Terror e Linguagem artistica (2013) Prof. Paulo

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Terror e Linguagem artistica (2013) Prof. Paulo
Terror e Linguagem Artística:
novas práticas contemporâneas?
Por: Paulo Roberto Monteiro de Araujo.
Professor Adjunto do Programa em Pós-graduação em Educação,
Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Jean-François Mattei cita Duchamp dizendo que “quem olha é que faz os
quadros” (2001, p.261), neste aspecto a questão da estética contemporânea ganha um
novo horizonte no sentido de transformar o espectador naquele que co-participa da
criação. O juízo do espectador determina o significado daquilo que foi elaborado por um
terceiro. O sujeito do significado não está mais nas mãos de quem elaborou. Daí a
grandeza e o perigo do olhar do espectador. O artista possui uma intenção em sua obra,
a qual desaparece nessa apreensão do olhar do outro. Deste modo, é o outro que
determina o sentido da obra, não o artista. Eis o motivo da obra de arte virar objeto,
como aponta Mattei, citando Heidegger (2001, p.258). As consequências dessa
transformação da obra de arte são a instituição da subjetividade, no sentido de
determinar o que é arte ou não a partir de sujeito; pois é o sujeito que determina o
objeto. Assim:
Quando Heidegger fala de uma entrada da arte no horizonte da
estética, ele entende por isso uma saída da obra da grandeza do
mundo. Tudo se torna matéria de estetização somente no horizonte do
sujeito que determina o valor daquilo que cai sob seu olhar” (2001, p.
262).
É dentro desse horizonte, apontado por Heidegger, que a compreensão da arte se
encontra limitada à relação sujeito e objeto, que a estética do terror aparece como um
modo de interpretação de mundo. Por meio de Walter Benjamin e Adorno, Mattei diz
que a modernidade é essa experiência, em que o choque se tornou a norma (Benjamim),
acrescentando ainda a ideia de Adorno de que os sinais do deslocamento são a marca da
autenticidade do moderno (2001, p.264). Eis o motivo de Mattei nos chamar a atenção
da relação entre choque e deslocamento. Embora Mattei veja a marca da barbárie nessa
relação, nós podemos ao contrário dele, vislumbrar, mesmo dentro horizonte da relação
sujeito e objeto apontado por Heidegger, um formato contundente para o olhar a criação
de objetos artísticos.
O Terror como tema de criação artística não é uma novidade do início do
presente século. Podemos vislumbrá-lo em Goya cujos quadros sobre o tema do terror
da guerra já desenvolviam essa ideia. Ou ainda nos cartazes após a revolução francesa
mostrando cabeças decepadas pela guilhotina (2009, p. 31). A novidade está na
permanecia e no impacto que o terror, como salienta tanto Manon Slome como Joshua
Simon , têm como espetáculo que se realiza por meio de uma forma de jogo com a
mídia (2009, p.7). Eis o motivo de o Onze de Setembro ter sido visto por bilhões de
pessoas. O ataque as Torres Gêmeas (World Trade Center) representou um choque e um
deslocamento no olhar das pessoas cujas consequências psíquicas são inimagináveis. A
Estética do Terror tenta investigar quais as características visuais do espectador do
terror e quais os ecos na arte contemporânea (2009, p. 7).
Neste aspecto podemos vincular a estética do terror inicialmente ao político no
sentido das relações de poder que existem seja em seu sentido multicultural, seja em seu
sentido cotidiano. Ainda em um sentido das relações de poder, nós podemos inserir a
mídia nesse campo, ao manipular imagens e discursos. Em outro aspecto, podemos
também inserir as questões psíquicas e sociais no que se referem às pessoas em seu
vivenciar cotidiano.
A questão da iconografia da guerra nos leva à problemática da imagem como
forma de consumo e não de experiência significativa nas existências humanas. As
imagens se tornaram ícones da imaginação artística coletiva contemporânea sem o
vivenciar significativo, isto é, sem a possibilidade de reflexão sobre o terror
experimentado. Os vídeos terroristas e os vídeos da prisão de Abu-Ghraib que
impregnam a nossa consciência e mesmo o nosso subconsciente não nos permite
apreender, como linguagem artística, o seu significado de experiência humana em sua
desmedida conflituosa entre culturas.
A eliminação do artista em suas práticas da produção de imagens (ao contrario
das avant-garde do início do século XX como o Dadaísmo) faz com que se crie uma
forma de estética na arte contemporânea cujo cerne se encontra na produção mediática
da imagem evento ou de um evento imagético proveniente da mídia. É o tempo real das
imagens utilizadas pela mídia que fornecem o material de consumo no que se refere ao
terror, como os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Como salienta Manon
Slome, não se trata de estádios finais de uma sociedade do espetáculo como descrito por
Guy De Bord, pois as imagens da guerra em tempo real constroem um tipo de estado de
guerra em que se produz um tipo de batalha por meio da intimidação psicológica maior
que a coerção física (2009, p. 10 e 11).
As imagens produzem formas de batalhas ideológicas por meio de uma dialética
da visibilidade e da ocultação, da revelação e do ofuscamento tendo seus ecos na arte
contemporânea. É neste aspecto que a Estética do Terror, como salienta Manon Slome
(2009, p. 11) procura investigar quais as influências da mídia na linguagem artística
analisando o vão entre as representações do terrorismo underground (subterrâneo),
produzido pelos grupos terroristas e aquelas produzidas pelo Estado de Terror (State
Terror). Tem-se um espaço entre a figuração e a abstração. Por outro lado, esse jogo
dialético entre a revelação e o ato de ocultar leva à caracterização reflexiva da arte como
linguagem que se constrói sem as amarras categoriais.
É nesse aspecto do jogo dialético entre o revelar e o ocultar, que a criação do
artista plástico Anselm Kiefer tem, por base, o não categorial. A sua preocupação é não
partir de amarras categorias vinculadas a conceitos morais de bem e mal. A estética
neoexpressionista de Kiefer está voltada para um modo de compreender a interioridade
daquilo que se configura no contexto histórico-social de seu país, Alemanha. A sua
linguagem artística não trata de denunciar os horrores cometidos pelo nazismo ou algo
do gênero, mas sim de captar as indigências da existência daquela sociedade. A
Alemanha embora tenha desenvolvido em sua dinâmica histórica formas culturais
universais, principalmente a partir do século XVIII, também desenvolveu formas de
terror. As contradições das ações ocorridas no bojo das ações históricas da Alemanha
expressam esse aspecto da indigência que nos referimos mais acima. Deste modo,
podemos fazer uma relação entre a concepção artística de Kiefer e o pensamento de
Heidegger sobre a indigência do mundo contemporâneo e as suas expressões de terror.
Matthew Biro desenvolve essa relação entre Kiefer e Heidegger em seu livro intitulado
Anselm Kiefer and the Philosophy of Martin Heidegger (1998).
O filósofo alemão busca dar uma virada em relação à linguagem metafísica
fundada tanto em uma razão procedimental como em uma intencionalidade de dominar
os entes. Ao colocar a questão da linguagem na ordem do dia do pensamento ocidental
contemporâneo, Heidegger procura criar uma nova linhagem de pensamento que
consiga superar a instrumentalidade da linguagem técnica que encobre o Ser. A ajuda da
poesia de Hölderlin se torna fundamental para a guinada que Heidegger pretende
realizar em relação àquilo que ele denomina de tempo indigente. Daí ele dizer que ao
mesmo tempo em que o homem constrói o mundo, tecnicamente, como objeto, ele
encobre o caminho para o ser. O homem, então, fica afastado do seu ser. Deste modo, o
homem da idade da técnica está contra o próprio ser. O resultado desse afastamento é,
metaforicamente, uma espécie de despedida do ser. A despedida que Heidegger se
refere vincula-se à abertura do pensar em relação ao Ser.
A indigência da era contemporânea está na linguagem desenvolvida pela técnica
que se ocupa em não apreender as determinações da existência humana em suas
possibilidades de ser como expressão da dignidade do próprio homem. Como salienta
Charles Taylor:
Heidegger é um dos profetas da instância “do deixar as coisas
acontecerem”, um dos grandes críticos da consciência tecnológica
moderna, ou seja, dos neodesignistas, que defendem a noção de razão
como razão instrumental. (The ethics of authenticity, 246).
Deste modo, ao não deixar que as coisas se mostrem ou aconteçam a partir do
Ser, a Técnica como linguagem instrumental faz com que a nossa contemporaneidade se
mostre como o mundo sem casa (the Homeless World), no dizer de David Kolb (1987).
O pensamento calculador desenvolvido pela técnica fica à mercê de uma subjetividade
vazia. Não é por acaso que Heidegger se coloca contra as formas de subjetividades, cujo
cerne está no modelo contemplativo racional das teorias do sujeito. Heidegger se torna,
por meio da sua concepção de linguagem, a qual se vincula às teorias expressivistas,
radicalmente um antisubjetivista. Eis o motivo de para ele, a arte não pode ser vista
como uma relação sujeito e objeto. Daí o subjetivismo do olhar do espectador em
relação à obra de arte, isto é, a sua linguagem. Para o subjetivismo do espectador o que
está em jogo é a simples sensação desejosa que ele tem frente à obra. É por meio desse
subjetivismo que as imagens do Terror apresentadas pela mídia se mostram tendo tanta
relevância em nossa contemporaneidade. A Estética do Terror acaba em sua acepção
manipuladora midiática ganhando cada vez mais espaço no interior das produções
artísticas. Essas produções se encontram obrigadas a terem como escopo o terror em
suas elaborações criadoras. O motivo para tal é oferecer uma espécie de espetáculo
tenebroso aos olhares dos espectadores de Arte.
É na linhagem da retomada do ser de Heidegger que Kiefer constrói a sua
estética interpretativa. Kiefer pretende apreender o modo de ser da Alemanha
contemporânea, fundada nas contradições entre a racionalidade crítica desenvolvida
pela sua alta cultura e a instrumentalidade manipular da técnica. Essas contradições
geram a indigência germânica cuja superação só pode ocorrer pela interpretação da
história feita pela arte. Assim a galeria de rostos ícones retratados na gravura de Kiefer
intitulado Os Caminhos da Sabedoria do Mundo expressa o próprio caminho para
compreender as contradições da sociedade alemã. Tal compreensão ocorre por meio da
temporalidade, que não necessariamente é linear.
O tempo, em seu caráter existencial, ganha relevância no interior da obra de
Kiefer, pois é ele que possibilita a abertura para se apreender o ser que dá sentido à
história da vida alemã. Daí podermos dizer que Kiefer dá ênfase aos processos e ao
tempo vinculados a sua cultura tradicional (1998, p.57). Por outro lado, cabe ressaltar
que não há na temporalidade-existencial das obras de Kiefer nenhuma espécie de
hermenêutica teleológica. Como enfatiza Birô, não há nenhum sentido que com o tempo
e com o cuidado se irá chegar como resultado de algo (1998, p.59).
O trabalho de Kiefer evoca uma perspectiva hermenêutica que contradiz todas as
noções do senso-comum da influência e da transmissão cultural. Para ele a cultura
possui diversas faces, que nos possibilita apreender diferentes perspectivas de
significados no seio da dinâmica sociocultural. Deste modo, Kiefer provoca um debate
em torno da não existência de uma só perspectiva para interpretar a história
sociocultural alemã. As obras dos anos de 1970 (1998, p.57), principalmente, a citada
por nós no presente texto (Os Caminhos da Sabedoria do Mundo) fazem o espectador
ter uma postura interpretativa diante delas. Daí o espectador precisar compreender,
mesmo sem chegar a conclusões finais, os diversos caminhos que a sociedade alemã
trilhou em sua história recente. Kiefer não pretende que o espectador tem somente uma
impressão passiva diante do terror que o seus quadros ou instalações possam ter. Não é
fazer com que o espectador, sinta sensações de terror diante de algum fato trágico
ocorrido ao longo da história.
Sem dúvida nenhuma o nazismo ainda acaba sendo um enigma para o
espectador que busca nas obras de Kiefer trilhas para vislumbrar o caráter aterrorizador
desse período sem cair nos esquemas maniqueístas tão difundidos pelas visões do
pensamento mediano e pelos meios comunicacionais manipuladores. A obra de Kiefer
tem como horizonte a ética do olhar sobre os diversos caminhos da história, sem
privilegiar somente um deles. Tal ética desenvolvida por Kiefer se expressa em sua
hermenêutica como horizonte das diversas perspectivas interpretativas. Kiefer não
procura um fim absoluto daquilo que é verdadeiro na dimensão dos fatos ocorridos na
dimensão da história sociopolítico e cultural, por mais que tais fatos tenham como base
o terror.
Sendo Hölderlin o poeta que levanta a questão do Sagrado na modernidade, ou
ainda, da ausência deste, é ele que influencia Heidegger em relação ao problema do
perigo do terror do esquecimento do Ser. É neste aspecto, que surge a necessidade do
diálogo entre poesia e pensamento, pois, como salienta Beda Allemann, a experiência
pensante do esquecimento do Ser faz parte do mesmo destino que a experiência poética
de fechamento da dimensão do Sagrado. O diálogo entre pensamento e poesia se refere
à interpretação do modo existencial de viver da nossa época contemporânea.
A preocupação de Hölderlin com a poesia se vincula ao destino do Sagrado em
sua própria perda. Perder o Sagrado é perder a totalidade de mundo. No entanto, é
preciso que haja tal perda para se traçar o caminho do Sagrado (Allemann, p.160). A
perda do Sagrado significa a própria indigência do tempo (Allemann), embora tal
indigência seja necessária para experiência da poesia em sua originalidade criadora.
Nas Reflexões, Hölderlin tem um texto intitulado O Devir no Perecer, que nos remete à
indigência do tempo. Como Édipo, o decifrador da Esfinge, que só decifra o seu crime
por meio da desagregação das suas certezas, Hölderlin esclarece por meio da
necessidade do perecimento aquilo que estar por vir. O poeta diz em seu texto:
Numa linguagem autenticamente trágica, o original, o que está sempre
a criar-se ... é o surgimento do individual a partir do infinito e o
surgimento do finito-infinito ou eternamente individual a partir de
ambos, a apreensão, o reavivamento não do que se tornou
inapreensível e desalmado da própria desagregação e da luta de morte
por meio do que é harmônico, vivo e apreensível. O que, aqui, se
exprime não é a dor primeira da desagregação nua e crua, em seu
fundo ainda desconhecida para o sofredor e o observador. Aqui, o
recém-nascido, o ideal é indeterminado, um objeto temido, ao passo
que a desagregação em si mesma parece algo subsistente, algo mais
real, que concebe como necessário o que se desagrega. O que se
encontra no estado entre ser e não-ser. (Hölderlin, p.74)
A desagregação que leva a indigência expressa no estado entre ser e não-ser
torna possível a formação de algo novo, que permite a recuperação da criação em sua
determinação divina, considerada o inesgotável das relações e das forças. O inesgotável
tanto quanto o inesgotado são para Hölderlin os elementos divinos que nos permitem
sentir a desagregação e não o inverso, uma vez que nada surge do nada (Hölderlin,
p.74). É o próprio Ser que se desagrega em sua temporalidade para poder se elaborar
novamente como vida. Deste modo, o processo de criação poética se constitui da
própria desagregação que traz consigo o novo, aquilo que faz como possibilidade de
Ser.
A vida nova é agora, realmente, o que se desagregou e tinha que se desagregar
(idealmente antigo), é a desagregação necessária, caracterizada pelo estado
intermediário entre ser e não-ser. No estado entre ser e não-ser, porém, o possível é
sempre real e o real ideal, o que na livre imitação artística, constitui um sonho terrífico
mas divino. (Hölderlin, p. 74).
O erro que Hölderlin aponta em relação aos ocidentais é a busca equivocada da
sua originalidade existencial no espírito grego. O itinerário existencial do grego, parte
do todo, que constrói a diferenciação, e só depois disso retorna ao todo. Já o ocidental
moderno sai do diferenciado para atingir o todo e depois regressar ao diferenciado.
Taylor comenta no seu livro intitulado HEGEL1 que a bela síntese grega teve de
morrer para que o homem se tornasse interiormente dividido de modo que pudesse
desenvolver ao mesmo tempo a sua consciência de si e a sua própria determinação livre
(free self-determination), enquanto elemento diferenciador. Taylor compreende que o
homem moderno acabou enveredando em uma espécie de conflito com ele mesmo a
partir do momento que, desenvolvendo a sua racionalidade, deixou de lado a natureza e
o sensível. O homem racional precisou abandonar a imediatidade sensível da natureza,
que lhe conferia a identidade com o todo. O senso de perfeição do modelo de expressão
grego, fundado na unidade do todo, não era mais suficiente para a realização da
liberdade radical (radical freedom), que aparece como busca de uma identidade própria.
Com o surgimento da liberdade radical foi inevitável a perda da unida entre o sensível e
o inteligível, bem como a impossibilidade da sua retomada. No entanto, a irresistível
nostalgia pela síntese grega fora excessivamente mantida como projeto de retorno a ela
pela cultura ocidental moderna.
O que o ocidental moderno deve aprender com os gregos não é simplesmente a
busca da totalidade, mas sim a busca da sua própria essência, daquilo que lhe pertence.
O homem moderno deve aprender a estar na separação sóbria do Todo. É este
aprendizado que faz o homem suportar a ausência dos deuses, enquanto distanciamento
ao Uno/Todo. De acordo com Merquior, a forma por excelência da representação de um
tal destino é a tragédia. O trágico vive da noite do Intervalo, do tempo em que os deuses
ausentes são por isso mesmo, lembrados2. O que Hölderlin nos aconselha é
aprendermos a nossa finitude por meio da ausência. É neste ponto que Hölderlin mostra
1
2
Ver: Hegel, p. 35.
Op. cit., p. 198.
a necessidade do homem estar consciente da sua identidade finita e, assim, poder
expressá-la. O irreconciliável é o que aponta Hölderlin no seu pensamento. Essa ideia
do irreconciliável de Hölderlin da finitudo individual com o infinito totalizante nos leva
a questão de como Kiefer em sua linguagem artística interpreta o homem em sua
vivência contemporânea.
Nós podemos salientar que para Kiefer a interpretação do homem tem como
fundo aquilo que ele já se apresenta como sendo e que, por isso mesmo, não há uma
separação entre a sua visão daquilo que ele é realmente, por mais finita que ela seja. O
homem não está preso a nenhuma forma objetiva, antes ao contrário, qualquer
objetividade já é o resultado das motivações experimentadas significativamente pelo
self. Nesse aspecto da interpretação da historicidade do homem há uma coadunação
entre o pensamento de Heidegger e a linguagem artística de Kiefer, pois ambos se
contrapõem às formas objetivadas para se investigar o que é o homem. Não é à toa o
artista alemão dizer em uma de suas aulas no Collège de France, intitulada Marine, que
a poesia é aos seus olhos a única realidade possível, todo restante é só pura ilusão [(...),
La poésie est à mês yeux l’unique réalité possible, tout Le reste n’étant que pure
illusion.( 2011, p.35)]. Deste modo, Kiefer salienta que a poesia como horizonte do real
ganha a sua determinação na possibilidade compreensiva do ser, que se expressa como
linguagem.
Heidegger, em Ser e Tempo, salienta no parágrafo 10 que antes da antropologia,
biologia ou psicologia quererem responder o que é o homem “was der Mensch sei”, elas
precisam ocupar-se do pré-ontológico, compreendido como instância em que podemos
visualizar o problema da interpretação que o homem, em sua existência, elabora do seu
próprio ser como realização de uma possibilidade histórica. A história não tem seu
fundamento nos fatos ou documentos objetivados, antes é a questão da compreensão
que o homem tem do Ser que o faz elaborar ações que se efetuam objetivamente no
plano historiográfico.
Ao relacionar em outra aula sua no Collège de France (2011, p. 58) Genet e
Osama Bin Laden, Kiefer tenta mostrar que tanto o engajamento do primeiro com os
movimentos políticos de cunho terrorista, como Baader-Mainhof (na Alemanha dos
anos 70), como fonte e forma de construção de uma prosa estética, como as imagens dos
atentados planejados pelo segundo as Torres Gêmeas (em Nova York em 2001) se
vinculam e se entrelaçam em uma espécie de evocação de produções simbólicas. Daí
Kiefer dizer que para Osama Bin Laden o atentado as Torres não era uma questão nem
de vida, nem um ato em si, nem mesmo uma simples ação terrorista, mas da fabricação
de imagens com finalidades simbólicas (2011, p. 59). Deste modo, do que se trata é do
fundamento simbólico do que é o homem, mesmo numa dimensão trágica do terror e
não uma simples estética do terror fundada na manipulação imagética.
Ações humanas que ocorrem ao longo da história são compreendidas por Kiefer
como imagens simbólicas em que o homem produz de maneira concreta aquilo que ele
se faz ser como possibilidade. É essa concretude que pode fazer com que o homem se
volte para as determinações de sua existência como produção de símbolos em sua
dimensão estética. Eis o motivo de Kiefer salientar que a imagem mais perfeita que nos
foi dada ver em nossa contemporaneidade foi a dos primeiros homens pisando na lua.
Para Kiefer, tal imagem poderia ter sido criada por determinados artistas com o poder
de elaboração quase perfeita: “Une image proche de la perfection” ( 2011, p. 59). Ou
ainda, segundo Kiefer, “Uma imagem em que o sentido estava igualmente entrelaçado
aos seus destinatários, não só em termos virtuais como ideológicos, e ambos de maneira
concreta” (2011, p.59).
A discussão de Kiefer em torno da construção de imagens simbólicas faz com
que ele questione sobre o belo, o seu caráter único, a evidência da simplicidade, a
homogeneidade como a polissemia, a inteiração desejada com o espectador, o que na
imagem pode se juntar a provocação, o corolário da arte e a sua investigação, o papel da
cena para certos artistas (2011, p.59). Deste modo, podemos retonar ao pensamento de
Heidegger como contribuição ao pensar artístico de Kiefer a partir da elaboração das
imagens como ação humana. Eis o motivo da necessidade de compreendermos a
estrutura da ação com base naquilo que somos.
A nossa ação já é a expressão de nós mesmos que são efetivadas por meio de
imagens, mesmo que de modo imediato nós não a reconheçamos. As produções de
imagens no mundo contemporâneo como ações em sua forma difusa faz com que as
produções artísticas repensem a sua própria produção imagética como não tendo mais
nenhuma forma de eixo. Daí Kiefer argumentar que a produção de imagens que ocorrem
no mundo dos fatos históricos serve como elementos construtores de símbolos. Sendo
assim símbolos são formatos de linguagem cujo fundamento é não possuir eixo que
venha garantir qualquer objetividade absoluta em relação ao significado artístico
produzido.
A linguagem nos moldes do pensamento de Herder nos permite compreender a
intenção de Kiefer em relação à produção da imagem como interpretação do ser do
mundo. Para Herder, a linguagem é remodelada a todo instante pelos diversos modos de
ser do homem no mundo. Ela nunca pode ser dominada, pois o seu centro de gravidade
jamais é alcançado. Segundo Taylor, a revolução implícita do pensamento de Herder foi
de que o desenvolvimento de novas modalidades de expressão nos capacita a ter novos
sentimentos em todos os seus aspectos (2000, p.102). Essa capacidade faz com que o
homem possa viver as suas emoções exprimindo-as, sem a necessidade de descrevê-las
em si. A linguagem permite ao homem criar formas linguísticas que realizam a justeza
daquilo que ele pretende expressar. Expressando o que sente o homem remodela a
língua, criando as suas próprias formas, no sentido de se fazer presente no mundo. Eis
por que Herder diz que se cria assim um novo idioma (1987, p. 148).
Nós podemos voltar ao início do presente texto cuja preocupação era com as
análises da relação entre a estética do terror e a produção da linguagem artística
contemporânea e expressar, por meio de Kiefer, que a própria arte sobrevive a si mesma
como campo aberto a todas as possibilidades do modo de ser. Mesmo que em sua
própria indigência, como ocorre nas manipulações imagéticas da mídia, a arte em sua
produção estética está aberta às novas formas de linguagem, que não se restringem a
conceitos classificadores. Mesmo o subjetivismo que aparece como suporte para a
interpretação da obra de arte através da relação sujeito e objeto, não consegue apagar os
vestígios das determinações da linguagem artística em seu processo de criação. Mesmo
não havendo nenhum eixo que dê segurança para se elaborar uma linguagem artística de
forma autêntica, a arte tem como tarefa ser. Parafraseando Heidegger, a arte pode se
ganhar, se ganhar superficialmente ou nunca se ganhar, mas tem sempre a tarefa de ter
de ser (ver parágrafo 10 de Ser e Tempo: O Dasein pode se ganhar, se ganhar
superficialmente, ou nunca se ganhar. No entanto, ele sempre tem de ser).
As imagens elaboradas em nosso mundo nunca poderão ser apreendidas em suas
determinações absolutas, por isso Kiefer dizer que a poesia é a realidade mais profunda,
por criar seus próprios significados, não presos a supostas objetividades factuais. Eis o
motivo de a cultura, mesmo seguindo uma linhagem racional civilizatória, como a
ocidental, nunca esteve a salvo da barbárie. Por outro lado, também não cabe interpretar
a história a partir de imagens documentais que comprovem objetivamente o modo de ser
de uma cultura. O que está em jogo é sempre a preocupação de trazer outras
possibilidades interpretativas daquilo que o homem nos lega como ruína ou não. A
linguagem das artes contemporâneas mesmo estando sujeitas a todas as formas de
manipulação são ainda a dimensão para pensarmos o homem em seu modo de ser como
animal simbólico, no dizer de Ernst Cassirer.
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