A escola da tradição

Transcrição

A escola da tradição
A escola da tradição
Nas montanhas de Petrópolis, orar é lição diária, e o hebraico é fluente entre os alunos do
mais antigo colégio para judeus ortodoxos do Brasil.
Por: Claudia Altschüller | Foto: Felipe Goifman,
Matéria publicada na Revista National Geographic
Meu filho me deu uma lição. Quando Daniel estudou numa escola rabínica, entre 2004 e
2005, ele era exceção. Tais escolas, as yeshivás, são mais procuradas por filhos de rabinos ou
de famílias que praticam o judaísmo com o devido rigor. O pai de Daniel não é judeu e eu,
apesar de ser, nunca tive uma educação dentro dos rígidos preceitos da religião. Um dia,
porém, meu filho foi à sinagoga Beit Aharon, que fica perto de nossa casa, no bairro de
Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Começou a ter aulas com o rabino Berkes. Meses depois, o
menino que não falava hebraico se transformou em um jovem ávido para aprender os valores
da religião e a ler a
Torá, o livro sagrado. E,
com isso, me fez despertar para um retorno às origens de minha própria história.
1/4
A escola da tradição
Eu percebo bem o quanto ele se tornou querido entre os alunos da escola numa tarde gelada e
ventosa de domingo, quando somos recebidos com alegria na Yeshivá Colegial Machané
Israel, no alto das montanhas fluminenses, em Petrópolis. Muitos alunos, seus ex-colegas de
classe, correm em sua direção gritando por "Schuller!", seu apelido na escola. É um reencontro
emocionado, e o dia é de festa: estudantes, professores e convidados celebram o 80o
aniversário da libertação do rabino Yossef Yitschac Schneersohn, o sexto rebe de Lubavitch
("mestre", em hebraico, da cidade bielo-russa em que se iniciou o movimento ortodoxo
Chabad, ou hassidismo, no fim do século 18). Proibido de preservar o judaísmo na
recém-formada União Soviética, o religioso acabou preso por agentes do Partido Comunista.
Chegou a ser condenado à morte, mas a pressão internacional forçou os soviéticos a
comutarem a sentença para exílio e, em seguida, libertá-lo.
Depois das boas-vindas, a celebração. Como manda a tradição ortodoxa, homens e mulheres
são separados por biombos na sinagoga do colégio interno. A reza e os discursos em
homenagem à data são comandados pela ala masculina e intercalados com danças em volta
da mesa principal. As mulheres participam a distância: acompanham a liturgia, conversam
entre si e tomam conta das crianças menores. Os homens mais velhos bebem vodca.
Esforço-me para enxergar a alegria deles pelos vãos do biombo de madeira. Vale a pena: o
ritmo das canções hassídicas, do gênero chamado nigunim, é contagiante.
Mais que um costume, preservar tradições como essa tem sido a missão da Machané Israel, a
mais antiga yeshivá da América Latina, fundada, em 1966, pelo húngaro Chaim Binjamini.
Nascido em Budapeste, em 1922, e sobrevivente do campo de concentração alemão de
Bergen-Belsen, junto com outros seis rabinos, Binjamini encontrou um porto seguro no Brasil
ao desembarcar aqui em 1954, após ter trabalhado como agricultor em Israel e ter participado
da guerra pela independência (1948). "Depois de tantos percalços passados, nos sentimos
bem no bairro de Carangola. Encontramos um lar", lembra-se ele. A escola ocupa uma área de
120 mil metros quadrados e mais parece um hotel de montanha: tem bosques, quadras,
piscinas, salão de jogos, refeitório, sinagoga, mikve (um reservatório de água construído em
2/4
A escola da tradição
conformidade com a lei judaica) e alojamentos. A entrada fica no pé de uma colina, vigiada por
cães. Para chegar à casa é necessário subir uma íngreme ladeira, ladeada pela mata onde, na
primavera, as hortênsias florescem para encanto dos visitantes. Patos nadam em um lago.
A idílica paisagem serrana e a atual ocupação contrastam com a história do belo casarão da
década de 1940. A propriedade pertencia à família de Berl Landau, um alemão investigado na
época por atividades ilegais no Brasil, ligadas ao nazismo. Na primeira visita à casa, Chaim
Binjamini e o grupo que o acompanhava pararam para ler os Salmos antes de entrar na sede,
onde havia uma biblioteca cheia de livros de temática nazista. (Por incrível que pareça, o
recinto foi transformado na primeira sinagoga da escola.) Outra curiosidade: o antigo
proprietário havia mandado plantar duas palmeiras em forma de V para simbolizar uma
pretensa vitória nazista. As árvores ainda estão vivas ao lado da secretaria.
A semana na yeshivá começa cedo. Os atuais 23 alunos acordam antes do raiar do dia para a
reza da manhã, a shacharit. No judaísmo, se possível, a pessoa deve rezar em congregação
no mínimo dez homens maiores de 13 anos em uma sinagoga. Em seguida, os estudantes
tomam o café-da-manhã no refeitório, onde as refeições seguem as leis alimentares do
kashrut
a observância de tais leis tem servido para unificar o povo judeu através dos séculos. Misturar
leite com carne, ao cozinhar ou ao servir, por exemplo, é uma violação dessas leis.
Os meninos estão maduros para estudar na yeshivá a partir dos 12 anos, ou seja, pouco antes
do bar mitzvah, a maioridade religiosa de um judeu. As turmas são pequenas: vão da 6a série
ao terceiro ano do ensino médio. A manhã serve para o ensino religioso, em português e em
hebraico, como as aulas de
talmud, parte do judaísmo que explica significado e
aplicações de leis ditadas pelo Pentateuco, a Torá. Depois do almoço e da oração da tarde, os
alunos seguem ao estudo laico. Ao contrário do que se pensa, nem todos serão rabinos: vários
irão prestar vestibular e cursar uma faculdade. "Muitos ex-alunos, mesmo em profissões
liberais, ocupam postos em instituições de educação judaica. A meta é repassar essa
educação para a comunidade", diz Abrahão Binjamini, um dos professores da escola.
3/4
A escola da tradição
Os rapazes ficam no colégio a semana inteira, exceto às sextas-feiras, quando vão para
Petrópolis. "Eles visitam lojas e casas para levar mensagens do judaísmo e rezar", explica
Binjamini. Na volta, preparam-se para o shabat, que começa no pôr-do-sol da sexta-feira e
termina quando surge a primeira estrela do sábado. Nesse dia, os judeus não realizam tarefas
cotidianas como escrever, trabalhar, acender a luz ou andar de carro. O tempo é todo dedicado
ao descanso e à oração. Para tanto, vestem as melhores roupas para ir à sinagoga: terno
preto, camisa social branca e chapéu de feltro preto por cima do solidéu.
Apesar das vestes escuras, de aparência medieval, do chapéu soturno e da idéia de reclusão
monástica que temos do lado de fora, os meninos da yeshivá fazem tudo o que é normal para
alguém da idade deles. Jogam futebol, lêem revistas, vão à piscina, fazem trilhas nas matas
adjacentes à escola, navegam na internet.
Meu filho, Daniel Felipe Altschüller, tem agora 19 anos e faz faculdade de história. Na época da
yeshivá, eu costumava visitá-lo nos domingos à tarde, mas sempre pensava nele ao longo da
semana, sentado na sala após o jantar com os colegas, em pequenos grupos, para revisão e
debate dos estudos. Essa cena até hoje me faz recordar o filme Yentl (1983), estrelado por
Barbra Streisend. A obra, baseada em um conto homônimo de Isaac Bashevis Singer, mostra o
cotidiano de uma escola rabínica na Polônia do início do século passado. O tempo, de fato,
parece correr em outro ritmo dentro de uma yeshivá. Passado e presente não se distinguem.
As tradições estão acima de tudo. Para um judeu, estar ali é estar em casa: meu filho me deu
essa lição.
4/4

Documentos relacionados

Tiago Jesus - Bem Explicado

Tiago Jesus - Bem Explicado peregrinações a este lugar sagrado entre o Rosh ha-Shana e o Yom Kippur.

Leia mais