Angústia e Pessimismo na Poesia de Augusto dos Anjos

Transcrição

Angústia e Pessimismo na Poesia de Augusto dos Anjos
Ana Paula Araújo de Morais1
James Wilker Freire Machado
Orlando Freire Júnior2
A vida é uma caçada incessante onde, ora como
caçadores, ora como caça, os entes disputam entre
si os restos de uma horrível carnificina.
(SCHOPENHAUER, 1959, p.28-9)
Resumo: Este artigo visa apresentar um estudo sobre a angústia existencial e o pessimismo presentes
nos poemas de Augusto dos Anjos. Iremos apontar a amargura cósmica e universal que reflete na sua
poesia transgressora, singular, iconoclasta, hedionda e metafísica, a partir da análise dos poemas
“Eterna Mágoa”, “Noli Mi Tangere”, “Queixas Noturnas”, “Hino a dor” e “Homo Infimus”, entre
outros poemas que trazem a influência de suas leituras de Arthur Schopenhauer, de quem herdou o
pessimismo diante da existência humana.
Palavras-chave: Angústia; Pessimismo; Augusto dos Anjos; Arthur Schopenhauer.
INTRODUÇÃO
A poesia de Augusto dos Anjos é uma das mais originais e singulares da literatura
nacional: o poeta utilizou-se de quase todos os estilos literários e soube como ninguém dar um
tom pessoal e inclassificável na sua obra. Usando termos filosóficos, científicos e biológicos,
o poeta trouxe para seus poemas palavras esdrúxulas e herméticas que eram vistas como
apoéticas (ou impoéticas), criando uma nova poesia vislumbrada na estética da agonia, do
pessimismo, da podridão, do feio e do hediondo. “A metáfora grotesca, a exploração do
1
Graduandos do 9° semestre do Curso de Letras, turma 2008.2, Universidade do Estado da Bahia –
Departamento de Ciências e Tecnologias - Campus XVI – Irecê / BA.
2
Orientador. Mestre em Pós Graduação em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de
Feira de Santana e Professor na Universidade do Estado da Bahia – Campus XVI – Irecê/BA.
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ANGÚSTIA E PESSIMISMO NA POESIA DE AUGUSTO DOS ANJOS
incoerente, a presença de certo exotismo na expressão poética, como também a presença do
esdrúxulo e do dissonante” (ROSENFELD, 1969, p. 55) não fez de sua poesia menor,
antilírica, ao contrário, a intensidade de sua dor e o profundo sentimento de angústia,
dos mais líricos, ousados e poéticos da nossa língua.
Augusto dos Anjos é sem dúvida o poeta no qual o acúmulo de conhecimento está
proporcionalmente relacionado à intensificação do tormento frente à impossibilidade de
compreensão da origem e do fim da vida e do porquê do mundo. Sua única obra literária, Eu,
lançada em junho de 1912, apresenta uma confluência de estilos que revela não apenas a sua
complexidade, mas também a sua liberdade de criação, seu caráter ambíguo, seu contudente
ceticismo, sua sede insaciável pelo infinito, pelo cósmico, pela compreensão do mistério da
vida e, principalmente, da morte. O título Eu pode justamente ser relacionado com o
individualismo do autor no que se refere à sua independência poética, à sua instropecção
profunda, ao seu pessimismo atroz, a uma angústia cósmica e a uma comosgonia
desesperadora. Orris Soares, um dos primeiros críticos do autor, afirma:
O título do livro vale por uma autopsicologia. É um monossílabo que
fala. Este aqui, então, diz tudo, pintando de pincel a alma e o físico do
autor. O Eu é Augusto, sua carne, seu sangue, seu sopro de vida. É ele
integralmente, no desnudo gritante de sua sinceridade, no clamor de
suas vibrações nervosas, na apoteose de seu sentir, nos alentos e
desalentos de seu espírito. (SOARES, 1919, p. 08)
O próprio crítico refere-se à obra como uma autobiografia do poeta, não aos fatos
históricos de sua vida, mas ao que pulsou na sua alma, nos anseios de seu coração. Os poemas
ali são a manifestação de tudo o que Augusto viveu em sua curta existência, é o seu eu
dilacerado, torturado, incompreendido, injustiçado, aflito, obsessivo e angustiado:
O Eu é um livro de sofrimento, de verdade e de protesto: sofre as
dores que dilaceram o homem e aquelas do cosmos; e, em relação ao
homem e ao cosmos, diz as verdades apreendidas por indagação e
ciência, protestando em nome delas, pelo que no homem e no cosmos
há de desconexo, de ilógico, de absurdo. (SOARES, 1919, p. 08)
No livro evoca-se a questão primordial da instauração da mágoa e do grito – índices de
angústia e inconformismo – num eu, que, de posse da ciência, vislumbra a indiferença da
natureza ao homem, tão entregue ao acaso quanto as “diatomáceas da lagoa”; o horror da
contínua decrepitude e/ou decomposição corpórea; e o inevitável encontro com o nada. Com
uma linguagem científica e agressiva, evocando simbólicas e originalíssimas imagens, a
poesia de Augusto traz uma discussão ainda mais profunda, desenvolvida em torno de uma
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desespero e horror perante a existência que imprimiu nos seus versos, fez de seus poemas um
corrente filosófica
acerda dos
questionamentos
da existência humana, de uma
problematização da vida em si, onde o ser humano apresenta sua angústia ocasionada por
dificuldades encontradas no seu percurso existencial, num contexto de turbulência
por alguns pensadores, dentre eles o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, uma de suas
maiores influências, que buscava explicar, através de aprofundamentos teóricos, a questão da
condição humana como a negação da vontade, simbolizada nas impossibilidades do homem
de ser efetivamente feliz, pois a vida é um pêndulo entre o sofrimento e o tédio. É de suas
leituras que o poeta paraibano imprimiu, nos seus versos, todo o pessimismo latente de sua
filosofia existencial.
Para alguns críticos, principalmente Raul Machado (1976), o poeta era atormentado
pela imperfeição humana, pela forma como a sociedade e seus valores se desenvolvia, a forma
como se comportava, no que acreditava, nos anseios míseros e artificiais que buscava. Para
Augusto, o ambiente, o meio e a estrutural social da humanidade lhe causavam
“repugnância”, “nojo”, porque ele percebia que o “homem vivia entre feras” e que também
“sentia a necessidade de ser fera” (“Versos Íntimos”), reflexo de um capitalismo atroz, cruel e
selvagem:
Avesso ao ideal de “ordem e progresso”, de otimismo e glória, o poeta
do hediondo desnuda um denso negativismo diante do homem, da
matéria, do orgânico em geral, através de uma linguagem
dessacralizante. Ele lança de modo revolucionário seu olhar
pessimista, vislumbrando a cidade noturna e, em meio a cemitérios,
becos e prostíbulos, vai escancarando o lado obscuro, as sujeiras e
podridões (MANO, 2006, p. 98).
Cético em relação às possibilidades do amor ("Não sou capaz de amar mulher alguma,
/ Nem há mulher talvez capaz de amar-me"), fez da obsessão com o próprio "eu" o centro do
seu pensamento. Não raro, o amor se converte em ódio, as coisas despertam nojo e tudo são
egoísmo e angústia em seu livro patético ("Ai! Um urubu pousou na minha sorte"). A vida e
suas facetas, para o poeta que aspira à morte e à anulação de sua pessoa, reduzem-se a
combinações de elementos químicos, forças obscuras, fatalidades de leis físicas e biológicas,
decomposições de moléculas. Tal materialismo, longe de aplacar sua angústia, sedimentou-lhe
o amargo pessimismo ("Tome, doutor, essa tesoura e corte / Minha singularíssima pessoa").
Ao asco de volúpia e à inapetência para o prazer contrapõe-se, porém, um veemente desejo de
conhecer outros mundos, outras plagas, onde a força dos instintos não cerceie os vôos da alma
("Quero, arrancado das prisões carnais, / Viver na luz dos astros imortais").
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desencadeado no sofrimento, da percepção da falibilidade da vida. Essa filosofia foi inspirada
A métrica rígida, a cadência musical, as aliterações e rimas preciosas dos versos
fundiram-se ao esdrúxulo vocabulário extraído da área científica para fazer do "Eu" (desde
1919 foi constantemente reeditado como "Eu e outras poesias") um livro que sobrevive, antes
lidos do país, sobrevivendo às mutações da cultura e a seus diversos modismos como um
fenômeno incomum de aceitação popular. Aqui analisaremos os temas da angústia e do
pessimismo tão presentes nesta obra, levando-se em consideração a influência que a filosofia
schopenhaueriana exerceu no poeta da Paraíba.
A ANGÚSTIA EXISTENCIAL NOS POEMAS AUGUSTINIANOS
Abordaremos agora o reflexo dessa angústia existencial e desse pessimismo nos
poemas do poeta paraibano, partindo da análise do poema “Eterna Mágoa”. Como
característica típica do autor, o poema começa falando do homem de forma pessimista (“O
homem por sobre quem caiu a praga da tristeza do mundo”), de sua fatalidade (“nunca mais
seu pesar se apaga”), da decomposição física, onde o corpo se desintegra e se transforma em
verme, e fala da infinitude e da ubiquidade da mágoa que o assombra, da tristeza eterna, do
sofrimento e da angústica cósmica, que marca toda a existência humana (“E quanto esse
homem se transforma em verme, é essa mágoa que o acompanha ainda”). É um poema
profundo, dotado de uma sensibilidade incrível, carregado de uma dilacerante amargura:
Eterna Mágoa
O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!
Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.
Sabe que sofre, mas o que não sabe
E que essa mágoa infinda assim não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda
Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!
(ANJOS, 2007, p. 78)
Logo no título desse soneto, é possível verificar uma redundância semântica, já que
eterna carrega a acepção de permanência, assim como mágoa encerra um re-sentir contínuo.
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de tudo, pelo rigor da forma. Com o tempo, Augusto dos Anjos tornou-se um dos poetas mais
Ao que parece, há ainda uma estética do remoer não apenas no nível do significado, mas,
sobretudo, do significante, que se estende ao longo dos quartetos e tercetos. Embora a
repetição de palavras seja recorrente nos poemas do Eu, ela aqui se intensifica de tal maneira
encontra em um circuito fechado, que quase não avança, porque recua incessantemente. E,
como nesse poema predomina o pesar e não a indignação, o texto perde a sonoridade acre. O
inventário das reiterações – da mesma palavra (homem/nada/sabe/mágoa/infinda), de termo
derivado (triste/tristeza e resistir/resiste) ou até de oração inteira (é que essa mágoa infinda) –
é extenso para um número tão restrito de versos. Essa construção em eco se harmoniza com
um eu que remói suas dores, angústias, tristezas. Assim como é impossível para o indivíduo
sobre quem caiu a praga do mundo fugir da amargura, tanto na vida quando na morte,
estilisticamente também não há vias de escape no ruminante poema.
O vocábulo “mágoa”, em um primeiro instante grafado com maiúscula, angariando
assim poderio e concretude, aparece quatro vezes no soneto, como se representasse também,
pela repetição, seu próprio sentido de moedura ininterrupta. Se fossem alistadas ainda as
aliterações, assonâncias e rimas, tudo confluiria para esse mesmo completo ressoar. Deve-se
atentar ainda para a questão da perpétua passagem dos séculos, no terceiro verso do primeiro
quarteto, que se contrapõe a essa quase ausência de progressão do texto, contribuindo para
acentuar a imagem de refluxo. Aliás, seria também interessante registrar as inúmeras vezes a
que Augusto dos Anjos faz referência à continuidade do tempo. Enquanto em “Idealização da
Humanidade Futura”, por exemplo, o eu lança um olhar negativista sobre a “multidão dos
séculos futuros” (AUGUSTO, 2007), no soneto “Solilóquio de um Visionário”, ele vaga, sem
triunfo, “um século, improficuamente / pelas monotonias siderais” (AUGUSTO, 2007). E, em
“Poema Negro”, é ainda assombrado pela passagem dos séculos.
A concepção de uma temporalidade indiferente aos tormentos do
mundo, soberana em seu eterno fluir ante a finitude do eu, ou, ainda,
carregando uma ideia de contínua imutabilidade das dores existenciais
– também presente no delírio de Brás Cubas – é outra recorrência na
poesia augustiniana. (AMORIM, 2006, p. 15)
Os dois primeiros versos da segunda estrofe revelam a razão da angústia do poeta na
obra: não há nenhuma crença que traga consolo à magoa de almejar o infinito e se saber pó.
A leitura e análise de poemas como ‘Eterna mágoa’, ‘Versos íntimos’ e ‘Vítima do
dualismo’ dão um primeiro vislumbre da cosmovisão e do pessimismo do autor. O mundo,
palco do processo evolutivo, é visto como um lugar de perpétuos conflitos, sofrimentos,
agonia e mágoa. Essa condição aparece como algo necessário e incontornável.
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que promove uma sensação de aprisionamento; a sensação de que o sujeito magoado se
Já no poema ‘Vítima do dualismo’, em que o homem é retratado como o “ser miserável
entre os miseráveis”, é interessante notar como essa situação conflitiva tanto com relação a si
mesmo quanto com relação ao mundo parece ter íntima conexão com a herança genética:
idiossincrasias!” Essa herança genética negativa não é exclusiva da raça humana, mas vem
desde os ancestrais mais primitivos na escala evolutiva e só com o homem é que atinge toda
sua intensidade.
A postura existencial do poeta apela ao universo do distanciamento científico: uma
angústia esmagadora cresce e se avoluma diante da fatalidade que conduz os homens à senda
inevitável da putrefação. Toda carne infalivelmente irá se decompor um dia. Interpretação
poética do cosmos e desespero particular descambam num lamento das coisas, sentimento
doloroso, a raiz de todas as dores está na vontade de viver (SCHOPENHAUER, 1980).
No poema “Queixas Noturnas”, ele interroga pela dor e afirma que sua saúde é viver
intensamente a tristeza, porque a alegria é uma doença para sua alma amargurada. A palavra
alegria vem carregada de angústia, pois se viver significa sofrer, qualquer expressão de alegria
não
teria
o
mínimo
significado
diante
da
tristeza
que
se
é
estar
vivo
(SCHOPENHAUER,1980), sendo obrigado a se conformar com os rumos que vida está
levando, apresentando-se, assim, o pessimismo como um refúgio para suas dores.
Quem foi que viu minha Dor chorando?
Saio. Minha alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!
Bati nas pedras de um tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza a minha única saúde!
(ANJOS, 1912, p.77)
Essa identificação com os monstros ou com tudo que é fantasmagórico, obscuro,
sombrio, está presente em vários poemas - “Eu sou, por conseqüência um ser monstruoso”,
em “Noli me Tangere”. Essas associações metafóricas, que constrõem imagens
surpreendentes, mostram o quanto do simbolismo, principalmente sob a influência do poeta
Cruz e Souza, esteve presente na obra do paraibano, traçando temas como a transcendência, o
cosmo, o infinito, a dor teleológica, a morte, o grotesco, o funesto, etc. No poema “Noli me
Tangere”, essas sugestividades simbólicas aparecem para incrementar ainda mais a imagem
de sofrimento e dor que tortura o poeta:
A exaltação emocional do Gozo,
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“Carrego em minhas células sombrias / Antagonismos irreconciliáveis / E as mais opostas
Eu sou, por conseqüência um ser monstruoso!
Em minha arca encefálica indefesa
Choram as forças más da Natureza
Sem possibilidades de repouso!
Agregados anômalos malditos
Despedaçam-se, mordem-se, dão gritos
Nas minhas camas cerebrais funéreas...
Ai! Não toqueis em minhas faces verdes,
Sob pena, homens felizes, de sofrerdes
A sensação de todas as misérias!
(ANJOS, 1912, p. 105)
Diante da constatação de que para o homem não há outro destino a não ser a
putrefação da carne e a morte, Augusto transforma-se em um espectador em agonia desse
processo cujo símbolo é o verme. Em sua alma atormentada, as superexcitações provocam
visões aterradoras. O mundo em que vive torna-se um vasto hospital, onde não há alegria,
povoado por fantasmas errantes que não adquiriram a consciência de sua dor. Assombra-se
com o futuro, firmando-se no presente e na ciência racionalista. Para Shopenhauer “quando
prevalece o conhecimento o homem avança ao encontro da morte com o coração firme e
tranqüilo” (SCHOPENHAUER, 1884, p.345). Todas as poesias contidas em EU vestem-se do
mesmo tom de beleza sombria. Se a consciência é o sentimento íntimo do eu, a dor possui a
faculdade de aumentar a sensibilidade do poeta ao retratá-la. É o que se observa no poema
“Hino à Dor”:
Dor, saúde dos seres que se fanam,
Riqueza da alma, psíquico tesouro,
Alegria das glândulas do choro
De onde todas as lágrimas emanam.
És suprema! Os meus átomos se ufanam
De pertencer-te, oh! Dor, ancoradouro
Dos desgraçados, sol do cérebro, ouro
De que as próprias desgraças se engalanam!
Sou teu amante! Ardo em teu corpo abstrato.
Com os corpúsculos mágicos do tacto
Prendo a orquestra de chamas que executas...
E, assim, sem convulsão que me alvorece,
Minha maior ventura é estar de posse
De tuas claridades absolutas!
(ANJOS, 1912, p. 140)
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O Amor, a Glória, a Ciência, a Arte e a Beleza
Servem de combustíveis à ira acesa
Das tempestades do meu ser nervoso!
A lírica de Augusto dos Anjos está voltada para a precariedade e para a decadência do
homem. A solidão tubércula contribui para a sua formação poética que, de algum modo,
exerceu influência na tessitura literária. No poema “Os doentes”, Augusto declara, com voz
pessoas tísicas, adivinhando o frio que há nas lousas”. Segundo Alfredo Bosi, “o esteticismo
da poesia de Augusto dos Anjos se centra fundamentalmente na dimensão cósmica e na
angústia moral” (BOSI, 1995, p. 324). Essa angústia moral é revelada no poema “Homo
Ìnfimus”, em que ele mostra toda a descrença, o desprezo dele e do universo pelo o homem,
(pela humanidade decandente), considerado um “fruto injustificável dentre os frutos”, um
“montão de estercorária argila preta / excrescência de terra singular”, que não tens o direito de
ser feliz, como se observa no fragmento adiante:
Homem, carne sem luz, criatura cega,
Realidade geográfica infeliz,
O Universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz!
(...)
Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!
(...)
Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: — o de chorar!
(ANJOS, 2007, p. 120)
Na visão trágica de Schopenhauer, “o homem não tinha do que se orgulhar”, pois “sua
concepção é uma culpa, o nascimento, um castigo; a vida, uma labuta; a morte, uma
necessidade” (SCHOPENHAUER, 1980, p. 189). O Filósofo comparava a vida como se fosse
um pêndulo que oscila sem cessar entre o sofrimento e o tédio, abreviada somente com a
morte:
Parecemos carneiros a brincar sobre a relva, enquanto o açougueiro já
está a escolher um ou outro com os olhos, pois em nossos bons tempos
não sabemos que infelicidade justamente o destino nos prepara –
doença, perseguição, empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura,
morte, etc. (SCHOPENHAUER, 1980, p. 217).
Nesse desconforto causado pela compreensão de que a vida é uma constante
insatisfação, e o que resta ao homem é a consciência de sua fragilidade, Augusto traz o
reflexo de sua angústia existencial e do seu pessimismo schopenhaueriano num dos poemas
em que mais se destacam essa aspereza, essa repulsa: “Versos Íntimos” começa evocando a
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de um tísico, sua triste sina e o desespero perante o mal que o abate: “Oh! Desespero das
imagem do “enterro da última quimera”, do último sonho, vontade, desejo, e dá sujeitação e
aceitação da “lama” (morte) que ao homem espera. Essa consciência e aceitação da negação
da vontade, dos desejos estão bastante visíveis no poema que sintetiza ou mesmo dá um
poesia:
(...)
Quanto me dói no cérebro esta sonda!
Ah! Certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...
Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!
(ANJOS, 1912, p. 50)
Ou então, neste quarteto de “Minha Finalidade”:
Pré-determinação imprescritível
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!
(ANJOS, 1912, p. 44)
A INFLUÊNCIA DO PESSIMISMO DE SCHOPENHAUER
Em Schopenhauer a dor e o sofrimento imperam no mundo porque derivam da
vontade, que é, para ele, a essência do mundo, a verdadeira coisa em si. Escravo de seu querer
e, por isso mesmo, um ser que não é livre, o homem é a mais miserável de todas as criaturas.
Esse querer produzido por uma vontade insaciável está, por conseguinte, muito mais fadado a
não ser satisfeito do que satisfeito (ROSENFELD, 2004). Já em Augusto dos Anjos, pode-se
apontar a dor (ao lado da derrocada, da decomposição da matéria) como sendo a própria
essência do mundo. Neste mundo em que os entes são efêmeros e fadados a inúmeros
sofrimentos, a dor, por outro lado, é perene.
Segundo Rosenfeld (2004) num ensaio intitulado Influências Estéticas de
Schopenhauer, as teorias do filósofo alemão estão de tais maneiras entranhadas na cultura
ocidental que se fundem com os hábitos de pensar e sentir de europeus e americanos. Se na
história da construção de nossa literatura há alguma máxima, é a de que copiamos o que não
pudemos criar. Daí as influências da cultura ocidental em grande parte de nossa produção.
Em Schopenhauer a dor e o sofrimento prevalecem no mundo porque
resultam da vontade, que é, para ele, a essência do mundo, a
verdadeira coisa em si. (...). Escravo de seu querer e, por isso mesmo,
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epíteto ao autor: “O poeta do Hediondo”, no qual Augusto compreende e afirma o tema de sua
um ser que não é livre, o homem é a mais miserável de todas as
criaturas. (ROSENFELD, 1976, p. 30)
Alfredo Bosi (1994) chama atenção, em seu livro História concisa da Literatura
compreensão da mimese em Augusto dos Anjos, captando a inversão do cientificismo, como
ferramenta propulsora de sua poética. Aproxima-o do pessimismo de Arthur Schopenhauer,
que identifica na vontade de viver a raiz de todas as dores. O pensador postula que “todo o
nosso ser já é vontade de vida” (SHOPENHAUER, 1994) condenando o destino humano a
atuar sempre como um ser dependente desse impulso de realização. A redenção
shopenhauriana projeta-se por meio do conhecimento articulado pela arte. A morte e o nada
atingem um patamar revigorado em sua obra que espelha uma ojeriza pelas forças materiais,
ao elegê-las insatisfatórias. Por essa angulação, percebe-se um fundamentalismo artístico
semelhante ao do filósofo alemão em Augusto dos Anjos. De fato, esse pensamento
representa um hipotético desapego da materialidade do mundo dos fenômenos, que
encaminha seus seguidores a um tipo de ascese radical.
Para Shopenhauer (2004) a morte não pode ser um mal, pois com a morte perde-se a
consciência, mas não aquilo que a produziu e a manteve: a vida se extingue, mas não se extingue com
ela o princípio de vida, que nela se manifestou.
O filósofo afirmava que a natureza abandonava sem resistência aos seus organismos,
obras de uma arte infinita, nao só a avidez do mais forte, mas ao mais cego dos acasos, a
fantasia do primeiro imbecil que passa, a maldade da crianca, – exprimindo dessa maneira, no
seu estilo lacônico, oracular, que o aniquilamento desses seres lhe é indiferente.
(SCHOPENHAUER, 1959, p.102)
A influência do filósofo na poesia augustiniana pode ser especialmente sentida na
afirmação do caráter positivo da dor, a fé mística no sublime artístico como quietivo e o
privilégio romântico do sentimento sobre a razão parecem saídos diretamente de O mundo
como vontade e representação (SCHOPENHAUER, 2001). Essa idéia de uma arte sublime, e
que é através dela que o homem pode encontrar o nirvana, ou mesmo sanar as dores de seu
sofrimento, ou mesmo suportar a aspereza do mundo, está bem expressa num dos trechos do
poema que abre o livro de Augusto, “Monológo de uma Sombra”:
Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda as rochas rígidas, torna água
Todo o fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À condição de uma planície alegre,
A aspereza orográfica do mundo!
(ANJOS, 1912, p. 10)
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Brasileira, para uma tese de intransponível valor que projeta uma luminosidade para a
CONSIDERAÇÕES FINAIS
mágoa, o desespero agônico, a amargura cósmica da poesia de Augusto dos Anjos, como a
influência do pessimismo de Schopenhauer se fez presente em toda a tessitura dos versos que
compõe o livro EU. A complexidade das temáticas abordadas pelo poeta, porém, não esgota a
influência de outros autores, como o evolucionismo social de Spencer, nem também permite
que se possa afirmar que o tema do pessimismo foi formatado em toda a sua dimensão
espalhada na obra. Ao contrário, esse estudo deixa em aberto a pesquisa e compenetração de
outras análises mais profundas e abrangentes sobre essa temática, procurando, assim,
desvendar um pouco do universo do pessimismo schopenhaueriano presente na obra.
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MORAIS, Ana Paula Araújo de; MACAHDO, James Wilker Freire. ANGÚSTIA E PESSIMISMO NA POESIA DE AUGUSTO DOS ANJOS. REVISTA DISCENTIS
1ª EDIÇÃO. DEZEMBRO 2012.
Neste artigo se propôs analisar e apontar, através de um estudo sobre a angústia, a

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