
O primeiro deles é o
mau-humor crônico que lhe
é característico. Esse quadro
de rabugice eterna na verdade é um transtorno psiquiátrico conhecido como distimia. Muito provavelmente o
senhor foi um distímico, um
sujeito amargo, que reclamou
de tudo e só viu angústias e
infortúnios mesmo no mais
belo nascer do sol. Por isso
tenho lá minhas dúvidas sobre sua causa mortis. Pobre,
Schop! Acho que mentiram
para o senhor. Disseram-lhe
pneumonia em vez de infarto ou AVC, sei lá... algo provocado por toda a amargura
guardada e também pelas
despejadas em seus escritos.
Não me entenda mal. Não
estou criticando seu mau
humor. Pelo contrário, ele é
sua marca. Ele é você e você
é ele. Não existiria Schopenhauer sem mau humor e
vice-versa. Sabe, deixe-me
contar uma história. Os
novos dicionários da língua
portuguesa adicionaram o
verbete Schopenhauer, ou
chopenrrauer (aportugue-
www.samizdat-pt.blogspot.com
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sado). Adivinha o que ele
significa? (risos) Brincadeira,
viu Schop? Só para descontrair. Ah, desculpe. Você
não sabe o que é isso (risos).
Outra piada. Agora que estamos mais íntimos, que criei
um clima mais amigo, vou
chamá-lo de Schop. Pode ser?
Então, como eu ia dizendo, o chopen... digo, o
mau-humor é sua marca.
Não haveria graça em lê-lo
se não tivéssemos que imaginar qual seria o próximo
xingamento para alguns de
seus adversários. Ah, Schop,
você precisa ver como está o
mundo moderno. Sabia que
suas idéias hoje são bastante influentes? Acredita que
recentemente criaram um
curso de “como denegrir a
imagem do seu inimigo com
classe”? Apostilas baseadas
em sua obra.
O outro fato que me levantou uma tremenda curiosidade foi como você tem
tanto conhecimento acumulado. Além de um grande
pensador, foi um poliglota
sem igual. Latim, grego clássico, sânscrito, inglês, francês,
italiano e espanhol, além do
materno Alemão. Essas são
as que nos foram permitidas
saber. Não me espantaria
que houvesse mais algumas
a citar. Mas o que me intriga
não é que você tenha todo
esse conhecimento, afinal de
uma mente brilhante tudo
se espera, e sim como você
o adquiriu sem tanta leitura.
Sim, porque “as pessoas que
passam suas vidas lendo e tiram sua sabedoria dos livros
84
84
são semelhantes àquelas que,
a partir de muitas descrições
de viagens, têm informações precisas a respeito de
um país (...) no fundo não
dispõem de nenhum conhecimento coerente”, em suas
próprias palavras. Só posso
concluir que você nunca foi
apegado a leituras, especialmente as de má qualidade.
Então fica a curiosidade
de como vieram as aulas
de idiomas que nos dá em
Parerga e Paraliponema. Já
nessa época você era agraciado com o dom da violação
do tempo e conseguia retrocedor em séculos e mais
séculos para adquirir as
noções de latim e grego?
ra alemã e mundial de seu
período. Nem sua mãe lhe
escapou à língua firina. Seriam os escritores da época
tão lastimáveis assim? Ou
o seu mau humor influenciava até na hora de emitir
um juízo sobre a obra alheia,
fazendo pouco de tudo o que
não lhe apetecia? Talvez você
fosse um crítico muito parcial, tomado pela mágoa de
ter tido um reconhecimento
tardio, em seus últimos anos
de vida. Ou talvez os alemães de seu tempo fossem
bons comedores de chucrute
enquanto escritores mesmo,
o que é mais provável, dada
sua superioridade diante dos
outros seres humanos.
Ainda sobre idiomas,
outra curiosidade. Qual o
problema com os “repulsivos
sons nasais”? Tudo bem que
os alemães nunca se deram
bem com os franceses, o que
lhe dá motivos para desmerecer a língua dos gauleses,
mas que, pelo menos, se
atenha às características peculiares do falar desse povo.
Eu, como lusófono, me ofendi
com essa declaração de ódio
aos belos sons nasais. Seria despeito por não saber
pronunciá-los corretamente?
Nesse ponto, você foi infeliz.
Prometo que agora encerro de verdade. Só aproveitando a deixa do último
parágrafo. Olha, aqui vai um
conselho de amigo. Você é
gênio, cara. Não há como negar. Um homem num patamar acima dos demais. Mas
não deixa isso lhe subir à cabeça. Pode pegar mal, causar
mal-entendidos. Nunca se
sabe. Nem todos compreendem a genialidade.
E para finalizar, que a
carta está ficando muito
extensa, só queria cutucá-lo
mais uma vez: você falou
mal de Deus e o mundo,
atirou pedras aos sete cantos
do planeta e em matéria de
literatura foi o crítico mais
ferrenho de todos os tempos.
Desconsiderou a literatu-
SAMIZDAT dezembro de 2008
É isso, Schop! Foi uma
mensagem breve e amigável. Queria escrever mais,
mas agora devo dedicar-me
à reflexão, pensar por mim
mesmo. Afinal, nos dias de
hoje, ainda dá para fazer
isso e mais nada da vida.
Leio, penso e cuido do meu
cachorro. Sou desocupado
mesmo, sou filósofo.
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85
Crônica
Dialética do
jeitinho brasileiro
Henry Alfred Bugalho
O “jeitinho” faz parte
da cultura brasileira, está
imbuído na psiqué do
brasileiro.
Às vezes, o jeitinho
trata-se duma maneira
criativa para resolver
problemas insolúveis - e
problemas insolúveis é o
que não falta no Brasil.
O jeitinho pode ser utilizado, por exemplo, para
ganhar dinheiro de maneira lícita, mas informal.
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86
Vender um espetinho na
praia, comprar barato e
vender caro, vender almoço pra comprar janta,
usar da lábia para conseguir o que se quer, ter
um QI para conseguir
um emprego.
Todos sonham com a
formalidade, mas formalidade e Brasil não combinam - conseqüência
dum Estado burocrático e
corrupto.
SAMIZDAT dezembro de 2008
Mas o jeitinho também
pode se manifestar ilícita,
sem deixar, no entanto, de
ser criativa: trazer muambas do Paraguai, distribuir DVDs piratas de filmes que ainda estão em
cartaz no cinema, molhar
a mão dum policial pra
escapar duma multa, cortar madeira sem licença
de áreas de preservação,
desviar verba pública,
sonegar impostos, vender
gato por lebre... A lista é
http://www.flickr.com/photos/gcastoldi/2582207281/sizes/l/
enorme, os modos ilícitos de jeitinho são muito
mais variados do que os
lícitos.
Os noticiários apresentam-nos todos os dias
uma série de expressões
do jeitinho. Lembro-me
quando foi implementada
a lei proibindo a ingestão
de qualquer quantidade
de álcool por motoristas
- a famigerada Lei Seca.
O jeitinho entrou em
ação, tentando conceber
maneiras para enganar o
bafômetro: balas-de-menta, chiclete, beber vinagre,
e outros absurdos. Neste caso, o jeitinho não
funcionou e muita gente
rodou nas blitz.
Dias atrás mesmo, o
jeitinho brasileiro voltou
a ser notícia. Voluntários
ajudando os desalojados
das enchentes em Santa
Catarina estavam aproveitando aqueles montes
e mais montes de roupas
e alimentos para economizar um dinheirinho.
Afinal de contas, era
tanta coisa que ninguém
iria perceber se um tênis,
um sutiã, uma calça jean,
ou um quilo de feijão
desaparecessem. “O que
os olhos não vêem, o
coração não sente”, diz o
ditado, e este é também
um dos motes do jeitinho: tudo vale, enquanto
você não for pego.
Os jeitinho brasilei-
ro extrapola os limites
geográficos, onde há um
brasileiro, o jeitinho o
persegue. Nos EUA, por
exemplo, há muito brasileiro trabalhando duro
e honestamente, mas os
que dão um jeitinho pra
tudo são sempre mais
interessantes para a mídia. Semana passada, foi
presa uma quadrilha de
brasileiros que fabricava
notas falsas de cem dólares. Peixe grande!
Mas os peixes pequenos, que compram documentos falsos, que enviam grana preta através
de doleiros, que vendem
drogas na noitada, que
fazem de tudo por uma
renda extra continuam
por aí. “O que os olhos
não vêem, o coração não
sente”, diz o ditado, e isto
vale para um país onde
tudo é permitido, ou para
aquele com lei rigorosa.
O jeitinho também
não respeita classe social. Aliás, o nível sócioeconônimo só determina
um fator: o tamanho do
jeitinho.
Pobre rouba miúdos,
como gatos pra pegar TV
a cabo ou pra ter acesso a internet; rico rouba
bocados, rombos milionários aos cofres públicos.
britânica, a ambição norte-americana, o rigor dos
alemães, a inteligência
dos judeus, a capacidade de concentração dos
japoneses. Talvez esteja
na hora de reconhecermos a nossa característica
nacional: o jeitinho do
brasileiro.
Assim como estão
tentando revitalizar a
imagem do malandro,
daquele boêmio carioca
das rodas de samba e da
capoeira - o “bom malandro” - , talvez esteja na
hora de revitalizarmos
também o jeitinho e talvez até redefinirmos sua
concepção e encontrarmos algo de bom, o “bom
jeitinho”, quando toda
esta capacidade criativa
dos brasileiros para superar adversidades é utilizada pra algo que preste, e
não apenas para prejudicar os outros.
Portanto, diga sim ao
“bom jeitinho” (e torça para que, um dia, as
notícias nos jornais sejam
de jeitinhos a favor das
outras pessoas)!
Muitos povos são conhecidos por suas características: a pontualidade
www.samizdat-pt.blogspot.com
87
Crônica
Litoral
e Capital
“Todos os homens são
filhos da puta”.
Somos filhos da puta
mesmo. Alguns de nós
mais do que o aceitável,
outros menos do que deveríamos.
Mas você tem que nos
perdoar. Somos todos
crianças. Mesmo o mais
cínico, o mais orgulhoso
e vaidoso de nós é uma
criança. Sei que isso não é
desculpa para nossa ignorância, mas é no mínimo
um atenuante.
Às vezes, somos animais. Animais cujo maior
pecado é a imaginação.
Mostre-nos uma loira,
que fantasiaremos com
rainhas nórdicas sob peles,
num deserto gelado. Mostre-nos uma morena, que
88
88
imaginaremos seu sangue
latino fazendo pulsar seu
corpo colado no nosso.
Uma mulher magra,
para nós é flexível e móvel. Uma mais cheia, é
quente e amorosa.
Hoje vi uma mulher na
rua, na calçada oposta. Ela
andava na direção oposta
à minha. Quando meus
olhos encontraram os dela,
seu pescoço se deslocou
para o lado, assim como o
meu, e nosso olhar demorou mais do que os olhares
que normalmente compartilhamos com estranhos na
rua. Ela era alta, mesmo de
longe, e usava um vestido
roxo justo, que ressaltava
bem seus seios. Tinha cabelos pretos, e sua pele era
morena. Ela sorriu quando
nos olhamos e eu sorri
também.
SAMIZDAT dezembro de 2008
http://www.flickr.com/photos/himmelundholle/527154570/sizes/l/
Pedro Faria
E foi só.
Para ela, não deve ter
sido nada. Apenas mais
um homem lhe olhando
na rua, nada fora do normal. Mas em mim, como
seria em todos os homens,
esse breve encontro gerou
inúmeros pensamentos.
Nessa hora, eu estava
com um amigo, e após ver
a mulher, não ouvi mais
nenhuma palavra dita por
ele durante alguns minutos.
O modo como ela me
olhara...
Nenhuma mulher sabe
realmente o efeito de seu
olhar sobre um homem.
Muitas acham que sabem,
mas se enganam.
A morena me afetara
de tal maneira que eu não
pude deixar de imaginar
aquele vestido roxo jogado
no chão, e seu corpo deitado sobre o meu, comigo
lhe explorando com meus
dedos e minha boca, como
se eu pudesse penetrar
no mais profundo de seus
segredos, e como todos os
seus desejos se abrissem
para mim, apenas com
meus toques.
O que me despertou
para a vida foi o tropeço
que dei num buraco na
rua. Quase caí de cara no
chão.
Não sei o que a mulher
sentiu depois de nosso
pequeno momento urbano. Provavelmente bem
menos do que eu. Mas,
com minha imaginação de
homem, eu posso me dar
o prazer de imaginar que
ela também teve alguma
ligeira visão, ou pelo menos uma sensação diferente, algo que não sentiria
normalmente no dia a dia.
Porque, no fim das contas, o mínimo que nós homens desejamos é sermos
lembrados como algo fora
do comum, como alguma
perturbação da rotina da
mulher.
Não queremos simplesmente dominar as mulheres. Queremos dominá-las,
e ser dominados também.
Queremos a ligação quase religiosa que apenas o
amor físico pode proporcionar, mas que só existe
com a presença de mesmo
a mínima afinidade intelectual. É contra intuitivo
um homem falar isso. Ora,
seria contra intuitivo mesmo se eu fosse uma mulher, do jeito que as coisas
andam hoje em dia.
Mas é a verdade.
Claro que o oposto também é verdade: É difícil
existir o amor romântico
sem a atração física.
Toda a mecânica do
amor então se torna algo
muito complicado, quase
como aquele desenho de
Escher, com as mãos desenhando umas as outras.
A grande pergunta não
deveria ser “quem nasceu
primeiro? O ovo ou a galinha”, e sim “O que nasce
primeiro? A luxúria ou a
poesia?”.
De cara, parece fácil responder “luxúria”, mas não
acho que seja assim tão
simples.
Para falar a verdade,
essa questão é a única que
realmente não é simples
nessa roda de relações.
Conheci uma garota,
quando ainda era bem
novo. Raquel era seu
nome, e me apaixonei por
ela, numa época em que
meu corpo ainda nem
sabia o que era excitação.
Chame de amor infantil,
ou do que quiser. A verdade é que eu a amava, e
com ela descobri como era
bom beijar uma garota,
e me apertar em direção
a ela, sem saber direito o
que estava fazendo, apenas
seguindo algum código
secreto escrito em meu
DNA. Tínhamos seis anos
nessa época, e não a vejo
desde então.
Quer dizer, nesse caso
veio o amor antes da
luxúria. Porém, se o contrário fosse impossível, não
existiriam prostíbulos, pois
os homens não conseguiriam apenas “foder” uma
puta, eles teriam que “fazer
amor” com elas, e teoricamente falhariam.
No fim do dia, tanto nós
homens, quanto vocês mulheres, desejamos apenas
alguém para nos agarrarmos quando estivermos
com medo, e com quem
comemorarmos quando
estivermos felizes. Alguém
que satisfaça nossas vontades, e que tenha as suas
satisfeitas por nós.
Nem todo mundo encontra essa pessoa. Alguns
acham que encontram,
mas quando se viram para
o lado e encontram apenas
a carne fria, ou quando
tremem e não há abraços
que lhe aqueçam, percebem seu erro.
Outros...
Bem, outros têm certeza
que encontraram, mas não
são encontrados.
“O que nasce primeiro, a
luxúria ou a poesia?”.
Para mim?
Só o fato da pergunta
existir, já é um sinal que
não existe uma resposta
única.
E eu não sei. Às vezes é
por isso que nos lançamos
cada vez mais forte na
vida, procurando a carne
quente e os abraços acolhedores em estranhos certos e conhecidos errados.
Tão forte que não paramos
quando encontramos o
certo.
E muitas vezes, quando
passamos batidos, não temos mais como voltar.
www.samizdat-pt.blogspot.com
89
Joaquim Bispo
A desinformação pública
A era de Cristo, convencionou-se, começou a 1
de Janeiro do ano 1. Há o
momento zero, mas não há
o ano zero. No fim do dia
31 de Dezembro do ano
1, completou-se 1 ano. Se
alguém tivesse comemorado a data, devia ter comemorado um ano, como os
pais fazem com qualquer
criança quando completa
1 ano. Neste método, claro
e lógico, no fim do ano 2,
passaram 2 anos desde o
início da era; no fim do ano
99, passaram 99 anos; no
fim do ano 100, passaram
100 anos; no fim do ano
1999, passaram 1999 anos
desde o início da era; no
fim do ano 2000, passaram
2000 anos e é altura de
comemorar a completude
de dois milénios. Alguma
dúvida?
90
90
Isto é o que os historiadores sabem e não lhes
merece qualquer tipo de
discussão.
No entanto, não foi
isso que vimos por todo o
mundo, com a comunicação social, ignorante mas
arrogante, comandada pela
globalização mercantilista
e a pressão consumista, a
propagandear o embuste e
a incentivar a comemoração da passagem do milénio na passagem de ano de
1999 para 2000. Cheguei a
ouvir a alarvidade de que
mudava o milénio, mas não
mudava o século. Enquanto
isso, não vi qualquer tentativa, por parte das entidades
científicas, que também têm
responsabilidades sociais,
de desmistificar a falsidade.
Alguns docentes, com quem
SAMIZDAT dezembro de 2008
abordei o assunto, encolheram os braços em atitude
de demissão.
Esse período foi penoso
para mim. Imbuí-me da
consciência aguda de que
a razão, o rigor e a verdade
científica estavam arredados
das nossas vidas e da nossa
sociedade, substituídas por
interesses meramente económicos, ou ainda de índole
mais obscura. Descri da
possibilidade de qualquer
avanço de mentalidades,
tendo por mentores tais
pedagogos de massas. Se
não conseguem elucidar a
sociedade sobre uma coisa
tão simples e descomprometida, que sabedoria, que
esclarecimento se pode
esperar deles, em questões
de importância crucial para
a Humanidade?
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e4/Cristo_en_la_cruz1.jpg
Crônica
Joaquim Bispo
A importância
do prepúcio
Se Cristo nasceu a 25 de
Dezembro, porque é que a
era de Cristo começa a 1 de
Janeiro?
Na verdade, não se sabe
quando Cristo nasceu.
Actualmente, pensa-se que
nasceu cinco a sete anos antes da nossa era. O monge
cita Dionísio o Exíguo, por
volta do ano 532 da nossa
era, indicou o dia 25 de
Dezembro do ano 38 da era
de César, como a data desse
acontecimento e o início
da nova era. No entanto, a
era de César continuou a
ser usada durante séculos.
Em Portugal, foi D. João I
que a aboliu, substituindo-a
pela de Cristo, no ano 1460
da era antiga, que passou
a ser o ano 1422 da nova
era. Por isso, a data aposta
nos documentos anteriores
a esse momento deve ser
diminuída de 38 anos, para
os situar em relação à nossa
era.
O início do ano civil estava fixado, desde os Romanos, em 1 de Janeiro, por ser
o primeiro dia do mandato
dos seus cônsules. No entanto, o início do ano litúrgico foi variando, conforme
a época e os países, mas
sempre associado a Cristo.
No que ficou conhecido
como o estilo da Incarnação ou da Anunciação, o
ano novo começava a 25 de
Março, dia apontado como
o da anunciação à Virgem
de que ia ser mãe. No estilo
da Natividade, o ano come-
çava a 25 de Dezembro. O
estilo da Páscoa usava o dia
desta festa móvel, o que era
pouco prático. Finalmente,
em 1582, os cronologistas
católicos aderiram ao início
do ano a 1 de Janeiro, a que
se chama estilo da Circuncisão, por coincidir com
a circuncisão de Cristo, já
que era uso, entre os Judeus,
circuncidar as crianças no
oitavo dia após o nascimento.
Assim, curiosamente,
vivemos na era que não é
do nascimento, nem da incarnação, nem da morte de
Cristo, mas da ablação do
seu prepúcio.
www.samizdat-pt.blogspot.com
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http://indiainteracts.com/utilities/printpage.php?source=blogcontent&id=3400&postid=33
Crônica
Crônica
Mitos, mitos,
mitos
http://cartoons.osu.edu/nast/images/santa_claus100.jpg
Joaquim Bispo
A pressão comercial
criou o mito do Pai Natal.
Antes, havia o mito
cristão: uma virgem
engravidou de uma entidade extraterrestre ou
sobrenatural. A esse filho
foram atribuídos feitos
sobrenaturais: milagres.
A história dos Romanos
(uma espécie de americanos da altura) não deu
por ele, o que não impediu que a lenda crescesse
exponencialmente nos
séculos seguintes. Nos
últimos tempos, porém,
tornava-se difícil transformar em paradigma do
consumo o nascimento,
92
92
no ambiente sórdido de
um estábulo, de uma
figura que acabou em
situação não menos deplorável.
Um velho, meio avô
excêntrico, meio palhaço,
que voa de trenó, vive no
Pólo Norte e dá objectos
de consumo a todas as
crianças, foi o mito que
veio preencher a necessidade duma figura glamorosa ultra rica, que gasta
a rodos. É claro que não
é uma entidade sobrenatural que esvazia a carteira…
Muito gostam os inventores de mitos de pôr
figuras antropomórficas
SAMIZDAT dezembro de 2008
a voar! Como na imaginária pré-contemporânea,
barroca, sobretudo, em
que figuras aladas de todos os tamanhos voavam
em revoadas compactas
em todas as direcções e
tornavam incontrolável o
espaço aéreo, também o
Pai Natal foi criado como
voador. Nada disto é bom
para a, já de si, difícil decifração do mundo real,
por parte da criança, que
assim recebe, de quem
mais confia, um acréscimo de dificuldade, uma
mentira. Não se faz!
ficina
No mês de novembro, foi lançado o A
­ udiobook com
­contos de membros da Oficina da E-TL.
O CD foi produzido por Alian Moroz.
Conteúdo
1 - "Vovô Caneco", de Alian Moroz
2 - "O Menino Binário", de Carlos Barros
3 - "Coleção de Botões", de Giselle Sato
4 - "Noite Estrelada", de Guilherme Rodrigues
5 - "A Vingança de Bento Julião", de Henry
­Alfred B
­ ugalho
6 - "Os Ratos", de Joaquim Bispo
7 - "Esmeralda, Jade e Rubi", de José Espírito
Santo
8 - "Fissuras Íntimas", de Leo Borges
9 - "A Palhinha", de Maria de Fátima Santos
10 - "A Última Revolta de Jesus Cristo", de Rogers Silva
11 - "Com Carinho, Isolda", de Volmar Camargo Junior
As faixas do audiobook podem ser baixadas
­gratuitamente no enredeço abaixo:
http://oficinaeditora.org/2008/11/29/audiobook-da-oficina/
www.samizdat-pt.blogspot.com
93
Poesia
LABORATÓRIO POÉTICO
Do caroço de uma hora
(a essência das Horas)
do caroço de uma hora
extraí a substância vítrea
oleosa
fugaz como a vontade
etérea como a sensatez
em nenhum recipiente
pude contê-la a contento
escapava sempre um tanto
às vezes muito
quase sempre dobrava de tamanho
e assim, aos poucos
às gotas
às partículas
preencheu o espaço
tão meu conhecido
era sedutora, envolvente
a bruma que nascia
pois era bruma
era um vapor invisível
que fez sumir as paredes
a paisagem da janela
os hábitos convenientes
e os meus pés
sim, por dias
se ainda lembrava o que eram
fiquei sem vê-los
deixei-me entregue
à essência do caroço das horas
inalei, comi, bebi
despi-me
e assim, despido
cobri-me inteiro com ela
não era dor
era antes um frio
das pontas dos cabelos até a
boca do estômago
94
94
enredou-me
dentro e fora de mim vivia
aquilo
impossível conter
e mesmo quando do fundo da
garganta
nasceu o último murmúrio
a coisa cristalizou-se
virou gelo
rocha
diamante
vidro
era o vidro em mim
o vidro das horas
- o vidro das raízes do tempo
de toda árvore vítrea que é o
tempo
da seiva vítrea
sangue do que não se vê –
era o vidro em mim
não mais nas horas
não mais preenchendo os vãos
entre as partículas da poeira
do tecido das estrelas
era o vidro em mim
deixou de ser essência
primordial ou quintessencial
era em mim
era eu
e
como é próprio das coisas
nascidas ou tiradas
da árvore que dá os frutos do
tempo
o vidro que tinha a mim
cristalizado
sumiu
voltaram as roupas
SAMIZDAT dezembro de 2008
http://www.flickr.com/photos/carbonnyc/64581364/sizes/o/
Volmar Camargo Junior
[email protected]
as paredes, as janelas
a paisagem
os sapatos
da essência das horas
restou só
uma gota
escorreu-me pela testa até a
ponta do nariz
intempestiva
decidida
livre
lançou-se no espaço
num mergulho que só eu
percebi
até o choque derradeiro contra
o piso
saí
fechei as janelas, tranquei as
portas
segui como pude
vivo como consigo
ainda lá está, intocado
o piso onde caiu a última gota
da substância vítrea
oleosa
extraída do caroço de uma hora
tinha a esperança que
onde a gota caiu
pudesse brotar outra árvore
com um tempo diferente
quem sabe misturado
a um tanto da poeira
dessa poeira que sou eu
Poesias
Carlos Alberto Barros
PASSOS
Ando, passo e ando...
Passos, quantos passos?
Tantos, falsos e tantos...
NATALIDADE
Sou sem ser, urbano.
Nasço em berço errado:
Tecla sem piano.
http://www.flickr.com/photos/mrsmagic/1358807119/sizes/o/
CORAÇÃO
Explode!
Explode, cabeça!
E acaba com este cérebro maldito.
Quero apenas meu corpo,
Para abrigar meu coração,
Que agora...
Sou só ele.
www.samizdat-pt.blogspot.com
95
sonetos
Marcia Szajnbok
gosto de pensar que sou um ser aquático
que nasceu em terra firme por engano
e que um dia cada pedaço do que sou
retornará ao seu lugar, que é o oceano
gosto de supor que dentro de mim exista
uma concha, um caramujo, algum coral
e que este sangue que tenho hoje vermelho
http://www.flickr.com/photos/9850426@N06/2429280694/sizes/o/
ficará um dia transparente, só água e sal
é um conforto imaginar-me assim
percorrendo mares, levada nas correntes
na espuma branca das ondas, diluída
no ilimitado das águas encontrarei enfim
a profundeza inusitada e azul da liberdade
que tanto persegui por toda vida
96
96
SAMIZDAT dezembro de 2008
Não quero conhecer de ti só teu melhor
Quero também aquilo de que não gostas
O que tens como mau, vergonhoso, triste
Quero que me ofereças até que saiba decór
A melancolia que tantas vezes te habita,
Quero-te nos teus dias maus, de frio, de baixa
Quero te amar além do que é terno e doce
Quero pôr à prova minha vontade infinita
De trazer à luz meus melhores devaneios
Pois, do modo como te amo, meu amor,
O que tenho em mim de calor basta
Para extinguir para sempre teus receios
Derreter até a última gota do teu gelo
E estreitar a distância que te afasta...
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PlacigAMORniano
Dênis Moura
Amor, fogo que só arde em nosso ser,
É a dor de nosso pedaço ausente,
Descontente ao não ser bem mais contente,
É a dor que só nos precede o prazer;
Não querer esfomeando o querer,
Solitário com quem não está presente,
É buscar ser feliz eternamente,
É o estar preso usando a liberdade,
É vencer pra servir quem lhe venceu,
Com quem te ganha a vida, lealdade.
Então pode causar o favor seu
Nos corações humanos amizade:
Não tão contrário a si é o amor meu.
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SAMIZDAT dezembro de 2008
http://www.flickr.com/photos/peasap/1752872124/sizes/l/
Trocar bem quando ganha ao perder;
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SOBRE OS AUT
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SOBRE OS AUTORES DA
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Dênis Moura é paulistano de pia, cearence de
mar e poeta de amar. Viaja tanto o céu estrelado quanto
o ciberespaço, mais com bits de imaginação que com
telescópios. Pensa que tudo se recria a cada Big Bang, seja
ele micro, macro ou social. Luta pela justiça, a paz e a
igualdade, com um giz na mão e uma pistola na outra. É
Tecnólogo a sonhar com Telemática social, com a democracia participativa eletrônica, onde o povo eleja menos
e decida mais. Publica estes dias sua primeira obra, um
Romance de Ficção Científica, e deixa engavetadas suas
apunhaladas poesias. É feito de bits, links e teia pra que
não desmaterialize, o clique, o blogue e o leia!
www.samizdat-pt.blogspot.com
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Giselle Sato
Giselle Sato é autora de Meninas Malvadas, A pequena
bailarina e Contos de Terror Selecionados. Se autodefine
apenas como uma contadora de histórias carioca. Estudou
Belas Artes, Psicologia e foi comissária de bordo. Gosta
de retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que
chegam a chocar pelos detalhes, funcionando como um
eficiente panorama da sociedade em que vivemos.
[email protected]
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Guilherme Rodrigue
Estudante Letras na
ado
Universidade do Sagr
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Coração, em Bauru, on
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Nu
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sempre morou
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grande paixão por Lín
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Literatura e Lingüística
ca
áreas em que se dedi
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cada vez mais
Joaquim Bispo
Ex-técnico de televisão,
xadrezista e pintor amador,
licenciado recente em História da Arte, experimenta
agora o prazer da escrita,
em Lisboa.
o
Henry Alfred Bugalh
a pela UFPR, com
É formado em Filosofi
ra e
pecialista em Literatu
ênfase em Estética. Es
as
atro romances e de du
História. Autor de qu
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coletâneas de contos
Nova York, com sua
Mora, atualmente, em
sua cachorrinha.
esposa Denise e Bia,
.com
henrybugalho@gmail
www.maosdevaca.com
Marcia Szajnbok
Médica formada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, trabalha
como psiquiatra e psicanalista.
Apaixonada por literatura e línguas estrangeiras, lê sempre que
pode e brinca de escrever de vez
em quando. Paulistana convicta,
lo.
vive desde sempre em São Pau
[email protected]
José Espírito Santo
Informático com licenciatura
e pós graduação na Faculdade
de Ciências da Universidade de
Lisboa, trabalha há largos anos
em formação e consultoria, sendo
especialista em Bases de Dados,
Sistemas de Gestão Transaccional
e Middleware de “Messaging”. A
paixão pela escrita surgiu recentemente, tendo no ano de 2007
produzido os livros “Esboços”
(contos) e “Onde termina esta praia”
(poesia). Vive com a família em Port
ugal em Alverca, uma pequena
cidade um pouco a norte de Lisboa.
r Deves
Maristela Scheue
pequena ciGaúcha nascida na
eçou a sonhar
dade de Pirapó, com
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a ler. Escreve principa
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http://www.riodeescrita.blogspot.com
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Caio Rudá
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Bahiano do interior,
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mora na capital.
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logia na Universidade
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cando o enigma da ex
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duas décadas de vid
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como consolo, um po
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asseverado pela mãe
Pedro Faria
Estuda Matemática na Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
músico amador e escritor quando
dá na telha. Nascido e criado no
Rio.
[email protected]
http://civilizadoselvagem.blogspot.com/
Maria de Fátima Santos
Nasceu em Lagos, Algarve, mas tem Angola, onde
viveu a adolescência, como a sua mãe-terra. Licenciada em Física tem sido professora de Física e Química.
Com poemas em vários livros, em co-autoria, é às pequenas histórias, que lhe voam no teclado, que chama
“meus contos”. O blog Repensando (www.intervalos.
blogspot.com ) tem sido seu parceiro e motivador na
escrita dos últimos anos. Escreve pelo gosto de deixar
que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.
Volmar Camargo Junior é gaúcho. Formado
em Letras pela Universidade de Cruz Alta, não
leciona por sua própria vontade. Entrou na ECT
em 2004, e desde então já morou em meia dúzia
de “Pereirópolis” pelo Rio Grande. Atualmente
vive com a esposa Natascha em Canela, na Serra
Gaúcha. Dividem o apartamento com Marie,
uma gata voluntariosa e cínica.
[email protected]
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj
Zulmar Lopes
Zulmar Lopes é carioca. Forma
do em jornalismo pela Universidade Gama
Filho, trabalha
como assessor de imprensa. Alm
a provinciana e
coração suburbano, encontra-s
e provisoriamente exilado na cosmopolita Copac
abana, bairro
fonte de inspiração de personage
ns e situações
que compõem seu
www.samizdat-pt.blogspot.com
101
s contos. Escreve para fugir
do marasmo.
Também nesta edição,
textos de
Caio Rudá
José Espírito Santo
Carlos Alberto Barros
Marcia Szajnbok
Dênis Moura
Maria de Fátima Santos
Giselle Natsu Sato
Maristela Scheuer Deves
Guilherme Rodrigues
Pedro Faria
Henry Alfred Bugalho
Volmar Camargo Junior
Joaquim Bispo
Zulmar Lopes
102
102
SAMIZDAT dezembro de 2008

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