Untitled - Nuno Coimbra Mesquita

Transcrição

Untitled - Nuno Coimbra Mesquita
AF miolo corrupcao 3.indd 1
7/31/14 12:53 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 2
7/31/14 12:53 AM
2014
AF miolo corrupcao 3.indd 3
7/31/14 12:53 AM
T í t u l o : C o b e r t u r a Jo r n a l í s t i c a d a C o r r u p ç ã o Po l í t i c a :
sistemas políticos, sistemas mediáticos e enquadramentos legais
Colecção: Media & Jor nalismo
© 2 0 1 4 , I s a b e l Fe r i n C u n h a e E s t r e l a S e r r a n o ( c o o r d e n a d o r a s )
To d o s o s d i r e i t o s d e p u b l i c a ç ã o e m P o r t u g a l
reser vados por :
ALÊTHEIA EDITORES
E s c r i t ó r i o n a Ru a d o S é c u l o, n . º 1 3
1 2 0 0 - 4 3 3 L i s b o a , Po r t u g a l
Te l . : ( + 3 5 1 ) 2 1 0 9 3 9 7 4 8 / 4 9 , F a x : ( + 3 5 1 ) 2 1 0 9 6 4 8 2 6
E-mail: [email protected]
w w w. a l e t h e i a . p t
Coordenação da colecção:
Ana Cabrera
Te r e s a F l o r e s
Helena Lima
Revisão:
Jo ã o Fe r r e i r a
Impressão e acabamento:
Várzes da Rainha Impressores, Óbidos
w w w. v a r z e a d a r a i n h a . p t
ISBN: 978-989-622-620-6
Depósito Legal: 376514/14
Maio de 2014
AF miolo corrupcao 3.indd 4
7/31/14 12:53 AM
Índice
Apresentação......................................................................................................... 7
Parte I – “Sistemas Políticos e Enquadramento jurídico da corrupção”
1. Análise do sistema político português no período democrático:
uma breve caracterização |Mafalda Lobo.............................................. 19
2. A política anticorrupção e o marco legal no Brasil
|Fernando Filgueiras e Mateus Morais Araújo . ................................... 57
3. Prevenir e reprimir a corrupção política em Portugal – evolução do
quadro legal |António João Maia e Hermenegildo Borges .............. 109
4. Eleições e corrupção em Moçambique
| Domingos M. do Rosário .................................................................... 181
“Sistemas Mediáticos”
5. Sistema dos mídia em Portugal: os primeiros anos
após a instauração da democracia |Estrela Serrano............................. 217
6. O Sistema dos mídia em Portugal no contexto
da globalização do século XXI |Rita Figueiras.................................... 253
7. As diferentes dinâmicas da corrupção: mídia, percepção
e instituições no contexto brasileiro |Nuno Coimbra Mesquita,
José Álvaro Moisés, Bruno Rico............................................................. 283
8. Sistema midiático brasileiro: multidão e expressão
de uma arena política |Marialva Barbosa ............................................. 317
9. Sistema dos media em Moçambique: uma breve análise
do mercado da imprensa, radiodifusão pública
e da profissionalização do jornalismo |Ernesto Nhanale................... 351
Parte II – “Estudos Empíricos”
10. Visibilidade da cobertura jornalística da corrupção política
e indicadores de opinião pública|Isabel Ferin Cunha....................... 371
11. Meios de comunicação, corrupção e redes sociais
nas eleições para prefeito no Brasil |Helcimara de SouzaTelles,
Pedro Soares Fraiha e Nayla Lopes...................................................... 421
12. A objetividade na cobertura do escândalo político
e os novos propósitos de uma subjetividade objetivante
|Bruno Paixão.......................................................................................... 459
13. A corrupção política vista através das redes sociais:
Metodologias para o Estudo de Conteúdos Web
|Estrela Serrano...................................................................................... 493
14. Clicktivismo ou activismo a sério? Em que medida a internet pode
ser considerada espaço de exercício de cidadania em Moçambique
|Egídio Vaz.............................................................................................. 523
Resumos e Abstracts ....................................................................................... 535
Notas biográficas.............................................................................................. 561
5
AF miolo corrupcao 3.indd 5
7/31/14 12:53 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 6
7/31/14 12:53 AM
A p r e s e n ta ç ã o
Os cidadãos da maioria dos países acreditam que a corrupção política é um dos principais problemas dos regimes
democráticos. Os indicadores periodicamente divulgados
por agências internacionais tais como a Transparência Internacional, o Eurobarómetro e o Banco Mundial, constatam que a perceção que os cidadãos têm da corrupção
política fundamenta-se principalmente nos media, o que
torna particularmente relevante a análise da cobertura jornalística da corrupção política. Por outro lado, o facto de
Portugal se encontrar sob um programa de assistência financeira internacional, desde 2011, têm vindo a dar maior
visibilidade aos fenómenos de intersecção entre interesses
públicos e privados, muitas vezes suspeitos de envolverem situações menos lícitas. No Brasil, a preparação do
Mundial de Futebol (2014) e dos Jogos Olímpicos (2016)
tem conferido uma nova dinâmica a estes fenómenos e
à perceção da opinião pública sobre a corrupção, dando
origem a movimentos políticos organizados, muitos deles a partir das redes sociais, como é o caso da designada
Mídia NINJA. Em Moçambique, a descoberta de jazidas
7
AF miolo corrupcao 3.indd 7
7/31/14 12:53 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
de minerais e outras riquezas naturais, bem como a entrada de grandes empresas multinacionais associadas à
exploração dessas riquezas, têm igualmente suscitado na
opinião pública urbana, uma renovada atenção a fenómenos como tráfico de influência e apropriação indevida de
recursos do Estado.
Neste contexto, em que a corrupção política é entendida como o abuso de poder em benefício próprio de
agentes políticos democraticamente eleitos – situação
que pode ocorrer durante ou após o exercício de funções
públicas – identifica-se uma articulação entre as áreas
da Política, da Economia, da Justiça e dos Media. Estes
pressupostos fundamentam o projeto “Cobertura Jornalística da Corrupção Política: uma perspectiva comparada Portugal, Brasil e Moçambique” (FCT Ref.ª : PTDC/
IVC-COM/5244/2012) que tem como objetivo analisar a
cobertura jornalística da corrupção política na imprensa e
na televisão, bem como a sua repercussão na blogosfera,
nos três países referidos.
Não se conhece em Portugal e em Moçambique estudos que tenham analisado de forma sistemática a cobertura dos fenómenos de corrupção política nos media. O
Brasil tem, há já alguns anos, grupos de pesquisadores que
desenvolvem uma reflexão pluridisciplinar, articulando
Ciência Política e Estudos sobre os Media, focada nesta
temática em diversas universidades. Convém salientar que
os pesquisadores envolvidos, em qualquer um destes países, advêm de áreas disciplinares diversas, como Ciências
da Comunicação, Ciência Política, História, Jornalismo e
Sociologia. Por outro lado, lembramos que a pesquisa sobre os media, nos três países, têm genealogias particulares
e tradições teóricas e empíricas diferenciadas. Estas condicionantes têm um valor acrescido nesta publicação, na
medida em que permitem não só aferir “modos” de “fazer
8
AF miolo corrupcao 3.indd 8
7/31/14 12:53 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
pesquisa”, em cada país, como “estratégias” e “objetos”
que são neles identificados e valorizados no processo de
investigação sobre a corrupção política.
Como Hallin e Mancini (2010) demonstraram, os sistemas políticos condicionam de forma determinante os
sistemas mediáticos. São os sistemas políticos que configuram os enquadramentos jurídicos e determinam as
formas em que operam os sistemas mediáticos. Por esta
razão, esta obra dá particular atenção aos sistemas políticos e aos enquadramentos legais, bem como à intervenção do Estado como regulador do mercado mediático.
Salienta-se ainda que os trabalhos aqui apresentados, ao
terem em conta a proposta dos dois autores citados, contribuem para explorar características comuns aos sistemas
daqueles países – que integram um “Espaço” que utiliza
o português como língua oficial – determinadas por relações históricas, culturais, políticas e económicas.
O livro, Cobertura Jornalística da Corrupção Política: sistemas
políticos, sistemas mediáticos e enquadramentos legais é constituído por duas partes. A Parte I encontra-se organizada em
duas temáticas – “Sistemas Políticos e Enquadramento
jurídico da corrupção”; “Sistemas Mediáticos” – que integram textos que abordam, não só os sistemas políticos
de cada um dos países mas também as características dos
sistemas mediáticos e os respetivos enquadramentos legais. Na Parte II, “Estudos Empíricos”, o livro apresenta
um conjunto de artigos que decorrem de análises empíricas sobre a cobertura jornalística da corrupção política
na Internet e na blogosfera, assim como outros que aprofundam a interrelação entre opinião pública, eleições, escândalos e corrupção política, nos três países.
Não se trata, ainda, de uma perspectiva comparada,
no sentido de os autores, em trabalhos conjuntos, colocarem em confronto as especificidades dos sistemas dos
9
AF miolo corrupcao 3.indd 9
7/31/14 12:53 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
seus países. Trata-se, antes, de um conjunto de textos que
apresentam dados sobre realidades nacionais, mas que a
partir da sua leitura, permitem o esboço de um panorama facetado e complexo, onde a dimensão comparativa
adquire valor substancial.
A Parte I intitulada “Sistemas Políticos e Enquadramento jurídico da corrupção” integra quatro artigos. O
primeiro da autoria de Mafalda Lobo (doutoranda e pesquisadora do Projeto) sobre “Análise do Sistema Político
Português no Período Democrático: uma breve caracterização” começa por apresentar o conceito de sistema
político e as suas dimensões, assim como os sistemas
eleitorais. Tendo como foco Portugal, a autora caracteriza o Sistema Eleitoral Português e a Eleição dos Principais Órgãos de Poder, bem como as propostas de reforma nos programas eleitorais dos governos, no pós 25
de Abril. Em seguida, conceitua os sistemas de governo
em democracia, regime presidencialista, parlamentarista e semipresidencialista, e tece algumas considerações
históricas sobre o regime semipresidencialista português
de 1976 até à atualidade. Por fim, o artigo discute como
a a opinião pública olha a reforma do sistema político
em Portugal.
O segundo texto tem como autores Fernando Filgueiras (professor do Departamento de Ciência Política
da Universidade Federal de Minas Gerais e consultor do
Projeto) e Mateus Morais Araújo (doutorando em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais). Os
autores têm como objetivo compreender a construção da
política anticorrupção no Brasil, e as medidas efetivamente tomadas no quadro legal para combater a corrupção, a
partir das mudanças institucionais promovidas pela Constituição da República Federativa de 1988.
10
AF miolo corrupcao 3.indd 10
7/31/14 12:53 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
António Maia (doutorando e pesquisador do Projeto,
em funções no Conselho de Prevenção da Corrupção) e
Hermenegildo Borges (pesquisador do Projeto e professor da Universidade Nova de Lisboa) assinam o terceiro
artigo “Prevenir e reprimir a corrupção política em Portugal – evolução do quadro legal”. Neste artigo abordam a evolução do quadro legal português a partir dos
anos oitenta, debruçando-se sobre as estratégias e políticas públicas desenhadas pelos sucessivos governos para,
no contexto das convenções internacionais, reprimirem,
controlarem, investigarem e prevenirem a criminalidade
económica praticada contra o Estado por funcionários no
exercício de funções públicas.
O quarto e último artigo sobre a temática “Sistemas
Políticos e Enquadramento jurídico da corrupção”, da
autoria de Domingos do Rosário (professor da Universidade Eduardo Mondlane, Maputo) discorre sobre “Eleições e corrupção em Moçambique”. Argumenta que o
pluralismo instalado em Moçambique, após uma guerra
civil, não lançou as bases para o exercício de um Estado
de direito nem de cidadania. Na sua perspetiva, o actual sistema político lançou bases para procedimentos formais que permitiram ao partido Frelimo consolidar a sua
hegemonia, através de mecanismos de corrupção política
nomeadamente a fraude eleitoral.
Na segunda temática da Parte I “Sistemas Mediáticos” estão incluídos cinco artigos. O primeiro, da autoria
de Estrela Serrano (presidente do CIMJ e pesquisadora
do Projeto), intitula-se “Sistema dos Media em Portugal:
os primeiros anos após a instauração da democracia”. O
artigo debruça-se sobre o sistema mediático português,
desde a instauração da democracia em Portugal, em 1974,
a partir das dimensões propostas por Hallin e Mancini
(2010). A autora, partindo das dimensões propostas pelos
11
AF miolo corrupcao 3.indd 11
7/31/14 12:53 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
autores citados, aborda a propriedade dos media, a formação do mercado e a profissionalização nos últimos trinta
anos, em Portugal.
No artigo seguinte, Rita Figueiras (professora da Universidade Católica de Lisboa e pesquisadora do Projeto) assina
“O Sistema dos Media em Portugal no contexto da globalização do século XXI” onde refere as transformações do
setor da comunicação e dos media em Portugal, decorrentes
da globalização e da crise económica do início do milénio.
O texto inventaria e descreve as estratégias seguidas pelos
principais grupos de comunicação, nomeadamente a entrada de empresas e de capital angolano neste setor.
O artigo “As diferentes dinâmicas da corrupção: Mídia,
perceção e instituições no contexto brasileiro”, da autoria de
Nuno Coimbra Mesquita (pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas – NUPPs da USP/Brasil), José
Álvaro Moisés (professor de Ciência Política da USP e diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas - NUPPs
da USP) e Bruno Rico (pesquisador associado do Núcleo
de Pesquisas em Políticas Públicas - NUPPs da USP), avalia a dinâmica do tratamento da corrupção nos media brasileiros, ao longo dos últimos 25 anos, em comparação com
outras variáveis sobre perceção da corrupção. Os autores
assumem a importância do tema corrupção para a teoria
democrática e chamam a atenção para a complexidade do
seu estudo, dada a diversidade de índices que a enquadram.
Marialva Barbosa (professora de Jornalismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Vice-Presidente da
INTERCOM) caracteriza o sistema mediático brasileiro a
partir da sua relação com o público e da sua transformação conceitual em “massas” e “multidão”. O objetivo é
mostrar como a compreensão do fenómeno histórico da
multidão está diretamente relacionada com a constituição
do sistema mediático brasileiro. 12
AF miolo corrupcao 3.indd 12
7/31/14 12:53 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
No quinto e último texto da temática “Sistemas Mediáticos”, Ernesto Nhanale (doutorando, pesquisador do
Projeto e membro do Centro de Estudos Interdisciplinares de Comunicação de Moçambique) escreve sobre “Sistema dos Media em Moçambique: uma breve análise do
mercado da imprensa, radiofusão pública e da profissionalização do jornalismo”. Assumindo o modelo de Hallin
e Mancini (2010), o autor analisa o sistema dos media noticiosos, em Moçambique, tendo em conta as variáveis do
mercado da imprensa escrita, o sistema da radiodifusão
pública e o nível da sua profissionalização.
Na Parte II, são apresentados estudos empíricos centrados na relação entre os media e a corrupção política. No
primeiro texto, Isabel Ferin Cunha (professora da Universidade de Coimbra e pesquisadora principal do Projeto)
discute a relação entre os indicadores de opinião pública
e a cobertura jornalística dos fenómenos de corrupção
política em Portugal de 2005 a 2012. Com este objetivo
foram selecionados três casos mediatizados de corrupção política e analisado um corpus, online. No artigo foram
utilizados os indicadores de opinião pública divulgados
pelo Barómetro Político da empresa Marktest. Entre outras questões, o artigo pretende apurar como os casos de
corrupção política, agendados pelos meios de comunicação social, se refletem na opinião pública aferida pelas
sondagens periódicas.
No artigo “Meios de Comunicação, corrupção e redes sociais nas eleições para prefeito no Brasil”, Helcimara Telles (professora da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenadora do grupo de pesquisa Opinião
Pública, Marketing Político e Comportamento Eleitoral,
da UFMG), Pedro Frahia (economista e pesquisador do
grupo “Opinião Pública, Marketing Político e Comportamento Eleitoral” da UFMG) e Nayala Lopes (pesqui13
AF miolo corrupcao 3.indd 13
7/31/14 12:53 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
sadora do grupo “Opinião Pública, Marketing Político e
Comportamento Eleitoral” da UFMG) abordam como a
perceção da corrupção afeta a escolha do eleitor, na cidade de Belo Horizonte, Brasil. Partindo do princípio que os
media influenciam a opinião pública, analisam os fatores
que determinam a intenção de voto, tais como a exposição aos media, a perceção e tolerância à corrupção, a avaliação da economia e do passado político dos candidatos
a prefeito. Os dados resultam em pesquisa realizada em
Belo Horizonte, durante as eleições municipais de 2012.
O texto “A Corrupção Política vista através das redes
sociais: metodologias para o estudo de conteúdos Web”,
de Estrela Serrano, debruça-se sobre a blogosfera tendo
como foco as metodologias de análise de conteúdo nesta rede social. O artigo toma como corpus uma amostra
de blogs que abordaram o caso Freeport, um caso identificado como corrupção política em Portugal. No artigo
“Objetividade na cobertura do escândalo político e os novos propósitos de uma subjetividade objetivante”, Bruno
Paixão (doutorando e pesquisador do Projeto) confronta a objetividade jornalística face ao caso “ Fátima Felgueiras”, identificado como escândalo político. O autor
apresenta ainda o resultado de um questionário dirigido
aos jornalistas de política e às direcções editoriais sobre
a objetividade e o escândalo político. Por último, o texto
de Egídio Vaz Raposo (historiador e consultor internacional de comunicação em Moçambique) discute a contribuição da Internet para a constituição e consolidação
de um espaço de exercício da cidadania em Moçambique.
Partindo do conceito de ativismo digital, reflete sobre o
envolvimento dos cidadãos no espaço público virtual e
na capacidade das redes sociais mobilizarem os cidadãos
para a ação política.
14
AF miolo corrupcao 3.indd 14
7/31/14 12:53 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Como nota final desta apresentação, ressalta-se que os
artigos refletem três registos de português escrito, correspondentes às origens e nacionalidades dos autores. A grafia e o registo foram respeitados nesta publicação.
Isabel Ferin Cunha
Referência Bibliográfica
HALLIN, D. e MANCINI, P. (2010) Sistemas de Média: Estudo Comparativo três modelos de Comunicação e Política. Colecção Média e Jornalismo. Lisboa: Livros Horizonte.
15
AF miolo corrupcao 3.indd 15
7/31/14 12:53 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 16
7/31/14 12:53 AM
Pa r t e I
“sistemas Políticos
e Enquadramento
jurídico da corrupção”
AF miolo corrupcao 3.indd 17
7/31/14 12:53 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 18
7/31/14 12:53 AM
1. Análise do sistema polític o P o rt u g u ê s n o Pe r í o d o
Democrático: uma breve
caracterização
Mafalda Lobo
Introdução
Os sistemas políticos modernos são fruto das Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789). Em Portugal podemos analisar os sistemas políticos considerando
quatro períodos históricos: A Monarquia Constitucional
(1820-1910); a I República (1910-1926), o Estado Novo
(1926-1974) e o período democrático (de 1974 – até à
presente data).
Neste capítulo, começa-se por apresentar o conceito
de sistema político e o seu funcionamento sistémico, os
seus componentes e as várias dimensões de análise, partindo depois para uma análise particular dos vários sistemas que o integram no período que vai desde a instauração do regime democrático em Portugal (após o golpe
militar de 25 de Abril de 1974), até à actualidade. Com o
fim do regime autoritário e ditatorial, instituíram-se em
Portugal, eleições regulares, livres e justas para os órgãos
do poder político: Assembleia da República, Presidência
da República, Autarquias Locais, Regiões Autónomas e
Parlamento Europeu. Os sistemas eleitorais, os sistemas
de governo, e os sistemas partidários são fundamentais
para se perceber todo o funcionamento do sistema político moderno, por isso, torna-se importante analisar as suas
características e inter-relações na democracia portuguesa.
19
AF miolo corrupcao 3.indd 19
7/31/14 12:53 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Ao longo deste capítulo irão também ser abordadas algumas das propostas apresentadas para a reforma do sistema eleitoral como forma de melhorar a representação
política e a qualidade da democracia em Portugal.
Para a elaboração deste capítulo, procedeu-se a uma
análise bibliográfica exaustiva e criteriosamente seleccionada sobre o tema de autores consagrados na área
da Ciência Política.
S is t e m a P o l í t i c o :
c o n c e i t o e d i m e n s õ e s d e a n á l is e
O conceito de sistema político foi introduzido por
David Easton (1992, 1965, pp. 221-222), e utilizado posteriormente por outros autores no estudo da Ciência
Política e nos estudos políticos (e.g. Almond e all., 2006;
Norris 2010; e Pasquino, 2005). Pode definir-se da seguinte forma:
Pode denominar-se sistema político àquelas interações através
das quais se atribuem/se dispõem de forma vinculativa/de forma
imperativa os valores (materiais e simbólicos) em uma determinada sociedade; isto é o que distingue o sistema político dos outros sistemas que formam o seu meio (ambiente) (Easton, 1992,
1965: 221-222).
Ainda na linha de pensamento de Easton, os sistemas
políticos não existem isolados, estão integrados e interagem em diferentes ambientes. O meio ambiente no qual o
sistema político se integra divide-se em intra-social e extrasocial (Easton, 1992, 1965; Almond, e all., 2006, pp. 3537). O intra-social refere-se aos subsistemas não políticos
pertencente à mesma sociedade (económico e o cultural, a
20
AF miolo corrupcao 3.indd 20
7/31/14 12:53 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
estrutura social, as personalidades individuais), os chamados segmentos funcionais da sociedade. O extra‑social, diz
respeito a todos os sistemas que estão fora da sociedade,
isto é, os sistemas políticos de diferentes sociedades do
mundo (organizações internacionais, os movimentos sociais internacionais, etc.) e que interagem com o sistema
político nacional, influenciando-o e sendo influenciado
por ele (Easton, 1992, 1965: p. 225; Almond, e all., 2006).
O modelo simplificado de sistema político, tal como nos
apresenta Easton (1992, 1965:p. 32), concebe a vida política como um sistema de comportamentos, com um determinado ambiente, sujeito a várias influências (inputs),
às quais reage (outputs). Estas respostas irão provocar um
efeito de feedback, sobre os inputs, realimentando continuamente o sistema político.
Um sistema político, para além de um conjunto integrado de vários elementos inter-relacionados, não é um
sistema isolado, está integrado em diferentes ambientes
– sociais, psicológicos, biológicos, etc. – e está sujeito às
várias influências dos vários subsistemas que o rodeiam.
A vida política é um sistema aberto, e por isso, gera-se um
fluxo contínuo de influências e condicionalismos à acção
dos sistemas políticos. Pasquino (2005: pp. 12-13), por seu
lado, define três componentes básicas dos sistemas políticos: a comunidade política; o regime; e as autoridades
(esquematização elaborada por Pasquino mas da autoria
de Easton). Na comunidade política, o autor inclui todos
os indivíduos, grupos ou organizações abrangidos pelo
sistema político do seu país, expostos às decisões das autoridades e às modalidades de funcionamento do regime,
que no caso português é uma comunidade homogénea, o
que não acontece em outros países da Europa. Em relação
ao regime, como a segunda componente mais importante
de um sistema político, o autor refere:
21
AF miolo corrupcao 3.indd 21
7/31/14 12:53 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
O regime é o conjunto das regras, das normas, dos procedimentos – poder-se-ia mais genericamente dizer a Constituição - que
acautela o funcionamento das instituições e o seu relacionamento,
a actividade política da comunidade e a escolha e os comportamentos das autoridades (Pasquino, 2005: p. 15).
O termo “regime” serve para distinguir dentro dos vários regimes, os democráticos e não democráticos, aqueles
que são monarquias constitucionais, parlamentares, presidenciais, semipresidenciais, directoriais etc.).
O regime político ainda pode ser subdividido em três
dimensões: “princípios”, “instituições” ”rendimento/
desempenho/performance”. Os “princípios” são os valores do regime, as normas fundamentais, o seu enquadramento constitucional, e determinam aquilo que é a esfera
dos direitos, civis, políticos e sociais, estabelecendo a diferença no relacionamento entre o Estado e o mercado,
entre o público e o privado. As “instituições”, referem-se
à existência ou não, de presidentes, governos, parlamentos, tribunais; ao sistema eleitoral; aos sistemas de partidos; à organização territorial do Estado etc. A última dimensão do sistema político pressupõe a análise do grau
de responsabilização política, a tomada de decisões, a estabilidade política, os níveis de satisfação dos cidadãos;
os níveis de integração dos diferentes grupos sociais no
sistema social e político do país; os níveis de igualdade e
de desigualdade etc.
As autoridades, como a última componente de um sistema político, são aqueles que desempenham cargos políticos, ou seja, que têm a capacidade de deter cargos institucionais de representação, de governo, cargos políticos
e administração da justiça.
22
AF miolo corrupcao 3.indd 22
7/31/14 12:53 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
S is t e m a s E l e i t o r a is : d e f i n i ç ã o ,
t ip o l o g i a , e a l g u n s c o n t r i b u t o s
teóricos
O sistema eleitoral está na base de todo o sistema político e constitui uma dimensão institucional muito relevante no funcionamento do mesmo. Quando falamos em
sistemas eleitorais, falamos da forma como se convertem
os votos de uma eleição em mandatos, ou seja, do modo
como o poder é repartido entre os diversos partidos, e
até mesmo numa eleição dentro dos partidos para um
qualquer órgão. Numa definição mais restrita, para Nohlen (2007: p. 15) “os sistemas eleitorais determinam as regras
através das quais os eleitores expressam as suas preferências políticas, convertendo votos em mandatos parlamentares”, no caso das
eleições legislativas.
Não podemos falar de sistemas eleitorais sem equacionarmos os sistemas partidários e os sistemas políticos. O
sistema eleitoral é a base de todo o sistema político e condiciona todo o sistema político pela influência que tem na
configuração do sistema parlamentar, no sistema de governo e na forma como molda o poder político. Podemos
definir sistema eleitoral em sentido amplo e em sentido
restrito. No sentido amplo, caracteriza-se pelo “conjunto
de normas jurídicas-positivas e consuetudinárias que regulam a eleição de representantes do povo”, ou seja, que
regulam os processos eleitorais (CNE, 2000). Em sentido
restrito (Cardoso, 1993: p. 11), o sistema eleitoral traduzse na conversão de votos em mandatos nos processos de
eleição de representantes para cargos públicos, e que não
pode dissociar-se de outros aspectos como:
a) a natureza do sufrágio;
b) a dimensão ou magnitude dos círculos - quanto mais
pequeno é o círculo eleitoral, menor será o efeito
23
AF miolo corrupcao 3.indd 23
7/31/14 12:53 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
proporcional do sistema eleitoral, e também a possibilidade de pequenos partidos acederem ao Parlamento, ou seja, a quantidade de votos que um partido necessita para obter um mandato é tanto maior
quanto menor for o número de mandatos a distribuir no círculo eleitoral. Nos círculos uninominais
(escolha de candidatos individuais), a relação eleitor
e candidato é mais estreita do que nos círculos plurinominais (lista apresentada pelo partido);
c) a capacidade eleitoral;
d) as condições das candidaturas – candidatura individual e candidatura de lista (fechada e bloqueada;
fechada e não bloqueada; lista aberta). Na lista fechada e bloqueada, o eleitor vota em listas de candidatos propostas pelos partidos; a fechada e não
bloqueada permite ao eleitor alterar a ordenação
dos candidatos na lista elaborada pelo partido; na
lista aberta, o eleitor pode eleger candidatos de listas diferentes (Nohlen, 2007: p. 18).
e) o
modo como são reguladas as campanhas eleitorais
e assegurada ou não, melhor ou pior, a igualdade entre candidatos, etc.
Na definição mais restrita do sistema eleitoral (Cardoso, 1993: p. 21), podem questionar-se ainda os seguintes elementos:
a) se estamos perante um sistema de representação por
maioria ou proporcional. No sistema de representação por maioria, é eleito o candidato (ou lista de
candidatos) que obtém o maior número de votos.
Este tipo de escrutínio pode ainda assumir a forma
de: maioritário puro e simples e maioritário em duas
(ou mais) voltas;
b) quais as fórmulas utilizadas para a conversão de votos em mandatos. Aqui importa distinguir entre as
24
AF miolo corrupcao 3.indd 24
7/31/14 12:53 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
fórmulas do quociente eleitoral ou dos maiores restos: dividir os totais de votos obtidos pelos partidos
por uma quota, ou seja, a cada um dos partidos são
atribuídos tantos mandatos quanto os números inteiros correspondentes à quota, sendo os restantes
mandatos distribuídos numa segunda contagem pelos partidos com maiores restos, e as fórmulas do
divisor ou da média mais alta, assenta na divisão do
número de votos de cada partido por determinados divisores (no caso do método de Hondt: 1, 2,
3, 4, 5, etc.);
c) q ual o desenho e dimensão dos círculos eleitorais
– quanto mais pequeno é o círculo eleitoral, menor
será o efeito proporcional do sistema eleitoral, e também a possibilidade de pequenos partidos acederem
ao Parlamento, ou seja, a quantidade de votos que
um partido necessita para obter um mandato é tanto maior quanto menor for o número de mandatos
a distribuir no círculo eleitoral. Nos círculos uninominais (escolha de candidatos individuais), a relação
eleitor e candidato é mais estreita do que nos círculos plurinominais (lista apresentada pelo partido);
d) e xistência ou não de cláusulas barreira legais. Fala-se
em barreiras legais quando os partidos têm necessidade de alcançar uma determinada percentagem de
votos ou um determinado número de mandatos para
aceder à representação parlamentar. Estas barreiras
aplicam-se apenas aos partidos e não a um candidato em particular que no caso de ser eleito no seu
círculo eleitoral tem sempre garantido o seu lugar
independentemente de o seu partido ter superado
a barreira legal ou não;
e) t ipo de sufrágio (nominal versus de lista; listas abertas
versus fechadas). Aqui torna-se importante distinguir
25
AF miolo corrupcao 3.indd 25
7/31/14 12:53 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
entre candidatura individual e candidatura de lista
(fechada e bloqueada; fechada e não bloqueada; lista
aberta). Na lista fechada e bloqueada, o eleitor vota
em listas de candidatos propostas pelos partidos; a
fechada e não bloqueada permite ao eleitor alterar
a ordenação dos candidatos na lista elaborada pelo
partido; na lista aberta, o eleitor pode eleger candidatos de listas diferentes (Nohlen, 2007: p. 18).
f) q ue procedimentos de votação: voto único; voto duplo; possibilidades de escolha facultadas ao eleitor
na escolha dos candidatos/partidos (categórico versus voto ordinal, etc.);
g ) d imensão do órgão a eleger, nomeadamente o número de representantes;
h) a influência dos sistemas presidenciais no formato e
dinâmica partidária ao nível dos órgãos legislativos;
i) a forma de preenchimento, ou não, das vagas nos
mandatos;
j) e análise integrada de todos os elementos dos sistemas eleitorais e da sua influência no formato e dinâmica dos sistemas partidários, bem como no funcionamento geral do sistema político (Lopes e Freire,
2002: pp. 91-92).
A conversão de votos em mandatos, independentemente destes factores, é a que assume maior relevância,
e distingue-se entre a regra maioritária e a regra proporcional. Na fórmula maioritária, em cada círculo eleitoral
ganha o partido ou candidato que tiver a maioria, relativa
ou absoluta dos votos; no caso da regra proporcional, a
distribuição dos mandatos resulta da percentagem de votos obtidos pelos distintos partidos ou candidatos.
O sistema eleitoral assume grande relevância no funcionamento do sistema político, através do impacto que
gera no formato e dinâmica do sistema partidário. Con26
AF miolo corrupcao 3.indd 26
7/31/14 12:53 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
tudo, será preciso ter em conta que “a análise dos efeitos
dos sistemas eleitorais deve partir das condições históricas e sociopolíticas dos países respectivos” (Nohlen, 1994:
p. 37), e os princípios de representação diferenciam-se
quanto aos seus objectivos para o conjunto do país: formação de maiorias monopartidárias ou representação fiel
do eleitorado. Em Portugal, os elementos estruturantes
do sistema eleitoral relativos à eleição da Assembleia da
República não se alteraram desde que se se instituiu a democracia (1976), e estão consagrados na Constituição que
se rege pelo princípio da representação proporcional e o
recurso ao método de Hondt na conversão dos votos em
mandatos, a estrutura dos círculos e respectiva distribuição dos mandatos em cada um e a proibição da cláusula
barreira, são elementos que se têm mantido. Procurouse assim reforçar os partidos políticos emergentes e favorecer a consociatividade, contrariando aquilo que foi o
regime anterior assente na longa governação maioritária.
O objectivo é ultrapassar as consequências de uma constante instabilidade governativa, mas também da crescente partidocracia, e afastamento dos cidadãos da política e
das instituições. A estes efeitos junta-se a baixa militância e uma menor identificação partidária, agravada pelas
altas taxas de abstenção. São estes fenómenos que têm
originado as chamadas propostas de reforma do sistema
eleitoral para a Assembleia da República, com ênfase na
introdução de um sistema maioritário com círculos uninominais ou de um sistema misto, que poderiam vir a garantir a proporcionalidade.
São muitos os autores que têm abordado a questão
das reformas eleitorais (e.g. Geddes, 1995; Benoit e Schiemann, 2001; Shugart e Wattenberg, 2003), na análise a
vários países. Outros têm dado contributos teóricos para
melhor percebermos as diferenças entre os vários siste27
AF miolo corrupcao 3.indd 27
7/31/14 12:53 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
mas eleitorais (e.g. Arrow, 1950; Rae, 1967, 1971; Lijphart,
1985, 1994; Sartori, 1994, Nohlen, 2007). Para Nohlen
(2007: pp. 109-112), a escolha de um sistema eleitoral resulta de uma escolha equilibrada entre diversos critérios
de avaliação que designou de “exigências funcionais fundamentais”: Representação, Concentração e Eficácia; Participação; Simplicidade (ou transparência); Legitimidade.
Desenvolvendo esta ideia, as eleições têm como objectivo delegar o poder político, e o sistema eleitoral deverá
contribuir para a estruturação do sistema partidário e do
processo político de um país. Isto é, os sistemas eleitorais devem cumprir os seguintes requisitos: representar os
diferentes grupos sociais (sobretudo das minorias e mulheres) para além de representar de forma proporcional
as forças sociais e políticas na sociedade; facilitar as decisões políticas (razão pelo qual os partidos representados
no parlamento não devem ser muito pequenos e diferentes); e ter a participação (expressão da vontade política no
âmbito da alternativa voto unipessoal versus voto de partido ou de lista) como uma das suas funções. Os sistemas
eleitorais devem basear-se na simplicidade e na transparência para que os cidadãos percebam como funcionam,
e ter legitimidade, ou seja, os resultados eleitorais devem
ser aceites por unanimidade. É preciso, no entanto, considerar que existem vários sistemas eleitorais, e que estes
dependem de vários factores ambientais ou contextuais
tal como descrevem Maurice Duverger (1950) e outros.
Existem, hoje em dia, nos países democráticos, três tipos de sistemas eleitorais: O sistema maioritário em uma
volta, ou sistema de representação por maioria, o sistema
de Representação Proporcional (RP), e o sistema maioritário em duas voltas. O primeiro, que foi sempre utilizado
na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e outros países anglo‑saxónicos, como o Canadá, Austrália e Nova Zelândia,
28
AF miolo corrupcao 3.indd 28
7/31/14 12:53 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
é o mais antigo, o mais simples dos sistemas eleitorais, e
o mais justo. Neste sistema é eleito apenas um deputado
em cada círculo eleitoral, isto é, vence a eleição o candidato que tiver maior número de votos no seu círculo. Os
votos dados aos candidatos derrotados, em cada círculo,
são votos perdidos, fazendo com que os governos sejam
monopartidários e maioritários no Parlamento. Este sistema assegura a estabilidade e a eficácia dos governos.
Os sistemas eleitorais proporcionais começaram a ser
utilizados no final do século XIX e princípio do século
XX, e resultaram das pressões de diferentes forças políticas que se sentiam prejudicadas na tradução dos votos em
mandatos. O princípio básico é representar fielmente as
diferentes tendências sociais e políticas do eleitorado. Neste sistema não há círculos uninominais (eleição de apenas
um deputado por círculo). Cada círculo elege um mínimo
de dois ou três deputados. Cada partido apresenta para
cada círculo eleitoral uma lista, por isso também se designa
de sufrágio de lista. É o sistema que vigora em Portugal
(desde 1974), em Itália, na Bélgica, Holanda, Dinamarca.
Freitas do Amaral considera que este sistema gera instabilidade e ineficácia governativa e, por outro, a desafeição em relação ao sistema político (Amaral, 1998: p. 126).
Em alguns países, como por exemplo, na Grécia, a fórmula proporcional está associada a uma reduzida dimensão dos círculos eleitorais, e a limiares de representação
muito altos tornando o sistema deslocado dos princípios
da representação proporcional. No Japão, os sistemas de
voto limitado, ou do sistema de voto único não transferível, utilizado entre 1947-1990, visavam criar mecanismos
para assegurar a representação de minorias. É neste sentido que Nohlen (1994: pp. 94-97) distingue entre princípios de representação e fórmulas de conversão enquanto
critérios para classificar os sistemas eleitorais, revelando
29
AF miolo corrupcao 3.indd 29
7/31/14 12:53 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
que o critério de maior relevância política não é a fórmula de conversão (maioritária ou proporcional), mas sim o
princípio de representação utilizado (maioritário ou proporcional). As fórmulas de conversão em mandatos representam meios que permitem atingir determinados fins
(objectivos) fixados nos princípios de representação adoptados (Nohlen, 1994: p. 97). De acordo com esta abordagem não existem sistemas de representação mistos, mas
sim sistemas de representação por maioria e sistemas de
representação proporcional e, “dentro destes dois tipos básicos
existem sistemas que se correspondem em maior ou menor grau com
os respectivos princípios” (Nohlen, 1994: p. 98).
O sistema maioritário em duas voltas, foi adoptado
em França pelo General Charles De Gaulle, a partir de
1958. A eleição faz-se em círculos uninominais: cada círculo elege apenas um deputado. À primeira volta concorrem todos os partidos, e são eleitos apenas os candidatos
que obtiverem maioria absoluta. Na segunda volta, irão a
votos os candidatos que nos círculos não tenham obtido
maioria absoluta à primeira volta, e será eleito o candidato mais votado, mesmo que apenas com maioria relativa.
Não existe um sistema eleitoral modelo, antes um sistema ideal deve ser estruturado tendo em conta as condições específicas de cada país, atendendo ao seu contexto
histórico, social e político (Sartori, 1994; Nohlen, 2007).
Resumindo esta abordagem, os princípios de representação diferenciam-se quanto aos objectivos almejados para
cada país, ou de formação de maiorias monopartidárias
ou representação fiel do eleitorado (Farrell, 1997: pp. 6-7;
Lopes e Freire, 2002: p. 93). Já as fórmulas de conversão
diferenciam-se pelo critério utilizado para definir quem
perde ou quem ganha a eleição em cada círculo eleitoral,
e relativamente aos mandatos atribuídos a cada um dos
concorrentes. Nas fórmulas maioritárias ganha quem tiver
30
AF miolo corrupcao 3.indd 30
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
a maioria de votos, não cabendo nenhuma representação
aos vencidos; nas fórmulas proporcionais, os mandatos
são distribuídos pelos vários concorrentes de acordo com
as respectivas percentagens de votos. Nesta última, os partidos/candidatos tendem a obter um número de mandatos proporcional à sua percentagem de votos, pelo que os
derrotados também tenderão a obter lugares.
Na relação entre o voto e o resultado eleitoral, ela é directa e simples no caso das fórmulas maioritárias, pois a
determinação do vencedor decorre directamente dos resultados eleitorais, enquanto, que nas fórmulas proporcionais essa relação é indirecta e complexa, exigindo muitas
vezes a formação de coligações pós-eleitorais para constituir governo. De igual forma, nas fórmulas maioritárias, a
concentração regional de voto é muito maior, facilitando
que os partidos pequenos consigam, a nível nacional, ter
mais facilidade em eleger deputados. As fórmulas maioritárias associam-se à eleição de candidatos em círculos
uninominais, ao passo que nas fórmulas proporcionais
elegem‑se normalmente listas de candidatos partidários
em círculos plurinominais.
São vários os debates feitos sobre os sistemas eleitorais
e seus efeitos sobre os sistemas partidários e políticos, e
também sobre as vantagens e desvantagens de cada tipo
de sistema (Nohlen, 1994: pp. 112-115). Para Nohlen, são
várias as vantagens teóricas dos sistemas de representação maioritários e os sistemas de representação proporcional (Lopes e Freire, 2002: pp. 94-95). Outros autores,
como Farrell (1997) e Shugart e Wattenberg (2001), defendem a posição de que é possível conciliarem-se num
mesmo sistema as vantagens da estabilidade governativa
e da representação dos interesses minoritários. O sistema
de representação proporcional caracteriza-se, pelo facto
de o número de eleitos por cada candidatura concorrente
31
AF miolo corrupcao 3.indd 31
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
a um determinada eleição ser proporcional ao número de
eleitores que escolheram votar nessa mesma candidatura. Ora, no âmbito deste sistema, existem várias fórmulas
ou modelos matemáticos que podem ser utilizados para
transformar votos em mandatos a atribuir às candidaturas
concorrentes a certa eleição, sendo o método de Hondt
um deles. Este método é sobretudo utilizado na Europa
Continental. Mas existem outras fórmulas: Saint-Lague,
por exemplo, associada a países escandinavos, onde é utilizada apenas na versão modificada (Lijphart, 1985, 1994).
De qualquer modo, em cada uma destas fórmulas, os votos de cada partido em cada distrito eleitoral são divididos pelos vários divisores, tantos quantos os necessários
para se atribuírem os mandatos em disputa nesse círculo.
De seguida ordenam-se os resultados dos quocientes, ou
seja, as médias dos vários partidos. Os mandatos em disputa são depois distribuídos de acordo com a ordem de
cada um dos quocientes (Lopes e Freire, 2002: 116-117).
O método de Hondt, integra a categoria dos métodos de
divisores – por contraposição à categoria dos métodos
de maiores restos – pois a operação matemática consiste
precisamente na divisão do número total de votos obtidos
por cada candidatura por divisores previamente fixados,
no caso 1, 2, 3, 4, 5, e assim sucessivamente.
S is t e m a
eleitoral: eleições
e enquadramento constitucional
As primeiras eleições em Portugal foram em 1820 e
serviram para designar os representantes às Cortes Extraordinárias e Constituintes. Até à proclamação da I República (1910) realizaram-se em Portugal 47 eleições reguladas
por 22 diplomas constitucionais ou regulamentares (Joel
32
AF miolo corrupcao 3.indd 32
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Serrão, citado por Cardoso, 1993: p. 47). Estabeleceram
as leis regulamentares sobre o sistema de eleições, a capacidade eleitoral, a duração da legislatura, a composição da
Câmara dos Pares, entre outros princípios, a Constituição
de 1822, a Carta Constitucional de 1826 (que instituiu o
sistema bicameral – Câmara dos Pares e Câmara dos Deputados), a Constituição de 1838 (que instituiu a Câmara dos Senadores, em substituição da Câmara dos Pares),
o Acto Adicional de 1852, 1885, e 1895-1896 e o Acto
adicional de 1907. Em Portugal o sistema bicameral e o
sufrágio censitário vigoraram durante quase toda a Monarquia Constitucional (1820‑1901) (Cardoso, 1993: pp.
51-55). Quanto ao sistema eleitoral, o escrutínio maioritário uninominal, em círculos plurinominais e/ou uninominais foi a regra durante toda a Monarquia Constitucional (Cardoso, 1993: pp. 57-61).
Durante a I República realizaram-se 7 eleições gerais e a
Constituição de 1911 manteve o sistema de representação
bicameral. O poder legislativo era exercido pelo Congresso
da República, formado por duas Câmaras, a Câmara dos
Deputados e o Senado, eleitas por sufrágio directo. Com
a implantação da República acaba o sufrágio censitário,
embora mantendo ainda algumas excepções (analfabetos
e mulheres). O Decreto de 4 de Abril de 1911 introduziu pela primeira vez em Portugal, a eleição proporcional
pelo método de Hondt.
Durante o Estado Novo, 1934-1973, assistiu-se à vigência de um regime autoritário, que reprimia as liberdades
e garantias dos cidadãos, onde não era permitida a existência de partidos políticos. Realizaram-se neste período
11 eleições legislativas. A Constituição de 1933 instituiu a
Assembleia Nacional como um dos quatro órgãos de Estado entre o Chefe de Estado, o Governo e os Tribunais.
O voto era censitário com excepção dos cidadãos do sexo
33
AF miolo corrupcao 3.indd 33
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
masculino, e das mulheres que preenchessem alguns requisitos. Quanto ao sistema eleitoral, a eleição para a Assembleia Nacional tinha um círculo único, por escrutínio
de lista completa, com eleição numa só volta.
A Constituição de 1976 consagra o sufrágio universal, directo e secreto, e determina que os Deputados
para a Assembleia Constituinte seriam eleitos segundo
o sistema da representação proporcional e o método da
média mais alta de Hondt. A eleição seria em círculos
eleitorais, e o número de deputados por cada círculo do
território nacional devia ser proporcional ao número de
eleitores neles inscritos. As eleições para a Assembleia
Constituinte realizaram-se a 25 de Abril de 1974, em 24
círculos eleitorais (dezoito distritos do continente, quatro das ilhas adjacentes, um de Macau, um de Moçambique, e um da Emigração). Foram eleitos 250 deputados.
Desde a eleição da Assembleia Constituinte, e posterior
promulgação da Constituição de 1976, tiveram lugar em
Portugal até ao presente, 13 eleições legislativas (1976,
1979, 1980, 1983, 1985, 1987, 1991, 1995, 1999, 2002,
2005, 2009 e 2011).
C a r a c t e r i z a ç ã o d o S is t e m a
Eleitoral Português:
A
e l e i ç ã o d o s p r i n c ip a is ó r g ã o s
de poder
Em Portugal, os deputados à Assembleia da República
são eleitos por 22 círculos eleitorais, que correspondem a
18 distritos administrativos de Portugal continental, dois
círculos nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, um círculo para os cidadãos portugueses residentes
na Europa, e outro para os que residem fora da Europa
34
AF miolo corrupcao 3.indd 34
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
(Jalali, 2007: p. 270). O círculo eleitoral é uma circunscrição territorial criada para fins eleitorais, a cujos eleitores
inscritos corresponde um determinado número de mandatos, previamente definido no órgão a eleger.
O sistema eleitoral de eleição do Presidente da Republica é o sistema maioritário a duas voltas (pelo facto de
se tratar de um órgão uninominal). Será eleito o candidato que obtiver mais de metade dos votos validamente expressos, não se considerando como tal os votos em branco. Exige-se maioria absoluta e, caso não seja alcançada,
exige-se uma segunda volta onde concorrem os dois candidatos mais votados, que não obtiverem maioria absoluta na primeira volta. É o chamado sistema de ballotage
ou de duas voltas.
A eleição para a Assembleia da República assenta no
sistema de representação proporcional. Os deputados à
Assembleia da República são eleitos através do método
de Hondt (método da média mais alta) em circunscrições plurinominais.
A Constituição prevê a possibilidade, não concretizada em lei ordinária, de um círculo eleitoral nacional e de
círculos eleitorais uninominais, de modo a distorcer a desproporcionalidade. A Lei eleitoral proíbe explicitamente a
adopção de qualquer cláusula de barreira, uma vez que se
trata de um sistema de representação proporcional, onde
todos devem ser representados consoante a sua expressividade eleitoral. Efectivamente, constata-se que no sistema eleitoral não existe uma cláusula de barreira formal
mas na realidade existe uma cláusula de barreira efectiva.
Por exemplo, no círculo eleitoral de Portalegre só elegem
deputados os partidos que possuírem uma expressão eleitoral superior a 25%.
Em relação ao eleitor, este quando elege os representantes para a Assembleia da Republica, dispõe de um
35
AF miolo corrupcao 3.indd 35
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
voto singular para votar em listas plurinominais, fechadas e bloqueadas.
No que diz respeito à eleição para as ALRAA (Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores), o sistema eleitoral consagra à semelhança da Assembleia da
República, a representação proporcional, apresentando,
no entanto algumas especificidades. A mais significativa
prende-se com a existência de dez círculos eleitorais, dos
quais nove correspondem a cada uma das nove ilhas do
arquipélago. Cada um destes círculos elege dois deputados e mais um, por cada 6000 ou fracção superior a 1000
eleitores, recenseados no respectivo círculo, a que se junta
à totalidade do território da região autónoma, que elege
cinco deputados, no total. Esta preocupação em consagrar um círculo regional de compensação prende-se com
a necessidade de se salvaguardar a proporcionalidade do
sistema e promover a igualdade do valor de voto.
Relativamente à eleição dos deputados, aquele faz-se
mediante o recurso ao sufrágio universal, directo e secreto,
tendo em conta o respeito pelo princípio da representação proporcional e em obediência ao método de Hondt.
Por último, como se passa na eleição para a Assembleia
da Republica, o eleitor dispõe de um único voto, sendo as
listas plurinominais, fechadas e bloqueadas, e apresentadas
exclusivamente por partidos ou coligações de partidos.
No que concerne à eleição para as ALRAM (Assembleia Legislativa da Região Autónoma Madeira), procedese mediante o respeito pelo sistema de representação proporcional (imposto pela ordem constitucional que vincula
o Estatuto Político‑administrativo da regiões autónomas).
Neste caso particular aplica-se a plenitude do princípio da
representação proporcional, dado existir um círculo regional único para a totalidade dos mandatos (47), para os
quais os deputados são eleitos.
36
AF miolo corrupcao 3.indd 36
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
No que toca às Autarquias Locais, o seu processo de
eleição está vinculado ao princípio do sistema proporcional, optando-se pela conversão dos votos em mandatos
assente no método da média mais alta de Hondt. O eleitor, por sua vez, possui um voto singular de lista por cada
órgão autárquico a eleger (Câmara Municipal, Assembleia
Municipal e Assembleia de Freguesia), sendo as listas plurinominais, fechadas e bloqueadas. Relativamente ao círculo eleitoral, este equivale à área territorial da autarquia,
correspondente ao órgão a eleger.
O sistema de eleição para as Autarquias Locais permite a apresentação de candidaturas de cidadãos eleitores à
eleição dos órgãos autárquicos, excluindo dessa forma o
monopólio dos partidos, verificados nas outras eleições.
Por último, no que se reporta à eleição do Parlamento Europeu, verifica-se que o sistema eleitoral de eleição
dos deputados naquele parlamento não é igual em todos
os 27 Estados-Membros da União Europeia, (pese embora a lei estipular a uniformização do processo eleitoral).
Enquanto tal disposição não passa à prática corrente, os
Estados‑Membros têm optado pela adopção do seu sistema de eleição dos parlamentos nacionais na eleição dos
seus representantes ao Parlamento Europeu (aplicação
subsidiária da legislação eleitoral).
S is t e m a E l e i t o r a l P o r t u g u ê s :
propostas de reforma nos programas
Governos
pós-25 de Abril
e l e i t o r a is d o s
no
Tem-se falado muito na reforma do sistema eleitoral,
mas em quase 40 anos de democracia nunca houve uma
verdadeira mudança no sistema eleitoral. Entre 1976 e
37
AF miolo corrupcao 3.indd 37
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
2008 ocorreram diversos ciclos de debate sobre a reforma eleitoral (Freire e all. 2008) com várias propostas de
alteração, desde a mudança para um sistema maioritário
a duas voltas (Amaral, 1985), até manter o sistema actual
com pequenas alterações. As primeiras iniciativas partiram
dos partidos Partido Social Democrata (PSD) e CDS Partido Popular (CDS-PP). O Partido Comunista Português (PCP), nunca esteve a favor da alteração, e o Partido
Socialista (PS), embora com alguma relutância acabou por
tomar também a iniciativa.
O sistema eleitoral vigente actualmente tem a sua origem na Lei Constitucional 3/74, de 14 de Maio, que veio
mais tarde traduzir-se no decreto-lei 621-C/74 que definia as regras para as eleições livres de 1975 da Assembleia
Constituinte (Cruz, 1998: p. 9). Estas regras passaram
pela adopção da proporcionalidade de modo a garantir a
representatividade das várias correntes de opinião e das
preferências políticas partidárias, favorecendo soluções
governativas minoritárias ou consociativas. O método de
Hondt era de todos os sistemas proporcionais o menos
proporcional, que favorecia as maiorias e prejudicava as
minorias sendo, por isso, o que menos feria a necessária
governabilidade. As primeiras eleições legislativas, ocorridas a 25 de Abril de 1976, foram realizadas ao abrigo
desta Constituição. Os primeiros três anos desta legislatura foram de grande instabilidade governativa com cinco
governos constitucionais, em que apenas um (II Governo
Constitucional), fruto de uma aliança pré-eleitoral (coligação PS/CDS), gozava de apoio maioritário parlamentar.
Após a queda deste Governo, iniciou-se um ciclo de três
governos de iniciativa presidencial (III, IV e V Governos
Constitucionais) e o aparecimento da primeira coligação
pré-eleitoral – A Aliança Democrática (AD) de centro-direita entre o CDS, o PSD, o Partido Popular Monárquico
38
AF miolo corrupcao 3.indd 38
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
(PPM) e os reformadores. A lei eleitoral de 16 de Maio de
1974 (Lei nº 14/79) surge da reanálise do sistema eleitoral, mas reconsagrou o sistema de representação proporcional pelo método de Hondt, embora tenha feito surgir
as primeiras propostas de alteração. Em 1979, a Aliança
Democrática (AD) vence as eleições e forma-se o VI Governo Constitucional, tendo como primeiro-ministro Sá
Carneiro, que tomou posse a 3 de Janeiro de 1980. Durante este período (1979-1982), surgem vários projectos
de revisão constitucional, onde se discutiu o sistema eleitoral, a que os partidos de esquerda sempre se opuseram.
Entre 1982-1985, com a dissolução da AD, a substituição da direcção do PSD, a dissolução do Bloco Central e
com a instabilidade governativa gerada, volta-se novamente a discutir o problema da governabilidade e do sistema
eleitoral. O PS através de uma posição crítica de António
Guterres, sugeriu os círculos uninominais. A formação
do governo do Bloco Central (PS-PSD), em Dezembro
de 1984, aproximou estes partidos na questão da reforma
eleitoral, no sentido de reduzir o número de deputados, do
estabelecimento de uma relação mais estreita entre eleitores e eleitos e reforçar a estabilidade governativa. Esta ideia
foi conduzida ao fracasso pela queda do Bloco Central.
Em 1985, nas eleições para as legislativas, o PSD defendeu no seu programa eleitoral o abandono da representação proporcional “para favorecer a estabilidade e
pedir contas aos eleitos”, substituindo-o por um “sistema
de círculos uninominais com apuramento pelo método
maioritário em duas voltas, complementado por um círculo nacional com apuramento pelo método proporcional”
(Cruz, 1998: 14). O PS propôs alterações semelhantes às
do PSD, e com base nesta proximidade de posições entre
os dois maiores partidos, o Governo eleito presidido por
Cavaco Silva (6 de Outubro de 1985), nomeou em Março
39
AF miolo corrupcao 3.indd 39
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
de 1986 uma comissão para a elaboração de uma proposta de Código Eleitoral, que embora não tivesse seguimento em termos legislativos, contribuiu para o alargamento
do debate. As eleições presidenciais de 1985-86 também
aprofundaram o debate sobre propostas de reforma eleitoral, a mais importante apresentada por Freitas do Amaral, ao defender a adopção do sistema maioritário a duas
voltas. Mário Soares, por seu turno, chegou a defender a
substituição do sistema proporcional por um sistema misto próximo do sistema alemão.
Em 1987, as eleições antecipadas fizeram-se com a revisão constitucional do sistema eleitoral no horizonte. O
PSD e o CDS propuseram a desconstitucionalização do
sistema proporcional e do método de Hondt, com vista à
proposta de um círculo nacional, e a redução do número
de deputados. O PCP opunha-se à revisão constitucional do sistema eleitoral e o PS manifestou-se receptivo a
apenas algumas alterações (Cruz, 1998: p. 17). O acordo
político para a revisão constitucional entre o PSD e o PS
levou à redução do número de deputados e à introdução
da possibilidade de criação por lei de um círculo nacional.
Em 1990, e após a revisão constitucional de 1989, o
governo apresentou à Assembleia da República, a 16 de
Maio de 1990, uma proposta de alteração da lei eleitoral
(Lei nº 151/V) com vista à bipolarização do sistema partidário e à facilidade de obtenção de maiorias, mas respeitando a proporcionalidade. O PCP, o CDS e o Partido
Renovador Democrático (PRD) opuseram-se (Cruz, 1998:
pp. 19-21) e no PS as opiniões divergiram. Esta proposta de lei acabou por não ser aprovada dada a não obtenção de consenso de pelo menos dois terços dos deputados. Em 1992, e depois da obtenção da maioria absoluta
pelo PSD de Cavaco Silva em 1991, voltou-se a discutir
esta proposta que implicava alterações da Constituição e
40
AF miolo corrupcao 3.indd 40
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
exigia o consenso com o PS, e em 1992 o PSD voltou a
apresentar um novo pacote de projectos de lei relativos à
reforma eleitoral.
Na decorrência da quase maioria absoluta obtida pelo
PS em 1995, este partido iniciou um intenso debate sobre
a reforma e em 1997 sugeriu a implementação de um Sistema de Membros Mistos inspirado no sistema alemão.
Encomendou também vários estudos junto da comunidade académica sobre o desenho dos círculos. Mais recentemente e na sequência da maioria absoluta obtida em 2005, o
PS volta a encomendar um estudo e desta vez propõe uma
mudança para um sistema de representação proporcional
de múltiplos segmentos e propôs ainda a introdução do
voto preferencial nos círculos primários (Freire e all., 2008).
Em 2008, o grupo parlamentar do Partido Socialista
solicitou um novo estudo sobre a Reforma Eleitoral, “Para
uma melhoria da representação política – a reforma do
sistema eleitoral” (Freire, e all., 2008).
S is t e m a s d e G o v e r n o
em Democracia: Regime
P r e si d e n c i a l is t a , P a r l a m e n t a r is t a
e S e m ip r e si d e n c i a l is t a
Ao falarmos de sistema de governo, falamos de um
conjunto de órgãos do poder político democrático, das
suas funções, estruturação e inter-relações, a forma de eleição dos seus titulares, o estatuto, as regras e as competências que estruturam as relações entre os diferentes órgãos.
Normalmente fala-se em três formas de governo: o presidencialismo, parlamentarismo e semipresidencialismo.
Em Portugal vigora, o sistema semipresidencialista
há 38 anos (desde 1976). É um sistema de governo meio
41
AF miolo corrupcao 3.indd 41
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
presidencial meio parlamentar com um certo grau de
reforço dos poderes do Presidente da República (PR)
eleito por sufrágio directo e universal, conjugado com a
existência de um governo responsável perante a Assembleia da República (AR) chefiado pelo primeiro-ministro
(PM). Do presidencialismo, o semipresidencialismo vai
buscar a eleição do PR por sufrágio directo e universal. Do parlamentarismo, o semipresidencialismo, vai
buscar a existência de um governo como um órgão de
soberania autónomo do Presidente, chefiado por um
primeiro-ministro, e responsável perante o parlamento. O governo pode ser derrubado pelo parlamento
através de uma moção de censura ou através da rejeição de uma moção de confiança. No caso do sistema
inglês, alemão e italiano, é isto o que caracteriza o parlamentarismo. A rainha de Inglaterra, por exemplo, é
uma figura simbólica, cumpre as suas funções cerimoniais, mas quem governa é o governo, e quem chefia o
governo é o primeiro‑ministro a partir da confiança do
parlamento, que por sua vez resulta de eleições. Aqui
há uma combinação de traços característicos do sistema presidencialista e de traços característicos do sistema parlamentar (Amaral, 2011).
A ideia base que preside a esta combinação é a de reforçar os poderes do PR, por contraste com os poderes
de um monarca constitucional, ou de um presidente eleito pelo parlamento, com mais ou menos eleitores. Este
reforço dos poderes do PR visa torná-lo um órgão independente do parlamento (governo) mas sem fazer dele,
como no sistema presidencialista, o único chefe do poder executivo, como acontece nos Estados Unidos, e na
maior parte dos países da América Latina. Nos Estados
Unidos, o parlamento (Congresso), não pode destituir o
executivo através de um voto de censura ou da recusa de
42
AF miolo corrupcao 3.indd 42
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
um voto de confiança, o que significa que o poder executivo não responde perante o poder legislativo. No Brasil,
por exemplo, o presidente não tem primeiro-ministro, e
é ele quem chefia o governo.
No sistema semipresidencialista, tal como no sistema
parlamentar, o Chefe de Estado tem o direito de dissolver o parlamento, sobretudo quando o governo perde a
confiança do parlamento, ao passo que no sistema presidencialista (caso dos EUA), nem o presidente pode
dissolver o Congresso, nem o Congresso pode destituir
o governo enquanto governo. Há um processo de “impeachment”, de destituição do Presidente, mas só para
casos de actos ilícitos de certa gravidade, não por mera
desconfiança política.
O sistema semipresidencialista é um sistema dotado de
uma grande flexibilidade, considerado por alguns autores como um sistema de geometria variável. Este sistema
funciona em países onde em certas circunstâncias seja o
Presidente da República a conduzir efectivamente a política governamental, como foi o caso da França, quando Charles de Gaulle (1959-1969), Georges Pompidou
(1969-1974) ou Valéry Giscard d’Estaing (1974-1981),
foram presidentes. Em França, sempre que a maioria presidencial e a maioria parlamentar não coincidem, dá-se o
fenómeno a que os franceses chamam de “coabitação”,
entre um presidente eleito pela maioria e um governo escolhido na base de uma maioria diferente, normalmente oposta. Freitas do Amaral, por exemplo, defende que
um sistema semipresidencialista como o português, com
tendência parlamentar, pode converter-se num sistema
de tendência presidencial à francesa, sem alterar o texto
da actual Constituição.
43
AF miolo corrupcao 3.indd 43
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Regime
s e m ip r e si d e n c i a l is t a
português de
1976
at é à
a c t u a l i d a d e : a l g u m a s c o n si d e r a ç õ e s
h is t ó r i c a s
Os partidos políticos em 1976 com assento na Assembleia Constituinte optaram pelo sistema semipresidencialista. Os deputados do Partido Socialista (PS) e do Partido Social Democrata (PSD), reivindicavam ainda, desde
o Estado Novo, que se regressasse à eleição do PR, por
sufrágio directo e universal, que existira até às eleições de
1958, participadas pelo General Humberto Delgado, que
pôs em perigo a sobrevivência do regime. Por esta razão,
fizera-se em 1959 uma revisão constitucional, em que a
eleição por sufrágio directo e universal passou para uma
eleição de sufrágio restrito por um colégio eleitoral constituído pelos membros da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa em efectividade de funções.
Da parte do Partido Comunista Português (PCP), a
ideia fundamental foi dar ao PR, através do voto por sufrágio directo e universal, uma legitimidade directa própria,
que lhe permitisse continuar como o partido pretendido
a chefiar pessoalmente as forças armadas, mantendo-as
fora da alçada do governo e do parlamento.
Quanto ao CDS-PP, a razão fundamental foi extraída
da história. A história de Portugal do séc. XX deu-nos
dois modelos que funcionaram mal: um modelo do parlamentarismo de Assembleia na Constituição de 1911, e
um modelo de presidencialismo do primeiro-ministro que
funcionou na Constituição de 1933. Freitas do Amaral
fala da experiência de Sidónio Pais que foi muito curta, e
infelizmente acabou com a sua morte.
Também não foi muito discutida a questão de saber se
o semipresidencialismo em Portugal devia seguir a ten44
AF miolo corrupcao 3.indd 44
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
dência presidencial ou quase presidencial da França, ou
pelo contrário, devia seguir a tendência parlamentar que
nessa altura já existia em países como a Áustria, Finlândia, Irlanda e outros.
Freitas do Amaral (2011) analisa o que foi a prática
nestes últimos 38 anos, estipulando as seguintes etapas:
1ª Fase (1976-1978) – corresponde aos dois primeiros
governos constitucionais presididos por Mário Soares:
primeiro um governo minoritário do PS, mas beneficiando da boa vontade inicial de todos os restantes partidos,
quer à sua direita quer à sua esquerda, e o chamado governo PS - CDS, que caiu no Verão de 1978. Nesta altura
havia uma solidariedade grande entre o PR e o primeiroministro (PM), que a partir de 1977 se transformou numa
divergência crescente e acabou em grande inimizade. Foi
um período de experiência, em que o sistema passou por
muitas subfases, mas nenhuma delas vingou.
2ª Fase (1978-1979) – Governos de iniciativa presidencial. Era presidente da Republica o General Ramalho
Eanes, não foi por culpa dele que existiram governos de
iniciativa presidencial, foi porque os partidos lhe pediram
para que fizesse isso, uma vez que não tinham tido tempo para rever a lei eleitoral de 1975 que entretanto se tinha tornado inconstitucional em vários preceitos, assim
como a Constituição de 1976. Ora, em 1977/78, a AR não
adaptou a lei eleitoral à Constituição, por isso havia vários
preceitos na lei eleitoral que se tinham tornado inconstitucionais. Não havendo tempo que de forma tão rápida
se fizesse essa adaptação, foram os próprios partidos que
sugeriram ao PR, que tomasse esta iniciativa, “se a lei interpretou bem ou mal, se ele foi mais longe do que devia,
admito que sim, mas na verdade, essa experiência, não vingou, nunca mais foi repetida até hoje, não quer dizer que
não possa vir a ser repetida no futuro” (Amaral, 2011).
45
AF miolo corrupcao 3.indd 45
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Em Portugal tivemos três governos de iniciativa presidencial que caíram em circunstâncias acidentadas: Ramalho Eanes indigitou Nobre da Costa para primeiro‑ministro, mas o seu programa foi rejeitado pela maioria da
AR, sendo afastado do III Governo Constitucional; o segundo, o governo de Mota Pinto, viu rejeitada a primeira
proposta de Orçamento de Estado que apresentou. Na
sequência, propõe Mota Pinto que acaba por apresentar
a demissão motivada por razões que tinham a ver com
uma fatal segunda rejeição do orçamento por parte dos
partidos. Terminava assim o IV Governo Constitucional.
Ramalho Eanes, a 13 de Julho de 1979, dissolve a Assembleia da República, marca eleições legislativas intercalares e
indigita para governar o país, Maria de Lourdes Pintassilgo,
que também não cumpre o mandato até ao fim, e acaba
por apresentar a sua demissão do V Governo Constitucional, após a vitória, por maioria absoluta, nas eleições
legislativas, da Aliança Democrática (AD)
e portanto o governo não podia continuar como tanto desejava,
e terminava assim também terminou sem querer. Com este período esteve envolvida a questão de um eventual partido presidencial que não avançou nessa altura, e que só avançou mais tarde
(Amaral, 2011).
Seguiram-se três governos da Aliança Democrática: o
governo de Francisco Sá Carneiro de 1980, e os dois governos de Francisco Pinto Balsemão (1981-1982). Portugal está numa 3ª fase da experiência do semipresidencialismo em Portugal (de Janeiro de 1980 até meados de
1983), contabilizando os 6 meses de gestão. Foi uma fase
negativa, uma fase de conflito institucional aberto entre
o governo e o PR, porque o PR não se conformou com
a vitória das forças que se lhe opunham, e porque essas
46
AF miolo corrupcao 3.indd 46
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
forças não se conformaram com a barreira, com os ventos sistemáticos, que ora o PR, ora o Conselho da Revolução, ora a revisão Constitucional faziam às principais
iniciativas do governo ou da maioria parlamentar para
cumprirem o seu programa, e isso traduziu-se num nível
de conflito verbal de acusações, e de mentiras. Segundo
Freitas do Amaral, esta foi uma fase muito negativa. Em
meados de 1982 começou-se a dialogar com o PS, que
era o principal partido da oposição. Um dos pontos do
acordo foi que era preciso limitar/reduzir os poderes do
PR. Todas as intervenções que o Presidente Ramalho Eanes fez entre 1976 e 1982, foram feitas ao abrigo de um
preceito constitucional decalcado da França, segundo o
qual o governo era politicamente responsável perante o
presidente e perante o parlamento. Havia uma dupla responsabilidade política, e o presidente interpretou que, se
o governo era responsável perante ele, e ele podia demitilo por falta de confiança política, também podia criticar,
dar instruções, etc. De 1976 a 1982, viveu-se um período
de grande instabilidade política no nosso país. A partir de
1983, quando o PR já não tem o poder de demitir o governo por falta de confiança política e o governo não é
politicamente responsável perante o presidente, entramos
num período de grande estabilidade política.
O Bloco Central apesar de constituído pelos dois partidos rivais ainda durou dois anos completos. O Professor
Cavaco Silva, como primeiro-ministro, esteve dois anos
em governo minoritário, mais dois períodos de quatro em
governo maioritário, ou seja, dez anos seguidos como primeiro-ministro, ao que se seguiram seis anos seguidos de
governo com António Guterres como primeiro-ministro.
Entre 2001-2003 e 2004, dois governos PSD-CDS não beneficiaram de grande estabilidade. No primeiro governo,
Durão Barroso, entre continuar primeiro-ministro, ou ir
47
AF miolo corrupcao 3.indd 47
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
para Presidente da Comissão Europeia, decidiu ir para
presidente da Comissão Europeia, e apresentou a demissão do seu Governo, e, no segundo caso, do governo presidido por Pedro Santana Lopes, foi o presidente
Jorge Sampaio que dissolveu o parlamento (quatro meses depois de Santana Lopes ter sido eleito), convocando eleições. Uma decisão que foi controversa na altura,
e que na prática foi mais uma demissão do governo, do
que a dissolução do parlamento. Jorge Sampaio optou
pela forma jurídica da dissolução. Nesta altura, José Sócrates, secretário-geral do PS desde Setembro de 2004,
veio a liderar o seu partido nas eleições legislativas de
2005. Seguiram-se seis anos ininterruptos do governo
de José Sócrates (PS). A 22 de Março de 2011, os deputados da Assembleia da República rejeitaram o projecto
do IV Programa de Estabilidade e Crescimento proposto por José Sócrates para combate à recessão económica, e a 23 de Março, José Sócrates pede a demissão do
cargo de primeiro-ministro. O Presidente da República,
Cavaco Silva, convoca eleições para 5 de Junho de 2011.
José Sócrates foi derrotado nestas eleições e desde então, Portugal tem um governo de coligação PSD-CDS,
com Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro, que
tomou posse a 21 de Junho de 2011.
Em suma, de 1976 a 1982, temos seis anos com um
PR mais forte, com poderes mais fortes sobre o governo, e uma instabilidade crónica. De 1982 até hoje, temos uma estabilidade quase sempre garantida, salvo em
dois casos pontuais, mas que não tiveram a ver com a
natureza do sistema semipresidencial de tendência parlamentar. Isto significa que a revisão constitucional de
1982, na parte referente aos poderes do presidente, foi
um êxito. Aquilo que se pretendeu ao limitar os poderes
do presidente, evitar conflitos institucionais públicos, as48
AF miolo corrupcao 3.indd 48
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
segurar maior estabilidade aos governos, foi conseguido
em quase todos os casos (Amaral, 2011).
O pi n i ã o P ú b l i c a
e reforma do
sis t e m a p o l í t i c o e m
Portugal
Ao longo destes anos não foram feitas sondagens à
opinião pública relativamente à satisfação dos portugueses face ao sistema político e ao seu desejo de contar com
um sistema mais presidencialista ou mais parlamentar. Era
importante perceber, se consideram que este sistema apesar dos seus defeitos é o mais adequado, ou se pelo contrário preferiam outro. Neste caso, só teriam duas hipóteses: ou aprofundar o sistema tornando este ainda mais
parlamentar, reduzindo mais os poderes do presidente,
ou reforçando mais os poderes do presidente, e criando
condições para que o sistema evolua no sentido de um
modelo à francesa quando não há coabitação.
A opinião pública de um modo geral não tem sido sondada, mas os partidos políticos, que de certo modo também exprimem a opinião pública, têm-se mantido fiéis ao
sistema de governo tal como ele existe desde 1982. No
início da campanha eleitoral para o seu primeiro mandato,
o Professor Cavaco Silva (2006), considerou que os poderes do PR tal como estão definidos na Constituição estão
bem, e não precisavam ser reforçados, repetindo essa opinião em Janeiro de 2011, no início da campanha eleitoral
para o seu segundo mandato. Os candidatos de esquerda,
em nome pessoal ou dos partidos que os apoiaram, não
se pronunciaram sobre a evolução do sistema, quer num
sentido mais parlamentar, quer num sentido mais presidencial. É uma indicação de que as tendências dentro dos
partidos não estão tão definidas no sentido de uma trans49
AF miolo corrupcao 3.indd 49
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
formação. Quando hoje se fala numa transformação do
sistema de governo em Portugal, fala-se da hipótese de
uma evolução para um semipresidencialismo à francesa e
não para um parlamentarismo, como acontece na Áustria,
na Finlândia, ou na Irlanda etc. Depois de 1982, após se
ter entrado numa fase mais estável, Mário Soares fundador
e líder do PS, foi três vezes primeiro-ministro e fez dois
mandatos como Presidente da República. O Professor
Cavaco Silva não foi o fundador do PSD mas foi o líder
que até hoje mais tempo esteve à frente do PSD, presidiu a três governos e vai no seu segundo mandato como
Presidente da República, ou seja, se excluirmos o caso do
General Ramalho Eanes, que foi o primeiro presidente da
República, vemos que a seguir tivemos três presidentes da
República todos ex-líderes partidários (Mário Soares - PS,
Jorge Sampaio - PS, Cavaco Silva - PSD); os dois primeiros cumpriram dois mandatos (dez anos), e o terceiro já
vai no segundo mandato. Isto significa que a instituição
Presidência da República tem gozado de uma grande estabilidade, muito maior que os governos, ou mesmo que
as legislaturas parlamentares.
Um dos grandes argumentos que se invoca a favor da
presidencialização do regime, de uma evolução para um
semipresidencialismo à francesa, é que os políticos e os
partidos políticos estão muito desacreditados perante a
opinião pública. Será que estão assim tão desacreditados? Será uma falsa interpretação da realidade? Freitas
do Amaral questiona ainda o seguinte: Como é que se
explica que desde 1976, até agora, os dois maiores partidos sejam exactamente os mesmos? Como é que se
explica que o terceiro e o quarto sejam exactamente os
mesmos? Como é que se explica que todos os primeiros presidentes da República, três tenham cumprido dez
anos de mandato como presidentes, tenham sido líderes
50
AF miolo corrupcao 3.indd 50
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
dos partidos? Se estivessem desacreditados, não seriam
eleitos Presidentes da República.
Há políticos desacreditados, mas o que isso tem significado, é que perdem as eleições e são substituídos pela
oposição. Todas as tentativas de formação de novos partidos políticos, com excepção do BE, o que ainda é cedo
para saber se foi um êxito, todas as outras tentativas foram inviáveis. O Partido Renovador Democrático (PRD),
apesar de ter sido criado com o apoio explícito do PR,
foi extinto. O sistema mantém-se praticamente idêntico
ao de 1975-1976.
Freitas do Amaral não vê grande necessidade de mudar
o sistema político que tem garantido estabilidade. Há um
aspecto em que o sistema semipresidencial com tendência parlamentar é pior que o sistema semipresidencialista
de tendência presidencialista.
Em Portugal, o sistema semipresidencial de tendência
parlamentar tal como ficou definido na revisão Constitucional de 1982, tem garantido estabilidade, mas não tem
dado mais eficiência e mais autoridade, porque o presidente não é o chefe do executivo. Assim, o PR não quer
ser acusado de favoritismo em relação aos governos que
emanam do seu partido, e, por isso, mantém a sua distância e faz por manter-se isento e imparcial. O semipresidencialismo em França dá grande poderes ao presidente
quando a maioria parlamentar coincide com a maioria presidencial, mas quando não coincide fica reduzido a pouco mais do que é o Presidente da República hoje em Portugal. Portugal teve sempre um chefe de Estado e quem
governa é o primeiro-ministro. Os portugueses parecem
preferir que haja um chefe de Estado que esteja acima
das lutas partidárias. Relativamente ao sistema de partidos, Portugal conheceu de 1976 a 1985, alternadamente,
o multipartidarismo imperfeito e o multipartidarismo per51
AF miolo corrupcao 3.indd 51
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
feito. Ou seja, entre um sistema com total pulverização
partidária nos planos eleitorais e parlamentar, obrigando
à existência de coligações sistemáticas, e um sistema em
que existe um partido que detém uma expressão eleitoral considerável, os portugueses têm preferido o sistema
que permitiu a formação de governos monopartidários
ou de coligação assimétrica, com clara preponderância do
partido dominante.
No período de 1976 a 1979 foi o partido socialista que
partiu em vantagem, uma posição que foi interrompida
pelo Partido Social Democrata (PSD) em 1979. Em 1982
o PSD perde novamente para o Partido Socialista (PS),
tentando recuperar em 1985. Depois de 1985 a matriz
originária do sistema de partidos continua a perdurar, ou
seja, um número reduzido de partidos representados no
parlamento, com a existência de dois grandes partidos, o
Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD)
e de dois partidos médios, o Partido Comunista Português
(PCP) e o CDS-PP (Centro Democrático e Social – Partido Popular), e outro mais pequeno, o Bloco de Esquerda
(BE). No momento actual, o sistema de partidos é centralizado e não pulverizado, um sistema multipartidário
com características centrípetas.
Conclusões
Foi a partir da definição do conceito de sistema político
como conjunto integrado de vários elementos inter-relacionados que interagem entre si, que se partiu para uma
análise mais detalhada sobre o modo concreto de funcionamento da democracia portuguesa, nomeadamente no
que diz respeito aos assuntos relacionados com o conteúdo da Constituição, a estrutura das instituições, o siste52
AF miolo corrupcao 3.indd 52
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
ma eleitoral, o sistema de governo e partidário. O sistema
eleitoral é a base de todo o sistema político e constituiu
uma dimensão institucional da maior relevância no funcionamento do mesmo, porque condiciona todo o sistema
político pela influência que tem na configuração do sistema parlamentar, no sistema de governo e na forma como
molda o poder político. Em Portugal, os elementos estruturantes do sistema eleitoral relativos à eleição da Assembleia da República não se alteraram desde que se instituiu
a democracia (1976), e estão consagrados na Constituição
que se rege pelo princípio da representação proporcional
e o recurso ao método de Hondt na conversão dos votos
em mandatos, a estrutura dos círculos e respectiva distribuição dos mandatos em cada um e a proibição da cláusula barreira, são elementos que se têm mantido. Desde
a eleição da Assembleia Constituinte (1974), até ao presente, tiveram lugar em Portugal 13 eleições legislativas
utilizando este sistema. O sistema eleitoral de eleição do
Presidente da Republica é o sistema maioritário a duas
voltas (pelo facto de se tratar de um órgão uninominal).
Será eleito o candidato que obtiver mais de metade dos
votos validamente expressos, não se considerando como
tal os votos em branco. Exige-se maioria absoluta e se não
for alcançada exige-se uma segunda volta (concorrem os
dois candidatos mais votados – se não obtiverem maioria
absoluta na primeira volta).
Depois de considerar essas especificidades do sistema
eleitoral, e a sua caracterização tendo em conta as eleições
dos principais órgãos de poder, reflectiu-se sobre as várias
propostas de reforma do sistema eleitoral no período pós25 de Abril. Em Portugal, sempre que se fala em reforma
eleitoral fala-se também do problema das instituições parlamentares e da democracia representativa. A identificação dos cidadãos com os seus representantes passa pela
53
AF miolo corrupcao 3.indd 53
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
organização da sociedade e pelo papel dos partidos, a sua
natureza e estrutura, e há quem considere que o problema
do afastamento dos eleitores do poder tem que ser resolvido de muitas formas diferentes, e não passa apenas pela
reforma do sistema eleitoral (Canas, 2009: p. 64).
Não se pode falar de sistema político sem se falar de
regime político. O regime é a segunda componente mais
importante do regime político. Em Portugal vigora o sistema semipresidencialista há 38 anos (desde 1976). É um
sistema de governo meio presidencial meio parlamentar
com um certo grau de reforço os poderes do Presidente da República (PR) eleito por sufrágio directo e universal, conjugado com a existência de um governo responsável perante a Assembleia da República (AR) chefiado
pelo primeiro-ministro (PM), consagrado na Constituição
portuguesa, mas que passou por diferentes fases na história da política portuguesa. Na última fase da exposição
discutiu‑se se se deve ou não fazer a reforma do sistema
político em Portugal. Uma questão que continua aberta
ao debate, uma vez que o bom funcionamento do sistema
político é o garante da estabilidade e da eficácia política.
Referências Bibliográficas
ALMOND, G., POWELL, B.G. J., DALTON, R.J. e STROM, K.
(Eds.) (2006) Comparative Politics Today. An Overview. London and
New York: Longman.
AMARAL, D. F. do (1985) A Reforma do Sistema Político. In CRUZ,
M.B. da (Org.) (1998) Sistemas Eleitorais: debate científico. Lisboa: Imprensa do Instituto de Ciências Sociais, pp. 119-137.
AMARAL, D. F. do (2011) O Sistema Semipresidencialista Português
à Luz de 35 anos de Experiência. Congresso 20 Anos da Ciência Política em Portugal. Lisboa: Universidade Lusófona.
54
AF miolo corrupcao 3.indd 54
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
ARROW, K.J. (1950) A Difficulty in the Concept of Social Welfare.
The Journal of Political Economy. Vol. 58, nº 4, pp. 328-346.
BENOIT, K. e SCHIEMANN, J. W. (2001) Bargaining over
Hungary’s 1989 Electoral Law. Journal of Theoretical Politics. 2 (13),
pp. 153–182.
CANAS, V. (2009) Estudo sobre a Reforma Eleitoral para a Assembleia da República – Uma Reflexão Crítica e Política. In FREIRE,
A. e MARTINS, M.M. (Orgs.) (2009) Revista de Assuntos Eleitorais,
nº 12, pp. 63-68.
CARDOSO, A. L. (1993) Os Sistemas Eleitorais. Lisboa: Edições
Salamandra.
CRUZ, M. B. da (Org.) (1998) Sistema Eleitoral Português, debate político
e parlamentar, Presidência do Conselho de Ministros. Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda.
CRUZ, M.B. da (Coord.) (1998) Sistemas Eleitorais: debate científico. Lisboa: Imprensa do Instituto de Ciências Sociais.
CRUZ, M. A. (Org.) (2009) Eleições e Sistemas Eleitorais: Perspectivas Históricas e Políticas. Porto: Universidade do Porto Editorial.
DUVERGER, M. (1950) A Influência dos Sistemas Eleitorais na Vida Política In: CRUZ, M.B. (Org.) (1998) Sistemas Eleitorais: O Debate Científico. Lisboa: Imprensa do Instituto de Ciências Sociais, pp. 115-54.
EASTON, D. (1992, 1965) A Systems Analysis of Political Life. New
York: John Wiley & Sons.
FREIRE, A., MARTINS, M. M., MOREIRA, D. (2008) Para uma Melhoria da Qualidade da Representação. A Reforma do Sistema Eleitoral.
Lisboa: Ed. Sextante.
FARRELL, D. M. (1997) Comparing electoral systems. London: Prentice Hall.
GEDDES, B. (1995) A comparative perspective on the Leninist legacy
in eastern Europe. Comparative Political Studies, 28 (2), pp. 239-274.
JALALI, C. (2007) Partidos e Democracia em Portugal, 1974-2005: da
Revolução ao Bipartidarismo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.
LIJPHART, A. (1985, 1994) Electoral Systems and Party Systems. A Study
of Twenty-Seven Democracies, 1945-1990. Oxford: University Press.
LOPES, F. F. e FREIRE, A. (2002) Partidos Políticos e Sistemas Eleitorais: Uma introdução. Oeiras: Celta Editora.
NOHLEN, D. (1994) Sistemas Electorales y Systemas de Partidos. México:
Fondo de Cultura Económica.
NOHLEN, D. (2007) Os Sistemas Eleitorais: o contexto faz a diferença.
Lisboa: Livros Horizonte.
55
AF miolo corrupcao 3.indd 55
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
PASQUINO, G. (2005) Sistemas Políticos Comparados. 1.ª Ed. Cascais: Principia.
RAE, D. W. (1967, 1971) Political Consequences of Electoral Laws. New
Haven e Londres: Yale University Press.
SARTORI, G. (1994) Comparative Constitutional Engineering. An Inquiry
into Structures Incentives and Outcomes. Basingstoke: Macmillan.
SHUGART, M.S. e WATTENBERG, M.P (2001) Mixed-Member
Electoral Systems: The Best of Both Worlds? New York: Oxford
University Press.
56
AF miolo corrupcao 3.indd 56
7/31/14 12:54 AM
2. A política anticorrupção
e o marco legal no Brasil
Fernando Filgueiras
Mateus Morais Araújo
Introdução
No contexto do Brasil democrático, o tema da corrupção tem assumido a posição de um dos principais problemas públicos, tanto na dimensão do Estado, quanto na
dimensão da sociedade. Enquanto problema público, a
bandeira de manifestações contra a corrupção praticada
por agentes públicos e privados no Brasil, no mês de junho de 2013, foi empunhada pela sociedade, colocando
no mesmo patamar políticos, burocratas, empresários e
agentes internacionais. No contexto dessas manifestações,
a corrupção foi um lugar comum contra um sentimento
de exclusão social e ineficiência do Estado na provisão
de políticas e serviços públicos. A ampla mobilização da
sociedade colocou em questão o modo de se fazer política no Brasil e o processo de implementação de políticas
públicas. Nesse lugar comum, o alvoroço social das mobilizações clama por mais ética na política e na administração pública no Brasil.
De fato, a corrupção é um problema de primeira ordem desde o processo de redemocratização, no caso do
Brasil. Mas é importante dizer que ela não é um problema
específico do caso brasileiro. A corrupção tem sido um
problema comum e recorrente no âmbito das democracias, resultando em um profundo déficit democrático, por
um lado, e na ineficiência das políticas públicas promovi57
AF miolo corrupcao 3.indd 57
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
das pelos estados, por outro lado. Assim sendo, tem sido
uma preocupação muito comum dos atores internacionais a construção de políticas anticorrupção, mobilizando
processos de mudanças institucionais nas democracias e
nos governos1. A adoção dessas políticas anticorrupção
implica, nos cenários domésticos, processos de mudanças institucionais importantes, especialmente no campo
da gestão pública.
O objetivo primordial desse texto é analisar o marco
legal e o processo de construção da política anticorrupção
no Brasil, observando as especificidades do caso brasileiro
e o papel da corrupção na construção de problemas públicos. Analisar o marco legal de enfrentamento da corrupção em função da política pública de controle implica
observar o conjunto diverso e complexo das mudanças
institucionais, com foco no processo de inovação e das
práticas de governança. Argumentamos que esse processo
de inovação institucional derivado de políticas anticorrupção, no caso brasileiro, surge de um novo marco legal inaugurado com a democratização, de acordo com o processo
de crescente desvelamento da corrupção, por um lado, e
o seu papel na composição de conjunturas críticas que
criam contextos favoráveis para a adoção das mudanças.
O texto está dividido em três seções. Na primeira seção analisamos o conceito de corrupção e o seu lugar nos
regimes políticos democráticos. Na segunda seção analisamos o processo de democratização no Brasil e o modo
como a corrupção alçou o lugar de problema de primeira ordem. Na terceira seção analisamos o marco legal de
enfrentamento da corrupção no Brasil, de acordo com as
1
Rose-Ackerman, Introduction: the role of international actors in
fighting corruption In: Rose-Ackerman, S. e Carrington, P. (2013) Anticorruption policy: can international actors play a constructive role? Durham: Carolina
Academic Press.
58
AF miolo corrupcao 3.indd 58
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
características fundamentais da legislação brasileira. Argumentamos que o marco legal no Brasil inovou na adoção
de medidas de controle da administração pública e difusão
de políticas de transparência como elementos primordiais
dessa política pública de enfrentamento da corrupção.
A
corrupção e a democracia
A corrupção tem se tornado uma preocupação crescente entre agências internacionais, think thanks e formadores de opinião, tendo em vista a atenção para os seus
efeitos sobre o mercado, a democracia e a sociedade. Neste
processo, a corrupção tem se tornado um lugar comum
nas sociedades, surgindo no interior de um discurso político marcado pela enorme desconfiança em relação às
instituições, pela crítica às organizações do capitalismo
contemporâneo e pela extensão dos efeitos nocivos da
corrupção, tais como os seus efeitos para o meio ambiente, para a ampliação da pobreza e para as desigualdades.
Sendo assim, o tema da corrupção assumiu uma posição
onipresente em diversas formas de mobilização e manifestação nas democracias contemporâneas, tais como as
manifestações de junho no Brasil, o movimento Ocuppy
Wall Street, nos Estados Unidos, e os diversos movimentos no contexto da Europa. Em todos eles, a corrupção
apareceu como uma personagem onipresente, pautando,
ao mesmo tempo, o diagnóstico do esfacelamento do modelo representativo da democracia e o modelo de distribuição da riqueza no âmbito das sociedades capitalistas.
Apesar dessa posição hoje onipresente e crítica do tema
da corrupção, nem sempre ela foi pensada exclusivamente
no âmbito dos seus custos políticos, econômicos e sociais.
No contexto do desenvolvimentismo dos anos de 1960 e
59
AF miolo corrupcao 3.indd 59
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
1970, o tema da corrupção, envolto em escassa literatura,
era pensado em relação aos seus custos e também seus
benefícios para o contexto de desenvolvimento e modernização. O problema central dessa abordagem é perseguir
a relação entre corrupção e desenvolvimento político e
econômico, com o intuito de formular uma perspectiva
sistêmica da corrupção em relação aos seus custos e benefícios para a construção da modernidade capitalista.
Nessa construção do problema, os estudos sobre corrupção teriam forte apelo comparativo entre países do
capitalismo central, tomados como desenvolvidos, e países do capitalismo periférico, considerados subdesenvolvidos. De acordo com Samuel Huntington, a corrupção
ocorre no hiato entre modernização e institucionalização,
representando um tipo de ação aceita na sociedade2. No
contexto de transição para a modernidade, a baixa institucionalização política promoveria a corrupção: o aumento
das clivagens sociais e a entrada de novos atores na cena
política ensejariam comportamento pouco conducente à
norma, tornando a corrupção algo presente e corriqueiro
nas sociedades em processo de mudança.
A corrupção, por essa abordagem, estaria relacionada a
práticas políticas típicas de sociedades tradicionais, como
o clientelismo, a patronagem, o nepotismo, o fisiologismo. Essas práticas não necessariamente significam corrupção, mas promovem vulnerabilidades institucionais
que resultam na corrupção. Nesse sentido, ela seria uma
forma alternativa que os agentes políticos teriam para articular seus interesses na esfera pública. Ela contribuiria
para a formulação de máquinas políticas para influenciar
2
Huntington. S.P. (1975) A ordem política nas sociedades em mudança. São
Paulo: EDUSP.
60
AF miolo corrupcao 3.indd 60
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
as decisões legislativas por meio da persuasão das elites
partidárias. As máquinas políticas contribuiriam, por sua
vez, para o arrefecimento das clivagens sociais, contribuindo, por sua vez, para o desenvolvimento político e econômico3. O que os autores dessa abordagem apontam é
que a corrupção pode ser funcional ao desenvolvimento,
por poder azeitar as relações políticas entre o governo e
os empresários e pacificar as clivagens sociais, contribuindo, assim, para estabilidade política. A corrupção azeita
o desenvolvimento ao estabelecer um laço informal entre burocratas e investidores privados, o qual favorece o
desenvolvimento econômico4. O problema com essa lógica é que ela se centra demasiadamente em um conceito
de institucionalização que é deficiente do ponto de vista
político. Supõe-se que a modernização seja um processo
paulatino de imitação institucional capaz de, ao final de um
processo temporal, ter no mundo em desenvolvimento as
mesmas instituições presentes no mundo desenvolvido.
Na verdade, o problema é justamente o contrário,
qual seja o de entender a especificidade do processo de
invenção institucional que passa tanto pela organização
de ações no espaço público quanto pelo arranjo organizacional das instituições5.
Ao longo dos anos de 1980, gradativamente a corrupção passou a ser pensada na dimensão de seus custos para
o desenvolvimento. Esta concepção foi ganhando força
à medida que investimentos realizados em países em desenvolvimento foram sendo percebidos como ineficazes
3
Scott, J. (1969) Corruption, machine politics, and political change.
American Political Science Review, vol. 63, n.º 4.
4
Leff, N. H. (1964) Economic development through bureaucratic
corruption. American Behavioral Scientist, vol. 8, n. 3.
5
Fung, A. e Wright, E. O. (2003) Deepening democracy. New York: Verso
Books.
61
AF miolo corrupcao 3.indd 61
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
em função da rede de corrupção que tomava esses países.
Nesse sentido, a abordagem dos custos da corrupção foi
ganhando importância à medida da difusão de políticas
de enfrentamento pautadas pelas agências multilaterais de
desenvolvimento, tais como o Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional. De uma forma geral, as políticas
de enfrentamento da corrupção foram se configurando
por uma forte influência das organizações internacionais,
que passaram a difundir receituários e modelos de governança global. Ao longo dos de 1990, os empréstimos
de bancos internacionais (Banco Mundial e FMI, especialmente) passaram a ser condicionados à existência e
monitoramento da corrupção nas economias domésticas.
Gradativamente, ao longo da década de 2000, estas políticas anticorrupção se tornaram tratados internacionais,
obrigando os Estados signatários a adotarem medidas de
enfrentamento, monitoramento e combate à corrupção,
tal como a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, o tratado da Organização dos Estados Americanos (OEA) e o tratado da Organização para Cooperação
para o Desenvolvimento Econômico (OCDE) com relação ao combate à corrupção de funcionários públicos
estrangeiros em transações internacionais. Esse processo de difusão de políticas anticorrupção fomentou um
processo de mudanças institucionais nos Estados, tendo
em vista a adoção de políticas para a promoção da transparência, a adoção de políticas de acesso à informação,
construção de agências anticorrupção e mudança nos
marcos legais dos países.
Nesse contexto, a ideia de custos da corrupção para
o desenvolvimento se tornou ideia força, de acordo com
uma forte influência de uma concepção economicista.
Para Shleifer e Vishny, a corrupção é “a venda por funcionários públicos de propriedade do governo para ga62
AF miolo corrupcao 3.indd 62
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
nho pessoal”6. Para Samuel Huntington, a corrupção é o
“comportamento de autoridades públicas que se desviam
das normas aceitas a fim de servir a interesses particulares”7. Para Joseph Nye, a corrupção é “o comportamento desviante dos deveres formais do cargo público para a
obtenção de ganhos pecuniários privados ou ganhos de
status; ou que violam regras contra o exercício de tipos
de influência privada”8. Estas definições de teor mais acadêmico se tornaram comuns na compreensão pública da
corrupção. De fato, os cidadãos identificam a corrupção
na dimensão do Estado e dos cargos públicos e a compreendem como um tipo de comportamento desviante.
Esse tipo de tratamento do tema da corrupção possibilitou
uma abordagem econômica preocupada, sobretudo, com
as consequências da corrupção para o desenvolvimento
econômico e para os mercados, bem como com as consequências para as instituições democráticas9.
Compreender a corrupção nessa chave conceitual pode
levar a alguns tipos de problemas. Em primeiro lugar, essa
definição se concentra na ação de servidores públicos, sem
observar o papel de corruptores tanto na dimensão pública, quanto na dimensão privada. Além disso, estas definições centradas nos cargos públicos localiza a corrupção
6
Shleifer, A. e Robert Vishny, R. (1993) Corruption. The Quartely Journal
of Economics, vol. 108, número 3, p. 599.
7
Huntington, S.P. (1975) A ordem política nas sociedades em mudança. São
Paulo: EDUSP. pág. 72.
8
Nye, J. (1967) Corruption and Political Development: A Cost-Benefit
Analysis. American Political Science Review, vol. 61, nº 4.
9
Rose-Ackerman, S. (1999) Corruption and government. Causes,
consequences, and reform. Cambridge: Cambridge University Press,
Filgueiras, F. (2008) Marcos teóricos da corrupção In: Avritzer, L. e all. (2008)
Corrupção: ensaios e crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG.
63
AF miolo corrupcao 3.indd 63
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
na dimensão do Estado, sem dar conta das relações deste com a sociedade civil como um elemento importante
para se compreender o alcance e as causas da corrupção10.
Um aspecto deixado de lado nas considerações conceituais sobre a corrupção é que esse tipo de comportamento tem um caráter plástico e flexível. A corrupção é
um conjunto de ações específicas que podem ser consideradas como tal. Por exemplo, ações como nepotismo,
clientelismo, prevaricação, desvios de recursos, superfaturamento de obras públicas, influência indevida nas decisões públicas, ou outras, podem ser consideradas como
corrupção. Dessa forma, a corrupção não pode ser compreendida apenas como um único tipo de comportamento, porquanto ela reúne formas diversas de ação contra o
interesse público e não se resumem, simplesmente, à venda de propriedade do governo. Não podemos, também,
descartar o elemento valorativo envolvido no conceito e
na compreensão da corrupção por parte da sociedade. O
desvio de recursos públicos, por exemplo, é uma ação específica, que envolve instrumentos contábeis e má gestão
dos governos para que agentes privados maximizem benefícios em detrimento do interesse público. Enquanto
tal, os desvios de recursos públicos representam um curso
de ação específico, que pode se converter em corrupção.
Importante notar que as definições acima apontam que
a corrupção é um comportamento desviante de deveres
normativos. Esse aspecto normativo tem sido relegado a
um segundo plano na compreensão da corrupção, o que
torna o seu conceito de difícil operação para pesquisas
empíricas e o enfoque analítico restrito ao Estado.
10
Warren, M. (2004) What does corruption mean in democracy?
American Journal of Political Science, vol. 48, nº 2.
64
AF miolo corrupcao 3.indd 64
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Ao nosso entender, o elemento que distingue a corrupção é o fato de ela ser um juízo moral, emitido pela sociedade contra ações específicas que degeneram o interesse
público11. A corrupção é um conceito normativamente dependente, porquanto ela representa juízos emitidos contra
a legitimidade de atores e instituições que ultrapassam a
barreira do público. Estes juízos, por sua vez, são emitidos com base em normas pressupostas, definidas de modo
consensual. Não é possível, portanto, descartar o elemento
da moralidade pressuposta nos juízos que especificam a
corrupção no âmbito da prática dos agentes sociais, tanto em seu sentido filosófico e sociológico, quanto em seu
sentido econômico12. O desvio de recursos públicos, por
exemplo, é uma ação específica, mas recebe o status de
corrupção em função dos juízos emitidos pela sociedade,
considerando o conjunto de valores e normas pressupostas
que definem o interesse público. Nesse sentido, o desvio
de recursos públicos é uma ação específica, que tem uma
natureza própria, mas que ganha o status de corrupção
à medida que subverte normas pressupostas do interesse
público, tomando que estas normas compreendem regras
formais e informais, e valores.
Sendo um conceito normativamente dependente, o juízo moral que especifica e define a corrupção depende do
processo de justificação e aplicação de normas. No plano
da moralidade, o que se espera no trato com o interesse
público é que os agentes – tanto privados quanto públi-
Filgueiras. F. (2008) Corrupção, democracia e legitimidade. Belo Horizonte:
Editora UFMG.
12
Euben, P. (1989). Corruption In: Ball, T., Farr, J. e Hanson, R. L.
(Eds.), Political innovation and conceptual change. Cambridge: Cambridge
University Press; Della Porta, D., Vannucci, A. (2012); The hidden order of
corruption. An institutional approach. Surrey: Ashgate Publishing.
11
65
AF miolo corrupcao 3.indd 65
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
cos – tenham um comportamento correto, tendo em vista
o cumprimento dos deveres, a honestidade, a confiança
pública e os costumes da comunidade13. Uma vez que se
espera, portanto, a correção no plano da ação de agentes
públicos e privados, não é possível descartamos a interface do conceito de corrupção com o problema da justiça.
Mas qual a relação que a corrupção guarda com a justiça? Afirmamos anteriormente que a corrupção é um conceito normativamente dependente e que sua especificidade está no fato de ela ser um juízo emitido contra ações
que degenerem o interesse público. Como juízo moral,
a corrupção ganha sua substância quando ela é expressa
no âmbito do discurso público. Essa concepção discursiva reivindica que a corrupção é o julgamento de todo
tipo de ação – praticada por agentes públicos e privados
– que fere os valores e normas do interesse público. Assim sendo, a corrupção tem um caráter plástico e flexível
e depende dos diferentes contextos sociais, normas e valores envolvidos em sua concepção semântica. A emissão
desse juízo moral reclama para si um processo de justificação alimentado pelas normas e pelos valores. O que
está inserido nesses valores é um conjunto de princípios
de justiça que orientam esse processo de justificação do
discurso e do julgamento. No caso da corrupção, estes
juízos morais observam tanto a correção das instituições
quanto a correção das realizações sociais.
Sendo assim, a corrupção é uma forma de injustiça política, que opera em duas ordens: na ordem institucional e
na ordem das realizações sociais. Nesse caso, a corrupção
guarda uma relação conceitual com o tema das desigualdades, porquanto ela incide no mau funcionamento das
13
Fernando Filgueiras, idem.
66
AF miolo corrupcao 3.indd 66
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
instituições da democracia, bem como no comportamento dos agentes. No caso do funcionamento das instituições, a corrupção degenera o valor de igualdade perante
a lei, provocando formas de exclusão política. O efeito
mais imediato da corrupção na democracia é provocar a
exclusão de indivíduos ou grupos dos processos de tomada de decisão por conta de interesses privados14. A compra de votos, por exemplo, pode representar uma forma
de corrupção, a qual ganha esse status porque subverte
o processo democrático em função dos interesses privados do poder econômico. Nessa dimensão, a corrupção
incide diretamente no funcionamento das instituições,
que passam a reproduzir formas de exclusão política. O
mau funcionamento das instituições implica em vieses na
distribuição dos recursos econômicos da sociedade, implicando, por sua vez, no reforço das desigualdades. Ou
seja, a corrupção afeta diretamente as realizações sociais,
distribuindo de forma desigual os recursos da sociedade.
A corrupção, nesse sentido, se alimenta da injustiça, incidindo em suas duas dimensões, e provoca mais injustiça.
Ao resultar em formas de exclusão política e social injustificada, a corrupção corrói o império da lei. Ela proporciona um processo crescente de desigualdades que terminam por resultar em mais corrupção. O custo moral da
corrupção está no fato de as instituições proporcionarem
formas de os agentes aderirem ou não a esquemas de corrupção, conforme a potência exercida pelo império da lei
no âmbito da sociedade15. Contudo, mesmo que ela corroa o império da lei, a corrupção proporciona uma rea-
Warren, M. (2005) La democracia contra la corrupción. Revista
Mexicana de Ciências Políticas y Sociales, vol. 47, nº 193.
15
Donatella Della Porta, Alberto Vannucci. Op. cit..
14
67
AF miolo corrupcao 3.indd 67
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
ção institucional ad hoc à sua extensão na esfera pública. À
medida que surgem novos escândalos, estes acontecimentos proporcionam uma maior percepção da corrupção na
esfera pública e condicionam uma reação institucional ao
introduzir no cenário político conjunturas críticas. Dessa forma, a reação à corrupção é alargar o marco legal de
controle e regulação dos interesses, de forma a impedir a
sua propagação. A ligação da corrupção com o império da
lei, no âmbito das democracias, é fazer com que se constate
a fraqueza do segundo e se imponha, no debate público,
conjunturas críticas que ensejam mudanças institucionais.
Ou seja, a corrupção resulta também em processos de
mudança institucional. Ela pode tanto resultar em quebra do regime político, quanto em processos de mudança no interior do regime vigente. Por um lado, em casos
mais extremos, a corrupção pode contribuir para o surgimento de formas autoritárias, tendo em vista o modo
como ela favorece golpes de Estado. Exemplo disso foi
o Brasil em 1964 e o modo como a permanente denúncia da corrupção teve como resultante o golpe de Estado dado pelos militares. A corrupção e o combate ao
comunismo foram os principais elementos discursivos
presentes naquele momento. Dessa maneira, o esvaecimento do império da lei pode resultar em corrupção do
Estado, representando a degeneração institucional do
político. Por outro lado, a corrupção pode resultar em
mudanças institucionais importantes sem necessariamente haver a quebra do regime democrático. Nesse caso, os
escândalos de corrupção representam conjunturas críticas, as quais podem resultar em mudanças no arcabouço institucional da democracia por meio de transformações incrementais das organizações do Estado. Assim, a
corrupção ainda não alcançou o processo de completa
68
AF miolo corrupcao 3.indd 68
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
degeneração institucional, mas se faz presente nas instituições, de modo a configurar a corrupção no Estado.
De acordo com Pierson, são três os tipos de mudanças
institucionais derivados de conjunturas críticas. O primeiro tipo ocorre por superposição de instituições, em que as conjunturas críticas introduzem novos arranjos institucionais
paralelos com aqueles em funcionamento. Superpõe-se,
portanto, novas e velhas estruturas, de forma a produzir
inovação institucional sem romper com os interesses do
status quo. O segundo tipo de mudança institucional derivado das conjunturas críticas ocorre por meio da conversão
funcional. Nesse caso, as instituições são redirecionadas em
suas competências, tendo em vista a introdução de mudanças no funcionamento e nos papéis desempenhados
pelos atores em seu interior. Por fim, o terceiro tipo de
mudança institucional derivado das conjunturas críticas
ocorre por difusão. Neste processo, instituições e organizações são copiadas e transplantadas para outros ambientes ou contextos, havendo, nesse sentido, a inovação por
meio da criação ou substituição de instituições, tendo em
vista uma busca por maior legitimidade mediante a adoção da inovação16.
O fato é que as conjunturas críticas introduzidas com
o tema da corrupção proporcionam processos de inovação institucional derivados de uma reação à luta política.
Nesse caso, tem sido mais comum nesse processo de mudança institucional nas democracias a difusão de políticas
públicas para o enfrentamento da corrupção, especialmente com a intervenção de organizações internacionais tais
como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco
16
Pierson, P. (2004) Politics in time. History, institutions and social
analysis. Princeton: Princeton University Press.
69
AF miolo corrupcao 3.indd 69
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Mundial, a Organização para a Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a Organização das
Nações Unidas (ONU). A difusão tem ocorrido, sobretudo, por meio da adoção de tratados internacionais contendo elementos centrais para a luta contra a corrupção
no mundo, partindo do diagnóstico comum de como ela
prejudica o mercado e a democracia.
Mas no caso dos países, analisados domesticamente,
estes processos de mudanças institucionais derivados da
corrupção ocorrem por meio das três formas de inovação
elencadas acima. Na próxima seção cuidamos de analisar
o caso brasileiro. Defendemos que, no caso do Brasil, os
escândalos de corrupção têm suscitado conjunturas críticas que têm proporcionado, por sua vez, processos de
inovação institucional dirigidos pela busca por controle e
probidade da máquina do Estado, tanto na esfera da representação política, quanto na esfera da burocracia.
O
caso do
B r a si l :
a luta contra
a corrupção e as mudanças
i n s t i t u c i o n a is
A transição para a democracia no Brasil nos anos de
1980 ocorreu com a gradativa falência do regime autoritário constituído em 1964, tendo em vista a crise econômica
que inaugurou o ciclo de hiperinflação, o descontrole das
contas públicas e a crise na legitimidade do sistema autoritário. Importante observar que a transição para a democracia foi operada no interior de um pacto no âmbito
das elites políticas, de acordo com um processo lento e
gradual de distensão do regime autoritário, proporcionando a crescente abertura política e o retorno dos direitos
completos de cidadania.
70
AF miolo corrupcao 3.indd 70
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Àquela altura, o processo constituinte iniciado em 1987
enfrentou o dilema de realizar escolhas que projetassem
um ordenamento institucional capaz de agregar e processar de maneira eficiente as crescentes pressões vindas de
um quadro social extremamente heterogêneo e plural. A
escolha deste quadro institucional deveria fazer com que
as instituições adquirissem legitimidade e, ao mesmo tempo, condições para que o Estado possa intervir de forma
eficaz na redução das disparidades sociais brasileiras e na
integração da ordem social. Ou seja, o dilema institucional brasileiro estava em fazer com que o regime democrático que seria inaugurado proporcionasse condições de
governabilidade movidas pelo quadro normativo da redução das desigualdades tanto no plano econômico, quanto
no plano político17. Estas condições de governabilidade
implicariam no fato de que o ordenamento institucional
do Estado brasileiro deveria ser suficientemente legítimo
para poder construir políticas públicas eficientes, capazes
de reduzir as desigualdades sociais e, ao mesmo tempo,
promover maior inclusão política da cidadania, tanto na
dimensão da participação política, quanto na dimensão
da representação.
Do ponto de vista político, a governabilidade foi alcançada na original fórmula brasileira do presidencialismo de coalizão. O presidencialismo de coalizão implica a
fórmula de um sistema político presidencialista composto
de um sistema eleitoral proporcional, combinado com um
sistema multipartidário fragmentado. A adoção do sistema
eleitoral proporcional foi fundamental para a inclusão da
diversidade de interesses que compõem a arena política
brasileira, associando a possibilidade de coligações parti17
Abranches, S. H. H. (1988) Presidencialismo de coalizão: o dilema
institucional brasileiro. Dados – Revista de Ciências Sociais, vol. 31, nº 1. 1988.
71
AF miolo corrupcao 3.indd 71
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
dárias. Do outro lado, esta pluralidade de interesses reflete
em um sistema multipartidário que promove a fragmentação dos interesses, ancorados nas diferenças regionais
e sociais do Brasil. A combinação de um sistema eleitoral
proporcional com um sistema multipartidário fragmentado no interior de um sistema de governo presidencialista
obriga que a governabilidade se constitua apenas com a
possibilidade de os presidentes formarem uma coalizão
de apoio no interior do Congresso Nacional18.
A formulação desta coalizão alcança os diversos momentos de composição do sistema de governo, passando
inicialmente pela formação de alianças eleitorais entre os
partidos, a formação do gabinete presidencial e a composição da agenda governamental, considerando tanto
os interesses regionais, quanto os interesses de diferentes
setores da sociedade. O momento eleitoral define o quadro inicial de alianças partidárias, definindo, por sua vez,
a composição do gabinete, tendo em vista negociações
e trocas de recursos entre partidos e burocracia. Neste
momento de composição da coalizão, o presidente se vê
obrigado a ceder parcelas de seu controle sobre a burocracia, transferindo este poder para os partidos da base
aliada. Na composição de sua agenda, o presidente se vê
obrigado a negociar com os partidos de modo a produzir
acordos explícitos que compatibilizem as divergências na
coalizão e potencialize os pontos de consenso. Esta compatibilização envolve tanto interesses regionais, consolidados em uma perspectiva clientelista, quanto interesses
de setores e classes sociais.
A princípio, a fórmula do presidencialismo de coalizão
pode significar enormes dificuldades para os presidentes
18
Sérgio Henrique H. Abranches, op. cit.
72
AF miolo corrupcao 3.indd 72
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
constituírem a governabilidade, especialmente em função
da fragmentação partidária. Entretanto, de acordo com
Limongi, a fórmula do presidencialismo de coalizão não
cria problemas para o processo decisório, em função de
mecanismos institucionais que garantem ao presidente
enorme poder de agenda. A estrutura e o funcionamento
da democracia brasileira asseguram que o processo decisório seja fortemente influenciado pelo presidente, tendo
em vista instrumentos institucionais que asseguram que
ele possa participar ativamente do processo legislativo19.
O que é específico no quadro institucional do sistema político brasileiro é o fato de os presidentes terem iniciativa
de legislação, poderem editar medidas provisórias (decretos-leis) e coordenar a agenda de votação do Congresso
mediante o pedido sistemático de urgência. A taxa de sucesso dos presidentes brasileiros no Congresso, ou seja, o
indicador que mostra que iniciativas de lei do presidente
aprovadas em seu mandato, é na ordem de 70,7%. Esta
taxa de sucesso dos presidentes é comparável aos sistemas políticos parlamentaristas20.
O que assegura, no Brasil, as condições da governabilidade é que o processo decisório é fortemente controlado
pelo Poder Executivo, fazendo com que os presidentes
consigam formar maiorias que lhe assegurem apoio aos
seus projetos de políticas públicas. Tendo em vista estes
mecanismos, as condições de governabilidade, no que tange ao processo decisório, foram plenamente atingidas no
Brasil. Entretanto, do ponto de vista das políticas públicas,
não é possível afirmar que estas condições estejam dadas,
19
Limongi, F. (2006) A democracia no Brasil. Presidencialismo, coalizão
partidária e processo decisório. Novos Estudos, nº 76.
20
Fernando Limongi, op. cit.
73
AF miolo corrupcao 3.indd 73
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
uma vez que o processo de implementação não possibilita falar em eficiência. A outra face do governo brasileiro é que a democracia constituiu soluções institucionais
para o processo decisório, mas ainda carece de condições
efetivas e eficazes de implementação das políticas. Nesse
sentido, o sistema político brasileiro resolveu o problema
da governabilidade, porém ainda há uma forte lacuna no
que corresponde às condições da governança democrática.
A partir da Constituição Federal de 1988, o tema da corrupção foi se tornando especialmente importante no Brasil,
visto que há uma profusão de escândalos que surgem tanto na dimensão da representação política e especialmente
na dimensão da implementação das políticas públicas. Este
problema se agrava se considerarmos também o déficit de
accountability no contexto das novas democracias21. Dessa
forma, na chave do presidencialismo de coalizão brasileiro, no qual os presidentes da República têm enormes prerrogativas no processo legislativo, o problema está não no
processo decisório das políticas de governo, mas no processo de implementação destas políticas, sujeito a enormes
desvios de recursos públicos, superfaturamento de obras e
contratos de prestação de serviços ao Estado, fraudes nas
políticas, cobrança de suborno e propinas no serviço público, dentre outras modalidades. O problema, portanto, não
está no processo decisório, mas na gestão pública, sujeita
aos desmandos políticos e a uma estrutura fortemente arcaica e clientelista, orquestrada pelos partidos.
Desde o processo de democratização, que reconstruiu
as liberdades civis fundamentais, os escândalos de corrupção têm se tornado frequentes na cena política brasileira.
O processo de abertura democrática, a recomposição da
21
O’Donnell, G. (1996) Uma outra institucionalização: América Latina
e alhures, Lua Nova – Revista de Cultura e Política, nº 37, pp. 5-31.
74
AF miolo corrupcao 3.indd 74
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
liberdade de impresa e os instrumentos de controle e accountability tornaram os escândalos corrupção comuns e
com uma frequência cada vez maior ao longo dos governos, como mostra o quadro abaixo:
Quadro 1. Os principais escândalos de corrupção
no Brasil, 1987-2012
Ano
Escândalo
Governo José Sarney (1986-1990)
1987
Ferrovia Norte-Sul
1987
Caso Banespa
1988
CPI da Corrupção
Governo Fernando Collor de Mello (1990-1992)
1991
Máfia da Previdência Social
1992
Caso PC Farias
Governo Itamar Franco (1992-1994)
1993
Caso Paubrasil
1993
Anões do Orçamento
1994
Escândalo da Parabólica
Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002)
1995
Escândalo da Pasta Rosa
1997
Escândalo dos Precatórios
1997
Frangogate
1997
Escândalo das Privatizações
1997
Compra de votos para a reeleição
1998
Dossiê Cayman
1998
Grampos no BNDES
1998
Máfia dos Fiscais em São Paulo
1999
Caso Marka / FonteCindam
1999 Desvios de verbas no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo
2000
Garotinho e a turma do chuvisco
2001
Caso Sudam
2001
Violação do Painel do Senado
2002
Caso Lunus
75
AF miolo corrupcao 3.indd 75
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
2003
2003
2004
2004
2004
2004
2005
2005
2005
2005
2006
2006
2007
2007
2007
2007
2007
2008
2008
2008
2009
2009
2009
2010
2010
2011
2011
2011
2011
2011
2011
2011
2012
Governo Lula (2003-2010)
CPI do Banestado
Operação Anaconda
Caso Waldomiro Diniz
Caso Banpará
Caso GTech
Superfaturamento de obras em São Paulo
CPI dos Correios
Mensalão
Dólares na cueca
República de Ribeirão
Caso Sanguessugas
Caso dos Aloprados
Renangate
Cheque da Gol
Renangate – caso Schincariol
Renangate – caso do laranjal
Renangate – golpe no INSS
Escândalo dos cartões corporativos
Caso Satiagraha
Caso Paulinho da Força Sindical
Atos secretos do Senado
Caso Lino Vieira
Mensalão do DEM
Caso Bancoop
Caso Erenice
Governo Dilma Roussef (2011 – 2013)
Caso Pallocci
Escândalo dos Transportes
Escândalo no Ministério da Agricultura
Escândalo no Ministério do Turismo
Escândalo no Ministério das Cidades
Escândalo no Ministério dos Esportes
Escândalo no Ministério do Trabalho e Emprego
Caso Cachoeira
2012
Escândalo no Ministério da Pesca
Fonte: Elaboração própria
76
AF miolo corrupcao 3.indd 76
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
A presença destes escândalos no Brasil tornou a corrupção altamente percebida pela opinião pública. Há algo
em comum em todos esses escândalos. Em primeiro lugar, a cobertura maciça da mídia aos escândalos, dando
publicidade aos esquemas de corrupção e de malversação de recursos públicos. Em segundo lugar, todos estes
escândalos de corrupção inserem um contexto de crítica
social da política explícito, corroborando uma visão comum de que o Estado brasileiro é o espaço natural dos
vícios, tendo em vista a máxima popular de que “todo
político é ladrão”. Em terceiro lugar, todos estes escândalos de corrupção ensejaram iniciativas ad hoc de controle
público, desencadeando um processo de mudança institucional das instituições de accountability. As mudanças
no regimento do Tribunal de Contas da União e a lei de
licitações foram desencadeados pelo escândalo do orçamento. A criação da Controladoria Geral da União ainda
no governo Fernando Henrique Cardoso foi derivada do
escândalo da Sudam e Sudene e o seu fortalecimento e
autonomia institucional, no início do governo Lula, deveu-se ao escândalo do Mensalão. O fortalecimento institucional da Polícia Federal deveu-se a escândalos tais
como Sanguessugas, observando as crescentes operações
contra o crime organizado22. Nesse mesmo contexto, o
Brasil passou a ser signatário da Convenção das Nações
Unidas Contra a Corrupção a partir de 2005.
Do ponto de vista do enfrentamento da corrupção no
Brasil, constituiu-se uma política do escândalo que tem
sido permanente na agenda política. A recorrência de comissões parlamentares de inquérito, operações da Polícia
22
Filgueiras, F. (2011) Transparência e controle da corrupção no Brasil
In: Avritzer, L. e Filgueiras, F (Orgs.) Corrupção e sistema político no Brasil. Rio
de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. pp. 133-161.
77
AF miolo corrupcao 3.indd 77
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Federal e a visibilidade dos esquemas de malversação de
recursos públicos têm proporcionado uma cultura política crítica a respeito da corrupção e seu alcance na esfera
pública. A corrupção foi alçada a tema fundamental da
agenda política brasileira, representando um consenso na
sociedade de que ela é um tema grave e que vem aumentando ao longo do tempo23. Neste sentido, o efeito imediato da corrupção é promover um custo moral associado
à sua alta percepção. A alta percepção da corrupção implica no fato de os indivíduos promoverem escolhas em
que a corrupção seja uma estratégia maximizada de relações entre o público e o privado, fazendo com que ela seja
uma prática comum e corriqueira nas diversas transações
políticas e econômicas24. Estes custos morais implicam
na ambivalência que os cidadãos brasileiros terminam por
tratar o tema da corrupção, em que, apesar de reconhecerem os efeitos negativos da corrupção, estes mesmos cidadãos terminam por endossar determinadas práticas que
implicam em corrupção25. O custo moral é fazer com que
a corrupção se torne uma norma informal da sociedade
e da política nas transações entre o público e o privado.
José Álvaro Moisés destaca o modo como a percepção da corrupção
como um tema grave impacta a construção dos significados de democracia
no Brasil. Analisada como um dos problemas mais sérios da sociedade
brasileira, a percepção da corrupção impacta em duas vezes e meia a
insatisfação com a democracia, sendo ela um dos temas mais relevantes da
cultura política hoje, no Brasil. A esse respeito, conferir José Álvaro Moisés.
Os significados da democracia segundo os brasileiros. Opinião Pública, vol.
16, nº 2, 2010, pp. 269-309.
24
Donatella Della Porta, Alberto Vannucci, op. cit. pp. 58-61.
25
Filgueiras, F. (2013) Corrupção e cultura política: a percepção da
corrupção no Brasil In: Telles, H e Moreno, A. (2013) (Orgs.) Comportamento
eleitoral e comunicação política na América Latina. Belo Horizonte: Editora
UFMG, pp. 221-258.
23
78
AF miolo corrupcao 3.indd 78
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Apesar de a corrupção no Brasil implicar estes custos
morais, o fato é que desde a Constituição de 1988, esta
profusão de escândalos de corrupção tem tido o efeito
paradoxal de proporcionar mudanças institucionais importantes na dimensão do controle democrático. Estas
mudanças, conforme aponta Pierson, ocorrem por superposição, conversão e difusão, possibilitando um quadro
de inovação institucional movido pela presença de conjunturas políticas críticas. No caso do Brasil, as conjunturas críticas que mobilizam esta inovação institucional são
derivadas dos escândalos políticos e da alta percepção da
corrupção na esfera pública. A reação dos presidentes da
República ao alargamento da crescente corrupção no Brasil tem sido promover iniciativas de controle e reforma
na máquina burocrática do Estado, de maneira a conter a
escalada da corrupção.
No que concerne às reformas da administração pública, é no governo Fernando Henrique Cardoso que
elas encontraram substrato político, com a implantação
do Ministério da Administração e Reforma do Estado
(MARE), criado em 1995, sob comando do ministro
Bresser-Pereira. A reforma administrativa conduzida
pelo MARE procurou redefinir os setores de atuação
estatal, reforçando a ideia de democratização do Estado e de mecanismos de gestão configurados em torno
da adoção de modelos de administração privada para o
setor público. No que diz respeito ao modelo de administração adotado e à diferenciação dos setores de atuação do Estado brasileiro na sociedade e na economia, a
reforma administrativa do governo Fernando Henrique
Cardoso assumiu um modelo gerencialista, cujo objetivo
era adequar a administração pública brasileira às novas
necessidades advindas da globalização dos mercados,
da presença cada vez maior da legislação internacional
79
AF miolo corrupcao 3.indd 79
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
de comércio e do aperfeiçoamento dos mecanismos de
gestão. As mudanças foram implementadas de forma
que as atividades do governo devem se basear numa
gestão pública similar à gestão realizada no mundo privado, de acordo com contratos de gestão e avaliação de
resultados, movidos pelo princípio da eficiência como
guia normativo26.
O marco das reformas do Estado brasileiro procuraram
integrar mecanismos de aprimoramento da eficiência da
máquina administrativa combinado com o fortalecimento
da dimensão do controle burocrático. No que tange à questão do controle burocrático, ele foi aprimorado por meio
de iniciativas de mudança na legislação, tendo em vista o
enfrentamento da corrupção. No período que compreende toda a experiência brasileira com a democracia, desde
1988, foram 116 normas criadas, cujo tema fundamental
é o enfrentamento da corrupção. Importante observar
que dadas as características do presidencialismo de coalizão brasileiro, 83% destas normas têm origem no Poder
Executivo, 16% têm origem no Poder Legislativo e apenas
1% são leis de iniciativa popular27. Estas normas representam uma reação dos presidentes, no contexto de um
presidencialismo em que o Poder Executivo tem enormes
prerrogativas, no sentido de conter os custos morais de
26
Bresser-Pereira, L. C. (2001) Gestão do setor público: estratégia e
estrutura para um novo Estado In: Bresser-Pereira, L. C.; Spink, P. (2001)
(Orgs.) Reforma do Estado e administração pública gerencial. Rio de Janeiro:
Editora da FGV.
27
A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 61,
parágrafo 2, prevê a possibilidade de leis de iniciativa popular. Segundo a
Constituição, “§ 2º - A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação
à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um
por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados,
com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”.
80
AF miolo corrupcao 3.indd 80
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
práticas ilegais no interior de seus governos. O gráfico 1
abaixo mostra a origem destas normas de enfrentamento
da corrupção no Brasil.
Gráfico 1. Origem da legislação para o enfrentamento
da corrupção, Brasil 1988-2013
Executivo
Legislativo
16%
Iniciativa Popular
1%
83%
Fonte: Presidência da República, Portal da Legislação
Brasileira, 2013.
Depreende-se do gráfico acima que a iniciativa de enfrentamento da corrupção parte, sobretudo, do Poder
Executivo. No quadro do presidencialismo de coalizão
brasileiro, existem prerrogativas ao Congresso Nacional
no que tange ao controle da administração pública. Entretanto, como aponta José Álvaro Moisés, o Congresso
brasileiro tem sido omisso nesse tema, delegando ao Poder Executivo as prerrogativas de iniciar a legislação no
que diz respeito ao controle da administração pública28.
Moisés, J. À. (2011) O desempenho do Congresso Nacional no
presidencialismo de coalizão (1995-2006) In: Moisés, J. À. (Org.) O papel
do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão. Rio de Janeiro: Fundação
Konrad Adenauer-Stifitung, pp. 7-29.
28
81
AF miolo corrupcao 3.indd 81
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Tamanha delegação fica explícita considerando que o
maior volume dessa legislação compreende decretos, que
são de competência do presidente da República, e leis ordinárias, as quais, no caso do enfrentamento da corrupção, foram de iniciativa do Poder Executivo, como expõe
o gráfico 2 abaixo.
Gráfico 2. Tipo de legislação aprovada para
o enfrentamento da corrupção, Brasil 1988-2013
79%
24%
2%
Lei ordinária
Decreto
2%
Emenda
Medida
constitucional provisória
4%
4%
Lei
completar
Decreto
legislativo
Fonte: Presidência da República, Portal da Legislação
Brasileira, 2013.
Interessante observar nesse processo de construção
de leis para o enfrentamento da corrupção no Brasil é
que, conforme exposto no quadro 1, acima, à medida
que cresce o volume de escândalos de corrupção nos diferentes governos da Nova República, maior vai sendo a
reação dos presidentes por meio de iniciativas legislativas
82
AF miolo corrupcao 3.indd 82
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
e mudanças institucionais. Gradativamente cresce o número de proposições normativas ao longo dos governos,
como expõe o gráfico 3 abaixo.
Gráfico 3. Presidentes e legislação aprovada
no enfrentamento da corrupção, Brasil 1988-2013.
46
36
23
7
0%
José Sarney
3
Fernando
Collor
Itamar
Franco
Fernando
Henrique
Cardoso
Luiz
Inácio
Lulla da Silva
Dilma
Roussef
Fonte: Presidência da República, Portal da Legislação
Brasileira, 2013.
Considerando este processo, é importante destacar as
seguintes mudanças institucionais no Brasil, ao longo dos
diferentes governos da Nova República. Em primeiro lugar, a mudança do regimento do Tribunal de Contas da
União (TCU), que enquanto órgão auxiliar do Poder Legislativo, teve suas prerrogativas aumentadas nos processos de controle da administração pública no Brasil. Em
segundo lugar, a Lei 8429/1992, conhecida como Lei de
83
AF miolo corrupcao 3.indd 83
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Improbidade Administrativa, que dispõe sobre as sanções
aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito, no governo Collor. Em terceiro lugar, a Lei
de 8666/1993, que regulamentou o processo de licitações
e contratos na administração pública, durante o governo
Itamar Franco. Em quarto lugar, o decreto 1171/1994,
que aprovou o Código de Ética Profissional do Servidor
Público Civil do Poder Executivo Federal, durante o governo Itamar Franco. Em quinto lugar, a emenda constitucional 19/1998, que modificou o regime e dispôs sobre os
princípios e normas da administração pública, servidores
e agentes públicos, controle de despesas e finanças públicas, no governo Fernando Henrique Cardoso. Em sexto
lugar, a lei complementar 101/2000, que dispôs sobre as
normas de finança pública voltadas para a responsabilidade fiscal29. Em sétimo lugar, o Brasil se tornou signatário
da Convenção da OCDE sobre o combate da corrupção
de funcionários públicos estrangeiros em transações comerciais internacionais. Em oitavo lugar, a lei 10467/2002,
que trata dos crimes de lavagem de dinheiro. Em nono lugar, a criação da Controladoria-Geral da União em 2003,
durante o início do governo Lula. Em décimo lugar, a
lei complementar 131/2009, que instituiu os portais de
transparência, com a finalidade de fomentar a responsabilidade na gestão fiscal por meio da disponibilização em
tempo real de informações sobre a execução orçamentária e financeira da União. Em décimo primeiro lugar, a
lei 12527/2011, que regulamentou e estabeleceu o direito de acesso à informação pública no Brasil, no governo
Lei complementar, no Direito brasileiro, refere-se às leis cujo propósito
é complementar e regulamentar algo do texto constitucional. Nesse sentido,
ela exige um quórum de maioria absoluta e não maioria simples, como no
caso das leis ordinárias, para a sua aprovação no Congresso Nacional.
29
84
AF miolo corrupcao 3.indd 84
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Dilma. Em décimo segundo lugar, a lei 12846/2013, que
dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de
pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública nacional e estrangeira.
No conjunto desses casos, as mudanças institucionais
vieram como reação às conjunturas críticas impostas pelos escândalos de corrupção. A reação dos presidentes foi
promover iniciativas de combate e políticas anticorrupção configuradas nos seguintes aspectos: (1) – a difusão
destas políticas mediante o fato de o Brasil ter se tornado
signatário de convenções internacionais contra a corrupção; (2) – a superposição de novos formatos organizacionais da administração pública, como no caso da criação
da Controladoria-Geral da União e a maior autonomia da
Polícia Federal, fazendo conviver novos e velhos formatos institucionais; (3) – a conversão funcional de instituições, como no caso do Tribunal de Contas da União, que
assumiu maiores prerrogativas e autonomia. Na próxima
seção cuidamos de analisar os traços fundamentais da legislação brasileira de enfrentamento da corrupção, mostrando que, do ponto de vista das inovações institucionais
no Brasil democrático ampliaram-se os instrumentos de
controle público, associados com a difusão de políticas de
transparência para o enfrentamento da corrupção.
Q u a is
o s t r a ç o s f u n d a m e n t a is
d a l e g is l a ç ã o b r a si l e i r a
d e c o m b at e à c o r ru p ç ã o ?
Do ponto de vista deste texto, nos ateremos à principal legislação relacionada ao enfrentamento da corrupção
observando as duas questões centrais nesse processo: a
ampliação das competências das instituições de controle
85
AF miolo corrupcao 3.indd 85
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
e a difusão de práticas de transparência no contexto da
gestão pública brasileira. Antes de se ater a esse processo,
é importante observar o disciplinamento legal existente
no Código Penal brasileiro, Lei 2848 de 1940, que definiu
os crimes contra a administração pública, instituindo os
crimes de peculato, peculato culposo, peculato mediante
erro de outrem, inserção de dados falsos no sistema de
informação (incluído pela Lei 9983/2000), modificação
ou alteração não autorizada de sistema de informações
(incluído pela Lei 9983/2000), extravio, sonegação ou
inutilização de livro ou documento, emprego irregular de
verbas ou rendas públicas, concussão, excesso de exação,
corrupção passiva, corrupção ativa, facilitação de contrabando ou descaminho, prevaricação, condescendência
criminosa, violência arbitrária, violação de sigilo funcional, violação do sigilo de proposta de concorrência. Em
todos estes casos, o Código Penal brasileiro estabelece
as qualificações do crime e as penas, e reconhece que os
crimes contra a administração pública são praticados por
funcionários públicos, no exercício de suas funções. Esta
legislação ainda se encontra em vigor e, durante muito
tempo, foi a principal legislação para o enfrentamento da
questão da corrupção no Brasil.
Além disso, a legislação sobre a questão do controle
público no Brasil surge com o decreto-lei 200/1967, ainda
em vigor, do período do regime autoritário. O decreto-lei
200 instituiu o sistema de controle interno e de controle
externo. O controle externo é aquele efetuado por uma
entidade externa à administração, que exerce atividades de
vigilância, correção e orientação30. No caso do Brasil, as
atividades de controle externo são exercidas pelo TribuGomes, M. B. e Araújo, R. de M. (2008) Controle externo In: Avritzer,
L. e all. (Orgs.) Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Editora UFMG.
30
86
AF miolo corrupcao 3.indd 86
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
nal de Contas da União (TCU) e pelos Tribunais de Contas Estaduais (TCE’s), no caso dos estados federados. De
outro lado, o controle interno refere-se às práticas que a
própria organização exerce sobre seus atos, sendo entendidas como o conjunto de ações, métodos, procedimentos e rotinas que visam a preservar a integridade de seu
patrimônio e a examinar a compatibilidade entre ações e
princípios pactuados31. No caso do governo federal no
Brasil, o controle interno é centralizado pela Controladoria-Geral da União (CGU).
O processo de inovação institucional e a construção de
uma política anticorrupção no Brasil só foi possível com
o marco legal exarado da Constituição da República de
1988, no processo de democratização. No topo da hierarquia do ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição
da República organizou os fundamentos da administração pública brasileira por meio do capítulo VII (“da administração pública”) do Título III (“Da organização do
Estado”) e estabeleceu como princípios fundamentais a
legalidade, que prescreve que no exercício da administração
pública poderão ser realizados apenas atos previamente
autorizados pela legislação, ainda que em algumas circunstâncias a própria legislação possa preservar alguma discricionariedade ao administrador; a impessoalidade, pelo qual,
em nome do interesse público, todos os cidadãos devem
ser tratados de forma igualitária, sendo vedado aos ocupantes de cargos públicos privilegiarem algumas pessoas
a partir de seus próprios interesses; a moralidade, que impõe a obrigação de que a administração pública seja exercida de forma honesta e ética, implicando na necessidade
Spinelli, M. (2008) Controle interno. In L. Avritzer, L. e all. (Orgs.)
Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Editora UFMG.
31
87
AF miolo corrupcao 3.indd 87
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
de que, para além de cumprir os requisitos legais, os atos
administrativos devem sustentar o interesse público; a publicidade, segundo o qual todos os atos do Estado devem
ser publicizados, exceto quando em circunstâncias específicas, que envolvam alguma necessidade de sigilo, ameaças à segurança nacional ou o direito de privacidade dos
cidadãos; e a eficiência, que diz que o Estado deve buscar
atuar com presteza, racionalidade e perfeição.
Além disso, a Constituição da República dispõe normas gerais sobre o ingresso na carreira pública e alguns
direitos específicos dos servidores, como a estabilidade
no cargo após três anos de serviço e, em quais circunstâncias específicas ele poderá perder o cargo, a exigência
de lei específica para a criação de novas autarquias e empresas públicas, a exigência de licitação para a contratação de obras, serviços, compras e alienação envolvendo o
patrimônio público e a previsão de suspensão de direitos
políticos, a perda da função pública ocupada e outras sanções administrativas para os casos de improbidade, sem
prejuízo das possíveis sanções criminais.
Os direitos e deveres dos servidores e ocupantes de
funções públicas foram regulamentados pela Lei 8.112 de
1990, durante o Governo Collor, enquanto os processos
de licitações e contratos públicos foram regulamentados
pela Lei 8.666 de 1993, durante o Governo do presidente Itamar Franco.
A Lei 8.112, conhecida como estatuto do servidor
público, estabelece os requisitos básicos para a investidura em cargos públicos, isto é, a nacionalidade brasileira, o gozo dos direitos políticos, a quitação com as
obrigações militares e eleitorais, o nível de escolaridade
exigido para o exercício do cargo, a idade mínima de
dezoito anos e a aptidão física e mental, sendo permi-
88
AF miolo corrupcao 3.indd 88
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
tida a exigência de requisitos adicionais de acordo com
as atribuições do cargo.
Em linhas gerais, a Lei 8.112 regulamenta os direitos e
deveres dos servidores, previstos pela Constituição, com
exceção do direito de greve, que, não tendo sido regulado por lei específica, tem sido analisado com base na lei
trabalhista, por decisão judicial, até que se elabore lei específica. Além disso, disciplina de forma mais específica
o modo como o servidor deve se portar, além de dispor
sobre as punições administrativas (advertência, suspensão, demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, destituição de cargo em comissão e destituição de
função comissionada), bem como os casos em que cada
uma delas é aplicável e quais as autoridades responsáveis
por essa aplicação. Por exemplo, determinando que cabe
à autoridade que fez a nomeação realizar a destituição de
cargo em comissão, quando essa penalidade for cabível
(art. 141, inciso IV).
A Lei 8.666, regulamenta o art. 37 da Constituição
instituindo normas para as licitações e contratos da administração pública. Licitação é o nome que se dá ao
procedimento administrativo formal para a realização de
contratos e a aquisição de serviços pelo Estado. Foram
previstas originalmente cinco formas de licitações, sendo,
posteriormente acrescida uma sexta forma, denominada
pregão, pela Lei 10.520 de 2002, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso.
A concorrência, a tomada de preços e o convite, destinam-se, principalmente à aquisição de bens e serviços,
sendo aplicáveis de acordo com a quantidade de recursos envolvidos, sendo aplicável o convite para os contratos mais baratos e a concorrência para os contratos mais
valiosos, sendo permitida à administração a utilização do
procedimento mais complexo. Ou seja, para os contratos
89
AF miolo corrupcao 3.indd 89
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
mais baratos, pode-se utilizar o convite, a tomada de preços e a concorrência, para os medianos apenas a tomada
de preços e a concorrência e, para os mais caros, apenas a
concorrência. Esses procedimentos visam, de forma mais
ou menos exigente, garantir certa igualdade de chances
para os diversos prestadores de serviços e fornecedores,
bem como um valor justo para a administração.
Por fim, o pregão, considerado um aperfeiçoamento do
sistema, é utilizado para a contratação de bens e serviços
comuns, por um procedimento que lembra uma espécie
de leilão reverso, no qual os fornecedores oferecem seus
produtos em lances sucessivos, sendo contratado aquele
que oferecer o produto ou o serviço pelo menor preço,
sendo possível também a sua realização por meio eletrônico. Além dessas disposições, a Lei 8.666 estabelece os
requisitos para a habilitação para a disputa dos processos
licitatórios, sanções administrativas e dez tipos penais relacionados à irregularidades nos processos licitatórios, de
maneira a evitar a corrupção no âmbito dos processos de
compras e contratos no setor público brasileiro.
Outra lei importante no marco legal brasileiro de enfrentamento da corrupção é a Lei de Improbidade Administrativa. Ainda no Governo Collor, a Lei 8.429 de
1992 foi promulgada com o objetivo de prever sanções
aplicáveis aos agentes públicos em casos de enriquecimento ilícito no exercício da função. A lei de improbidade administrativa, aplicável a todos os agentes públicos,
servidores ou não, além daqueles que, mesmo não sendo agentes públicos, induza ou concorra para a prática
de atos de improbidade. Os atos de improbidade podem
ser, segundo a Lei 8.429, de três tipos: (1) - os atos de
improbidade que importam enriquecimento ilícito, definidos no art. 9º; (2) - os atos de improbidade que causam prejuízos ao erário, definidos no art. 10, e; (3) - os
90
AF miolo corrupcao 3.indd 90
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
atos de improbidade que atentam contra os princípios
da administração pública definidos no art. 11.
Sendo assim, são atos de improbidade administrativa
aqueles que importam enriquecimento ilícito os atos pelos quais o agente público obtém um aumento de seu patrimônio em virtude do exercício de função pública (art.
9º), não caracterizando enriquecimento os aumentos normais do patrimônio a partir da compra e venda de bens,
bem como de sua remuneração. Em linhas gerais, os atos
de improbidade administrativa desse tipo são aqueles que
se configuram pelo recebimento de vantagem econômica
para favorecer alguém que tenha algum interesse relacionado à função ocupada pelo agente improbo, a utilização
de equipamentos pertencentes ao patrimônio público para
a realização de obras ou outros serviços de interesse pessoal, bem como aceitar emprego ou exercer atividade de
consultoria para pessoas físicas ou jurídicas que possam
ser favorecidas por ações ou omissões do agente público
durante sua atividade.
A configuração do enriquecimento ilícito não impede
a configuração de crime contra a administração pública,
como o crime de peculato, previsto pelo Código Penal.
Sendo assim, o Ministério Público deverá propor tanto
ação penal quanto ação baseada na Lei de Improbidade, podendo o agente público ser punido tanto criminal
quanto administrativamente. As sanções administrativas previstas podem ser desde a perda de valores obtidos ilicitamente, passando pela perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de dez a oito anos,
pagamento de multa de até três vezes o valor recebido
indevidamente, até a proibição de contratar com órgãos
públicos ou receber benefícios fiscais direta ou indiretamente pelo prazo de dez anos, conforme previsto pelo
art. 12, inciso I.
91
AF miolo corrupcao 3.indd 91
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Os atos de improbidade administrativa que causam prejuízos ao erário são aqueles atos que ensejam perda patrimonial dos bens ou haveres das entidades protegidas pela
Lei de Improbidade. Sendo assim, além do erário, que é
conjunto de bens e interesses de natureza econômica, estão protegidos pelo art. 10 também os bens de natureza
moral, artística, histórica ou turística. Pela definição do
art. 10, qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que
cause dano patrimonial, malbaratamento, desvio, apropriação ou dilapidação do patrimônio público é caracterizada como improbidade administrativa, ainda que não
prevista no rol de atos previstos pelos incisos do mesmo
artigo. Dessa forma, são atos desse tipo, por exemplo, a
facilitação para a incorporação ao patrimônio particular
de bens, rendas, verbas ou valores pertencentes às instituições públicas protegidas pela Lei de Improbidade, a
alienação de bens públicos ou a prestação de serviços por
preços inferiores aos do mercado, a atuação negligente na
arrecadação de tributos ou a liberação irregular de verbas
públicas, entre outros.
Também no caso do art. 10, as punições administrativas não impedem a caracterização de ilícitos penais na
mesma conduta e a consequente sanção criminal. Entre
as punições previstas para esse tipo de ilícito, dispostas no
art. 12, inciso II, encontram-se o ressarcimento integral
do dano causado, a perda dos bens ou valores acrescidos
ilicitamente ao patrimônio, a perda da função pública, a
suspensão dos direitos políticos por cinco a oito anos,
o pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do
dano causado, além da proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios fiscais direta ou indiretamente pelo prazo de cinco anos.
Por fim, os atos de improbidade que atentam contra os
princípios da administração pública são aqueles que vio92
AF miolo corrupcao 3.indd 92
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
lam os princípios previstos pelo art. 38 da Constituição
da República, bem como aqueles que violam deveres de
honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, mesmo que não proporcionem enriquecimento
ilícito nem provoquem prejuízo ao patrimônio público,
além daquelas situações em que não se consegue comprovar o enriquecimento ilícito ou o prejuízo no processo.
Entre os atos previstos, de forma não taxativa pelo art.
11, encontram-se a prática de ato visando fim proibido em
lei ou diverso daquele previsto na regra de competência,
retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, revelar fato ou circunstância que deveria permanecer
em segredo, negar publicidade aos atos oficiais, frustrar
a licitude de concurso público, deixar de prestar contas a
que esteja obrigado e revelar ou permitir que chegue ao
conhecimento de terceiro teor de medida capaz de afetar
o preço de mercadoria, bem ou serviço antes da respectiva divulgação oficial.
Entre as punições previstas pelo art. 12, inciso III, para
os atos de improbidade que atentem contra os princípios
da administração encontram-se o ressarcimento integral
do dano, se houver, a perda da função pública, a suspensão
dos direitos políticos por três a cinco anos, o pagamento
de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração
percebida pelo agente e a proibição de contratar com o
poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais
diretos ou indiretos pelo prazo de três anos. Também nesse caso, é possível que os atos de improbidade também
configurem crimes, caso em que deverão ser apurados
também por ação penal cabendo os dois tipos de punição,
administrativa e criminal, quando cabível.
Por fim, a Lei de Improbidade dispõe regras específicas
para a apuração dos atos que prevê, além de regras para o
processo administrativo e para o processo judicial relativo
93
AF miolo corrupcao 3.indd 93
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
a esses ilícitos. Nesse sentido, a lei dispõe que qualquer
pessoa poderá representar à autoridade administrativa
competente para que seja instaurada a investigação (art.
14), que será processada nos termos dos artigos 148 a 182
da Lei 8.112 (estatuto do servidor), quando forem atendidos os requisitos da representação. Caso haja indícios de
responsabilidade, a comissão instituída para a apuração
dos fatos deverá representar ao Ministério Público ou à
procuradoria do órgão, para que requeira ao juízo competente a decretação de sequestro dos bens do agente que
tenha enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público (art. 16), sem prejuízo da possibilidade de
representação direta ao Ministério Público por qualquer
pessoa interessada (parágrafo 2º do art. 14).
Nesse contexto do processo de regulamentação do setor público no Brasil, após a Constituição de 1988, percebe-se um processo crescente de organização da burocracia e a consolidação de regras gerais do ordenamento
administrativo. O conjunto dessa legislação que trata de
contratos e compras, bem como do estatuto do servidor
público no Brasil, é percebido como o marco fundamental da legislação. A partir disso, no contexto dos anos de
1990 e 2000, os escândalos de corrupção assumiram um
contexto de sucessão cotidiana. O retorno das liberdades
fundamentais nas democracias, por um lado, e a existência de um marco legal de enfrentamento da corrupção,
por outro lado, possibilitou desvelar a corrupção existente no Estado brasileiro. Este processo implicou um conjunto de legislação ad hoc no sentido de ampliar as formas
de controle e regulação no setor público. Conforme já foi
abordado nesse texto, o Governo de Fernando Henrique
Cardoso foi marcado pela criação do MARE a partir do
qual foi realizada uma profunda reforma da administração
pública brasileira que procurou modernizá-la por meio da
94
AF miolo corrupcao 3.indd 94
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
adoção de práticas do setor privado, ou mesmo a partir
da privatização de alguns setores da administração estatal.
Essa reforma foi introduzida pela Emenda Constitucional nº 19, que produziu alterações significativas tanto
na gestão pública, quanto na regulamentação do serviço
público, a partir da identificação de quatro setores de atuação estatal: O núcleo estratégico formado pela presidência
da República, pelo Ministério Público e pelos poderes Judiciário e Legislativo; as atividades exclusivas do Estado, por
meio das quais o Estado exerce seu poder, como a polícia, as forças armadas e os órgãos de regulamentação e
fiscalização, que permaneceriam exclusivamente estatais;
os serviços não exclusivos, setor no qual as atividades seriam
exercidas tanto pelo Estado quanto pelo setor privado,
com incentivos para o desenvolvimento de iniciativas privadas, como escolas, universidades e hospitais; e o setor
de produção de bens e serviços para o mercado, correspondente
às empresas estatais competitivas no mercado, que deveriam ser privatizadas. Além disso, a emenda constitucional
nº 19 introduziu o valor da eficiência como princípio da
administração pública brasileira. A emenda nº 19 trouxe
ainda mudanças importantes na estrutura da burocracia
brasileira. Alterou o regime dos servidores públicos, modificando as regras de estabilidade, que ficaram mais flexíveis com a adoção de novas hipóteses de perda do cargo,
a partir de avaliações de desempenho periódicas a serem
regulamentadas por posterior Lei complementar e por
processos administrativos por meio dos quais seriam apuradas possíveis irregularidades na atuação dos servidores.
A reorganização da máquina administrativa no Brasil, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, partiu do princípio que seria necessário ampliar a eficiência
do Estado na prestação de serviços públicos. Ao adotar
o princípio da eficiência, no enquadramento delimitado
95
AF miolo corrupcao 3.indd 95
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
pela teoria da nova gestão pública, as reformas administrativas pretenderam modificar os instrumentos de gestão
no Brasil. Entretanto, esbarraram em diferentes barreiras. As barreiras às reformas estão relacionadas, de acordo com Abrucio, a uma visão economicista estreita, que
barrou várias inovações institucionais, como maior autonomia às agências reguladoras, com o medo de o Estado
perder o controle sobre o dispêndio financeiro das agências32. Além disso, como destaca Flávio Rezende, a reforma encontrou fortes entraves para a implementação das
mudanças, porque houve uma preponderância da questão
fiscal na formação das preferências dos atores estratégicos. O problema é que os atores estratégicos do processo
decisório perceberam as reformas como ameaça ao controle burocrático sobre as políticas públicas, fazendo com
que as mudanças parassem na questão do ajuste fiscal33.
Ou seja, as mudanças foram implementadas, mas a construção das políticas públicas continuaram submetidas ao
monopólio burocrático, sem haver, de fato, um processo
de descentralização em direção à sociedade e a construção de mecanismos mais efetivos de controle na dimensão da sociedade civil. Nesse sentido, continuando sobre
monopólio burocrático, a legislação do controle no Brasil encontrou um contexto favorável para a sua expansão,
tendo em vista, sobretudo, a forte presença do tema da
corrupção na esfera pública e a introdução de conjunturas críticas para a burocracia estatal.
32
Abrucio, F. L. (2007) Trajetória recente da gestão pública brasileira:
um balanço crítico e a renovação da agenda de reformas In: Revista de
Administração Pública, vol. 41, edição especial comemorativa, pp. 67-86.
33
Rezende, F. da C. (2009) Desafios gerenciais para a reconfiguração da
administração burocrática brasileira. Sociologias, ano 11, nº 21, pp. 344-365.
96
AF miolo corrupcao 3.indd 96
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
A Lei de Responsabilidade Fiscal, criada pela Lei
Complementar 101/2000, procurou coadunar as iniciativas de ampliação da eficiência estatal em conjunção
com as iniciativas de responsabilização fiscal por meio
do controle das finanças públicas. O aspecto mais saliente da Lei de Responsabilidade Fiscal, para além da
questão do ajuste fiscal, foi estabelecer diversas iniciativas para o processo de transparência das contas públicas, tendo em vista seu art. 48, e de controle, tendo em
vista o art. 59, estabelecendo as competências das instituições de controle.
No que tange à extensão do controle, a Lei de Responsabilidade Fiscal distribui as competências de controle da administração pública ao Tribunal de Contas da
União, ao sistema de controle interno do Poder Executivo, exercido hoje pela Controladoria-Geral da União
(CGU) e ao Ministério Público, tendo em vista as metas estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias, o
controle da despesa com pessoal e o controle da dívida pública. Ao assegurar estas competências, a Lei de
Responsabilidade Fiscal criou um contexto institucional favorável para os instrumentos de controle, tanto
externo quanto interno, no âmbito da administração
pública brasileira.
No que tange às iniciativas de transparência, na sua
primeira redação, a Lei Complementar 101 passou a disciplinar os processos de transparência, mas foi revisada pela Lei Complementar 131/2009, que especificou
os meios pelos quais o processo de transparência das
finanças públicas seria concretizada. A Lei de Responsabilidade Fiscal passou a disciplinar os processos de
transparência e gestão fiscal, de acordo com os incisos
incluídos pela Lei Complementar 131/2009, já no Governo Lula, que instruiu:
97
AF miolo corrupcao 3.indd 97
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios
eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária
e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses
documentos.Parágrafo único. A transparência será assegurada
também mediante: (Redação dada pela lei Complementar nº
131, de 2009).
I – incentivo à participação popular e realização de audiências
públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos; (Incluído pela
Lei Complementar nº 131, de 2009).
II – liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a
execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público; (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009).
III – adoção de sistema integrado de administração financeira e
controle, que atenda a padrão mínimo de qualidade estabelecido
pelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A. (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009).
Art. 48-A. Para os fins a que se refere o inciso II do parágrafo
único do art. 48, os entes da Federação disponibilizarão a qualquer
pessoa física ou jurídica o acesso a informações referentes a: (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009).
I – quanto à despesa: todos os atos praticados pelas unidades gestoras no decorrer da execução da despesa, no momento de sua realização, com a disponibilização mínima dos dados referentes ao
número do correspondente processo, ao bem fornecido ou ao serviço
prestado, à pessoa física ou jurídica beneficiária do pagamento e,
quando for o caso, ao procedimento licitatório realizado; (Incluído
pela Lei Complementar nº 131, de 2009).
98
AF miolo corrupcao 3.indd 98
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
II – quanto à receita: o lançamento e o recebimento de toda a receita das unidades gestoras, inclusive referente a recursos extraordinários.”
(Lei Complementar 101 de 2000 e Lei Complementar 131 de
2009).
Na ocasião da aprovação da Lei de Responsabilidade
Fiscal, no ano de 2000, o objetivo perseguido era ampliar a
eficiência do Estado na execução orçamentária e assegurar
mecanismos de transparência. A Lei complementar 131, de
2009, surgiu na esteira de uma série de escândalos de corrupção no Brasil, associada às diretrizes de transparência e
gestão apontadas pela Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, a qual estabeleceu um receituário para o
enfrentamento global da corrupção. Nesse caso, a Lei Complementar 131 representou, ao mesmo tempo, um processo
de difusão de mecanismos de transparência somados aos de
conversão funcional, ao passo que a Lei de Responsabilidade
Fiscal se estende para todo o aparato do Estado brasileiro.
Importante destacar também que a Lei Complementar 131
disciplinou e regulamentou os Portais de Transparência no
Brasil, estendendo a iniciativa, de 2004, para todos os órgãos
do governo e aos Poderes Legislativo e Judiciário.
Do ponto de vista da legislação, o decreto 4177 de
2002 criou a Corregedoria Geral da União, centralizando
neste órgão as competências do controle interno do Governo Federal, que até então eram exercidas pela Secretaria Federal de Controle do Ministério da Fazenda e pela
Ouvidoria Geral, ligada ao Ministério da Justiça. Pela Lei
10683/2003, foi criada a Controladoria-Geral da União
(CGU), que assumiu e centralizou todas as atividades de
controle interno do Governo Federal e também as iniciativas de prevenção e combate à corrupção. A CGU representou um processo de inovação importante no Brasil,
99
AF miolo corrupcao 3.indd 99
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
não só por centralizar a atividade de controle interno e
institucionalizar sua prática no interior da administração
pública, mas também por difundir práticas de gestão e
transparência. A CGU representa, no caso do Brasil, um
processo de conversão funcional ditado pelas conjunturas
críticas de escândalos de corrupção na passagem do Governo Fernando Henrique Cardoso para o Governo Lula.
Do ponto de vista da legislação brasileira para o enfrentamento da corrupção, outra iniciativa que veio com
o processo de difusão, partindo principalmente da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, foi a regulamentação do acesso a informações públicas previsto
no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3o do art.
37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal, tendo
em vista a lei 12527/2011. A Lei de Acesso à Informação no Brasil vem na esteira de difusão global desse tipo
de legislação, estabelecendo o acesso à informação como
um direito básico da cidadania34 e instituindo, em seu artigo 3º, os seguintes termos:
I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como
exceção; II - divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações; III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação; IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na
administração pública; V - desenvolvimento do controle social da administração pública. (Lei 12527 de 2011)
34
Ackerman, J. M. e Sandoval-Ballesteros, I. E. The global explosion
of freedom of information laws. Administrative Law Review, vol. 58, nº 1,
2006.
100
AF miolo corrupcao 3.indd 100
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
A Lei de Acesso à Informação estipulou os procedimentos de concretização da transparência e o princípio
da publicidade, tornando-a um preceito geral e as especificidades de sigilo exceção. Estipulou também a viabilização dos Portais de Transparência em todo o serviço
público brasileiro, incluindo os órgãos dos três poderes
republicanos e de todos os entes federados (União, estados e municípios). A Lei de Acesso à Informação também
disciplinou os procedimentos de acesso à informação, o
direito de acesso à informação para a cidadania e as responsabilidades institucionais.
Associada à Lei de Acesso à Informação, uma inovação institucional importante no marco legal brasileiro da
política anticorrupção é a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas. Do ponto de vista técnico,
essa recente inovação possibilitou a responsabilização dos
corruptores e expande o foco do controle para além do
serviço público. A Lei 12846 de 2013, promulgada durante o governo de Dilma Roussef, dispõe sobre a responsabilidade administrativa e civil de pessoas jurídicas pela
prática de atos contra a administração pública, nacional ou
estrangeira. Em outras palavras, esta lei, também chamada
de Lei Anticorrupção, tem como objetivo prever sanções
aplicáveis às pessoas jurídicas, quer sejam sociedades empresárias, quer sejam sociedades simples e também a sociedades estrangeiras que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, ainda que temporariamente.
A responsabilização da pessoa jurídica nos termos dessa lei não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores, nem de qualquer pessoa natural autora, coautora ou partícipe do ato ilícito previsto
pelo qual foi responsabilizada. A Lei 12846 define como
atos lesivos à administração pública todos os atos praticados por pessoas jurídicas mencionadas pela lei, que
101
AF miolo corrupcao 3.indd 101
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
atentem contra o patrimônio público, contra os princípios da administração pública ou compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, acrescentando especialmente atos que visem utilizar-se da pessoa jurídica para
ocultar ou dissimular os interesses ou a identidade dos
beneficiários dos atos ilícitos praticados, bem como dificultar a investigação ou fiscalização de órgãos públicos
ou agências reguladoras.
São previstas como sanções para os atos por essa lei apenas duas medidas, quais sejam a aplicação de multa no valor
de 0,1% a 20% do faturamento bruto das pessoas jurídicas
punidas, nunca inferior ao valor da vantagem auferida pelo
ato ilícito, quando for possível sua estimação, além da publicação extraordinária da decisão condenatória, em meios
de comunicação de grande circulação na área da prática da
infração, a expensas da pessoa jurídica punida. Visando aumentar as chances de apuração dos ilícitos, o art. 18 traz a
possibilidade de acordo de leniência, feito entre a autoridade
máxima de cada órgão ou entidade pública para as pessoas
jurídicas que colaborem efetivamente com as investigações
e a identificação dos demais envolvidos na infração e para
a obtenção de informações e documentos que comprovem
o ilícito sob apuração, sendo tal medida aplicável também
aos ilícitos previstos pela Lei 8666.
Além disso, a responsabilização administrativa não
afasta a possibilidade de responsabilização judicial que
poderá se dar por ação ajuizada que poderão acarretar na
perda de bens, direitos e valores que representem vantagem obtida pela infração, a suspensão ou interdição parcial de suas atividades, a dissolução compulsória da pessoa jurídica e a proibição de receber incentivos, subsídios,
subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas ou controladas pelo poder público, pelo
prazo de um até cinco anos.
102
AF miolo corrupcao 3.indd 102
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
C o n si d e r a ç õ e s
f i n a is
No âmbito da experiência brasileira, pode se perceber
que existe, no contexto do Estado, uma política pública
para o enfrentamento da corrupção movida por dois elementos primordiais: em primeiro lugar, a expansão institucional dos mecanismos de controle da administração
pública e, em segundo lugar, a difusão de uma política de
transparência das ações, programas e finanças públicas. A
análise do marco legal de enfrentamento da corrupção no
Brasil aponta claramente nessas duas direções.
As conjunturas críticas ensejadas pelos escândalos de
corrupção no Brasil forçou o Estado brasileiro a constituir medidas que estipulem uma política anticorrupção.
A expansão dos mecanismos de controle ocorreu pela
criação de novas instituições, como no caso da Controladoria-Geral da União, e de novas competências a antigas
instituições, como o Tribunal de Contas da União. Somese a isso o fato de a Constituição Federal de 1988 ter assegurado autonomia institucional para o Ministério Público
exercer suas iniciativas de investigação e persecução criminal. A expansão dos mecanismos de controle coadunou
com a difusão de políticas de transparência, que iniciaram
seu processo com a Lei de Responsabilidade Fiscal e encontraram na Lei de Acesso à Informação a institucionalização e regulação do princípio da publicidade no Brasil.
A expansão dos mecanismos de controle e a adoção da
linha da transparência permitem concluir que inovações
institucionais foram concretizadas no Brasil democrático,
tendo em vista um marco legal que inovou, principalmente, na difusão de práticas de governança e na mudança do
marco institucional do controle. Todavia, é importante
frisar, o conjunto destas inovações institucionais foi ou
resposta às conjunturas de escândalos, no caso da legisla103
AF miolo corrupcao 3.indd 103
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
ção de controle, ou por meio de difusão de políticas, especialmente com a participação de organizações internacionais, como no caso a ONU e a Convenção das Nações
Unidas Contra a Corrupção, da qual o Brasil é signatário.
No que tange à luta contra a corrupção no Brasil, o
que se percebe é que hoje existe uma política anticorrupção, adotando esse processo de inovação institucional no âmbito do controle e da transparência. Contudo,
existe ainda uma barreira à plena efetividade dessa política anticorrupção que está na responsabilização dos
agentes públicos e privados pelos atos ilícitos. No caso
do Brasil, hoje, as instituições de controle são efetivas
no processo de desvelamento da corrupção. Contudo,
ainda não há efetividade na aplicação de sanções aos casos de corrupção, especialmente naqueles que envolvam
altas autoridades da República e agentes privados. Não
havendo uma sanção eficiente dos atos de corrupção,
eles continuam altamente percebidos pela opinião pública, reproduzindo o contexto de escândalos e de conjunturas críticas e ferindo a legitimidade da democracia
brasileira. Ou seja, a corrupção continua altamente percebida pela opinião pública, ensejando o custo moral de
que, uma vez que ela não é punida, a corrupção se torna
uma prática relativamente aceita, apesar dos espasmos
de alvoroço social causado por ela.
A luta anticorrupção no Brasil demanda, agora, uma
série de mudanças no âmbito processual do Direito brasileiro, procurando equilibrar o garantismo necessário
dos direitos com a possibilidade de sanção aos crimes de
corrupção. As mudanças no Direito processual, entretanto, não encontram um contexto favorável no status quo,
reproduzindo uma série de chicanas jurídicas que possibilitam a impunidade da corrupção. Nesse contexto, a
corrupção reproduz, no plano da sociedade, um enorme
104
AF miolo corrupcao 3.indd 104
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
sentimento de injustiça, de acordo com a percepção a respeito das instituições e dos resultados das políticas públicas no Brasil. Uma vez que a corrupção é uma forma de
injustiça política, os seus custos morais para a sociedade
brasileira afetam diretamente a legitimidade do sistema
democrático, tornando a corrupção um problema de primeira ordem no contexto da democracia. Sem mudanças
no marco legal do processo, mantendo a alta percepção
de impunidade, ainda não se pode dizer que a política anticorrupção no Brasil tenha alcançado um status de eficiência e completude.
Referências bibliográficas
ABRANCHES, S. H. H. (1988) Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados – Revista de Ciências Sociais,
vol. 31, nº 1.
ABRUCIO, F. L. (2007) Trajetória recente da gestão pública brasileira: um balanço crítico e a renovação da agenda de reformas.
Revista de Administração Pública, vol. 41, edição especial comemorativa, pp. 67-86.
ACKERMAN, J. M. e SANDOVAL-BALLESTEROS, I. E. (2006)
The global explosion of freedom of information laws. Administrative Law Review, vol. 58, nº 1.
BRESSER-PEREIRA, L.C. (2001) Gestão do setor público: estratégia e estrutura para um novo Estado In: BRESSER-PEREIRA,
L. C. e SPINK, P. (Orgs.) Reforma do Estado e administração pública
gerencial. Rio de Janeiro: Editora da FGV.
DELLA PORTA, D. e VANNUCCI, A. (2012) The hidden order of
corruption. An institutional approach. Surrey: Ashgate Publishing.
EUBEN, P. (1989) Corruption In: BALL, T., FARR, J. e HANSON,
R. L. (Eds.) Political innovation and conceptual change. Cambridge:
Cambridge University Press.
FILGUEIRAS, F. (2013) Corrupção e cultura política: a percepção
da corrupção no Brasil In: TELLES, H., MORENO, A. (Orgs.)
Comportamento eleitoral e comunicação política na América Latina. Belo
Horizonte: Editora UFMG, pp. 221-258.
105
AF miolo corrupcao 3.indd 105
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
FILGUEIRAS, F. (2011) Transparência e controle da corrupção no
Brasil In: AVRITZER, L. e FILGUEIRAS, F. (Orgs.) Corrupção
e sistema político no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, pp. 133-161.
FILGUEIRAS, F. (2008) Corrupção, democracia e legitimidade. Belo Horizonte: Editora UFMG.
FILGUEIRAS, F. (2008) Marcos teóricos da corrupção In: AVRITZER, L. e all. Corrupção: ensaios e crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG.
FUNG, A. e WRIGHT, E. O. (2003) Deepening democracy. New York:
Verso Books.
GOMES, M.B. e ARAÚJO, R. de M. (2008) Controle externo In:
AVRITZER, L. e all. (Orgs.) Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Editora UFMG.
HUNTINGTON, S. P. (1975) A ordem política nas sociedades em mudança. São Paulo: EDUSP.
LEFF, N. H. (1964) Economic development through bureaucratic
corruption. American Behavioral Scientist, v. 8, n. 3.
LIMONGI, F. (2006) A democracia no Brasil. Presidencialismo, coalizão partidária e processo decisório. Novos Estudos, nº 76.
MOISÉS, J. Á. (2011) O desempenho do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão (1995-2006) In: MOISÉS, J.Á. (Org.) O
papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer-Stifitung, pp. 7-29.
MOISÉS, J. Á. (2010) Os significados da democracia segundo os brasileiros. Opinião Pública, vol. 16, nº 2, pp. 269-309.
NYE, J. (1967) Corruption and Political Development: A Cost-Benefit
Analysis. American Political Science Review, vol. 61, nº 4.
O’DONNELL, G. (1996) Uma outra institucionalização: América Latina e alhures, Lua Nova – Revista de Cultura e Política, nº 37, pp. 5-31.
PIERSON, P. (2004) Politics in time. History, institutions and social
analysis. Princeton: Princeton University Press.
REZENDE, F. da C. (2009) Desafios gerenciais para a reconfiguração da administração burocrática brasileira, Sociologias, ano 11, nº
21, p. 344-365.
ROSE-ACKERMAN, S. (2013) Introduction: the role of international actors in fighting corruption In: ROSE-ACKERMAN, S. e
CARRINGTON, P. Anti-corruption policy: can international actors play
a constructive role? Durham: Carolina Academic Press.
ROSE-ACKERMAN, S. (1999) Corruption and government. Causes, consequences, and reform. Cambridge: Cambridge University Press.
106
AF miolo corrupcao 3.indd 106
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
SCOTT, J.(1969) Corruption, machine politics, and political change.
American Political Science Review, v. 63, n. 4.
SHLEIFER, A. e VISHNY, R. (1993) Corruption. The Quarterly Journal of Economics, vol. 108, número 3.
SPINELLI, M. (2008) Controle interno In: AVRITZER, L. e all.
(Orgs.) Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Editora UFMG.
WARREN, M. (2005) La democracia contra la corrupción. Revista
Mexicana de Ciências Políticas y Sociales, vol. 47, nº 193.
WARREN, M. (2004) What does corruption mean in democracy?
American Journal of Political Science, vol. 48, nº 2.
107
AF miolo corrupcao 3.indd 107
7/31/14 12:54 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 108
7/31/14 12:54 AM
3. Prevenir e reprimir
a corrupção política
e m P o rt u g a l – evo lu ç ã o
do quadro legal
António João Maia
Hermenegildo Borges
Breve
nota introdutória
de enquadramento do problema
A problemática da corrupção e das diversas vertentes
que lhe estão associadas, como sejam a ética, a cidadania,
os valores morais ou mesmo a transparência na vida pública, têm assumido nos últimos anos uma posição de grande
destaque na agenda pública das sociedades. Esta evolução
tem resultado em grande medida de uma forte mediatização que tem sido conferida a determinadas ocorrências
com contornos de suspeição, sobretudo ao nível da acção
dos actores políticos nos relacionamentos que, no âmbito das funções associadas aos cargos, por vezes estabelecem com o mundo empresarial e dos grandes negócios.
Partindo de casos frequentemente vindos a público, na
maior parte das vezes sob a forma de escândalos associados
a figuras políticas de topo, como tem sido mostrado por
autores como Giglioli (1996), Brunetti e Weder (2001),
Pujas (2003), Maia (2008), ou Poeschl e Ribeiro (2012),
muito se tem dito e escrito, muitas vezes de forma puramente especulativa, acerca dos esquemas utilizados pelos
alegados corruptos, das causas económicas, sociais e até
culturais que ajudam a explicar o fenómeno, bem como
dos eventuais efeitos de distorção que ele tende a provocar no relacionamento entre o Estado e os cidadãos, nos
109
AF miolo corrupcao 3.indd 109
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
padrões e índices de confiança próprios das relações entre
as pessoas e as instituições, no desenvolvimento da economia, ou nas condições de acesso aos recursos públicos35.
Independentemente do maior ou menor grau de veracidade associado a todo este mediatismo, a verdade é que
ele é reconhecidamente um dos principais factores de edificação da percepção que os cidadãos tendem a construir
relativamente ao problema da corrupção nos seus países.
No caso de Portugal, que é o que aqui nos importa, os
estudos e análises de diagnóstico mais recentes, dos quais
devem destacar-se os de Morgado e Vegar (2003), Sousa
e Triães (2007, 2008), Maia (2006, 2008), Poeschl e Ribeiro (2012), ou mesmo os relatórios do Barómetro da Corrupção da Transparência Internacional36, têm revelado a
existência de uma percepção marcada sobretudo por um
forte sentimento de impunidade e desconfiança. Por um
lado os sujeitos dizem que os mecanismos do sistema repressivo e punitivo da Justiça se têm revelado incapazes de
exercer as suas funções de uma forma eficaz. Por outro,
revelam alguma desconfiança relativamente à capacidade
e sobretudo à vontade dos decisores políticos em apostar
na definição e adopção de estratégias que tendam a melhorar a eficácia desses mesmos mecanismos. Os cidadãos
assumem ainda que o problema da corrupção tem vindo a
acentuar-se de forma permanente nos últimos anos, situação que perspetivam se mantenha, afetando sobretudo a
35
“Ao provocar fenómenos de caciquismo e compadrio na Administração Pública,
impede o princípio da igualdade. Ao actuar no mercado com métodos ilegais e ocultos,
alimenta a concorrência desleal. Ao apresentar ao fisco rendimentos fictícios, ou
subtraindo-os à partida, impede qualquer esforço de justiça fiscal, e a justa repartição da
riqueza” (Morgado e Vegar, 2003: p. 29).
36
Transparency International Global Barometer Reports 2003, 2004,
2005, 2006, 2007, 2009, 1010/11 e 2013.
110
AF miolo corrupcao 3.indd 110
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
esfera da ação política nas suas relações de interesse com
a economia e com o mundo empresarial e dos negócios.
Porém e apesar de estarmos reconhecidamente perante
um tipo de criminalidade opaca, silenciosa, de difícil investigação, em que as cifras negras denotam ser de dimensão considerável, como tem sido verificado por Morgado
e Vegar (2003), Grilo (2005), Maia (2004, 2008 e 2012) e
Calado (2013), os dados estatísticos conhecidos quanto
ao crime de corrupção37 revelam números que, apesar de
tudo, parecem mostrar alguma eficácia na acção dos mecanismos de investigação criminal e de aplicação de penas punitivas38.
Quadro 1. A dimensão real do problema da corrupção
Adaptado de Grilo (2005) e Maia (2008)
37
Os dados estatísticos da Justiça encontram-se publicados no site da
Direção-Geral da Política da Justiça, em http://www.dgpj.mj.pt/sections/
estatisticas-da-justica/index/.
38
De acordo com os dados estatísticos divulgados relativamente ao
crime de corrupção em Portugal, verificamos que entre 1993 e 2010 o
sistema judicial instaurou uma média anual de 154 novos processos por
suspeitas de ocorrência daquele crime, tendo conseguido deduzir acusação
dos suspeitos em cerca de 1/3 deles e aplicar penas pela prática do crime a
2/3 dos 78 suspeitos que foram julgados (Maia, 2012: p. 79).
111
AF miolo corrupcao 3.indd 111
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Todavia os elementos que fazem parte dos procedimentos judiciais que têm sido processados pelo sistema
de justiça, não têm permitido – precisamente por se encontrarem dispersos pelos procedimentos a que respeitam
– a possibilidade de se conhecer e traçar de forma mais
concreta os padrões de contexto de ocorrência das práticas desta natureza, nem dos perfis dos indivíduos que
as praticam. O conhecimento quer dos contextos, quer
dos perfis dos indivíduos envolvidos nestas práticas, parece‑nos algo que importaria explorar futuramente com
algum detalhe e rigor, na medida em que permitem uma
maior aproximação à realidade concreta e objectiva do
problema no nosso país – pelo menos relativamente aos
casos que o sistema de justiça vai conhecendo. Continuamos a afirmar, como tem sido defendido por autores
como Klitgaard (1988), Rose-Ackerman (2002) ou Cavazzini e Nevado (2013), que
um país que leve a sério a luta contra as práticas de corrupção
deverá primeiramente conhecer os contornos do problema, ou seja
proceder à identificação dos contextos sociais, económicos e políticos em que tais práticas ocorrem, pois só dessa forma se afigura
possível o estabelecimento de ajustadas estratégias de controlo e de
combate, que ofereçam níveis de eficácia minimamente garantidos
(Maia, 2008: p. 31).
Quanto ao discurso mediático que tem sido produzido em Portugal relativamente à corrupção e de acordo
com os elementos colhidos no âmbito de um estudo realizado há poucos anos (Maia, 2006, 2008), verifica-se a
existência de uma tendência para uma maior exploração
de casos relacionados com a denominada corrupção política, sobretudo em função da posição social dos suspeitos, que verificámos ser um dos principais vectores que
112
AF miolo corrupcao 3.indd 112
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
confere valor-notícia a este tipo de eventos. Estes estudos
revelaram um conjunto de outros elementos que importa
destacar, uma vez que, como já se referiu anteriormente,
eles acabam por contribuir para a edificação das percepções sociais que os cidadãos vão construindo acerca deste
problema. Um deles revelou por exemplo que, para lá de
práticas que correspondem ao conceito jurídico do crime
de corrupção, o termo corrupção surge também associado
a outras práticas cujo enquadramento legal corresponde a
conceitos jurídicos de outros crimes, alguns dos quais de
natureza não económica (Maia, 2008: p. 168). Por outro
lado, o mesmo estudo revelou uma tendência para o crescimento exponencial no número de notícias publicadas nos
dois períodos comparados (Maia, 2008: p. 142). É ainda de
referir que na sua grande maioria, as situações noticiadas
encontravam-se ainda numa fase inicial do correspondente
procedimento criminal, quando o Ministério Público, coadjuvado pelas Polícias desenvolvia as diligências próprias
da investigação criminal, ou seja, como veremos adiante,
quando ainda se procuravam elementos indiciadores que
permitissem sustentar a ocorrência do crime e de quem
pudessem ter sido ou seus autores (Maia, 2008: p. 202).
O discurso mediático produzido com aqueles vectores, apresenta uma correlação muito forte com os principais traços caracterizadores da percepção que os cidadãos
revelam possuir sobre a corrupção, nomeadamente por
referirem que o problema afecta sobretudo os políticos,
que tem vindo a aumentar, que o sistema de justiça se
tem revelado ineficaz no seu controlo e repressão e que
toda e qualquer prática ilícita em que esteja em causa o
acesso a valores e quantias monetárias tende a ser associada a práticas de corrupção, como tem sido evidenciados
pelos estudos realizados por Maia (2006, 2008) e Sousa
e Triães (2007, 2008).
113
AF miolo corrupcao 3.indd 113
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Ora é precisamente esta questão do conceito de corrupção que nos importa abordar de maneira mais concreta
neste texto. Se é verdade que se pode falar de um conceito alargado de corrupção, que podemos aceitar como um
conceito sociológico, que inclui as diversas vertentes sob
as quais o fenómeno pode ser perspectivado, sobretudo a
percepção evidenciada pelos cidadãos, não é menos verdade que importa conhecer o conceito jurídico, ou melhor os conceitos jurídico-legais dos crimes que, segundo
a letra da lei penal, encontram uma correspondência com
aquela percepção social. Só a partir da definição e delimitação destes conceitos é possível perceber e analisar objetivamente o percurso que tem sido trilhado pelos decisores políticos bem como pelas estruturas dos serviços de
justiça, no seu esforço de procurar pelo menos manter o
problema sob controlo, quer em termos de aplicação de
sanções aos autores destas práticas, quer em termos do
desenho e da adopção de estratégias preventivas.
Quanto ao conceito sociológico, parece-nos que possa compreender fundamentalmente os actos praticados
de forma deliberada por funcionários dos serviços públicos, incluindo os titulares de cargos políticos, dos quais
resulte ou possa resultar um desvirtuamento das acções
próprias dos serviços, causando-lhes danos patrimoniais,
monetários ou não monetários, em benefício, não devido,
do funcionário ou de terceiras pessoas que sob qualquer
forma se encontrem com ele relacionadas39.
Encontramos no mesmo sentido a definição proposta por Sousa,
segundo a qual o conceito sociológico de corrupção corresponde a um
“abuso de funções por parte de eleitos, funcionários públicos ou agentes privados, mediante
promessa ou aceitação de vantagem patrimonial ou não patrimonial indevida, para si ou
para terceiros, para prática de qualquer acto ou omissão contrários aos deveres, princípios
e expectativas que regem o exercício do cargo que ocupam, com o objectivo de transferir
rendimentos e bens de natureza decisória, pública ou privada, para um determinado
indivíduo ou grupos de indivíduos ligados, por quaisquer laços de interesse comum.”
(Sousa, 2011: p. 17).
39
114
AF miolo corrupcao 3.indd 114
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Relativamente ao conceito jurídico de corrupção, como
já fomos referindo, ele compreenderá o conjunto de crimes
praticados contra o Estado, por funcionários no exercício
das suas funções. E o propósito fundamental deste texto
é precisamente a apresentação do quadro dos principais
delitos desta natureza e com este enquadramento, previstos no ordenamento jurídico português, e de que forma
tem evoluído nas últimas décadas.
Aproveitamos a oportunidade, por nos parecer fazer
todo o sentido, sobretudo por permitir perceber de forma
mais clara esse mesmo quadro de delitos e a forma como
ele funciona, para explicar, ainda que de forma necessariamente breve e muito pouco exaustiva, os principais traços
caracterizadores do modelo de organização do edifício jurídico português, sobretudo para os procedimentos criminais e aplicação das correspondentes penas aos autores
dos crimes, quando as provas recolhidas durante a fase de
investigação criminal e produzidas no iter processual que
culmina na audiência de julgamento, o permitam sustentar.
Iniciamos o texto por uma breve descrição dos princípios constitucionais que se associam mais diretamente ao
processo penal e à aplicação de penas em Portugal. Procuraremos depois verificar, através do Código de Processo
Penal, quais os passos que qualquer procedimento criminal tem de percorrer, desde o seu início até à aplicação das
penas, nos casos em que haja lugar a isso. Seguidamente,
como dissemos, procuraremos mostrar o quadro de crimes definido no Código Penal correspondente aos crimes
contra o Estado praticados por funcionários no exercício
de funções públicas. Finalmente mostraremos o quadro
da principal legislação avulsa definidora dos denominados
crimes de corrupção política, bem assim como dos que
se nos afiguram ser os principais diplomas legais que têm
sido criados para reprimir e prevenir esta prática ilícita.
115
AF miolo corrupcao 3.indd 115
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Estamos pois, se nos é permitido, em presença de um texto fundamentalmente descritivo, no sentido em que apenas
se procede a uma apresentação e descrição, acompanhada de
quadros identificativos dos diplomas, do quadro legal identificativo dos ilícitos tipificados e dos principais contornos
e momentos do modelo de funcionamento judicial, no âmbito do qual se previnem, reprimem e punem estas práticas.
O propósito do texto não é tecer, nem nele se encontrarão apreciações sobre o sentido, a qualidade técnica ou
a oportunidade da legislação apresentada. Todavia e assumindo esse caráter descritivo do quadro legal, não abdicamos da possibilidade de tecer alguns comentários finais que, fundamentalmente pela sua objectividade, nos
parecem poder ser assumidos relativamente às opções legislativas que têm sido tomadas e à estratégia que parece
estar associada a essas opções.
A Constituição da República
P o r t u g u e s a – o s p r i n c í pi o s
c o n s t i t u c i o n a is
A Constituição da República Portuguesa (CRP)40 é,
pela sua natureza, o pilar estruturante de todo o edifício
A Constituição da República Portuguesa actualmente em vigor foi
aprovada a 25 de Abril de 1976 e resultou dos trabalhos da Assembleia
Constituinte eleita na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974. Este
documento sofreu entretanto sete revisões, que introduziram alterações mais
ou menos significativas, designadamente através das Leis Constitucionais
nº 1/82, de 30 de Setembro, nº 1/89, de 8 de Julho, nº 1/92, de 25 de
Novembro, nº 1/97, de 20 de Setembro, nº 1/2001, de 12 de Dezembro,
nº 1/2004, de 24 de Julho e, por último a Lei Constitucional nº 1/2005, de
12 de Agosto. As alterações introduzidas por este significativo número de
revisões não terão alterado de modo significativo, do nosso ponto de vista,
a sua estrutura nem as principais linhas filosóficas
40
116
AF miolo corrupcao 3.indd 116
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
jurídico do nosso país. Todos os ramos do direito derivam dos princípios constitucionais definidos e defendidos no texto constitucional, que se inspira e procura traduzir, através do normativo que lhe dá forma, os valores
éticos, morais e filosóficos em que os cidadãos portugueses acreditam e com nos quais pretendem enquadrar a sua
vivência coletiva.
A identificação e análise dos principais artigos da Constituição da República Portuguesa que foram identificados
como sendo de maior importância relativamente aos propósitos deste texto, resultaram fundamentalmente de uma
pesquisa efectuada sobre o próprio quadro legal constitucional efectuado a partir de Sousa e Alexandrino (2000).
Para se alcançar os objectivos propostos para este texto, importa que do quadro normativo constitucional se
refira, logo de partida, que Portugal se assume claramente como um Estado de direito democrático41, soberano,
baseado na legalidade42 e, de entre outras, com a tarefa
fundamental de garantir o respeito pelos princípios do
Estado de direito democrático43.
Art.º 2º (Estado de direito democrático) - A República Portuguesa é um
Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão
e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos
e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a
realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia
participativa.
42
Art.º 3º, nº3 (Soberania e Legalidade) - A validade das leis e dos demais
actos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades
públicas depende da sua conformidade com a Constituição.
43
Art.º 9º, b) (Tarefas fundamentais do Estado) – São tarefas fundamentais
do Estado: b) Garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios
do Estado de direito democrático.
41
117
AF miolo corrupcao 3.indd 117
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
De uma forma mais concreta e relativamente aos procedimentos associados à condução de procedimentos judiciais, o texto constitucional prossegue com a definição
de garantias processuais tão importantes como sejam a
protecção do segredo de justiça, a razoabilidade dos prazos para as decisões judiciais e a defesa dos direitos liberdades e garantias para os intervenientes em todos os
processos judiciais44.
Importa igualmente destacar que a CRP garante, em
todo o território português, a universalidade do direito à
liberdade e à segurança, com excepção das situações correspondentes ao cumprimento de decisões dos Tribunais,
designadamente de sentenças condenatórias pela prática
de actos criminosos ou enquanto medida de segurança45.
Complementarmente, garante que qualquer sentença criminal apenas possa decorrer de Lei anterior que declare
punível, como crime, a acção ou omissão que se consubstancie no crime em causa, ou que defina exatamente os
Art.º 20º (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) – n,º 3 – A
lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça; n.º 4 - Todos têm direito a
que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante
processo equitativo; n.º 5 Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei
assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade,
de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
45
Art.º 27º (Direito à liberdade e à segurança) – n.º 1 – Todos têm direito
à liberdade e à segurança; n.º2 – Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da
liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato
punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança; n.º3
– Excetua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei
determinar, nos casos seguintes: a) Detenção em flagrante delito; b) Detenção ou prisão
preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão
cujo limite máximo seja superior a três anos.
44
118
AF miolo corrupcao 3.indd 118
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
pressupostos de aplicação de medidas de segurança46. Um
outro princípio de grande importância exclui liminarmente
a possibilidade de alguém poder ser julgado mais do que
uma vez pela prática ou por suspeita da prática do mesmo crime47. Define ainda a possibilidade de existência de
procedimento de habeas corpus para as situações de abuso
de poder que resultem de prisão ilegal48.
Nos termos dos artigos 161º e 165º, a competência para legislar em
matérias de definição dos tipos legais de crime, da organização do processo
penal e da organização dos tribunais compete à Assembleia de República
– Art.º 161º (Competência política e legislativa) Compete à Assembleia da
República: c) Fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao
Governo; Art.º 165º (Reserva relativa de competência legislativa) – n.º 1 – É
da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias,
salvo autorização ao Governo: c) Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e
respectivos pressupostos, bem como processo criminal; p) Organização e competência dos
tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados, bem como das
entidades não jurisdicionais de composição de conflitos.
47
29º (Aplicação da lei criminal) – n.º1 – Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão,
nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior;
n.º2 – O disposto no número anterior não impede a punição, nos limites da lei interna,
por ação ou omissão que no momento da sua prática seja considerada criminosa segundo
os princípios gerais de direito internacional comummente reconhecidos; n.º3 – Não podem
ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas
em lei anterior; n.º4 – Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do
que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos
pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao
arguido; n.º5 – Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo
crime; n.º6 – Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei
prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.
48
Art.º 31º (Habeas corpus) – n.º1 – Haverá habeas corpus contra o abuso de
poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente;
n.º2 – A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer
cidadão no gozo dos seus direitos políticos; n.º3 – O juiz decidirá no prazo de oito dias o
pedido de habeas corpus em audiência contraditória.
46
119
AF miolo corrupcao 3.indd 119
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Relativamente à duração das penas pela prática de crimes, a CRP é clara ao impossibilitar a existência de penas
perpétuas, de duração ilimitada ou indefinida. Por outro
lado dispõe igualmente que nenhuma pena tenha efeitos
de perda sobre outros quaisquer direitos fundamentais,
excetuando os que derivem da exigência do cumprimento da própria pena49.
A Constituição define igualmente, de forma muito clara, os limites em que podem ocorrer situações de prisão
preventiva, que considera ter uma natureza excepcional e
que, por isso mesmo, sempre que possível, deve ser preterida por outra medida menos gravosa, nos termos da Lei50.
Por outro lado a lei constitucional garante que a aplicação de qualquer pena pela prática de crime deve ser antecedida e só pode derivar de um processo criminal51, que
tem uma estrutura acusatória, no âmbito do qual, sob a
direção do Ministério Público, coadjuvado pelas Polícias
Art.º 30º (Limites das penas e das medidas de segurança) – n.º1 – Não
pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com
carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida; n.º2 – Em caso de perigosidade
baseada em grave anomalia psíquica, e na impossibilidade de terapêutica em meio aberto,
poderão as medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade ser prorrogadas
sucessivamente enquanto tal estado se mantiver, mas sempre mediante decisão judicial;
n.º3 – A responsabilidade penal é insuscetível de transmissão; n.º4 – Nenhuma pena
envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos;
n.º5 – Os condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurança privativas da
liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes
ao sentido da condenação e às exigências próprias da respetiva execução.
50
Art.º 28º (Prisão preventiva) – n.º1 – A detenção será submetida, no prazo
máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade
ou imposição de medida de coação adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a
determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa;
n.º 2 – A prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida
sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei; n.º
3 – A decisão judicial que ordene ou mantenha uma medida de privação da liberdade
deve ser logo comunicada a parente ou pessoa da confiança do detido, por este indicados;
n.º4 – A prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na Lei.
49
120
AF miolo corrupcao 3.indd 120
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
de Investigação Criminal, se realizam as acções de recolha
dos indícios e das provas que permitam objectivamente e
de forma clara sustentar a acusação dos suspeitos da autoria da prática dos crimes correspondentes, posto o que
decorrerá o julgamento, agora já em sede de Tribunal.
A Constituição assegura, como princípios estruturantes do procedimento criminal (processo penal) e da realização das respetivas diligências de Investigação Criminal, a necessidade de fortes e inequívocos requisitos de
fundamentação, para efeitos de aceder legitimamente ao
domicílio de um suspeito de modo a poder encontrar aí
os indícios e as provas da autoria do crime. A mesma necessidade de fundamentação é igualmente requerida para
se proceder à intercepção e conhecimento do conteúdo
da correspondência dos suspeitos52.
Art.º 32º (Garantias de processo criminal) – n.º 1 – O processo criminal
assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso; n.º2 – Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado
no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa; n.º 3 – O arguido tem direito
a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a
lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória; n.º 4 – Toda a
instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras
entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos
fundamentais; n.º 5 - O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência
de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do
contraditório; n.º 6 – A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode
ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento; n.º 7 – O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos
da lei; n.º 8 – São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da
integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio,
na correspondência ou nas telecomunicações; nº 9 – Nenhuma causa pode ser subtraída ao
tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior; n.º 10 – Nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido
os direitos de audiência e defesa.
52
Art.º 34º (Inviolabilidade do domicilio e da correspondência) – n.º
1 – O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada
são invioláveis; n.º 2 – A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode
51
121
AF miolo corrupcao 3.indd 121
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Todos estes quesitos constitucionalmente definidos
encontram-se concretizados no quadro das leis do processo penal53, de organização dos tribunais54, do Ministério Público55 e das polícias56.
ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos
na lei; n.º 3 – Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem
o seu consentimento, salvo em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial
em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o
terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes, nos termos previstos na lei;
n.º 4 – É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas
telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em
matéria de processo criminal.
53
O Código de Processo Penal, que veremos um pouco mais em pormenor no próximo ponto, concretiza de forma detalhada os princípios
constitucionais relativos a esta matéria.
54
Art.º 202.º (Função jurisdicional) – n.º 1 - Os tribunais são os órgãos
de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo; n.º 2 - Na
administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses
legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir
os conflitos de interesses públicos e privados; n.º 3 – No exercício das suas funções os
tribunais têm direito à coadjuvação das outras autoridades; n.º 4 - A lei poderá
institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de
conflitos;
Art.º 203º (Independência) – dos tribunais – Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.
Art.º 204.º (Apreciação da inconstitucionalidade) – Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na
Constituição ou os princípios nela consignados.
Art.º 205.º (Decisões dos tribunais) – n.º 1 – As decisões dos tribunais
que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei; n.º 2 –
As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e
prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades; n.º 3 – A lei regula os termos da
execução das decisões dos tribunais relativamente a qualquer autoridade e determina as
sanções a aplicar aos responsáveis pela sua inexecução.
Art.º 206.º (Audiências dos tribunais) – As audiências dos tribunais são
públicas, salvo quando o próprio tribunal decidir o contrário, em despacho fundamentado,
para salvaguarda da dignidade das pessoas e da moral pública ou para garantir o seu
normal funcionamento.
55
Art.º 219º (Funções e estatuto) – do Ministério Público – n.º1 –
Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei
determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da
122
AF miolo corrupcao 3.indd 122
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
O
quadro legal do procedimento
criminal
de
–
o
P r o c e ss o
Código
Penal
O processo penal ou processo criminal, como é também conhecido, é, em termos simples, o procedimento
judicial no âmbito do qual se desenvolve toda a acção tendente à demonstração objectiva da ocorrência de um crime
(que só pode resultar da aplicação das técnicas e estratégias de investigação criminal legalmente admissíveis), e a
aplicação das sanções penais correspondentes. O quadro
legal definidor da vertente da demonstração da ocorrência do crime e da identificação dos seus autores encontrase definido no Código de Processo Penal. As regras para
determinação e aplicação das penas relativamente a cada
crime encontram-se previstas no Código Penal, cuja análise mais pormenorizada será feita no próximo capítulo.
lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer
a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática;
n.º 2 – O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da
lei; n.º 3 – A lei estabelece formas especiais de assessoria junto do Ministério Público
nos casos dos crimes estritamente militares; n.º 4 – Os agentes do Ministério Público são
magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados, e não podem ser transferidos,
suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei; n.º 5 – A nomeação,
colocação, transferência e promoção dos agentes do Ministério Público e o exercício da
acção disciplinar competem à Procuradoria-Geral da República.
56
Art.º 272º (Polícia) – n.º 1 – A polícia tem por funções defender a legalidade
democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos; n.º 2 – As medidas
de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente
necessário; n.º 3 – A prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do
Estado, só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito
pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; n.º 4 – A lei fixa o regime das forças de
segurança, sendo a organização de cada uma delas única para todo o território nacional.
123
AF miolo corrupcao 3.indd 123
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Neste capítulo apresentamos os artigos do Código de
Processo Penal que importa ter em consideração no âmbito do presente texto, e cuja identificação resultou de uma
pesquisa realizada sobre o quadro legal existente, acompanhados pela luz de leituras como as de Albuquerque
(2006), Calado (2009) e Ribeiro (2011).
O Código de processo penal actualmente em vigor
em Portugal deriva de uma formulação base que data de
1987, que se encontra concretamente estabelecida através
do Decreto-lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro e que de então para cá sofreu já um conjunto de 25 alterações, que
melhor se identificam após o final do texto, no quadro
bibliográfico correspondente.
Dessa primeira formulação, bem como das diversas alterações entretanto introduzidas, importa salientar alguns
elementos que permitam perceber de forma mais apropriada quais são os principais passos do percurso de um
qualquer processo criminal segundo o modelo em vigor
em Portugal.
Assim, os processos criminais têm início com a notícia
do crime ou do suposto crime, nos termos dos artigoss
241 a 247 daquele diploma, dos quais é de destacar particularmente o conteúdo dos arts. 24157, 24658 e 24759, por
Art.º 241º (Aquisição da notícia do crime) – O Ministério Público adquire notícia do crime por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal
ou mediante denúncia, nos termos dos artigos seguintes.
58
Art.º n.º 246º (Forma e conteúdo da denúncia) – n.º1 – A denúncia pode
ser feita verbalmente ou por escrito e não está sujeita a formalidades especiais; n.º2 – A
denúncia verbal é reduzida a escrito e assinada pela entidade que a receber e pelo denunciante, devidamente identificado (…); n.º3 – A denúncia contém, na medida do possível,
a indicação do maior número de elementos circunstanciais do crime (…).
59
Art.º 247º (Registo e certificado da denúncia) – n.º1 – O Ministério
Público procede ou manda proceder ao registo de todas as denúncias que lhe forem transmitidas (…).
57
124
AF miolo corrupcao 3.indd 124
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
s.e referirem às questões formais de abertura do procedimento, ou do Inquérito60, como é formalmente designada a fase de investigação criminal que se deve necessária
e obrigatoriamente seguir e cuja direção cabe ao Ministério Público61.
Seguidamente e havendo urgência na recolha de indícios e de provas da ocorrência do crime denunciado e da
identificação dos seus possíveis autores, o Código de Processo Penal prevê, nos artigoss 248 a 253, o conjunto das
medidas cautelares e de polícia, que se destinam a habilitar
legalmente as polícias a desenvolverem as diligências necessárias a acautelar as provas antes de receberem ordens
da autoridade judiciária. Destas medidas, destacam-se as
que se referem no art. 24962, relativas às providências cautelares das provas, incluindo a possibilidade de identificar
60
Art.º. 262º (Finalidade e âmbito do inquérito) – n.º1 – O inquérito
compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em
ordem á decisão sobre a acusação; n.º2 – Ressalvadas as excepções previstas neste Código,
a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito.
61
Art.º 263º (Direcção do inquérito) – n.º1 – A direcção do inquérito cabe
ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal; - n.º2 – Para efeito do
disposto no número anterior, os órgãos de polícia criminal actuam sob a directa orientação
do Ministério Público e na sua dependência funcional.
62
Art.º 249º (Providências cautelares quanto aos meios de prova) –
n.º1 – Compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares
necessários e urgentes para assegurar os meios de prova; n.º2 – Compete-lhes, nomeadamente, nos termos do número anterior: a) Proceder a exames dos vestígios do crime (…),
assegurando a manutenção do estado das coisas e dos lugares; b) Colher informações das
pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição; c) Tomar
medidas cautelares relativamente a objectos susceptíveis de apreensão; n.º3 – Mesmo após
a intervenção da autoridade judiciária, cabe aos órgãos de polícia criminal assegurar novos
meios de prova de que tiverem conhecimento, sem prejuízo de deverem dar deles notícia
imediata àquela autoridade.
125
AF miolo corrupcao 3.indd 125
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
e contactar suspeitos da prática do crime, a realização de
revistas e buscas e a apreensão de correspondência, nos
termos dos arts. 250, 251 e 252, respectivamente. A realização das medidas cautelares de prova deve dar sempre
origem a um relatório que processualmente as documente, nos termos do art. 25363. Se no decurso destas acções
cautelares houver lugar à detenção de suspeitos, sobretudo em situações de flagrante delito64, devem seguir-se as
indicações dos arts. 254 a 261.
Relativamente aos meios de obtenção de prova, o Código de Processo Penal prevê a prova testemunhal, que,
nos termos dos artigoss 128 a 139, deve ser recolhida junto
das vítimas e das testemunhas dos crimes. Prevê também
a tomada de declarações aos suspeitos, que no processo
se denominam arguidos, nos termos dos artigoss 5765 a 67
e 140 a 146. Todavia e contrariamente às vítimas e testemunhas, os arguidos têm, de entre outros, o direito a não
prestar esclarecimentos, tal como decorre na alínea c) do
n.º1 do art. 6166.
63
Art.º253º (Relatório) – n.º1 – Os órgãos de polícia criminal que procederem
a diligências referidas nos artigos anteriores elaboram um relatório onde mencionam, de
forma resumida, as investigações levadas a cabo, os resultados das mesmas, a descrição
dos factos apurados e as provas recolhidas; n.º 2 – O relatório é remetido ao Ministério
Público ou ao juiz de instrução, conforme os casos.
64
Art.º 256º (Flagrante delito) – n.º1 – É flagrante delito todo o crime que se
está a cometendo ou se acabou de cometer; n.º2 – Reputa-se também flagrante delito o caso
em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com
objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou de nele participar;
n.º 3 – Em caso de crime permanente, o estado de flagrante delito só persiste enquanto
se mantiverem sinais que mostrem claramente que o crime está a ser cometido e o agente
está nele a participar.
65
Art.º 57º (Qualidade de arguido) – n.º1 – Assume a qualidade de arguido
todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo
penal; n.º2 – A qualidade de arguido conserva-se durante todo o decurso do processo.
66
Art.º 61º (Direitos e deveres processuais) – n.º1 – O arguido goza, em
especial, em qualquer fase do processo e, salvas as excepções da lei, dos direitos de: c)
Não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem
imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar.
126
AF miolo corrupcao 3.indd 126
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
O Código de Processo Penal prevê ainda a possibilidade da prova resultar de reconhecimentos realizados sobre
pessoas suspeitas da prática do crime, nos termos dos artigos 147 a 149, da reconstituição dos factos, nos termos
do art. 150, de resultar de perícias, nos termos dos artigos
151 a 163, e também de resultar de documentos, na chamada prova documental, nos termos dos artigos 164 a 170.
Relativamente aos meios de obtenção da prova, está
prevista a possibilidade de serem realizados exames a pessoas e a locais, nos termos dos artigos 171 a 173, a realização de revistas e buscas, nos termos doa artigos 174 a
177, de apreensões de objectos, de documentos e de correspondência, nos termos dos artigos 178 a 186, e ainda
a realização de escutas telefónicas, nos termos dos artigos 187 a 190.
O Código prevê ainda a possibilidade, durante o inquérito, de aplicação aos arguidos de medidas de coacção e
de garantia patrimonial, as quais, nos termos do art. 204,
se destinam a evitar a fuga do suspeito ou a acautelar esse
risco, a evitar o perigo de perturbação do decurso do inquérito e também, em função da sua personalidade, para
evitar a perturbação da ordem e tranquilidade públicas ou
a continuação da actividade criminosa. De forma gradual,
as medidas de coacção compreendem o termo de identidade e residência (art. 196), a caução (art. 197), a obrigação de apresentação periódica (art. 198), a suspensão do
exercício de funções, de profissão e de direitos (art. 199),
a proibição de permanência, de ausência e de contactos
(art. 200), a obrigação de permanência na habitação (art.
201) e a prisão preventiva (art. 202).
No final do inquérito e em face dos indícios recolhidos, o Ministério Público procede ao encerramento do
inquérito, nos termos dos artigos 276 a 285. Determinará
o arquivamento se, após a realização de todas as diligên127
AF miolo corrupcao 3.indd 127
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
cias de investigação criminal admissíveis, não tiver sido
possível a obtenção de indícios suficientes da verificação
de crime ou de quem foram os seus autores, conforme
refere o art. 277. Ao contrário, se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de ter ocorrido
o crime e de terem sido identificados os suspeitos da sua
autoria, o Ministério Público deduz contra eles a correspondente acusação, nos termos do art. 283.
Depois de notificado do despacho de acusação e do
seu teor, como refere o já mencionado art. 283, o arguido, conjuntamente com o apoio do seu defensor, tem a
faculdade de requerer a abertura de instrução. A instrução
é por isso uma fase facultativa e, nos termos do art. 286,
visa a comprovação judicial do suporte da acusação. Na
instrução, o processo passa a ser dirigido por um juiz de
instrução, que pode ser assistido pelos órgãos de polícia
criminal, nos termos do art. 288. Nesta fase são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei, nos
termos do art. 292. A instrução culmina com o debate
instrutório que, nos termos do art. 298, visa avaliar, através de um debate oral e contraditório, se as provas recolhidas no inquérito e na instrução continuam a justificar
a submissão do arguido a julgamento.
O juiz procede ao encerramento da instrução, através
de despacho de pronúncia, se considerar que o arguido
deve ser submetido a julgamento, ou de não pronúncia,
em caso contrário, nos termos dos arts. 306 a 310.
Seguidamente, nos casos de o inquérito ter culminado
com um despacho de acusação ou de a instrução ter terminado com um despacho de pronúncia, o processo segue
para a fase de julgamento, que decorrerá em tribunal, nos
termos dos arts. 311 a 380 do Código de Processo Penal.
O julgamento decorre em sessões de audiência, em regra
públicas, nos termos do art. 321. As sessões de audiência
128
AF miolo corrupcao 3.indd 128
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
de julgamento destinam-se à produção das provas que o
tribunal considere necessárias tendo a vista a descoberta da
verdade e a boa decisão da causa, nos termos do art. 340.
No final do julgamento e em função da avaliação e
valoração que atribua às provas apresentadas na audiência de julgamento, o tribunal determina a condenação ou
a absolvição do arguido, conforme considere que ele é o
autor do crime, ou ao contrário, que não é, nos termos
dos arts. 375 e 376.
O Código de Processo Penal prevê ainda a possibilidade de as partes recorrerem das decisões do tribunal resultantes do julgamento. Os recursos encontram-se previstos
nos arts. 399 a 466. Os recursos podem ser apresentados
aos Tribunais de Relação, nos termos dos arts. 427 a 431,
ou ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos arts.
432 a 436, fazendo-se esta segmentação sobretudo a partir
do modelo de tribunal que tenha sido utilizado na 1ª instância, e que deriva sobretudo da moldura penal que em
abstrato possa ser aplicada ao arguido pelo crime de cuja
prática é julgado, nos termos dos arts. 10 a 16.
Este é em traços muito gerais o percurso a que deve
obedecer um qualquer processo criminal e que, apesar das
diversas e pontuais alterações que têm vindo a ser inseridas no Código do Processo Penal têm mantido. Todavia,
de tais alterações, todas identificadas no quadro constante
da bibliografia consultada, importará que se deixe nota de
duas. A da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto que, para lá
de enquadrar o crime de corrupção no conceito de criminalidade altamente organizada67, passou, de forma inédita
67
Art.º 1º (Definições legais) – Para efeitos do disposto no presente Código
considera-se: m) “Criminalidade altamente organizada” as condutas que integram crimes
de associação criminosa, tráfico de pessoas, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou
de substâncias psicotrópicas, corrupção, tráfico de influência ou branqueamento.
129
AF miolo corrupcao 3.indd 129
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
em Portugal, a considerar que o processo criminal na fase
de inquérito é tendencialmente público68, apesar de, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, poder
ser secreto, conforme artigos 86 a 90 do referido diploma.
Finalmente, uma outra alteração que importa salientar,
prende-se com o reconhecimento, conferido pela Lei n.º
20/2013, de 21 de fevereiro, da necessidade de os interrogatórios dos arguidos durante a fase de inquérito terem
em regra de passar a ser registados em vídeo ou em áudio, em vez de darem origem ao correspondente auto de
interrogatório de arguido, conforme nova redação conferida aos arts. 141 e 144 do Código de Processo Penal69.
68
De acordo com os novos elementos introduzidos pela lei n.º 48/2007,
de 29 de Agosto, o artigo 86 passa a ter a seguinte reação - Art.º 86º (Publicidade do processo e segredo de justiça) – n.º1 – O Processo penal é, sob pena
de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei; n.º2 – O juiz de instrução
pode, mediante requerimento do arguido (…) e ouvido o Ministério Público, determinar,
por despacho irrecorrível, a sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo
de justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou
participantes processuais; - n.º3 – Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar
a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa
decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução.
69
De acordo com os elementos inseridos pela lei n.º 20/2013, de 21 de
Fevereiro, os artigos 141 e 144 passam a ter as seguintes alterações - Art.º
141º (Primeiro interrogatório de arguido detido) – n.º7 – O interrogatório
do arguido é efetuado em regra através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser
utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro
meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquelas, ou a documentação através
de auto, quando aqueles meios não estiverem disponíveis. – Art.º 144º (Outros interrogatórios) – n.º2 – No inquérito, os interrogatórios (de arguido) podem ser feitos por
órgão de polícia criminal no qual o Ministério Público tenha delegado a sua realização,
obedecendo, em tudo o que for aplicável, às disposições deste capítulo.
130
AF miolo corrupcao 3.indd 130
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Quadro 2. As fases do percurso dos procedimentos
criminais em Portugal
A finalizar importa referir que o estudo que realizámos
em 2008 (Maia, 2008) permitiu a recolha de elementos
objetivos que apontam para o facto de a mediatização de
alegados casos de corrupção acontece em regra quando
131
AF miolo corrupcao 3.indd 131
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
os processo estão ainda numa fase inicial do inquérito, ou
seja quando ainda não se encontram devidamente esclarecidos, quando ainda não existem elementos formais que
apontem no sentido de o crime ter ocorrido nem de suspeitos se encontrarem já indiciados pela sua autoria, mas
que, muito por indução do próprio discurso mediático,
contribuem, por vezes de forma muito evidente, para o
denominado julgamento da praça pública, uma vez que o
sentido do discurso tende a apontar para a suspeição, por
vezes forte, sobre essas pessoas, induzindo a construção de
um juízo sobre a sua culpabilidade, que, não sendo de excluir, muitas vezes não se dá como provada judicialmente.
A verdade é que os tempos da justiça são necessariamente distintos do da vida das sociedades e, depois do mediatismo dos casos, da edificação de uma certa perspectiva
sobre as pessoas neles envolvidos, o discurso mediático
parte para outro objecto e, naturalmente, o processo criminal continua o seu percurso, dando os passos definidos
no modelo descrito, com um desfecho natural e próprio,
muito vezes num tempo muito desfasado do que é previamente imposto pelo mediatismo. Todavia, o referido
estudo também apontou, de alguma forma, neste sentido,
o desfecho do processo criminal já não tem o mesmo potencial de noticiabilidade (o valor-notícia) que teve no início. O caso já não é novo, por assim dizer. A atenção que
vai merecer, se a merecer, tende a ser bem menor do que
a inicial. Assim, a imagem que vai prevalecer na opinião
pública é a primeira. Por isso muitas vezes ouvem-se desabafos que insinuam por exemplo um esquecimento ou
desaparecimento deliberado dos procedimentos criminais,
facto que na realidade não sucede. Todos os procedimentos criminais têm o seu percurso natural, têm também as
suas vicissitudes, muitas delas resultantes das estratégias
defensivas, que em si mesmas não naturais e que resultam
132
AF miolo corrupcao 3.indd 132
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
do cumprimento das regras próprias de realização das tarefas de investigação criminal e das demais fases processuais que visam a produção da verdade judiciária, numa
demonstração evidente e porventura insuperável de que
o tempo do mediatismo, condicionado pela urgência e
conveniência de divulgar o que é novo e de informar em
tempo útil, é claramente distinto do tempo dos operadores da justiça. Em si mesma, esta distinção não pode ser
considerada nem boa nem má. Ela resulta, naturalmente,
das diferentes lógicas de funcionamento destas duas realidades, a comunicação social e o seu dever de informar
a sociedade, e os mecanismos judiciais e a sua função de
procurar a verdade dos factos e, nos casos objectivamente suportados, aplicar as sanções aos autores dos crimes.
Importa porém que os profissionais da comunicação social tenham consciência da sua função, da importância de
informarem de forma isenta e objectiva e de, relativamente aos alegados casos de corrupção, evitarem a produção
e divulgação de um discurso que, por vezes, pela forma
como é edificado, se consubstancia num contributo para
um julgamento e condenação públicos dos nomes e das
pessoas supostamente implicadas nos factos sob suspeita
e em investigação, uma vez que, por estarem judicialmente
ainda na fase de inquérito, não é objetivamente possível
fazer deles um juízo e uma leitura de tal forma consistentes que permitam sustentar o saber fazer austero que sempre
deve caracterizar o jornalismo informativo que se deseja
comprometido com a verdade e com a formação de uma
opinião pública esclarecida. Ao contrário, as situações
noticiadas à margem deste compromisso honesto com a
verdade e a realidade dos factos traduzem-se ou podem
traduzir-se em processos irreversíveis de complicada gestão de rótulos, que tendem a ficar associados às pessoas
envolvidas e, no caso de figuras políticas, a alastrar a todo
133
AF miolo corrupcao 3.indd 133
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
o grupo social a que pertencem. Não é por acaso que é
frequente ouvirmos a afirmação que os políticos são todos corruptos e, bem sabemos, que ela é por certo errada.
Os
crimes do
Código
penal e outros
p r e v is t o s e m l e g is l a ç ã o a v u l s a
O Código Penal é o documento legal onde se definem
os delitos considerados mais gravosos, cuja forma de sanção social reside precisamente na aplicação de penas, na
maior parte dos casos de penas de prisão.
Neste capítulo apresentamos o conjunto de crimes que
o Código Penal Português considera como os crimes praticados contra o Estado por funcionários no exercício de
funções públicas.
O Código Penal actualmente em vigor em Portugal
tem origem no Decreto-lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, com as sucessivas alterações que entretanto têm vindo
a ser introduzidas e que melhor se encontram identificadas no correspondente quadro de legislação consultada.
O processo de identificação deste quadro legal bem
como da legislação avulsa que melhor define as formas
mais específicas do crime de corrupção e demais criminalidade com ele relacionado, como sejam a corrupção política, que veremos mais em pormenor no ponto seguinte,
resultou de uma pesquisa e análise do quadro legal penal
efectuada essencialmente a partir das leituras de Morgado e Vegar (2003), Gonçalves (2007), Santos e all. (2009),
Santos (2009, 2009 a), Melo (2009), Albuquerque (2010),
Cunha (2011), Lopes (2011) e Nunes (2012).
Mostramos primeiro, no ponto seguinte, o quadro de
crimes previstos no Código Penal bem como as principais
alterações que lhe foram introduzidas. Depois, no pon134
AF miolo corrupcao 3.indd 134
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
to subsequente, apresentamos os principais crimes mais
específicos da corrupção, que, como dissemos, se encontram definidos em legislação avulsa, a qual se encontra
também identificada no correspondente quadro de legislação consultada.
Os
c r i m e s p r e v is t o s
no
Código Penal
O quadro de crimes definido no último capítulo do
Código Penal, que se identifica como os Crimes contra o
Estado praticados no exercício de funções públicas, pode
considerar-se, conjuntamente com os que têm vindo a ser
definidos em legislação avulsa – que veremos no ponto
seguinte – como os que apresentam uma correspondência
mais aproximada ao conceito social de corrupção, como
vimos anteriormente.
Relativamente a esse conjunto concreto de crimes, cuja
redacção da lei consta do Anexo A deste texto, salientamos a corrupção passiva para acto ilícito (art. 372), a corrupção passiva para acto lícito (art. 373) e a corrupção
activa (art. 374). Relativamente a estes crimes em concreto, importa clarificar, em traços necessariamente gerais e
simples, que a lei faz questão de distinguir as práticas de
corrupção que se destinam a garantir70 uma actuação do
funcionário contrária às suas funções (a corrupção par
70
De acordo com Morgado e Vegar, “numa lógica de corrupção, o poder político ou administrativo dos titulares de cargos públicos transforma-se numa mercadoria,
num objecto de negócio, orientado quase exclusivamente para objectivos criminosos de
enriquecimento ou de poder, individual ou de um grupo. Gradualmente, vai-se instalando
um desvio dos fins dos poderes públicos para fins individuais ilegítimos.” (Morgado e
Vegar, 2003: p. 57).
135
AF miolo corrupcao 3.indd 135
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
acto ilícito) daquelas que, apesar de ilícitas, não alteram o
sentido71 das funções exercidas pelo funcionário corrompido (a corrupção para acto lícito).
Deste quadro de crimes do Código Penal importará ainda destacar o peculato (art. 375) e o peculato de uso (art.
376), que correspondem às situações de apropriação ou
utilização abusiva, em benefício pessoal, pelo funcionário
ou por terceiras pessoas a ele ligadas, de bens, patrimoniais
ou não patrimoniais, pertencentes ao Estado ou que estejam à guarda do funcionário em razão das suas funções.
Importa destacar ainda o crime de participação económica em negócio (art. 377), que corresponde a situações
em que as funções públicas são deliberadamente exercidas
de modo a beneficiar negócios de terceiras pessoas ligadas
ao funcionário, lesando os interesses públicos.
Deste capítulo do Código Penal é ainda importante
destacar o conceito de funcionário, que se define no art.
386, e que de forma muito simples corresponde a toda a
pessoa que exerça funções em entidade de natureza pública ou que persiga fins públicos – o funcionário civil e o agente
administrativo, ainda que a título provisório ou temporário, remunerado ou não remunerado e exercido de forma voluntária
ou não voluntária.
A corrupção para acto lícito pode ser associada às situações em que
os utentes dos serviços públicos oferecem gratificações aos funcionários
depois de eles exercerem adequadamente as suas funções.
71
136
AF miolo corrupcao 3.indd 136
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
O quadro seguinte identifica os principais diplomas
posteriores ao Código Penal (Decreto-lei n.º400/82, de
23 de Setembro) que apresentam alterações com interesse para os propósitos deste texto.
Quadro 3. Código Penal e posteriores alterações com interesse
Diploma
Súmula
Decreto-lei n.º 400/82,
de 23 de Setembro
Define os crimes de corrupção e demais
ilícitos penais praticados por funcionários
no exercício de funções públicas (arts
372 a 386)
Lei n.º 108/2001,
de 28 de Novembro
Estabelece o quadro de crimes praticados
por funcionários em organizações
estrangeiras e o crime de corrupção no
sector privado – decorre da aplicação da
convenção anti-corrupção da OCDE
Lei n.º 100/2003,
de 15 de Novembro
Altera o Código de Justiça Miliar, criando
os crimes de corrupção no âmbito da
infidelidade militar
Lei n.º 11/2004,
de 27 de Março
Cria o crime de branqueamento de
capitais para os proveitos dos crimes
económicos, incluindo a corrupção,
introduzindo alterações ao DL nº 325/95,
de 2 de Dezembro
Lei n.º 59/2007,
de 04 de Setembro
De entre outras componentes, altera
o crime de violação de segredo por
funcionário e actualiza o conceito de
funcionário
Lei n.º 32/2010,
de 02 de Setembro
Cria o crime de recebimento indevido
de vantagem, em complemento ao crime
de corrupção
137
AF miolo corrupcao 3.indd 137
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Finalmente, ainda em relação ao Código Penal, importa
referir o sentido do princípio da legalidade, expresso logo
no artigo primeiro, que concorda naturalmente com os
princípios constitucionais e que refere claramente que a
aplicação de uma pena apenas pode decorrer da existência
prévia de uma lei que a preveja e que, de forma abstrata,
declare como crime a atuação em causa, não sendo permitida a analogia para enquadrar penalmente um qualquer
quadro factual ocorrido72.
Os
c r i m e s p r e v is t o s e m l e g is l a ç ã o
av u l s a r e l at i va m e n t e
à corrupção política
Para lá dos crimes previstos no Código Penal, as formas
mais específicas da corrupção e de outros crimes conexos
encontram-se previstas em legislação avulsa, cujos principais diplomas e contornos procuramos apresentar agora.
Antes de mais porém apresentamos as várias convenções internacionais relativas à corrupção que foram ratificadas e transpostas para o ordenamento jurídico português. Grande parte destas medidas estão consubstanciadas
precisamente nos diversos diplomas legais que apresentamos, e referem-se à definição legal de algumas formas
específicas deste tipo de criminalidade, bem como a medidas tendentes a introduzir melhorias tanto na investigação como na prevenção destes delitos.
72
Artigo 1º (Princípio da legalidade) – n.º1 – Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua
prática; - n.º 2 – A medida de segurança só pode ser aplicada a estados de perigosidade
desde que os respectivos pressupostos estejam ficados em lei anterior ao seu preenchimento;
n.º 3 – Não é permitida a analogia para qualificar o facto como crime, definir um estado
de perigosidade, ou determinar a pena ou medida de segurança que lhes corresponde.
138
AF miolo corrupcao 3.indd 138
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Relativamente às convenções em concreto, que se encontram elencadas no quadro seguinte, importa referir a
convenção da OCDE contra a corrupção de agentes públicos estrageiros nas transacções comerciais internacionais, que foi foi assinada em Paris em Dezembro de 1997,
e que Portugal transpôs para o ordenamento jurídico nacional através da Resolução da Assembleia da República
n.º 32/2000, de 31 de Março, bem como através do Decreto do Presidente da República n.º 19/2000, também
de 31 de Março. Esta convenção tem sido a base de criação de legislação relativa a esta vertente da corrupção, que
melhor se identifica adiante.
Depois, em Abril de 1999, foi assinada em Estrasburgo a convenção penal sobre corrupção do Conselho da
Europa, que foi transposta para o ordenamento jurídico
português através da Resolução da Assembleia de República n.º 68/2001, de 26 de Outubro e pelo Decreto do
Presidente da República n.º 56/2001, da mesma data. O
controlo sobre a aplicação, pelos Estados, das medidas
previstas nesta convenção, também relacionadas com a
necessidade de repressão, através da penalização e prevenção de práticas delituosas no âmbito do comércio internacional, é feito pelo GRECO – Grupo de Estados
Contra a Corrupção – entidade do Conselho da Europa.
Em complemento, refira-se que as três avaliações realizadas por esta entidade a Portugal têm revelado, através dos
correspondentes relatórios73, que, apesar de algumas recomendações específicas nesse sentido, o nosso país tem
vindo a denotar um esforço no sentido de adoptar estratégias e criar mecanismos legais eficazes tanto na preven-
73
Conforme relatórios do GRECO de avaliação a Portugal, de 2003,
2005, 2006, 2007, 2008, 2010, 2012 e 2013.
139
AF miolo corrupcao 3.indd 139
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
ção como no controlo e penalização relativamente à problemática da corrupção e demais criminalidade conexa.
A Convenção Contra a Corrupção da Assembleia Geral da ONU, de Outubro de 2003, que foi transposta para
o ordenamento jurídico português através da Resolução
da Assembleia da República n.º 47/2007 e pelo Decreto do Presidente da República n.º 97/2007, ambos de 21
de Setembro.
Para lá destas convenções, importa ainda acrescentar
que outros documentos, produzidos por outras organizações internacionais de que Portugal faz parte, têm sido
igualmente importantes na definição do quadro de medidas legais adotadas por Portugal. Falamos concretamente
de documentos como o Código internacional das Nações
Unidas de conduta para funcionários em funções públicas,
de janeiro de 1997, da convenção de luta contra a corrupção relativa a funcionários das instituições da Comunidade
Europeia ou dos Estados-Membros da União Europeia,
de Maio de 1997, e também da ação comum 98/742/JAI
das Comunidades Europeias, de Dezembro de 1998.
Uma das medidas que resultou destas convenções consubstanciou-se na produção, em Julho de 2002, na Carta
Ética da Administração Pública, que se encontra publicada em anexo no Boletim dos Registos e do Notariado, nº7,
de Julho de 2002, que define os dez princípios éticos da
Administração Pública74.
74
De acordo com a Carta Ética da Administração Pública, os dez princípios éticos da Administração Pública são: o Princípio do Serviço Público; o
Princípio da Legalidade; o Princípio da Justiça e da Imparcialidade; o Princípio da
Igualdade; o Princípio da Proporcionalidade; o Princípio da Colaboração e da Boa-Fé;
o Princípio da Informação e da Qualidade; o Princípio da Lealdade; o Princípio da
Integridade; e o Princípio da Competência e Responsabilidade.
140
AF miolo corrupcao 3.indd 140
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Quadro 4. Convenções e outros documentos internacionais
sobre corrupção
Código internacional das Nações Unidas de conduta para funcionários
em funções públicas, da Assembleia Geral da ONU, de Janeiro
de 1997;
Convenção relativa à luta contra a corrupção em que estejam implicados
funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados-Membros
da União europeia, assinada em Bruxelas a 26 de Maio de 1997;
Convenção OCDE contra a corrupção, assinada em Paris em 17
de Dezembro de 1997;
Acção Comum 98/742/JAI das Comunidades Europeias, relativa
ao crime de corrupção no sector privado
Convenção Penal Anti-Corrupção do Conselho da Europa, assinada
em Estrasburgo em 27 de Janeiro de 1999;
Convenção ONU contra a Corrupção, assinada na cidade de Mérida,
no México, em 31 de Outubro de 2003;
Quanto aos crimes praticados por titulares de cargos
políticos, cujo quadro legal se apresenta no quadro seguinte, verificamos que se encontram definidos já desde 1987,
a partir da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, que entretanto
já sofreu algumas alterações muito pontuais.
De acordo com este regime legal, verificamos, como
define expressamente o art. 3, que a lei considera que são
cargos políticos: o de Presidente da República, o de Presidente da Assembleia da República, o de deputado à Assembleia da República, o de membro do Governo, o de
deputado ao Parlamento Europeu, o de Ministro ou representante da República para as Regiões Autónomas dos
Açores e da Madeira, o de membro de órgão de governo
141
AF miolo corrupcao 3.indd 141
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
de região autónoma, e o de membro de órgão representativo de autarquia local.
O Anexo B apresenta os principais crimes que a lei
considera poderem ser praticados por titulares de cargos
políticos.
Quadro 5. Legislação avulsa relativa aos crimes praticados
por titulares de cargos políticos
Diploma
Súmula
Lei n.º 34/87,
de 16 de Julho
Define os crimes praticados por titulares
de cargos políticos
Lei n.º 108/2001,
de 28 de Novembro
Estabelece o quadro de crimes praticados por
funcionários em organizações estrangeiras
e a corrupção no sector privado – decorre
da convenção da OCDE
Lei n.º 30/2008,
de 10 de Julho
Estende a responsabilidade dos crimes
políticos aos Representantes da República nas
Regiões Autónomas dos Açores e Madeira
Lei 41/2010,
de 3 de Setembro
Altera o regime dos crimes praticados p
or titulares de cargos políticos
Lei 4/2011,
de 16 de Fevereiro
Introduz algumas alterações no regime
das penas
Importa referir também a existência de um conjunto
de diplomas legais que prevêem a punibilidade das práticas de corrupção no âmbito das relações económicas e
no sector privado. Estas leis, como mostra o quadro que
se segue, derivam fundamentalmente do conteúdo da
Convenção OCDE contra a corrupção de agentes públicos estrangeiros nas transações comercias internacionais.
142
AF miolo corrupcao 3.indd 142
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Quadro 6. Legislação avulsa relativa à corrupção na
economia e no sector privado
Diploma
Súmula
DL n.º 28/84,
de 20 de Janeiro
Define os crimes contra a economia e a saúde
pública, nomeadamente a fraude na obtenção
ou desvio de subsídio
Lei n.º 13/2001,
de 4 de Junho
Transpõe para o ordenamento jurídico
português a Convenção OCDE contra a
Corrupção de agentes públicos estrangeiros
nas transacções comerciais internacionais
Lei n.º 108/2001,
de 28 de Novembro
Estabelece o quadro de crimes praticados por
funcionários em organizações estrangeiras e
a corrupção no sector privado – decorre da
convenção da OCDE
Lei n.º 20/2008,
de 21 de Abril
Cria o crime de corrupção no comércio
internacional privado
O quadro seguinte identifica e sumariza a demais legislação avulsa relativa a outras formas diversas de tipificação do crime de corrupção.
Quadro 7. Legislação avulsa relativa a medidas
de investigação
Diploma
Súmula
DL n.º 21/80,
de 29 de Fevereiro
Criação do Gabinete de Perícia FinanceiroContabilística (na sequência do DL 364/77,
de 2 de Setembro) (DL nº21/80, de 29 de
Fevereiro)
DL n.º 295-A/90,
de 21 de Setembro
Cria, na estrutura orgânica da Polícia
Judiciária, a Direcção Central de Combate
à Corrupção, Fraudes e Infrações
Económicas e Financeiras
143
AF miolo corrupcao 3.indd 143
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
DL nº 390/91,
de 10 de outubro
Estabelece o crime de corrupção no
fenómeno desportivo
DL nº 196/93,
de 27 de maio
Define o regime de incompatibilidades
do pessoal de livre designação
Lei nº 64/93,
de 26 de agosto
Define o regime de incompatibilidades
dos titulares de altos cargos públicos
DL nº 413/93,
de 23 de dezembro
Define o regime de incompatibilidades do
pessoal de livre designação, introduzindo
alterações ao Decreto-lei n.º 196/93, de 27
de Maio
Lei n.º 36/94,
de 29 de Setembro
Estabelece medidas de combate e
prevenção à corrupção, nomeadamente
a possibilidade de a Polícia Judiciária
desenvolver averiguações preventivas
no âmbito da criminalidade económica
DL nº 325/95,
de 2 de Dezembro
Estabelece medidas de repressão
ao Branqueamento de Capitais
Lei nº 101/2001,
de 25 de Agosto
Define o regime jurídico das acções
encobertas para fins de prevenção e
investigação criminal, nomeadamente para
a investigação dos crimes de corrupção,
peculato, participação económica em
negócio e tráfico de influências
Lei nº 5/2002,
de 11 de Janeiro
Introduz medidas especiais de combate
à criminalidade organizada e económica
e financeira, nomeadamente no acesso a
informações bancárias
DL n.º 304/2002,
de 13 de Dezembro
Criação da UIF (Unidade de Informação
Financeira) na estrutura orgânica da PJ
Lei nº 17/2006,
de 23 de maio
Lei-quadro da política criminal, que
determina, de entre outras medidas, a
inclusão, nos relatórios evolutivos da
criminalidade processada, de um capítulo
específico acerca da corrupção e da
criminalidade económica
144
AF miolo corrupcao 3.indd 144
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Lei nº 50/2007,
de 31 de Agosto
Atualiza o quadro de crimes de corrupção
no fenómeno desportivo, inserindo
alterações ao Decreto-lei n.º 390/91,
de 10 de Outubro
Lei nº 19/2008,
de 21 de Abril
Aprova medidas de combate à corrupção
através da alteração da Lei nº 5/2002,
de 11 de Janeiro
Lei nº 25/2008,
de 5 de Junho
Transpõe para a ordem jurídica nacional
directivas e mecanismos preventivos no
âmbito da directiva europeia 2005/60/CE,
relativa ao crime de branqueamento
de capitais e financiamento do terrorismo
Lei n.º 49/2008,
de 27 de Agosto
Lei de organização da Investigação
Criminal. Estabelece que a Polícia
Judiciária tem competência reservada
para a investigação da criminalidade mais
complexa, nomeadamente a corrupção
Lei n.º 94/2009,
de 1 de Setembro
Introduz alterações no quadro de medidas
de controlo do sigilo bancário nos casos
de enriquecimentos injustificado
Lei nº 36/2010,
de 2 de Setembro
Cria, no Banco de Portugal, uma base de dados
de contas bancárias existentes em Portugal
Lei n.º 37/2010,
de 2 de Setembro
Introduz alterações das regras de sigilo
bancário
Lei n.º 42/2010,
de 3 de Setembro
Regula a aplicação de medidas para
protecção de testemunhas em processo
penal, alterando a Lei n.º 93/99, de 14
de Julho
Resolução do Conselho
de Ministros nº
71/2010,
de 10 de Setembro
Cria um grupo de trabalho para estudar
e propor medidas de reforço dos meios
de coordenação na repressão e prevenção
da corrupção – na sequência do relatório
da comissão eventual de acompanhamento
político do fenómeno da corrupção
Lei n.º 45/2011,
de 24 de Junho
Criação do Gabinete de Recuperação
de Ativos
145
AF miolo corrupcao 3.indd 145
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
As
m e d i d a s l e g is l a t i v a s d e c a r á c t e r
preventivo das práticas
de corrupção
Relativamente às principais medidas de carácter preventivo sobre o problema, destacamos os diplomas relativos ao controlo do financiamento dos partidos políticos
e das campanhas eleitorais, que se identificam no quadro
que se segue.
Quadro 8. Financiamento dos partidos políticos
e das campanhas eleitorais
Diploma n.º
Súmula
Lei n.º 97/88,
de 17 de Agosto
Regula a afixação e inscrição de mensagens
de publicidade e propaganda
Lei n.º 72/93,
de 30 de Novembro
Regime jurídico do financiamento dos
partidos políticos e das campanhas
eleitorais
Lei n.º 27/95,
de 18 de Agosto
Introduz pequenas alterações ao regime
jurídico do financiamento dos partidos
políticos e das campanhas eleitorais
Lei n.º 56/98,
de 18 de Agosto
Revoga as Leis n.ºs 72/93, de 30 de
Novembro e 56/98, de 18 de Agosto,
criando um novo Regime jurídico do
financiamento dos partidos políticos
e das campanhas eleitorais
Lei n.º 23/2000,
de 23 de Agosto
Introduz pequenas alterações ao regime
jurídico do financiamento dos partidos
políticos e das campanhas eleitorais
Lei Orgânica n.º 1/2001,
de 14 de Agosto
Introduz pequenas alterações ao regime
jurídico do financiamento dos partidos
políticos e das campanhas eleitorais
146
AF miolo corrupcao 3.indd 146
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Lei n.º 19/2003,
de 20 de Junho
Introduz pequenas alterações ao regime
jurídico do financiamento dos partidos
políticos e das campanhas eleitorais
Decreto-lei n.º
287/2003,
de 12 de Novembro
Introduz alterações ao regime de tributação
do património imóvel (com referências ao
financiamento dos partidos políticos)
Declaração de
retificação n.º 4/2004,
de 9 de Janeiro
Introduz algumas correções de gralhas ao
texto do Decreto-lei n.º 287/2003, de 12
de Novembro
Lei n.º 64-A/2008,
de 31 de Dezembro
Lei do Orçamento de Estado – Introduz
pequenas alterações ao regime jurídico
de financiamento dos partidos políticos
Lei n.º 55/2010,
de 24 de Dezembro
Reduz as subvenções públicas e os limites
máximos dos gastos nas campanhas
eleitorais
Lei n.º 1/2013,
de 3 de Janeiro
Nova redução na subvenção e no limite
das despesas nas campanhas eleitorais,
limitando o montante da subvenção que
pode ser canalizado para as despesas com
outdoors
Regulamento do
Tribunal Constitucional
n.º 16/2013, de 10 de
Janeiro
Normalização de procedimentos relativos
a contas de partidos políticos e de
campanhas eleitorais
147
AF miolo corrupcao 3.indd 147
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Uma outra vertente importante ao nível das medidas
preventivas, prende-se com as incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos
públicos, cujos diplomas normativos se deixam identificados no quadro que se segue.
Quadro 9. Regime jurídico de incompatibilidade
e impedimentos dos titulares de cargos políticos
e altos cargos públicos
Identificação
Súmula
Lei n.º 9/90,
de 1 de Março
Regime jurídico das incompatibilidades
de titulares de cargos políticos e altos
cargos públicos
Lei n.º 56/90,
de 5 de Setembro
Introduz pequenas alterações ao regime
jurídico das incompatibilidades de titulares
de cargos políticos e altos cargos públicos
Lei n.º 64/93,
de 26 de Agosto
Novo regime jurídico das
incompatibilidades e impedimentos de
titulares de cargos políticos e de altos
cargos públicos, revogando as Leis n.ºs
9/90, de 1 de Março e 56/90, de 5 de
Setembro
Lei n.º 39-B/94,
de 27 de Dezembro
Lei do Orçamento de Estado, que introduz
pequenas alterações ao regime jurídico
das incompatibilidades e impedimentos
de titulares de cargos políticos e de altos
cargos públicos
Declaração de
retificação n.º 2/95,
de 15 de Abril
Correcção de gralhas ao texto da Lei
n.º 39-B/94, de 27 de Dezembro
Lei n.º 28/95,
de 18 de Agosto
Introduz pequenas alterações ao
regime jurídico das incompatibilidades
e impedimentos de titulares de cargos
políticos e altos cargos públicos
148
AF miolo corrupcao 3.indd 148
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Lei n.º 12/96,
de 18 de Abril
Procede ao alargamento do regime
de incompatibilidades
Lei n.º 42/96
de 31 de Agosto
Introduz pequenas alterações ao
regime jurídico das incompatibilidades
e impedimentos de titulares de cargos
políticos e de altos cargos públicos
Lei n.º 12/98, d
e 24 de Fevereiro
Regime de incompatibilidades
e impedimentos dos autarcas
Decreto-lei n.º 71/2007,
de 27 de Março
Estatuto do gestor público, introduzindo
alterações ao regime jurídico das
incompatibilidades de altos cargos públicos
Lei n.º 30/2008,
de 10 de Julho
Estatuto dos representantes da República
nas regiões autónomas dos Açores e
Madeira, introduzindo pequenas alterações
ao regime jurídico das incompatibilidades
e impedimentos aos representantes da
República nas Regiões Autónomas dos
Açores e da Madeira
Lei orgânica n.º1/2011,
de 30 de Novembro
Introduz pequenas alterações ao
regime jurídico das incompatibilidades
e impedimentos de titulares de cargos
políticos e de altos cargos públicos em
resultado da transferência de competências
dos governos civis e dos governadores civis
para outras entidades da Administração
Pública
149
AF miolo corrupcao 3.indd 149
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Um outro conjunto de medidas de carácter preventivo
da ocorrência do crime de corrupção política relaciona-se
com o controlo público da riqueza dos titulares de cargos
políticos e altos cargos públicos, que se deixam identificadas no próximo quadro.
Quadro 10. Diplomas de controlo público da riqueza dos
titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos
Diploma nº
Súmula
Lei n.º 4/83,
de 2 de Abril
Define quais sãos os cargos políticos a
que se destina a lei, verificando-se que são
praticamente os mesmos que se encontram
definidos do quadro legal dos crimes
praticados por titulares de cargos políticos.
Os seus titulares têm de apresentar, no
prazo de 30 dias após início de funções
e 60 dias depois de as cessarem, uma
declaração com elementos identificativos
do seu património. Esta declaração é
entregue no Tribunal Constitucional
Lei n.º 38/83,
de 15 de Outubro
Reduz o prazo de entrega da declaração
Lei n.º 25/95,
de 18 de Agosto
Prevê a aplicação de sanções para as
situações de incumprimento da entrega
da declaração
Lei n.º 19/2008,
de 21 de Abril
Determina que o M.P. proceda anualmente
à análise das declarações apresentadas
Lei n.º 30/2008,
de 10 de Julho
Estende a necessidade de apresentação
destas declarações aos representantes
da República nas Regiões Autónomas
dos Açores e Madeira
150
AF miolo corrupcao 3.indd 150
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Lei n.º 38/2010,
de 2 de Setembro
Estende o regime das declarações aos
titulares de altos cargos públicos, que
considera serem os Gestores públicos, os
titulares de órgão de gestão de empresa participada
pelo Estado, quando designados por este, os
membros de órgãos executivos das empresas do
sector empresarial local, os membros de órgãos
directivos dos institutos públicos, os membros
das entidades públicas independentes e ainda os
titulares de cargos de direcção superior de 1º grau
e equiparados
Importa referir ainda, no âmbito das medidas e dos
mecanismos de prevenção da corrupção, as entidades criadas com funções específicas de prevenção e repressão da
corrupção bem como algumas das suas decisões, que se
identificam no quadro seguinte.
Quadro 11. Outras medidas legislativas
de carácter preventivo
Diploma nº
Súmula
Resolução n.º 78/79,
de 20 de Março
Criação, na Presidência do Conselho de
Ministros, de Assessoria especializada para
o combate à Fraude e à Corrupção
DL n.º 369/83,
de 6 de Outubro
Criação da Alta Autoridade Contra a
Corrupção
DL nº 100-A/85,
de 8 de Abril
Extinção da Assessoria especializada
para o combate à Fraude e à Corrupção
Lei n.º 26/92,
de 31 de Agosto
Extingue a Alta Autoridade Contra
a Corrupção
Lei nº 54/2008,
de 4 de Setembro
Criação do Conselho de Prevenção
da Corrupção
151
AF miolo corrupcao 3.indd 151
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Recomendação do
Conselho de Prevenção
da Corrupção nº
1/2009, de 1 de Julho
Necessidade de os serviços públicos terem
de produzir e adoptar Planos de Prevenção
e Gestão de Riscos de Corrupção e
Infracções Conexas
Resolução da
Assembleia da República
n.º 1/2010,
de 5 de Janeiro
Constituição, na Assembleia da
República da Comissão eventual para
acompanhamento político do fenómeno da
corrupção e para análise integrada
de soluções para o seu combate
Resolução da
Assembleia da
República, n.º 2/2010,
de 6 de Janeiro
Recomenda que o Ministério Público
promova a redução ou isenção de pena nas
situações em que os autores de crimes
de corrupção colaborem activamente com
a justiça na descoberta da verdade
Recomendação do
Conselho de Prevenção
da Corrupção nº
1/2010, de 7 de Abril
Necessidades de os serviços públicos
publicitarem, através dos sítios da internet,
os seus Planos de Prevenção e Gestão de
Riscos de Corrupção e Infracções Conexas
Resolução da
Assembleia da República
n.º 91/2010, de 10 de
Agosto
Recomenda ao governo a necessidade de
dotar os Juízes, os Magistrados, os Polícias
e os Peritos com formação específica,
nomeadamente em matérias relativas ao
combate à corrupção
Recomendação do
Conselho de Prevenção
da Corrupção de 6 de
Julho de 2011
Necessidade de os serviços tributários
promoverem estratégias relativas à gestão
dos riscos de corrupção e infracções
conexas
Recomendação do
Conselho de Prevenção
da Corrupção de 14 de
Setembro de 2011
Necessidade de definição de medidas
de prevenção de riscos de corrupção
associados aos processos de privatizações
Recomendação do
Conselho de Prevenção
da Corrupção n.º
5/2012, de 7 de
Novembro
Necessidade de os serviços públicos
promoverem estratégias relativas à gestão
dos riscos associados às situações de
conflitos de interesses
152
AF miolo corrupcao 3.indd 152
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Conclusão
O quadro legal apresentado e sucintamente descrito
corresponde aos principais diplomas produzidos em Portugal nas últimas décadas relativamente à problemática da
corrupção, nomeadamente no que se refere aos mecanismos preventivos e repressivos de penalização.
Aproveitámos a oportunidade, por nos parecer de todo
útil, importante e até necessário, sobretudo para quem não
domina ou domine mal as questões e lógicas do universo
jurídico, para, de uma forma que consideramos simples,
explicar o modelo e o funcionamento dos mecanismos de
repressão e penalização (previstos no Código do Processo
Penal e no Código Penal) dos autores dos crimes em geral, uma vez que ele é também o que é naturalmente utilizado para proceder ao despiste, investigação e punição
dos autores da corrupção e dos demais crimes conexos.
Vimos assim os princípios constitucionais que norteiam
todo o edifício jurídico português, seguindo-se uma descrição das quatro fases que os procedimentos criminais podem
percorrer ao longo da sua existência. Relativamente a cada
uma dessas fases verificamos, na senda de outros autores,
que os tempos da justiça – sobretudo da justiça penal, que
é a que tende a estar publicamente mais exposta – são natural e necessariamente distintos dos da comunicação social,
que, sobretudo nos casos de alegada corrupção política,
tende a fazer deste objecto uma mediatização muito intensa e incisiva, por vezes quase voraz, justamente no tempo
correspondente à fase inicial das investigações judiciais,
construindo por vezes um discurso que tende para a culpabilidade dos suspeitos, a qual na realidade não está ainda
nem aferida nem esclarecida pelos operadores da justiça, e
que por vezes, em momento posterior – por vezes muito
posterior –, acabam por não se confirmar.
153
AF miolo corrupcao 3.indd 153
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Quanto ao quadro legal apresentado – não obstante
o que por vezes se afirma, sobretudo ao nível da opinião
pública, que compreende uma percepção tendencialmente
negativa e de ineficácia – importa referir, se nos é permitido, que evidencia algum esforço dos sucessivos líderes
políticos no sentido de procurar dotar as estruturas judiciais de instrumentos legais capazes – pelo menos em termos de potencial teórico – de tornar mais eficaz o esforço de prevenção e de controlo, incluindo a perseguição e
penalização, dos autores desta tipologia de delitos penais.
Todavia, só uma análise de eficácia destes instrumentos legais, apenas possível a partir de estudos de análise
de conteúdo sobre a evolução dos próprios procedimentos criminais deste tipo de crimes, permitirá aferir a sua
utilidade e razoabilidade e até, nos casos em que tal seja
necessário, a sua melhoria. Esta é uma sugestão de trabalho que ousamos deixar aqui e que nos parece de grande
importância para melhorar a eficácia das medidas e das
estratégias de prevenção e repressão da corrupção, enquanto prática lesiva de um bem jurídico fundamental
que, de acordo com Dias (2008: p. 799), é a autonomia intencional do Estado.
Numa espécie de balanço relativamente ao quadro legal
existente em Portugal para fazer face ao problema das práticas de corrupção, entendemos que não pode nem deve
deixar de se assinalar um esforço no sentido de procurar
medidas legais e até um certo sentido estratégico tendente à resolução, ou pelo menos ao controlo, do problema,
quer em termos repressivos, quer em termos preventivos.
Todavia, não podemos nem devemos simplesmente descansar nesta ideia.
Por outro lado, deparamo-nos ainda com práticas relativamente às quais se torna impossível a aplicação de
qualquer pena, apesar de poderem ser eticamente censu154
AF miolo corrupcao 3.indd 154
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
ráveis, uma vez que o princípio constitucional e penal da
legalidade exige, para tanto, a existência prévia de uma lei
que defina tais práticas como crime. Aliás, algumas situações de criação de novos tipos legais de crime têm decorrido de situações desta natureza, de modo a evitar que
práticas semelhantes permaneçam penalmente impunes.
Para finalizar gostaríamos de reforçar a ideia de que este
mecanismo do princípio da legalidade, associado a uma
noção de tipicidade previamente definida, nos parece de
todo imprescindível, uma vez que ele é o garante de que
o sistema judicial fica a salvo de qualquer possibilidade de
funcionamento sob lógicas mais próximas do livre arbítrio,
que, para lá de nefastas, representariam necessariamente
um retrocesso no processo evolutivo de uma sociedade
que se afirma e se quer vanguardista na defesa e no respeito pelos valores do humanismo e dos direitos humanos.
Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE, P. (2006) Direito Processual Penal – Projectos legislativos. Coimbra: Almedina.
ALBUQUERQUE, P. (2010) Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem. Lisboa: Universidade Católica.
ALBUQUERQUE, P. e BRANCO, J. (Org.) (2011) Comentário das Leis
Penais extravagantes. 2 Vols. Lisboa: Universidade Católica.
ANDVIG, J. e MOENE, K. (1990) How Corruption May Corrupt
Journal of Economic Behavior and Organization, Vol.13. pp. 63 – 76.
BRUNETTI, A. e WEDER, B. (2001) A Free Press is Bad News for
Corruption. Journal of Public Economics, vol. 87, pp. 1801-1824.
CALADO, A. (2009) Legalidade e oportunidade na investigação criminal.
Coimbra: Coimbra Editora.
CALADO, A. (2013) Corrupção processada em Portugal. Cifras negras.
Porto: Observatório de Economia e Gestão de Fraude, Edições
Húmus (acessível em http://www.gestaodefraude.eu/images/
gf_upload/wp025.pdf).
155
AF miolo corrupcao 3.indd 155
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
CARTA ÉTICA DA ADMNISTRAÇÃO PÚBLICA publicada
em anexo ao Boletim dos Registos e do Notariado nº7, de 7 de Julho
de 2002 – Documento acessível em http://www.irn.mj.pt/sections/irn/legislacao/publicacao-de-brn/docs-brn/2002/brn7-de-2002/downloadFile/attachedFile_3_f0/AP_carta_etica.
pdf ?nocache=1207762928.01 e consultado em 20 de Setembro
de 2013.
CAVAZZINI, F. e NEVADO, P. (2013) Fighting corruption with strategy.
Porto: Observatório de Economia e Gestão de Fraude, Edições
Húmus (acessível em http://www.gestaodefraude.eu/images/
gf_upload/wp016.pdf).
CUNHA, D. (2011) A Reforma legislativa em matéria de corrupção. Coimbra: Coimbra Editora.
DELLA PORTA, D. e MÉNY, Y. (Org.) (1995) Democracia e Corrupção
na Europa. Lisboa: Editorial Inquérito.
DIAS, C. (2008) Responsabilidade de Cargos Políticos In: ALBUQUERQUE, P. e BRANCO, J. (Org.) Comentário das Leis Penais extravagantes, 2 Vols. Lisboa: Universidade Católica.
GIGLIOLI, P. (1996) Political Corruption and the Media: The
Tangentopoli Affair. International Social Science Journal, Vol. 48.
pp. 381 – 394.
GONÇALVES, M. (2007) Código penal português – anotado e comentado.
Coimbra: Almedina.
GRECO (2003) First evaluation round – Report on Portugal – documento
disponível http://www.coe.int/t/dghl/monitoring/greco/evaluations/round1/GrecoEval1(2003)4_Portugal_EN.pdf e consultado em 15 de Setembro de 2013.
GRECO (2005) First evaluation round – Compliance report on Portugal
– documento disponível em http://www.coe.int/t/dghl/monitoring/greco/evaluations/round1/GrecoRC1(2005)2_Portugal_
EN.pdf e consultado em 15 de Setembro de 2013.
GRECO (2006) Segundo ciclo de avaliação – Relatório de avaliação sobre Portugal – documento disponível em http://www.coe.int/t/dghl/monitoring/greco/evaluations/round2/GrecoEval2(2005)11_Portugal_PT.pdf e consultado em 15 de Setembro de 2013.
GRECO (2007) First evaluation round – Addendum to the compliance report on Portugal, documento disponível em http://www.coe.int/t/
dghl/monitoring/greco/evaluations/round1/GrecoRC1(2005)2_
Add_Portugal_EN.pdf e consultado em 15 de Setembro de 2013.
GRECO (2008) Segundo ciclo de avaliação – Relatório de conformidade sobre Portugal, documento disponível em http://www.dgpj.
156
AF miolo corrupcao 3.indd 156
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
mj.pt/sections/relacoes-internacionais/anexosorgint2/relatorio-de/downloadFile/file/2_ciclo.RelatorioConformidade.
pdf ?nocache=1238166855.87 e consultado em 15 de Setembro de 2013.
GRECO (2010 a) Third evaluation round – Evaluation report on Portugal
on incriminations – disponível em http://www.coe.int/t/dghl/monitoring/greco/evaluations/round3/GrecoEval3(2010)6_Portugal_One_EN.pdf e consultado em 15 de Setembro de 2013.
GRECO (2010 b) Third evaluation round – Evaluation report on Portugal
on transparency of party funding – documento disponível em http://
www.coe.int/t/dghl/monitoring/greco/evaluations/round3/
GrecoEval3(2010)6_Portugal_Two_EN.pdf e consultado em 15
de Setembro de 2013.
GRECO (2010) Second evaluation round – Addendum to the compliance report on Portugal – documento disponível em http://www.coe.int/t/
dghl/monitoring/greco/evaluations/round2/GrecoRC2(2008)2_
Add_Portugal_EN.pdf e consultado em 15 de Setembro de 2013.
GRECO (2012) Third evaluation round – Compliance report on Portugal on
incriminations and transparency of party funding – documento disponível em http://www.coe.int/t/dghl/monitoring/greco/evaluations/round3/GrecoRC3(2012)20_Portugal_EN.pdf e consultado em 15 de Setembro de 2013.
GRECO (2013), Third evaluation round – Interim compliance report on Portugal on incriminations and transparency of party funding, documento disponível em http://www.coe.int/t/dghl/monitoring/greco/evaluations/round3/GrecoRC3(2013)18_Interim_Portugal_EN.pdf
e consultado em 26 de Outubro de 2013.
GRILO, T. (2005) A Tematização da Corrupção na Imprensa Escrita Portuguesa (1999 – 2001), Dissertação de Licenciatura em Sociologia.
Lisboa: Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.
KLITGAARD, R. (1988) Controlling Corruption. Berkley: University
of California Press.
LOPES, M. (2011) O espetro da corrupção. Coimbra: Almedina.
MAIA, A. (2004) Os Números da Corrupção em Portugal. Polícia
e Justiça – Branqueamento de Capitais. Coimbra: Coimbra Editora,
pp. 83 – 129.
MAIA, A. (2008) Corrupção: Realidade e Percepções – o Papel da Imprensa. Tese de Mestrado. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
MAIA, A. (2011) O discurso social sobre o problema da Corrupção em Portugal. Porto: Observatório de Economia e Gestão de Fraude, Edi157
AF miolo corrupcao 3.indd 157
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
ções Húmus (acessível em http://www.gestaodefraude.eu/images/gf_upload/wp007.pdf).
MAIA, A. (2012) Globalização, segurança, defesa e corrupção – A
revisão de conceitos no quadro das novas ameaças difusas. Segurança e Defesa, vol. 22, pp.70-89.
MAIA, A. (2006) A propósito da questão da Corrupção: Um contributo para
a caracterização do discurso social. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Seminário da investigação no curso de mestrado em sociologia (Documento publicado em 2011 pelo Conselho de Prevenção da Corrupção em http://www.cpc.tcontas.
pt/documentos/A_proposito_da_questao_da_Corrupcao.pdf).
MELO, D. (2009) Os bens jurídicos ofendidos pela corrupção e o
problema específico dos bens jurídicos colectivos In: A corrupção
– Reflexões (a partir da Lei, da doutrina e da jurisprudência) sobre o seu
regime jurídico-criminal em expansão no Brasil e em Portugal, pp. 41-98.
MORGADO, M. J. e VEGAR, J. (2003) O Inimigo Sem Rosto – Fraude
e Corrupção em Portugal. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
NUNES, I. (2012) Novo regime punitivo da corrupção. Dissertação de
Mestrado. Lisboa: Universidade Católica.
POESCHL, G. e RIBEIRO, R. (2012) Everyday opinions on grand and
petty corruption: A Portuguese study. Porto: Observatório de Economia e Gestão de Fraude, Edições Húmus (acessível em http://
www.gestaodefraude.eu/images/gf_upload/wp013.pdf).
PUJAS, V. (2003) Les Scandales Politiques en France, en Italie et en Espagne: Constructions, Usages et Conflits de Légitimité. Florence: European
University Institute.
RIBEIRO, V. (2011) Código de processo penal – notas e comentários. Coimbra: Coimbra Editora.
ROSE-ACKERMAN, S. (2002) Corrupção e Governo. Lisboa: Prefácio.
SANTOS, C. (2009 a) Considerações introdutórias (ou algumas reflexões suscitadas pela “expansão” das normas penais sobre a
corrupção In: SANTOS, C., BIDINO, C. e MELO, D. (2009) A
corrupção – Reflexões (a partir da lei, doutrina e jurisprudência) sobre o seu
regime jurídico-criminal em expansão no Brasil e em Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, pp. 7–40.
SANTOS, C. (2009) A corrupção de agentes públicos em Portugal: Reflexões a partir da Lei, da doutrina e da jurisprudência In:
SANTOS, C., BIDINO, C. e MELO, D. (2009) A corrupção –
Reflexões (a partir da lei, doutrina e jurisprudência) sobre o seu regime jurídico-criminal em expansão no Brasil e em Portugal. Coimbra: Coimbra
Editora, pp. 99–152.
158
AF miolo corrupcao 3.indd 158
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
SANTOS, C., BIDINO, C. e MELO, D. (2009) A corrupção – Reflexões
(a partir da lei, doutrina e jurisprudência) sobre o sue regime jurídico-criminal em expansão no Brasil e em Portugal. Coimbra: Coimbra Editora.
SANTOS, R. (2009) Direito Português da Corrupção. Lisboa: Binómios.
SOUSA, L. (2011) Corrupção. Lisboa: Fundação Francisco Manuel
dos Santos.
SOUSA, L. e TRIÃES, J. (2007) Corrupção e Ética em Democracia: o caso
de Portugal. Lisboa: Centro de Investigação e Estudos de Sociologia – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.
SOUSA, L. e TRIÃES, J. (Orgs.) (2008) Corrupção e os Portugueses: Atitudes, Práticas e Valores. Lisboa: Edições Rui Costa Pinto.
SOUSA, M. R. e ALEXANDRINO, J. (2000) Constituição da República
Portuguesa comentada. Lisboa: Edições Lex.
TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Global Corruption Barometer Report 2004. Documento acessível em http://www.
transparency.org/research/gcb/gcb_2004 e consultado em 10
de Setembro de 2013.
TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Global Corruption Barometer Report 2005. Documento acessível em http://www.
transparency.org/research/gcb/gcb_2005 e consultado em 10
de Setembro de 2013.
TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Global Corruption Barometer Report 2006. Documento acessível em http://www.
transparency.org/research/gcb/gcb_2006 e consultado em 10
de Setembro de 2013.
TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Global Corruption Barometer Report 2007. Documento acessível em http://www.
transparency.org/research/gcb/gcb_2007 e consultado em 10
de Setembro de 2013.
TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Global Corruption Barometer Report 2009. Documento acessível em http://www.
transparency.org/research/gcb/gcb_2009 e consultado em 10
de Setembro de 2013.
TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Global Corruption Barometer Report 2010/11. Documento acessível em http://www.
transparency.org/gcb201011 e consultado em 10 de Setembro
de 2013.
TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Global Corruption Barometer Report 2013. Documento acessível em http://www.transparency.org/gcb2013 e consultado em 10 de Setembro de 2013.
159
AF miolo corrupcao 3.indd 159
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Outros documentos consultados
Convenções internacionais a que Portugal aderiu
– Código internacional da Nações Unidas de conduta para
funcionários em funções públicas - Assemblé Générale, 28 janvier
1997, 51 session - em http://unpan1.un.org/intradoc/groups/
public/documents/un/unpan039939.pdf, consultado em 12 de
Outubro de 2013;
– Convenção OCDE contra a corrupção nas transações internacionais, assinada em Paris em Maio de 1997 – em http://
search.oecd.org/officialdocuments/displaydocumentpdf/?cot
e=C(97)123/FINAL&docLanguage=En, consultada em 12 de
Outubro de 2013;
– Convenção relativa à luta contra a corrupção em que estejam implicados funcionários das Comunidades Europeias ou dos
Estados-Membros da União europeia, assinada em Bruxelas em
Maio de 1997 – em http://europa.eu/rapid/press-release_PRES97-168_pt.htm, consultada em 12 de Outubro de 2013;
– Publicação da Convenção OCDE contra a corrupção nas
transações internacionais no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, de Novembro de 1997 – em http://eur-lex.europa.eu/
LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:1997:320:FULL:PT:PDF,
consultado em 1 de Outubro de 2013;
– Convenção OCDE contra a corrupção, assinada em Paris
em Dezembro de 1997 – em http://www.oecd.org/governance/ethics/2406452.pdf, consultada em 12 de Outubro de 2013;
– Acção Comum 98/742/JAI das Comunidades Europeias,
relativa ao crime de corrupção no sector privado, de Dezembro
de 1998 – em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.
do?uri=OJ:L:1998:358:0002:0004:PT:PDF, consultada em 12 de
Outubro de 2013;
– Convenção Penal Anti-Corrupção do Conselho da Europa, assinada em Estrasburgo, em Janeiro de 1999 – em http://
eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:1998:3
58:0002:0004:PT:PDF, consultado em 12 de Outubro de 2013;
– Carta Ética da Administração Pública, publicada em anexo ao Boletim dos Registos e do Notariado nº7, de 7 de Julho
de 2002 – em http://www.irn.mj.pt/sections/irn/legislacao/publicacao-de-brn/docs-brn/2002/brn-7-de-2002/downloadFile/
160
AF miolo corrupcao 3.indd 160
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
attachedFile_3_f0/AP_carta_etica.pdf?nocache=1207762928.01,
consultado em 12 de Outubro de 2013;
– Convenção contra a Corrupção da ONU, assinada na cidade de Mérida, no México, em Outubro de 2003 – em http://
www.unodc.org/documents/treaties/UNCAC/Publications/
Convention/08-50026_E.pdf, consultado em 12 de Outubro
de 2013;
Legislação consultada
Constituição da República Portuguesa
Versão
Diploma
1ª
– Versão inicial aprovada a 25 de Abril 1976
2ª
– Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro
3ª
– Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho
4ª
– Lei Constitucional n.º 1/92, de 25 de Novembro
5ª
– Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro
6ª
– Lei Constitucional n.º 1/2001, de 12 de Dezembro
7ª
– Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24 de Julho
8ª
– Lei Constitucional n.º 1/2005, de 12 de Agosto
Código de Processo Penal
Versão
Diploma
1º
– Decreto-lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro
2º
– Declaração de 31 de Março de 1987
3º
– Decreto-lei n.º 387-E/87, de 29 de Dezembro
4º
– Decreto-lei n.º 212/89, de 30 de Junho
5º
– Lei n.º 57/91, de 13 de Agosto
6º
– Decreto-lei n.º 423/91, de 30 de Outubro
7º
– Decreto-lei n.º 343/93, de 01 de Outubro
8º – Decreto-lei n.º 317/95, de 28 de Novembro
9º
– Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto
10ª
– Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro
11ª
– Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio
12ª
– Decreto-lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro
13ª
– Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro
14ª
– Rectificação n.º 9-F/2001, de 31 de Março
15ª
– Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto
161
AF miolo corrupcao 3.indd 161
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
16ª
17ª
18ª
19ª
20ª
21ª
22ª
23ª
24ª
25ª
- Declaração de Rectificação n.º 16/2003,
de 29 de Outubro
- Decreto-lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro
- Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto
- Declaração de Rectificação n.º 100-A/2007,
de 26 de Outubro
- Decreto-lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro
- Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto
- Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro
- Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto
- Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro
– Declaração de Rectificação n.º 21/2013,
de 19 de Abril
Código Penal
Versão
Diploma
1ª
– Decreto-lei n.º 400/82, de 23 de Setembro
2ª
– Decreto-lei n.º 48/95, de 15 de Março
3ª
– Declaração n.º 73-A/95, de 14 de Junho
4ª
– Lei n.º 90/97, de 30 de Julho
5ª
– Lei n.º 65/98, de 02 de Setembro
6ª
– Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio
7ª
– Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho
8ª
– Lei n.º 97/2001, de 25 de Agosto
9ª
– Lei n.º 98/2001, de 25 de Agosto
10ª
– Lei n.º 99/2001, de 25 de Agosto
11ª
– Lei n.º 100/2001, de 25 de Agosto
12ª
– Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro
13ª
– Decreto-lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro
14ª
– Decreto-lei n.º 38/2003, de 08 de Março
15ª
– Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto
16ª
– Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro
17ª
– Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março
18ª
– Lei n.º 11/2004, de 27 de Março
19ª
– Declaração de Rectificação n.º 45/2004,
de 05 de Junho
20ª
– Lei n.º 31/2004, de 22 de Julho
21ª
– Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro
22ª
– Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril
23ª
- Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro
162
AF miolo corrupcao 3.indd 162
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
24ª
25ª
26ª
27ª
28ª
29ª
30ª
31ª
– Declaração de Rectificação. N.º 102/2007,
de 31 de Outubro
– Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro
– Lei n.º 32/2010, de 02 de Setembro
– Lei n.º 40/2010, de 03 de Setembro
– Lei n.º 4/2011, de 16 de Fevereiro
– Lei n.º 56/2011, de 15 de Novembro
– Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro
– Lei n.º 60/2013, de 23 de Agosto
Outra legislação consultada
– Resolução n.º 78/79, de 20 de Março
– Despacho normativo nº 154/79, de 5 de Julho
– Decreto-lei n.º 21/80, de 29 de Fevereiro
– Lei n.º 4/83, de 2 de Abril
– Decreto-lei n.º 369/83, de 6 de Outubro
– Lei n.º 38/83, de 15 de Outubro
– Decreto Regulamentar n.º 3/84, de 12 de Janeiro
– Decreto-lei nº 28/84, de 20 de Janeiro
– Decreto-lei nº 100-A/85, de 8 de Abril
– Lei n.º 45/86, de 1 de Outubro
– Lei nº 34/87, de 16 de Julho
– Lei nº 97/88, de 17 de Agosto
– Lei nº 9/90, de 1 de Março
– Lei nº 56/90, de 5 de Setembro
– Decreto-lei n.º 295-A/90, de 21 de Setembro
– Decreto Regulamentar n.º 52/91, de 8 de Outubro
– Decreto-lei nº 390/91, de 10 de Outubro
– Decreto-lei nº 196/93, de 27 de Maio
– Lei n.º 26/92, de 31 de Agosto
– Lei nº 64/93, de 26 de Agosto
– Lei nº 72/93, de 30 de Novembro
– Decreto-lei nº 413/93, de 23 de Dezembro
– Lei n º 36/94, de 29 de Setembro
– Lei nº 39-B/94, de 27 de Dezembro
– Decreto-lei n.º 299/94, de 13 de Dezembro
– Declaração de rectificação nº 2/95, de 15 de Abril
– Lei n.º 25/95, de 18 de Agosto
163
AF miolo corrupcao 3.indd 163
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
– Lei nº 27/95, de 18 de Agosto
– Lei nº 28/95, de 18 de Agosto
– Decreto-lei nº 325/95, de 2 de Dezembro
– Lei nº 12/96, de 18 de Abril
– Lei nº 42/96, de 31 de Agosto
– Lei nº 12/98, de 24 de Fevereiro
– Lei nº 56/98, de 18 de Agosto
– Resolução da Assembleia da República n.º 32/2000,
de 31 de Março
– Decreto do Presidente da República n.º 19/2000, de 31 de Março
– Lei nº 23/2000, de 23 de Agosto
– Lei nº13/2001, de 4 de Junho
– Lei Orgânica nº 1/2001, de 14 de Agosto
– Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto
– Resolução da Assembleia da República n.º 68/2001,
de 26 de Outubro
– Decreto do Presidente da República n.º 56/2001,
de 26 de Outubro
– Resolução da Assembleia da República n.º 72/2001,
de 15 de Novembro
– Decreto do Presidente da República n.º 58/2001,
de 15 de Novembro
– Lei nº 108/2001, de 28 de Novembro
– Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro
– Decreto-lei nº 304/2002, 13 de Dezembro
– Lei nº 19/2003, de 20 de Junho
– Decreto-lei nº 287/2003, de 12 de Novembro
– Declaração de rectificação nº 4/2002, de 9 de Janeiro
– Lei nº 11/2004, de 27 de Março
– Lei nº 17/2006, de 23 de Maio
– Decreto-lei nº 71/2007, de 27 de Março
– Lei nº 50/2007, de 31 de Agosto
– Lei nº 51/2007, de 31 de Agosto
– Resolução da Assembleia da República n.º 47/2007,
de 21 de Setembro
– Decreto do Presidente da República n.º 97/2007,
de 21 de Setembro
– Lei nº 19/2008, de 21 de Abril
– Lei nº 20/2008, de 21 de Abril
– Lei nº 25/2008, de 5 de Junho
– Lei n.º 30/2008, de 10 de Julho
164
AF miolo corrupcao 3.indd 164
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
– Lei nº 49/2008, de 27 de Agosto
– Lei nº 54/2008, de 4 de Setembro
– Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro
– Recomendação do Conselho de Prevenção da Corrupção
nº 1/2009, de 1 de Julho
– Lei n.º 38/2009, de 20 de Julho
– Lei n.º 94/2009, de 1 de Setembro
– Resolução da Assembleia da República n.º 1/2010,
de 5 de Janeiro
– Resolução da Assembleia da República, n.º 2/2010,
de 6 de Janeiro
– Recomendação do Conselho de Prevenção da Corrupção
nº 1/2010, de 7 de Abril
– Resolução da Assembleia da República n.º 91/2010,
de 10 de Agosto
– Lei nº 36/2010, de 2 de Setembro
– Lei n.º 37/2010, de 2 de Setembro
– Lei n.º 38/2010, de 2 de Setembro
– Lei n.º 41/2010, de 3 de Setembro
– Lei n.º 42/2010, de 3 de Setembro
– Resolução do Conselho de Ministros nº 71/2010,
de 10 de Setembro
– Lei nº 55/2010, de 24 de Dezembro
– Lei Orgânica nº 1/2011, de 30 de Novembro
– Lei n.º 45/2011, de 24 de Junho
– Recomendação do Conselho de Prevenção da Corrupção
de 6 de Julho de 2011
– Recomendação do Conselho de Prevenção da Corrupção
de 14 de Setembro de 2011
– Recomendação do Conselho de Prevenção da Corrupção
nº 5/2012, de 7 de Novembro
– Lei nº 1/2013, de 3 de Janeiro
– Regulamento do Tribunal Constitucional nº 16/2013,
de 10 de Janeiro
165
AF miolo corrupcao 3.indd 165
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
ANEXOS
Anexo A
Artigos do Código Penal, do capítulo dos crimes cometidos
no exercício de funções públicas, que tipificam
os crimes cometidos no exercício de funções públicas
e que correspondem ao conceito social de corrupção
372º Corrupção passiva para acto ilícito
1 – O funcionário que por si, ou por interposta pessoal,
com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para
si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial
ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer acto
ou omissão contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores
àquela solicitação ou aceitação, é punido com pena de prisão de
1 a 8 anos.
2 – Se o agente, antes da prática do facto, voluntariamente
repudiar o oferecimento ou a promessa que aceitara, ou restituir
a vantagem, ou, tratando-se de coisa fungível, o seu valor, é dispensado de pena.
3 – A pena é especialmente atenuada se o agente auxiliar
concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis
373º Corrupção passiva para acto lícito
1 – O funcionário que por si, ou por interposta pessoa, com
o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou
para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou
não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer acto ou
omissão não contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação, é punido com pena de prisão
até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
2 – Na mesma pena incorre o funcionário que por si, ou por
interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida,
vantagem patrimonial ou não patrimonial de pessoa que perante
ele tenha tido, tenha ou venha a ter qualquer pretensão dependente do exercício das suas funções públicas.
166
AF miolo corrupcao 3.indd 166
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
3 – É correspondentemente aplicável o disposto na alínea
b) do artigo 364.º e nos n.ºs 3 e 4 do artigo anterior.
374º Corrupção activa
1 – Quem por si, ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a funcionário, ou a
terceiro com conhecimento daquele, vantagem patrimonial ou
não patrimonial que ao funcionário não seja devida, com o fim
indicado no artigo 372.º, é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
2 – Se o fim for o indicado no artigo 373.º, o agente é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até
60 dias.
3 – É correspondentemente aplicável o disposto na alínea
b) do artigo 364.º.
375º Peculato
1 – O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa
móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja
na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é
punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe
não couber por força de outra disposição legal.
2 – Se os valores ou objectos referidos no número anterior
forem de diminuto valor, nos termos da alínea c) do artigo 202.º,
o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena
de multa.
3 – Se o funcionário der de empréstimo, empenhar ou, de
qualquer forma, onerar valores ou objectos referidos no n.º 1, é
punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se
pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
376º Peculato de uso
1 – O funcionário que fizer uso ou permitir que outra pessoa faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinem, de veículos ou de outras coisas móveis de valor apreciável, públicos ou
particulares, que lhe forem entregues, estiverem na sua posse ou
lhe forem acessíveis em razão das suas funções, é punido com
pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 – Se o funcionário, sem que especiais razões de interesse público o justifiquem, der a dinheiro público destino para
167
AF miolo corrupcao 3.indd 167
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
uso público diferente daquele a que está legalmente afectado,
é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa
até 120 dias.
377º Participação económica em negócio
1 – O funcionário que, com intenção de obter, para si ou
para terceiro, participação económica ilícita, lesar em negócio jurídico os interesses patrimoniais que, no todo ou em parte, lhe
cumpre, em razão da sua função, administrar, fiscalizar, defender
ou realizar, é punido com pena de prisão até 5 anos.
2 – O funcionário que, por qualquer forma, receber, para
si ou para terceiro, vantagem patrimonial por efeito de acto jurídico–civil relativo a interesses de que tinha, por força das suas
funções, no momento do acto, total ou parcialmente, a disposição, administração ou fiscalização, ainda que sem os lesar, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até
60 dias.
3 – A pena prevista no número anterior é também aplicável
ao funcionário que receber, para si ou para terceiro, por qualquer
forma, vantagem patrimonial por efeito de cobrança, arrecadação,
liquidação ou pagamento que, por força das suas funções, total
ou parcialmente, esteja encarregado de ordenar ou fazer, posto
que não se verifique prejuízo para a Fazenda Pública ou para os
interesses que lhe estão confiados.
378º Violação de domicílio por funcionário
O funcionário que, abusando dos poderes inerentes às suas
funções, praticar o crime previsto no n.º 1 do artigo 190.º, ou violar o domicílio profissional de quem, pela natureza da sua actividade, estiver vinculado ao dever de sigilo, é punido com pena de
prisão até 3 anos ou com pena de multa.
379º Concussão
1 – O funcionário que, no exercício das suas funções ou de
poderes de facto delas decorrentes, por si ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, receber, para si, para
o Estado ou para terceiro, mediante indução em erro ou aproveitamento de erro da vítima, vantagem patrimonial que lhe não seja
devida, ou seja superior à devida, nomeadamente contribuição,
taxa, emolumento, multa ou coima, é punido com pena de prisão
168
AF miolo corrupcao 3.indd 168
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave
lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 – Se o facto for praticado por meio de violência ou ameaça com mal importante, o agente é punido com pena de prisão
de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de
outra disposição legal.
380º Emprego da força pública contra a execução da lei ou
de ordem legítima
O funcionário que, sendo competente para requisitar ou ordenar emprego da força pública, requisitar ou ordenar este emprego para impedir a execução de lei, mandado regular da justiça
ou ordem legítima de autoridade pública, é punido com pena de
prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
381º Recusa de cooperação
O funcionário que, tendo recebido requisição legal de autoridade competente para prestar a devida cooperação à administração da justiça ou a qualquer serviço público, se recusar a prestála, ou sem motivo legítimo a não prestar, é punido com pena de
prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
382º Abuso de poder
O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos
anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas
funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício
ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena
de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave
lhe não couber por força de outra disposição legal.
383º Violação de segredo por funcionário
1 – O funcionário que, sem estar devidamente autorizado,
revelar segredo de que tenha tomado conhecimento ou que lhe
tenha sido confiado no exercício das suas funções, ou cujo conhecimento lhe tenha sido facilitado pelo cargo que exerce, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, benefício, ou com a
consciência de causar prejuízo ao interesse público ou a terceiros,
é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 – Se o funcionário praticar o facto previsto no número
anterior criando perigo para a vida ou para a integridade física
169
AF miolo corrupcao 3.indd 169
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado é
punido com pena de prisão de um a cinco anos.
3 – O procedimento criminal depende de participação da
entidade que superintender no respectivo serviço ou de queixa
do ofendido.
384º Violação de segredo de correspondência ou de telecomunicações
O funcionário de serviços dos correios, telégrafos, telefones
ou telecomunicações que, sem estar devidamente autorizado:
a) Suprimir ou subtrair carta, encomenda, telegrama ou outra comunicação confiada àqueles serviços e que lhe é acessível
em razão das suas funções;
b) Abrir carta, encomenda ou outra comunicação que lhe
é acessível em razão das suas funções ou, sem a abrir, tomar conhecimento do seu conteúdo;
c) Revelar a terceiros comunicações entre determinadas pessoas, feitas pelo correio, telégrafo, telefone ou outros meios de
telecomunicações daqueles serviços, de que teve conhecimento
em razão das suas funções;
d) Gravar ou revelar a terceiro o conteúdo, total ou parcial,
das comunicações referidas, ou tornar-lhe possível ouvi-las ou
tomar delas conhecimento; ou
e) Permitir ou promover os factos referidos nas alíneas anteriores; é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou
com pena de multa não inferior a 60 dias.
385º Abandono de funções
O funcionário que ilegitimamente, com intenção de impedir
ou de interromper serviço público, abandonar as suas funções ou
negligenciar o seu cumprimento é punido com pena de prisão até
1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
386º Conceito de funcionário
1 – Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:
a) O funcionário civil;
b) O agente administrativo; e
c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante
remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente,
tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho
170
AF miolo corrupcao 3.indd 170
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar
funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.
2 – Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares
dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas,
nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de
serviços públicos.
3 – São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do
disposto nos artigos 372.º a 374.º:
a) Os magistrados, funcionários, agentes e equiparados
da União Europeia, independentemente da nacionalidade e residência;
b) Os funcionários nacionais de outros Estados–Membros
da União Europeia, quando a infracção tiver sido cometida, total
ou parcialmente, em território português;
c) Todos os que exerçam funções idênticas às descritas no
n.º 1 no âmbito de qualquer organização internacional de direito
público de que Portugal seja membro, quando a infracção tiver
sido cometida, total ou parcialmente, em território português.
d) Todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos
de resolução extrajudicial de conflitos.
Anexo B
Artigos previstos em legislação avulsa relativos
a crimes praticados por titulares de cargos políticos
e altos cargos públicos
Previstos na lei n.º 34/87, de 16 de Julho
1º Âmbito da presente lei
A presente lei determina os crimes de responsabilidade
que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas
funções, bem como as sanções que lhes são aplicáveis e os respetivos efeitos.
2º Definição genérica
Consideram-se praticados por titulares de cargos políticos
no exercício das suas funções, além dos como tais previstos na
171
AF miolo corrupcao 3.indd 171
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
presente lei, os previstos na lei penal geral com referência expressa a esse exercício ou os que mostrem terem sido praticados com
flagrante desvio ou abuso da função ou com grave violação dos
inerentes deveres.
3º
Cargos políticos
São cargos políticos, para os efeitos da presente lei:
a) O de Presidente da República;
b) O de Presidente da Assembleia da República;
c) O de deputado à Assembleia da República;
d) O de membro do Governo;
e) O de deputado ao Parlamento Europeu;
f) O de ministro da República para região autónoma;
g) O de membro de órgão de governo próprio
de região autónoma;
h) O de governador de Macau, de secretário-adjunto
do Governo de Macau ou de deputado à Assembleia
Legislativa de Macau;
i) O de membro de órgão representativo de autarquia local;
j) O de governador civil.
11º Prevaricação
O titular de cargo político que conscientemente conduzir
ou decidir contra direito um processo em que intervenha no
exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma
prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois
a oito anos.
12º Denegação de justiça
O titular de cargo político que no exercício das suas funções
se negar a administrar a justiça ou a aplicar o direito que, nos termos da sua competência, lhe cabem e lhe foram requeridos será
punido com prisão até dezoito meses e multa até 50 dias.
13º Desacatamento ou recusa de execução de decisão
do tribunal
O titular de cargo político que no exercício das suas funções recusar acatamento ou execução que, por dever do cargo, lhe
cumpram a decisão de tribunal transitada em julgado será punido
com prisão até um ano.
172
AF miolo corrupcao 3.indd 172
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
14º Violação de normas de execução orçamental
O titular de cargo político a quem, por dever do seu cargo,
incumba dar cumprimento a normas de execução orçamental e
conscientemente as viole:
a) Contraindo encargos não permitidos por lei;
b) Autorizando pagamentos sem o visto do Tribunal de
Contas legalmente exigido;
c) Autorizando ou promovendo operações de tesouraria ou
alterações orçamentais proibidas por lei;
d) Utilizando dotações ou fundos secretos, com violação
das regras da universalidade e especificação legalmente previstas;
será punido com prisão até um ano.
15º Suspensão ou restituição de direitos, liberdades
e garantias
O titular de cargo político que, com flagrante desvio das
suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, suspender o exercício de direitos, liberdades e garantias não susceptíveis de suspensão, ou sem recurso legítimo aos estados de sítio
ou de emergência, ou impedir ou restringir aquele exercício, com
violação grave das regras de execução do estado declarado, será
condenado a prisão de dois a oito anos, se ao facto não corresponder pena mais grave por força de outra disposição legal.
16º Corrupção passiva para acto ilícito
1 - O titular de cargo político que no exercício das suas funções, por si ou interposta pessoa, com o seu consentimento ou
ratificação, solicitar ou aceitar dinheiro, promessa de dinheiro ou
qualquer vantagem patrimonial ou não patrimonial a que não tenha direito, para si ou para o seu cônjuge, parentes ou afins até ao
3.º grau, para a prática de acto que implique violação dos deveres
do seu cargo ou omissão de acto que tenha o dever de praticar e
que, nomeadamente, consista:
a) Em dispensa de tratamento de favor a determinada pessoa, empresa ou organização;
b) Em intervenção em processo, tomada ou participação
em decisão que impliquem obtenção de benefícios, recompensas,
subvenções, empréstimos, adjudicação ou celebração de contratos e, em geral, reconhecimento ou atribuição de direitos, exclusão ou extinção de obrigações, em qualquer caso com violação
173
AF miolo corrupcao 3.indd 173
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
da Lei; será punido com prisão de dois a oito anos e multa de
100 a 200 dias.
2 - Se o acto não for, porém, executado ou se não se verificar a omissão, a pena será a de prisão até dois anos e multa até
100 dias.
3 - Se, por efeito da corrupção, resultar condenação criminal
em pena mais grave do que as previstas nos nºs 1 e 2, será aquela
pena aplicada à corrupção.
17º Corrupção passiva para acto lícito
O titular de cargo político que no exercício das suas funções, por si ou interposta pessoa, com o seu consentimento ou
ratificação, solicitar ou receber dinheiro, promessa de dinheiro
ou qualquer vantagem patrimonial ou não patrimonial a que não
tenha direito, para si ou para o seu cônjuge, parentes ou afins até
ao 3.º grau, para a prática de acto ou omissão de acto não contrários aos deveres do seu cargo e que caibam nas suas atribuições
será punido com prisão até um ano ou multa até 100 dias.
18º Corrupção activa
O titular de cargo político que no exercício das suas funções
der ou prometer a funcionário ou a outro titular de cargo político,
por si ou por interposta pessoa, dinheiro ou outra vantagem patrimonial ou não patrimonial que a estes não sejam devidos com
os fins indicados no artigo 16.º será punido, segundo os casos,
com as penas do mesmo artigo.
19º Isenção de pena
1 - O infractor que, nos casos dos artigos anteriores, voluntariamente repudiar oferecimento ou promessa que tenha aceitado
ou restituir o que indevidamente tiver recebido antes de praticado
o acto ou de consumada a omissão ficará isento de pena.
2 - Fica igualmente isento de pena o infractor que, nos casos dos artigos 16.º e 17.º, participe o crime às autoridades competentes antes de qualquer outro co infrator e antes de ter sido
iniciado procedimento criminal pelos correspondentes factos,
sendo irrelevante a sua participação simultânea.
3 - A isenção de pena prevista no n.º 1 só aproveitará ao
agente de corrupção activa se o mesmo voluntariamente aceitar
o repúdio da promessa ou a restituição do dinheiro ou vantagem
que houver feito ou dado.
174
AF miolo corrupcao 3.indd 174
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
20º Peculato
1 - O titular de cargo político que no exercício das suas funções ilicitamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra
pessoa, de dinheiro ou qualquer outra coisa móvel que lhe tiver
sido entregue, estiver na sua posse ou lhe for acessível em razão
das suas funções será punido com prisão de três a oito anos e
multa até 150 dias, se pena mais grave lhe não couber por força
de outra disposição legal.
2 - Se o infractor der de empréstimo, empenhar ou, de
qualquer forma, onerar quaisquer objectos referidos no número
anterior, com a consciência de prejudicar ou poder prejudicar o
Estado ou o seu proprietário, será punido com prisão de um a
quatro anos e multa até 80 dias.
21º Peculato de uso
1 - O titular de cargo político que fizer uso ou permitir a
outrem que faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinam,
de veículos ou outras coisas móveis de valor apreciável que lhe
tenham sido entregues, estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções será punido com prisão até dezoito meses ou multa de 20 a 50 dias.
2 - O titular de cargo político que der a dinheiro público
um destino para uso público diferente daquele a que estiver legalmente afectado será punido com prisão até dezoito meses ou
multa de 20 a 50 dias.
22º Peculato por erro de outrem
O titular de cargo político que no exercício das suas funções,
mas aproveitando se do erro de outrem, receber, para si ou para
terceiro, taxas, emolumentos ou outras importâncias não devidas,
ou superiores às devidas, será punido com prisão até três anos ou
multa até 150 dias.
23º Participação económica em negócio
1 - O titular de cargo político que, com intenção de obter
para si ou para terceiro participação económica ilícita, lesar em
negócio jurídico os interesses patrimoniais que, no todo ou em
parte, lhe cumpra, em razão das suas funções, administrar, fiscalizar, defender ou realizar será punido com prisão até cinco anos
e multa de 50 a 100 dias.
175
AF miolo corrupcao 3.indd 175
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
2 – O titular de cargo político que, por qualquer forma, receber vantagem patrimonial por efeito de um acto jurídico-civil
relativo a interesses de que tenha, por força das suas funções, no
momento do acto, total ou parcialmente, a disposição, a administração ou a fiscalização, ainda que sem os lesar, será punido com
multa de 50 a 150 dias.
3 – A pena prevista no número anterior é também aplicável ao titular de cargo político que receber, por qualquer forma,
vantagem económica por efeito de cobrança, arrecadação, liquidação ou pagamento de que, em razão das suas funções, total ou
parcialmente, esteja encarregado de ordenar ou fazer, posto que
se não verifique prejuízo económico para a Fazenda Pública ou
para os interesses que assim efetiva.
Previstos na Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro
3º Cargos políticos
2 – Para efeitos do disposto nos artigos 16º a 19º, equiparam-se aos titulares de cargos políticos nacionais os titulares de
cargos políticos da União Europeia, independentemente da nacionalidade e residência e, quando a infracção tiver sido cometida, no todo ou em parte, em território português, os titulares de
cargos políticos de outros Estados-Membros da União Europeia.
16º Corrupção passiva para acto ilícito
1 – O titular de cargo político que no exercício das suas funções, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento
ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem
que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial,
ou a sua promessa, para um qualquer acto ou omissão contrários
aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou
aceitação, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
2 – Se, por efeito da corrupção, resultar condenação criminal em
pena mais grave do que a prevista no número anterior, será aquela pena aplicada à corrupção.
17º Corrupção passiva para acto lícito
1 – O titular de cargo político que no exercício das suas funções, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento
ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que
lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a
sua promessa, para um qualquer acto ou omissão não contrários
176
AF miolo corrupcao 3.indd 176
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou
aceitação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena
de multa até 300 dias.
2 – Na mesma pena incorre o titular de cargo político que
por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe
seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial de pessoa
que perante ele tenha tido, tenha ou venha a ter qualquer pretensão dependente de exercício das suas funções.
18º Corrupção activa
1 – Quem por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a titular de cargo político, ou a terceiro com conhecimento daquele, vantagem patrimonial ou não patrimonial que ao titular de cargo político não
seja devida, com o fim indicado no artigo 16º, é punido com pena
de prisão de 6 meses a 5 anos.
2 – Se o fim for o indicado no artigo 17º, o agente é punido
com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias.
3 – O titular de cargo político que no exercício das suas funções, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento
ou ratificação, der ou prometer a funcionário ou a outro titular de
cargo político, ou a terceiro com conhecimento destes, vantagem
patrimonial ou não patrimonial que não lhes seja devida, com os
fins indicados no artigo 16º, é punido com a pena prevista no
mesmo artigo.
Previstos na Lei n.º 30/2008, de 10 de Julho
10º Titular de cargo político
O Representante da República, como titular de cargo político, está sujeito ao respectivo regime jurídico para efeitos de:
b) Incompatibilidades e impedimentos;
c) Controlo público de riqueza;
d) Crimes de responsabilidade.
Previstos na Lei n.º 41/2010, de 3 de Setembro
1º Âmbito da presente lei
A presente lei determina os crimes da responsabilidade que
titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos cometam
no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhes são
aplicáveis e os respectivos efeitos.
177
AF miolo corrupcao 3.indd 177
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
16º Recebimento indevido de vantagem
1 – O titular de cargo político ou de alto cargo público que,
no exercício das suas funções ou por causa delas, por si, ou por
interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial
ou não patrimonial, que não lhe seja devida, é punido com pena
de prisão de 1 a 5 anos.
2 – Quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a titular de cargo político ou alto cargo público, ou a terceiro por indicação ou conhecimento deste, vantagem patrimonial ou não patrimonial que
não lhe seja devida, no exercício das suas funções ou por causa
delas, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de
multa até 600 dias.
3 – Excluem-se dos números anteriores as condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes.
17º Corrupção passiva
1 – O titular de cargo político ou de alto cargo público que
no exercício das suas funções ou por causa delas, por si ou por
interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou
não patrimonial, ou a sua promessa, para a prática de um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, ainda que
anteriores àquela solicitação ou aceitação, é punido com pena de
prisão de 2 a 8 anos.
2 – Se o acto ou omissão não forem contrários aos deveres
do cargo e vantagem não lhe for devida, o titular de cargo político é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.
18º Corrupção activa
1 – Quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer a titular de cargo político ou alto cargo público, ou a terceiro por indicação ou com o
conhecimento destes, vantagem patrimonial ou não patrimonial
com o fim indicado no n.º 1 do artigo 17º, é punido com pena
de prisão de 2 a 5 anos.
2 – Se o fim for o indicado no n.º 2 do artigo 17º, o agente
é punido com pena de prisão até 5 anos.
3 – O titular de cargo político ou de alto cargo público que
no exercício das suas funções ou por causa delas, por si ou por
178
AF miolo corrupcao 3.indd 178
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der
ou prometer a funcionário ou a outro titular de cargo político ou
de alto cargo público, ou a terceiro com o conhecimento deste,
vantagem patrimonial ou não patrimonial que não lhe seja devida, com os fins indicados no artigo 17º, é punido com as penas
previstas no mesmo artigo.
3 a Altos cargos públicos
Para efeitos da presente lei, são considerados titulares de
altos cargos públicos:
a) Gestores públicos;
b) Titulares de órgão de gestão de empresa participada pelo
Estado, quando designados por este;
c) Membros de órgãos executivos das empresas que integram o sector empresarial local;
d) Membros dos órgãos directivos dos institutos públicos;
e) Membros das entidades públicas independentes previstas
na Constituição ou na lei;
f) Titulares de cargos de direcção superior do 1.º grau e
equiparados.
18 a Violação de regras urbanísticas
1 – O titular de cargo político que informe ou decida favoravelmente processo de licenciamento ou de autorização ou preste
neste informação falsa sobre as leis ou regulamentos aplicáveis,
consciente da desconformidade da sua conduta com as normas
urbanísticas, é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa.
2 – Se o objecto da licença ou autorização incidir sobre via
pública, terreno da Reserva Ecológica Nacional, Reserva Agrícola Nacional, bem do domínio público ou terreno especialmente
protegido por disposição legal, o agente é punido com pena de
prisão de 1 a 5 anos ou multa.
Previstos na Lei n.º 4/2011, de 16 de Fevereiro
19º Agravamento da pena
2 – Se a vantagem referida nos artigos 16.º a 18.º for de
valor consideravelmente elevado, o agente é punido com a pena
aplicável ao crime respectivo agravada em um terço nos seus limites mínimo e máximo.
179
AF miolo corrupcao 3.indd 179
7/31/14 12:54 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 180
7/31/14 12:54 AM
4. Eleições e corrupção
em Moçambique
Domingos M. do Rosário
Introdução
Moçambique é uma democracia eleitoral situada na região Austral de África onde a transição para a democracia
é resultado de um conflito interno. Apesar da sua riqueza
em recursos naturais, o país faz parte dos 5 países mais
pobres do Mundo. O Índice de Desenvolvimento Humano continua ainda muito baixo, o que faz com que o país
se encontre na posição 185 de 187 países (PNUD, 2013).
Recentemente, o país foi considerado pelas Agências Internacionais como um exemplo de sucesso na África contemporânea (Banco Mundial, 2010; Pitcher, 2002; Stiglitz,
2002), não só pela positiva performance macroeconómica,
caracterizada por um crescimento anual de 8% do Produto
Nacional Bruto nos últimos 10 anos, mas também devido à estabilidade política. Esta última situação encontrase actualmente ameaçada pelos recentes confrontos entre
as forças da RENAMO75 (antigo movimento Militar) e a
Polícia da República de Moçambique.
Em 1975 a independência de Moçambique foi proclamada pela Frelimo. Os partidos políticos, tais como
UNAMO, GUMO, Coremo, PCN, FUMO criados antes
RENAMO - Resistência Nacional Moçambicana. Foi um movimento
que nasceu após a independência de Moçambique (1975), opondo-se ao
partido único FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique).
75
181
AF miolo corrupcao 3.indd 181
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
e ou pouco depois do 25 de Abril, e que segundo a Frelimo “eram produto dos colonos e ou dos reaccionários
“(Notícias da Beira, 21 de Dezembro de 1974) foram abolidos a favor de um partido único. Em 1977, o Comité
Central decide convocar o terceiro congresso do partido.
Este congresso marca oficialmente a passagem ao partido Marxista-leninista e de «Vanguarda». O «Marxismoleninismo» fornecia a legitimidade a um regime de partido único, que concentrava o poder nas mãos da Frelimo,
esmagava os dissidentes no seio do Partido e impedia o
aparecimento de outras forças dissidentes que se tinham
formado de maneira efémera nas vésperas da libertação e
que estavam ligadas ao antigo colonialismo e/ou a outros
interesses comunitaristas ou políticos diferentes.
Em 1989, em plena guerra civil que exerceu um impacto devastador sobre a economia e a sociedade, o partido
convoca o IV congresso e adopta uma nova Constituição em 1990, que consagrava o multipartidarismo. Num
contexto internacional marcado pela queda dos regimes
autoritários na Europa do Leste e em África, este período
constituí um marco histórico fundamental em direcção a
uma nova orientação política no país. Não só porque conduziu o país para a instalação de procedimentos pluralistas estáveis com um partido único, mas também porque
permitiu a entrada de outros actores no espaço politico.
Com a assinatura dos acordos de Paz de Roma de 1992,
estes actores iriam se opor no seio de arenas eleitorais e
parlamentares, a partir de 1994 ano da realização das primeiras Eleições Gerais Multipartidárias. Mas será que o
pluralismo que foi instalado em Moçambique e lançou as
bases para o exercício completo do Estado de direito e
de cidadania? Ou simplesmente optou por procedimentos formais, que iriam permitir ao partido no poder consolidar a sua hegemonia?
182
AF miolo corrupcao 3.indd 182
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Para desenvolver esta discussão, dividiremos o artigo
em três partes. Na primeira mostra-se que, apesar do sistema político eleitoral ser de tipo proporcional, razões de
ordem estrutural e política tornam o sistema bipolarizado entre os dois antigos beligerantes (Frelimo e Renamo).
A segunda parte mostra como a fragilidade institucional
dos pequenos partidos aliado à falha do processo de institucionalização do maior partido da oposição, a Renamo,
contribui para a fraqueza do debate político e a construção
da hegemonia do partido do governo. Na terceira parte,
analisamos os diferentes processos eleitorais, a partir de
1994 e até 2009, e mostramos como é que instituições
eleitorais frágeis e sujeitas a manipulação política, jogam
um papel determinante na consolidação da hegemonia
do partido no Estado através de mecanismos de fraude.
Começamos por caracterizar o sistema político e eleitoral Moçambicano.
S is t e m a P o l í t i c o
e
Eleitoral
A Assembleia da República é o mais alto órgão legislativo, com autoridade para aprovar programas e planos do
Governo, produzir legislação e executar outras funções no
âmbito legislativo. Apesar de constitucionalmente deter
este poder, os papéis legislativos atribuídos ao Presidente da República contribuem para o enfraquecimento do
órgão legislativo. Estes poderes do Presidente incluem:
o poder de veto (art. 163 da Constituição da República);
a possibilidade de dissolução da Assembleia; (art. 159
da Constituição da República); e capacidade de elaborar
“Decretos-Lei” (art. 181 da Constituição da República).
As relações entre o poder legislativo e o executivo devem ser analisadas em duas perspectivas diferentes, dada a
183
AF miolo corrupcao 3.indd 183
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
situação de existência de uma maioria absoluta do partido
governamental nas quatro legislaturas desde os Acordos
de Paz. Por um lado, a relação da bancada maioritária (Frelimo) deste órgão com o Governo (Frelimo) e, por outro,
a difícil relação entre as bancadas da oposição (dominadas
pela Renamo) e do partido no poder. A disciplina partidária leva a que, em geral, não haja contradições entre o
Executivo e o Legislativo. A solidariedade que prevalece
entre a maioria parlamentar e o governo tem impedido
que haja um verdadeiro debate sobre as opções políticas, pois é a linha estabelecida no programa do governo
e a lógica partidária que prevalecem, remetendo de facto
o Parlamento a um papel secundário (Brito e all., 2003).
Esta é uma das principais características dos apelidados
“Competitive authoritarian regimes” (Levitsky e Way, 2002).
O facto de a oposição ser minoritária no Parlamento
deixa-a sistematicamente sem capacidade para influenciar
a produção legislativa que aí se faz e muito menos a orientação do Governo. A única arena em que há base para negociação entre as duas forças políticas no Parlamento é
em matérias relativas à revisão constitucional, que exigem
votação de uma maioria qualificada de dois terços (Brito
e all., 2003). Foi com base nesse consenso que uma nova
Constituição foi aprovada em 2004. Recentemente, têmse vindo a revelar divergências em relação a uma nova
proposta de alteração constitucional, que se encontra
em apreciação. Enquanto a Frelimo e o MDM avançam
para a mudança constitucional, a Renamo recusa apontar
membros seus para fazer parte da referida comissão, supostamente por desconhecer os pontos da Constituição
que serão objecto de revisão.
A Constituição da República de Moçambique consagra uma democracia multipartidária alicerçada em eleições periódicas, através de sufrágio universal, directo, se184
AF miolo corrupcao 3.indd 184
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
creto e igual. O Presidente e os deputados da Assembleia
da República assim como os membros das Assembleias
Provinciais são eleitos para um mandato de cinco anos.
O Presidente da República é eleito através do sistema de
maioria absoluta. Para as eleições legislativas, vigora o
sistema de representação proporcional para escolha dos
250 deputados. Em Moçambique existem 13 círculos eleitorais: onze que correspondem às províncias, incluindo
a Cidade de Maputo, e que elegem 248 deputados e dois
círculos eleitorais na diáspora, um correspondente aos
moçambicanos residentes em África e outro aos moçambicanos residentes no resto do Mundo. Estes dois círculos elegem um deputado cada. Pela primeira vez, foram
eleitas em 2009, as Assembleias provinciais divididas em
141 círculos eleitorais, que correspondem às dez Assembleias Provinciais elegendo 812 membros. Estas assembleias não exercem nenhum papel determinante de natureza legislativa ao nível local.
Partidos
políticos
e sis t e m a p a r t i d o s
De acordo com Seiler (2000) a expressão «partido político» foi utilizada para designar certos antagonismos sociais da antiguidade, assim como para descrever grupos
de opositores durante a Idade Média e no início da Idade
Moderna Europeias. Contudo, o tema ocupou um espaço
privilegiado na teoria política moderna somente depois da
exaltação das massas, quando os modelos de acção política se transformaram completamente, as demandas sociais
cresceram e a institucionalização das relações começou a
ser pressionada a estabelecer o equilíbrio dos sistemas políticos (Seiler, 2000). Para B. Badie e G. Hermet (1980) os
185
AF miolo corrupcao 3.indd 185
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
partidos são considerados modalidades de expressão política institucional. Por «política institucional» estes autores
entendem como sendo as formas, de interacção política
submetidas a regras aceites pelos actores que participam
no jogo. Um partido político faz parte deste universo da
política institucionalizada, onde os procedimentos se impõem como os únicos meios de uniformizar e assegurar
o tratamento de todas as demandas políticas importantes
(Seiler, 2000). Definimos partido político, assim, como
sendo uma organização relativamente estável, que mobiliza apoios com vista a participar directamente no exercício do poder político (Braud, 2000). E sistema partidário como sendo a configuração estável formada pelos
partidos políticos nacionais. O sistema partidário é um
elemento importante que permite qualificar um regime
político. Geralmente o número e o tamanho do partido,
assim como sua participação no governo, constituem critérios fundamentais para a definição do sistema partidário
em vigor nesse país: multipartidarismo, bipartismo, multipartidarismo com partido dominante, partido único, etc.
(Nay e all., 2008).
Em Moçambique, apesar do sistema de representação
ser proporcional, a vida política moçambicana é dominada pelos dois actores principais da guerra civil, a Frelimo
e a Renamo. O bipartidarismo produzido nas eleições de
1994, 1999 e 2004 sobrepõe-se ao desenvolvimento de
outras forças políticas ou movimentos sociais, o que faz
com que os chamados partidos “não armados” não exerçam nenhum peso político. O resultado desta excessiva
concorrência e da fragilidade e do carácter artificial destes
partidos foi a exacerbação do processo de bipolarização
entre os dois principais beligerantes. A este propósito L.
de Brito escreve:
186
AF miolo corrupcao 3.indd 186
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
No fundo, podemos dizer que a bipolarização confirmada pelas
eleições reflecte a génese do sistema dos partidos Moçambicanos, a
força e a fraqueza de muitos partidos que entraram na competição e, sobretudo, do papel estruturante da guerra na configuração
política da sociedade Moçambicana. Ao mesmo tempo, os resultados insignificantes obtidos pelos partidos políticos não deixam
prever que estes últimos possam jogar um papel importante no futuro imediato, mesmo ao nível local, nomeadamente nas eleições
municipais (…) resta-lhes eventualmente um papel de animação
do debate político extraparlamentar, sem grande impacto na condução dos destinos do país (Brito, 1995).
É verdade que esta fraqueza pode ser explicada por
factores estruturais e directamente ligados ao sistema político, contudo, para alguns autores, esta fraqueza pode estar relacionada com o facto de a maior parte dos partidos
políticos africanos e pós-comunistas serem fenómenos
novos e terem aparecido durante os períodos de transição. Acresce a estes factos o representarem uma pequena
parte do eleitorado, estarem fragmentados, serem subdesenvolvidos, e não possuírem longevidade necessária para
se cristalizar e desenvolver efeitos cumulativos necessários para criar laços com seu eleitorado (Gosolov, 1998).
Olhando atentamente para o caso Moçambicano, vimos que a maior parte dos partidos que participaram nas
eleições de 199476 e os cerca de 50 actualmente registaEm Moçambique, depois da abertura política surgiram a Unamo
(União Nacional de Moçambique), o PPPM (Partido para o Progresso do
Povo de Moçambique), o Monamo (Movimento Nacional de Moçambique),
o PCN (Partido da Convenção Nacional), a FUMO/PMCD (Frente Unida
de Moçambique), depois o PALMO (Partido Liberal de Moçambique). A
FAP (Frente de Acção Patriótica), o Pademo (Partido Democrático de Moçambique), o SOL, (Partido Social-Liberal Democrático), o Pacode (Partido
de Convergência Democrática), o Pimo (Partido Independente de Moçambique), o PRM (Partido Revolucionário de Moçambique), o PRD (Partido
de Renovação Democrática) que concorreram às eleições de 1994.
76
187
AF miolo corrupcao 3.indd 187
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
dos possuem as características acima descritas. Contudo,
em 1994, uma pequena coligação de partidos políticos, a
União Democrática (UD) conseguiu ganhar mais de 5%
de votos necessários para estar representado, tendo elegido nove deputados na Assembleia da Republica77.
A tentativa de congregar estes partidos políticos num
movimento comum e torná‑los um grupo coeso e capaz
de fazer face a este bipartidarismo, através do Centro de
Promoção da Democracia Multipartidária (CPDM)78 do
Instituto Holandês de Apoio à Democracia Multipartidária (INMD) redundou num autêntico fracasso, e em nada
contribuiu para o enriquecimento do debate político nacional79. Conflitos internos pela gestão administrativa do
Centro, de um lado, e a falta de vontade institucional por
parte do partido Frelimo no poder, temendo que esta força pudesse, num futuro próximo, pôr em causa sua hegemonia, de outro, ditaram a desagregação da “coligação”.
Autores como Brito, L. (2000) Cartografia eleitoral de Moçambique-1994.
Maputo: Livraria Universitária; Cahen, M. (2002) Les bandits. Un historien au
Mozambique en 1994. Paris : Centre Culturel Calouste Gulbenkian, avançam
algumas hipóteses em relação aos factores que permitiram esta coligação
ultrapassar esta barreira.
78
Os membros fundadores deste Centro foram o Partido Democrático
e de Desenvolvimento, liderado por Raul Domingos antigo número dois
da Renamo, o Partido Independente de Moçambique de Yakub Sibinde, o
PARENA de Matias Balate. Posteriormente outros 10 partidos se juntaram
ao Centro.
79
Os outros partidos políticos têm concorrido repetidamente nas
eleições moçambicanas com um sucesso muito limitado. Em 1994 e
1999, 12 e 10 partidos, respectivamente, concorreram para o Parlamento,
alcançando apenas cerca de 12% dos votos em cada eleição. Este resultado
foi reduzido em 2004, quando 18 partidos, exceptuando a FRELIMO e a
RENAMO, conseguiram apenas 8.25% dos votos.
77
188
AF miolo corrupcao 3.indd 188
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
O discurso de um dos quadros seniores da Frelimo e antigo Ministro do Interior e da Segurança, Mariano Matsinha, sustenta esta vontade de manter a fraqueza e acabar
com a oposição:
A oposição, no nosso país, não deve desaparecer, mas o Partido
Frelimo, no poder, deve prosseguir seus esforços de forma a reduzir
a posição à mais estrita insignificância […]. Faremos tudo o que
for necessário de modo que a Frelimo continue sempre no poder
e que continue a melhorar sua acção […]. Milhares de partidos
podem ser criados e participar em todas as eleições, mas a Frelimo continuará no poder neste país […]. Queremos que dentro de
alguns anos, que a Oposição não entre mais no parlamento ; dito
de outra forma, no futuro todos os assentos no parlamento devem
ser ocupados pelos nossos deputados […]. Não sou a favor do desaparecimento da oposição, mas ele deve permanecer insignificante
(Notícias, 28 de Abril de 2007: p. 4). A Renamo tem tido dificuldade em assumir de forma
responsável o seu papel de oposição, ao que se junta a
fraqueza dos pequenos partidos. A esta realidade acresce
a incapacidade demonstrada pela Renamo, ao longo dos
últimos 20 anos, em se transformar e a se institucionalizar de modo a assumir a representação social de partido
político de oposição (Otayek, 1998). Todos estes factos
levam a considerar que a democracia Moçambicana corre, a passos largos, para uma democracia de partido único (Rosário, 2009).
Em 2009, durante as quartas Eleições Gerais Multipartidárias, um outro pequeno partido político, resultante
da cisão de uma pequena ala da Renamo, o Movimento
Democrático de Moçambique (MDM), conseguiu eleger
9 deputados dos 250 membros na Assembleia da República. Era esperado que O MDM pudesse alterar a bi-par189
AF miolo corrupcao 3.indd 189
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
tidarização política instalada em Moçambique, contudo
este movimento não representa, em termos de discurso,
de manifesto, ou de práticas políticas, uma alternativa,
pois não se distingue dos partidos políticos dominantes
(Chichava, 2010).
As recentes cisões e conflitos internos pela partilha
do poder, ao nível da liderança do MDM, e a ausência
de trabalho político junto do eleitorado, maioritariamente urbano e conquistado nas últimas eleições autárquicas,
sobretudo nas cidades de Maputo, mostram a fragilidade deste movimento na arena política nacional. Para se
constituir como alternativa à Frelimo e substituir a Renamo na liderança da oposição em Moçambique, o MDM
deveria agarrar a base social da Renamo e transformarse numa “máquina” política bem organizada, estruturada
e disciplinada. Esta máquina teria que integrar militares
bem formados que, não podendo ser pagos, deveriam
ser dedicados e capazes de resistir às benesses oferecidos
por outros partidos (Chichava, 2010). Esta situação está
de longe de se concretizar. Os conflitos internos verificados nos últimos meses ao nível do grupo parlamentar
do MDM e a fraca capacidade de influenciar a produção
legislativa mostram a fraqueza deste movimento na Assembleia da República.
P r i m e i r a s e l e i ç õ e s m u l t ip a r t i d á r i a s
(1994) e configuração
das forças políticas
As eleições de 1994 foram ganhas pela Frelimo com 44%
dos votos contra 38% dos votos da Renamo (Tabela 1).
190
AF miolo corrupcao 3.indd 190
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Tabela 1. Resultados das eleições legislativas
e presidenciais de 1994, total nacional e provinciais
Província
Dhlakama
Chissano
Outros
Frelimo
Renamo
UD
Outros
Calvo
Delgado
18.63
67.92
13.44
57.67
22.63
5.83
13.73
Niassa
26.90
56.53
16.53
46.27
32.77
6.19
13.71
Nampula
42.80
37.15
20.05
30.55
48.42
4.49
16.52
Zambézia
47.54
38.38
14.03
31.40
51.98
4.65
11.95
Tete
42.37
40.43
17.1
30.98
49.09
5.90
14.01
Manica
50.42
33.61
15.95
27.06
57.87
4.04
11.03
Sofala
73.48
17.53
8.98
14.21
75.86
1.48
8.27
Inhambane
10.36
78.44
11.19
59.43
12.92
11.72
15.85
Gaza
1.86
94.92
3.22
81.42
2.68
6.87
9.04
M. Prov.
6.17
89.94
3.87
77.32
6.93
5.94
9.49
M. Cidade
8.74
87.10
3.98
78.60
8.98
2.81
9.31
Total
33,73
53,30
11.66
44,33
37,78
5.44
12.45
Fonte: Moçambique, dados estatísticos do processo eleitoral
de 1994, Maputo (Mazula,1998).
Dois tipos de clivagem que caracterizavam a sociedade Moçambicana se confirmaram nestas eleições. Por um
lado a clivagem rural/urbana, dado que os eleitores das
zonas urbanas tinham votado pela Frelimo, enquanto a
população das zonas rurais80 tinha votado pela Renamo.
A população rural, principalmente das regiões centrais e
norte do país, era constituída por grupos que, por razões
sociais e históricas diversas, se tinham sentido excluídas
pela Frelimo (Cahen, 1997; Brito, 1995). Por exemplo, o
projecto socialista da Frelimo, e em particular a política
de aldeias comunais e o combate a práticas tradicionais
De acordo com as estatísticas oficiais, em 1994, cerca de 65% da população moçambicana e 80% da população pobre vivia nas zonas rurais.
80
191
AF miolo corrupcao 3.indd 191
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
como a poligamia e casamentos prematuros, foi mal recebido pelas comunidades rurais.
Uma outra clivagem correspondeu à demarcação étnico-regional do eleitorado. A Frelimo era vencedora
nas zonas dos grupos étnicos Changana e Maconde e a
Renamo era mais forte nas zonas de influência NdauSena, Chona e Macua. Mas, contrariamente a muitos
escritos, o eleitorado da Renamo era etnicamente menos
concentrado do que o da Frelimo (Cahen, 2000). Por
exemplo, nas eleições presidenciais de 1994, Dhlakama obteve maiorias relativas nas duas províncias mais
populosas, Zambézia (47,5 %) e Nampula (42,8 %),
bem como em Manica e em Tete, e obteve uma maioria absoluta estável em Sofala (73,5%). Chissano obteve
maiorias nas províncias do Sul, nomeadamente Gaza
(94,9 %), província de Maputo (89,9 %), Inhambane
(78,4 %) e cidade de Maputo (87,1 %), bem como nas
antigas bases das zonas libertadas da luta anticolonial, nomeadamente Cabo Delgado (67,9 %) e Niassa
(56,5 %) (Mazula, 1997). Comunidades coesas e muito
localizadas do Sul e do extremo Norte votaram massivamente pela Frelimo. É destas duas regiões que são
oriundas, predominantemente, as elites da Frelimo: elite urbana e intelectual do Sul e elite militar do Norte.
Mas a concentração étnica do voto era mais visível nos
sectores onde a Frelimo tinha ganho eleições e o antigo partido de todo o povo permanecia essencialmente
um partido do sul (Cahen, 2000).
A Renamo contesta os resultados do veredicto eleitoral, evocando graves irregularidades. Entre essas irregularidades, o movimento de Afonso Dhlakama indicava que
muitos eleitores, sobretudo das zonas sob a sua antiga influência militar, tinham sido impedidos de votar, porque
a Frelimo ao nível local tinha propagado, nas vésperas
192
AF miolo corrupcao 3.indd 192
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
das eleições, rumores segundo os quais, no dia do voto,
as pessoas seriam sequestradas e mortas por brancos que
pilotavam helicópteros (Mozambiquefile, 1994: p. 8). A Renamo acusava também a Frelimo de ter comprado não
somente falsas urnas, mas também cartões de eleitor de
seus simpatizantes para lhes impedir de votar (Savana, 11
de Novembro de 1994). Em simultâneo, a Renamo reivindica a nomeação de governadores seus nas províncias
onde tinha ganho as eleições.
A reacção da Frelimo não se fez esperar: Joaquim Chissano, durante uma conferência de imprensa com jornalistas nacionais e internacionais acreditados para cobrir o
processo eleitoral de 1994, e questionado, sobre a fraude
evocada pela Renamo afirma:
A Renamo tinha ilusões, […] Agora ela procura invenções
para justificar os maus resultados eleitorais que obteve. […] O
meu partido não tem dinheiro para comprar falsas urnas, nem
cartões eleitorais […], ainda mais me sentiria muito mal se um
dia soubesse que fui eleito graças a fraude. Seria o primeiro a exigir que as eleições fossem anuladas, por não serem legítimas (Mozambiquefile, Novembro de 1994).
A Comissão Nacional de Eleições julgando este recurso incapaz de modificar globalmente os resultados
do voto, decide validar o escrutínio e proclamar a Frelimo e o seu candidato como vencedores destas eleições.
A Frelimo toma o poder e tomando em conta a ameaça
que a Renamo representava face à sua hegemonia, começa a reforçar a sua posição dominante, legitimada pela
maioria obtida na Assembleia da República. Em seguida
a Frelimo recusa a entrada de outras forças políticas no
governo e nas instituições do Estado. Recordemos que
antes das eleições a maior parte dos partidos políticos
193
AF miolo corrupcao 3.indd 193
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
constituídos, incluindo a Renamo, tinham exigido, à semelhança da África do Sul, a formação de um governo
de unidade nacional.
As
eleições
G e r a is
de
1999:
b ip o l a r i z a ç ã o , c o n s o l i d a ç ã o d o
F r e l i m o e a i n v is í v e l
subida da Renamo
poder da
As eleições municipais de 1998 tinham confirmado o
poder hegemónico da Frelimo e adiado a possibilidade da
chegada da Renamo e de outras forças políticas ao poder nas cidades e vilas, onde houve eleições autárquicas.
Num país, onde houve eleições locais um ano antes das
eleições Gerais, Legislativas e Presidenciais, que influência
podiam jogar aquelas na reconfiguração do espaço político do país? Iriam elas reforçar o poder hegemónico da
Frelimo, ou produzir uma alternância política ?
As eleições Gerais e Multipartidárias de 1999 foram as
segundas a realizarem-se no país depois do fim da guerra
civil, e as primeiras em que a Renamo participou como
força política institucionalizada e com base eleitoral em
todo território nacional.
Tabela 2. Resultados das eleições legislativas
e presidenciais de 1999, total nacional e províncias
Província
Dhlakama
Chissano
Frelimo
Renamo
UD Outros
Calvo Delgado
33.5
66.5
62.3
26.9
1.3
9.5
Niassa
56.9
43.0
41.2
47.5
1.2
10.1
Nampula
55.8
44.2
39.2
44.0
2.0
14,8
Zambézia
70.4
29.6
26.1
59.5
1.5
12.9
194
AF miolo corrupcao 3.indd 194
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Tete
59.6
40.4
37.2
49.5
1.6
11.7
Manica
66.0
34.0
32,0
56.9
1.5
9.6
Sofala
79.9
20.1
19,6
71.1
1.2
8.1
Inhambane
28.9
71.1
62,1
20.5
3.0
14.4
Gaza
4.8
95.2
87,4
3.5
0.7
8.4
M. Prov.
9.9
90.1
85.0
9.6
0.7
4.7
M. Cidade
13.3
86.7
82.7
13.5
0.5
3.3
Total
47,71
52,29
48,54
38,81
1.3
9.77
Fonte: STAE. 2002. Eleições Legislativas
e Presidenciais 1999, Maputo.
Com uma taxa de abstenção de 30,49% (presidenciais) e 32,9% (legislativas), a Renamo se apresentou nestas eleições em aliança com uma coligação de pequenos
partidos81, formando o bloco Renamo-União Eleitoral82.
Mesmo com a coligação formada, a única coisa que a Renamo mostrou, foi que a unidade era uma condição necessária mas insuficiente para se impor como alternativa.
Ela obteve 38,81% dos votos contra 48,54% da Frelimo.
Joaquim Chissano recolheu 52,29% dos sufrágios expressos contra 47,71% de Afonso Dhlakama. A Renamo e o
seu candidato aumentaram o seu score, lá onde estavam
81
Os dados de 1994 mostraram que a maioria dos votos obtidos por
este partido cerca, de 1% e 2%, foram arbitrários, provocados pelos erros
cometidos pelos eleitores.
82
A coligação RUE, constituída em 1999 era composta pelos partidos
políticos seguintes: Frente Democrática Unida (UDF), Movimento
Nacional de Moçambique (MONAMO); Partido de Convenção Nacional
(PCN); Frente de Aliança Patriótica (FAP); Partido do Progresso do
Povo de Moçambique (PPM), Frente Unida de Moçambique (FUMO);
Aliança Democrática de Moçambique (ALIMO), Partido de Renovação
Democrática de Moçambique (PRD) e União Nacional de Moçambique
(UNAMO).
195
AF miolo corrupcao 3.indd 195
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
mais implantadas. Além disso, nenhum outro partido conseguiu ultrapassar a barreira de 5%.
E, olhando para os resultados destas eleições do ponto de vista global, vimos um crescimento exponencial da
Renamo com a conquista de mais uma província, a de
Niassa, e sobretudo uma grande progressão de Afonso
Dlakhama, que capta todos os votos dos candidatos que
tinham participado nas eleições de 1994 e arranca 1,01%
ao candidato da Frelimo, Joaquim Chissano (Notícias, 23
de Dezembro de 1999). Mesmo abalada por problemas
internos e organizacionais, a Renamo tinha conseguido
usar as autoridades tradicionais como intermediários na
transmissão de informações políticas junto ao eleitorado
rural. Neste período, a Frelimo não tinha ainda dado passos significativos na sua política de recuperação dos régulos (chefes tradicionais) e “abrir socialmente o poder”,
apesar de alguns esforços iniciais (Dinnerman, 1998).
Do ponto de vista de distribuição regional do voto,
nada mudou. A Frelimo continua a ser forte no sul (Maputo-Cidade, Maputo-Provincia, Gaza e Inhambane) e
no extremo norte (Cabo Delgado). A Renamo teve sempre as suas bases no centro (Sofala, Manica, Tete), o coração de Moçambique colonial (Zambézia e Nampula), e
arranca nestas eleições das mãos da Frelimo a província
de Niassa. A Renamo continua a dominar as zonas rurais,
enquanto a Frelimo, à imagem das suas elites urbanas, domina as zonas urbanas.
Esta vitória foi contestada pela Renamo que acusava a
concorrência de fraude no voto e que por isso, não reconhecia os resultados das eleições nem o governo. Em simultâneo, a Renamo exige a nomeação de governadores
seus nas províncias onde ganhou as eleições e caso não o
fizesse exigia que o governo convocasse eleições antecipadas (Awepa, 2001). O mesmo partido exige a recontagem
196
AF miolo corrupcao 3.indd 196
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
dos votos, pedido que foi recusado pelo Tribunal Supremo. Lembremos que a CNE havia prolongado estas eleições por mais um dia, para permitir que os abstencionistas
votassem. Segundo algumas fontes, que não apresentaram
provas, todos os votos deste dia foram a favor do partido
Frelimo e do seu candidato (Cahen, 2009). Os resultados do
distrito de Nacala‑a‑velha, próximo da Renamo, não foram
contabilizados ou anulados por alegada fraude cometida
pela Renamo. Quando se olha atentamente para os dados
agregados publicados pela STAE, constata-se que os votos
nulos e a abstenção penalizavam fortemente as zonas sob
forte influência da Renamo (STAE, 2002).
Em termos absolutos, apenas 224 678 votos separavam J. Chissano de A. Dhlakama. Contudo, cerca de
550 editais, que totalizavam 377 773 eleitores, não foram
contabilizados pela CNE. Se estes votos eram a favor de
Dhlakama, isto podia mudar o resultado das eleições a favor de A. Dhlakama (Cahen, 2000). O Centro Carter, uma
das organizações credíveis de observação de Eleições em
Moçambique (com observadores de longo prazo) qualificou estas eleições como não sendo livres e justas (Carter
Center, 2000). Se fraude houve, nunca se saberá se ela foi
suficiente para reverter os resultados eleitorais, mas mais
importante politicamente, era compreender que uma grande parte do eleitorado estava convencido que Dhlakama
tinha ganho as eleições e o poder se mantinha através da
fraude (Cahen, 2000).
A campanha eleitoral para estas eleições se caracterizou desde o princípio por um desequilíbrio entre os candidatos da Frelimo e outros concorrentes em termos de
meios financeiros, de organização, de quadros qualificados de intimidação e de utilização dos meios do Estado.
Compreende-se desde logo porque o financiamento constituiu o discurso dominante durante a campanha eleitoral
197
AF miolo corrupcao 3.indd 197
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
da Renamo e de outros pequenos partidos da oposição.
Contudo esta reivindicação esbarrava na recusa do Estado-Frelimo que não pretendia descurar de uma das bases
essenciais de sua dominação política, a saber, o monopólio do acesso aos recursos do Estado.
A
criação da hegemonia: eleições
g e r a is e m u l t ip a r t i d á r i a s
de
2004
e
2009
O abalo político na liderança da Frelimo, provocado
pela subida galopante da Renamo durante as eleições de
1999, provocou mudanças no seio do Partido Frelimo no
poder. Apesar de a taxa de abstenção ter sido superior a
50%, as Eleições Gerais de 2004, que confrontaram o candidato tradicional da Renamo e o seu partido à Frelimo
de A. Guebuza – que se tinha tornado Secretário-Geral
em 2001– foram marcadas por uma vitória significativa
deste último. Armando Guebuza e a Frelimo venceram
com 63% e 62% de votos, respectivamente, nas eleições
Presidenciais e Legislativas. Para M. Cahen, a vitória de
Guebuza é politicamente legítima e exprime a hegemonia do seu partido na sociedade moçambicana, mas essa
legitimidade, segundo o autor, não foi fundada sobre o
reforço da sua base social (Cahen, 2009). Assim, Afonso
Dhlakama e a Renamo registaram uma queda importante
tendo recolhido, 32% e 30% dos votos respectivamente,
o que representa uma queda de cerca de 50% dos votos
em relação aos obtidos nas eleições de 1999.
Estas eleições foram contestadas por irregularidaades
não só durante o recnseamento eleitoral, mas tambem
durante a votação. A decisão da CNE eleitoral de optar
pela actualização do Recenseamento juntando os eleitores
198
AF miolo corrupcao 3.indd 198
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
de 1999, 2003 e 2004, numa situação em que não existem
mecanismos de abate de eleitores mortos ou transferidos,
inflacionou a base de dados. E teve consequências no cálculo da abstenção e dos mandatos dos círculos eleitorais.
De facto, o universo eleitoral fixado pela CNE não correspondia ao universo das pessoas que tinham capacidade eleitoral activa, o que levou J. Hanlon a escrever que:
O universo Eleitoral fixado pela Comissão Nacional de Eleições foi portanto de 9 142 151 (...) atendendo à taxa média de
mortalidade entre estas datas e uma estimativa dos movimentos
migratórios, a população com capacidade eleitoral activa seria em
torno de 7,6 milhões de eleitores e a abstenção foi de 56,4 %.(...)
Isso é verdade... e deixa então cerca de 1.5 milhões de eleitores
dispóniveis para que haja formas de organizar a fraude (Awepa, 2005).
Esta fraude verificou-se em grande escala nas províncias de Tete e Gaza em que a votação em algumas mesas
de recenseamento chegou a atingir a cifra de 100% a favor de Armando Guebuza e da Frelimo. Os efeitos desta
fraude são difíceis de medir, mas isso não invalida a análise global de que se houve fraude nestas eleições, ela foi
diferente da de 1999. A fraude nestas leições consistiu em
desorganização do recenseamento eleitoral, intimidação e
uma política neopatrimonial activa (Cahen, 2009).
Para as eleições de 2004, a nota de destaque tinha sido
a antecedência com que a Frelimo, partido no poder, iniciara a campanha eleitoral. De facto, a partir de 2002,
quando A. Guebuza foi designado Secretário-Geral, a
Frelimo começa uma campanha de mobilização e envio
de quadros para as províncias de modo a revitalizar sua
base social (Brito, 2010; Cahen, 2009). Ao longo do seu
primeiro mandato, Guebuza continuou o seu trabalho de
199
AF miolo corrupcao 3.indd 199
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
reforço do partido e manteve a sua presença sistemática
no terreno através das chamadas “Presidências Abertas”
que abrangeram quase todos os distritos.Nestas condições, a vitória nas eleições gerais de 2009 foi uma formalidade (Brito, 2011).
De facto, Guebuza obteve 75,01% dos votos na eleição
Presidencial contra 16,41 de Afonso Dhlakama e 8,9% de
Davis Simango. Quanto à eleição Legislativa, a Frelimo obteve 74,66% dos votos (que corespondem a 191 assentos
na Assembleia da República), contra 17,69% da Renamo
e 3,39% do MDM. Nova força política na arena nacional, este pequeno partido conseguiu eleger 8 deputados
e obter uma representação na Assembleia da República.
Apesar do forte investimento humano, material e financeiro utilizado pela Frelimo durante a campanha eleitoral,
a abstenção situou-se mais uma vez acima dos 50%, o que
sugere que uma grande parte da sociedade moçambicana
continua fora do sistema (Hyden, 2006) e escapa ao controle do partido Estado-Frelimo que continua a ser um
gigante com pés de barro (Brito, 2010)
Tabela 3. Resultados eleitorais de 2009: Partidos
e Candidatos
Frelimo
Renamo
MDM
Guebuza Dhlakama Simango
80,8
14,9
3,4
80,8
13,4
5,7
81,3
65,7
13,1
28,4
82,3
66,8
12,7
27,4
5,5
5,8
Zambézia
53,6
40,8
54,3
38,8
6,9
Tete
87,2
1,03
86,0
8,8
5,3
Manica
71,0
25,0
70,4
22,2
7,4
Sofala
Inhambae
Gaza
50,8
83,7
96,9
23,1
6,9
1,4
23,4
4,5
51,6
86,5
95,8
22,5
5,7
0,9
25,9
7,8
3,3
M. Prov.
88,4
7,8
3,9
86,1
4,2
9,7
Calvo
Delgado
Niassa
Nampula
200
AF miolo corrupcao 3.indd 200
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
M.Cidade
76,6
5,4
África
85,4
Europa
Total
16,5
80,7
4,4
14,9
3,5
95,8
2,5
1,7
84,8
8,5
78,8
3,2
18,1
74,7
17,7
75,0
16,4
8,6
3,9
Fonte: Conselho Constitucional, 2009.
A parcialidade das instituições de administração eleitoral (CNE/STAE) foi de novo notória nestas eleições,
pois posicionaram-se a favor do partido Frelimo. Quando se olha atentamente para a participação nestas eleições
verifica-se que a abstenção fustigou as zonas de Nampula
e Zambézia, zonas sob forte influência da Renamo. Uma
das razões desta abstenção prende-se com o facto de os
eleitores terem percorrido em média mais de 25 km para
exercer seu direito de voto (Brito, 2009). E paradoxalmente, existem algumas regiões das províncias de Gaza e
Tete onde a participação está acima dos 95% e mesas de
distritos como Changara, em Tete, em que só o candidato
da Frelimo e o seu partido foram votados (Brito, 2009),
tendo se contabilizado cerca de 160 mil votos a mais a
favor de Armando Guebuza e Frelimo (AWEPA, 2009).
Alguns desses votos foram invalidados, o que permitiu à
Renamo ganhar 2 assentos na Assembleia da República.
As
e l e i ç õ e s l o c a is c o m o m o d o
de consolidação da hegemonia
da
Frelimo
A Frelimo tinha saído das eleições Gerais de 1994 numa
posição dominante, devido à maioria absoluta que tinha
tido no Parlamento. Mas estava também consciente que à
201
AF miolo corrupcao 3.indd 201
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
vantagem eleitoral que possuía era fraca e que a Renamo
tinha apoios consideráveis no seio do eleitorado do Centro
e Norte do país. Lembremos que depois da aprovação da
Constituição de 1990, em Setembro de 1994, uma lei sobre
a criação dos «distritos municipais» tinha sido adoptada (Lei
3/94) pela Assembleia popular monopartidária. Do ponto
de vista constitucional, esta lei não foi reconhecida como
aceitável, pela oposição parlamentar, devido às inconsistências em termos de articulação entre os órgãos desconcentrados e descentralizados. Ela foi posteriormente abolida
e substituída pela Lei das Autarquias Locais (Lei 2/97) que
previa a realização de eleições em 33 autarquias. A Renamo e a maior parte dos pequenos partidos da
oposição decide boicotar o escrutínio alegando erros graves durante o recenseamento eleitoral e condicionava a sua
participação no processo com sua integração no STAE,
para ajudar a corrigir os erros por si detectados (Notícias,
18 de Março de 1998). De facto, a Comissão Nacional de
Eleições tinha reconhecido a existência de erros graves
no processo de recenseamento. De acordo com a CNE,
dos 3 570 cadernos eleitorais existentes nos 33 municípios
onde haveria eleições, 280 cadernos com cerca de 14 mil
eleitores estavam mal recenseados.
Com uma correcção transparente e imparcial dos erros e irregularidades do Recenseamento, irão ver que os mandatos publicados pela CNE para cada município serão reformulados, porque existe muita gente que não foi recenseada (Notícias, 18 de
Março de 1998).
E num outro registo, Afonso Dhlakama, acrescenta:
Mesmo agora se não houvesse manobras da Frelimo, mostraríamos que temos pessoas para dirigir os municípios (…) No que
202
AF miolo corrupcao 3.indd 202
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
diz respeito ao dinheiro, todo o mundo sabe que nenhum partido
tem dinheiro: a Renamo não tem dinheiro e a Frelimo também
não tem, mas rouba o dinheiro público (…) não iremos participar nas eleições devido às manobras da Frelimo (Notícias, 4 de
Junho de 1998).
Porque as estruturas eleitorais não atenderam a preocupação da Renamo, esta decide boicotar as eleições.
Boicotando as eleições locais, a Renamo esperava do
Governo e dos doadores o mesmo gesto de 1994 em
que todos os partidos políticos participantes tinham
recebido um fundo de participação, o “trust Fund”. A
Renamo, por ser um dos grandes partidos, tinha recebido alguns milhares de dólares. A Frelimo concorre
sozinha e ou contra algumas organizações da sociedade civil, que à luz da constituição de 1990 tinha ganho
o direito constitucional de se apresentar ao nível local.
As eleições foram ganhas pela Frelimo nos 33 municípios em jogo. Do ponto de vista político este processo
foi caracterizado (i) pela falta de cadernos eleitorais nas
mesas de voto; (ii) pela intimidação aos eleitores (Serra, 1999); (iii) e pela alta taxa de abstenção que atingiu a
cifra de 85,13% (CNE, 1998). Na cidade de Nampula a
taxa ultrapassava os 91,95%.
Quarenta e cinco dias depois da publicação dos resultados oficiais pela Comissão Nacional de Eleições e durante o processo de homologação pelo Tribunal Supremo83,
foram detectados erros considerados muito graves84. Segundo o
Tribunal Supremo, em Nacala Porto, para além das acen83
Entre os sete juízes conselheiros do Tribunal Supremo que analisaram
o processo eleitoral Municipal de 1998 para sua homologação, dois se abstiveram e pediram a realização de um inquérito ao processo eleitoral, veja
Metical, 14 de Agosto de 1998: pp. 1-7.
84
580 Eleitores em Monapo, 871 em Nampula, 847 em Pemba e 488 em
Quelimane não tinham sido contabilizados.
203
AF miolo corrupcao 3.indd 203
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
tuadas diferenças entre votantes e os votos expressos, os
resultados de quatro mesas de voto (cerca de 2 179 eleitores) tinham sido transferidos de um partido para o outro. De facto, os resultados intermediários, resultantes da
contagem feita ao nível local, confirmam a transposição
dos votos da OCINA a favor da Frelimo (CMCN, 1998).
Ora como os votos eram da OCINA, isto podia inverter
o resultado das eleições e esta teria de facto algumas centenas de votos mais do que a Frelimo, dando-lhe a maioria na Assembleia Municipal85.
Houve fraude? O importante era compreender que
os dirigentes e as estruturas eleitorais ao nível local, uma
grande parte do eleitorado e alguns quadros da Frelimo
ao nível local (Matsimbe, 2004) sabiam que a OCINA
eventualmente teria ganho as eleições e a Frelimo se tinha
mantido no poder em Nacala Porto através da fraude. A
Frelimo tinha-se aproveitado do seu estatuto hegemónico
e da influência que exerce sobre e nas instituições eleitorais
a todos os níveis para inverter os resultados eleitorais. A
alteração dos sufrágios eleitorais constitui uma estratégia
perfeitamente viável de conquista ou de preservação de
um mandato (Otayek, 2002).
As eleições municipais de 2003 marcaram uma nova
era na história política de Moçambique com a inversão da
estrutura e das relações de poder nas regiões central e setentrional do país. Num primeiro momento (1998-2003),
a Frelimo tinha assegurado uma vitória nos 33 municípios, mas num segundo (2003-2008), a Renamo, antigo
movimento rebelde, consegue ganhar alguns municípios
Segundo os resultados oficiais a Frelimo tinha obtido 6 426 votos,
contra 2 605 da OCINA. Se forem tomados em conta os 2 179 votos transferidos e se adicionarmos os 2 605 oficiais registados pela OCINA, o resultado seria o seguinte: Frelimo 4 347 e OCINA 4 684.
85
204
AF miolo corrupcao 3.indd 204
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Angoche, Ilha de Moçambique, Nacala Porto (Nampula), Beira e Marromeu (Sofala) e se institucionalizar como
poder político local.
Do ponto de vista político as eleições municipais de
19 de Novembro de 2003 confirmaram, apesar da taxa de
abstenção de 75,84%, a hegemonia do partido Frelimo
em todo o território moçambicano. Mas em Angoche,
na Ilha de Moçambique, Nacala Porto e Beira, tanto na
eleição dos presidentes quanto na eleição dos membros
das assembleias municipais, e apesar do desequilíbrio na
alocação de fundos entre os partidos políticos, a Renamo varreu literalmente o seu directo concorrente. No
entanto, o Presidente da Renamo não deixou de referir
no seu discurso que “em qualquer processo eleitoral o
problema dos partidos políticos na oposição era a disponibilidade de Fundos para levar avante a sua campanha
eleitoral” (Notíciais, 4 de Junho de 1998). Em Angoche,
em 31 assentos que constituíam a assembleia municipal, a Renamo obteve 17, contra 13 da Frelimo e 1 do
Pimo ; na Ilha de Moçambique em 17 assentos a Renamo teve 10, contra 6 da Frelimo e 1 da UPI ; finalmente
em Nacala Porto, numa assembleia constituída por 39
lugares, a Renamo conquistou 23, contra 15 da Frelimo,
seu principal adversário, e 1 da OCINA (STAE, 2006).
Contudo, nos municípios em que a Renamo conquistou o poder através das urnas, se deparava com um formidável e multifacetado inimigo, não só do ponto de vista administrativo, mas também financeiro (Cahen, 2009).
Na verdade, os administradores dos distritos, em que estes
municípios se situam, exerciam um poder administrativo
paralelo e assumiam poderes municipais de cobrança de
impostos, taxas de mercado, gestão escolar, etc, (Rosário,
2009). Com estes expedientes controlavam o exercício do
poder por parte de entidades externas ao seu meio social.
205
AF miolo corrupcao 3.indd 205
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Os resultados das terceiras eleições municipais de Novembro de 2008 testemunham esta vontade do EstadoFrelimo de acabar com a oposição em todos os escalões
do Estado. Com uma taxa de participação de 46%, mais
alta que a das eleições locais de 2003 (28%) e das eleições
legislativas e presidenciais de 2004 (43%), a Frelimo ganha
as eleições em quarenta e dois dos quarenta e três municípios em jogo. Obteve a maioria relativa em quase todas as
assembleias municipais e elegeu na primeira volta quarenta
e um Presidentes dos conselhos Municipais. Em Nacala
Porto, o candidato da Frelimo foi eleito na segunda volta (www.jornalnoticias.co.mz, 2009). Na primeira volta, o
candidato da Frelimo Chale Ossufo, obteve 49,84% dos
votos contra 47,81% do candidato da Renamo, Manuel
dos Santos. Na cidade da Beira (Sofala), foi o antigo presidente, (ex-Renamo) que, expulso do partido86, se apresentou como independente e ganhou o escrutínio com
61,6% dos votos expressos (Conselho Constitucional,
2009). O candidato da Frelimo, Lourenço Bulha, obteve
33,73% dos votos e o candidato oficial da Renamo, Manuel Pereira, 2,66%. Mais grave foi a escandalosa derro86
É preocupante ver que no Município da Beira, dirigido por Daviz
Simango e com uma maioria Renamo na Assembleia Municipal, e considerado como um dos melhores municípios do país, o Presidente do Conselho
Municipal não tenha sido dada a oportunidade de se apresentar em nome
do partido Renamo. A ameaça que Daviz Simango representava contra seu
líder Afonso Dhlakama, e os conflitos que opunham o Presidente do Município da Beira, os vereadores e a Assembleia municipal Renamo, são algumas das causas explicativas para esta exclusão. Para mais detalhes sobre os
conflitos que opunham o Presidente do Conselho Municipal, os membros
da Assembleia Municipal e vereadores, veja: « Indiciados de conspiração :
Daviz Simango exonera vereadores », Notícias, 13 de Setembro de 2008 :
4 ; « Assembleia da Beira : Renamo dividida », Notícias, 16 de Outubro de
2008 : 4 ; « Delegado da Renamo em Sofala volta a acusar Daviz Simango
», in <http://www.canalmoz.com/defaut.jsp?file, página visitada no dia 09
de Outubro de 2008.
206
AF miolo corrupcao 3.indd 206
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
ta eleitoral da Renamo, nas 10 novas vilas, que se tinham
tornado municípios à luz do gradualismo (Lei 3/2008). Se
em Municípios como Gondola (Manica) e Alto-Molócuè
(Zambézia), dentre os 13 assentos em jogo na Assembleia
Municipal, a Renamo apenas ganhou respectivamente 3 e
4 assentos, em municípios como Marrupa (Niassa), Mueda (Cabo Delgado), Macia (Gaza) e Namaacha (MaputoProvíncia), nenhum assento foi ganho pela Renamo. No
que se refere aos municípios de Ribaué (Nampula), Ulongué (Tete), Gorongosa (Sofala) e Massinga (Inhambane),
a Renamo conquista apenas um assento, contra doze da
Frelimo na assembleia municipal local.
A Renamo acusa a Frelimo e o seu Presidente Armando Guebuza de terem praticado um « crime eleitoral »
(O País, 13 de Janeiro de 2009). Ameaça não entregar ao
Estado os municípios sob a gestão da Renamo (Notícias,
15 de Janeiro de 2009), e exige o começo de negociações
para a partilha do poder nos quarenta e dois municípios
(www. Canalmoz.com, 2008), menos em Nacala Porto,
correndo o risco de incitar o povo à desobediência civil, declara:
Para salvar a democracia e evitar violência política pós-eleitoral semelhante àquela que teve lugar no Kenya e no Zimbabwe, a
Renamo deve ignorar os resultados oficiais e negociar com o Presidente da Frelimo, Armando Guebuza, a partilha do poder nos
municípios. […] Não queremos guerra. Condenamos estas eleições. Foi um crime eleitoral. […]. Queremos negociar com o chefe
do Estado para preservar a democracia […]. O povo foi roubado. […] Gostaria que o presidente Guebuza reconhecesse o crime
eleitoral que foi cometido […] Devemos negociar a partilha do
poder nos municípios para evitar o que se passou no Kenya (www.
Canalmoz.com, 2008).
207
AF miolo corrupcao 3.indd 207
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
E, num outro momento, em Nampula, Afonso Dhlakama acrescenta:
Vou dirigir uma campanha de instabilidade política […].
Vou dentro de alguns dias, investir os candidatos da Renamo
nos postos de Presidentes dos Conselhos Municipais onde fomos
roubados (www.opais.co.mz, 2009) pela Frelimo nas eleições de
2008. […] Vamos instalar as administrações municipais paralelas, onde os Presidentes da Renamo vão também nomear vereadores para gerir o poder local (Notícias, 27 de Janeiro de 2009).
Estas reivindicações não eram desprovidas de sentido.
De facto, o Estado-Frelimo, ao invés de decretar feriado o
dia das eleições municipais apenas nos quarenta e três municípios onde haveria votação, estende esta medida a todo
o território. Segundo a Renamo, esta medida terá permitido à Frelimo deslocar seu eleitorado, que habita nos distritos vizinhos, para ir votar em alguns municípios87 onde
a Renamo era politicamente forte. A tese defendida pela
Renamo não nos parece com muito sentido, ainda mais
porque, uma deliberação da CNE (Deliberação n° 125/
CNE/2008 de 12 de Novembro de 2008) abria a possibilidade de voto aos cidadãos que não figuravam nas listas
eleitorais (CNE, 2008). Por um lado, na Beira, segunda
cidade do país, quase dez mil votos suplementares a favor
da Frelimo e do seu candidato foram descobertos. ConÉ um procedimento normal na Frelimo. Por exemplo, em 2005,
aquando das eleições intercalares em Mocímboa da Praia, convocadas devido a morte do Presidente do Conselho Municipal, pessoas vivendo em
Nampula, Pemba, Montepuez e outros distritos vizinhos foram transportados em camiões e autocarros alugados pelo Partido Frelimo para votar no
seu candidato no Município de Mocímboa. Veja Observatório Eleitoral,
Relatório preliminar do processo de observação e recolha de apuramentos parciais. Eleição
Intercalar: Mocímboa da Praia 2005, Maputo, Junho de 2005.
87
208
AF miolo corrupcao 3.indd 208
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
siderados pelo Presidente da Comissão Nacional de Eleições como votos resultantes de uma falha técnica (www.
Canalmoz.com, 2008) mas sem contudo indicar ou explicar de que falha se tratava. Estes votos davam uma maioria absoluta ao Partido Frelimo na assembleia municipal.
É verdade que o Estado-Frelimo recorreu a manobras
eleitorais diversificadas para ganhar as eleições municipais
de Novembro de 2008. Mas reduzir a vitória da Frelimo
a estas manobras, seria ignorar todo um trabalho de mobilização e reorganização operado desde a chegada de A.
Guebuza na liderança do partido. Com Guebuza, uma
atenção especial foi prestada às células de base e aos administradores de distrito, que constituíam historicamente
um laço fundamental de controlo do território e da população88. Em contrapartida, a Renamo, de um lado, mal organizada e abalada por conflitos internos opondo os seus
membros pela partilha dos recursos do municípios onde
exerciam o poder desde 2003, e de outro lado, sua estrutura sempre militarizada, ainda « não civilizada » com um
claro corte entre a direcção central e as bases, encontrava
dificuldades para apresentar uma alternativa credível, capaz de fazer frente ao Estado-Frelimo, no que diz respeito à gestão municipal.
Referências Bibliográficas
BADIE, B. e HERMET, G. (1980) Politique comparé. Paris: PUF.
BRAUD, P. (2000) Sociologie Politique. Paris: LGDJ.
88
No mês de Junho de 2004 teve lugar em Nampula uma conferência
nacional de quadros do partido na qual participaram também os administradores de distritos, sem que isso levantasse um escândalo, com o objectivo
de preparar a campanha eleitoral. Nesta reunião, Armando Guebuza desenvolve um discurso nacionalista, voluntarista e de ruptura com as antigas
práticas da antiga direcção. Critica o “deixa andar” e se engaja a combater
a pobreza.
209
AF miolo corrupcao 3.indd 209
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
BRITO, L. (1995) O comportamento eleitoral nas primeiras eleições
multipartidárias em Moçambique In: MAZULA, B. (Org) Moçambique, Eleições Democracia e Desenvolvimento. Maputo: Embaixada do
Reino dos Países Baixos.
BRITO, L. e all. (2003) Moçambique : uma avaliação do Potencial de conflito. Maputo: USAID.
BRITO, L. (2009) Uma análise preliminar das eleições de 2009. Maputo:
IESE. Ideias, 22.
BRITO, L. (2010) Le difficile chemin de la démocratie. Politique Africaine. Paris: Karthala, 117, pp. 5-22.
CAHEN, M. (1997) ‘Entrons dans la nation’ Notes pour une étude du discours politique de la marginalité: le cas de la Renamo
du Mozambique. Politique Africaine. Paris: Karthala 67, pp.70-88.
CAHEN, M. (2000) Nationalisms and Ethnicities. Lessons from Mozambique In: BRAATHEN, E., Boås, M. e Sæther, G. (Eds.)
Ethnicity Kills? The Politics of War, Peace and Ethnicity in Subsaharian
Africa. Londres: MacMillan. pp,163-187.
CAHEN, M. (2009) Resistência Nacional Moçambicana, de la victoire à la déroute? Pluripartisme sans pluralisme et hégémonie
sans stabilité. Sociétés politiques comparées, 17, http://www.fasopo.
org/reasopo/n17/article.pdf (consultado a 30 de Março 2010).
CHICHAVA, S. (2010) Movimento Democrático de Moçambique:
uma nova força política na democracia moçambicana? Cadernos
do IESE. Maputo: IESE, nº2.
DINNERMAN, A. (1999) O surgimento dos antigos régulos como
chefes de produção na província de Nampula (1975/87). Estudos
Moçambicanos. Maputo: CEA-UEM, 17, pp. 95-256
GOSOLOV. G. (2004) Political parties in the regions of Russia: democracy
unclaimed. Boulder-Colorado: Lynne Rienner Publishers.
HYDEN, G. (2006) Between State and Community: Challenges to
Redesigning Governance in Africa. Working Conference on ”Designing Constitutional Arrangements for Democratic Governance in Africa: Challenges and Possibilities,” held at the Workshop
in Political Theory and Policy Analysis, Indiana University Bloomington, March, 30-31. http://www.indiana.edu/~workshop/
papers/hyden_wrkconf.pdf.
LEVITSKY, S. e WAY, L. (2002) The rise of competitive Authoritarianism. Journal of Democracy. 2 (13), Abril.
MATSIMBE, H. (2004) Carta à sua (s) Excelência (S) Governador da Província de Nampula, Ministro da Administração Estatal e ao SecretárioGeral do Partido Frelimo. Nacala Porto: 23 de Julho.
210
AF miolo corrupcao 3.indd 210
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
MAZULA, B. (1997) Moçambique. Dados estatísticos do processo eleitoral de
1994. Maputo: AWEPA/STA.
NAY, O. e all. (2008) Lexique de Sciences Politique vie e institutions politiques. Paris: Dalloz.
OTAYEK, R. (1998) Les élections en Afrique sont-elles un objet
scientifique pertinent? Politique Africaine. Paris: Karthala, 69.
OTAYEK, R. (2002) Vu d’Afrique. Société civile et démocratie. De
l’utilité du regard décentré. Paris, Revue Internationale de Politique
Comparée, IX (2).
PITCHER, A. (2002) Transforming Mozambique: the Politics of privatization, 1975-2000. Cambridge: Cambridge University Press.
ROSÁRIO, D. (2009) Les mairies des «Autres». Une Analyse politique sociohistorique et culturelle des trajectoires locales: les cas d’Angoche, de l’Île de
Moçambique et de Nacala Porto, Tese de Doutoramento em Ciências
Políticas, Bordéus: IEP de Bordéus.
ROSÁRIO, D. (2011) From Negligence to Populism: An Analysis of
Mozambique’s Agricultural Political Economy. FAC: Working paper 34.
SEILER, D. L. (2000) Les partis politiques. Paris: A. Colin.
SERRA, C. (1999) O eleitorado Incapturável.Maputo: Livraria Universitária.
SECRETARIADO TÉCNICO DE ADMINISTRAÇÃO ESTATAL (STAE) (2002) Eleições Legislativas e Presidenciais de 1999. Maputo: Pandora Box.
STIGLITZ, J. (2002) La grande désillusion. Paris: Fayard.
Jornais consultados
CANAL DE MOÇAMBIQUE (2008) « Situação dos votos a mais na
Beira foi erro técnico e não acto propositado de que se pode castigar alguém », 5 de Dezembro in <http://www. canalmoz.com/
defaut.jsp>, (página visitada 29 de Abril de 2013).
MOZAMBIQUEFILE (1994) « There were no election in Mozambique». nº 221, Dezembro.
MOZAMBIQUEFILE (1994) «You can’t buy democracy from apartheid». nº 220, Novembro.
NOTÍCIAS DA BEIRA (1974) Beira, 21 de Dezembro.
NOTÍCIAS (2008) «Se houver eleições a 30 de Junho: oposição ameaça com manifestações populares». Maputo. 4 de Junho.
NOTÍCIAS (2008) «Eleições autárquicas: Angoche Frelimo arrasta
multidões, Renamo aguarda material». Maputo, 6 de Novembro.
211
AF miolo corrupcao 3.indd 211
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
NOTÍCIAS (2009) «Tomada de posse paralela: Eduardo Namburete
contra posição de Dlakama». Maputo, 27 de Janeiro.
NOTÍCIAS (2009) «CNE analisa calendário para a eleição em Nacala », in <http://www.jornalnoticias.co.mz/pls/notimoz2/
getxml/pt/contentx/462602>, (página visitada no dia 22 de
Janeiro de 2009).
NOTÍCIAS (2009) «Respeitar o jogo democrático : apelo da Igreja
e de políticos face às ameaças proferidas pela Renamo». Maputo, 15 de Janeiro.
NOTÍCIAS (2009) «Titulares dos órgãos locais: Dhlakama não tem
poderes para conferir posse». Maputo, 27 de Janeiro.
NOTÍCIAS (2009) «Posse paralela: Maria Moreno distancia-se de
posição de Dhlakama». Maputo, 29 de Janeiro.
NOTÍCIAS (2009) «Violência política não resolve». Maputo, 14 de
Janeiro.
NOTÍCIAS (2007) Maputo, 28 de Abril.
O PAÍS (2009) «O Estado dispõe de meios de coerção para reprimir
autarcas de Dhlakama». Maputo, 27 de Janeiro.
O PAÍS (2009) «A Frelimo e o seu presidente cometeram um crime
eleitoral nas eleições autárquicas de 19 de Novembro de 2008».
Maputo, 13 de Janeiro.
O PAÍS (2009) «Dhlakama vai empossar o governo paralelo» <http://
www.opais.co.mz/index.php?option=com_content&view>. (página visitada no dia 20 de Fevereiro de 2013).
O PAÍS (2009) «Dhlakama quer negociar partilha de municípios »
<http//www.opais.co.mz/indexphp/politica/politica/25politica/579-dhlakama-quer negociar-partilha-de-municipios.
html.>, (Página visitada no dia 20 de Janeiro).
SAVANA (1994) Maputo, 11 de Novembro.
Documentos e Legislação consultados
AWEPA (European Parliamentarians with Africa) (2005) Mozambique
Political Process Bulletin n° spécial élections, 33, 3, janeiro.
AWEPA (European Parliamentarians with Africa) (2009) Strengthen
Country Statistical and Results Measurement Systems
http://www.pnowb.org/admindb/docs/IDA16%20PNoWB-AWEPA%20principle%20issue%20brief%2026MAR10%20(2).pdf.
212
AF miolo corrupcao 3.indd 212
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
AWEPA (European Parliamentarians with Africa) (2001) Ruptura de
conversações com a Renamo a insistir que ganhou a eleição de
1999”. Boletim sobre o processo de Paz em Moçambique. 26, 10 de abril.
CONSELHO MUNICIPAL DA CIDADE DE NACALA (1998)
Assunto : Envio de dados eleitorais parciais. Nacala, 8 de Julho.
GOVERNO DE MOÇAMBIQUE. CNE (2008) Deliberação n°129/
CNE/2008 de 18 de Novembro 2008. Para perceber os argumentos da recusa do recurso da Renamo, veja Conselho Constitucional, Acordão n° 11/CC/2008 de 10 Dezembro 2008:
processso n°09/CC/08, in <http: //www.cconstitucional.Org.
mz/userfiles/file/Tsave/acordaos/acordao11CC2008.pdf> (página visitada no dia 22 de Abril de 2013).
GOVERNO DE MOÇAMBIQUE (1990) Constituição da República de
Moçambique. Maputo: Imprensa Nacional.
GOVERNO DE MOÇAMBIQUE (2004) Constituição da República de
Moçambique. Maputo: Imprensa Nacional.
GOVERNO DE MOÇAMBIQUE. CONSELHO CONSTITUCIONAL (2008) Acordão n° 11/CC/2008 de 10 Dezembro 2008:
processso n°09/CC/08, in <http: //www.cconstitucional.Org.mz/
userfiles/file/Tsave/acordaos/acordao11CC2008.pdf
(página visitada no dia 15 de Março de 2009).
GOVERNO DE MOÇAMBIQUE. CONSELHO CONSTITUCIONAL (2009) Acordão n°2/CC/2009. Processo n° 11/CC.08 :
validação e proclamação dos resultados das eleições dos órgãos das autarquias
locais, in <http://www.C. Constitucional.Org.mz/UserFiles/Tsave/acordaos/acordaos2009/anexo 2.pdf>,(página visitada no dia
22 de Janeiro de 2013).
GOVERNO DE MOÇAMBIQUE. Lei 2/97, Boletim da República, I
série, n° 7, 2° suplemento, 18 de Fevereiro.
GOVERNO DE MOÇAMBIQUE. Lei 3/94, Boletim da Républica, I
série, n° 37, 2° suplemento, 13 de Setembro.
OBSERVATÓRIO ELEITORAL (2005) Relatório preliminar do processo de observação e recolha de apuramentos parciais. Eleição Intercalar de
Mocímboa da Praia, 2005, Maputo: Junho.
PNUD. 2013 Relatório de Desenvolvimento Humano de 2013.
Maputo: SARDC & Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento.
WORLD BANK (2010) World Development Report 2010: Development
and Climate Change, Washington D.C: The World Bank.www.cartercenter.Org. ( página visitada no dia 22 de Fevereiro de 2013).
213
AF miolo corrupcao 3.indd 213
7/31/14 12:54 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 214
7/31/14 12:54 AM
“sistemas mediáticos”
AF miolo corrupcao 3.indd 215
7/31/14 12:54 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 216
7/31/14 12:54 AM
5. Sistema
dos media em
Portugal:
os primeiros anos após
a i n s tau r a ç ã o d a d e m o c r a c i a
Estrela Serrano
Introdução
Uma das formas de ultrapassar a investigação fragmentada de uma determinada realidade consiste na
identificação dos factores sistémicos susceptíveis de influenciarem essa realidade. Os benefícios deste tipo de
abordagem são, segundo os investigadores britânicos
Blumler e Gurevitch (1995), de três ordens: em primeiro lugar, permitem ligar diversos corpus numa perspectiva analítica alargada; em segundo lugar, contrariam a
tendência para sub ou sobre valorizar apenas um dos
elementos do sistema; em terceiro lugar, facilitam a investigação comparada a nível internacional.
Hallin e Mancini (2004) no livro Comparing Media Systems, debruçaram-se sobre os sistemas mediáticos em diferentes democracias “ocidentais”, com base numa tipologia baseada em três modelos de sistemas mediáticos. O
enquadramento que os autores usam na comparação dos
modelos abrange quatro dimensões: (1) o desenvolvimento do mercado dos media, com particular ênfase no grau
de circulação da imprensa; (2) o “paralelismo político”,
isto é, o grau e a natureza das relações entre os media e
os partidos políticos, e o reflexo nos sistemas mediáticos
das principais divisões políticas existentes na sociedade;
(3) o grau de “profissionalismo jornalístico”; e (4) o grau
e a natureza da intervenção do Estado no sistema mediático (Hallin e Mancini, 2004: p. 21). O modelo de Hallin
217
AF miolo corrupcao 3.indd 217
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
e Mancini possui inegáveis potencialidades, permitindo
realizar análises comparativas e autónomas de cada uma
das dimensões que integram o sistema mediático em diferentes países dotados de diferentes modelos de organização do Estado e da sociedade.
Este artigo debruça-se sobre o sistema mediático português abordando duas das dimensões do modelo de
Hallin e Mancini: o desenvolvimento do mercado dos media e a organização do sistema mediático, nomeadamente
o grau e a natureza da intervenção do Estado, com particular incidência no quadro legal e regulatório e as transformações do campo jornalístico.
Breve
e n q u a d r a m e n t o h is t ó r i c o
O regime de censura à imprensa que vigorou em Portugal durante 48 anos até 1974, impediu que o sector da
comunicação social se desenvolvesse e fosse dotado de um
quadro jurídico e regulamentar que assegurasse a liberdade
de informação e de expressão, e o direito dos cidadãos a
uma informação livre e pluralista. Esta circunstância marcou indelevelmente o sistema mediático português com
consequências nas práticas profissionais e na situação financeira das empresas de comunicação social, agravadas
por elevados graus de analfabetismo e semi-analfabetismo
que se mantiveram até recentemente.
A estagnação da imprensa portuguesa não se deveu,
porém, apenas à censura mas também ao regime de propriedade dos meios de comunicação social. Nos últimos
tempos do governo de Marcelo Caetano, que antecedeu
a revolução de 1974, a imprensa passou para as mãos de
grandes monopólios, solidificando, assim, aparentemente, o apoio do sector ao Governo de então. Quando o
regime caiu, em 1974, os jornais tornaram-se objecto de
218
AF miolo corrupcao 3.indd 218
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
enormes pressões internas, políticas e governamentais. A
esta situação não era indiferente o facto de até aos anos
sessenta a imprensa portuguesa ser financeiramente fraca
já que a publicidade não constituía uma alternativa de financiamento dos jornais, capaz de os tornar economicamente fortes e com capacidade de estimular uma oposição ao regime. O jornal República, o único que se assumia
como oposição ao Governo, possuía uma circulação que
não ultrapassava os 20 mil leitores.
A partir do final dos anos sessenta, a situação alterou-se com o desenvolvimento de uma classe média em
Lisboa e no Porto e com a erosão do apoio ao governo
por parte de largos sectores da burguesia urbana que
encorajaram a oposição ao regime através da imprensa.
O aparecimento do semanário Expresso em 1973 tem
sido directamente relacionado com uma maior liberalização da classe média portuguesa, resultado da expansão económica então verificada. Todavia, é só no final
do regime ditatorial, em 1974, que um início de pressão
do mercado no sector da imprensa pode ser verificado
(Poulantzas, 1976).
Os investigadores norte-americanos Seaton e Pimlott (1983) afirmam que sem o estímulo de um mercado de massas e nas condições de estagnação do Estado os “barões da imprensa” portugueses falharam a
capacidade de se estabelecerem. A maior mudança na
propriedade dos jornais ocorre quando o regime está
já perto do fim. A compra de seis jornais de Lisboa e
dois do Porto pelos grupos Champalimaud, Quina e
Espírito Santo, com os seus interesses comerciais, financeiros (bancários) e industriais, corresponde à escala portuguesa ao padrão de propriedade da imprensa
nos países desenvolvidos.
219
AF miolo corrupcao 3.indd 219
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Os
primeiros anos de liberdade
de imprensa
O golpe militar de 25 de Abril de 1974 marcou indelevelmente a organização e o funcionamento do sistema
mediático em Portugal. O golpe militar contou, desde início, com a colaboração de jornalistas, locutores e outros
profissionais dos media. Essa colaboração não resultou,
embora se tenha verificado em muitos casos, de uma reacção aos acontecimentos mas sim de uma ligação que vinha de trás e que unia jornalistas, militares e políticos na
oposição ao regime. Esta circunstância não é irrelevante,
na medida em que pode explicar algumas das características que marcaram o jornalismo português no período
imediatamente a seguir a 25 de Abril de 1974, dando origem a um jornalismo comprometido politicamente.
Após a eclosão do golpe de 25 de Abril, as movimentações no seio dos principais jornais não se fizeram esperar. A nomeação de dirigentes afectos ao movimento
triunfador para a televisão e para a rádio estatais foi uma
das primeiras medidas. A luta pelo controlo da orientação dos jornais aumentou de intensidade a partir de 11 de
Março de 75, data em que se verificou uma tentativa de
golpe militar no sentido de uma maior ”esquerdização”
do regime. Entre as consequências imediatas do “11 de
Março” encontra-se a nacionalização da banca e dos seguros, decretada a 14 desse mês, que provocou a estatização
dos títulos da imprensa diária pertencentes, até então, aos
grupos económicos mais poderosos.
Como reacção ao controle do Partido Comunista Português (PCP) sobre a quase totalidade dos órgãos de comunicação social nos primeiros anos após o golpe militar,
nasceram novos jornais enquanto outros desapareceram.
No sector da rádio iniciam-se as emissões experimentais
220
AF miolo corrupcao 3.indd 220
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
da Radiodifusão Portuguesa (RDP), empresa pública que resultou da fusão da Emissora Nacional (a rádio oficial do regime anterior) com as rádios em poder dos privados, com
excepção da Rádio Renascença, propriedade do Patriarcado
português. Em Junho de 1974, a agência de notícias ANI,
ligada à propaganda do regime anterior, é substituída pela
ANOP que se manteve até em 1982, data em que é extinta sob o governo de Pinto Balsemão após intensa luta
pelo seu controle, sendo criada a nova agência Notícias de
Portugal, que apesar de formalmente privatizada dependia
dos dinheiros públicos. Em 1986, o Governo de Cavaco
Silva cria a actual agência Lusa sob a forma de régie cooperativa (Serrano, 2006).
Fig. 1. A imprensa portuguesa diária em Outubro de 1975
Jornal
Propriedade Tendência política
Circulação
Diário de Notícias
Estado
Comunista
106.000
O Século
Estado
Comunista
40.000
Comércio do Porto
Estado
Popular Democrata
95.000
Jornal de Notícias
Estado
Comunista
70.000
Primeiro de Janeiro
privado
Centro Social Democrata
70.000
Jornal de Comércio
privado
Socialista
100.000
A Capital
Estado
Comunista
60.000
Diário de Lisboa
Estado
Comunista
38.000
Diário Popular
Estado
Comunista
73.000
Jornal Novo
privado
Socialista (ala direita)
100.000
A Luta
privado
Socialista
80.000
República
privado
Comunista
e extrema-esquerda
20.000
Fonte: Serrano, 2006, dados adaptados de Seaton e Pimlot (1983: p. 107).
221
AF miolo corrupcao 3.indd 221
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Nota dos autores: Propriedade: “Estado” inclui os casos em que a maioria
do capital pertence ao Estado. “Tendência política”: a descrição representa a proximidade com o partido ou uma tendência, não uma lealdade consistente. “Circulação”: A circulação real em termos de cópias vendidas é muito mais baixa do
que a que é indicada no quadro. A percentagem de devoluções era, geralmente de
10% a 20%, podendo ser ainda maior.
Quanto à imprensa regional e local, ressentiu-se de
uma maneira ainda mais profunda do que a de expansão nacional dos efeitos do atraso do País. Apesar da
enorme diversidade de títulos da imprensa regional e
local, tratava-se de imprensa de reduzida dimensão,
dados os baixos índices de leitura, situação que ainda
hoje se mantém.
O
papel do
Estado
na rádio
e n a t e l e v is ã o
Hallin e Mancini (2010: p. 57) afirmam que “em qualquer sociedade o Estado desempenha um papel significativo na modelação do sistema dos media”. Para os autores, a intervenção do Estado abrange a propriedade, o
investimento e a regulação, a mais importante dos quais
é, porém, a extensão dessa intervenção no serviço público de televisão. Portugal tem uma longa história de intervenção do Estado na rádio e principalmente na televisão.
A Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976
estabelecia, no art. 38.º, nº. 7, que “a televisão não pode
ser objecto de propriedade privada”. Este status quo é desafiado no princípio dos anos 80 com a erupção das rádios piratas que explodiram de forma anárquica e, a meio
dessa década, a influência das novas tecnologias, como a
televisão por cabo e por satélite, desafia o monopólio da
televisão estatal (Traquina, 1997). A revisão constitucional
222
AF miolo corrupcao 3.indd 222
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
de 1982 nada alterou ao regime de propriedade estatal da
televisão. Porém, em 1988, uma nova lei da radiodifusão
e o novo enquadramento jurídico provocado pela revisão constitucional de 1989 criam o quadro regulamentar
que permitiu a abertura da televisão à iniciativa privada.
Essa abertura levou a RTP, sobretudo a partir de 1986, a
reforçar-se consideravelmente no domínio técnico, a aumentar substancialmente o número de horas de emissão
e a diversificar a sua programação, com a acentuação, nomeadamente numa primeira fase (1986-1989), do perfil
alternativo do segundo canal como forma de comprovar
a sua imprescindibilidade para o futuro da empresa pública de radiotelevisão (Reis, 1994: p. 308). A informação da
RTP não perdeu, contudo, neste período, o seu carácter
oficioso, embora recorrendo a processos mais sofisticados.
No início dos anos 80 o poder político em Portugal
era detido por políticos que tinham lutado contra a ditadura através dos jornais. O repórter de televisão e investigador Jacinto Godinho (2005) refere que a vigilância dos
políticos sobre as redacções instalou nelas um clima de
desconfiança permanente. “Qualquer investigação mais
arriscada ao Governo era criticada, mesmo internamente,
entre jornalistas, por parecer fazer o jogo da Oposição e
uma investigação aos políticos da Oposição era criticada
por fazer o jogo do Governo”. O alinhamento ideológico, sobretudo entre os jornalistas da informação televisiva, muito “controlados” pelo poder político, tornava
quase impossível a investigação independente à política”.
Godinho afirma que “o jornalismo militante exercia a sua
influência na RTP quer sob a forma despudorada de ligações aos partidos do governo através do cartão de militante, quer de forma dissimulada, disfarçado sob a capa
dos bons princípios, fazendo a defesa das ideologias virtuosas do 25 de Abril, tornadas verdades politicamente
223
AF miolo corrupcao 3.indd 223
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
correctas”. Godinho refere-se às “células partidárias” que
existiam na RTP e que constituíam “uma das mais fortes
influências sobre o jornalismo porque moviam influências
para a nomeação das chefias” (2005: p. 820).
Os anos 90 são marcados por grandes transformações no sistema mediático nacional, nomeadamente pela
abertura da televisão à iniciativa privada. Em Outubro de
1992, a SIC inicia as suas emissões. Em Março de 1993,
o Governo assina com a RTP um Contrato de Concessão
de Serviço Público que irá balizar e regular a prestação do
serviço público de televisão pela RTP.
O aparecimento dos canais privados em 1992 veio quebrar uma agenda televisiva institucionalizada, construída
por fontes oficiais que pululavam à volta do poder instalado em Lisboa. Para além de os noticiários terem sido
alvo de uma profunda reformulação, criaram-se espaços
semanais para abordagem de novas temáticas, como refere Felisbela Lopes (1999), no seu estudo sobre a RTP.
A abertura de canais privados instalou a “ditadura de
audiências”, numa lógica de maximização de lucros na busca de maiores quotas de publicidade, o que contribuiu para
a degradação progressiva da programação, não apenas dos
canais privados mas também dos canais públicos. Seguindo uma estratégia de concorrência aberta, a RTP lançouse numa política que visava antecipar o aparecimento das
privadas (Traquina, 1997). A desorientação nos caminhos
a seguir acentuou a crise em torno do funcionamento e da
definição do próprio serviço público. A situação foi agravada pela eliminação da taxa de televisão pelo governo de
Cavaco Silva (Brandão, 2002: pp.181-182).
Para Cádima (1996: pp. 161-167), a liberalização da
TV, ao permitir a emergência de operadores privados em
condições concorrenciais desfavoráveis, “contribuiu para
tornar a abertura do sistema audiovisual como um novo
224
AF miolo corrupcao 3.indd 224
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
discurso de legitimação, mantendo o status quo, o qual viria
a ser posto seriamente em causa em 2002 pelo governo
social‑democrata de Durão Barroso, que se empenhou na
recuperação, viabilização e modernização da RTP.
O financiamento do serviço público passou a ser assegurado por meio da cobrança de uma contribuição para o
audiovisual (CAV) sobre o fornecimento de energia eléctrica devida mensalmente pelos respectivos consumidores e
por indemnizações compensatórias, para além da publicidade no canal generalista RTP1 limitada a seis minutos
por hora, metade do tempo permitido aos canais privados.
As receitas de publicidade foram afectas ao serviço da dívida consolidada e posteriormente a novos investimentos, não sendo utilizáveis para financiar a sua exploração
corrente89. Os governos socialistas que se seguiram não
alteraram o modelo de financiamento da RTP. Em 2011
“a privatização de um dos canais públicos” é inscrita no
programa do governo de coligação PSD/CDS, ficando
“o outro canal, assim como o acervo de memória, a RTP
Internacional e a RTP África, essencialmente orientados
para assegurar o serviço público”. No que respeita à rádio
pública, o programa do governo90 prevê que a Antena 1,
2 e 3 seguirá os mesmos princípios gerais a aplicar à RTP.
Quanto à agência Lusa, empresa de economia mista, o
governo refere que “o Estado alienará a sua participação
no capital a operadores privados”. Estas medidas são, no
programa do governo, condicionadas à “situação do mercado” e remetidas para “tempo oportuno”.
89
Lei n.º 30/2003 de 22 de Agosto (Alterada pelos Decretos-Leis n.ºs 169A/2005, de 3 de Outubro,230/2007, de 14 de Junho, e 107/2010, de 13 de
Outubro).
90
http://www.portugal.gov.pt/média/130538/programa_gc19.pdf
(pág. 98).
225
AF miolo corrupcao 3.indd 225
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Apesar de sucessivos anúncios sobre a alienação do canal RTP1, a RTP mantém‑se no sector público. Contudo,
o governo de coligação pôs fim à indemnização compensatória, obrigando a empresa a financiar-se apenas através
da contribuição para o audiovisual91.
Em 2011, o panorama televisivo nacional92, incluindo
as Regiões Autónomas dos Açores (RAA) e da Madeira
(RAM), apresenta 50 serviços de programas, dos quais 11
são generalistas e 39 temáticos. Dos generalistas, cinco
são de âmbito nacional, 4 de âmbito internacional e dois
regionais (RAA e RAM).
Figura 2. Serviços de programas televisivos –
modelo de programação e áreas de cobertura
35
30
25
20
15
10
5
0
4
5
4
2
Internac. Nacional Regional
0
Local
Serviços Generalistas
0
Internac. Nacional Regional
0
Local
Serviços Temáticos
N=50 serviços de programas televisivos.
91
No momento em que este artigo é elaborado, o governo apresentou
um novo estatuto para a RTP que prevê a eleição de um Conselho Geral
Independente no qual são delegadas as competências até aqui exercidas pela
tutela, à excepção da gestão financeira. O estatuto aguarda aprovação parlamentar.
92
http://www.erc.pt/documentos/Relatorios/2011_v2-erc-rr/index.html
#/302/zoomed (p. 302).
226
AF miolo corrupcao 3.indd 226
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
No que se refere à exposição dos portugueses à televisão, segundo dados da Marktest Audimetria/Kantar
Media, em 2012 cada espectador viu 4h40m em média
por dia de televisão, mais 4 minutos que em 2011, o que
representa uma das médias mais altas na UE. A TVI registou uma quota de audiência de 26.7%, mais 1 ponto
percentual de share que os 25.7% obtidos em 2011. Em 2º
lugar ficou a SIC com 21.8% de share, face aos 22.7% alcançados em 2011. A RTP1 terminou o ano de 2012 com
18.5% de share, quando em 2011 o share da estação pública tinha sido de 21.6%. Na RTP2, a quota de share em
2012 foi de 3.4% face aos 4.5% alcançados em 2011. No
total, o Cabo registou uma quota de audiência de 24.3%,
enquanto em 2011 o valor era de 21.9% de share.
Nota relevante no panorama televisivo português diz
respeito à presença da produção nos conteúdos de televisão, da produção oriunda de países lusófonos. Dados
de 201193 mostram que o Brasil ocupa a segunda posição
como país de origem de programas emitidos pelos três
canais generalistas de televisão, logo a seguir aos Estados
Unidos, a grande distância dos oito restantes países que
nesse ano forneceram programas às televisões generalistas
nacionais de sinal aberto, RTP1, RTP2, SIC e TVI. Esses países são: Estados Unidos da América, (3 630 horas,
número que ultrapassa o número total dos restantes nove
países que forneceram programas a Portugal), seguindose o Brasil (1 052 horas), o Reino Unido (833 horas), a
França (392), a Espanha (234), o Canadá (191), o Japão
(173 horas), a Itália (151 horas), a Austrália (94 horas) e a
Coreia do Norte (74 horas). Em termos de línguas estrangeiras o inglês preenche o maior número de horas (Fig. 4).
http://www.erc.pt/documentos/Relatorios/2011_v2-erc-rr/index.html
#/314/zoomed p. 214.
93
227
AF miolo corrupcao 3.indd 227
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Figura 3. Principais países importadores de conteúdos
televisivos para Portugal (em horas)
Fonte: Relatório de Regulação 2011 (http://www.erc.pt/documentos/
Relatorios/2011_v2-erc-rr/index.html#/314/zoomed, p. 214).
Se considerarmos apenas programas originários dos
países lusófonos emitidos nos citados canais, o Brasil preenche 1224h22m34s (96%) dos programas emitidos e os
restantes países lusófonos em conjunto 50h55m49s (4%).
Em 2011, não foram emitidos programas originários de
Angola e da Guiné Bissau.
Verifica-se, assim, que enquanto relativamente a Angola os interesses dos investidores angolanos nos média
nacionais se centram na aquisição e participação na propriedade de empresas94, já no caso do Brasil a presença
deste país abrange sobretudo conteúdos televisivos, quer
Oriundo de Angola, o grupo Newshold cujos capitais pertencem na
quase totalidade à Pineview Overseas, uma empresa de capitais sediada no
off-shore da cidade do Panamá, detém desde 2008 o semanário Sol, um dos
dois semanários generalistas nacionais, além de uma participação de 15%
na Cofina, dona do Correio da Manhã, o diário de maior circulação nacional.
A Newshold possui ainda uma presença residual no grupo Impresa, o mais
importante grupo português de média. Por seu turno, o empresário angolano António Mosquito acaba de adquirir 30% de outro importante grupo
português – Controlinveste – proprietário dos diários Diário de Notícias e
Jornal de Notícias, da rádio TSF, além da Sport TV.
94
228
AF miolo corrupcao 3.indd 228
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
através da exportação de programas, nomeadamente novelas, quer através da presença da rede Globo e da TV
Record em Portugal.
Os dados expostos apontam, assim, para a existência de um sub-sistema lusófono em Portugal, situação
que não se verifica por exemplo com Espanha, onde a
empresa espanhola Prisa se expandiu na América-latina
mas empresas dos países latino‑americanos não se instalaram em Espanha.
A
primeira
Lei
de
Imprensa
A primeira Lei de Imprensa do regime democrático
foi promulgada a 26 de Fevereiro de 197595, a tempo de
vigorar durante o período da companha eleitoral para a
Assembleia Constituinte, em Abril seguinte. Apesar de
na altura ser considerada liberal, pela esquerda, e social,
socializante ou mesmo socialista, pela direita, trata-se
de uma lei inovadora (Sousa Franco, 2002) e o primeiro
diploma regulador do sector da informação no pós-25
de Abril (Mesquita, 1994: p. 367). Arons de Carvalho
(2002) afirma que ela constituiu a primeira lei estruturante da comunicação social do regime democrático. A
lei foi aplicada, durante muitos anos, por analogia, aos
outros meios de comunicação social. Só alguns anos mais
tarde Portugal virá a possuir uma lei da rádio e uma lei
da televisão. Contudo, apesar da sua orientação liberal e
pluralista, a Lei de Imprensa mantinha alguns resquícios
próprios do contexto revolucionário em que foi aprovada (Arons de Carvalho, 2002).
95
Decreto-Lei nº. 85-C/75 de 26 de Fevereiro.
229
AF miolo corrupcao 3.indd 229
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
A Lei de Imprensa de 1975 regulamentou o direito
de resposta, colocando os cidadãos no mesmo plano
das entidades públicas; estabeleceu os regimes de acesso às fontes de informação, sigilo profissional e inserção de publicidade; criou o Conselho de Imprensa sob
inspiração do modelo britânico do Press Council e do
modelo de competências dos conselhos oeste-alemão
e austríaco; consagrou legalmente os conselhos de redacção – eleitos pelos jornalistas nas redacções com
mais de cinco profissionais; concedeu aos jornalistas a
possibilidade de extinguirem «a relação de trabalho por
sua iniciativa unilateral, tendo direito à indemnização
devida por despedimento sem justa causa e sem aviso
prévio» no caso de «se verificar uma alteração profunda na linha de orientação de um periódico confirmada
pelo Conselho de Imprensa» («cláusula de consciência»);
remeteu para «legislação especial» medidas a «impedir
a concentração de empresas jornalísticas e noticiosas»
de forma a assegurar que a Imprensa desempenhasse
«uma função pública independente do poder político e
do poder económico».
A nacionalização da banca em Março de 1975 e com
ela da maior parte dos jornais de então, que determinou a mudança de propriedade dos principais jornais
do país ocorrida poucos dias depois da entrada em vigor da Lei de Imprensa, a 13 de Março de 1975, criou
uma situação inteiramente nova que aquela não podia
prever. Num balanço de conjunto e tendo em conta a
evolução da comunicação social, sobretudo até 1976, à
luz de um confronto entre duas concepções de informação – a pluralista, na senda das democracias políticas,
e a de inspiração marxista-leninista – a Lei de Imprensa
representa claramente uma expressão da primeira (Mesquita, 1994: p. 367).
230
AF miolo corrupcao 3.indd 230
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
O
a c e ss o à p r o f iss ã o d e j o r n a l is t a
A revolução de 25 de Abril veio encontrar os jornalistas bastante mal preparados para as responsabilidades
que lhes seriam cometidas (Mesquita, 1988: p. 94). O
jornalismo era, então, uma profissão fracamente institucionalizada, no duplo sentido da existência de uma paleta de saberes e de uma profissão organizada por regras.
Aplicando ao jornalismo português os critérios definidos
pela sociologia funcionalista sobre a noção de profissão
(Chapoulie, 1973; Neveu 2003) – condições formais de
acesso à actividade (diploma, certificação); monopólio
sobre a actividade que rege; existência de uma cultura e
de uma ética que pode fazer-se respeitar por meios outorgados pelo Estado; existência de uma comunidade
real com interesses comuns – notam-se as ambiguidades
da sua “profissionalização” apesar de existir já então um
estatuto legal do jornalista.
Na Lei de Imprensa de 1975 (art. 10º) considera-se
jornalista aquele que exerce a actividade através de uma
ligação contratual com uma empresa jornalística ou noticiosa, admitindo-se, pela primeira vez, que ela seja desempenhada em regime livre. Em ambos os casos, impõe-se
que a actividade jornalística seja a “ocupação principal,
permanente e remunerada”. São igualmente abrangidos
pelo conceito de jornalista os colaboradores directos,
permanentes e remunerados da redacção, ou seja, os redactores-paginadores, os redactores-tradutores e os repórteres fotográficos, os correspondentes no país ou no
estrangeiro, desde que tenham remuneração fixa, vínculo
contratual e façam da actividade jornalística uma ocupação principal, permanente e remunerada, e os correspondentes da imprensa estrangeira que exerçam a actividade
como ocupação principal.
231
AF miolo corrupcao 3.indd 231
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
O estatuto do jornalista, previsto na Lei de Imprensa
de 1975, só viria a ser aprovado em 197996. Em 1999, é
publicado um novo Estatuto do Jornalista97, retomandose aí anteriores disposições sobre a definição de jornalista
“ocupação principal, permanente e remunerada”. Segundo
Arons de Carvalho e all. (2003: p. 78), procura-se, contudo, definir o conceito de jornalista, não apenas em função
das tarefas desempenhadas mas também da sua finalidade
e dos meios utilizados: “funções de pesquisa, recolha, selecção e tratamento de factos, notícias ou opiniões, através
de texto, imagem ou som, destinadas a divulgação informativa pela imprensa, por agência noticiosa, pela rádio,
pela televisão ou por outra forma de difusão electrónica”
(art. 1º). Esta formulação permitiu integrar o jornalista
que trabalha em jornais online. Excluem‑se, contudo, do
conceito de jornalista os que exercem funções ao serviço de “publicações de natureza predominantemente promocional ou cujo objecto específico consista em divulgar,
publicitar ou por qualquer forma dar a conhecer instituições, empresas, produtos ou serviços, segundo critérios
de oportunidade comercial ou industrial” (art. 1, nº. 2).
O Estatuto refere (art. 2º) que “podem ser jornalistas
os cidadãos maiores de 18 anos no pleno gozo dos seus
direitos civis”. A qualidade de jornalista define-se, pois, a
partir do exercício da função, não sendo exigida, à partida, qualquer habilitação específica.
No plano do ensino superior, só em Setembro de 1979
é criada na Universidade Nova de Lisboa, a primeira licenciatura em Comunicação Social existente em Portugal,
seguida, no final dos anos 80, nas universidades e politécnicos privados e estatais pela criação de um conjunto de
96
97
Lei nº. 62/79, de 20 de Setembro.
Lei nº. 1/99 de 13 de Janeiro.
232
AF miolo corrupcao 3.indd 232
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
cursos no campo da comunicação social. Desde então a
área iniciou um caminho de legitimação e de autonomização que passou pela multiplicação dos cursos de graduação e de pós-graduação por todas as instituições de
ensino superior e pela criação e progressiva consolidação
de unidades de investigação, que são actualmente centros
promotores de intensa actividade científica na área dos
média e do jornalismo.
O
primeiro
Código Deontológico
Os jornalistas portugueses tiveram o seu primeiro Código Deontológico em 1976. Marcado pelas circunstâncias históricas em que foi concebido, cedo se viu alvo de
contestação no seio dos próprios jornalistas, considerado
“liberal”, “romântico” e “distante das realidades” (Pina,
1997: p. 51) vindo a ser substituído em 1993. O novo Código possui 10 pontos, nos quais se condensam um conjunto de valores considerados centrais ao exercício do
jornalismo nos países democráticos. O Código Deontológico constitui uma “carta de deveres” a que o jornalista se obriga de “moto próprio”. A sua violação sujeita-o
(apenas) à reprovação moral dos seus pares e, eventualmente, da sociedade, não possuindo força jurídica. A violação frequente de alguns dos seus princípios, nomeadamente a não identificação das fontes, o sensacionalismo
e o desrespeito pela privacidade, levam a que, periodicamente, surjam discussões sobre a necessidade de criação
de uma Ordem dos Jornalistas que, contudo, até ao momento não se concretizou.
233
AF miolo corrupcao 3.indd 233
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
P r i n c ip a is
tendências do mercado
dos media nos anos
80, 90
e
2000
Segundo dados da World Press Trends relativos ao ano
de 2000, citados por Hallin e Mancini (2010), a venda de
jornais por 1000 habitantes da população adulta portuguesa situava-se em 82,7% o segundo índice mais baixo a
seguir à Grécia (77,5%) contra 71,97% da Noruega, país
com um número de habitantes inferior em menos de metade ao de Portugal e que ocupa o primeiro lugar na venda
de jornais por mil habitantes. Segundo dados da Pordata
relativos a Portugal, a circulação total de publicações periódicas tem vindo a decrescer em todos os indicadores –
edição, tiragem, circulação e vendas – desde 2000 a 2011.
Contudo, apesar de Portugal nunca ter tido verdadeiramente uma imprensa “de massas”, o sector não deixou de
experimentar grande dinamismo no que respeita ao aparecimento de novos títulos e desaparecimento de outros.
A imprensa especializada e os magazines constituíram
em Portugal, como em toda a Europa, um motor de mudança na configuração do sistema mediático, no sentido
de um jornalismo de mercado. O “dilúvio comercial”,
como é geralmente chamado, atingiu todos os países da
Europa, embora mais tardiamente em alguns deles como
foi o caso de Portugal. Esse “dilúvio” abrange a imprensa
e os média electrónicos, sendo particularmente dramático
nestes últimos (Serrano, 2006).
É no início da década de 80 que, em Portugal, se afirma
uma imprensa de tipo popular-sensacionalista, através de
jornais privados como o Correio da Manhã, o Tal e Qual e
o vespertino A Capital, este no sector da imprensa estatizada. O Correio da Manhã é o primeiro projecto comercial
na imprensa depois do boom político dos primeiros anos
pós-25 de Abril. O primeiro número sai para as bancas
234
AF miolo corrupcao 3.indd 234
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
em 1979, com a ambição de ser o primeiro jornal do pós25 de Abril virado para as preocupações do “homem da
rua”. O Correio da Manhã cedo se revelou uma aposta ganha, tanto no plano editorial como financeiro, tornandose o diário português líder em tiragens e vendas, atingindo
uma quota de mercado em 2011 e 2012 superior a 50%
na imprensa diária generalista98 .
Figura 4. Evolução da circulação paga
por edição no segmento dos diários de informação
geral (nº.), 1993 a 2012
Fonte: APCT. Edição: Obercom.
No início dos anos 90, o jornalismo de referência vêse enriquecido com a criação do Público (Março de 1990)
que obrigou o Diário de Notícias – seu mais directo concorrente – a uma profunda remodelação em 1992. Por
outro lado, enquanto jornais como o Jornal de Notícias do
98
Fonte: Associação Portuguesa de Controle de Tiragens (APCT).
235
AF miolo corrupcao 3.indd 235
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Porto e o Correio da Manhã vêem crescer as suas audiências, assiste-se ao declínio dos vespertinos A Capital,
Diário Popular e Diário de Lisboa que atinge o seu ponto
mais baixo em 1981.
O primeiro governo maioritário de Cavaco Silva (19871991) marca o momento de viragem na comunicação social portuguesa, no sentido da afirmação de concepções
liberais associadas aos vários sectores de actividade económica. Os avanços tecnológicos (nomeadamente o satélite e a fibra óptica e a subsequente convergência das
tecnologias de distribuição) tornam inevitável a abertura
dos sectores da comunicação à iniciativa privada. Como
resultado da mudança de propriedade, os jornais sofrem
reformulações gráficas, editoriais e comerciais e adoptam estratégias de marketing para captação de novos leitores, através, nomeadamente, da inclusão de produtos
associados, como livros, produtos multimédia, DVDs e
CDs, paralelamente a outros produtos sem qualquer ligação ao sector. A criação de sinergias, como a promoção
de concursos que associam revistas e canais de televisão
do mesmo grupo tornam-se correntes a partir de 2003.
No sector dos semanários, O Independente (1988) torna-se,
nos primeiros anos da sua publicação, um dos jornais de
maior influência na política portuguesa.
Para Mesquita, (1994: p. 388)99, o desaparecimento no
sector público, entre 1976 e 1986, de títulos como o Século (1977) e todas as publicações do grupo, incluindo a
Vida Mundial, e do Jornal do Comércio e, no sector privado,
99
Numa entrevista a Maria João Avillez, publicada no jornal Público em
1994, Cunha Rego afirma que A Tarde “não tinha grande tiragem, mas tinha influência”, acrescentando que o então primeiro-ministro, Balsemão,
“sentiu-a negativamente, uma vez que o jornal se opôs à sua maneira de
conduzir o Governo”. A Tarde encerrou em 1986, já com outra direcção.
236
AF miolo corrupcao 3.indd 236
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
da revista Opção (1976-78) do diário Luta (1975-1979) e
depois, na mesma área, do Portugal Hoje (1982) e o desaparecimento, na área da direita, do Jornal Novo, que cedeu
lugar ao vespertino A Tarde, em 1979, significa, que não
era fácil viabilizar jornais opinativos de tendência, à esquerda ou à direita.
Imprensa
e sp e c i a l i z a d a
Entre as tendências inovadoras dos jornais portugueses nas décadas de 80 e 90, encontram-se “a redescoberta
das páginas e secções culturais, que foram algo menosprezadas no período 1974-75; a valorização das edições dominicais; o interesse pelas informações referentes às novas tecnologias, especialmente pela informática e, já em
1986-87, o surto do jornalismo económico” (Mesquita,
1994: pp. 388-389), tendo-se generalizado a existência de
jornalistas especializados em economia nas redacções da
imprensa escrita e audiovisual. O jornalismo económico
virou-se, então, para o lado empresarial, deixando a perspectiva macro-económica que nos finais dos anos 70 e
início dos anos 80 possuía algum peso, em jornais como
o Diário de Notícias.
O aumento da procura de informação económica está
ligado à desregulamentação e liberalização da actividade
económica, verificada na segunda metade dos anos 80 com
as privatizações e a reabertura do mercado de capitais. A
segunda metade dos anos oitenta ficou assinalada por diversas iniciativas no domínio da informação económica.
Jornais diários e semanários criaram novos suplementos
económicos, dando maior desenvolvimento à informação
e análise económica (caso do Diário de Notícias), enquanto
novas publicações, como o Semanário Económico, surgiram em
237
AF miolo corrupcao 3.indd 237
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
1987. Na origem deste desenvolvimento estiveram, além de
factores como a reabertura da banca à iniciativa privada e a
reanimação da Bolsa de Lisboa, as necessidades de informação criadas pela adesão de Portugal à CEE (Serrano, 2006).
O desaparecimento de dois expoentes do “jornalismo de tendência” como O Diário (comunista) e O Tempo
(conservador) vem acentuar a evolução para um jornalismo liberto de amarras ideológicas. Segundo Reis (1994:
p. 396), nesta mesma linha pode inserir-se a substituição
do semanário O Jornal pela revista Visão (1992/3) que
adoptou um estilo politicamente menos comprometido.
Correia (1997) e Faustino, (2004) afirmam que na década de 90 se observam tendências opostas: por um lado,
o estilo tablóide e popular de alguns títulos; por outro, o
lançamento de projectos editoriais de referência. Segundo
Correia (1997: p. 38), na década de 90 assistiu-se à “comercialização das políticas editoriais”, através, por um lado, do
desaparecimento de jornais que correspondem “de forma
mais ou menos assumida a projectos de intervenção política e ideológica bem marcada”, como o Dia, O País, Jornal
Novo, A Tarde, A Luta, Portugal Hoje, O Diário, nascidos no
período em que devido ao facto de os custos não serem tão
elevados como são hoje, era possível “intervir activamente
numa situação político-militar ainda não totalmente definida, na sequência da Revolução de Abril”. No mesmo sentido, Paquete de Oliveira (1995: p. 378) afirma que, sendo os
principais agentes de exploração dos meios de comunicação social agentes importantes e interessados da actividade
económica, é estratégico para os seus objectivos “fazer crer
que a política saiu dos media”. A passagem dos média da esfera do político para a esfera do económico, não significa,
contudo, para Correia (1997: pp. 40-41) o fim da influência
da política nos media, reflectindo, antes, “uma evolução caracterizada pela crescente ligação entre o poder político e o
238
AF miolo corrupcao 3.indd 238
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
poder económico, com a subordinação daquele a este”. Se
nos primeiros anos após a revolução se verificava a “invasão das redacções por homens de mão impostos pelo poder político dominante, empenhados na manipulação partidária da informação, a partir dos anos 90, o “vedetismo”, a
“intimidade com as fontes”, a preocupação com “o espectáculo” em vez da procura do rigor tornam-se dominantes
(Correia, 1997: p. 41).
Os anos 90 marcam a consolidação dos principais grupos de comunicação social, com fenómenos de concentração, por vezes transnacional, que coexiste com a diversificação de suportes. O sector dos media viveu em 2000
e 2001 a mais grave crise económica desde as décadas de
80 e 90, apesar de no final dos anos 90 terem crescido as
expectativas quanto a este sector, devido ao aparecimento dos novos media, à expansão da Internet e às expectativas da nova economia. O final do ano 2001 e 2002 é um
período pródigo em movimentações nos grupos de media
portugueses quer no plano das reestruturações internas
quer das fusões, aquisições e lançamentos100.
Os anos de 2003 e 2004 confirmam a recuperação do
sector, com os principais grupos de comunicação a apresentarem receitas consolidadas. Para essa recuperação contribuiu o aumento da publicidade provocada por eventos
como o Rock in Rio e o campeonato europeu de futebol,
Euro 2004. A crise financeira de 2011 que provocou uma
enorme retracção do investimento publicitário mergulhou
o sector dos media numa profunda crise com o mercado
geral da publicidade a cair 40%, em Portugal101.
Em anexo apresentam-se os principais grupos de media sediados em
Portugal (dados de 2013).
101
Declaração de Rosa Cullell, Administradora delegada do Grupo Media Capital , Lisboa, V Conferência Internacional da ERC,6 de Junho de
2013.
100
239
AF miolo corrupcao 3.indd 239
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
A
regulação dos media em
Portugal
Todos os sistemas políticos adoptam princípios de regulação do papel dos media (Blumler e Gurevitch, 1995).
A maneira como essa regulação é efectuada está intimamente ligada à influência da cultura política de cada país.
A mais básica é o grau de liberdade de expressão e a maneira como ele é assumido em termos de valor político,
ou, ao contrário, o grau de restrição dessa liberdade considerado necessário para atingir outros objectivos políticos.
A regulação dos órgãos de comunicação social, em
Portugal, foi consagrada constitucionalmente, desde 1976,
altura em que, como atrás se refere, o Estado mantinha
grande presença no sector e em que a televisão vivia ainda sob regime de monopólio estatal. Os Conselhos de
Informação surgiram no pós-revolução como fruto da
preocupação político-ideológica” (Arons de Carvalho,
1986). Integrados por representantes dos partidos com
representação parlamentar, tinham por missão assegurar
nos meios pertencentes ao Estado uma orientação geral
que respeitasse o pluralismo ideológico. Arons de Carvalho e all. (2003: p. 257) afirmam que “os objectivos legais
de garantia de independência não foram alcançados quer
pelos órgãos regulados quer pelos reguladores, cuja composição constituía um réplica comprometida do jogo de
forças parlamentar”.
A Lei de Imprensa102 previa a instituição de um Conselho de Imprensa103 (CI) com o objectivo de salvaguardar
a liberdade de expressão na imprensa escrita. Funcionava
Artigo 17º. do Decreto-Lei nº. 85-C/75 de 26 de Fevereiro.
Criado por Despacho do Conselho de Ministros de 22 de Abril de
1975 e posteriormente regulado pela Lei nº. 31/78, de 20 de Junho.
102
103
240
AF miolo corrupcao 3.indd 240
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
junto da Assembleia da República e era composto por 19
membros com mandatos renováveis por dois anos. Arons
de Carvalho e all. (2003: p. 258) afirmam que a independência do CI era assegurada pela “independência dos seus
membros”, embora o facto de não existir obrigatoriedade
estatutária de exclusividade tenha “condicionado de algum modo o cumprimento da sua missão”. O Conselho
de Imprensa surge ligado à tradição europeia da procura
de definição de regras de conduta de jornais e jornalistas. Segundo Arons de Carvalho (1986: p. 11), “antes, a
sua existência não constituía uma reivindicação ou uma
necessidade premente dos jornalistas e dos proprietários
dos jornais ou sentida, sequer, pela opinião pública”. De
facto, o Conselho de Imprensa nasce por iniciativa do
poder político e permanece estruturalmente ligado à Assembleia da República, nunca se libertando, na prática, de
uma inédita participação na sua composição de elementos
dos partidos políticos (Arons de Carvalho, 1986: p. 13).
A revisão constitucional de 1982 criou o Conselho de
Comunicação Social (CCS), composto por 11 membros
eleitos por maioria qualificada de dois terços, da Assembleia da República, com competências alargadas à emissão
de parecer prévio sobre a nomeação e exoneração dos directores dos órgãos de comunicação social pertencentes
ao Estado. A Revisão Constitucional de 1989, pôs fim ao
Conselho de Imprensa, e a «legislação anti-monopolista»
mencionada na Lei de Imprensa nunca chegou a ser publicada, remetendo-se a regulamentação da concentração de
empresas jornalísticas para lei especial que também nunca
viria a ser publicada.
A terceira revisão constitucional de 1989 criou a Alta
Autoridade para a Comunicação Social (AACS)104, cujas
104
A AACS foi regulada pela Lei 23/89, de 6 de Setembro.
241
AF miolo corrupcao 3.indd 241
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
competências foram consideravelmente alargadas. Eliminada a proibição de abertura da televisão ao sector privado,
as suas competências estenderam-se à emissão de parecer
prévio à decisão de licenciamento de canais privados de
televisão e aos órgãos de comunicação social do sector
privado. A AACS saída de terceira revisão constitucional
era constituída por 13 membros, com inclusão obrigatória de um magistrado, de 5 elementos eleitos pela Assembleia da República, três designados pelo Governo e 4 representativos da opinião pública, da comunicação social e
da cultura. Dada a forte componente político-partidária e
governamental da AACS, a sua independência foi frequentemente questionada. Para Carvalho e all. (2003: p. 260),
o incumprimento das decisões da AACS, mesmo quando
tivessem natureza vinculativa permanecia isento de qualquer sanção, pelo que a AACS pouco mais se mostrava
do que um órgão de natureza consultiva.
A revisão constitucional de 1997 diminuiu a dependência da AACS perante o Governo, reduzindo o número dos seus membros para 11, sendo que apenas um é de
nomeação governamental. Dos restantes, três são representativos da opinião pública, da comunicação social e da
cultura e um quarto cooptado por todos os membros. As
competências da AACS foram significativamente reforçadas e garantida a eficácia das suas decisões. Entre outras
competências, a AACS passou a atribuir as licenças e autorizações para o exercício da actividade de televisão e a
deliberar sobre as respectivas renovações e cancelamentos. Por outro lado, a emissão de parecer à nomeação dos
directores de programas e informação do serviço público
alargou-se aos directores-adjuntos e subdirectores. A fiscalização do cumprimento das normas relativas à propriedade e à publicação de dados das empresas de comunicação
social passou a constituir uma importante competência da
242
AF miolo corrupcao 3.indd 242
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
AACS. Assim, todas as aquisições por empresas jornalísticas ou noticiosas de quaisquer participações em entidades
congéneres ficaram sujeitas a notificação à AACS. Por seu
turno, a Autoridade da Concorrência (AdC) ficou obrigada a comunicar à AACS todas as operações de concentração horizontal dessas empresas, para efeitos de emissão
de parecer vinculativo.
A AACS foi “desconstitucionalizada” na revisão de
2004105 e, em Setembro de 2005, foi substituída por uma
nova Entidade Reguladora (ERC), sob vigência do governo socialista presidido por José Sócrates. São também
criados os cargos de provedores dos telespectadores e
dos ouvintes no serviço público de rádio e de televisão.
A ERC foi criada em 2005 por lei da Assembleia da República106, como autoridade administrativa independente,
sendo a única entidade reguladora portuguesa inscrita na
Constituição da República (CRP). De acordo com a CRP
(n.º 1 do art. 39º) “deve assegurar o direito à informação
e liberdade de imprensa, a independência perante o poder
(político e económico), o respeito pelos direitos, liberdades e garantias pessoais, o respeito pelo aparato regulador
das actividades de comunicação social, a possibilidade de
expressão e confronto das diversas correntes de opinião
e o exercício dos direitos de antena, de resposta e de réplica política”. O financiamento da ERC é assegurado por
receita proveniente do orçamento de Estado; taxas de regulação, coimas, sanções pecuniárias e multas.
A ERC difere da AACS em vários aspectos, entre os
quais na composição. Tem apenas cinco membros, em
vez dos onze da anterior entidade, dos quais quatro são
eleitos por maioria de 2/3 pela Assembleia da República,
105
106
LC1/2004 de 24/07.
Lei n.º 53/2005 de 8 de Novembro.
243
AF miolo corrupcao 3.indd 243
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
sendo o quinto cooptado por aqueles quatro. O seu âmbito foi alargado. Estão sujeitas à supervisão e intervenção
da ERC todas as entidades que, sob jurisdição do Estado
Português, prossigam actividades de comunicação social,
designadamente, as agências noticiosas; as pessoas singulares ou colectivas que editem publicações periódicas, independentemente do suporte de distribuição que utilizem;
os operadores de rádio e de televisão, relativamente aos
serviços de programas que difundam ou aos conteúdos
complementares que forneçam, sob sua responsabilidade
editorial, por qualquer meio, incluindo por via electrónica;
as pessoas singulares ou colectivas que disponibilizem ao
público, através de redes de comunicações electrónicas,
serviços de programas de rádio ou de televisão, na medida
em que lhes caiba decidir sobre a sua selecção e agregação;
as pessoas singulares ou colectivas que disponibilizem regularmente ao público, através de redes de comunicações
electrónicas, conteúdos submetidos a tratamento editorial
e organizados como um todo coerente. As suas atribuições e competências são vastas.
A Autoridade Nacional das Comunicações (ICP-ANACOM)107 é a autoridade pública reguladora das telecomunicações, comunicações postais, electrónicas e plataformas
digitais. Dotada de autonomia administrativa e financeira e
de património próprio, a ANACOM sucedeu ao Instituto
das Comunicações de Portugal. A garantia de um serviço universal de comunicações e o zelo pela correcta utilização do espectro radioeléctrico e a protecção dos consumidores nestas matérias fazem parte das suas funções.
Em suma, quanto à regulação dos media, pode dizer-se
que constituiu uma preocupação dos deputados desde os
107
Criada pelo Decreto-Lei nº. 309/2001, de 7 de Dezembro.
244
AF miolo corrupcao 3.indd 244
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
primeiros anos da instauração da democracia. Uma análise ao texto da Constituição nas suas diversas revisões
desde 1974 até hoje permite sistematizar os antecedentes
do actual órgão regulador. Ao longo dos anos de vigência
da actual Constituição da República Portuguesa a regulação dos média conheceu, pois, os seguintes formatos108: a)
Conselho de Imprensa109, a funcionar junto do Ministério da Comunicação Social, durante o período de vigência do Governo Provisório, com funções de regulação da
política de informação e colaboração na elaboração de legislação antimonopolista, entre outras; b) Conselhos de
Informação110; c) Conselho de Comunicação Social111; d)
Alta Autoridade para a Comunicação Social; e) Entidade
Reguladora da Comunicação Social (ERC)112.
108
Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e nota técnica elaborada pelos serviços de apoio. Disponível
em http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf ?path=61485230634
46f764c324679626d56304c334e706447567a4c31684a5355786c5a79394551
564a4a5353394551564a4a5355467963585670646d38764d693743716955794d464e6c633350446f32386c4d6a424d5a5764706332786864476c3259533
95464574a7a77366c796157556c4d6a42424c3052425569314a535331424c5
441334f4335775a47593d&fich=dar-ii-a-078.pdf&inline=true (acedido em
31/05/013).
109
Previsto no artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 85-C/75, de 27 de Fevereiro (Promulga a Lei de Imprensa), aí determinando a constituição de um
órgão independente designado por Conselho de Imprensa.
110
Criados pela Lei n.º 78/77, de 25 de Outubro, que definia também
a sua orgânica e competência, com as alterações introduzidas pelas Lei n.º
67/78, de 14 de Outubro, e Lei n.º 1/81, de 18 de Fevereiro.
111
Criado pela Lei n.º 23/83, de 6 de Setembro.
112
Criada pela Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro.
245
AF miolo corrupcao 3.indd 245
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Figura 5. Entidades de regulação dos media
Fonte: Assembleia da República.
A Figura 5 permite constatar a evolução de um modelo
assente na escolha partidária, para um modelo baseado na
eleição parlamentar, sendo os membros nomeados ou cooptados e sujeitos a determinados procedimentos e garantias de
independência e incompatibilidades (art. 18.º): serem pessoas
com reconhecida idoneidade, independência e competência
técnica e profissional; não terem sido, nos últimos dois anos,
membros de órgãos executivos de empresas, de sindicatos,
de confederações ou associações empresariais do sector da
comunicação social; não terem sido, nos últimos dois anos,
membros do Governo, dos órgãos executivos das regiões
autónomas ou das autarquias locais.
Segundo Vital Moreira113, “nesta história atribulada de
instabilidade constitucional e legislativa foram-se apuran113
Artigo publicado no jornal Diário Económico em 29/09/2005.
246
AF miolo corrupcao 3.indd 246
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
do alguns princípios básicos, designadamente a necessidade de regulação específica dos media, independente do
poder político, a existência de um órgão regulador único para todo o sector da comunicação social (imprensa,
rádio, televisão, etc.), o seu enquadramento institucional
no âmbito da Assembleia da República, as suas competências alargadas”.
Síntese
final
Retomando a tipologia de Hallin e Mancini (2010) para
análise dos sistemas mediáticos, considerando embora as
limitações de espaço inerentes a um artigo académico,
conclui-se da exposição feita que o sistema dos media em
Portugal se caracteriza por baixas taxas de circulação de
jornais e revistas e ausência de uma imprensa “de massas” em termos europeus. No que respeita ao audiovisual público, Portugal possui um serviço público de rádio
e televisão historicamente muito dependente do Estado
no que respeita ao seu financiamento, essencialmente assente em transferências do orçamento do Estado sob a
forma de indemnizações compensatórias e, numa contribuição paga pelos cidadãos, com as receitas publicitárias.
Após o anúncio do governo de que em 2014 porá fim à
indemnização compensatória, o financiamento do serviço público de rádio e televisão assentará apenas na contribuição para o audiovisual paga pelos cidadãos, uma vez
que a publicidade comercial do primeiro canal (RTP1),
está afecta à dívida.
No que se refere à propriedade dos órgãos de comunicação social, assiste-se à presença crescente da entrada
de capitais angolanos na propriedade de órgãos de comunicação social portugueses, quer através de aquisição de
247
AF miolo corrupcao 3.indd 247
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
títulos, como o semanário Sol, quer da participação em
grupos portugueses (Cofina, Impresa, ZON, Controlinveste esta última em preparação). Por outro lado, Espanha consolida posições no sistema dos média nacionais
através da Prisa, detentora do canal de televisão de maior
audiência em Portugal (TVI) e de um conjunto de estações de rádio, tendo anunciado para breve uma edição em
língua portuguesa do jornal diário El País. No que respeita
à origem de programas estrangeiros emitidos nas televisões nacionais, o Brasil consolida a sua posição como o
país lusófono que mais programas exporta e produz, sobretudo através da Rede Globo e da TV Record, ambas
com sucursais em Portugal.
Finalmente, no que se refere à regulação do sector dos
media, Portugal evoluiu de um modelo assente na escolha partidária para um modelo de uma autoridade administrativa independente de emanação parlamentar, eleita
para um mandato de cinco anos não renováveis, em cujas
atribuições se inclui emitir parece vinculativo sobre a nomeação dos directores e directores-adjuntos da televisão
pública, bem como nas operações de concentração de órgãos de comunicação social que representem ameaça ao
pluralismo. No que refere ao enquadramento da regulação do sector, Portugal não se afasta hoje dos países mais
avançados da União Europeia.
Referências Bibliográficas
ARONS, A. de C. (2002) A Primeira Lei de Imprensa no Pós-25 de
Abril. Média, Jornalismo e Democracia. Lisboa: Livros Horizonte,
pp. 133-137.
ARONS, A. de C. (1986) A Liberdade de Informação e o Conselho de Imprensa 1975-1985.
248
AF miolo corrupcao 3.indd 248
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
ARONS, A. de C., CARDOSO, M. e FIGUEIREDO, J. P. (2003) Direito da Comunicação Social. Lisboa: Editorial Notícias.
BLUMLER, J. G. e M. GUREVITCH (1995) The Crisis of Public Communication. London: Routledge.
BRANDÃO, N. (2002) O Espectáculo das Notícias. Lisboa: Editorial
Notícias.
CÁDIMA, F. R. (1996) Salazar, Caetano e a Televisão Portuguesa. Lisboa:
Editorial Presença.
CHAPOULIE, J.-M. (1993) Sur l´ánalyse sociologique des groupes
profissionels. Revue française de sociologie, pp. 86-114.
CORREIA, F. (1997, 4ª Ed.) Os Jornalistas e as Notícias. Lisboa: Editorial Caminho.
FAUSTINO, P. (2004) A Imprensa em Portugal – Transformações e tendências. Lisboa: Media XXI.
GODINHO, J. (2005) Genealogias da Reportagem, do conceito de reportagem
ao caso Grande Reportagem, programa da RTP (1981-1984). Tese de
doutoramento, apresentada na Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Abril de 2005.
HALLIN, D. e MANCINI, P. (2010) Sistemas de Média: Estudo Comparativo três modelos de Comunicação e Política. Colecção Média e Jornalismo. Lisboa: Livros Horizonte.
LOPES, F. A. e SERRANO, E. (Coord.) (2010) A Imprensa Regional e
Local em Portugal (2010). Lisboa, Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
MESQUITA, M. (1994) Portugal na Primeira Página In: MESQUITA, M. e REBELO, J. (Orgs.) O 25 de Abril nos Média Internacionais. Porto: Edições Afrontamento.
NEVEAU, E. (2001) Sociologie du journalisme. Paris: La Decouverte.
PAQUETE DE OLIVEIRA, J. (1995) Comunicação Social, Verso e
Reverso do País Real e Imaginário In: Portugal Hoje. Lisboa, Instituto Nacional de Administração, pp. 369-390.
PISSARRA ESTEVES, J. (1988) Comunicação regional e local em
Portugal. Jornalismos. Revista de Comunicação e Linguagens (8).
POULANTZAS, N. (1976) La crise des Dictadures. Paris: Maspero.
REIS, A. (1994) Os Meios de Comunicação Social In: REIS, A. (Coord.) Portugal 20 Anos de Democracia. Lisboa: Círculo de Leitores.
SEATON, J. e PIMLOTT, B. (1983) The Portuguese Media in Transition In: MAXWELL, K. (Ed.) The Press and the Rebirth of Iberian
Democracy. London: Greenwood Press.
SERRANO, E. (2006) Jornalismo Político em Portugal. Lisboa: Colibri.
249
AF miolo corrupcao 3.indd 249
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
SERRANO, E. (2011-2012) Grupos de Comunicação Social
em Portugal. Revista Janus online http://janusonline.pt/popups2011_2012/2011_2012_1_9.pdf
SOUSA FRANCO, A. (2002) Média Jornalismo e Democracia. Lisboa:
Livros Horizonte.
TRAQUINA, N. (1997) Big Show Média. Lisboa: Editorial Notícias.
ANEXOS
Breve caracterização dos principais grupos
de media situados em Portugal114
IMPRESA
O grupo Impresa, de Francisco Pinto Balsemão, era, em 2004, o
maior grupo de média português. Teve origem na Sojornal, empresa criada em 1972, proprietária do semanário Expresso. Reúne várias
participações em vários segmentos de negócio na área dos média. As
suas áreas de actividade repartem-se por: televisão - SIC, SIC Notícias, SIC Radical, SIC Mulher, SIC Internacional e SIC K); publicações – Expresso, Courrier Internacional, Activa, Autosport, Blitz, Volante,
Caras, Exame, Arquitectura&construção, Telenovelas, TV Mais, Visão, Olhares; Outros (onde inclui o digital e a VASP); produção de eventos;
comunicação e publicidade; gestão de imóveis e serviços. A Impresa detém 22,35% do capital da agência noticiosa LUSA.
Media Capital
O grupo Media Capital surgiu em 1988 com o nome de Soci,
Sociedade de Comunicação, com o semanário O Independente. A Media Capital é de todos os grupos media aquele onde a presença na rádio é mais forte. Em 1997, o grupo entra na TVI e adquire a Rádio
Comercial. Em 2000, adquire um portal na Internet – IOL que em
2004 se tornou o terceiro operador no mercado da Internet (Silva,
2004: p. 107). Actualmente a empresa espanhola Prisa detém 80%
Fontes: relatórios de regulação da Entidade Reguladora para a Comunicação (ERC), sítios electrónicos dos grupos e das empresas que os
constituem e, nos casos em que existem, os relatórios e contas individuais
consolidados.
114
250
AF miolo corrupcao 3.indd 250
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
do Grupo Media Capital. As áreas de actividade da Media Capital desenvolvem-se em cinco segmentos de negócio: televisão - TVI, TVI
24 e TVI Internacional teledifusão levada a cabo pela RETI; produção – programas e realização e distribuição audiovisual e produção
de séries, área de negócios desenvolvida pela MCP; entretenimento; área de negócios desenvolvida pela empresa MCME - gravação e
venda de CD e DVD música, agenciamento de artistas e promoção
de eventos, aquisição e distribuição de direitos cinematográficos; rádio – Rádio Cidade, Rádio Regional de Lisboa e Rádio Comercial, a
Rádio Cidade, a Rádio Clube Português e a M80, entre outras; internet – Multimédia que detém a IOL Negócios, que explora o portal
IOL que apresenta conteúdos próprios, entre os quais o jornal desportivo online Mais Futebol.
RÁDIO E TELEVISÃO DE PORTUGAL, SA RTP
A Rádio e Televisão de Portugal, SA, é a empresa concessionária
do serviço público de rádio e de televisão. O seu objecto é a prestação dos serviços públicos de rádio e de televisão. A RTP desenvolve a sua actividade na rádio – Antena 1, Antena 2 e Antena 3, RDP
Madeira e RDP Açores, RDP Internacional e RDP África; na televisão – RTP1 e RTP2, RTP Madeira e RTP Açores, RTP Internacional e RTP África, RTPN e RTP Memória e, ainda, a RTP Mobile.
COFINA
A Cofina é um grupo alicerçado na indústria que entrou no sector
dos média em 1999. Em 2000, a Cofina adquire a Presslivre, editora
do Correio da Manhã. Através de empresas participadas, a Cofina Média
SGPS – a sub-holding do grupo COFINA para o sector dos média - actua em dois segmentos principais: imprensa – jornais Correio da Manhã,
Record, Jornal de Negócios e os gratuitos Destak; Metro; revistas Sábado, Máxima, TV Guia, Flash, Vogue, GQ, Rotas e Destinos, PC Guia, Automotor);
distribuição através da VASP, em cujo capital participa em 33,33%;
televisão – já em 2013, a Cofina lança o canal generalista de televisão por cabo CMTV transmitido em exclusivo na plataforma MEO.
RENASCENÇA
O Grupo RENASCENÇA é detido pelo Patriarcado de Lisboa
(60%) e pela Conferência Episcopal Portuguesa (40%). Actua fundamentalmente no sector da rádio através das marcas Rádio Renascença, RFM, Mega FM e Rádio SIM. Na Internet possui actividade
na webradio, com as rádios 80’s RFM, a RFM Oceano Pacífico e a
251
AF miolo corrupcao 3.indd 251
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
RFM Clubbing; na publicidade detém ainda a totalidade do capital
da Intervoz Publicidade, a empresa que detém o exclusivo da angariação publicitária e no entretenimento e formação.
SONAECOM
Actua em três principais segmentos de negócio: telecomunicações – Optimus e Clix e Optimus; sistemas de informação: serviços
de software e consultoria; multimédia – imprensa (jornal Público)
conteúdos na internet e radiodifusão sonora (Rádio Nova).
CONTROLINVESTE
A CONTROLINVESTE desenvolve actividade na imprensa – Jornal de Notícias, Diário de Notícias, O Jogo, 24 Horas, Global Notícias, Açoriano Oriental, Jornal do Fundão, e as revistas: Notícias Magazine, Notícias
TV, Açores Magazine, Revista J, Volta ao Mundo, Mais, Evasões, Life, Qi, In,
Zoom; na rádio - TSF; na televisão por cabo – SCN Sport TV, Sport
TV2, Sport TV3, Sport TVÁfrica, Sport TVHD; Sport TVGolf; na
distribuição (Notícias Direct e participação na Vasp); agência de
viagens; agência de comunicação empresarial e Loja do Jornal.
ZON MULTIMÉDIA
Actua em dois principais segmentos de negócios. Televisão por
subscrição (Pay-tv por cabo e satélite), banda larga e voz; audiovisuais – edição e venda de videogramas, distribuição de filmes, exploração de salas de cinema, aquisição/negociação de direitos para
televisão por subscrição e vídeo on‑demand para o mercado português
e mercados africanos de expressão portuguesa.
IMPALA
Desenvolve actividade nas áreas de negócio de revistas, livros,
viagens e franchising. No segmento revistas edita várias publicações – Focus, Nova Gente, Mulher, Mulher Moderna, Moderna na Cozinha,
Segredos de Cozinha, 100% Jovem, Especial Crescer, Especial Boa Forma, TV
7 Dias, VIP, Maria e Ana. No segmento livros tem presença significativa, em particular nas áreas infantil e de culinária.
252
AF miolo corrupcao 3.indd 252
7/31/14 12:54 AM
6. O Sistema dos Media em
P o rt u g a l n o c o n t e x to
da globalização
d o s é c u l o XXI
Rita Figueiras
Introdução
O que os académicos ocidentais designaram por processo de globalização pós­‑colonial do século XX, iniciado
nos anos de 1960, tem sofrido alterações profundas desde
que a crise despoletada pela queda do Lehmen Brothers
em 2008 acelerou a recessão económica, a desafeição política e o sentimento de vazio de representação democrática
no ocidente. Esta crise profunda é simultaneamente reflexo e consequência do que Colin Crouch (2004) designou
por era ‘pós-democrática’. Segundo o autor, os estados
ocidentais do século XXI estão organizados de acordo
com as regras democráticas, mas as instituições de representação democrática não estão a cumprir as suas funções.
Os governos já não têm o grau de controlo que tiveram
no passado sobre o seu próprio país devido à ingerência
de instituições políticas e económicas supranacionais, mas
também por causa do crescente poder político de grandes
empresas. De acordo com Crouch (2004: p. ix), empresas
e governos estão cada vez mais próximos, porque os estados precisam do investimento das empresas internacionais
e isso tem-lhes permitido adquirir um crescente poder de
influência junto dos decisores políticos.
No novo contexto global, os Estados Unidos da América e a Europa estão a perder terreno no que diz respeito
à sua supremacia política, económica e simbólica, enquan253
AF miolo corrupcao 3.indd 253
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
to outros países fora da geografia ocidental, tal como a
China ou o Brasil, estão a aumentar a sua relevância internacional. Estes países emergentes possuem grandes
economias e estão a tornar-se líderes globais. Simultaneamente, outros estados com peso regional estão também
a adquirir relevância económica em diferentes partes do
mundo, como Angola, em África ou a Coreia do Sul, no
Pacífico115. Deste modo, o novo cenário global está a mudar irreversivelmente o equilíbrio de poderes institucionalizado há muito tempo entre o ocidente e o não-ocidente,
mas também entre o Norte e o Sul.
A afirmação das economias não-ocidentais no mundo
global está também a ser feita através das oportunidades
de negócio que a crise económica do ocidente lhes está a
proporcionar. A recessão está a abrir-lhes caminho para
entrarem em sectores estratégicos de atividade em vários
países, de entre os quais Portugal que, em Maio de 2011,
iniciou um programa de resgate financeiro sob a alçada
das instituições supranacionais: Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu.
Por necessitar de liquidez, o governo iniciou um processo
de venda de empresas públicas atuantes em sectores estratégicos, como a EDP à empresa Chinese Three Georges
No processo de afirmação global dos países acima referidos podemos incluir a organização de eventos mediáticos globais. Os Jogos Olímpicos de 2008 na China, a Taça das Nações Africanas de 2010 em Angola, o
Campeonato Mundial de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016,
ambos sediados no Brasil, devem ser perspetivados como eventos de nation
branding (Bolin e Stahlberg, 2010: p. 82). Estes eventos têm custos na ordem
dos milhões de euros, mas são estrategicamente usados como atos de relações públicas no relançamento internacional dos países. Os eventos referidos são projetados para e vistos por audiências globais, o que lhes permite
mostrar uma imagem diferente de si a audiências externas, nomeadamente
de país desenvolvido com capacidade para organizar eventos que requerem
infraestruturas modernas e complexas.
115
254
AF miolo corrupcao 3.indd 254
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
em 2011. Simultaneamente, tendo em conta o período de
recessão que o país atravessa e a retração no consumo, as
empresas privadas mais relevantes, incluindo as que operam no sector da comunicação e dos media, começaram a
procurar investidores internacionais.
As alterações no processo de globalização e a profunda
crise económica vivida no país são, deste modo, perspetivadas como os dois eixos centrais para se compreender
as transformações do sector da comunicação e dos media
em Portugal no século XXI. O capítulo começa com uma
breve resenha histórica da formação do sector da comunicação e dos media no Portugal democrático, para depois
se debruçar sobre a sua evolução nos anos 2000. Neste
capítulo, a crise de 2008 é assumida como um momento
de viragem para a reconfiguração a que se tem assistido
nos últimos anos no mercado da comunicação e dos media
nacional. O texto é ilustrado com exemplos das estratégias
seguidas pelos principais grupos que operam neste sector
e cujo desenvolvimento reflete as alterações nos fluxos de
capital na indústria dos media no século XXI. O
mercado da comunicação
em
Portugal
Com o fim de mais de 40 anos de ditadura, que culminou no golpe militar do 25 de Abril de 1974, e com a
censura a ser oficialmente abolida em 1975, a imprensa
portuguesa rapidamente se adaptou à nova configuração
política. No entanto, e ao contrário de outros países onde
a implementação do regime democrático deu lugar à privatização dos media, como foi o caso da Espanha, em Portugal conduziu à concentração da propriedade do sector
sob a alçada do estado. No entanto, enquanto a estatização
255
AF miolo corrupcao 3.indd 255
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
da imprensa foi uma consequência da nacionalização do
sector financeiro em 1975, por ser o principal proprietário dos títulos de imprensa que existiam durante o período do Estado Novo (Agee e Traquina, 1984), a nacionalização da rádio decorreu da intenção direta de controlar
as estações emissoras (Mesquita e Rebelo, 1994)116. Deste
modo, na segunda metade dos anos de 1970, a paisagem
mediática portuguesa caracterizava-se por jornais e rádios
na posse do estado (à exceção da Rádio Renascença que
se manteve nas mãos da Igreja Católica portuguesa) e pela
emergência de muitos novos títulos de imprensa ligados
a partidos e a facções políticas, refletindo o turbilhão ideológico que o país vivia à época.
Depois deste período conturbado, a partir de meados
dos anos de 1980 começou‑se a verificar vastas mudanças na sociedade portuguesa. A adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, em 1986, impulsionou
a transformação do país, nomeadamente em termos de
progresso económico, estabilidade política (Braga da Cruz,
1995) e modernização do sector dos media (Correia, 1997).
O crescimento económico favoreceu a constituição de
um mercado dos media, o aumento do investimento em
publicidade, a privatização dos meios que haviam sido nacionalizados na década anterior e a emergência de novos
projetos. A par das pressões europeias para a liberalização
do mercado, outro factor que impulsionou a (re)privatização da imprensa foi o elevado custo de cada publicação.
Na última metade dos anos de 1970, a imprensa orientou116
Nesta altura assiste-se a agudos períodos de conflito entre os poderes tradicionalmente instituídos em Portugal e as forças revolucionárias
que, entre outros casos, resultaram na disputa pela Rádio Renascença e pelo
jornal República. Após um período muito conturbado, a estação de rádio foi
devolvida à igreja católica portuguesa (Marcondes Filho, 1986; Mesquita e
Rebelo, 1994; Ribeiro, 2002).
256
AF miolo corrupcao 3.indd 256
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
se para dividendos políticos, descorando formas viáveis de
gestão. Por dependerem do orçamento de Estado e não
estarem inseridos numa lógica de mercado, a maioria dos
títulos chegou à década de 1980 com elevados prejuízos
financeiros acumulados. Todavia, é certo que sem a intervenção estatal, e também por causa da queda na vertical
das receitas de publicidade, muitos desses títulos teriam
acabado por falir.
Em 1982, sem qualquer moldura legal, que haveria de
ser instituída apenas em 1989, começaram a emitir centenas de rádios piratas, ainda que a maioria só alcançasse uma audiência local ou regional. Os novos jornais que
surgiram ao longo da década espelhavam a modernização
em curso: projetos jornalísticos independentes, comercialmente viáveis e integrados em grupos económicos fortes. De entre os novos títulos destacam-se o Semanário em
1983, O Independente em 1988 e o diário Público em 1990.
Esta é uma imprensa claramente dirigida às elites, maioritariamente urbana, instruída, politicamente ativa, ainda
que configurasse uma audiência relativamente pequena.
Os jornais e os seus leitores estavam assim envolvidos
num processo de debate e negociação horizontal entre as
várias fações que compunham a elite portuguesa (Hallin
e Mancini, 2004: p. 22).
Nos finais dos anos de 1980 assiste-se ainda a uma vaga
de fundo para a desestatização da televisão em Portugal
que, após novo ordenamento jurídico promulgado em
1989, culmina no lançamento dos novos canais privados
de televisão no início da década seguinte. Pela mão da Impresa e com capital brasileiro da Globo, a SIC começa a
emitir em Outubro de 1992. Sob a propriedade da Rádio
Renascença e de um vasto conjunto de investidores europeus, a TVI inicia as suas emissões em Fevereiro de 1993.
257
AF miolo corrupcao 3.indd 257
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
A introdução da televisão privada, e posteriormente
dos canais por cabo, foi a última fase no processo de reestruturação do sector dos media em Portugal na década
de 1990, que passa a ser constituído por imprensa privada e por estações de rádio e canais de televisão públicos
e privados. A reconfiguração da paisagem mediática portuguesa incluiu também uma alteração estrutural no mercado publicitário que conduziu a uma nova distribuição
dos investimentos por cada media. Importa ainda destacar que a inclusão da televisão no portefólio dos grupos
portugueses foi fundamental para que estas empresas
pudessem operar num mercado cada vez mais globalizado, concentrado e competitivo, onde apenas a economia
de escala e a parceria com capital internacional oferecia
garantias de sobrevivência, crescimento e expansão das
empresas que operam no sector da comunicação e dos
media (Hardy, 2008).
2000-2008:
c r is e , c o n c e n t r a ç ã o
e crescimento
Tal como referido, as mudanças políticas, sociais e económicas do país criaram condições para a transformação
do sector da comunicação em Portugal, cuja integração
na CEE conduziu à harmonização da legislação entre os
estados membros, à criação de um mercado único, à concentração da propriedade e à internacionalização do capital das empresas (Hallin e Mancini, 2004; Papathanassopoulos e Negrine, 2011).
Estruturada nos processos de globalização e racionalidade financeira, a formação de conglomerados permitiu a expansão rápida, e com menos riscos, dos negócios,
devido sobretudo à possibilidade de gerar sinergias entre
258
AF miolo corrupcao 3.indd 258
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
as várias empresas dentro dos grupos e de disputar com
outros a audiência e o investimento publicitário (Picard,
2002; Hardy, 2008).
A análise da concentração da propriedade deve, no
entanto, ser contextualizada na dimensão do mercado
onde as empresas operam (Tabernero e Carvajal, 2002).
No caso português, os grupos de comunicação tiveram
que crescer muito para sobreviverem num mercado cada
vez mais globalizado, o que implicou situações de elevada
concentração de propriedade, como foi o caso da Impresa e da PT/Lusomundo que consolidaram as suas posições no sector através de políticas de diversificação das
áreas de atividade e de internacionalização com o reforço
de capitais estrangeiros de matriz ocidental (Alger, 2000).
A presença de capital internacional nas empresas portuguesas verificou-se inicialmente na Media Capital (com
interesses na imprensa, rádio e televisão) e na PT, a maior
empresa portuguesa na área das telecomunicação. Na primeira, a entrada de capital estrangeiro ocorreu em 1999
quando o fundo de investimento Hicks, Muse, Tate &
Furst (conhecido como Hicks Muse), adquiriu 37,7% das
ações da empresa por 52.500 mil dólares117. Esta Capitalização ajudou o grupo Media Capital a adquirir a empresa
Azul Marinho (propriedade da Valores Baviera SA e de
outros investidores privados), uma holding que havia comprado a TVI em 1998, para assim passar a ter o controlo
total da estação de televisão.
No caso da PT, a entrada de capitais estrangeiros no
seu capital ocorreu no ano 2000. Fundada como empresa pública em 1994, a PT começou a operar em regime
de monopólio (após a fusão de várias empresas estatais
117
Business Wire: 14/09/1999.
259
AF miolo corrupcao 3.indd 259
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
que operavam na área dos serviços de telecomunicações
fixa e móvel em diferentes áreas geográficas do país e no
estrangeiro), mas no ano seguinte iniciou um processo
de privatização em cinco etapas que ficou concluído em
dezembro de 2000. 90% do seu capital privatizado distribuiu-se pela branca portuguesa, pelas empresas de telecomunicações inglesa e castelhana e pelo grupo de media
português, Cofina. Neste processo, o governo português
foi gradualmente abdicando do controlo da empresa, mas
manteve um pacote de golden shares que lhe garantiu direitos
especiais, nomeadamente o direito de veto sobre decisões
estratégicas e de gestão (Obercom, 2003).
Por sua vez, a concentração da propriedade foi também
uma resposta ao quadro da conjuntura económica mundial que entrou num período de recessão nos primeiros
anos do novo milénio e que afetou fortemente o sector
dos media. Esta crise levou a PT a comprar a Lusomundo por 53,5 milhões de contos, juntando ao seu portefólio de infraestruturas da comunicação, a área dos conteúdos. A aquisição permitiu-lhe passar a ter uma posição
dominante na distribuição e exibição de filmes (salas de
cinema, televisão e vídeo) e um contrato de exclusividade
com os principais players internacionais da indústria cinematográfica. No sector dos media noticiosos, passou a deter a rádio jornal mais relevante no país (a TSF) e títulos
de referência nacional (Diário de Notícias) e local (como o
Açoriano Ocidental) e jornais populares líderes do mercado à época (como o 24H). Ainda na área da imprensa adquiriu um conjunto vasto de revistas especializadas, bem
como uma presença relevante em empresas de impressão
e distribuição de jornais. A compra da Lusomundo permitiu-lhe ainda diversificar as suas áreas de negócio para
a internet com a inclusão no seu portefólio do maior portal português à época, o sapo, e o brasileiro zip.net. No
260
AF miolo corrupcao 3.indd 260
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Brasil iniciou também uma parceria para a internet com o
Unibanco - União de o banco brasileiro, através do Banco1.net. Nesta altura, a PT já controlava o mercado da
televisão por cabo em Portugal e, por via indireta, estava
também ligada ao negócio dos canais abertos através de
uma quota de 10% no grupo brasileiro Globo que, por
sua vez, detinha uma participação na estação privada de
televisão SIC (Obercom, 2003). A aquisição da Lusomundo permitiu-lhe inclusive diversificar os seus negócios para outros sectores de atividade, como o imobiliário, parques de diversão (Oeiras
Parque em parceria com os espanhóis da Cirsa) e internacionalizar-se para outros mercados em parceria com a
Sonae, dona do jornal diário Público, com quem investiu
na área do lazer (shoppings e cinemas) em Moçambique,
tendo ainda outros negócios na África do Sul, América
Latina e do Norte.
Com esta compra a PT tornou-se numa das empresas
de comunicação mais completas na Europa, com interesses de negócio numa ampla gama de áreas, sendo líder
em todas elas: infraestruturas de comunicação (provedor
de rede de radiodifusão, de cabo e via satélite, telefones
fixos e móveis), portais de Internet, empresas de comércio electrónico, cinemas e distribuição de filmes e videojogos, media noticiosos (jornais, rádio, televisão e online) e
parques temáticos.
Estratégias de concentração de propriedade foram
igualmente verificadas na Media Capital. Tendo em vista a consolidação do negócio da televisão em termos de
audiências e receitas, em 1999 o grupo investiu na SAD
Leiriense, garantindo a transmissão pela TVI dos jogos
de futebol do clube disputados em casa e, em 2001, adquiriu a produtora de telenovelas NBP, o que lhe permitiu
o controlo da produção de conteúdos de ficção em por261
AF miolo corrupcao 3.indd 261
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
tuguês. O grupo também expandiu as suas operações de
rádio (detentora da Rádio Comercial, Cidade FM e Rádio Clube Português), de empresas de publicidade exterior e lançou-se no negócio na Internet, criando a marca
IOL em 2000. Posteriormente entrou na distribuição de
filmes (atividade interrompida no final de 2011) e, após a
aquisição de Farol Música, somou ao seu portefólio uma
das principais gravadoras, produtoras e distribuidora de
música e gestora de artistas em Portugal (Relatório Anual ERC, 2007: p. 246).
A Impresa, liderada por Francisco Pinto Balsemão, à
imagem dos outros grupos de comunicação portugueses,
também seguiu uma política de diversificação dos negócios
por forma a fortalecer a posição da empresa no mercado
dos media. A Impresa iniciou a atividade com a fundação
do semanário Expresso em 1973 e títulos da imprensa especializada, expandindo-se para o negócio da televisão no
início dos anos de 1990, aproveitando a abertura do mercado audiovisual Português (Correia, 1997: p. 68). Como
muitos donos de jornais em toda a Europa, que perceberam que precisavam de entrar no mercado da televisão
para poderem sobreviver no negócio dos media (Hardy,
2008), a Impresa criou o primeiro canal privado de televisão em Portugal em 1992 e mais tarde expandiu-se para
o cabo, com a criação de vários canais temáticos durante
a primeira década do século XXI. Esta empresa tornou-se o principal player português na
televisão por cabo devido a um acordo estabelecido em
2000 com a TV Cabo que, na época, era a única empresa
com cobertura nacional. O acordo deu à Impresa o direito
de preferência para fornecer canais temáticos. Neste cenário privilegiado, em 2001, o grupo lançou a SIC Notícias
que foi o único canal de notícias português durante 3 anos
e em pouco tempo a estação tornou-se na mais vista no
262
AF miolo corrupcao 3.indd 262
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
cabo. No final de 2003, o canal começou a transmitir via
satélite para Angola e Moçambique. Nesse mesmo ano, a
Impresa comprou a participação da RTP no capital do canal de cabo Sport TV. Deste modo, ao mesmo tempo que
expandia a sua oferta na televisão por cabo, verificava-se
um aumento da concentração da propriedade.
Dados de 2003 revelavam precisamente que quase 70% dos investimentos publicitários no sector da
comunicação e media estavam concentrados exclusivamente nos grupos referidos: a PT/Lusomundo detinha
uma quota de 25.5% e a Impresa, uma quota de 23.7%
(Faustino, 2004).
Em Portugal, a crise e a concentração da propriedade
fizeram-se sentir de forma ainda mais aguda no segmento da imprensa de referência. Dos cinco semanários de
informação geral com maior circulação média total em
2003, os dois principais, Expresso e Visão, pertencentes
ambos à Impresa, somavam uma circulação média de
213.871 exemplares por edição. Os outros três títulos
que surgiam a seguir no ranking – O Independente, o Tal
& Qual e a Focus – somavam apenas 76.278 exemplares
por edição. A concentração da propriedade foi também
uma reação do segmento à perda de investimento publicitário devido à televisão privada. Entre 2001 e 2003, a
imprensa registou uma redução significativa na sua quota
de investimento: 21% em 2001, 19% em 2002 e 18.7%
em 2003. No mesmo período, a televisão (incluindo a
cabo) consolidou a sua posição, elevando a quota de investimento publicitário de 64% (em 2001) para 66.4%
(em 2003). Esta situação tornou-se verdadeiramente difícil para a imprensa, porque a média de dependência da
publicidade como fonte de receita situava‑se nos 60%
(Obercom, 2003).
263
AF miolo corrupcao 3.indd 263
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
No início do milénio verificou-se também a internacionalização das empresas portuguesas para outros mercados. Quando o governo de Angola aprovou uma nova
lei para o sector das telecomunicações, que terminou com
o monopólio estatal de telecomunicações em 2001, a PT,
em parceria com outros três investidores locais, de entre
os quais Isabel dos Santos e o seu pai (o presidente do
país José Eduardo dos Santos), criaram a Unitel, que se
tornou na maior empresa de comunicação móvel do país.
No ano seguinte, em 2003, em parceria com a espanhola Telefónica, a PT lançou no Brasil a Vivo, prestadora de
serviços de telefones móveis. A empresa tornou-se o maior
fornecedor do país, com mais de 60 milhões de usuários e
a segunda maior companhia de telecomunicações do Brasil118. Esta estratégia deu assim continuidade ao primeiro
investimento que a PT havia feito neste país, quando em
1998 comprou 20% da CRT Brasil. A parceria com a Telefónica foi fundamental para a expansão internacional
da PT. Através da empresa castelhana, a PT entrou nos
mercados hispânicos e através da empresa portuguesa, a
Telefónica acedeu aos mercados lusófonos. O processo de expansão e diversificação das áreas de
negócio e internacionalização das empresas portuguesas começou, no entanto, a ser colocado em causa por
novos diplomas europeus. Em sequência da extinção das
golden shares que os estados alemão, britânico e holandês
possuíam, respectivamente, na Volkswagen, na British
Airways e na KPN, e de em Portugal se ter procedido de
forma diferente em relação à PT, em 2005 a Comissão Europeia reclamou contra o estado português no Tribunal
de Justiça da UE, argumentando que este tipo de direitos
118
“Telefónica confirma acordo para comprar Vivo à PT” In: Económico,
28/07/2010.
264
AF miolo corrupcao 3.indd 264
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
especiais violavam as leis da livre circulação de capitais,
de concorrência e de investimento na UE.
Nesse mesmo ano, a PT anunciou a sua intenção de
vender a Lusomundo que, à época e por si só, era uma das
maiores empresa de media em Portugal. No entanto, tendo
em conta os grupos portugueses e espanhóis interessados
na compra, a venda iria aumentar ainda mais o nível de
concentração nesta área de negócio. A Sonaecom, a Cofina, a Media Capital e Impresa, e as espanholas Recoletos, a
Vocento e a Prisa mostraram-se interessadas na aquisição,
mas a PT acabou por vender a Lusomundo à Olivedesportos, o proprietário da SporTV e do jornal desportivo O
Jogo, por 18 Milhões de euros119. Esta venda revelou bem
a saturação do mercado dos media em Portugal. Para poderem continuar a crescer, os grupos tinham de comprar
títulos existentes, uma vez que não havia possibilidades
de mercado para se criar novos meios de comunicação.
A venda do sector dos conteúdos da PT decorreu também das dificuldades da empresa com a gestão da Vivo. A
dimensão da empresa e do mercado brasileiro absorviam
praticamente todos os recursos da PT, levando-a a alterar o seu projeto de expansão global. Para além da venda dos conteúdos de media em Portugal, a PT alienou investimentos relevantes que havia feito no Botsuana e em
Marrocos. Por sua vez, menos sobrecarregada no negócio
da Vivo, a Telefónica continuou a crescer e isso fez com
que a diferença entre a Telefónica e a PT, inicialmente de
4 para 1, aumentasse de 10 para 1120. Esta desproporção
tornou a parceria inviável que, por sua vez, foi agudizada
“Controlinveste adquire Lusomundo” in Diário de Notícias: 1/03/2005.
Entrevista a Francisco Murteira Nabo, In ‘O que fica do que passa’
no Canal Q, 11/10/2013.
119
120
265
AF miolo corrupcao 3.indd 265
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
pelo facto da empresa castelhana discordar da estratégia
da empresa portuguesa, levando-a a aliar-se à Sonae na
OPA que lançou à PT. Em 2006, a Sonaecom, apoiada pela Telefónica, lançou então uma OPA hostil à PT e ofereceu 11,1 mil milhões de euros, elevando no ano seguinte a oferta para
11,8 mil milhões de euros, mas o estado português vetou a aquisição, mesmo contra a nova recomendação do
Tribunal Europeu de Justiça. Sem publicamente afirmálo de uma forma direta, o fracasso da OPA acabaria por
conduzir à cisão entre a PT e a PT Multimédia, que se
tornou na Zon Multimédia no início de 2008. Esta cisão
decorreu também da pressão de mais uma ação em tribunal interposta pela Comissão Europeia contra as golden shares do estado português na PT. Ainda que a Comissão Europeia alegasse ilegalidade face à legislação da
UE, Portugal continuou a argumentar que as ações eram
de interesse público. O diferendo terminou apenas em
2011, quando a coligação PSD-CDS assumiu a governação e extinguiu as golden shares. Esta decisão decorreu da
exigência da Comissão Europeia no âmbito do acordo
de resgate a Portugal.
O contrato especial entre a Impresa e a PT, que permitiu à primeira uma elevada concentração da propriedade no
negócio da televisão em Portugal, chegou ao fim em 2006,
quando foi considerado ilegal pelo Fair Trade Authority.
Durante os anos em que esteve em vigor, o contrato deu
à Impresa uma vantagem significativa no cabo em comparação com outros operadores portugueses, porque estes só conseguiram entrar neste mercado muito mais tarde. Apesar deste revés no negócio de televisão por cabo,
nesse mesmo ano a SIC aumentou a sua assinatura nos
EUA, no continente Africano (mais de 110.000 clientes)
e em Portugal (Relatório Anual ERC, 2006: p. 40).
266
AF miolo corrupcao 3.indd 266
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
No início de 2007, afirmando que o seu tripé estratégico estava em Portugal, Brasil e África, a PT estabeleceu
uma aliança com a Helios Investments, e formou a Africatel para continuar a investir no mercado africano e mediterrânico. Após investimentos nas telecomunicações em
Guiné-Bissau e em Marrocos, a PT saiu destes mercados,
mantendo-se apenas em quatro países africanos: Namíbia,
São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Angola, que se tornou no mercado principal. A PT através da Unicel atingiu
um volume de negócios que lhe renderam 50 milhões de
euros em dividendos em 2012121. Enquanto os primeiros grupos multimédia, e a presença de capital estrangeiro nesses mesmos grupos, datam
dos anos 1990, o controlo de empresas portuguesas por
capital internacional foi, todavia, mais recente. Tornouse apenas evidente em 2007, quando a Media Capital foi
comprada pelo conglomerado espanhol Prisa, que passou
a deter 73,7% da empresa122. Com operações em 22 países,
a Prisa até então operava primordialmente no mercado
castelhano e da América Latina, mas esta compra permitiu-lhe consolidar sua posição de líder no mercado ibérico. Por outro lado, se antes de 2008 o mercado castelhano
era o mais influente no país, à medida que a crise económica ocidental se agudizou conjuntamente com a fragilidade da situação financeira de Portugal, o novo contexto
criou a oportunidade para empresas angolanas assumirem posições relevantes na comunicação e nos media, mas
também em outros sectores estratégicos como a banca,
a energia e a construção. De acordo com a agência de
“PT e Zon Optimus disputam Mercado nacional mas é fora dele que
querem crescer” In: Público, 3/10/2013.
122
“Prisa logra el 73,7% de la lusa Media Capital con su OPA” In: El
País, 6/02/2007.
121
267
AF miolo corrupcao 3.indd 267
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
comércio e investimento AICEP123, Angola tornou-se o
maior investidor em Portugal, cujo investimento aumentou 35 vezes ao longo da última década. De acordo com
os dados disponíveis pela agência referida, na primeira
metade de 2012, esse investimento quase duplicou em
relação ao ano anterior: 126.100 milhões de euros em relação aos 70.300 milhões de euros investidos em todo o
ano de 2011. No primeiro semestre de 2012, Isabel dos
Santos investiu mais em Portugal do que todas as empresas angolanas em conjunto em 2011. Esta empresária, a
Newshold, e mais recentemente António Mosquito, tornaram-se os principais investidores angolanos no sector da
comunicação e media em Portugal.
A
c r is e d e
2008
e a reconfiguração
do sector da comunicação
em
Portugal
A crise de 2008 conduziu os países ocidentais a um ciclo
recessivo. Em Portugal, o efeito da crise nos indicadores
macroeconómicos, particularmente no consumo privado,
foi ampliada pela dimensão reduzida do mercado português e pelo carácter instável do negócio da comunicação.
Este contexto reintroduziu problemas financeiros no sector e intensificou a dependência das empresas no sistema
bancário e no investimento internacional, uma vez que o
mercado da publicidade começou a diminuir. Em 2010 este
investimento decresceu na ordem dos 2 a 3% comparativamente com o ano anterior, em 2011 diminuiu mais 12%
“Investimento angolano em Portugal cresceu 35 vezes em 10 anos”
In: Económico, 22/09/2012.
123
268
AF miolo corrupcao 3.indd 268
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
e, em 2012, 20%124. Tendo em conta que o investimento
publicitário é a maior fonte de liquidez dos media privados,
a viabilidade económica destas empresas ficou crescentemente comprometida, o que impulsionou uma reconfiguração do sistema da comunicação e dos media em Portugal.
Como resposta à crise despoletada em 2008, o grupo
Impresa definiu novas áreas de atuação (Relatório Anual
ERC, 2008: p. 68). Durante esse ano o grupo adquiriu 50%
do capital da Edimpresa (edições de publicações), 70% da
Terra do Nunca (produção de conteúdo) e 50% da Office
Share (gestão de imóveis e prestadora de serviços). Esta estratégia deu à Impresa o controlo total sobre as três empresas. Ainda em 2008, o grupo lançou dois novos negócios:
Impresa Serviços (serviços de unidade compartilhadas) e
a Impresa Produção de Eventos, em parceria com os espanhóis do Castillo de Elsinor (empresa em que a Impresa
detém 20% do capital), com vista a trabalhar para outros
clientes fora do grupo. As mudanças surgiram também da
descontinuidade de cinco atividades de negócios: as gravadoras iPlay e Som Livre, a empresa de produções multimédia New Media e as empresas de circuito fechado de
televisão AdTech e SIC Indoor. Ainda nesse ano, o grupo
reduziu em 14% o número de trabalhadores no segmento
editorial (Relatório Anual Impresa, 2008). Em 2009, a Ongoing tornou-se o segundo maior acionista da Impresa, com
20.02% de suas ações125 (Relatório Anual Impresa, 2009) e
124
“Que irá acontecer ao investimento publicitário” In Jornal de Negócios,
30/08/2012.
125
Em 2014, a Ongoing alienou 23,13% do capital social que detinha
no grupo Impresa, mantendo uma participação abaixo dos 2%. A Ongoing
vendeu a participação a um grupo de investidores institucionais, cuja identidade não foi revelada.
Cfr: Público: 17/01/2014, http://www.publico.pt/economia/noticia/ongoing-vende-participacao-na-impresa-por-51-milhoes-de-euros-1620120, acedido a 29 de Janeiro de 2014.
269
AF miolo corrupcao 3.indd 269
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
com essa capitalização comprou os restantes 40% da Lisboa TV, proprietária da SIC Notícias à Zon, tornando-se
então o único dono do canal de notícias (Relatório Anual ERC, 2009: p. 53). A mesma estratégia foi seguida em
relação ao AEIOU, ao tornar-se a única proprietária do
capital da empresa. Em 2012, o grupo fechou cinco revistas especializadas e a empresa anunciou novos investimentos no negócio de televisão em articulação com títulos de publicações do grupo, estreitando assim sinergias
internas que potenciam a economia de escala. Em 2014,
a Impresa lançou o canal SIC Caras no principal provedor de televisão por cabo, a Zon, e anunciou a abertura
de um outro canal para a plataforma rival Meo. Com a
abertura do novo canal, o portefólio do grupo aumentou
para sete canais de televisão.
A reconfiguração do sector da comunicação também
ficou a dever-se ao surgimento de uma nova empresa em
2008, a Zon Multimédia, fruto da cisão entre a PT Multimédia e a PT, formando-se ‘com o propósito de levar
a cabo a sua estratégia no negócio multimédia’ (Relatório ZON Financeiro, 2009: p. 15): serviços e canais de
televisão por cabo e satélite, serviços de voz e acesso à
internet, edição e venda de videojogos, publicidade em
canais de TV subscritas, salas de cinema e distribuição
de filmes (cinema e televisão) num volume de negócios
de 710 milhões de euros (Relatório Anual ERC de 2007:
p. 224). Para além da sua atividade na área da comunicação, a empresa também investiu no sector imobiliário
e serviços de gestão.
Na sua constituição, os seus parceiros de negócios
foram principalmente bancos – Caixa Geral Depósitos
(13,93 %), BPI (7,74%) e Banco Espírito Santo (3,97%)
– e outros grupos de comunicação, como o espanhol Telefónica (5,46%), o australiano Teleresources (5%) e os
270
AF miolo corrupcao 3.indd 270
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
portugueses Ongoing (3,16%), Cofina ( 2,23%) e Controlinveste ( 1,46 %) (idem). Com esta última, a Zon passou
a deter em partes iguais a Sport TV, e com a Impresa, que
tinha 60% da Lisboa TV, partilhou a SIC Notícias, onde
detinha 40% (Relatório Anual ERC, 2007: 225). No entanto, tal como referido, no ano seguinte a Zon acabou por
vender a sua parte à SIC por 20 Milhões de euros (Relatório Anual ERC, 2008: p. 62).
A Zon começou por operar em Portugal, Espanha (Lusomundo España detida em 100% pela ZON Multimédia) e Moçambique (Lusomundo Cinemas detida a 100%
pela Lusomundo Moçambique). Em 2009, por forma a
dar continuidade à sua estratégia de internacionalização,
comprou a holandesa Teliz Holding, que era proprietária de 30% da angolana Finstar, cujos outros 70% eram
detidos por Isabel dos Santos. Deste modo, foi através
do negócio da televisão por subscrição que a Zon entrou
no mercado angolano. Nesse ano, o volume de negócios
aumentou para 818 Milhões de euros (Relatório Anual
ERC, 2009: p. 49).
Ainda no ano anterior, Isabel dos Santos, a parceira
da Zon e da PT em Angola, começou a investir em Portugal, tendo participações significativas nos sectores de
telecomunicações, banca e energia. Nas telecomunicações, Isabel dos Santos tornou‑se na maior acionista individual das duas empresas mais importantes do sector,
a PT e a Zon Multimédia. Em 2008 adquiriu 10% das
ações da Zon por 180 milhões de euros. No ano seguinte, a empresária angolana investiu mais 164 milhões na
Zon e, a partir de julho de 2012 passou a controlar 29%
do capital social da empresa, num negócio estimado em
cerca de 38 milhões de euros, o que a tornou no maior
acionista individual do grupo. Após este investimento, a
empresa estatal angolana para a exploração de diamantes,
271
AF miolo corrupcao 3.indd 271
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Endima (dirigido pelo marido de Isabel dos Santos), comprou 5% da Zon Multimédia à espanhola Telefonica126.
No sector bancário, Isabel dos Santos investiu no maior
banco português, a Caixa Geral de Depósitos, e em bancos
privados. Detém 25% do banco angolano BIC em Portugal,
onde tem assento no Conselho de Administração. É também dona de 19,5% do BPI e é um dos principais acionistas
do BPN, depois de este banco ter sido adquirido pelo BIC
em 2011. Em conjunto com a petrolífera estatal angolana
Sonangol (que também é o principal acionista do BCP, o
maior banco privado em Portugal), tem outras participações na empresa de petróleo Galp Energia. Controla ainda
45% da Amorim Energia, uma subsidiária da holding do
Grupo Amorim (uma das maiores empresas multinacionais
portuguesas, a líder mundial na produção de cortiça). Esta
empresa, tal como Isabel dos Santos, detém 25% do BIC
Portugal, que é o principal acionista da Galp Energia. Outros interesses financeiros da empresária incluem a MotaEngil, a maior empresa portuguesa no sector da construção
e que é também a mais internacionalizada127.
No geral, Isabel dos Santos conduz um conglomerado multissectorial, que combina integração vertical e horizontal em diferentes sectores estratégicos, e que opera
nos mercados angolanos e português, mas que tem crescido também para Cabo Verde e Brasil através dos seus
negócios na banca. É de ressalvar que, até à data, Isabel
dos Santos nunca investiu diretamente em empresas que
atuam na produção de media, apesar de terem sido publicadas notícias sobre o seu interesse em adquirir a RTP1,
quando o governo português anunciou a venda do canal
público, antes de a privatização ter sido suspensa.
126
“Isabel dos Santos já investiu este ano 137 milhões em Portugal” In:
Económico, 29/08/2012.
127
Idem.
272
AF miolo corrupcao 3.indd 272
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
O investimento nos media tem sido feito pela empresa angolana Newshold, que é uma empresa de propriedade
de Pineview Overseas, com sede no off-shore do Panamá.
Apesar de operar em Portugal desde 2009, foi somente
em dezembro de 2012 que se ficou a saber que esta empresa estava ligada à família Madaleno. Um dos cinco proprietários e CEO da empresa é Álvaro Madaleno, que é
também um pequeno investidor (5%) e CEO do BESA,
um banco onde Isabel dos Santos tem um investimento
significativo, tal como mencionado acima. A divulgação
dos proprietários da Newshold deveu-se ao interesse desta
empresa na privatização da RTP, uma operação que tornava obrigatória a revelação dos nomes dos investidores interessados no negócio. Apesar da constituição portuguesa
estabelecer que uma entidade administrativa independente deve assegurar a não concentração da propriedade dos
meios de comunicação, a falta de legislação que abranja
questões como a participação cruzada e a transparência
fez com que fosse possível a esta empresa comprar media
nacionais sem precisar de revelar os nomes dos seus proprietários, verificando-se no país a continuação do cenário de ‘desregulamentação selvagem’ do sector, tal como
Nelson Traquina (1995) havia caracterizado as décadas
de 1980 e 1990, décadas da adaptação do sector ao novo
contexto de mercado.
A aquisição do semanário Sol em 2009 pela Newshold,
no momento em que o jornal tinha uma dívida muito pesada, marcou então o entrada do grupo angolano no mercado português. No mês que se seguiu à aquisição, o Sol
começou a produzir versões angolanas e moçambicanas.
Desde então, a empresa tem-se expandido para outras empresas, ocupando cargos importantes em dois dos principais grupos de media portugueses: na Impresa (1.05%)
e na Cofina. Embora esta seja uma empresa multimédia
273
AF miolo corrupcao 3.indd 273
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
muito mais pequena, quando comparada com a Impresa,
a Cofina é, ainda assim, um dos quatro grandes grupos
no país e proprietária, entre outros títulos, do jornal mais
lido em Portugal, o Correio da Manhã. Apesar de ter sido
um grupo que se constituiu em 1995 com o objetivo de
ter participações estratégicas em várias áreas de negócio,
incluindo a dos media, ao longo dos anos transformou-se
num verdadeiro grupo de comunicação e, em 2013, entrou, inclusive, no mercado de televisão ao lançar um canal de notícias por cabo, a CMTV, um exclusivo Meo. Em
outubro de 2011, a Newshold adquiriu 6,16% da Cofina.
No mês seguinte, aumentou a sua posição para 10,55% e
em Dezembro do mesmo ano, para 15,08%, tornando-se
o maior acionista da empresa (Figueiras e Ribeiro, 2013:
p. 520). A Newshold é ainda proprietária da produtora de
televisão NBP, do grupo editorial Babel e da empresa de
conserva Bom Petisco.
Os processos de concentração como resposta à crise de 2008, conduziram ainda à fusão entre as empresas
Ongoing e Vertix (conglomerado do sector da comunicação de Singapura), com vista ao controlo conjunto do
grupo Media Capital. No entanto, alguns dias mais tarde,
e à luz do facto de as atividades económicas das empresas
participantes estarem sujeitos à regulação sectorial, a Autoridade da Concorrência pediu um parecer às entidades
reguladoras do sector ERC e ANACOM. Enquanto esta
última não se opôs, a ERC considerou que tal negócio
não se poderia realizar enquanto a Ongoing mantivesse a
sua participação no capital social da Impresa (para além
da PT e da Zon), o que comprometeria a diversidade e
o pluralismo no sector da comunicação e media em Portugal (Relatório Anual ERC, 2010). Face aos pareceres
emitidos, a Autoridade da Concorrência pronunciou-se
contra a operação de fusão da Ongoing, Vertix e Media
274
AF miolo corrupcao 3.indd 274
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Capital128. Em fevereiro de 2011, Miguel Pais do Amaral –
um dos fundadores do grupo, seu acionista de referência
até 2005 e CEO da empresa entre 2000 e 2007 – voltou à
Media Capital depois de comprar 10% das ações da Prisa, por 35 milhões de euros, através da PortQuay, grupo
multissectorial detido por aquele investidor.
A crise de 2008 também levou as empresas portuguesas
a rentabilizarem as relações privilegiadas com os mercados
de expressão portuguesa em África e no Brasil, dando lugar à emergência de um mercado e sistema de media lusófono. Os principais investidores angolanos em Portugal
são os parceiros estratégicos nos investimentos feitos por
empresas portuguesas em Angola. Isabel dos Santos tem
funcionado como um gatekeeper estratégico na seleção dos
investimentos portugueses no seu país que, por sua vez,
são feitos por empresas nas quais a Isabel dos Santos tem
participações no mercado nacional, reforçando a dinâmica de dependência das empresas portuguesas. Tal como
referido, no sector da comunicação, a filha do presidente
é a maior acionista individual da PT e Zon, empresas que
também operam no mercado angolano. No sector bancário, Isabel dos Santos tem investimentos significativos no
Banco Espírito Santo Angola (BESA) e em 2011, a empresária assinou uma parceria com o grupo Sonae para o
desenvolvimento e operação de comércio de retalho em
Angola. Seria com este mesmo grupo, através da Optimus,
que a Zon acabaria por se fundir em 2013.
Em 2011, a Impresa também expandiu os seus negócios para Angola com o lançamento de uma revista económica semanal intitulada Rumo, que foi publicado pela
http://www.concorrencia.pt/vEN/News_Events/Comunicados/
Arquivo/Pages/2010_Competition-Authority-rules-against-Ongoing-Vertix-Media-Capital-merger-as-a-result-of-ERC-Advisory-Report.aspx, acedido a 18/10/2013.
128
275
AF miolo corrupcao 3.indd 275
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
empresa angolana de media Rumo, detida a 30% pela Impresa e 70% pela holding angolana Finicapital. No entanto, após 13 edições, o grupo anunciou o fim da revista no
início de 2013.
Por sua vez, em 2008, a Media Capital, operando no
seu mercado natural hispânico, vendeu a sua unidade de
negócios de imprensa à Progresa (também propriedade
do Grupo Prisa) e no final desse ano adquiriu a Espanha
Plural que, juntamente com a NBP, deu origem à Plural
Entertainment, um dos principais produtores de conteúdo em português e castelhano, reforçando assim o seu
investimento na produção e distribuição de conteúdos.
No ano seguinte, o grupo expandiu os seus negócios
no segmento de internet e produção de televisão através da aquisição de 40% do capital da produtora espanhola Tesela (Relatório Anual ERC, 2009: p. 57). Dando
continuidade ao investimento no negócio de televisão,
o grupo lançou em 2011 dois canais por cabo, a TVI24
e a TVI Internacional, ambos distribuídos em Angola,
Moçambique, Andorra, França e Suíça. Em 2012 lançou,
primeiro num exclusivo Meo, um canal de cabo dedicado à ficção, TVI Ficção e depois um outro na plataforma Zon, +TVI.
Com o objectivo de consolidar a sua presença no
mercado lusófono, a Telefónica tentou comprar a participação da PT na Vivo em 2010. No entanto, e apesar
dos acionistas aprovarem, o estado português vetou a
venda através das golden shares, mas a PT acabou por chegar a acordo com a Telefónica vendendo-lhe a Vivo por
7500 milhões de euros. Nesse mesmo ano, via Unitel,
ou seja, em parceria com a Isabel dos Santos, a PT perdeu a corrida à terceira licença de operador móvel em
Moçambique, e no ano seguinte, entra na brasileira Oi,
a empresa que opera no sector móvel de uma empre276
AF miolo corrupcao 3.indd 276
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
sa de telecomunicações fixa que era, à época, a quarta
maior empresa do sector no Brasil.
Dois anos mais tarde é anunciada a fusão entre a PT e
a Oi, com vista à criação do maior operador de telecomunicações em língua portuguesa e com o objetivo de operar no mercado da CPLP129. A nova empresa terá 100 milhões de clientes, o que a coloca no grupo das 20 maiores
mundiais. Este negócio reconfigura a PT que, enquanto
tal, não desaparece como marca, mas deixa de ter a relevância económica, fiscal e como empregadora que teve
nos últimos 20 anos para Portugal. Na nova empresa, embora com gestão portuguesa, os acionistas da PT, ficam
com pouco mais de um terço do seu capital. No conselho
de administração têm lugar Nuno Vasconcelos e Rafael
Mora, líderes da Ongoing, acionista da PT, um grupo de
comunicação português, que em poucos anos ganhou e
perdeu expressão no mercado nacional, transferindo o seu
negócio, no entretanto, para o mercado brasileiro, depois
de investimentos em Angola.
Corroborando as previsões dos especialistas que consideravam inviável a existência de quatro operadores de telecomunicações num mercado maduro e a viver um período
de grande recessão como o português, no final de 2012
a Zon Multimédia e a Sonaecom anunciaram a operação
de fusão por incorporação da Optimus, empresa de telecomunicações móveis da Sonae, na Zon. Esta fusão tornou a Zon Optimus na segunda maior operadora do país.
As alterações no regime de propriedade nos dois maiores grupos de comunicação portugueses – a PT e a ZON
–, em 2013, ilustram bem as novas dinâmicas globais
129
“PT e Oi querem criar grande operador de língua portuguesa «sem
passaporte» In: Público: 3/10/2013.
277
AF miolo corrupcao 3.indd 277
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
pós‑crise de 2008 e as mudanças nos fluxos de capital na
indústria da comunicação e dos media e as suas repercussões no mercado nacional.
A presença do capital angolano nas empresas portuguesas aumentou ainda mais em 2013, com a venda de
parte da Controlinveste ao empresário angolano António
Mosquito. O portefólio deste grupo inclui os diários nacionais Diário de Notícias (o mais antigo jornal diário português fundada em 1864, o segundo diário de referência
mais vendido no país) e Jornal de Notícias (o segundo classificado na imprensa diária tabloide), o diário desportivo
O Jogo e a estação de rádio de notícias TSF e o jornal económico digital Dinheiro Vivo. Neste mesmo ano, o empresário angolano comprou a construtora Soares da Costa,
uma das empresas portuguesas que mais negócios tem em
África, nomeadamente em Angola. O investidor angolano ficou com cerca de 30% do capital da empresa, tal como o seu atual proprietário, Joaquim Oliveira e Luís Montez – dono da produtora Música
no Coração, das rádios Radar e Oxigénio e do Pavilhão
Atlântico – adquiriu 15% da empresa130. O capital remanescente foi diluído entre o BCP e o BES, bancos em
que Isabel dos Santos é um dos seus principais investidores em Portugal e parceira de negócios em Angola. Estes bancos são os principais credores da Controlinveste
e que transformam assim parte da dívida da empresa em
capital. Esta participação só poderá ser, no entanto, de
curto prazo, uma vez que as mais recentes regras bancárias limitam a detenção de posições diretas em atividades
não-financeiras. Daniel Proença de Carvalho, antigo presidente da Zon e atual presidente da Cimpor, é apontado
como o futuro CEO da empresa.
130
Cfr: Expresso, caderno de Economia, 12/10/2013.
278
AF miolo corrupcao 3.indd 278
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
C o n si d e r a ç õ e s F i n a is
Nos primeiros anos da década de 2000, o sistema dos
media em Portugal desenvolveu-se significativamente e
assistiu-se à concentração e internacionalização das formas de propriedade assente em capital ocidental. Nestes
anos, os grupos de comunicação portugueses ganharam
expressão, acumulando a posse de um conjunto vasto de
empresas que combinavam integração vertical, horizontal, multimédia, multissectorial e internacional (Thorburn
e Jenkins, 2002: pp. 283-284).
A crise de 2008 introduziu, no entanto, novas dinâmicas no processo da globalização, na economia política internacional do sector da comunicação e nos fluxos
de capital na indústria dos media. A recessão económica,
juntamente com a crise política que as democracias ocidentais atravessam, e o impacto que ambas têm tido no
sector da comunicação e dos media ocidentais, abriram um
debate sobre a ‘democraticidade’ de regimes democráticos,
levando autores como Jürgen Habermas (2012) ou Colin Crouch (2004) a considerarem que os estados ocidentais do século XXI entraram numa fase pós-democrática.
Neste cenário cada vez mais moldado por interesses de
empresas globais, os governos têm vindo a perder o controlo sobre as decisões importantes para os seus países e
os direitos e as necessidades dos cidadãos estão crescentemente comprometidos.
No que diz respeito ao sector da comunicação e dos
media, a recessão veio alterar as condições de mercado
dos operadores e fez emergir novos perfis de investidores interessados no sector. No contexto português, se,
por um lado, a nova globalização tem feito emergir um
verdadeiro mercado lusófono, com a expansão de negócios a operarem no eixo Brasil, Angola, Moçambique, e
279
AF miolo corrupcao 3.indd 279
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
outros países dentro da comunidade de língua portuguesa, por outro lado, no contexto da profunda recessão que
Portugal atravessa, a elevadíssima concentração da propriedade em grupos que também detêm posições fortes
em outros sectores estratégicos como a banca e a energia,
coloca questões sobre as possibilidades de pluralismo, de
contraditório e de diversidade de perspectivas a circularem no espaço público.
Deste modo, observando o contexto e as suas consequências, a relação entre os media, nomeadamente o jornalismo, e a democracia não deve ser entendida como um
dado adquirido, na medida em que para essa aliança funcionar são necessários determinados requisitos. Os mercados
não têm um âmago democrático e se o jornalismo pode
contribuir para democratizar as sociedades – e aí reside a
matriz cultural ocidental dos media como um dos pilares da
democracia –, pode também ser uma força poderosa em
processos de ‘des-democratização’ (Fenton, 2010: p. 43).
Referências Bibliográficas
AGEE, W. e TRAQUINA, N. (1983) O Quarto Poder Frustrado. Lisboa: Vega.
ALGER, D. (2000) Megamedia, a Situação do Jornalismo e a Democracia. Jornalismo 2000. Revista de Comunicação e Linguagens, 27,
pp.97-107.
BOLIN, G. e STAHLBERG, P. (2010) Between Community and
Commodity; Nationalism and Nation Branding In: ROSVALL,
A. e MORING, I. (Ed.) Communicating the Nation. Göteborg: Nordicom, pp. 79–101.
BRAGA DA CRUZ, M. (1995) Instituições Políticas e Processos Sociais.
Lisboa: Bertrand Editora.
CROUCH, C. (2004) Post-Democracy. Cambridge: Polity Press.
CORREIA F. (1997) Os Jornalistas e as Notícias. Lisboa: Editorial
Caminho.
280
AF miolo corrupcao 3.indd 280
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
FENTON, N. (2010) New Media, Journalism and Democracy: Figments of a Neo-Liberal Imagination? Media & Jornalismo, 17
(9/2), pp. 41-52.
FIGUEIRAS, R. e RIBEIRO, N. (2013) New Global Flows of Capital in Media Industries after the 2008 Financial Crisis: The Angola–Portugal Relationship The International Journal of Press/Politics: 18(4), pp. 508-524.
HALLIN, D. e MANCINI, P. (2004) Comparing Media Systems. Cambridge: Cambridge University Press.
HARDY, J. (2008) Western Media Systems. London: Routledge.
MARCONDES FILHO, C. (1986) O Capital da Notícia. São Paulo:
Editora Ática.
MESQUITA, M. e REBELO, J. (Org.) (1994) O 25 de Abril nos media
internacionais. Porto: Edições Afrontamento.
OBERCOM (2003) Anuário Comunicação. Lisboa: Obercom.
PAPATHANASSOPOULOS, S. e NEGRINE, R. (2011) European
Media. Cambridge: Polity Press.
PICARD, R. (2002) The Economics and Financing of Media Companies.
New York: Fordham University Press.
RIBEIRO, N. (2002) A Rádio Renascença e o 25 de Abril. Lisboa: Universidade Católica Editora.
TABERNERO, A.S. e CARVAJAL, M. (2002) Media Concentration in
Europe. Eunsa: Pamplona.
THORBURN, D. e JENKINS, H. (Eds.) (2002) Rethinking Media
Change. Cambridge, Massachusetts: MIT Press.
TRAQUINA, N. (1995) Portuguese Television: The Politics of Savage Deregulation. Media, Culture & Society, 17 (2), pp. 223–238.
281
AF miolo corrupcao 3.indd 281
7/31/14 12:54 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 282
7/31/14 12:54 AM
7. As diferentes dinâmicas da
c o r r u p ç ã o : Mí d i a , p e r c e p ç ã o
e instituições no contexto
brasileiro
Nuno Coimbra Mesquita
José Álvaro Moisés
Bruno Rico
Introdução
A corrupção política é um fenômeno universal que atinge praticamente todos os países do mundo, democráticos
ou não. No caso dos países democráticos, no entanto, ela
tem efeito devastador para a legitimidade do regime e para
a promessa de igualdade política que ela supõe. Isso ocorre, por um lado, porque ela induz parcelas importantes da
opinião pública a considerar que o princípio do primado
da lei não é efetivo, já que muitas vezes nem todos os protagonistas envolvidos são igualmente atingidos pelos efeitos punitivos das normas legais. Por outro lado, a corrupção também desequilibra os modos pelos quais projetos
de políticas públicas são escolhidos pelas instâncias de tomada de decisões, já que alguns desses projetos são adotados através de meios espúrios envolvendo a apropriação
privada de fundos públicos. Nessas condições, ela frauda o
princípio de que na democracia a competição política entre atores diferentes se baseia na igualdade de condições.
As implicações desse quadro para a qualidade da democracia são claras. A erosão da legitimidade política compromete as possibilidades de cooperação das pessoas comuns com o sistema político e torna extremamente difícil
a função de coordenação que cabe ao Estado desempe283
AF miolo corrupcao 3.indd 283
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
nhar. Sem cooperação social a possibilidade de que comportamentos antissociais emerjam é bastante grande, pois
as pessoas perdem de vista a perspectiva que as vincula
com a sua comunidade, seja em plano local, seja em plano
nacional. Nesse contexto, comportamentos envolvendo a
burla de obrigações fiscais ou compromissos envolvendo
a segurança do Estado, como o pagamento de imposto
de renda e o serviço militar, escasseiam. Mas, afora isso,
a perda de legitimidade do regime democrático também
gera comportamentos antipolíticos como o desinteresse
pela vida pública, a desconfiança das instituições democráticas e o cinismo diante de exigências cívicas como a
participação política.
Ao mesmo tempo, a percepção ou a constatação de
que as regras de competição política podem ser fraudadas estimula alguns atores a se dissociarem das normas
de conduta definidas pelo primado da lei. Quando existem sinais de que a competição política é ou pode estar
viciada por práticas que envolvem condições privilegiadas
para alguns atores em detrimento de outros, estes tendem
a adotar outros comportamentos que, destinados a assegurar a sua continuidade na disputa eleitoral malgrado os
fatores adversos, rompem com princípios republicanos
destinados a assegurar a transparência da disputa eleitoral. O uso de “caixa dois” para o financiamento de campanhas eleitorais no Brasil é um exemplo disso, ou seja,
trata-se de um indicador de que as regras não são iguais
para todos. Alguns atores se sentem autorizados a adotar
mecanismos e formas de competir que envolvem a utilização de recursos privados à margem da legislação vigente.
A premissa desses comportamentos é que, dadas as condições efetivas da competição política, comprometendo a
igualdade política, as regras democráticas não podem ou
não devem ser cumpridas.
284
AF miolo corrupcao 3.indd 284
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
O comprometimento da legitimidade política e a distorção da competição eleitoral afetam a qualidade da democracia porque, por uma parte, desmobilizam os cidadãos de seus compromissos cívicos e de sua crença de
que a democracia é o melhor regime para que possam
defender os seus interesses e preferências e para que sejam capazes de enfrentar os seus desafios coletivos. Mas,
por outra parte, comprometem a noção de que o regime
democrático assegura a todos os cidadãos – independente
de sua posição social, condição econômica, gênero, raça e
crença religiosa ou ideológica – a igualdade de condições
necessária para disputarem o poder, apoiarem os partidos de sua preferência ou mesmo se apresentarem como
candidatos aos cargos públicos preenchidos por eleições.
Uma das mais sérias consequências desse quadro é a perda de sentido dos partidos políticos e das instituições de
representação que, submetidos aos vícios da competição
política desigual, se esvaziam e perdem força como canais
de intermediação dos interesses e de preferências dos eleitores. Um dos efeitos mais graves disso é a percepção dos
eleitores de que o sistema político não abre espaço para
a inclusão de suas demandas.
Em vista disso, torna-se extremamente importante
examinar em que medida os mecanismos de accountability previstos nas constituições democráticas oferecem
antídotos eficazes para o controle e a punição da corrupção e de práticas políticas semelhantes. A teoria empírica da democracia atribuiu grande importância aos
mecanismos da accountability vertical e horizontal, mas
deu menor atenção à chamada accountability social ou
societária. A vantagem da accountability social, ou seja,
aquela que é exercida por instituições da sociedade civil
organizada e especialmente pela mídia impressa e eletrônica, é que ela, desvinculada de organismos públicos
285
AF miolo corrupcao 3.indd 285
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
controlados por governos e coalizões políticas majoritárias, pode mobilizar os cidadãos para pressionarem
as instituições democráticas encarregadas de monitorar
os poderes republicanos quando esses funcionam mal
ou de modo insuficiente. Nesse sentido, a existência e
a efetividade da accountability social podem ser consideradas condição necessária ao adequado funcionamento
da accountability vertical e horizontal. O municiamento
de informações sobre como o sistema político está efetivamente funcionando é uma condição indispensável
para que os eleitores façam as suas escolhas eleitorais
destinadas a premiar ou punir os governantes do dia.
Do mesmo modo, a pressão da mídia se constitui em
um fator decisivo para informar, esclarecer e estimular
a investigação, avaliação e punição pelo sistema de integridade em torno de práticas ilegais realizadas por políticos e por partidos políticos.
Este trabalho examina, então, o papel da mídia com
relação à corrupção na experiência democrática brasileira
iniciada com a promulgação da Constituição de 1988. O
texto aborda ainda a percepção do público com relação
as práticas de malversação de recursos públicos e, finalmente, realiza um cotejamento entre as notícias da mídia
e a resposta dos organismos do Estado em face da corrupção. Uma das principais hipóteses do trabalho é que as
denúncias da mídia estimulam as instituições do sistema
de integridade a funcionarem mais ativamente. Isso significa que a accountability social tem um importante papel
para as outras formas de accountability, vertical e horizontal. O trabalho é exploratório e utiliza uma metodologia
heterodoxa, aproximativa e tentativa, para contribuir para
o conhecimento do tema.
286
AF miolo corrupcao 3.indd 286
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Mídia
e
Corrupção
A accountability envolve a prestação de contas e controle do exercício do poder, aí incluído a vigilância contra o
mal uso do dinheiro público. Dessa forma, um de seus
requisitos básicos é que os cidadãos estejam cientes do
problema da corrupção. Neste sentido, a mídia é um elemento a se considerar analiticamente ao fornecer informações políticas aos eleitores para que possam controlar
seus governantes através da accountability vertical. Por outro lado, também é requisito dessa dimensão de controle
do poder público que aqueles envolvidos em irregularidades (no caso de corrupção) sejam punidos e afastados
da vida pública.
Não obstante, na América Latina, mecanismos horizontais e verticais de accountability não têm sido suficientes
para controlar o poder. Isso porque, por um lado, muitas
vezes o legislativo e o judiciário não são percebidos como
mecanismos legítimos de controle do executivo, mas como
obstáculos à efetividade do governo e à vontade da maioria, como propõe a literatura sobre democracias “delegativas”. Por outro lado, o poder do voto é diluído pelo fato
deste ser uma ação estratégica descentralizada, além do
problema de falta de informação adequada para efetivamente avaliar a performance do governo (O’Donnell, 1994;
Smulovitz e Peruzzotti, 2000). Além desses aspectos, o
contexto institucional brasileiro – na forma do presidencialismo de coalizão – a despeito de apresentar um maior
grau de estabilidade e governabilidade, tem demonstrado que o parlamento tem sua função de accountability horizontal diminuída, devido a preponderância do executivo
sobre o legislativo (Moisés, 2011).
Dadas essas deficiências dos mecanismos de accountability horizontal e vertical, a mídia aparece como instrumento
287
AF miolo corrupcao 3.indd 287
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
alternativo de controle, que ao lado de outras associações
de cidadãos, permite monitorar o poder em situações não
eleitorais. Ainda que os meios de comunicação não possuam capacidade de fazer valer sanções legais, sua força
advém do fato de ser capaz de produzir sanções sociais
derivadas da exposição pública de atos ilícitos, que potencialmente pode afetar o capital político e a reputação de
políticos e governantes (Smulovitz e Peruzzotti, 2000). A
simples exposição de malfeitos pode forçar a derrubada
de ocupantes de cargos públicos, além de dar início a processos que podem gerar sanções legais.
Do ponto de vista normativo, portanto, uma mídia independente que cubra assuntos de interesse público – inclusive possíveis atos ilícitos de governantes e políticos –
é imprescindível à democracia, cumprindo sua função de
watchdog. Não obstante, a literatura não é unânime quando
se trata de avaliar o real papel que ela desempenha. Uma
parte da literatura, incluindo boa parte da pesquisa sobre o Brasil, vê com preocupação um enfoque excessivo
nos escândalos políticos, o que poderia gerar insatisfação
política não direcionada à reforma de instituições, e sim
motivando um maior distanciamento e apatia diante da
política, em um sentimento de que “são todos iguais”.
No Brasil, existe uma abordagem quase dominante que
acusa os meios de comunicação de exacerbarem seu papel de guardião da coisa pública, focando em especial os
aspectos negativos da política. Para Porto (2000), a mídia
brasileira possui um viés antipolítico e antiinstitucional.
Uma cobertura essencialmente negativa, especialmente
do poder legislativo, estaria centrada em temas como a
corrupção, o nepotismo, o clientelismo e outras irregularidades. Chaia e Teixeira (2001) acreditam que o jornalismo investigativo resultou em “escândalos midiáticos”.
Analisando as edições das revistas semanais Isto É e Veja
288
AF miolo corrupcao 3.indd 288
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
durante o período em que ocorreram vários escândalos
políticos em 2001, concluíram que esse tipo de notícia
pode ter o aspecto positivo de provocar um aumento da
fiscalização das atividades dos políticos. Mesmo que denúncias da mídia não redundem necessariamente em punições judiciais, a exposição de malfeitos na imprensa
tem forte impacto sobre responsabilizações políticas em
períodos iniciais das coberturas jornalísticas. O aspecto
negativo, não obstante, fica por conta de o acúmulo de
“maus exemplos” de políticos poder levar a uma descrença nas instituições.
Críticas à parcialidade da mídia também são comuns,
o que incluiria a de que esta promove uma fabricação artificial de crises. Lima (2006) – em análise de conteúdo de
jornais, revistas e telejornais, durante o período do “Mensalão” em 2005 – avalia que a cobertura predominantemente
negativa do governo e dos partidos políticos, durante o
período, distorceu e omitiu fatos, se caracterizando como
um “escândalo político midiático”, que só existe na e pela
mídia. O autor conclui que predominou na mídia a “presunção da culpa” dos envolvidos na crise, acarretando em
um desvio das regras e dos princípios éticos da profissão.
Outra análise sobre o mesmo período avalia que a ênfase
da cobertura negativa ser em agentes políticos e não nas
instituições teria apresentado um caráter deferente ao sistema político e suas principais instituições, falhando ao
não reconhecer que parte dos problemas apontados também são fruto de um sistema político com necessidade de
reformas (Miguel e Coutinho, 2007).
Em um estudo sobre a cobertura dos editoriais de jornais paulistas sobre o Senado entre 2003 e 2004, Chaia e
Azevedo (2008) encontraram pouco espaço para a instituição durante o período. O conteúdo que de fato foi apresentado sobre esta instituição, no entanto, foi predominante289
AF miolo corrupcao 3.indd 289
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
mente negativo. Os jornais analisados compartilharam uma
visão negativa que se traduziu em críticas ao fisiologismo,
ao absenteísmo, à infidelidade partidária, ao troca-troca de
legendas e a certos comportamentos morais e éticos considerados reprováveis. Ainda que os autores avaliem que as
críticas são quase sempre feitas a partir de casos individuais,
acreditam que o enquadramento negativo em relação aos
membros do congresso, por extensão, acaba por enquadrar
negativamente a própria instituição. Dessa forma, críticas
repetidas e recorrentes formatariam de forma mais nítida
a imagem da instituição para o público.
Porto (2002), em estudo de análise de conteúdo do
principal telejornal do país, demonstra como o tema político mais frequente apresentado pelo Jornal Nacional, foi
a corrupção e escândalos políticos, ocupando quase metade de todo o tempo da cobertura política. Apesar da
ênfase nesse tema, seu tratamento teve um caráter mais
descritivo, que o autor chama de enquadramento episódico. Significa que ainda que demonstrada uma certa influência potencial do telenoticiário, a ênfase em um uma
cobertura mais descritiva do que interpretativa representaria uma menor probabilidade de essa influência ocorrer.
Focada principalmente em análises de conteúdo, essa literatura propõe hipóteses dos efeitos perniciosos que essa
postura antipolítica dos meios de comunicação brasileiros
poderia acarretar para a percepção do público sobre a corrupção, as instituições democráticas ou a política como um
todo. Entretanto, essas abordagens não avançam sobre o
impacto que este conteúdo de fato exerce sobre os cidadãos. A literatura internacional avançou mais a investigação
empírica sobre a associação entre notícias negativas e focadas sobre corrupção e atitudes e opiniões dos indivíduos.
Em estudo sobre os países do sul da Europa, Morlino
(1998) fez uma análise de tendências do aumento da co290
AF miolo corrupcao 3.indd 290
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
bertura de casos de corrupção nos meios de comunicação
e da insatisfação política. O resultado foi uma correlação
significativa entre o aumento desse tipo de notícia e o aumento da insatisfação. Sobretudo na Grécia e na Itália, a
correlação foi mais robusta, demonstrando um maior sentimento de ineficácia política nesses dois países. De forma semelhante, Pharr (2000) demonstra que o aumento
no número de notícias sobre corrupção em um dos principais jornais do Japão corresponde a um aumento nos
níveis de insatisfação política.
Esses resultados empíricos de fato corroboram uma
associação entre maior cobertura de corrupção e maior
insatisfação política. Entretanto, esse aspecto não significa, necessariamente, que essa insatisfação represente
algo pernicioso para a política e a democracia. Em tese,
ao menos, uma maior insatisfação política poderia se
traduzir também em uma maior pressão pública sobre
agentes políticos no sentido de punir malfeitos e reformar instituições ou sistemas legais de maneira a permitir
um maior controle da corrupção. Em relação à confiança nas instituições, por exemplo, mesmo em um período
marcado por uma agenda extremamente negativa e focada em corrupção (período da crise política de 2005 no
Brasil), não foi encontrada associação entre consumo do
principal telejornal do país e desconfiança de nenhuma
instituição democrática. Ao contrário, testes baseados em
survey nacional demonstraram que quanto maior o consumo de notícias, maior a confiança em várias instituições
(incluindo judiciário e governo) e maior satisfação com a
democracia (Mesquita, 2010).
Nesse sentido, existem outros autores que acreditam
que os meios de comunicação desempenham, de fato, ao
menos dois importantes papéis no auxílio do combate à
corrupção. Por um lado eles têm a capacidade de aumen291
AF miolo corrupcao 3.indd 291
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
tar a preocupação pública com o tema. Mas, ao contrário
de causar um distanciamento da política, essa maior preocupação dos indivíduos se traduziria em maior pressão
popular por mudanças ou punição daqueles envolvidos
com corrupção nas urnas. De outro modo, esses autores
apontam para o fato de que as denúncias de corrupção
na mídia são importantes focos de pressão sobre agentes
públicos, que se veem forçados a responder às denúncias
sob o risco de terem suas reputações abaladas.
Segundo Stapenhurst (2000), a mídia é fundamental
para promover a boa governança e controlar a corrupção.
O autor divide os efeitos que os meios de comunicação
podem ter sobre o controle da corrupção em tangíveis e
intangíveis. Os primeiros seriam aqueles facilmente atribuíveis a determinadas matérias ou série de matérias veiculadas pelo jornalismo. São exemplo o desencadeamento
de processos de investigação pelas instituições responsáveis, o impeachment ou demissão forçada de um político
corrupto, etc. Além de forçarem respostas, esses efeitos
tangíveis também reforçam a legitimidade dos órgãos de
accountability e reduzem a facilidade de partes interessadas
em interferir em seus trabalhos. Por outro lado, efeitos
intangíveis acontecem quando a contínua exposição da
corrupção presente em diversas instituições pelos meios
de comunicação cria um clima de atenção, aumentando
a pressão pública para a reforma das mesmas. Um outro
exemplo é quando a denúncia de malfeitos em um determinado governo não leva a investigações ou punições
imediatas, mas aumentam a insatisfação da população que
passa a punir os mesmos governantes em pleitos eleitorais.
No Brasil, Ferraz e Finan (2008) analisaram as auditorias do governo sobre gastos municipais de fundos federais. Os resultados demonstraram que munícipios onde as
rádios cobriram os resultados da auditoria, candidatos não
292
AF miolo corrupcao 3.indd 292
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
corruptos receberam um incremento nos votos. E ainda,
quando não foi encontrado casos de corrupção em municípios com rádios locais, a auditoria aumentou a probabilidade de reeleição. Isso indica o potencial da mídia como
agente que facilita a accountability vertical no país, já que as
informações nos meios de comunicação auxiliam a prestação de contas dos governantes. Dados semelhantes para
a Itália apontam para uma alteração nas taxas de reeleição
de políticos acusados de corrupção a partir de uma mudança de postura da imprensa. Somente quando os meios
de comunicação passaram a noticiar diariamente sobre a
corrupção é que caiu a taxa de reeleição de políticos envolvidos em irregularidades (Chang, Golden e Hill, 2010).
Há ainda resultados consistentes que apontam para
uma associação entre maior liberdade de imprensa e menores níveis de corrupção. A sugestão é que uma imprensa
independente pode se traduzir em uma importante aliada
contra a corrupção (Brunetti e Weder, 2001; Odugbemi e
Norris, 2009; Dahlström, 2008). Dessa forma, a cobertura
da corrupção por parte da imprensa é vista como desencadeadora de mudanças políticas e sociais, ao influir na
mudança de cultura política em direção a uma maior transparência e accountability do sistema (Arnold e Lal, 2012).
Dessa forma, a literatura vai no sentido de apontar o
potencial da mídia em impactar dois aspectos centrais do
controle do problema da corrupção. Por um lado, aumentado a consciência do problema da corrupção (ainda que
haja divergências sobre a maneira positiva ou negativa de
isso ocorrer), por outro lado impactando as instituições
ao pressionarem os atores políticos a responderem à necessidade de coibir e punir este mal. Nesse sentido, existem três dimensões do problema que possuem dinâmicas próprias, mas que também podem estar associadas, e
portanto exigem maior tratamento empírico.
293
AF miolo corrupcao 3.indd 293
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
A primeira é a dinâmica da agenda da mídia sobre a corrupção. Ao longo do tempo, qual tem sido a cobertura dos
meios de comunicação brasileiros sobre o tema? Existe uma
atenção crescente à corrupção, ela permaneceu estável ou,
ainda, possui uma característica cíclica? A segunda dinâmica identificável é a da percepção do problema da corrupção por parte da população. Qual têm sido a importância
dada ao problema ao longo dos últimos anos no país? A
terceira dinâmica é a institucional, que possui seu próprio
tempo de resposta, tanto do ponto de vista de abertura de
processos investigativos, quanto da punição propriamente
dita. Existe alguma correlação entre a primeira dinâmica e
as duas últimas, ou seja, seria possível atribuir à mídia alguma mudança na opinião das pessoas sobre a corrupção
assim como respostas institucionais ao problema?
A hipótese central é que a progressiva consolidação
do regime democrático brasileiro aumentou a exposição
do problema da corrupção, permitindo uma maior conscientização da população e demandando maior resposta
do sistema político para a questão. Assim:
H1: As notícias sobre corrupção na mídia ajudam a
aumentar a conscientização dos cidadãos do problema
da corrupção.
H2: Essa função de watchdog da mídia ajuda a exigir respostas do sistema político
Corrupção
1.Mídia:
e suas dinâmicas
cobertura da corrupção
e escândalos políticos
O panorama dos meios de comunicação no Brasil é caracterizado por uma maior prevalência de mídia eletrônica,
294
AF miolo corrupcao 3.indd 294
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
comparável ao nível de países mais desenvolvidos. Não
obstante a difusão significativa deste meio, o país convive
com baixos níveis de escolaridade e uma alta taxa de analfabetismo, o que resulta em uma baixa taxa de circulação
de jornais (53,5% por mil habitantes)131. Apesar dessa baixa circulação, a imprensa brasileira tem um papel ativo ao
expor escândalos de corrupção e na definição da agenda
para outras mídias, como a televisão, além de ser um “nicho” de referência para os cidadãos com maior educação
formal e formadores de opinião.
Uma das hipóteses da pesquisa é que o recente período
democrático brasileiro, com uma maior abertura política,
permitiu que a imprensa fosse progressivamente tendo
mais espaço para denunciar notícias de corrupção. Para
testar essa hipótese, se escolheu dois dos jornais mais importantes em termos de circulação e de impacto no meio
político, O Estado de São Paulo e a Folha de São Paulo, além
do principal telenoticiário do país em termos de audiência, o Jornal Nacional, da Rede Globo132. O gráfico 1 mos-
2009, ANJ (http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/leiturade-jornais-no-mundo).
132
No gráfico 1, foi feita a busca pela palavra “corrupção” em todo o
acervo do Estado de São Paulo (jornal mais antigo e portanto com maiores
dados longitudinais). Nos números relativos ao Estado e a Folha e dispostos
no gráfico 2 (décadas de 1990 e 2000) foi aplicado um filtro. Referem-se ao
número de páginas que contém a palavra corrupção apenas nos cadernos Geral, Política, Opinião, Cidades, Economia, Editorial e Primeira, de modo a diminuir
a probabilidade de casos em que a palavra não se referia especificamente à
corrupção política. Um residual de matérias que não se referem especificamente ao assunto, mas que contém a palavra corrupção, não é um problema,
já que a preocupação aqui é com a evolução das notícias ao longo do tempo, e
não números absolutos. Os do telejornal traduzem o número de reportagens
relativas à corrupção. A pesquisa foi feita no arquivo digitalizado dos respectivos veículos.
131
295
AF miolo corrupcao 3.indd 295
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
tra que um dos principais jornais brasileiros, O Estado de
São Paulo, de fato aumentou sua cobertura deste tipo de
caso ao longo das décadas. Comparando os dois jornais
do estudo, nas duas décadas completas do novo período
democrático brasileiro (a de 1990 e de 2000), percebese que, apesar de o Estado usualmente ter uma cobertura maior desse tipo de caso em comparação com a Folha,
ambos os jornais cobriram mais casos de corrupção na
segunda década, em comparação à primeira, como demonstra o gráfico 2.
Gráfico 1. Evolução de notícias sobre corrupção
no Estado de São Paulo por décadas
Número de páginas com a palavra corrupção.
Folha e Estado possuem todo o seu acervo digitalizado. Para o Jornal Nacional, somente há dados disponíveis a partir de final de agosto 2001, a partir
de quando todas as edições estão transcritas e digitalizadas. Portanto, sendo
os dados para esse primeiro ano incompleto para o Jornal Nacional, justificase o baixo número de notícias sobre corrupção comparado aos da imprensa.
296
AF miolo corrupcao 3.indd 296
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Gráfico 2. Notícias sobre corrupção (Folha de São Paulo
e Estado de São Paulo) após a transição
para a democracia: 1990 – 1999 e 2000 – 2009
Número de páginas com a palavra corrupção por veículo.
A análise por décadas, permite avaliar que, de fato, o
novo período democrático se traduziu em um clima de
maior liberdade, permitindo uma cobertura maior de casos
de corrupção. O próximo passo foi avaliar se essa tendência de aumento também se verificava ao longo dos anos
desse período, ou se a dinâmica apresentada correspondia
a ciclos de maior e menor exposição do tema. O gráfico
3 mostra que a dinâmica anual é diferente da avaliada por
décadas, apresentando um caráter cíclico. Uma hipótese
poderia ser uma maior atenção a casos de corrupção em
anos eleitorais (no caso do Brasil, anos pares) devido a um
provável uso eleitoral da mídia, motivado pela denúncia
de casos de irregularidades a partir de adversários políticos. Os resultados, entretanto, não corroboram essa explicação, já que os picos verificados não se encontram necessariamente em anos eleitorais. Há altas em 1992, 1993,
297
AF miolo corrupcao 3.indd 297
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
1997 (somente na Folha), 2000, 2001, 2005, 2012. Se não
há correspondência completa com anos eleitorais, o que
poderia ter motivado uma alta nesses anos?
Gráfico 3. Páginas com palavra
“Corrupção” por veículo
Analisando os anos em que houve essa maior cobertura da mídia, em todos os casos houve algum escândalo
político de grande proporção. Para corroborar se, de fato,
foram esses casos de grande repercussão nacional os responsáveis pelo aumento da cobertura sobre corrupção,
foi feita uma busca com palavras chave correspondentes a cada caso133. Os gráficos 4 e 5 mostram a cobertura desses casos no Estado e na Folha respectivamente, em
comparação com a cobertura sobre corrupção no geral.
As palavras chave foram escolhidas como as mais representativas e
que apareceram mais vezes nas matérias. Da mesma forma que a busca pela
palavra “corrupção”, existem matérias sobre esses casos que podem não
conter a palavra chave. Mas a busca intenciona verificar a dinâmica dessas
notícias ao longo do tempo. Assim as palavras chave nos dão uma variável
proxy representativa, e não números absolutos.
133
298
AF miolo corrupcao 3.indd 298
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Em 1992, foi um ano de alta devido ao escândalo que viria a derrubar o então Presidente da República Fernando
Collor de Mello. Em 1993, o número de notícias aumenta mais devido a uma permanência de notícias sobre esse
acontecimento, junto com outro escândalo daquele ano,
que apontou irregularidades na Comissão de Orçamento
do Congresso.
Em 1997 foi o caso da compra de votos no Congresso para a aprovação da emenda da reeleição, que teve um
tratamento maior pela Folha, porém quase ausente do Estado. Esse ano é interessante e ajuda a corroborar a idéia
de que grandes escândalos políticos são os responsáveis
pela dinâmica cíclica das reportagens sobre corrupção
na mídia. O gráfico 3 mostra uma alta nas notícias sobre
corrupção somente para a Folha no ano de 1997, justamente pelo fato desse episódio ter destaque nesse jornal,
ao contrário do Estado. A ausência de tratamento do caso
pelo segundo fez com que em 1997 não houvesse um aumento nas notícias sobre corrupção, como demonstram
os gráficos 4 e 5.
Em 2000, foi o episódio do desvio de recursos que seriam utilizados na construção do Fórum Trabalhista de São
Paulo, tendo como principal personagem, o Juiz Nicolau
dos Santos Neto. Em 2001, foi o caso Sudam, que revelou desvios da Superintendência de Desenvolvimento da
Amazônia, envolvendo o então presidente do Senado, Jader Barbalho (PMDB-PA) e se desdobrando em denúncias
de desvios de recursos em um banco estadual (Banpará) e
vendas irregulares de Títulos da Dívida Agrária. O maior
escândalo de corrupção brasileiro, o caso do “Mensalão”,
foi responsável por dois picos, sendo um em 2005 – ano
em que foi denunciado o esquema de compra de votos no
Congresso – e em 2012, quando do julgamento do ação
penal pelo Supremo Tribunal Federal, que também con299
AF miolo corrupcao 3.indd 299
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
tou com ampla cobertura da mídia. Este caso foi atípico,
tendo uma cobertura menor, porém constante entre os
dois picos verificados.
Gráfico 4. Estado – Palavras-chave por ano
Gráfico 5. Folha – Palavras-chave por ano
300
AF miolo corrupcao 3.indd 300
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Os dados corroboram um aumento da cobertura sobre casos de corrupção no Brasil no período democrático
recente. Entretanto, a dinâmica apresentada se traduziu
em ciclos de maior e menor exposição do tema, determinados pela cobertura de grande casos de repercussão nacional. Ou seja, ainda que a mídia noticie de maneira regular o tema, são os grandes escândalos os responsáveis
pelo maior tratamento da corrupção.
2. Percepção: Mídia
e a corrupção
como problema
Uma outra dinâmica da corrupção que este capítulo se
propôs a avaliar é a percepção que se tem acerca do tema.
Dados longitudinais para que se possa comparar a evolução dessa percepção ao longo dos anos são escassos. Não
são frequentes os surveys nacionais sobre o assunto, e muitos dos disponíveis possuem variáveis com formulações
distintas, onde não é possível estabelecer comparações.
Entretanto, existem duas variáveis disponíveis que captam o fenômeno, e que traduzem percepções distintas: O
Índice de Percepção da Corrupção (IPC) da Transparência
Internacional e surveys do Latinobarômetro.
O IPC é um indicador composto, onde se compila
dados referentes a opiniões de pessoas ligadas a corporações transnacionais e especialistas. A partir dele se elabora um ranking com notas de 0 (muito corrupto) a 10
(muito limpo). O gráfico 6 (invertido para mostrar picos
de percepção de maior corrupção) demonstra que houve
uma melhora no ranking, a partir de sua criação em 1995,
até o ano de 1999. O índice se mantém razoavelmente estável até 2006, onde apresenta uma alta. Trata-se do ano
seguinte ao escândalo do Mensalão, que deve ter sido o
301
AF miolo corrupcao 3.indd 301
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
responsável por essa alta. Entretanto, salvo esse ano, não
existem variações expressivas, que possam ser atribuídas
à cobertura da mídia.
Gráfico 6. Índice de Percepção da Corrupção
(Transparência Internacional)
Escala de 0 (Altamente Corrupto) a 10 (Muito Limpo) Fonte:
Elaboração própria com base dos dados da Transparency
International http://www.transparency.org.
O segundo índice disponível com dados mais longitudinais, é o survey de massas do Latinobarometro. Nas ondas
anuais desde 1995 foi incluída uma questão que inquere
ao entrevistado qual problema (dentre vários), ele considera mais importante134. A partir do gráfico 7, verifica-se
134
As opções variaram um pouco ao longo das sucessivas ondas, inclusive com algumas ondas onde a resposta era espontânea. A lista apresentada
inclui temas como educação, saúde, desemprego, inflação e violência. Para
contornar o problema, se considerou sempre as 10 respostas mais citadas e
se recalculou as porcentagens. Dessa forma, a variável corresponde sempre
à qual a importância relativa dada a corrupção pelo entrevistados, levando
em conta sempre os 10 temas mais citados. O ano de 1999 foi o único que
não contou com uma onda do instituto.
302
AF miolo corrupcao 3.indd 302
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
que ao contrário do IPC – composto da percepção de empresários, analistas e especialistas – a percepção da população acerca do fenômeno tem uma variação bem maior.
Gráfico 7. Percepção da Corrupção como problema
(Latinobarômetro)
Variável: Dos problemas que vou citar, qual você considera mais
importante? Linha escura: porcentagem das pessoas que citaram a
corrupção como principal problema; linha clara: posição
que a corrupção ocupou na opinião dos entrevistados
entre os 10 problemas mais citados.
Uma das hipóteses seria que a oscilação das opiniões
sobre corrupção poderia se dever, em parte, a exposição
que a mídia faz do fenômeno. O gráfico 8 compara as
duas dinâmicas. Há correspondência em altas nos anos de
2001 (em que houve farta cobertura do caso Sudam) e de
2005 (ano do escândalo do Mensalão). Em 2000, houve o
caso do desvio de verbas do Tribunal Trabalhista em São
Paulo. Apesar de ele ser responsável por um aumento na
cobertura de notícias sobre corrupção na mídia, foi somente a partir de julho em que houve uma cobertura intensa sobre o caso. As entrevistas do Latinobaromêtro foram
303
AF miolo corrupcao 3.indd 303
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
feitas no final de janeiro e início de fevereiro, quando as
notícias sobre o assunto na mídia ainda eram incipientes,
justificando a não tradução das notícias sobre corrupção
em aumento da percepção da população naquele ano. Há,
todavia, dois anos em que a corrupção atinge níveis altos
de percepção sem que, no entanto, haja correspondência
com um aumento da cobertura sobre a corrupção ou dos
grandes escândalos mencionados: em 1996 e 2007. Como
a corrupção é um fenômeno que nem todas as pessoas
tem um contato no seu dia a dia, e que presume-se que
as notícias sobre o fenômeno deem grande contribuição
ao conhecimento que se tem sobre a questão, como explicar essa alta nesses anos?
Gráfico 8. Percepção da Corrupção e cobertura da imprensa
O ano de 1996 foi excepcionalmente baixo nas matérias sobre corrupção. No entanto, no mesmo mês de
junho em que se iniciam a onda de entrevistas do Latinobarômetro, um dos principais personagens do escândalo
de corrupção que veio a derrubar o presidente Fernando
304
AF miolo corrupcao 3.indd 304
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Collor, o tesoureiro de sua campanha – Paulo César Farias
– foi assassinado. Houve uma grande cobertura da mídia
sobre o caso, que se deu entorno das circunstâncias de
sua morte (ver gráfico 5). Faz sentido, assim, que o caso
não tenha ocasionado um aumento da palavra “corrupção” nas buscas feitas na mídia naquele ano. Entretanto,
o evento pode ter reativado a memória das pessoas sobre
o episódio, o que poderia ter se refletindo na alta na percepção daquele ano.
Já no ano de 2007 (único ano em que a corrupção foi
o problema mais citado) as entrevistas do instituto foram
realizadas em setembro. Apenas um mês antes, em agosto,
o Supremo Tribunal Federal aceitou a denúncia contra os
réus do caso do “Mensalão”. Houve uma cobertura maior
por parte dos jornais desse ocorrido nesse mês, apesar de
não ser em número suficiente que representasse uma alta
expressiva de matérias com a palavra “corrupção” durante
todo o ano. Entretanto, por tratar-se de um caso já amplamente conhecido, o fato provavelmente também reativou
a memória das pessoas sobre o escândalo, o que pode ter
se refletido na alta expressiva também do ano de 2007.
3. Instituições: A
Estado
r e sp o s t a d o
frente as denúncias da mídia
Se o papel potencial de accountability exercido pela
mídia foi de alguma forma explorado pela literatura especializada, a resposta do Estado frente a essas mesmas
denúncias, não. Afinal, qual é a responsabilização objetivamente produzida por tantas denúncias, por tamanha
cobertura jornalística?
Primeiramente, o ritmo do jornalismo moderno é bastante
distinto daquele verificado nas burocracias estatais, em seus
305
AF miolo corrupcao 3.indd 305
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
processos penais, civis ou administrativos. É normal que a
mídia e as instituições tenham tempos diferentes. Quando
uma suspeita de irregularidade é identificada, acaba sendo publicada praticamente no mesmo dia. Naturalmente, o mesmo
não ocorre com a punição do caso. Entre os princípios fundamentais das constituições democráticas, figuram aqueles
da “presunção da inocência”, do “devido processo legal” e
da “ampla defesa”, sem os quais a parte liberal das democracias figuraria defasada (O’Donnell, 1997), o que acarreta em
um processo de tempo próprio e mais lento.
Não obstante, entre as respostas que o Estado oferece
frente a denúncias de corrupção, não figura apenas um
processo judicial formalizado. Além de respostas políticas
– como a demissão de funcionários em cargos de confiança, ou a cassação de políticos – a própria abertura de
processos de investigação pelas instituições de integridade
figuram entra aquelas ações que o sistema, mediante ação
dos atores políticos, oferece com um tempo mais curto,
próximo àquele dos meios de comunicação.
Para ampliar o conhecimento sobre as relações entre mídia
e punição da corrupção, ou seja, sobre o nível de resposta dos
órgãos de accountability horizontal, realizou-se o cruzamento
de dados relativos aos dois atores em dois casos diferentes,
de modo a observar se o Estado responde ou não às irregularidades relatadas pela mídia, levando em consideração esse
tipo de resposta do sistema político que corresponde aos estágios iniciais de processos de responsabilização.
Em vários escândalos nacionais mencionados no item
2.1, a mídia se mostrou importante veículo na condução de
responsabilizações de corruptos. Ainda que em vários deles a punição não tenha sido judicial, mas apenas política, as
instituições responsáveis pela accountability foram acionadas.
Dois desses casos são os que analisaremos a seguir: o Impeachment de Collor (1992) ou “Caso PC Farias” e o “Men306
AF miolo corrupcao 3.indd 306
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
salão” (2005). No primeiro, uma série de denúncias de corrupção – desencadeadas por uma entrevista de seu irmão à
Revista Veja em 1992 – desgastaram a imagem do presidente Fernando Collor de Mello, o que levou a sua renúncia e o
impeachment. No segundo caso, o governo de Luiz Inácio
Lula da Silva sofreu com um escândalo político em meados
de 2005, provocado pela denúncia de corrupção que envolvia
o seu esquema de apoio parlamentar – além do Partido dos
Trabalhadores e principais colaboradores – feita pelo líder
de um dos principais partidos da base governista.
Mediante a análise desses casos, buscar-se-á relacionar
a resposta dos órgãos de accountability horizontal às denúncias apresentadas pela mídia. Tarefa arriscada, visto
que não há metodologia desenvolvida na área. Para isso,
avançou-se um método que deve ser compreendido antes
como uma aproximação no tema do que como a palavra
final sobre o assunto.
Observamos dia a dia as notícias relacionadas aos casos
nos principais jornais do país, compondo uma linha do tempo. A partir deste material, isolamos as “novas denúncias” das
respostas institucionais, de modo a quantificar, ainda que de
forma aproximada, a resposta do Estado perante alarmes da
mídia135. Para isso, adotamos uma interpretação ampla sobre
o que seja resposta do sistema, de forma a envolver desde
renúncia, cassação ou demissão de agentes públicos, passando pela saída de políticos ou partidos da coalizão do governo, até ações formais de pedidos de abertura de inquérito,
135
Contou-se como denúncia, novas descobertas que saíram em qualquer
um dos principais meios de comunicação, computando-se uma única
vez. Ou seja, um furo de reportagem feito pela Folha de São Paulo que foi
replicada depois pelo Jornal Nacional e pelo Estadão, foi computada uma
única vez. Em geral, as denúncias apareceram em todos os grandes veículos
do país. Denúncias são entendidas como quaisquer notícias com fatos
novos relacionados a denúncias, apuração, investigação, responsabilização,
abertura de inquéritos, depoimentos etc.
307
AF miolo corrupcao 3.indd 307
7/31/14 12:54 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
de Comissões Parlamentares de Inquérito, de processos administrativo-disciplinares ou de julgamentos civis e penais136.
Trata-se, portanto, de um processo inicial do funcionamento
das instituições de accountability, prévias ao processo judicial
que irá condenar ou absolver os acusados.
Nesta interpretação, consideramos “vazamentos” de
trabalhos dos órgãos de accountability – como relatórios
parciais, áudios de entrevistas, auditorias não publicadas –
também como “novas denúncias” pois, a cada nova revelação, maior pressão acaba por se impor sobre os demais
atores responsáveis pelo mecanismo de accountability. A
título de exemplo, se uma descoberta da Polícia Federal é
noticiada pele imprensa, acaba por antecipar suas conseqüências, potencialmente forçando a abertura de uma CPI,
que talvez não ocorresse se o fato não viesse a público.
Caso Impeachment
de
Collor
O presidente Collor foi alvo de denúncias de corrupção logo no início de seu mandato, porém foi ao longo de
1992 que ocorreu a crise política que viria a derrubá-lo,
Interpretou-se como resposta dos atores de accountability horizontal as
seguintes situações: 1 - Órgãos de accountability agem formalmente. Pedem
abertura de investigações criminais ou civis, abrem investigações criminais
ou civis, pedem abertura de Comissões de Inquérito, abrem Comissões de
Inquérito, instauram processos administrativo-disciplinares, pedem cassação
de mandatos dos responsáveis, reabrem inquéritos, captam depoimentos de
protagonistas dos casos, realizam auditorias, identificam contas em paraísos
fiscais, prendem acusados, pedem à justiça quebras de sigilos, quebram sigilos,
apresentam acusações à Justiça, entregam relatórios finais de Comissões
Parlamentares de Inquérito (CPIs), Comissões Parlamentares Mistas de
Inquérito (CPMIs), inquéritos e auditorias, completam julgamentos; 2 Políticos reagem às notícias através de pronunciamentos, apresentação de
documentos relevantes, renúncia de cargos, cassação de mandatos e saída
de políticos ou partidos da coalizão do governo.
136
308
AF miolo corrupcao 3.indd 308
7/31/14 12:54 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
iniciada com uma entrevista de seu irmão à revista Veja,
tecendo diversas acusações contra o caixa de campanha
do presidente, Paulo Cesar Farias (PC). O episódio acabou
por dar início a uma série de investigações e revelações
por parte da imprensa e o processo de desgaste político
culminou no afastamento, renúncia e posterior impeachment do presidente.
O gráfico 9 expressa como a cobertura foi especialmente intensa entre maio e outubro, ou seja, entre a denúncia de seu irmão à revista Veja e a instauração no Congresso Nacional do processo de votação de impeachment
do presidente. Neste mesmo período, vemos no gráfico
abaixo que os órgãos e atores de accountability horizontal
parecem ter reagido às acusações, inclusive produzindo
mais respostas até do que “novas denúncias”:
Gráfico 9. Mídia e Respostas institucionais no caso Collor
Mídia: novas denúncias veiculadas na mídia sobre o caso.
Instituições: número de respostas institucionais.
Notícias: dinâmica das notícias sobre o caso Collor no jornal
Estado (proxy páginas com “PC Farias”).
309
AF miolo corrupcao 3.indd 309
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Durante esses seis meses, praticamente todos os principais
órgãos foram acionados: Policia Federal, Ministério Público,
Banco Central, Receita Federal e Congresso Nacional. Talvez
os trabalhos da mídia não tivessem tido tanto impacto se o
presidente desfrutasse de maior apoio dentro e fora do Estado, mas é certo que teve papel determinante para expor a
crise e conduzi-la à responsabilização. Foram 85 denúncias
na imprensa (apenas na primeira página de O Estado de S.
Paulo) em seis meses, número expressivo. O relato de todas
elas reforça o argumento de que a mídia trabalhou de forma
investigativa – revelando irregularidades que os órgãos estatais não haviam identificado – e de forma a tornar público os
trabalhos dos organismos do sistema de integridade, o que
foi determinante para constranger os atores responsáveis
por esse controle público e para informar e (indiretamente)
mobilizar os cidadãos contra a corrupção.
Acima de tudo, vê-se que ocorreu uma intensa relação de
provocação e resposta nas duas pontas da accountability (social
e institucional): revelações da mídia forçaram respostas dos
órgãos, que, por sua vez, ao gerarem respostas, produziram
matéria-prima para manchetes de jornal. Estas, por sua vez,
pelo potencial impacto junto à opinião pública, forçaram os
políticos a agirem. Não é possível afirmar se Collor teria ou
não caído sem o trabalho da mídia. Entretanto, os dados revelam íntima relação de complementariedade entre os trabalhos jornalísticos e estatais, expressando importante resposta
por parte do Estado frente a mídia, e protagonismo do jornalismo enquanto ator da accountability social.
Caso “Mensalão”
O chamado escândalo do Mensalão foi como ficou conhecido o esquema de pagamento mensal de propinas a
310
AF miolo corrupcao 3.indd 310
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
parlamentares do Congresso Nacional em troca de apoio
ao governo federal do PT. A principal consequência foi a
condenação criminal de 25 dos 38 réus acusados, incluindo altos dirigentes do PT no ano de 2012.
Assim como o caso Collor, este também foi catalisado
por denúncias da mídia, iniciadas pelo presidente do PTB –
partido da coalizão do governo – Roberto Jefferson, à época
deputado federal. Da mesma forma que em outras crises políticas, como na do caso Collor, a acusação inicial de compra
de apoio político no Congresso desencadeou uma onda de
denúncias entre políticos. Como mostraram os gráficos 4 e
5, o caso ensejou uma intensa cobertura jornalística acerca
da corrupção. O gráfico 10 expressa novamente uma relação próxima entre as respostas institucionais e as denúncias
da mídia. Mas, desta vez, as denúncias concentraram-se nos
primeiros dois meses do caso, forçando, ainda assim, respostas institucionais ao longo dos seis meses seguintes.
Gráfico 10. Mídia e Respostas institucionais
no caso do Mensalão
Mídia: novas denúncias veiculadas na mídia sobre o caso. Instituições:
número de respostas institucionais. Notícias: dinâmica das notícias
sobre o Mensalão no jornal Estado (proxy páginas com “Mensalão”).
311
AF miolo corrupcao 3.indd 311
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Mais uma vez, a partir de denúncias externas, o Estado
viu-se forçado a movimentar sua máquina de controle e
responsabilização. Além do Ministério Público, que produziu a acusação (tornada Ação Penal 470), outros órgãos,
como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras
(COAF), ligado ao Banco Central, atuaram incisivamente. Seria improvável que um órgão vinculado ao Poder
Executivo espontaneamente investigasse atores tão próximos à cúpula do partido governista. Neste caso, então,
a exposição do caso e a revelação de irregularidades por
parte da mídia forçou a ação destes órgãos, expressando
que, quando os poderes figuram bem equilibrados e há
mídia independente e capacitada, o Estado pode, sim, agir
de forma responsiva e accountable.
Da mesma forma, seria improvável que deputados federais instaurassem uma CPMI e pedissem a quebra dos
sigilos bancário, postal e telefônico do ministro-chefe da
Casa Civil, do presidente da Câmara Federal, do presidente de um partido importante (PTB) e de um líder do
PT (José Dirceu, João Paulo Cunha, Roberto Jefferson e
José Genoíno, respectivamente). Não foi apenas a oposição que se mobilizou. Foram também deputados da coalizão. Sem publicidade ou divulgação, mais uma vez, seria
improvável que espontaneamente agissem dessa forma.
Os dois casos apresentados certamente não representam a rotina do jornalismo. São casos excepcionais, que
redundaram nas maiores responsabilizações de políticos
por corrupção da História política brasileira. Por outro
lado, revelam que a mídia cumpriu papel catalisador de
intensidade e celeridade na dinâmica de “checks and balances” no interior do Estado.
Os casos sugerem também que a mídia tem especial
importância no combate à corrupção em casos que envolvam os altos escalões da política – mais até do que so312
AF miolo corrupcao 3.indd 312
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
bre casos menores. Isso porque, pela própria proximidade
entre os órgãos de accountability horizontal e políticos governantes, é menos provável que o mesmo controle que
recai sobre os níveis médios da burocracia recaia sobre
os altos escalões. Casos como o “Mensalão”, envolvendo
diretores do Banco do Brasil, o ministro-chefe da Casa
Civil e o líder do governo no Congresso Nacional, dificilmente seriam revelados por órgãos como a Controladoria-Geral da União, os Tribunais de Contas ou mesmo
a Polícia Federal (vinculada ao Poder Executivo, através
do Ministério da Justiça). A análise dos casos expressa
como a complementaridade entre mídia e as instituições
de accountability horizontal, quando garantida mínima independência jornalística, requalifica o equilíbrio dos poderes, reforçando suas proteções anti-despóticas, e, por
extensão, melhorando a qualidade da democracia.
Conclusão
Este trabalho examinou o impacto da mídia em dois
sentidos: para a informação dos eleitores sobre as práticas
de corrupção no Brasil contemporâneo e para o desempenho das instituições encarregadas de monitorar, controlar
e punir essas distorções. A conclusão mais importante que
os dados apontam se refere ao papel das denúncias noticiadas por órgãos de imprensa como os jornais O Estado
de São Paulo e Folha de S. Paulo e o noticiário do Jornal Nacional da rede Globo.
A dinâmica das notícias sobre corrupção no período
do Brasil democrático é cíclico e determinado pelos grandes escândalos nacionais. Aparentemente, há uma relação
próxima entre essa maior ou menor exposição do tema
nos meios, e a atenção que a população dá ao problema.
313
AF miolo corrupcao 3.indd 313
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Entretanto, há que se ter cautela com a interpretação de
que essa relação pode ocasionar comportamentos antipolíticos por parte dos cidadãos, como um distanciamento
da política, ou desconfiança das instituições. Ao contrário,
esse papel de aumentar a preocupação com o tema por
parte dos cidadãos pode cumprir uma função positiva. Por
um lado, pode fornecer mais informação que auxilie os
eleitores na accountability vertical. Por outro lado, também
pode potencialmente mobilizar as pessoas para pressionarem o sistema político a se reformular e adotar mecanismos melhores de controle da corrupção. O exemplo
brasileiro de mobilização pela aprovação de uma lei que
exige maior rigor em relação ao passado criminal dos candidatos a cargos eletivos (a chamada lei da “ficha limpa”)
é um exemplo de que reações contra a corrupção podem
ser ativas, e não apenas de uma retração da vida pública.
Embora se trate de um trabalho exploratório, sem pretensões de estabelecer a relação de causação entre mídia e
corrupção, os dados são suficientemente eloquentes para
sugerir que a chamada accountability social ou societária, se
não determina, também induz fortemente os organismos
do sistema de integridade a agir de modo mais efetivo. Os
gráficos apresentados anteriormente mostram que sempre
que a mídia noticiou os casos de corrupção ou denunciou
práticas de malversação de fundos públicos os mecanismos institucionais foram acionados e, em alguns casos,
estimulados a agirem de modo mais eficiente. A consequência disso é que, pela primeira vez na história republicana brasileira, a corrupção começa a ser tratada como
ameaça à qualidade da democracia e, nesse sentido, como
um fator capaz de qualificar a percepção e a decisão de
grande parte dos eleitores brasileiros quando eles têm de
fazer escolhas eleitorais.
314
AF miolo corrupcao 3.indd 314
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Referências Bibliográficas
ANJ, 2009 (http://www.anj.Org.br/a-industria-jornalistica/leiturade-jornais-no-mundo).
ARNOLD, A. e LAL, S. (2012) Using Media to Fight Corruption, Partnership for Transparency Fund Working Paper Series 1/2012.
BRUNETTI, A. e WEDER, B. (2003) A free press is bad news for
corruption. Journal of Public Economics 87, pp. 1801–1824.
CHAIA, V. e TEIXEIRA, M.A. (2001) Democracia e Escândalos
Politicos. São Paulo em Perspectiva 15(4).
CHAIA, V. e AZEVEDO, F. A. (2008) O Senado nos Editoriais
Paulistas (2003-2004). Opinião Pública. Campinas, vol. 14, n. 1,
Junho, 2008.
CHANG, E. C. C., GOLDEN, M. A. e HILL, S. J. (2010) Legislative Malfeasance and Political Accountability. World Politics 62(2),
pp. 177-220.
DAHLSTRÖM, T. (2008) The Role of Media in Combating Corruption. Paper apresentado no Patterns of Corruption in the 21st Century,
Atenas, 6 e 7 de setembro de 2008.
DIAMOND, L. e MORLINO, L. (2004) The quality of Democracy
– an overview. Journal of Democracy, vol. 15, n. 4.
FERRAZ, C. e FINAN, F. (2008) Exposing Corrupt Politicians: The
Effects of Brazil’s Publicly Released Audits on Electoral Outcomes. The Quarterly Journal of Economics 123(2):70345.
LAL, S. e ARNOLD, A.–K. (2012) Using Media to Fight Corruption. Partnership for Transparency Fund Working Paper Series 1/2012.
LIMA, V. A. de. (2006) Mídia: Crise Política e Poder no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo.
MESQUITA, N. C. (2010) Jornal Nacional, Democracia e Confiança
nas instituições democráticas In: MOISÉS, J. Á. (Org.) Democracia e Confiança: por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?
São Paulo: Edusp.
MIGUEL, L. F. e COUTINHO, A. (2007) A Crise e suas Fronteiras:
Oito Meses de ‘Mensalão’ nos editoriais dos jornais. Opinião Pública, vol 13, nº 1, junho.
MOISÉS, J. À. (2010) Cultura Política, Instituições e Democracia:
Lições da experiência brasileira In: MOISÉS, J. Á. (Org.) Democracia e Confiança: por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?
São Paulo: Edusp.
MOISÉS, J. À. (Org.) (2011) O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão. Rio de Janeiro: Konrad-Adenauer-Stiftung.
315
AF miolo corrupcao 3.indd 315
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
MORLINO, L. (1998) Democracy Between Consolidation and Crisis: Parties, Groups and Citizens in Southern Europe. Oxford: Oxford University Press.
O’DONELL, G. A. (2012) Delegative Democracy. Journal of Democracy 5.1 (1994): 55-69. Project MUSE. Web. 19 Dec. 2012. <http://
muse.jhu.edu/>.
O’DONELL, G. A. (1998) Accountability horizontal e novas poliarquias. Lua Nova, n. 44, 1998, pp. 27-54.
ODUGBEMI, S. e NORRIS, P. (2009) Do the news media act as watchdogs, agenda setters and gate keepers? In: NORRIS, P. (Ed.)
Public sentinel : news media & governance reform, Washington D.C.:
World Bank.9.
PHARR, S. J. (2000) Officials’ Misconduct and Public Distrust: Japan
and the Trilateral Democracies In: PHARR, S. J. e PUTNAM, R.
(Ed.) What’s Troubling the Trilateral Countries. Princeton: Princeton
University Press.
PORTO, M. P. (2000) La Crisis de Confianza en la Política y sus Instituciones: Los Medios y la Legitimidad de la Democracia en Brasil. América Latina Hoy, n. 25, agosto de 2000.
PORTO, M. P. (2002) Framing the world of politics: how governmental sources shape the production and reception of tv news
in Brazil”. Paper presented to the 23rd International Conference
of the International Association for Media and Communication
Research, Barcelona, Spain, 2002.
SELIGSON, M. (2002) The impact of corruption on regime legitimacy: A comparative study of four Latin American Countries
The Journal of Politics, vol. 64, nº 2, May 2002.
SMULOVITZ, C. e PERUZZOTTI, E. (2012) Societal Accountability
in Latin America Journal of Democracy 11.4 (2000): 147-158. Project
MUSE. Web. 19 Dec. 2012. <http://muse.jhu.edu/>.
STAPENHURST, R. (2000) The Media’s Role in Curbing Corruption. WBI working papers. World Bank Institute.
316
AF miolo corrupcao 3.indd 316
7/31/14 12:55 AM
8. Sistema midiático
b r a s i l e i r o : m u lt i d ã o
e expressão
de uma arena política
Marialva Barbosa
Introdução
No momento em que se vive no Brasil, como em diversas partes do mundo, a explosão de manifestações populares e a mobilização de milhares de pessoas fazendo
uso, em várias dimensões, das conexões que a Internet e
as redes sociais possibilitam, há que referir, ao falar do
sistema midiático brasileiro, a um conjunto de ações que
estão em desenvolvimento e que alguns autores chamam
de “mídia da multidão” (Antou e Malini, 2013). Essa nova
forma de expressão midiática explode em megalópoles
imersas no “caos organizativo” caracterizado sob a forma
de múltiplas violências em nosso cotidiano, produzindo o
que alguns denominam “guerra civil molecular” (Enzenberger, 2001, citado por Paiva e Sodré, 2013: p. 45), que
se espalha de maneira aleatória pelas cidades do mundo.
À violência do tráfego, à violência que depreda os equipamentos urbanos, à violência dos gestos contemporâneos
se adicionam índices assustadores de criminalidade e os
muitos problemas relacionados à mobilidade que fazem
parte da paisagem mais perversa dessas cidades.
Imóveis nos carros e ônibus presos em engarrafamentos intermináveis vive-se paradoxalmente a possibilidade de,
desde a última década do século XX e com mais intensidade a partir do século XXI, suprimir os espaços e estar, ainda que virtualmente, em muitos lugares ao mesmo tempo.
317
AF miolo corrupcao 3.indd 317
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
O velho sonho de transposição do corpo telematicamente que fez parte do imaginário durante séculos parece ser,
pelo menos em tese, possível de ser sonhado e ser vivido.
Diante desse cenário em construção observa-se em
relação especificamente ao sistema midiático brasileiro,
nessa segunda década do século XXI, a convivência de
formas de expressão publicizadas via artefatos tradicionais da comunicação (os meios massivos) e através de
moléculas midiáticas que parecem ser cada vez mais o
modo de expressão da contemporaneidade, aonde cada
um pode ser produtor de múltiplos conteúdos a serem
publicados nos suportes online. A emergência de um posicionamento político mais ativo, advindo de um descontentamento generalizado redireciona o conteúdo dessas
publicações e faz explodir essas formas de expressão no
ambiente virtual, o que para alguns seria a “emergência
de uma mídia da multidão” (Antoun e Malini, 2013). A
experiência mais emblemática, nos últimos meses, teria
sido produzida pela Mídia Ninja (Narrativas Independentes Jornalismo e Ação), que “cobriu colaborativamente as manifestações em todo o Brasil, ‘streamando’
e produzindo uma experiência catártica de ‘estar na rua’,
obtendo picos de 25 mil pessoas online” (Antoun e Malini, 2013: p. 15).
Por outro lado, o desejo de expressar e se expressar
constrói uma liga duradoura entre os sujeitos que habitam esse mundo que denominamos contemporâneo. As
ações mais cotidianas se transformam em opiniões a serem partilhadas. Todos têm o que dizer e querem publicizar o dito. A expansão da palavra pública parece ser a
marca mais visível do século.
Entretanto, no nosso entendimento, a multidão como
mídia sempre existiu. Aliás, a história dos processos comunicacionais em território brasileiro é a expressão mais
318
AF miolo corrupcao 3.indd 318
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
visível da desqualificação desse sujeito (multidão), sempre
que tentava assumir a expressão de suas opiniões. Tentar
compreender o sistema midiático brasileiro em sua historicidade é se referir, portanto, a dois processos que sempre
estiveram em foco, mesmo quando se tinha uma mídia da
multidão apropriada como mídia de massas (século XX)
ou se procurava ampliar a cidade política através das discussões em torno de um espaço público em formação (século XIX): a marca da multidão e a sua apropriação pelos
sistemas midiáticos com propósito de natureza política.
Nosso objetivo, portanto, é mostrar como a compreensão histórica do fenômeno da multidão está diretamente relacionada à formação do sistema midiático brasileiro,
em três movimentos centrais: a multidão como portadora
de ruídos, vozes e gritos qualificados como brutais e bárbaros, no século XIX; o abrandamento das ações pretensamente incivilizadas das multidões ao serem domadas
pelo movimento de constituição das mídias de massa, no
século XX; e a resignificação da multidão, que na sua virtualidade absoluta ganha nova dimensão política no século
XXI, fazendo com que se afirme que estamos diante de
uma nova mídia, que tem na expressão multidão a síntese
de sua caracterização.
A voz da multidão que para alguns parece ser marca da contemporaneidade sempre fez parte do cenário
comunicacional brasileiro. Com as mídias de que dispunham, em função das possibilidades tecnológicas, a
multidão sempre ecoou seus gritos e vozes pelas ruas,
constituindo pelo barulho, pelos ruídos, pelos sons ensurdecedores a marca de seu lugar no mundo de práticas de comunicação. E sempre houve múltiplas tentativas de silenciá-la: ou difundido as opiniões de grupos
isolados como se fossem de todos; ou amalgamando-a
como massa, já no século XX.
319
AF miolo corrupcao 3.indd 319
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
A voz do público nas ruas era percebida, no século
XIX, como ruído proveniente de atitudes incivilizadas.
No século XX o caminho foi a sua apropriação, enquadrando-a como massa, com clara intenção política. No
século XXI, assiste-se a outro redimensionamento da
multidão, agora como portadora da possibilidade de ter
reconhecida sua voz, partilhando saberes e dizeres, através de novos suportes tecnológicos. O compartilhamento
das informações via Internet daria, então, outra significação à multidão, que agora primeiro se deixa ver nas redes
sociais para só então ganhar as ruas. Essa conexão entre
mundo virtual e manifestações das ruas resignificaria as
possibilidades de comunicação e permitiria, graças aos
artefatos tecnológicos, que cada um construísse imagens
duradouras do tempo ultraveloz contemporâneo. Imersos numa grande rede de protestos sociais, compartilhase informações na Internet, pauta-se a mídia tradicional
e desmascaram-se as informações que as televisões e os
jornais insistem em apurar e divulgar. Numa sociedade
que não reconhece mais as hierarquias, saberes e dizeres individualizados seriam desqualificados em favor da
voz das multidões (Antoun e Malini, 2013). Um suporte
midiático, as redes mundiais dos computadores, amplificaria a voz da multidão. Mas o que de ruptura há nesses
gestos mais contemporâneos? A ação dos sistemas midiáticos não foi sempre a de se apropriar das vozes das
multidões? Será que estaríamos vendo surgir um mundo comum pela ação expressiva da multidão que assumiria o seu lugar como construtora da palavra pública?
Essas são questões de fundo que perpassam esse texto
que procura mostrar que a história dos sistemas midiáticos no Brasil faz-se pela apropriação e pelos usos da
multidão como um ator, qualificado de múltiplas formas
ao longo dos séculos.
320
AF miolo corrupcao 3.indd 320
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
M u lt i d ã o “ b á r b a r a ”
Muitos viajantes que passaram pelo Brasil, nos séculos XVIII e XIX, sempre destacavam como marca mais
característica das cidades o barulho ensurdecedor que
vinha das ruas. Para alguns, o Rio de Janeiro, por exemplo, era a cidade mais barulhenta do mundo. Para outros,
o espetáculo impuro dos escravos que em torno dos lugares públicos gritavam e brigavam, cantavam e falavam
tornava as cidades insubordinadas também do ponto de
vista do som.
Os negros carregam todos os fardos na cabeça e enquanto estão
assim ocupados vão dando um gemido alto, monótono e compassado, que, quando estão muitos a trabalhar juntos, se ouve bem longe e é até assustador para um estrangeiro. Esta música tristonha
combinada com o tagarelar incessante e a vociferação da população, o barulho dos carros sobre o calçamento irregular, o horrível
ranger das rodas dos carros de boi, o latido dos cães, o toque dos
sinos e as frequentes descargas de fogos de artifício, tornam o Rio
o lugar mais barulhento que conheço. O alarido é mais desconcertante durante o dia do que nas mais movimentadas e populosas
partes de Londres (BUNBURY, Charles James Fox. Narrativa de viagem de um naturalista inglês ao Rio de Janeiro e Minas
Gerais (1833-1835) (Anais da Biblioteca Nacional, vol.
62, 1940. Grifos nossos).
Essas descrições de gritos impuros deixam ver modos
de comunicação existentes antes da eclosão da palavra impressa. A palavra oral sob a forma de gritos e protestos
era a expressão de uma multidão que fazia da voz e do
corpo possibilidades de comunicação.
As aglomerações e a presença ruidosa dos grupos se
expressavam nas ruas também para amplificar posições
321
AF miolo corrupcao 3.indd 321
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
políticas. No período, pós-independência, sobretudo, os
quarteirões de comércio recebiam esses personagens que
vociferavam opiniões. Nos anos 1830, algumas dessas
manifestações passam a ter conotação ligada nitidamente à cidadania, à mudança de soberania, à interferência na
vida pública fora da esfera de controle das autoridades.
Ou seja, começa a se esboçar uma dimensão vinculada à
modernidade política, em que as reuniões se fazem em
nome da soberania popular ou nacional e da cidadania
(Morel, 2005: p. 161).
No caso das cidades mais importantes, essa agitação
era particularmente marcante nos quarteirões do comércio, aonde as práticas orais de comunicação se misturavam
com mais intensidade aos modos letrados. Era ali que as
elites letradas, em pontos de sociabilidade mais ou menos
informais, como os locais de venda de jornais, as livrarias,
boticas e cafés reverberavam o que era lido nas dezenas de
periódicos que apareciam. Na rua, portanto, se materializavam redes de comunicação, deixando a mostra modos de comunicação, tanto os que eram dominantes na antiga ordem,
como os novos que surgiam ao sabor das tecnologias que
permitiam a proliferação da palavra impressa em prensas
importadas, as mais modernas de então, ou improvisadas.
Viram-se então em vários lugares da cidade, especialmente
nas ruas do corpo do comercio alguns magotes de homens (quase
todos da classe ínfima da sociedade) armados de paus, chuços e facas, que ameaçavam tomar este fato vingança nos europeus, e que
segundo nos consta, feriram e espancaram com efeito a algumas
pessoas (Aurora Fluminense, n. 478, 29/04/1831. Citado
por Morel, 2005: p. 160).
A rua ruidosa recebia, sobretudo após a Abdicação de
D. Pedro I, a expressão vociferante de outros gritos, tor322
AF miolo corrupcao 3.indd 322
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
nando visíveis os múltiplos conflitos existentes na sociedade. Essas “falas das ruas” se materializavam em vozes
públicas em torno de três circuitos principais: o comercial
(em lojas e quarteirões); aqueles que eram decorrentes das
facções e lideranças políticas e as que se manifestavam nas
vias, praças, vielas, largos, originárias das camadas pobres
urbanas (Morel, 2005: p. 160).
Ainda que os gritos e vozerios tenham sido desde
sempre uma espécie de marca das cidades desde que
os adensamentos urbanos se constituíram, neste momento de formação do espaço público, os gritos das
ruas deixavam antever a revolta eminente, decorrente
da formação de uma opinião ruidosa em torno do momento político.
A chegada da impressão, em 1808, e a explosão da palavra impressa logo após o abrandamento da censura, em
1821, e com ela a proliferação de jornais por diversas cidades, não significou, portanto, o silenciamento da multidão. A formação do espaço público brasileiro permite ver
um mundo de misturas da comunicação, aonde expressões
da ordem impressa conviviam com manifestações de um
mundo oral que continuava se adensando também pelos
gritos de revolta. As transformações e a construção de
uma esfera pública nacional, que se daria ao longo do século XIX, se, por um lado, fizeram das ruas e logradouros espaços para aonde migraram as discussões políticas,
tendo na expansão da imprensa dimensão fundamental,
por outro deixaram ver a persistência de ordens comunicacionais de um mundo mais antigo.
Ainda que seja profundamente difícil captar essas vozes
e esses gestos que povoavam as ruas, construindo o que
Arlette Farge (1992) chama “tramas do disse-que‑disse”,
há que perscrutar os ecos que do passado trazem as expressões dessa multidão.
323
AF miolo corrupcao 3.indd 323
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Dia 15 pela manhã, a cidade apresentou um espetáculo assustador; as lojas foram fechadas, grupos de negros e de mulatos
armados percorreram armados as ruas, tendo os propósitos mais
incendiários e cometendo desordens; os militares atiraram contra
os passantes; outros entraram nas lojas para roubar: muitas dessas lojas pertencentes aos portugueses foram pilhadas e seus donos
abatidos (Correspondence Publique du Bresil (CPB), vol. 1. Archives du Ministères dees Affaires Étrangères, AMAE,
Paris. Despacho de 20.7.1831, Citado por Morel, 2005:
pp. 231-32)137.
A descrição do Conde Gestas, logo após a Abdicação de
D. Pedro I, além de testemunhar a atmosfera de medo, em
função dos conflitos que se generalizaram entre brasileiros
e portugueses, deixa antever as ruas, na qual a comunicação
do descontentamento se fazia mediante expressões gestuais
e muitos gritos. Por outro lado, o Conde que testemunhou a
cena gravou-a na retina da memória como coisa visual e ao
transportá-la para o escrito recupera o que tinha visto como
imagem duradoura: gestos das lojas sendo fechadas, dos soldados em ação contra os grupos “de negros e mulatos” que
percorreriam a cidade armados. Grupos esses, já naquele
momento, classificados como portadores da desordem. As
chamas dos incêndios, as pilhagens e as destruições das lojas, materializariam, na opinião do Conde, a desordem. Mas
podia significar tão somente gestos do descontentamento.
A música com que os negros marcavam e distinguiam
os muitos momentos do cotidiano era a senha para a indicação de que mais um grupo expressaria o seu descontentamento.
No vigoroso e importante livro de Marco Morel (2005) tratando da
formação do espaço público durante o século XIX no Brasil, os despachos
aparecem transcritos em francês. Optei por fazer uma tradução livre do
conteúdo para possibilitar melhor entendimento dos textos.
137
324
AF miolo corrupcao 3.indd 324
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Enquanto a força armada estava de prontidão em São Cristovão, vimos, em plena luz do dia, nas ruas do Rio, um bando
de negros, precedidos de uma música bárbara, parar um instante
diante de portugueses e lhes dar golpes de faca (Idem, Despacho de
31/12/1833, Citado por Morel, 2005: p. 232).
Se a fronteira entre os espaços privados e a rua é cindida, observam-se através desses relatos que era ali que se
manifestavam múltiplas ordens comunicacionais, aonde
modos antigos permaneciam como expressão privilegiada, ao lado de novas formas que ganhavam corpo naquele
momento. A música como expressão da voz e do corpo,
espécie de arauto da revolta, os corpos brandindo armas
improvisadas, os gritos acompanhando e expressando a
raiva, são cenas de um mundo da comunicação que se fazia
pelos gestos e pela voz. As canções, como mostra Robert
Darnton (2005), servem como artifícios mnemônicos: é
meio poderoso de transmissão de mensagens, permitindo
a troca de informações, mas, sobretudo, a possibilidade
de compartilhamento de um repertório comum de melodias, fazendo com que se sentissem participante de um
mesmo e comum mundo.
Nessa sociedade tradicional e na cidade capital há
também um mundo de misturas na ordem histórica e
política: as manifestações e os modos de pensar do Antigo Regime se mesclam com as perspectivas de atuação
e a concepção de uma modernidade política, na qual se
expressam liberalismos, expressões individuais e noções
de soberania nacional e popular e suas formas de representatividade. É o momento dos “primeiros esboços de
modernidade” no plano cultural e político e que precederam as transformações urbanas que ocorreriam com
intensidade, sobretudo, a partir do final do século XIX
(Morel, 2005).
325
AF miolo corrupcao 3.indd 325
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
A oposição Antigo/Moderno que se deixa antever nas
formas como é explicitada a lógica política da sociedade,
numa época ainda marcada por práticas e valores de um
mundo antigo, num momento em que muitos se pretendiam modernos, também se manifesta nos modos de se
comunicar. O processo de comunicação se dava de distintas maneiras e em muitos ambientes. Envolvia sempre
discussão e construção de sociabilidades, num movimento
complexo de assimilação e reelaborarão de informações
em grupo, constituindo uma consciência coletiva ou opinião pública (Darton, 2005: p. 77).
O século XIX é marcado pelo que pode ser denominada explosão da palavra pública, adotando como plataforma de divulgação e, sobretudo, de simbolização os
impressos: assim, há a proliferação dos jornais como rede
de textos que deixava ver o imenso território.
A Abdicação de D. Pedro I, em 1831, sua saída e o início do que ficou conhecido como período das Regências,
representou o enfraquecimento do poder centralizador
exercido por séculos, possibilitando a explosão da palavra
pública de maneira intensa (Morel, 2003: p. 24).
Ao tempo em que os viajantes Spix e Martius visitaram o Brasil (1817-1820), existiam apenas dois jornais em todo o Império;
agora, só no Rio, são publicados doze ou quatorze. Seu número,
dizem-me, varia sempre: quase sempre toda a semana algum novo
órgão de partido, cheio de ódio, aparece, para morrer de morte natural depois de uma existência de algumas semanas ou meses. A
maior parte contém mais injúrias pessoais e impropérios do que
informação ou discussões instrutivas sobre princípios políticos (...).
Os melhores jornais brasileiros são o Correio Oficial e o Jornal
do Commercio (Bunbury, C. J. F.. Narrativa de viagem de
um naturalista inglês ao Rio de Janeiro e Minas Gerais
(1833-1835). Anais da Biblioteca Nacional, vol. 62, 1940).
326
AF miolo corrupcao 3.indd 326
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
O viajante inglês ficara impressionado com a quantidade de periódicos, mas ele também não conseguiu ver
todas as publicações que de maneira relâmpago passaram a aparecer. No ano que Charles Bunbury chegou ao
Rio, 1833, pelo menos 72 periódicos foram publicados,
segundo a lista cronológica dos impressos guardados na
Biblioteca Nacional (Anais da Biblioteca Nacional, vol. 85,
1965). Olhando do século XXI em direção ao século XIX
há a sensação de que os letrados queriam participar diretamente da novidade maior daqueles dias: a aventura da
produção de um jornal.
A relação dos periódicos e as parcas informações que
chegaram ao presente dão a nítida sensação de que se estava experimentando uma nova forma de comunicar. Jornais
“políticos e literários”, “anônimos”, “curiosos”, “amigo
da igualdade e da lei”, “miscelânico”, “anedótico” (esses
eram alguns dos seus subtítulos) experimentavam a possibilidade de expressar juízos de valor num espaço público
que era tomado pela palavra impressa. Mesmo sem saber
ao certo o que fazer e como fazer com ela, publicavam-se
jornais. A explosão da palavra pública ocorreria em diversas outras regiões. Em Minas Gerais, por exemplo, entre
1825 e 1842, houve o surgimento de mais de 60 periódicos (Silva, 2006: p. 41).
Impressionara também ao visitante inglês o teor dessas publicações que faziam dos insultos, das calúnias e
das infâmias temas para um debate em alto e bom som,
transportando práticas do mundo da comunicação face
a face para os impressos. As calúnias eram corriqueiras
naquele mundo de sensações novas transmitidas pela palavra impressa, causando “ruidosas repercussões”. A impressão que se tem é que através das possibilidades tecnológicas de comunicação e suas novidades – no caso a
difusão dos modos de produção dos impressos – tinha327
AF miolo corrupcao 3.indd 327
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
se o desejo de controlar outras. Os jornais funcionavam
como lugares simbólicos de expressão do saber daqueles
que, graças ao conhecimento privado e íntimo, podiam
expressar o que pensavam como sendo extensivo a outros grupos. A multidão silenciada se contrapunha, agora,
à multiplicação de impressos que exprimiam opiniões de
muitos grupos isolados. Momentaneamente a multidão
não podia expressar sua voz.
A rede de comunicação que se estabeleceu construindo uma esfera pública política e escriturária se dava em
múltiplas dimensões: pela troca de informações e serviços entre os que dominavam as técnicas impressoras; pela
repetição das temáticas editadas; pela construção de periódicos com feição gráfica semelhante que funcionavam
como se fossem uma mesma e única materialidade; e pela
construção de uma rede de redatores que assumiam a tarefa de difundir ideias, se transformando em intérpretes
autorizados das opiniões e informações que circulavam.
Como uma rede comunicacional de múltiplas dimensões, esses periódicos explicitavam em seu conteúdo o
movimento político em que estavam imersos, citando‑se
mutuamente, seja como aliados ou adversários, e “apresentando-se como arautos da mesma liberdade” (Silva,
2006: p. 47). Havia a certeza de que poderiam alcançar
lugares distantes, transpondo espaços e barreiras territoriais, para difundir opiniões de maneira extensiva. Havia
a convicção de que os modos de comunicação – a palavra e a escrita tornada impresso – atingiam fins profundamente diversos. A palavra era identificada como efêmera
e, ao vir acompanhada da eloquência dos gestos em presença, levava a tomada de decisões impensadas. A escrita, ao contrário, podia não apenas romper distâncias, mas
ao produzir gestos leitores pessoais e solitários, segundo
a concepção da época, levando quase que naturalmente à
328
AF miolo corrupcao 3.indd 328
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
reflexão, não era “perigosa”. E, o mais importante, a palavra impressa perdurava.
Neste momento ocorre, portanto, um movimento de
ampliação do público leitor e, paradoxalmente, de silenciamento momentâneo da multidão. A quantidade de impressos se acentuava a diversidade de debates políticos e a
sua disseminação sob outra forma de comunicação, calava
a possibilidade expressiva da maioria da população. Pelos
periódicos eram confrontados projetos diversos de Brasil, “revelando concepções distintas sobre o que deveria
ser esta nação em gestação”. Mesmo que expressassem as
rivalidades das múltiplas facções, havia acima delas “um
compromisso geral com essa nação que, afinal, todos almejavam edificar” (Basile, 2006: pp. 619-620). Mas essa
edificação ficava a cargo dos que tinham o poder de voz
nessa sociedade. Construía-se o Brasil como nação e nesse cenário a imprensa e os grupos que se investem como
seus “arautos” tiveram papeis definitivos.
M u lt i d ã o
m a ss a
O final do século XIX e início do século XX se caracterizam do ponto de vista da constituição de um sistema
midiático no Brasil por dois aspectos principais: assistese, em primeiro lugar, a ampliação exponencial do público, na esteira de estratégias montadas, sobretudo, pelos
jornais para atingir um público mais vasto; e há a explosão de visualidades transformando as cidades em espaços
de experiências em torno de possibilidades técnicas que
se antepunham ao olho humano criando uma espécie de
nova realidade.
O final do século XIX foi o momento de dessacralização da imagem que se industrializou. A imagem a todo o
329
AF miolo corrupcao 3.indd 329
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
vapor, como as máquinas que construíam a nova ordem
capitalista, permitia a edição de publicações destinadas a
um público até então não imaginado. Por outro lado, incluir essas novas tecnologias era ingressar numa atmosfera de modernidade e transformação. A imagem complementava o texto, tornando-se possibilidade decifradora
das letras impressas que passam a ser vistas como “coisa
visual”. Há no espaço urbano a coexistência de múltiplas
linguagens: a linguagem do burburinho e das vozes que
continuavam ecoando nas ruas; a linguagem dos diários
que reproduziam opiniões e informações; e a linguagem
visual, que se apresentava, ao mesmo tempo, como complementar ao texto e como algo que o substituía. Desde
meados do século XIX e com mais intensidade nas duas
décadas que separaram os anos 1800 da chegada dos 1900,
diversos aparelhos técnicos mudaram a percepção dos habitantes das maiores cidades e passaram a mediar ações comunicacionais numa atmosfera em que a tecnologia não
só fascinava, mas também criava novas formas de ver o
mundo e experimentar a vida.
Se inicialmente o sentido capturado e acionado foi o
olhar para ser empregado em modos de comunicação cada
vez mais complexos, nas duas primeiras décadas do século XX as sonoridades anunciavam mediações possíveis por
outros aparelhos tecnológicos. A oralidade migraria, pela
força da tecnologia, para suportes que iriam permitir, a
partir daí, a expansão exponencial do som como possibilidade de dizer e fixar algo.
O final do século XIX assiste também no Brasil a proliferação de instrumentos que transformaram modos de
comunicação e participaram da criação gradual do público e do espectador. Se inicialmente litografias, fotografias, cosmoramas, diagramas, estereotipias e finalmente
cinematógrafos iam construindo um público capaz de
330
AF miolo corrupcao 3.indd 330
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
observar o mundo enquanto se percebia dentro ou fora
dele, outros aparatos tecnológicos mudavam a forma de
ver este mundo e se relacionar com ele. Telégrafos e telefones transportavam a voz e a escrita, enquanto dispositivos visuais faziam transportar imagens.
As maiores cidades se transformavam: sob o grito de
uma República que se iniciava era preciso também modernizar ruas, praças, avenidas, criando uma civilização
que negava o passado e queria fazer do futuro ponto de
partida e de chegada. Do ponto de vista das visualidades, as cidades mais importantes comercial e economicamente se transformaram num “universo audiovisual”
de máquinas, veículos de transporte, vitrinas, cartazes
de propaganda, luzes e ruídos, fios elétricos, tornandose, elas mesmas, espetáculos para a sensibilidade (Xavier, 1978: p. 26).
O século XX deixará ver em função de outras tecnologias colocadas à disposição, um público que será, além
de leitor, observador e ouvinte, quando o rádio assumir a
cena pública a partir dos anos 1920. Num segundo momento, já em meados do século XX, esse observador se
juntará ao escutador de terceira natureza (criando o espectador) e um novo meio de comunicação entrará em
cena: a televisão.
A marca da modernidade conservadora que fazia do
progresso mola mestra da transformação teria ecos duradouros na República. Foi a República que introduziu
em uníssono o discurso da modernidade. Foi no início
da República que se viu as transformações das cidades,
adotando-se, sobretudo, na cidade-capital, isto é, o Rio de
Janeiro, os hábitos de um mundo mais veloz e que também pelos aparatos de comunicação ingressava numa nova
era. Transformação, definitivamente, atrelava-se à lógica
da aceleração.
331
AF miolo corrupcao 3.indd 331
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
E durante toda a Primeira República (1889-1930) observa-se o início da implantação da moderna comunicação
de massa no país. E nesse cenário tornava-se fundamental apropriar-se da multidão transformando-a em público
amorfo desses meios que passaram, pelos usos, a serem
artefatos do cotidiano de muitos. E a multidão transformada em público se distancia do espaço comum e passa
a ser figurada e imaginada pelos meios de comunicação.
Para isso foi fundamental uma ação política: a construção da categoria massa e que passa a ser visada pelo
discurso político. Produto direto do pensamento conservador brasileiro, do ponto de vista ideológico, e das mudanças políticas e econômicas que transformaram a face
visível do país durante o chamado Estado Novo (19301945)138, a emergência dos grupos populares identificados
simplesmente como massa fez parte do projeto político
conservador que dominou os ideais dos grupos dominantes desde os anos 1920.
Durante o Estado Novo o termo aparecerá com todas
as tintas e cores nos discursos dos principais ideólogos do
regime. Francisco Campos falará explicitamente das massas
a quem deveriam se dirigir as elites no poder, sobretudo, utilizando as novas potencialidades comunicacionais das tecnologias em desenvolvimento, como o rádio139. Portanto, a
percepção do público como massa e a qualificação da multidão no Brasil seguem movimentos históricos extremamente
138
Estamos considerando como Estado Novo o período de 1930 a 1945
em que houve um conjunto de mudanças que instauraria o que passaria à
história como “Era Vargas”. Nesse longo período viveu-se, do ponto de
vista político e institucional, o Governo Provisório (1930-1934), o Governo
Constitucional (1934-1937) e o Período Ditatorial (1937-1945). Esses três
momentos distintos representam o desdobramento de um processo político que se inicia com a ascensão ao poder da coligação representada pela
Aliança Liberal.
332
AF miolo corrupcao 3.indd 332
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
peculiares que não guardam similaridade com os processos
que ocorreram na Europa Ocidental.
A multidão, qualificada como irracional e bárbara e
frequentemente identificada às revoltas levadas a cabo
nos séculos XVIII e XIX e o medo que causava a eminência das multidões de escravos de se rebelarem contra
o sistema servil, teria sido finalmente, na concepção dos
governantes, domada. As proibições contra ajuntamento e aglomerações de negros nos espaços públicos, referidas durante todo o século XIX, deixavam ver o medo
das “cidades negras”, como o Rio de Janeiro, da possível
ação desses grupos. A multidão era temida e contra a sua
formação não se media esforços. A emergência da República, por outro lado, significou, em certa medida, o apagamento da multidão, como já enfatizamos. Referências
à maneira apática como a população assistiu as ações da
Proclamação da República, lembradas pelos contemporâneos ou por estudiosos do século XX140, indicam um
movimento de dissolução da multidão que se esvaziava
perante o discurso do individualismo. Assim, ainda hoje
levamos sustos quando diante de fotografias da época descobrimos a multidão que seguia cortejos de personagens
então populares, como foi o caso dos enterros dos escritores Machado de Assis e João do Rio ou do diplomata
Barão do Rio Branco que fizeram transbordar de gente
as ruas do Rio de Janeiro. A multidão esteve, de fato, presente em muitas cenas. A multidão também continuou nas
Francisco Campos foi Ministro da Justiça durante o Estado Novo
(1930-1945) e um dos principais ideólogos do regime. Para compreensão
de suas ideias a respeito da multidão como massa, cf. O Estado Nacional. Sua
estrutura, seu conteúdo ideológico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940.
140
Ver a este respeito CARVALHO, J. M. (1987).
139
333
AF miolo corrupcao 3.indd 333
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
ruas se rebelando contra atos considerados autoritários: a
Revolta da Vacina, as muitas depredações dos bondes em
praça pública como forma de protestar contra aumentos
(do qual a Revolta do Vintém foi apenas uma delas), as
manifestações generalizadas do movimento anarquista em
1918 revelam, aqui e ali, que apesar dos esforços a multidão apenas na aparência estava adormecida.
Por razões de natureza política foi se tornando cada vez
mais emergente domesticar esta multidão transformandoa em massa. E será no interior do pensamento conservador brasileiro que essa domesticação se dará. Diante da
crise institucional, política e social dos anos 1920, caberia, na concepção da época, aos homens de Estado e de
governo mudar radicalmente o cenário. A missão, dentro
dessa visão ideológica, seria daqueles que estivessem mais
bem aparelhados para desempenhar funções tão complexas na direção intelectual e educacional do restante da população. Na construção institucional seriam as elites que
deveriam assumir o papel de guiar os que precisavam ser
guiados, o povo, que passará a ser nomeado como massa
(Barbosa, 2007, p. 104).
Considerava-se, portanto, em essência os homens diferentes: havia aqueles a quem caberia, como missão, a
tarefa de educar e de fazer as leis a serem cumpridas e os
outros, que deveriam ser educados e obedecer. Introduzse, em consequência, a naturalização da diferença entre
os grupos sociais e da ideia de hierarquia.
Por outro lado, na noção nascente de sociedade de massas havia a presunção de que o individuo teria um comportamento social e moral marcado pela desorientação,
formando um todo anônimo e uniforme. Caberia ao governo, através dos aparelhos burocráticos criados e com
a ação dos intelectuais orgânicos dos grupos dirigentes,
desempenhar tarefas cada vez mais complexas inclusive a
334
AF miolo corrupcao 3.indd 334
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
de dar orientação ao povo, massa amorfa e indiferenciada.
Apresenta-se também a necessidade de difundir conhecimentos e noções elementares e para isso era fundamental
não apenas os intelectuais, mas os veículos de difusão, a
imprensa num primeiro momento e o rádio, a partir da
década de 1930.
Essas ideias, em síntese, constituem o que se denomina pensamento conservador brasileiro, inspirado no autoritarismo europeu e ganhando aqui nuanças particulares.
Enquanto na Europa a direção ideológica fundamentava-se na tentativa de os antigos grupos sociais manterem
suas posições diante da pressão dos trabalhadores e dos
grupos populares, no Brasil o avanço das ideologias autoritárias vinculava-se à emergência de novos grupos sociais e forças políticas, dentro de um projeto mais amplo
que almejava a modernização da sociedade. Sendo assim,
era fundamental a existência de um Estado forte que tutelaria os grupos sociais e o sistema econômico (Barbosa, 2007: p. 105).
Com a emergência das novas forças políticas no Brasil
dos anos 1930 – getulistas, tenentistas, integralistas, comunistas e aliancistas – no contexto de modernização da sociedade e de reorganização do aparelho estatal, tornava-se
emergente a construção de um Estado forte com funções
tutelares sobre toda a sociedade (Barbosa, 2007: p. 108).
Esse Estado se definia com um Estado das massas, ou seja,
formado por um grupo que se autodefinia como elite e a
quem caberia tutelar o restante da população identificado
como massa. Um grupo amorfo, sem rosto e sem voz e
que passará a ser designado, nas décadas que se seguem,
por um substantivo impessoal. Para essa tutela, será fundamental a utilização de um meio que não distinguirá o
rosto de seu público. A voz que será audível a partir do
rádio produzirá nos anos 1930/1940 um ouvinte igualado
335
AF miolo corrupcao 3.indd 335
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
à condição de público-massa. E quando a televisão irromper a cena, já nos anos 1950, encontrará como auditório
potencial a ser conquistado esse ator coletivo.
D o m e s t i c a n d o a m u lt i d ã o :
o público-audiência
A chave para a compreensão dos processos comunicacionais que se instauram como sistema midiático brasileiro a partir de 1960 é a percepção de que os meios se
dirigem cada vez mais a uma multiplicidade de rostos,
vistos como público indiferenciado, qualificado e percebido como povo, massa, multidão. Há uma busca pela
expansão do auditório aonde múltiplos meios se movem
e a presunção de que a eficácia da comunicação se faria
pela aproximação de um leitor/espectador/ouvinte sem
um rosto real, mas que assumia o seu lugar de públicoaudiência ao estar em contato com as indústrias midiáticas que se consolidam.
Desde a década de 1920, o pensamento conservador
brasileiro estendia suas teias políticas a partir da adoção
de ações comunicacionais para este público/massa amorfa/gente comum que precisava ser guiada e direcionada já
que era considerada, antes de tudo, como alguém que necessitava de direção intelectual e educacional, como vimos
anteriormente. Cabiam às elites políticas e aos intelectuais
a serviço desses grupos inculcarem, via meios de comunicação privilegiados naquele instante, no caso a imprensa e
o rádio, aquilo que constituiria o pensamento dominante.
Foi assim, a partir da construção do conceito de público
como massa que foi gestada a ideologia estadonovista.
Nas duas décadas que se seguiram, há a exponencial
popularização do rádio e a proliferação de uma imprensa
336
AF miolo corrupcao 3.indd 336
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
de massa que se moderniza e inclui em seus conteúdos o
que é reconhecido como sendo do gosto popular. Jornais,
revistas e o rádio são inicialmente os meios que estabelecem esse diálogo do público com o mundo, via informação ou através de estratégias ficcionais.
A década de 1960 abre o calendário de um tempo em
que o povo, a massa, a gente comum se transforma no
público almejado pelos velhos e pelos novos meios de comunicação. Ainda que o rádio fosse, de fato, o meio por
excelência dos grupos populares, a televisão inicia um longo caminho no sentido de construir uma linguagem que a
aproximasse do seu público moldado paulatinamente nas
décadas que se seguiram (Barbosa, 2013). Alexandre Bergamo (2010) identifica o período inicial
da televisão brasileira como o momento em que o público é caracterizado como sendo a família, mas a partir do
início na década de 1960 a TV passa a ser dirigida a um
“público” e a um “povo” cuja imagem é essencialmente moral. A ficção produzida pela dramaturgia da televisão se afastará do teatro consagrado e se aproximará de
duas categorias essenciais que definirão o modo de fazer
TV: “povo” e “realidade” (Bergamo, 2010: pp. 61-71). Na
mesma década, o público da televisão definitivamente se
transformará em índices de audiência, num momento em
que o valor comercial do meio começa a ser inquestionável. E público passa a ser número aferido por índices
determinados a partir da quantidade dos que estão frente
aos aparelhos de TV.
Se inicialmente era preciso veicular discursos que unissem os valores dos grupos dominantes com os da classe
média em franca expansão, posteriormente seria preciso
incluir a massa amorfa, sem voz e sem rosto, que, diante
dos meios, via a vida política e cotidiana se desenrolar em
capítulos nem sempre compreensíveis.
337
AF miolo corrupcao 3.indd 337
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
A revolução popular antevista no período pré-1964
causou pânico e medo e uniu as forças conservadoras do
país em torno de um discurso comum, veiculado pelos
meios de comunicação: opunha-se deliberadamente democracia e comunismo. O temor se apoderava dos grupos dominantes frente à expressão de vozes populares que
passavam a ser ouvidas. Era preciso alargar o auditório da
propaganda anticomunista e, mais uma vez, os meios de
comunicação foram fundamentais.
A gente modesta se emocionava ouvindo as novelas
radiofônicas e ainda não dominava completamente os códigos capazes de entender as imagens que saíam do tubo
iluminado. Mas ao final da década, quando o homem
conquistasse a lua, na primeira cerimônia da televisão
brasileira, muitos assistiriam aquele feito. Ainda duvidavam das imagens, mas já se colocavam perfilados diante
da televisão.
Pelo menos três décadas de popularidade do rádio, já
fazia dele lugar de construção de um ambiente cultural
comum para todos os que eram ouvintes. Havia um tipo
de vida composto de atos cotidianos e que respondia a
situações comuns que eram construídas por esse auditório que, assim, se transformava em público. Agora um
novo meio, a televisão, passava a tecer os hábitos desses
ouvintes que serão gradualmente transformados em telespectadores.
Há que se ter em conta também que cada época histórica está encharcada de modos de ver: há regimes de
visualidade próprios, da mesma forma que a imagem foi
percebida ao longo da história de maneiras específicas.
Nesse sentido, a televisão é um meio que exacerba o mundo visual, em função de múltiplos processos, no qual a
eclosão de aparelhos tecnológicos, que se antepõem ao
olho humano, constrói uma espécie de réplica do visível.
338
AF miolo corrupcao 3.indd 338
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Trata-se de um meio de comunicação concebido como
parte de um crescimento permanente (de audiência, de expansão territorial, de difusão das fronteiras do nacional,
de consumo, de quantidade de horas de transmissão, de
oferta de canais, etc.). Essas características exigiram que
fizesse do novo e do imediato seu valor mais expressivo
e a consolidação do discurso televisivo implicou na materialização de esquemas facilmente reconhecíveis para
as suas audiências e que geraram hábitos de recepção. A
televisão constrói modos de ver repetitivos e esquemáticos. Entretanto, essa repetição e a continuidade da vida
cotidiana na tela de TV não são compatíveis com a ideia
de novidade, também fundamental na construção da sua
narrativa. Daí a necessidade permanente de acontecimentos extraordinários que se constituem num dos aspectos
mais apreciados de sua formulação discursiva. O novo, o
imediato colocado em cena, graças à técnica do ao vivo,
junto com as imagens extraordinárias do mundo construiu a marca narrativa, pelo menos do ponto de vista do
discurso informacional, da televisão (Varela, 2007: p. 21).
O “século das massas”, no qual a imagem ocupa lugar
central, significou a proliferação do visível e a sua inscrição em outros registros de visibilidade (Arfuch e Devale,
2009) e a televisão constitui-se num lugar relevante para
mostrar como esse substantivo fluido e indefinido (povo,
massa, multidão) aparece ali representado (Tratner, 2008).
Portanto, podemos dizer que há uma história política que
se representa nas imagens de massa que os meios de comunicação, em função das possibilidades tecnológicas
de cada época, colocaram em cena. O imaginário sobre
as massas no século XX se conforma na dependência da
configuração e circulação dessas imagens.
Desde o final do século XIX a multidão esteve presente com recorrência nos meios visuais modernos (fo339
AF miolo corrupcao 3.indd 339
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
tografia, cinema, etc.), estando sua emergência relacionada à sua visibilidade nas grandes cidades (Moscovici,
1985; Ortiz, 1996) e ao próprio conceito de massa. O
público-massa torna-se ator central. A televisão deve ser
vista como o meio de comunicação, inclusive do ponto de vista narrativo, destinado a este público massa. É
aonde essa multidão foi apresentada como síntese da
imagem do século XX.
Século XXI:
m í d i a d a m u lt i d ã o ?
Os trinta anos finais do século XX, que antecederam à
entrada no Terceiro Milênio, foram marcados por outras
transformações nos modos de comunicar. A comunicação
analógica cedeu lugar ao mundo digital e com ele formas
e formatos até então impensados passaram a fazer parte
do cotidiano. Além disso, a passagem do mundo analógico ao mundo digital transformou radicalmente as noções
de tempo e de espaço.
Para que este mundo se transformasse numa velocidade
estonteante uma série de acontecimentos históricos, sobretudo a partir dos anos 1980, foi fundamental: a transformação da configuração política do mundo pós-queda
do muro de Berlim; o reordenamento das forças políticas quando não mais se dividia o mundo em dois blocos
liderados pelo socialismo ou pelo capitalismo; a eclosão
de tecnologias de comunicação que construíram novas
ordens mundiais para a informação; a transformação da
economia global do planeta, a partir das mudanças no sistema financeiro mundial, criando uma nova fase do capitalismo, caracterizada pela imaterialidade da produção e
pela construção de grandes sistemas econômicos em termos planetários.
340
AF miolo corrupcao 3.indd 340
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
A virada do século, como bem remarca Muniz Sodré
(2011), representa “a passagem da comunicação de massa
ao mundo das tecnologias chamadas por muitos de pósmidiáticas”, isto é, as possibilidades trazidas pelo avanço
das telecomunicações, no que diz respeito à interatividade e à multiplicação de possibilidades midiáticas (p. 11).
Preferindo qualificar essas transformações de “mutação
tecnológica”, ao invés de afirmar a existência de uma revolução, para Sodré o fim do século XX e o início do século XXI não representa uma ruptura tão extraordinária
que possa ser classificada como revolução. Todas essas
transformações são “maturações tecnológicas do avanço
científico”, uma vez que a telefonia, a televisão, a computação já existiam anteriormente, havendo tão somente
no milênio que se inicia “hibridização e rotinização” desses recursos técnicos. “Hibridizam-se igualmente as velhas formações discursivas (texto, som, imagem), dando
margem ao aparecimento do hipertexto ou hipermídia”
(Sodré, 2011: pp. 12-13).
A partir das últimas décadas do século XX, cada vez
mais se passou a definir o momento em que se vivia como
sendo o de uma “sociedade da informação”, “sociedade
da comunicação” ou “sociedade em rede”. Quebrava-se
a tradicional noção de espacialidade, removendo-se fronteiras, já que havia a possibilidade real de, via aparatos tecnológicos, se conectar a espaços localizados há milhares
de quilômetros de distância. Como remarca Muniz Sodré o novo, neste momento, é a possibilidade de estocar
grandes volumes de dados e de transmiti-los rapidamente,
acelerando o que se tornara possível, desde o século XIX,
com o telégrafo e com os transportes movidos a máquinas a vapor que a Revolução Industrial possibilitou: ou
seja, a mobilidade de coisas e pessoas. As transformações
tecnológicas do final do século XX “centra-se na virtu341
AF miolo corrupcao 3.indd 341
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
al anulação do espaço pelo tempo, gerando novos canais
de distribuição de bens e a ilusão da ubiquidade humana”
(Sodré, 2011: pp. 13-14).
A sensação de viver uma temporalidade permanentemente marcada pelo instante se transforma em mediador
fundamental das relações das novas gerações. Isso faz com
que transitoriedade seja a prática das suas relações sociais,
intermediadas por aparatos técnicos que primam pela possibilidade de produzir a sensação da simultaneidade temporal. Nesse sentido, o aparato tecnológico torna-se prótese pela ação daquele que dele faz uso, criando um novo
tempo marcado pela possibilidade do eterno presente.
Essa nova experiência do tempo talvez seja a marca mais
contundente das mudanças dos processos e das práticas
da comunicação nos últimos vinte anos.
Esse cenário, entretanto, não significou a quebra na
supremacia econômica e política das grandes empresas
de mídia, no caso brasileiro. Ao contrário: houve uma
compressão dessas indústrias midiáticas mais tradicionais fazendo com que um grande grupo de mídia – as
Organizações Globo – passasse a ter a liderança inconteste em todo o território nacional. Os jornais diários,
por outro lado, atravessaram (e atravessam) um processo gigantesco de concentração, com o término de numerosos títulos, o que leva o Rio de Janeiro, por exemplo, ao monopólio de um único jornal de referência, O
Globo: não por acaso, o jornal pertencente às Empresas
Globo. Observa-se, também, uma crise generalizada no
jornalismo, diante de um tempo em que não há o reconhecimento da opinião dos especialistas e em que prolifera o ato de opinar. Nesse cenário, de desqualificação
cotidiana do discurso dos jornais e diante de um tempo
ultraveloz que faz da informação coisa ultrapassada no
minuto seguinte, não se sabe, ao certo, qual o caminho
342
AF miolo corrupcao 3.indd 342
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
que deve ser seguido pelos impressos. Alguns falam que o
jornal impresso vai acabar. Outros até marcam uma data
provável para o evento. Entretanto, quem se acostumou
a olhar historicamente o mundo, sabe que a emergência
de novas mídias jamais significou o término de antigos
meios. Há reconfiguração, convergências, adaptações ou
permanências de restos do passado como resíduos atualizados permanentemente.
Apesar desse momento de múltiplas rupturas, há ainda o domínio das visões de mundo da televisão. No início da atual década (2010), 95% dos domicílios brasileiros
tinham televisão. O rádio com 81,40% assumia a terceira
colocação, sendo ultrapassado pela posse de telefones fixos e celulares (87,90%). Por outro lado, em 2010, cabia
também à televisão a supremacia absoluta em termos de
faturamento com investimentos em publicidade, com uma
cifra superior a 16 bilhões de reais. Na segunda colocação
vinha o rádio, com pouco mais de 3 bilhões, seguido das
revistas (1,967 bilhão). A Internet, nesse cenário, já ocupava a quarta posição com 1, 216 bilhão de faturamento
(PNAD/IBGE, 2010).
Em 2010, havia no Brasil 652 jornais diários, que se
distribuíam majoritariamente na Região Sudeste (59,44%),
tendo a supremacia numérica São Paulo, seguido de Minas
Gerais. Segundos dados do IVC, os jornais (incluindo diários, semanários e de outras periodicidades) tinham uma
circulação mensal de 8 milhões de exemplares. Apesar do
número aparentemente expressivo, registrou-se queda na
venda avulsa se compararmos os anos de 2009 e 2010.
Também as assinaturas vinham sofrendo queda acentuada desde 2003, quando eram da ordem de 60,9%, sendo
de apenas 49,5%, em 2010 (Kieling, 2012).
Observa-se, portanto, que em paralelo às possibilidades
criadas pelo ambiente digital (como, por exemplo, a popu343
AF miolo corrupcao 3.indd 343
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
larização dos smartphones, como tecnologia dominante no
sistema de aparelhos celulares, o que permitiu a divulgação de imagens e a publicização dos fatos do cotidiano
pelos que antes faziam parte da categoria público), há
a sobrevivência e, mais do que isso, ações dos grandes
sistemas de mídia para manter a sua hegemonia, reconfigurando seus produtos, criando outros tantos, mudando suas linguagens, permitindo, inclusive, a apropriação
dos novos gestos culturais do público. Mais do que movimentos de acomodação nesse cenário de ebulição digital, observa-se a ação continuada dos grandes grupos
de mídia para fazer do meio digital lugar privilegiado de
sua supremacia frente ao seu público antigo, ao mesmo
tempo em que criam atrativos para fisgar parcelas ainda arredias. Se a tendência é, por exemplo, ver televisão
nesses novos suportes (ipad, tablets, iphone, etc.) oferecese essas possibilidades ao público. Diante da perturbação da sua supremacia econômica, não há dúvidas de
que esses sistemas midiáticos tradicionais farão ações
continuadas, planejadas, reorganizando-se para continuar detendo a hegemonia desse sistema. Mesmo que para
isso tenham que usar estratégias que parecem dúbias e
descontroladas, num primeiro momento: enquadrar no
seu tradicional discurso conservador as manifestações
continuadas de revolta da população, qualificando atos
de descontentamento como ações irracionais; amalgamar os que se expressam diante de um cenário de revolta
quotidiana como sendo “bárbaros”, “vândalos”, portadores de atos irracionais.
Ao não se ver representado por esse discurso e por ter
a disposição, via aparatos tecnológicos, a possibilidade de
difundir imagens, informações, opiniões, cria-se canais de
divulgação em paralelo, que podem ser multiplicados ao
infinito: desde a expressão mais individual nas redes sociais
344
AF miolo corrupcao 3.indd 344
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
até informações sistematizadas em mídias de divulgação
online. Mas esse movimento contra-hegemônico sempre
esteve presente na história do sistema midiático brasileiro:
se os impressos do século XIX, por exemplo, exprimiam
a visão dominante de políticos desacreditados naquele
momento, era preciso fazer circular jornais manuscritos
que criticavam, ironizavam, faziam oposição aos grupos
detentores da palavra impressa. Nesse sentido, os jornais
manuscritos eram midialivristas, da mesma forma que se
organizavam pelo desejo de possuir o domínio sobre a
tecnologia comunicacional de ponta naquele momento:
a palavra impressa.
O que mudou foi a extensão do que é comunicado. Se
a circulação em função das possibilidades tecnológicas no
mundo analógico era restrita, dispendiosa, pouco acessível, agora todos podem, em tese, se transformarem em
produtores capazes de tornar visível em grande escala o
que é dado a ver.
Mas os índices avassaladores de desigualdade social que
ainda existem no Brasil dão outro rumo a essa discussão.
Os grupos econômicos classificados entre os de menor
poder aquisitivo no país, hoje, por exemplo, detém apenas 3,9% de aparelhos celulares do tipo smartphones. Enquanto 39,2% das classes A e B podem acessar a Internet
de seus smartphones ou tablets, apenas 7,3% das classes D e
E podem fazê-lo (IBOPE Media/Target Group mai-jun.
2011). Ao qualificar a possibilidade de divulgar via permissividades tecnológicas o que está ao alcance do olhar
(e das câmaras de vídeo e de fotografias dos celulares)
como a mídia da multidão, oferece-se essa ação como possibilidade. O que ocorre efetivamente no Brasil permite
dizer categoricamente que a mídia da multidão continua
longe da multidão.
345
AF miolo corrupcao 3.indd 345
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
C o n si d e r a ç õ e s F i n a is
O sistema midiático brasileiro se constitui, hoje, como
sendo marcado por um ambiente em que alguns autores
denominam de convergência das mídias, no qual se observa a existência de três dinâmicas: a da indústria cultural,
com sua distribuição em escala e massiva e seus sistemas
de produção analógicos; a das chamadas “indústrias criativas”, que as mídias digitais ajudaram a introduzir na sociedade; e a das indústrias de conteúdos digitais nas quais
produtores e receptores incorporam novos papéis aos que
existiam anteriormente. O usuário se transforma em produtor usuário, se constituindo em agente comunicacional
que também atua social e culturalmente nesses ambientes
(Kieling, 2012: p. 87).
Os números apresentados anteriormente que mostram
o crescimento dos aparelhos celulares (dotados de câmaras
fotográficas e de vídeo, entre outras possibilidades interativas), ainda que não atenda, sobretudo, aos mais pobres,
permite refletir sobre a ação do público munido de suas
próteses comunicacionais móveis: fixando ações as mais
cotidianas, criando uma tela através da qual passam a ver
o mundo, transformam esses aparelhos em memórias, capazes de fixar instantes, antes mesmo que esses cheguem
às suas retinas. Os cliques das câmaras dos celulares passam a registrar o show que não é visto (a não ser através
da foto já feita ou do filme já produzido). Os celulares
passam a ser memória móvel de um presente que é permanentemente agora mesmo.
Essas imagens podem ter dupla circulação. Se na maioria das vezes ficam estocadas nas memórias das próteses
móveis, podem também vir a serem emblemas das verdades que as imagens possuiriam nelas mesmas. Desmascarando flagrantes da polícia, mostrando ações repressivas,
346
AF miolo corrupcao 3.indd 346
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
revelando a forma como são tratados os manifestantes,
que tomam conta das ruas nestes 2013, elas passam a ser
registro de um momento que não é mostrado pela chamada grande mídia. E essas imagens – consideradas a verdade do que foi visto e não foi mostrado, por exemplo, pela
televisão – circulam em canais de divulgação via Internet
através da ação jornalística dos chamados midialivristas.
Cada um pode ser o revelador do acontecimento midiático emblemático. Cada um, munido de seus celulares,
pode desvendar o instante não revelado e desmascarar, informar, opinar, tudo ao mesmo tempo. Há a emergência
de novas formas de divulgação possível pelo indivíduomultidão para a multidão. Daí a qualificação dessa nova
mídia como mídia da multidão.
Se a multidão pode assim amplificar seus gritos – tal
como já fazia no século XIX munida do aparelho tecnológico da fala – por outro lado a velha mídia de massa apresenta cenas da depredação do espaço urbano, do
confronto dos jovens com a polícia, e mais uma vez amalgama a multidão sob o nome de barbárie. São vândalos,
mascarados, aqueles que não têm coragem de mostrar os
rostos, que promovem sempre a baderna no espaço público. Mas as cenas que mostram em nada se parecem com
as imagens da multidão que foram construídas durante o
século XX. Agora sob o nome de multidão figuram jovens que aqui e ali em grupo agem no espaço urbano para
protestar, quebrando e gritando, ecoando sons incompreensíveis e bradando paus e pedras como armas da revolta.
Se não fossem os celulares que carregam nas mãos,
se não fossem as imagens que divulgam pelos canais da
Internet, se não fossem pelas vestimentas que usam, talvez achássemos que estaríamos no século XVIII, quando
os gritos dos escravos nos espaços urbanos indicavam o
medo de uma multidão também composta por sujeitos
347
AF miolo corrupcao 3.indd 347
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
esparsos. Mais de um século se passou de uma imagem a
outra, mas o medo histórico dos grupos populares continua assombrando os que têm o poder de voz na sociedade.
Se no início do século XIX foram cartas de um conde
perdido nos trópicos que fixaram o medo da multidão,
agora são as câmeras dos celulares que indicam a existência
da mesma multidão. Numa desqualificação que atravessa
os séculos, mais uma vez a multidão é a turba ignara, baderneira e próxima da barbárie.
Referências Bibliográficas
ANTOUN, H. e MALINI, F. (2013) A Internet e a rua: ciberativismo
e mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina.
ARFUCH, L. y DEVALLE, V. (Org.) (2009) Visualidades sin fin. Imagen y diseño en la sociedad global. Buenos Aires: Prometeo.
BARBOSA, M. (2007) História Cultural da Imprensa. Brasil – 19002000. Rio de Janeiro: Mauad X.
BARBOSA, M. (2013) História da Comunicação no Brasil. Petrópolis:
Vozes.
BASILE, M. (2006) Projetos políticos e nações imaginadas na imprensa da Corte (1931-1837) In: DUTRA, E.F. e MOLLIER, J.Y. (Org.) Política, nação e edição – O lugar dos impressos na construção da vida política. São Paulo: Annablume.
BERGAMO, A. (2010) A reconfiguração do público In: RIBEIRO,
A. P. G., SACRAMENTO, I. e ROXO, M. (Org.). História da televisão no Brasil: do início aos dias de hoje. São Paulo: Contexto.
CARVALHO, J. M. de (1987) Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras.
DARNTON, R. (2005) Os dentes falsos de George Washington: um guia
não convencional para o século XVIII. São Paulo: Cia das Letras.
ENZENBERGER, H. M. (1992) Guerra civil molecular. São Paulo:
Cia das Letras.
FARGE, A. (1992) Dire et mal dire: l’opinion publique au XVIIIe
siècle. Paris: Seuil.
348
AF miolo corrupcao 3.indd 348
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
KIELING, A. (2012) Indústrias Criativas e de Conteúdos Digitais 2011 In: CASTRO, D.e MELO, J. M. Panorama da comunicação e das
telecomunicações no Brasil, vol. 4. Brasília: IPEA.
MOREL, M. (2005) As transformações dos espaços públicos – Imprensa,
atores políticos e sociabilidades na Cidade Imperial (1820-1840).
São Paulo: HUCITEC.
MOREL, M. (2003) O período das regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Zahar.
MOSCOVICI, S. (1985) La era de las multitudes. Un tratado histórico
de psicología de las masas. FCE.
ORTIZ, R. (1996) Cultura, comunicación y masa In: Otro territorio.
Ensayos sobre el mundo contemporáneo, UNQUI, pp. 93-125.
PAIVA, R. e SODRÉ, M. (2013) Afeto e mobilidade nas megacidades: o comum e as alternativas de comunicação In: BARBOSA,
M. e MORAIS, O. J. de Comunicação em tempo de redes sociais: afetos,
emoções, subjetividades. São Paulo: INTERCOM.
SILVA, W. (2006) A imprensa e a pedagogia liberal na Província de
Minas Gerais (1825-1842) In: NEVES, L. M. B., MOREL, M. e
FERREIRA, T. M. B. da C. (Orgs.) História e imprensa – representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A/Faperj.
SODRÉ, M. (2011) Antropológica do espelho – Uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes.
TRATNER, M. (2008) Crowds Scenes. Movies and Mass Politics, New
York: Fordham University Press.
VARELA, M. (2007) Las imágenes del 68 en la historia de la cultura
audiovisual Contracampo. Revista do PPGCOM-UFF. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2º semestre, pp. 19-42.
XAVIER, I. (1978) Sétima arte: um culto moderno. São Paulo: Perspectiva/Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado
de São Paulo.
349
AF miolo corrupcao 3.indd 349
7/31/14 12:55 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 350
7/31/14 12:55 AM
9. Sistema dos Media em
Moçambique: uma breve
análise do mercado
da imprensa, radiodifusão
pública
e da profissionalização
do jornalismo
Ernesto Nhanale
Introdução
Muitos estudos sobre os sistemas dos media em vários
países têm prestado atenção particular ao trabalho desenvolvido por Hallin e Mancini (2010). A importância deste
estudo não reside, simplesmente, no facto de os seus autores oferecerem e inspirarem um conjunto de investigações
comparativas sobre os sistemas dos media, nos diversos
países do mundo, mas também por desenharem três modelos a partir da aplicação de um conjunto de dimensões
que podem ser replicadas, em diversos contextos, e ajudar
a compreender algumas variáveis importantes dos media.
Hallin e Mancini (2010: p. 35) propõem quatro dimensões fundamentais para a análise dos sistemas dos media, a
saber: i) o nível de desenvolvimento do mercado dos media,
em particular para a imprensa de circulação de massas, ii)
o paralelismo politico, isto é, até que ponto o sistema dos
media reflecte as principais divisões políticas da sociedade
em que pertence iii) o desenvolvimento do profissionalismo de jornalismo, e iv) o grau e a natureza da intervenção
do estado no sistema dos media.
Embora não esteja direccionado para uma análise comparativa dos indicadores propostos por Hallin e Mancini
351
AF miolo corrupcao 3.indd 351
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
(2010), como tem sido feito em diversos estudos, este artigo adopta alguns dos indicadores como ponto de partida para sistematizar e orientar alguns argumentos sobre o
contexto e o cenário dos media em Moçambique. Por este
motivo, o texto não faz nenhuma discussão aprofundada
sobre as dimensões de análise, mas apresenta, em momentos relevantes, a definição de alguns conceitos.
Numa primeira parte, o texto explora a dimensão do
mercado da imprensa, destacando as questões ligadas à
circulação e à sustentabilidade. Na segunda parte, o texto
procura reflectir sobre a situação da radiodifusão pública,
trazendo alguns dados que ilustram a sua relação com o
governo, muito caracterizada pelo controlo. Na terceira
parte, o autor procura analisar a dimensão do profissionalismo dos media, ilustrando como é que os jornais procuram cumprir com a sua responsabilidade social, procurando mostrar até que ponto as práticas profissionais têm
influenciado o paralelismo político, embora esta dimensão não seja muito explorada na pesquisa.
O trabalho foi realizado através de pesquisa documental sobre os media em Moçambique. Foram realizadas várias entrevistas com jornalistas e editores dos principais
órgãos de comunicação social, para além de o autor ter
recolhido um conjunto de materiais, nomeadamente em
conferências e debates realizados sobre os media e jornalismo no país.
É preciso sublinhar as dificuldades que a pesquisa sobre
os media enfrenta em Moçambique, as quais se prendem
com falta de bases de dados sistematizadas e actualizadas
sobre as tiragens, mercado publicitário e distribuição, isto
devido à falta de agências de estudos especializadas na área
da comunicação social. Esta situação é, ainda, agravada
pelas dificuldades que as próprias empresas jornalísticas
têm de fornecer dados sobre a sua actividade.
352
AF miolo corrupcao 3.indd 352
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Embora não tenham sido analisadas todas as dimensões propostas por Hallin e Mancini e apesar do texto
não ter sido produzido com o intuito de efetuar alguma
análise comparativa, o autor procura realizar uma aproximação do sistema dos media em Moçambique, aos três
principais modelos141.
141
Resumidamente, o estudo de Hallin e Mancini (2010), permitiu traçar
três modelos importante dos sistema dos media e política. O modelo pluralista polarizado, característico dos países do sul da europa Grécia, Itália,
Portugal e Espanha, por isso o nome do modelo mediterrâneo, apresenta
como principais elementos do seu sistema de mídia jornais com baixa circulação e orientados predominantemente para a elite política e a centralidade
da rádio e televisão. A liberdade de imprensa e o desenvolvimento da mídia
comercial são relativamente tardios e recentes, e os jornais frequentemente são frágeis do ponto de vista económico, dependentes do governo, através da publicidade do governo. Este sistema é também caracterizado pelo
alto paralelismo político, com a predominância de um jornalismo opinativo
orientado para a defesa de interesses ideológicos, políticos e económicos.
O modelo corporativista-democrático, característico dos países como
Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia, Alemanha e Suíça, possui como elementos característicos um desenvolvimento precoce da indústria jornalística
e da liberdade de imprensa, uma alta circulação dos jornais e uma imprensa
fortemente ligada a grupos sociais organizados. Historicamente, o jornalismo apresenta um alto grau de paralelismo político, mesmo com um jornalismo de opinião, tem uma crescente a ênfase no jornalismo de informação.
O profissionalismo no campo jornalístico é elevado e a mídia é vista pelos
cidadãos como uma instituição social importante que o Estado deve proteger
garantindo a liberdade de imprensa. O modelo liberal, característico dos
Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, possui um desenvolvimento precoce
de uma imprensa comercial e de massa num ambiente marcado desde cedo
pela liberdade de imprensa e pelo individualismo. Possui baixos níveis de paralelismo político, aliados a um elevado grau de profissionalização do campo
jornalístico. Nos Estados Unidos predomina largamente o jornalismo orientado para a informação, mas na Inglaterra essa orientação é marcada pelo
predomínio histórico do jornalismo opinativo. A capacidade de regulação do
Estado (baseada, como no modelo corporativista europeu, em regras do tipo
legal-racional) é mínima nos Estados Unidos, porém evidente na Inglaterra e
no Canadá pelo menos no que concerne ao sistema público de televisão que
é insulado da esfera política (Azevedo, 2006: pp. 90-91).
353
AF miolo corrupcao 3.indd 353
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
O
mercado da imprensa
em
Moçambique
A imprensa liberal, em Moçambique, nasce nos princípios da década de 1990, na altura em que o País se abre
ao sistema pluralista142. A primeira Constituição multipartidária (1990) dava espaço, através do art. 74, à liberdade de imprensa e ao direito a informação. Foi com base
nessas alterações que, em 1991, se introduz a primeira lei
de imprensa - Lei nº. 18/91, de 10 de Agosto - que visa
a liberalização e o pluralismo de expressão nos meios de
comunicação social.
Foi com estas transformações políticas e legais que
surgiram novos órgãos de informação com uma gestão
independente do Estado, destacando-se a cooperativa de
jornalistas, a Mediacoop, que lança, em 1994, o jornal Savana. Estes novos jornais irão juntar-se aos que já operavam
no período monopartidário (como o Notícias e Domingo)
que passam a adoptar uma nova estrutura de propriedade, mais adiante discutida.
Segundos dados do GABINFO (Gabinete de Informação), entidade oficial de registo de publicações, o País
conta com cerca de 465 publicações, de carácter generalista e especializadas, e outras pertencentes a instituições de
carácter religioso, político, empresarial e governamental143.
Depois da sua independência do sistema colonial português, Moçambique esteve sob o regime de partido-único, dirigido pela FRELIMO, partido transformado do movimento que lutou e libertou o País. Neste período,
entra em vigor o sistema de controlo directo dos meios de comunicação social pelo Estado, através do decreto presidencial de 21 de Setembro de 1975
que estabelecia que toda e qualquer publicação só podia ser feira mediante
a autorização do departamento do Trabalho Ideológico (DTI) do Partido,
através do Instituto Nacional de Livro e do Disco (INLD), incluindo publicações de cariz religioso.
143
Estas dados foram recolhidos no GABINFO em Abril de 2013.
142
354
AF miolo corrupcao 3.indd 354
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Devido à exiguidade de estudos, é difícil definir os principais jornais que praticam um jornalismo profissional em
Moçambique. Pode-se tomar, para o efeito, como base a
lista dos jornais analisados em alguns estudos de audiências realizados pela Intercampus do Grupo GFK144. Segundo a pesquisa realizada em 2011, os dez jornais mais
lidos em Moçambique são os que estão representados no
gráfico abaixo:
Figura 1. Os dez Jornais mais lidos
de Moçambique
Fonte: INTERCAMPUS
Tendo em conta os dados disponibilizados pelo GABINFO (2013), a tiragem dos principais jornais em Moçambique, conforme a lista acima apresentada, tem variado
de um mínimo de 5.000 exemplares a 30.000 mil exemINTERCAMPUS. Anuário 2011 de Audiências Diárias de Televisão,
Rádio e Jornal. Maputo, 2011. Disponível em http://www.intercampus.
co.mz/noticias5.htm, acessado aos 17 de Julho de 2013.
144
355
AF miolo corrupcao 3.indd 355
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
plares. Conforme os dados fornecidos pelos próprios jornais145, o semanário com maior tiragem é o Savana com
12.000 (doze mil) exemplares; dos diários, o Notícias com
cerca de 15.000 (quinze mil) exemplares.
A exemplo destes dois jornais, grande parte dos jornais
nacionais são distribuídos nos principais centros urbanos
do país, com a cidade capital, Maputo, a consumir mais de
metade dos jornais distribuídos. Dos 12.000 exemplares
que produz, o jornal Savana, vende cerca de 8.000 exemplares na cidade de Maputo, distribuindo para o resto do
País, cerca de 4.000 exemplares, o correspondente a ¼ da
sua tiragem semanal.
Certamente que estes números podem ser vistos como
insignificantes em um país com cerca de 23 milhões de
habitantes146. No entanto, ao olhar para os dados o OIF
(2008/9), pode-se notar que a cidade de Maputo, capital política e económica do País, é a que possui menores índices
de analfabetismo (10.9%) em relação as restantes províncias. Na província de Cabo Delgado, por exemplo, até 2008,
70,3% da população não sabia ler nem escrever, justificando-se, por isso, a maior distribuição dos jornais em Maputo.
Para além das questões ligadas ao analfabetismo, é
preciso realçar o fraco poder de compra, num país onde
grande parte da população não é empregada e o salário
mínimo nacional, sobretudo na função pública147, não
Nas diversas entrevistas realizadas, somente alguns jornais aceitaram
providenciais informações sobre a tiragem, por exemplo, o Savana (12 mil
exemplares); Magazine Independente (10 mil exemplares); Zambeze (8 mil exemplares); O País (7 mil exemplares).
146
Projecção da população moçambicana, em 2013, Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE:2013), http://www.ine.gov.mz/pt/DataAnalysis.
147
O salário mínimo aprovado em 2013 para os trabalhadores da função
pública, por exemplo, é de 2.699,00 meticais, ao câmbio actual, correspondente a cerca de 90 dólares americanos.
145
356
AF miolo corrupcao 3.indd 356
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
chega aos 100 dólares americanos. Os preços dos jornais
diários, em 2013, é de quinze meticais, correspondente
a meio dólar, e os semanários são, na maioria, vendidos
ao preço de trinta meticais, o correspondente a um dólar
americano. Assim, dir-se-ia que a aposta na compra de um
jornal diário por um cidadão que aufere o salário mínimo
nacional seria pouco provável, por representar o gasto de
cerca de um terço dos seus rendimentos mensais.
É preciso ainda notar, que grande parte dos jornais são
vendidos a partir de assinaturas institucionais, uma outra
parte é feita a partir de vendas directas nos quiosques e,
por fim, nas ruas, através dos ardinas. Estes baixos níveis
de tiragem ilustram a sua dependência do mercado publicitário. Quase todos os gestores dos principais meios de
comunicação entrevistados afirmam que a principal fonte
de rendimentos das suas empresas é a publicidade, em alguns casos através da produção de suplementos de notícias
de actividades de instituições, sobretudo da sociedade civil.
Em relação às fontes de financiamento, é importante destacar dois pontos fundamentais que têm sido levantados nos
debates sobre a sustentabilidade dos media em Moçambique.
O facto de o Estado (através das diversas instituições públicas) ser o maior anunciante e tender a privilegiar os jornais
institucionalmente mais próximos do controlo das estruturas
governamentais, tal como os jornais Notícias e Domingo148. Por
148
Depois da liberalização do mercado da imprensa, em 1991, os órgãos
de comunicação criados no contexto do partido único (o jornal Domingo e
a Televisão de Moçambique) e os que passaram à tutela do governo, logo
depois da independência (o caso do jornal Notícias e a Rádio Moçambique),
alguns passaram ao estatuto de órgãos de informação públicos, o caso da
Rádio Moçambique, Televisão de Moçambique e a Agência de Informação
de Moçambique. Os jornais Notícias e Domingo, pertencentes à Sociedade
Notícias, passam a jornais privados, embora numa situação muito discutida,
uma vez que os seus accionistas maioritários são instituições de carácter
público, o Banco de Moçambique e a Empresa Moçambicana de Seguros.
357
AF miolo corrupcao 3.indd 357
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
outro lado, os jornais privados têm integrado nas suas estratégias comerciais a produção de suplementos, contendo relatórios de actividades (em muitos casos) desenvolvidos por
organizações da sociedade civil e algumas empresas privadas.
Um outro problema da imprensa, em Moçambique,
está ligado aos elevados custos da impressão que chegam
a representar quase 70% dos custos totais da produção
dos jornais (UNESCO, 2006). Esta questão tem afectado,
sobretudo, a sustentabilidade de grande parte dos jornais
privados, que não mantém relação com as instituições públicas, em termos da sua estrutura accionista.
A Radiofusão Pública
Moçambique possui duas empresas de radiodifusão
pública, uma para os serviços de Rádio, a Rádio Moçambique (RM) e a outra para os serviços de Televisão, a Televisão de Moçambique (TVM)149. Sendo um país com a
população maioritariamente analfabeta e rural, a importância da rádio é evidente em Moçambique, sobretudo
da RM150 que é o meio com a maior cobertura no País.
Em 2005, estimava-se que a RM alcançasse cerca de 80%
da população. Um estudo realizado sobre a formação do
voto e o comportamento eleitoral em Moçambique cita
o meio Rádio como sendo uma das principais fontes de
informação eleitoral, chegando a RM a 91% dos eleitores
(Brito, L., Pereira, J. C., Rosário, D e Manuel, S., 2005).
A TVM, em relação às outras televisões, continua a ser
a que oferece a maior abrangência de sinal aberto, sobretu149
Os últimos dados indicam que o sinal da Televisão é acessível para
cerca de 14 por cento da população nacional.
150
A RM e TVM são criadas meios de radiodifusão pública pelo decreto
nº18 e nº19, de 16 de Junho de 1994.
358
AF miolo corrupcao 3.indd 358
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
do por estar presente nas principais capitais provinciais e
em algumas das principais cidades e vilas do país. A TVM
tem tido, ainda, o desafio de integrar na sua programação
as línguas nacionais. A fraca cobertura da rede eléctrica151
no país pode ser vista como um dos problemas que dificultam a expansão do sinal e o uso dos receptores de televisão, em sinal aberto. Os dados apresentados em 2013
indicam que somente 14% da população moçambicana
tem acesso à Televisão. Grande parte desta população é
residente nos principais centros urbanos do país.
Na Constituição, os parágrafos 4 e 5 do art. 48, caracterizam como independentes perante o governo, a administração e demais poderes políticos, bem como os meios
de comunicação públicos. No entanto, esta independência torna-se limitada pelo facto de as suas administrações
serem reguladas de igual forma que outras empresas públicas. Isto é, no processo da sua transformação em empresas estatais, o estatuto do seu modelo de gestão teve
equiparação às demais empresas públicas, através da aplicação da Lei nº 17/91 de 3 de Agosto de 1991, na qual
cabe ao Primeiro-Ministro nomear e exonerar o presidente do Conselho de Administração das empresas públicas.
A nomeação dos Administradores das empresas públicas de radiodifusão tem sido um dos mecanismos de
dependência em relação ao poder político do momento.
Conforme ilustra o relatório da pesquisa da AFRIMAP,
OSF-SA, OSIMP (2010: p. 84), sobre a radiodifusão em
Moçambique, “o efeito desta dependência sobre os operadores de
radiodifusão pública é tão imediato quanto inevitável, na medida em
que o Conselho de Administração não é apenas um órgão supervisor, mas também está envolvido na gestão executiva”.
Estima-se que, somente, cerca de 40% da população em Moçambique tenha acesso à energia eléctrica.
151
359
AF miolo corrupcao 3.indd 359
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Esta situação deve-se ao facto de os membros de
conselho de administração desenvolverem funções executivas e de supervisão. Aliás, o presidente do conselho
de administração é quem preside à direcção executiva
no que respeita às suas actividades diárias, estrutura na
qual se insere a Direcção Editorial (AFRIMAP, OSF-SA,
OSIMP, 2010: p. 84). Esta estrutura tem sofrido fortes
interferências dos governantes nos conteúdos editoriais
dos órgãos de informação pública, sobretudo em processos de selecção de comentadores e de temas para determinados debates.
Estas questões têm afectado e contrariado a independência da radiodifusão pública em Moçambique. Os orçamentos destes meios são feitos sob forma de contrato‑programa com o governo, retirando às administrações
das empresas a sua autonomia administrativa e financeira.
Em simultâneo têm sido realizados debates sobre o controlo e a independência dos meios de radiodifusão pública
na Rádio Moçambique (RM) e na Televisão de Moçambique, centrados sobretudo nas fragilidades das leis, na regulação e nas relações com o governo.
A
p r o f issi o n a l i z a ç ã o d o s
em
Media
Moçambique
Um dos elementos mais discutidos na análise da profissionalização do jornalismo é a ideia que a prática do
jornalismo não depende de conhecimentos adquiridos,
através de uma formação especializada na área. Esta perspectiva observa-se na prática profissional do jornalismo,
em diversos países do mundo (Hallin e Mancini, 2010: p.
48). No caso de Moçambique, onde a profissão não tem
uma longa história, a formação de jornalistas, sobretudo
360
AF miolo corrupcao 3.indd 360
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
a nível superior, é muito pouco frequente, e talvez pouco
valorizada ainda no exercício da profissão.
Na verdade, a formação em jornalismo é algo que
recente em Moçambique. Embora a Escola de Jornalismo ofereça formação em cursos básicos de jornalismo,
desde a década de 1980, só na década de 1990 surgem
cursos de nível médio. Deste modo, o ensino de jornalismo nas universidades152 nacionais é muito recente, não
sendo a sua influência e importância para o desenvolvimento da profissão muito visível, dado não estar regulada a entrada na profissão a partir de uma habilitação
(formação) específica.
O exercício da profissão do jornalismo encontra-se
ainda muito pouco regulado sobretudo na definição clara de quem pode exercer a actividade. Para esta situação
contribui a lei de imprensa que não é específica sobre a
definição do jornalismo e encara a actividade profissional
numa perspectiva técnica:
todo o profissional que se dedica à pesquisa, recolha, selecção,
elaboração e apresentação pública de acontecimentos sob a forma
noticiosa, informativa ou opinativa, através dos meios de comunicação social, e para quem esta actividade constitua profissão principal, permanente e remunerada (art. 26 da Lei nº. 18/91).
Embora não tenha um estudo aprofundado, mas pode se referir
que o Instituto Superior Politécnico e Universitário, hoje A Politécnica, a
Universidade Católica em Nampula, foram umas das primeiras Universidades
a introduzirem cursos de licenciatura em Ciências da Comunicação. Em
2003, a Universidade Eduardo Mondlane introduz o primeiro curso de
licenciatura em Jornalismo, na Escola de Comunicação e Artes. Hoje,
assistimos a uma avalanche de Institutos, Escolas e Universidades a
leccionarem cursos na área das Ciências da Comunicação, cujas maiores
opções vão para as áreas de Relações Públicas, Publicidade e Marketing.
152
361
AF miolo corrupcao 3.indd 361
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Embora tenha sido aprovado um código de conduta
deontológico em 2012, ainda permanecem nos órgãos
de comunicação social nacionais, desafios para garantir a
sua aplicação e vinculação. Esta situação leva a uma fraca
compreensão da responsabilidade social dos jornalistas
enquanto prestadores de um serviço público153. Muitas vezes, a profissão tem vindo a ser confrontada com situações
em que os seus profissionais são influenciados por actores
externos que determinam a publicação de conteúdos, levando a situações de instrumentalização. Isto é, assiste-se
ao controlo dos media por agentes externos, nomeadamente por
actores vinculados a interesses políticos ou económicos
(Hallin e Mancini, 2010: p. 51). Sobre esta questão, a discussão que permanece em Moçambique é a existência de
jornais que procura, nos seus conteúdos, traduzir visões
dos factos baseados em interesses do governo. Por outro
lado, outro grupo de jornais, sobretudo os privados, procuram veicular visões opostas ao governo. Um exemplo
recente que ilustra esta situação, ocorreu no início do ano
2013, durante uma greve dos médicos. Neste acontecimento verificou-se um intenso uso dos meios de comunicação
social do sector público em acções de contra-informação,
visando levar a opinião pública nacional a considerar a greve dos médicos ilegal. Em simultâneo, alguns órgãos de
comunicação privados procuraram apresentar a visão dos
médicos em greve e, também, a opinião de outros actores
A noção da responsabilidade social dos media define os patamares
que o jornalismo deveria seguir. A responsabilidade social dos media
baseia-se num conjunto de obrigações dos jornalistas com a sociedade,
sobretudo na ideia de que as notícias devem ser verdadeiras, leais, objectivas
e relevantes; a necessidade de liberdade e auto-regulação; a necessidade
de os media seguirem códigos de ética e conduta profissional e; em certas
circunstâncias, a necessidade do governo poder intervir para salvaguardar o
interesse público (MacQuail, 2003: pp. 150 – 152).
153
362
AF miolo corrupcao 3.indd 362
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
da sociedade civil. Esta situação tornou-se mais evidente
quando os jornais O País e Canal de Moçambique, privados,
publicaram um conjunto de emails do director da Agência
de Informação de Moçambique, enviados à assessora do
Primeiro Ministro. Nestas mensagens era evidente a sua
colaboração na produção de informações deliberadamente deturpadas, sobre a ilegalidade da greve dos médicos, e
posicionando-se a favor do governo154.
Estas questões mostram, não só a fragilidade do jornalismo enquanto profissão independente, mas também
a maneira como cada grupo de jornais procura reflectir
interesses diferenciados.
Ao longo da pesquisa, foram recolhidos diversos artigos publicados nos jornais nacionais sobre a prática do
jornalismo e a relação com o contexto político. Nota-se a
tendência que cada jornal tem em publicar os textos que
procuram desvalorizar o trabalho que é desenvolvido pelos
outros jornais. Os jornais ligados ao partido do governo
procuram apresentar opiniões que realcem as fragilidades
éticas dos jornais privados155. Por seu turno, os jornais
privados procuram denunciar contextos de controlo e de
opressão das liberdades de imprensa exercidas pelo governo, através do uso dos órgãos públicos156. O domínio
154
No dia 14 de Fevereiro de 2013, o jornalista, Lazaro Mabunda, do O
País publica na sua página de opinião emails trocados pelo Director da Agência de Informação de Moçambique com a assessora do Primeiro Ministro,
mostrando o seu trabalho de contra-informação na greve dos médicos em
Moçambique In: MABUNDA, Lazaro. “Os médicos e os “agitadores profissionais”. jornal O País, 14 de Fevereiro de 2013, http://www.opais.co.mz/
index.php/component/content/article/86-lazaro-mabunda/23742-os-medicos-e-os-agitadores-profissionais.html, acessado aos 15 de Abril de 2013.
155
Rafael Shikhani, Midia versus democracia, Subsídios para análise : A mídia e
o cenário político. Jornal Noticias, quarta-feira, 11 de Setembro de 2013.
156
Media privados na mira da Frelimo. jornal Savana, 27 de Julho de 2013,
pp. 2-3.
363
AF miolo corrupcao 3.indd 363
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
do poder político, sobretudo do partido Frelimo, sobre os
meios públicos (a Rádio Moçambique – RM, a Televisão
de Moçambique – TVM e a Agência de Informação de
Moçambique – AIM) e sobre os privados historicamente
vinculados ao Estado, como os jornais Notícias e Domingo,
tem sido uma outra questão que tem influenciado o profissionalismo. Este procedimento observa‑se, sobretudo, no
desequilíbrio no tratamento de assuntos sobre os diversos
partidos e candidatos, gerando uma cobertura de informação tendenciosa nos períodos eleitorais e uma grande
limitação do acesso dos partidos da oposição aos meios
de comunicação públicos (Chichava e Pohlmann, 2010).
Por outro lado, os meios de comunicação privados,
nascidos no contexto da liberalização do mercado da imprensa e com tendência a cumprir uma função crítica em
relação ao governo, têm enfrentado diversos obstáculos
nas suas actividades, principalmente dificuldades em aceder às fontes de informação. Como se sabe, Moçambique
não possui uma lei que obrigue as entidades a publicarem
ou a facilitarem o acesso a fontes de informação.
A imprensa “independente” está associada ao cumprimento da função de “guarda”, através das suas intervenções críticas ao governo da Frelimo157 e de denúncias
de actos de corrupção. Por esta razão, ela tem sido alvo
de muitos processos judiciários por difamação, movidos
por representantes de diversas instâncias do poder político nacional (Nhanale, 2011). É preciso salientar ainda que
as fragilidades da regulação da profissão têm tido conse-
A Frelimo é o partido no poder desde 1975, altura da independência
de Moçambique. Desde a introdução do multipartidarismo em 1990 e as
primeiras eleições gerais em 1994, a Frelimo e os seus candidatos às presidenciais têm ganho todos os pleitos eleitorais, apesar de todas as constatações que têm sido levantadas pelo principal partido da oposição, a Renamo.
157
364
AF miolo corrupcao 3.indd 364
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
quências éticas. Por várias vezes, são reportadas situações
de trabalhos desenvolvidos pelos jornalistas sob forma de
encomendas ou o recurso à função de guardiões158 com
vista a promoverem chantagens económicas e políticas.
C o n si d e r a ç õ e s
f i n a is
Conforme já foi dito, o objectivo principal deste trabalho foi fornecer uma visão geral sobre o contexto dos
media, em Moçambique, na sequência de contribuições
para o Projecto Corrupção Política nos Media: uma perspectiva
comparada dirigido pelo Centro de Investigação Media e
Jornalismo. Estruturando o texto de acordo com os indicadores mercado de imprensa, radiodifusão pública e profissionalismo, apresentados por Hallin e Mancini (2010).
Os dados expostos ao longo do texto procuraram mostrar o contexto e o papel da imprensa em Moçambique.
Em primeiro lugar, os dados recolhidos mostram a fraca
expressão da imprensa escrita, sobretudo dominada pelas
baixas tiragens, fraca distribuição e até fragilidades económicas das próprias empresas, sobretudo as do sector
privado. Do lado dos meios de radiodifusão pública, foi
possível ilustrar a situação do controlo pelo governo, devido às fragilidades da própria legislação e às formas do
seu financiamento que permitem intervenções do governo.
Nos meios de comunicação públicos são encontradas
características similares às definidas por Hallin e Mancini no modelo do governo, onde há um maior controlo desA documentação destes factos pode ser encontrada em diversas fontes. Pode ser visto o artigo Denúncia secretário-geral do SNJ: Persistem atropelos
à lei na comunicação social. jornal Notícias, Segunda-feira, 15 de Abril de 2013,
Maputo.
158
365
AF miolo corrupcao 3.indd 365
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
tes meios de forma directa por parte do governo ou pela
maioria política, através do controlo das nomeações para o conselho de administração (2010: p. 22). No que diz respeito ao
profissionalismo, pode notar-se o fraco desenvolvimento do jornalismo enquanto profissão, seja a nível dos códigos deontológicos e da carteira profissional (que ainda
não existe), bem como a permeabilidade do jornalismo
a influências dos diversos actores sociais, sobretudo dos
políticos. Esta circunstância tem duas consequências na
responsabilidade social dos media em Moçambique. A primeira é a forte instrumentalização dos órgãos públicos de
comunicação social pelo poder político, reduzindo o seu
papel de guardiões e fiscalizadores dos poderes públicos.
A segunda refere-se aos meios de comunicação privados,
que têm procurado cumprir a função de guardiões, mas
que por limitações e fragilidades de cariz material e profissional têm violado os princípios éticos, caindo em muitas situações de sensacionalismo.
Embora não tenham sido analisados todos os indicadores e não se trate de estabelecer qualquer comparação,
é importante notar que algumas características encontradas em Moçambique são similares às do modelo pluralista
polarizado. Esta aproximação deve-se à fraca circulação da
imprensa, às fragilidades da imprensa privada e ainda à
centralidade e à relevância da rádio e da televisão (apesar
de esta ainda ser pouco expressiva devido aos baixos níveis de acesso à energia eléctrica). Os meios de comunicação comerciais só são desenvolvidos a partir dos anos
1990, com a adopção do sistema democrático, sendo a
sua fragilidade económica uma das marcas mais evidentes.
Ainda que não se tenha analisado a dimensão do paralelismo político, é preciso salientar o facto de haver um
conjunto de estudos que indicam que os meios de comunicação públicos, e os jornais com participação de empre366
AF miolo corrupcao 3.indd 366
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
sas públicas na sua estrutura accionista (Notícias e Domingo), tenderem a reflectir posições do partido Frelimo, no
governo desde 1975. Esta situação pode ter uma relação
com a história dos meios que, de 1975 a 1990, estiveram
sob controlo do mesmo partido, durante o período do
“Estado socialista”. Por outro lado, os meios de comunicação privados, nascidos no contexto da democratização
do país, demonstram ter tendência para reflectirem outras
posições, principalmente críticas, contra a governação do
partido Frelimo. Seja como for, o estudo do paralelismo
político em Moçambique revela-se interessante e relevante
para testar as várias hipóteses levantadas sobre as relações
entre a imprensa e os partidos políticos.
Referências Bibliográficas
AFRIMAP, OSF-SA, OSIMP (2010) Radiodifusão pública em África: O
caso de Moçambique. OSISA: Rosebank. Acessado Agosto de 2013,
em http://www.afrimap.org/english/images/report/Moz%20
Broadcasting%20Survey%20Porto%20Web.pdf.
AFRIMAP & OPEN SOCIETY INITIATIEVE FOR SOUTHERN
AFRICA (2009) Moçambique - Democracia e participação política, consultado em Novembro de 2010, em http://www.afrimap.org/
english/images/report/AfriMAP_Moz_PolPart_Disc_EN.pdf,
acedido em 15 de Novembro de 2009.
AZEVEDO, F. A. (2006) Mídia e democracia no Brasil: relações entre o sistema de mídia e o sistema político OPINIÃO PÚBLICA.
Campinas, vol. 12, nº 1, Abril/Maio, 2006, p. 88-113.
BRITO, L., PEREIRA, J. C., ROSÁRIO, D e MANUEL, S. (2005)
Formação do voto e comportamento eleitoral dos Moçambicanos em 2004.
Maputo: EISA e CEP.
BONIN, M. H (2001) Panorama do pluralismo dos media: Uma visão geral
sobre o sector dos media em Moçambique. Maputo: UNESCO/PNUD.
CHICHAVA, S. e POHLMANN, J. (2010) Uma breve análise da imprensa moçambicana In: BRITO, L., CASTEL-BRANCO, C.
367
AF miolo corrupcao 3.indd 367
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
N., CHICHAVA, S. e FRANCISCO, A. Desafios para Moçambique
2010. Maputo: IESE.
HALLIN, D. C. e MANCINI, P. (2010) Sistema dos Média - Estudo
Comparativo: Três modelos de comunicação e Política. Lisboa: Livros
Horizonte.
McQUAIL, D. (2003) Teoria da Comunicação de Massas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa.
NHANALE, E. (2011) Contexto e dasafios do jornalismo no exercício
da liberdade de imprensa e promoção da cidadania em Moçambique. Maputo. Revista Comunicação & Sociedade, nº 1, Dezembro.
UNESCO (2006) The Cost of Press Freedom in Mozambique. Maputo:
UNESCO.
Legislação consultada
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE (1990)
Maputo: Imprensa Nacional.
LEI DE IMPRENSA – Lei nº 18/91 de 10 de Agosto. Maputo: Imprensa Nacional.
Artigos de Jornais
NOTÍCIAS (2013) Denúncia secretário-geral do SNJ: Persistem atropelos
à lei na comunicação social. Segunda-feira, 15 de Abril de 2013, Maputo, p. 7.
SAVANA (2013) Media privados na mira da Frelimo. Sábado, 27 de Julho de 2013, pp. 2-3.
O PAÍS (2013) Mabunda, L. Os médicos e os “agitadores profissionais”.
Segunda-feira, 14 de Janeiro de 2013, pp. 12 -13.
DE NOTÍCIAS (2013) Shikhani, R. Midia versus democracia, Subsídios
para análise: A mídia e o cenário político. Quarta-feira, 11 de Setembro de 2013, p. 7.
368
AF miolo corrupcao 3.indd 368
7/31/14 12:55 AM
Pa r t e II
“estudos empíricos”
AF miolo corrupcao 3.indd 369
7/31/14 12:55 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 370
7/31/14 12:55 AM
1 0 . V i s i b i l i d a d e d a c o b e rt u r a
jornalística da corrupção
política e indicadores
de opinião pública
Isabel Ferin Cunha
Introdução
Nesta comunicação pretende-se expor os resultados
de um estudo exploratório que visou analisar a visibilidade conferida à cobertura jornalística da corrupção política nos meios de comunicação social num ano marcado
pelas eleições legislativas de 2009. Salientamos que esta
exposição integra uma pesquisa mais extensa sobre a cobertura da corrupção política realizada pelos media, em
Portugal, entre 2005 e 2012. Assinalamos que neste período se realizaram três eleições legislativas, duas eleições
presidenciais e uma eleição europeia. Em 2005 e 2009, no
quadro das legislativas, foi eleito primeiro‑ministro José
Sócrates, secretário-geral do Partido Socialista (PS). Nas
primeiras eleições constituiu um governo maioritário159 e
nas eleições de 2009160, não obteve a maioria. Em 2011,
após resgate de Portugal pelas instituições internacionais
designadas genericamente a Troika (Comissão Europeia,
CE; Fundo Monetário Internacional, FMI; e Banco Cen159
Nas eleições legislativas de 2005, o Partido Socialista (PS) ganhou por
maioria (45. 05%). O segundo partido mais votado, o Partido Social Democrático (PSD) obteve 28.70%. Os votantes foram 65.03% e a abstenção
34.97% (Comissão de Eleições http://www.eleicoes.mj.pt/).
160
Nas eleições legislativas de 2009, o PS obteve 36.55% dos votos, o
PSD, 29.11%, dentro de 59.74% de votantes e 39.40% de abstenção (Comissão de Eleições http://www.eleicoes.mj.pt/).
371
AF miolo corrupcao 3.indd 371
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
tral Europeu, BCE), o primeiro-ministro socialista demitiu-se e foram convocadas novas eleições. Estas eleições
forma ganhas pelo Partido Social Democrata (PSD), que
em coligação com o terceiro partido mais votado formou governo161. As eleições presidenciais ocorreram em
2006162 e em janeiro de 2011, sendo nesta última reeleito
o anterior presidente, do PSD, Cavaco Silva, para um segundo mandato163. As Eleições Europeias ocorreram em
7 de Junho de 2009, com grande abstenção (cerca de 60%
dos votantes) e 31.7% votos no PSD164.
Entre 2005 e 2011 o aumento da perceção pública, em
Portugal, sobre a corrupção tem vindo a refletir-se nas
listagens divulgadas anualmente pelas organizações internacionais. Segundo os dados da Transparency International,
Portugal encontrava‑se em 2006 no 26º lugar; em 2008
em 32º; em 2009 no 35º e em 2010 na 32ª posição. Em
2011, o Eurobarómetro divulgou que 97% dos portugueses acreditavam que a corrupção era o principal problema do país. Apesar destes valores serem comuns a outros
três países do sul da Europa, que se encontram em dificuldades financeiras (Grécia, Espanha e Itália), convém
compreender como se constrói esta perceção em Portu-
161
Nas eleições legislativas de 2011, o PSD foi eleito por 38.65% dos
votos, seguiu-se o PS com 28.06% e o Centro Democrático Social (CDS)
obteve 11.70%. Foram votantes 58.07% dos eleitores e registou-se 41.10%
de abstenção (Comissão de Eleições http://www.eleicoes.mj.pt/).
162
Em 2006 o candidato Cavaco Silva, membro do PSD, foi eleito presidente por 50.59% de votos. Os votantes foram 62.60% dos eleitores e a
abstenção situou-se em 38.55% (Comissão de Eleições http://www.eleicoes.mj.pt/).
163
Em 2011 o candidato Cavaco Silva, membro do PSD e anterior presidente, foi reeleito presidente por 52.95% de votos, entre os 46.52% votantes. A abstenção registou o valor de 53.30%. (Comissão de Eleições http://
www.eleicoes.mj.pt/).
164
Cfr: http://www.eleicoes.mj.pt/Europeias2009/.
372
AF miolo corrupcao 3.indd 372
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
gal, uma vez que, conforme escreve Maia (2009: p. 115)
a maior parte das pessoas recolhe informação acerca das práticas de
corrupção e constrói a sua perceção acerca do problema, tendo como
base os canais televisivos, bem como a imprensa.
Como é sabido, a cobertura jornalística da política sofreu grandes alterações nas democracias ocidentais nas
últimas décadas, não só devido à alteração de fatores tecnológicos, mas sobretudo a mudanças nos sistemas económicos, financeiros e sociais. A crescente centralidade dos
media nas sociedades democráticas ocidentais teve como
consequência direta a adaptação dos sistemas políticos a
novos estratégias de comunicação política no sentido de
redefinir o espaço público. Entre estas salienta-se o recurso
a profissionais de assessoria e marketing político capazes
de criar campanhas e gerir períodos de governação, com
base na análise de tendências de mercado e nas espectativas políticas e económicas dos cidadãos. Estes são entendidos preferencialmente como audiências e consumidores
de produtos políticos, sendo que as estratégias políticas
tendem a privilegiar a performance mediática e a “esperança” vendida, que a “realidade” dos fatos. Neste contexto,
a comunicação política desenhada pelas assessorias incide
preferencialmente em determinadas figuras dos partidos,
aquelas que apresentam maior potencialidade face aos media, normalmente caracterizadas por apresentarem maior
capacidade para administrar impressões e cativar audiências. Este exercício de personalização política promove,
igualmente, aqueles que demonstram maior competência
na gestão da informação mínima, seja ela sound byte ou
image byte (Grabe, 2009).
Acresce a estas condições que uma das estratégias mais
impactantes da comunicação política é a criação de cenários e a espectacularização das ações de governação ou
de campanha (Rubim, 2009), por meio da encenação de
373
AF miolo corrupcao 3.indd 373
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
situações públicas – anúncios de programas eleitorais ou
de medidas de governo; visitas a mercados; inaugurações
de infraestruturas, etc.– centradas nas aparições dos políticos. Nestes rituais, altamente personalizados, a credibilidade e a persuasão dos atores políticos está sob constante escrutínio. Enquanto a performance da credibilidade
permite ao ator político desempenhar legitimamente, e
em representatividade, as funções que lhe foram confiadas aquando de eleições, a performance da persuasão determina a capacidade do ator político manter, em relação
aos cidadãos/eleitores, a sua reputação de credibilidade,
não só como ator mas também como cumpridor de um
programa político.
Neste cenário de personalização, a descredibilização de
um ator político é um processo que o ultrapassa, atingindo uma “geração partidária”– de onde fora escrutinado
aquele que reunia melhores condições de mediatização
política – e a estratégia de comunicação política que a respaldou. A gestão deste risco constante e fatal leva a que
as assessorias de comunicação política trabalhem o líder
político numa perspetiva de “jogo de estratégia”, criando
situações alternativas em diferentes frentes de oposição,
seja no interior da mesma formação partidária, seja face
aos opositores de outros partidos. No combate pela liderança, onde os media surgem ora como aliados ora como
oponentes, os rumores, as suspeições e as denúncias tornam-se matéria-prima facilmente transacionável. Um ilícito mediatizado ao adquirir a designação de escândalo, isto
é, ao ser percecionado como uma transgressão praticada
à revelia da ética política vigente, tende a tornar-se numa
mercadoria de valor acrescentado, quer para os oponentes políticos quer para os media (Thompson, 2000: p. 40).
Conforme escreveu Blankenburg (2002), a adesão à
União Europeia de muitos países do Sul e do Leste da
374
AF miolo corrupcao 3.indd 374
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Europa, e a consequente desregulamentação dos media,
originou uma maior competição pelo valor-notícia e uma
nova cultura profissional dos jornalistas, fundada simultaneamente na competição pelo mercado de audiências e
nos valores democráticos. Ao mesmo tempo, as estratégias de visibilidade dos líderes políticos, as mudanças de
tecnologia e comunicação e de vigilância, as mudanças na
cultura jornalística e na cultura política, bem como a crescente regulamentação da vida política, favorecem o surgimento de escândalos muitas vezes associados à corrupção e
ao suborno de tal modo que esses conceitos parecem inextricavelmente
ligados (Thompson, 2000: p.55). Não sendo um fenómeno
novo, como demonstra este autor, não é por acaso que,
a partir da segunda metade do século XX, o escândalo
se tornou um flagelo das democracias. Existindo muitas
espécies de escândalos é em torno das denúncias de corrupção política que determinados fenómenos adquirem
essa dimensão mediática, mobilizando recursos de diversa ordem para denunciar abusos de poder, sobretudo de
opositores, na obtenção de ganhos indevidos. Estas denúncias ocorrem fundamentalmente em quatro situaçõestipo: na competição por cargos políticos, no exercício de
cargos públicos, na ação de legislar e governar, bem como
após o abandono de cargos de governação, mantendo-se,
contudo, determinadas funções político‑partidárias (Heidenheimer e Johnston, 2002).
Da
perceção à cobertura
jornalística da corrupção política
Neste texto, tal como referimos, o nosso objetivo é
refletir sobre a cobertura jornalística da corrupção política, tendo como estudo de caso o ano de 2009. Enquan375
AF miolo corrupcao 3.indd 375
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
to a cobertura jornalística da corrupção política constitui a forma como os meios de comunicação abordam o
tema da corrupção política, a perceção da corrupção política é o ato de apreensão cognitiva individual, ou coletivo, que os cidadãos fazem daquele fenómeno. Assumese em concordância com Sousa e Triães (2008, 2011) e
Maia (2006, 2011) que a perceção da corrupção política
advém, fundamentalmente, da informação veiculada pelos media e sobretudo, no caso português, da cobertura
intensiva e extensiva que a televisão faz de determinados
casos envolvendo políticos ou ex‑políticos que desempenham, ou desempenharam, altos cargos na democracia.
Convém, neste contexto, percebermos até que ponto a
perceção da corrupção política pode ter impacto na democracia e na opinião pública dos cidadãos sobre o regime e os seus agentes.
A partir do início do milénio, num quadro de crise
económica crescente em Portugal, acentuou-se a visibilidade das denúncias de corrupção política nos media.
Para Morgado e Vegar (2003) o aumento da corrupção
deve-se por um lado ao fluxo de verbas provenientes da
União Europeia no âmbito dos Fundos Estruturais, aplicados sem a adequada fiscalização. Os mesmos autores
atribuem, ainda, o aumento da corrupção à “ perceção
de impunidade” que parece envolver os “crimes de colarinho branco” dada a incapacidade do sistema penal se
modernizar no combate a este novo tipo de criminalidade. Por outro lado, como refere Maia (2006), o número
de casos de corrupção registados não tem correspondência aos processos julgados, o que facilita uma perceção negativa, associada à impunidade, sobre a corrupção
política em Portugal.
376
AF miolo corrupcao 3.indd 376
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Gráfico 1. Gráfico evolutivo da relação entre processos
registados e processos acusados
(Fonte: Maia, A. J., s.d. A percepção social da corrupção em Portugal
www.bocc.ubi.pt , acedido em Julho de 2012).
Ainda, segundo o mesmo autor, o número de arguidos acusados difere largamente do número de arguidos
condenados.
Gráfico 2. Gráfico evolutivo da relação entre arguidos
acusados e arguidos condenados
(Fonte: Maia, A. J., s.d. A percepção social da corrupção em Portugal
www.bocc.ubi.pt , acedido em Julho de 2012).
377
AF miolo corrupcao 3.indd 377
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Estes dois gráficos demonstram a disparidade entre
acusações e condenações, o que nos permite depreender que, tendo sido dada grande visibilidade, através do
agendamento, aos crimes de corrupção política nos media,
houve, provavelmente, uma visibilidade correspondente aos desfechos dos processos. Esta situação acarreta a
perceção de uma imagem de ineficácia do sistema judicial
e, em simultâneo, da impunidade dos políticos envolvidos, envolvendo um crescente descrédito da democracia.
A explicação para a visibilidade concedida pelos media a
estes issues pode estar quer no sistema judiciário quer no
sistema mediático. Como refere Maia (2011), parafraseando anteriores autores, o sistema judiciário parece não ter
instrumentos que permitam apreender muitos dos atuais
crimes de corrupção, que não encontram na lei uma tipificação adequada. É neste sentido que se pode compreender
uma recente declaração de uma procuradora-geral adjunta
afirmando que “Portugal não é um país corrupto” e que
essa perceção da opinião pública advém da enfase dada
ao tema pelos meios de comunicação social que acabam
por se refletir nos relatórios das agências internacionais165.
A Procuradora-Geral Adjunta Cândida Almeida afirmou sábado que
“Portugal não é um país corrupto” e que existe uma “perceção” exagerada
da dimensão deste crime, sublinhando que é dos poucos Estados europeus
onde se investigam “grandes negócios do Estado”. “O nosso país não é um
país corrupto, os nossos políticos não são políticos corruptos, os nossos
dirigentes não são dirigentes corruptos. Portugal não é um país corrupto.
Existe corrupção obviamente, mas rejeito qualquer afirmação simplista e
generalizada, de que o país está completamente alheado dos direitos, de um
comportamento ético (...) de que é um país de corruptos”, disse a diretora
do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), numa
conferência na Universidade de Verão do PSD, em Castelo de Vide. Depois
de insistir várias vezes nesta ideia, a magistrada disse que, porém, não é
essa a “perceção” da opinião pública, referindo que os relatórios da orga165
378
AF miolo corrupcao 3.indd 378
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Estas reflexões parecem confirmar a perceção de que
os media se interessam preferencialmente pela desocultação dos crimes, pelo registo dos processos e pela identificação dos arguidos em detrimento da caraterização dos
ilícitos, da explicação das causas que levam à absolvição
ou à punição. Estes procedimentos coadunam-se, contudo, às exigências económicas e financeiras despoletadas
pela crise e pela luta pelas audiências, em que a utilização
frequente da palavra “corrupção” associada à desocultação de potenciais crimes de corrupção política se torna
uma matéria-prima de valor acrescentado, sobretudo quando envolve figuras públicas destacadas (Allern e Pollack,
2012: pp. 9-28). No entanto, consideramos que é matéria
da pesquisa confirmar se uma maior intensidade e visibilidade da cobertura jornalística da corrupção política interferem nos índices de audiências ou têm consequências
diretas na perceção e na opinião pública.
A perceção dos fenómenos de corrupção política nos
media está vinculada às rotinas da cobertura jornalística,
nomeadamente ao agendamento, isto é, à forma como
os jornalistas, e os meios de comunicação, selecionam
e dão visibilidade a determinados temas, em detrimento
nização Transparência Internacional Portugal e os meios de comunicação
social “arrasam-nos permanentemente” com a ideia de que o país “é corrupto”. Cândida Almeida sublinhou que, no caso da Transparência Internacional, os relatórios “refletem tão só a perceção” que existem num país
dois níveis de corrupção e que, no que toca aos meios de comunicação
social e a declarações públicas nesse sentido, a maioria dos casos não têm
fundamento ou referem-se a outros crimes, sendo o mais frequente a fraude
fiscal. Cfr. Expresso, 02/09/2012 “Cândida Almeida: os nossos políticos
não são corruptos. Diretora do Departamento Central de Investigação e
Acção Penal diz que Portugal é um dos poucos países europeus onde se investigam grandes negócios do Estado”. (http://expresso.sapo.pt/candidaalmeida-os-nossos-politicos-nao-sao-corruptos=f750505#ixzz269xEGl7y)
(acedido em setembro de 2012).
379
AF miolo corrupcao 3.indd 379
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
de outros. Segundo McCombs e Show (1972) o agendamento praticado pelos media tem dois resultados complementares, por um lado determina os temas em que os cidadãos pensam, por outro, condiciona a forma como os
cidadãos pensam sobre esses temas. Em simultâneo, os
issues seriam percecionados pelos cidadãos em função da
visibilidade que lhes é concedida pelos media. Por exemplo, a maior ou menor saliência concedida pelos media a
casos de corrupção teria como consequência uma maior
ou menor perceção na opinião pública deste fenómeno.
Um jornal televisivo focado maioritariamente em peças
que abordam ilícitos cometidos por atores políticos dará
a perceção que estes são todos prevaricadores. No seguimento desta afirmação, talvez seja prudente enfatizar a
necessidade de entender até que ponto a intensidade da
cobertura jornalística da corrupção política se reflete na
opinião pública, distinguindo opinião pública da perceção
sobre este fenómeno político.
As revisões que foram feitas às teorias do agendamento vieram complexificar esta visão alicerçada no princípio
de estímulo-resposta e introduzir o princípio de enquadramento das agendas em função dos interesses de instituições e cidadãos (McCombs, 2004), bem como a ideia
que o agendamento seria um equilíbrio entre três agendas
paralelas, a do campo político, a dos media e a dos cidadãos (Wever, McCombs, Show, 1998). Para estes autores
a preponderância de uma das agendas determinaria a submissão dos interesses das outras, mas ao mesmo tempo
exigiria um delicado trabalho de equilíbrio entre todos os
envolvidos, o que só poderá ser atingido com recurso a
negociações entre os diversos campos. Esta hipótese sob
a formulação da agenda na cobertura jornalística permitenos pensar que a visibilidade dada aos temas da corrupção política poderá estar em consonância não só com a
380
AF miolo corrupcao 3.indd 380
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
necessidade e estimular as audiências, mas também com
interesses políticos de opositores (internos e externos ao
campo político), satisfazendo, em simultâneo, expectativas
dos cidadãos – inconformados com os rumos da política
e da economia, a sua fraca capacidade de intervenção nos
destinos coletivos ou com a lentidão da justiça – que, nos
media, buscariam encontrar justiça e “culpados”.
Na construção da perceção sobre a corrupção política é ainda importante rever os conceitos de framing e priming (Scheufele, 2000), assim como a ideia de modelo de
agenda em cascata (Entman, 2004). Segundo Scheufele, framing (enquadramento) é um conceito que incide sobre as
formas como o jornalismo confere, de forma continuada e persistente, atributos a determinados temas. Neste
processo a opinião pública tende a apreender os enquadramentos em função das suas disposições individuais, o
que determina a perceção e a atribuição de rótulos a cada
fenómeno, ou a um conjunto de fenómenos reportados.
Partindo deste pressuposto, poder-se-ia ter como hipótese
de trabalho que o enquadramento da corrupção política,
tenderá a adquirir um padrão de enquadramento jornalístico nos media portugueses que, por sua vez, determinará
as orientações da perceção e da opinião pública.
Um outro conceito importante é o priming (que poderemos traduzir por saliência pública) que consiste no mecanismo derivado das escolhas que os media, e os jornalistas,
realizam no momento de agendar determinados temas e
identificar os principais atores políticos. O priming decorre, deste modo, dos procedimentos de agendamento que
ao atribuir maior proeminência, destaque ou relevância a
determinados temas ou atores políticos, facilitam a interiorização pela opinião pública da sua “saliência”, ao mesmo
tempo que agregam à sua volta atributos que funcionam
como “atalhos cognitivos”. Por exemplo, a saliência (pri381
AF miolo corrupcao 3.indd 381
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
ming) conferida a um determinado político, está sempre
associada a temas e atributos específicos. A enunciação
desses temas e atributos leva à identificação, pelos cidadãos, desse político; a nomeação nos media desse político
carrega, por sua vez, o tema e o conjunto de atributos que
lhe estão associados.
O modelo proposto por Entman (2004) denominado
cascading activation model pretende explicar a atenção despendida pelo público a determinados fatos ou acontecimentos. Para o autor, o enquadramento que os media dão aos
assuntos decorre de um processo complexo, constituído
por múltiplas etapas, que tem inicio em negociações entre
atores políticos, ou grupos de interesse, e os media, antes
de chegar ao domínio público. Entman defende que as
estórias e os pontos de vista em circulação nos media são
produzidos no topo da hierarquia política. Esta primeira
etapa no processo de agenda-setting é posteriormente filtrada por um segundo nível de elites políticas que interage com os media, sendo que quanto maior for o consenso entre as elites políticas, maior será a sua capacidade
de definir os enquadramentos dos media; pelo contrário,
quanto maior for a indecisão ou desacordo entre as elites
políticas, maior será a influência dos media na estruturação
do tema166. Ainda que reconheça importância à opinião
pública, o autor coloca-a no fim de uma cadeia de valor,
passível de ser avaliada a partir de sondagens de opinião,
votos eleitorais ou audiências dos media.
Grabe (2009), num trabalho sobre a importância da
análise da imagem das notícias políticas na televisão,
critica as teorias sobre as notícias, principalmente as
que discorrem sobre o agenda-setting e não têm em conUm postulado muito pertinente quando se observa a cobertura realizada pelos media mainstream sobre a crise na Europa nos anos de 2011-2012.
166
382
AF miolo corrupcao 3.indd 382
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
sideração a componente visual. Apresentando inúmeros
exemplos de campanhas e atos eleitorais nos Estados
Unidos, salienta que os eleitores formam a sua opinião
a partir de múltiplos elementos, sublinhando que entre
estes estão os não-verbais e os visuais. A autora nota,
ainda, que na televisão as notícias são difíceis de analisar visualmente e são sistematicamente isoladas e quantificadas, utilizando-se narrativas verbais (transcrições
de áudio) ou categorias visuais codificadas, como forma de explicitar a cobertura jornalística. Estes recursos
não permitem isolar os efeitos visuais e demonstram
que as barreiras ontológicas, teóricas e metodológicas
têm dificultado os estudos visuais e contribuído para o
desconhecimento de como funcionam os media, sobretudo a televisão, em democracia. No seguimento desta
observação teremos que ter em consideração a natureza
da televisão como media de fluxo centrado preferencialmente na acumulação de imagens e sons e não necessariamente nas palavras.
Enquanto os procedimentos de agendamento, framing
e priming nos ajudam a compreender os fenómenos de
perceção da corrupção nos media, o modelo em cascata
vem alertar-nos para os potenciais interesses – dentro do
campo político e mediático – que circulam em torno da
denúncia dos crimes de corrupção política. Este modelo aponta para a capacidade dos media gerarem agendas
paralelas e autónomas, com capacidade para se retroalimentarem à revelia do sistema político e da opinião pública. Assim, uma outra hipótese que avançamos é que a
sinergia gerada pela intensidade e pela extensividade da
cobertura jornalística dos fenómenos de corrupção política, em todos os meios de comunicação, é que determinaria a perceção e a opinião pública dos fenómenos de
corrupção política.
383
AF miolo corrupcao 3.indd 383
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Como referimos anteriormente, a corrupção política é, por si só, uma matéria‑prima de valor acrescentado
dentro da lógica de competição por audiências. Ressaltamos que em alguns casos a imprensa (escrita, radiofónica
e televisiva) apostou no jornalismo de investigação, mas
ou acabou por ser censurada por agentes políticos – caso
semanário O Sol, caso Jornal da sexta-feira da TVI, sobre
as denúncias do Freeport e represálias envolvendo o corte
da publicidade institucional do Estado a estes meios – ou
estrangulada pelos custos da investigação.
As pressões políticas e o alastrar da crise económica e
financeira, bem como a exigência de redução de despesas fez com que as rotinas dos media se voltassem para as
fontes disponíveis e anónimas, normalmente localizadas
no campo da justiça (Ministério Público, Polícia Judiciária
e Tribunais). Como refere Leblanc (1998: pp. 60-70), os
media e a justiça têm, pelo menos, dois objetivos comuns:
descobrir a verdade e fazer com que publicamente ela seja
reposta. No entanto, enquanto o juiz surge aos olhos do
cidadão comum como um justiceiro, cuja ação está travada por obrigações e códigos, o jornalista parece estar
aparentemente mais livre, movendo-se por uma representação da justiça que transcende os limites da instituição.
Esta perceção pública da justiça faz com que os media assumam a intermediação entre poderes, exercendo ora o
papel de acusadores, ora de advogados de defesa, ora de
juízes nos casos com maior potencial mediático. Nestes
caso, é também frequente a violação do segredo de justiça,
promovida pelos media através da divulgação de informações de fonte judicial, gerando um conhecimento parcial
dos factos designada “informação hipótese” e os julgamentos na praça-pública. A televisão, por ser um meio de
fluxo, tendo a consolidar os cenários e atores envolvidos
através da apresentação exaustiva de imagens (images bi384
AF miolo corrupcao 3.indd 384
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
tes) e de sons (sound bites), ao mesmo tempo que contribui
para a construção de rotulagens e atalhos cognitivos na
perspetiva que identificamos anteriormente como priming.
Os
casos
A análise que apresentamos nesta comunicação incide em três casos que perpassaram o ano de 2009: o caso
Freeport; o caso BPN e o caso Face Oculta. Teremos ainda em consideração que as eleições para a Assembleia da
República, que definem a eleição do partido que indicará
o primeiro-ministro e formará governo, se realizaram em
Setembro daquele ano, já num contexto de crise de dívida soberana mas, ainda, sem a intervenção das três instituições internacionais que hoje tutelam Portugal (Banco
Central Europeu, BCE; Fundo Monetário Europeu, FMI
e Comissão Europeia, CE). Nas urnas os cidadão atribuíram ao PS novo mandato por minoria, permitindo, deste
modo, a nomeação pelo Presidente da República do primeiro-ministro José Sócrates. Os estudos realizados sobre esta campanha eleitoral, que decorreu entre 13 e 25
de setembro, observaram que os temas mais focados nos
canais televisivos de sinal aberto foram, para além das “
Ações de Campanha” (42,3%), as questões referentes à
“Economia, Finanças e Crise” (19,9%) e aos “Escândalos e Processos Judiciais” (5,4%) (Cunha, 2010; Cunha,
2012). Nos canais de acesso pago, os temas “Escândalos e Processos Judiciais” (9,7%) e “Economia, Finanças
e Crise” (4,9%) ocuparam, respetivamente, o terceiro e
quarto lugar entre os temas mais referenciados na cobertura destas eleições. Estes exemplos ilustram que a cobertura jornalística encontra-se muito atenta à desocultação
de “casos”, identificados como corrupção política onde
385
AF miolo corrupcao 3.indd 385
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
adquirem grande visibilidade atores políticos, ou ex-dirigentes políticos, dos três partidos com maior representatividade parlamentar (PS; PPD/PSD e Centro Democrático Social, CDS).
Para melhor compreender os casos que nos propomos analisar evocamos a tipologia avançada por Sousa
(2011: pp. 40-42) que considera que a corrupção política
em Portugal, pode ser esporádica ou fragmentada; estrutural ou cultural; sistemática ou política; metasistemática
ou de “colarinho branco”. Segundo o autor a primeira
forma estende-se a todo o tipo de atividades e não sendo
premeditada, tende a viver de oportunidades e de atores
circunstanciais e de baixos recursos e custos (por exemplo, “tirar vantagens”). A corrupção estrutural ou cultural
é frequente, não apresenta atores permanentes, embora
possa ter atores privilegiados, dispondo de baixos custos
e sendo transversal a todos os grupos socias, formações
partidárias e governos (por exemplo, a “cunha/pistolão”).
A terceira e quarta forma de corrupção, anteriormente
enunciadas, envolvem elevados recursos e sofisticadas ferramentas tecnológicas e financeiras, mobilizam diversos
níveis de mediadores e atores circunstanciais, muitas vezes
desconhecedores dos objetivos finais, mas encarregados
de operações e transações arriscadas. O que tende a distinguir a corrupção sistemática ou política da metasistemática é a sua dimensão internacional ou multinacional.
Os três casos que pretendemos analisar enquadram-se
nestas duas últimas formas de corrupção política. A cobertura jornalística desses casos constituiu, ainda, um tema
polémico, envolvendo acusações recíprocas entre agentes
políticos, jornalistas e agentes da justiça, provocadas por
fugas de informação sobre elementos dos processos em
segredo de justiça, tais como transcrições de escutas telefónicas. Essas fugas de informação deram origem a in386
AF miolo corrupcao 3.indd 386
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
quéritos judiciais instaurados a jornalistas e a órgãos de
comunicação social pelo Procurador-Geral da República.
Os três casos selecionados podem ser caracterizados
da seguinte maneira:
1. Freeport – O “Caso Freeport”, reporta-se ao ano
de 1999, quando uma multinacional irlandesa designada
McKi­n­ney, do ramo da promoção imobiliária, apresenta no
Instituto da Conservação da Natureza (ICN) um pedido
de informação acerca da possibilidade de reconversão da
antiga fábrica de pneus Firestone num complexo lúdicocomercial, a que chamaria de “Designer Village”. O local
estava dentro da Zona de Protecção Especial (ZPE) da
Reserva Natural do Estuário do Tejo e, para se concretizar o empreendimento, era necessário alterar os limites
legalmente definidos dessa ZPE. Em 2000 é contratada a
empresa de consultadoria Smith&Pedro para acompanhar
todas as burocracias com vista à legalização do empreendimento em Portugal. Em Fevereiro, o advogado Manuel
Pedro, sócio da consultora, foi nomeado assessor principal
para aquela Reserva Natural, juntamente com um outro
ambientalista e professor universitário. Um estudo de impacte ambiental, contendo as recomendações anteriores, é
realizado. A 10 de junho de 2000, inicia-se o processo de
avaliação, proposto pela McKinney e executado pela PlaniPlano. Em outubro do mesmo ano, é emitida uma Declaração de Desconformidade, na qual é Expresso que o Estudo não permitia a avaliação dos eventuais impactes do
projeto, como tal, o projeto seria cancelado. A McKinney
perde o interesse no investimento e vende o terreno à Freeport Leisure (2001) uma empresa especializada em outlets.
O então secretário de Estado do Ordenamento do Território e da Conservação da Natureza, pede ao ICN que
reavalie os limites da ZPE do Estuário do Tejo, pois entende que não se deveria aplicar à área em questão o esta387
AF miolo corrupcao 3.indd 387
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
tuto de ZPE. A Freeport Leisure apresenta um novo Estudo
de Impacte Ambiental elaborado pela Mitchell MCFarlane
& Partner. Surgem movimentações na embaixada inglesa
com vista a pressionar a aprovação do projeto junto do
então ministro do Ambiente, José Sócrates. É neste período que surgem as acusações de que a Smith&Pedro terá
solicitado 4 milhões de libras para desbloquear o licenciamento do Freeport. Este dinheiro seria para os próprios,
que foram constituídos arguidos e ilibados, em julho de
2012, ou para o mencionado ministro do PS, eleito primeiro-ministro em 2005. O caso Freeport foi despoletado
nesse ano através de uma carta anónima, posteriormente identificada como redigida por um militante do CDS,
acusando o então ministro do Ambiente de ter recebido
luvas a troco da autorização para construção de um outlet
numa zona dita protegida situada no estuário do rio Tejo,
financiado pelo consórcio britânico Freeport. A polícia investiga as denúncias e surgem inúmeras referências às
luvas que José Socrates, ou familiares, terão recebido. A
polícia inglesa, através do Serious Fraud Office, investiga a
empresa Carlyle, que se tornou dona do empreendimento em 2007. O Eurojust, organização de Justiça que coordena atividades neste âmbito na Europa, é coordenado
por Lopes da Mota magistrado do Ministério Público de
carreira (amigo do Primeiro-Ministro) e presidente dessa
instituição. Foi acusado de pressionar os investigadores do
Freeport (que eram seus colegas) a não darem seguimento
ao processo e demitiu-se depois de lhe ter sido aberto um
processo disciplinar167. Durante o julgamento do processo
foram constituídos arguidos sete cidadãos e posteriormente todos ilibados. O primeiro-ministro, nunca viria a ser
constituído arguido nem a ser ouvido como testemunha;
167
Cfr: http://www.jn.pt/PaginaInicial/Nacional/Interior.aspx? content_
id=1229784.
388
AF miolo corrupcao 3.indd 388
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
2. BPN: (Banco Português de Negócios): Em 1993 foi
criado o BPN, vocacionado para a banca de investimentos.
Em 1998, um anterior ministro da economia do atual presidente da República, Cavaco Silva, assumiu a liderança e
criou a Sociedade Lusa de Negócios, destinada a agregar
os investimentos não financeiros do grupo. Para esta sociedade entraram muitos ex-ministros e pessoal político
do então partido da oposição, PSD. Entre 2002 e 2008
o grupo compra alguns bancos e corretoras, nomeadamente em Cabo-Verde e no Brasil, não tendo declarado
algumas operações ao Banco de Portugal, nem clarificado a sua estrutura acionista. Em Novembro de 2008, e
após uma investigação policial que incidiu sobre diversos
agentes financeiros, o BPN foi nacionalizado devido às
perdas acumuladas de cerca de 700 milhões de euros. Investigações levadas a cabo pela polícia levaram à suspeita de que foram praticados crimes de burla qualificada,
falsificação, fraude fiscal, corrupção e branqueamento de
capitais, no montante total de 100 milhões de euros. Entre as personalidades com ligações aos negócios do BPN
surge um conselheiro de Estado e ex-membros de anteriores governos do PSD;
3. Face Oculta: caso noticiado em 2009 no decurso
de uma investigação da Polícia Judiciária de Aveiro desencadeou em vários pontos do país, diligências relacionadas com alegados crimes económicos (lavagem de dinheiro, corrupção política e evasão fiscal) de um grupo
empresarial, cujo responsável montou uma rede envolvendo antigos titulares de cargos governativos, funcionários autárquicos e de empresas públicas, e militares, com
o objetivo de obter benefícios para os negócios das suas
empresas na área da seleção, recolha e tratamento de resíduos. O caso conta com 36 arguidos (34 pessoas e duas
empresas) entre eles destacados membros políticos do PS,
389
AF miolo corrupcao 3.indd 389
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
e altos funcionários de empresas públicas. O Ministério
Público acusa o dono das empresas de criar uma teia de
influências que permitia obter informação privilegiada e
por conseguinte, vantagens para o seu grupo empresarial. Nesta teia encontram-se as maiores empresas públicas portuguesas (REN, REFER, CP e EDP) e, também,
grandes empresas privadas. O processo ganhou grande
visibilidade mediática quando foi denunciada a existência
de escutas telefónicas e mensagens escritas trocadas entre
o primeiro-ministro José Sócrates e o principal político
constituído arguido (Armando Vara). O caso encontra-se,
ainda, em julgamento.
As
metodologias
O nosso objetivo é perceber a intensidade, destaque atribuído pelos media a estes casos num ano de eleições legislativas, tendo em conta os estudos dos efeitos de agendamento desenvolvidos pelos autores anteriormente citados.
O trabalho é exploratório e assenta em dados recolhidos
nos sítios online dos meios de comunicação analisados. A
nossa pesquisa procura responder às seguintes perguntas:
Como os meios de comunicação social agendam o tema
corrupção política? Que intensidade e longevidade apresentam essas agendas na imprensa, na televisão e na rádio,
ao longo do ano de 2009? Em que medida os casos se sobrepõem, ou se substituem, nos media? Quais são os protagonistas destas notícias? Ao encontrar respostas para estas
perguntas procuraremos perceber como “potencialmente”
os meios de comunicação poderão interferir na perceção
da corrupção política e, por conseguinte, na intenção de
voto dos cidadãos.
390
AF miolo corrupcao 3.indd 390
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
A estratégia metodológica que se seguiu, na busca de
resposta às perguntas atrás enunciadas envolve uma dimensão contextual e numa dimensão analítica.
Com o objetivo de contextualizar os títulos da imprensa Diário de Notícias (DN) e Correio da Manhã (CM) e a estação de rádio (TSF) que compõem o nosso corpus, procedemos à identificação da propriedade. Notamos que
o DN e o CM são os jornais diários de maior circulação
nacional no seu segmento, respetivamente jornal de referência e jornal tabloide. A TSF é a maior estação de notícias privada. Estes meios de comunicação têm, também,
sites online onde está depositada a informação veiculada
nos anos que constituem o nosso corpus, sendo por isso
de fácil acesso168.
Na imprensa o corpus abrange meios vocacionados
para públicos distintos e pertencentes a dois proprietários distintos. O DN, um jornal de referência, é hoje propriedade da Global Notícias, pertencente ao Grupo Controlinveste Media. Foi fundado em 1864 e a sua história, ao
longo deste século e meio, reflete as vicissitudes políticas
do país: empresa estatal no âmbito da ditadura salazarista; privatizado na “primavera marcelista”, nacionalizado
na revolução do 25 de Abril de 1974, reprivatizado. Tem
uma tiragem média de cerca de 29 mil exemplares (2011)
e circulação nacional. O CM, um tabloide, é, também, um
jornal diário, do Grupo Cofina. Trata-se do jornal com mais
vendas em Portugal, atingindo 40% de cota de mercado
(2011). A TSF é uma rádio de notícias fundada em 1989,
Os sites online dos meios analisados foram consultados em julho de
2012: DN online http://www.dn.pt/pesquisa/default.aspx?Pesquisa; CM
online http://pesquisa.cmjornal.xl.pt/?; TSF online http://www.tsf.pt/
pesquisa/default.aspx?Pesquisa, acedidos em Julho de 2012).
168
391
AF miolo corrupcao 3.indd 391
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
sob a forma de cooperativa, que atualmente pertence ao
Grupo Controlinveste Media. Convém ainda referir que no
período em análise os governos, tanto do PS (2005-2011)
como atualmente do PSD (2011-2012), foram acusados
de tentar interferir nas coberturas noticiosas, no sentido
de controlar a “má imprensa”.
A dimensão analítica na imprensa decorre do levantamento dos conteúdos referente a uma amostra de conveniência de notícias online de imprensa diária DN e CM e
da rádio (TSF). A identificação do universo das peças na
imprensa e na rádio foi realizada por busca por palavrachave nas edições digitais.
Na televisão a dimensão de contextualização desenha
os contornos da propriedade e da audiência. A contextualização das estações de televisão de sinal aberto, RTP1 e
TVI, tem em conta os dados sobre propriedade e audiências de televisão de todos os quatro canais abertos, com
especial enfase nos jornais televisivos e outros programas dedicados à campanha legislativa de 2009. Os quatro
canais de acesso livre integram os grandes grupos portugueses de comunicação que se caracterizam por apresentarem áreas de negócios cada vez mais diversificadas.
A RTP1 e a RTP2 pertencem ao grupo Rádio Televisão
de Portugal, SA (RTP), a SIC (Sociedade Independente
de Comunicação) ao grupo Impresa e a TVI (Televisão
Independente) ao grupo Media Capital. A RTP detém a
RTP (televisão) que inclui os canais RTP1 e RTP2, como
se referiu, bem como os canais das regiões autónomas da
Madeira e dos Açores (RTP Madeira e RTP Açores), os
canais internacionais RTP Internacional e RTP África,
bem como os canais temáticos RTPN (notícias), a RTP
Memória e a RTP Mobile. Convém assinalar que todos os
canais podem ser visualizados em online (http://www.rtp.
pt/ ). A SIC (Sociedade Independente de Comunicação) é
392
AF miolo corrupcao 3.indd 392
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
propriedade da Impresa que desenvolve os seus negócios
em três áreas fundamentais: Televisão (cerca de 70,0%),
Publishing (cerca de 27,0%) e Digital (cerca de 2,0%). Na
televisão detém os canais SIC, SIC Notícias, SIC Radical,
SIC Mulher, SIC Online (http://sic.sapo.pt/online/), SIC
Internacional, assim como a Lisboa TV. A Media Capital
proprietária da TVI estrutura as suas atividades nas seguintes áreas de negócio: televisão, produção audiovisual, música, cinema, rádio e Internet. Na televisão a Media Capital detém a TVI, a TVI 24h e TVI online (www.tvi.iol.pt/ ).
Em 2009, os resultados finais da audiência total dos
quatro canais de sinal aberto alcançam os seguintes dados, segundo a empresa MediaMonitor/Marktest Audimetria: 27% a TVI; 26% a SIC e a RTP1 e 21% a RTP2.
Os indicadores do share de audiências registaram: TVI
- 28.7%; RTP1 - 24.0%; SIC - 23.4%; RTP2 - 5.8%. Salienta-se, ainda, que os canais por cabo e pagos, onde se
incluem as televisões dedicadas à informação, obtiveram
18.2% das audiências. Notamos que o mês de Janeiro foi
aquele que registou o valor mais elevado em audiência
média de televisão (16.0%) e julho (mês de verão e de
férias) o valor mais baixo (13.7%). Os programas mais
vistos foram os jogos de futebol, as telenovelas e um
programa de humor político que acompanhou a campanha legislativa de 2009, intitulado “Gato fedorento
esmiuça os sufrágios”, exibido na SIC. A TVI liderou a
lista dos 11 programas mais vistos do ano, seguindo-se a
RTP1. Os jornais televisivos da TVI, sobretudo o Jornal
de sexta-feira apresentado pela jornalista Manuela Moura Guedes, estiveram sempre no Top dos programas de
informação mais vistos (cerca de 12% de rating e 33%
de share, segundo os dados da empresa MediaMonitor/
Marktest Audimetria).Como referimos anteriormente,
este programa foi cancelado e a jornalista despedida,
393
AF miolo corrupcao 3.indd 393
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
sendo o primeiro-ministro acusado de ter pressionado a
estação de televisão169.
A dimensão analítica na televisão envolve os dados
recolhidos no sítio da empresa MarktestMediaMonitor170
sobre o volume de notícias emitidos nos canais de sinal
aberto, sobre o protagonismo dos atores políticos nos
noticiários, bem como os barómetros políticos171 assentes
em sondagens realizadas por esta empresa.
Salientamos que se trata de um estudo exploratório
que incide na análise dos sítios noticiosos dos canais da
RTP1 e TVI172, onde os critérios de inserção não estão
publicitados. Neste perspetiva, consideramos a informação disponibilizada nestes sítios o universo de análise e o
critério de seleção é a palavra-chave correspondente ao
caso: Freeport, BPN e Face Oculta. O objetivo da análise
foi aprofundar a intensidade da cobertura jornalística referente a estes casos de corrupção política e perceber se
apresentam algum padrão de cobertura, num ano pautado
por eleições e que, simultaneamente, corresponde a um
final de mandato de um primeiro-ministro173. Com base
nos resultados pretendemos aprofundar as bases sobre as
quais se constroem as perceções dos cidadãos portugueses sobre a corrupção (Sousa e Triães, 2011).
169
Cfr: Informação, 03/09/2009. Jornal de Sexta suspenso: Direcção de
Informação da TVI demite-se. (http://www1.ionline.pt/conteudo/21214jornal-sexta-suspenso-direccao-informacao-da-tvi-demite-se-) (acedido em
Setembro de 2012).
170
Cfr: (http://www.marktest.com/wap/a/n/id~1a2e.aspx).
171
Cfr: Barómetro político Marktest (http://www.marktest.com/wap/
a/p/id~e9.aspx)
172
Cfr: RTP1: (http://pesquisa.rtp.pt/) e TVI http://www.tvi.iol.pt/
pesquisa/).
173
Num trabalho anteriormente desenvolvido no CIMJ, sobre os Atos
de democracia (Ferin, I. (Coord.) 2007), observou-se que o último ano de
governo dos primeiros-ministros tende a apresentar um padrão jornalístico
de cobertura focado em aspetos “polémicos” e “negativos”.
394
AF miolo corrupcao 3.indd 394
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
A n á l is e
dos dados de imprensa
e rádio
No ano de 2009, o DN, o CM e a TSF apresentam 4
909 peças distribuídas pelos três casos em análise. Na leitura dos dados recolhidos assinalamos que o caso Face Oculta
chega à imprensa em outubro condicionando, dessa forma, a leitura dos dados. Observamos, desta forma que é o
DN, um diário de referência, que atribui maior visibilidade
aos referidos casos (2 859 peças), nomeadamente ao BPN
(1 153). No CM (1 246 peças), um jornal tabloide acusado
frequentemente de sensacionalismo, os casos Freeport (529
peças) e BPN (500 peças) contabilizam um número de peças muito semelhante, com ligeira saliência do primeiro.
Na TSF, esses dois casos apresentam também uma grande
saliência, mas a proeminência é do caso BPN (304 peças).
Gráfico 3. Número de peças registadas na imprensa
e na rádio no ano de 2009, relativas aos casos
Freeport, BPN, Face Oculta
(Fonte dos dados: DN e CM online; DN online http://www.dn.pt/
pesquisa/default.aspx?Pesquisa; CM online http://pesquisa.
cmjornal.xl.pt/?; TSF online http://www.tsf.pt/pesquisa/default.
aspx?Pesquisa, acedidos em Julho de 2012).
395
AF miolo corrupcao 3.indd 395
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Nos dados consultados em Julho de 2012, nos sites
online do corpus, a cobertura dos casos Freeport, BPN e Face
Oculta – apresentam um perfil de intensidade, que se acentua a partir do ano de 2008, tem o seu pico em 2009, e
declina em 2011. Esta leitura deverá ter em conta que o
caso Face Oculta surge em Outubro de 2009.
Gráfico 4. Intensidade dos casos
Freeport, BPN, Face Oculta na imprensa (DN e CM)
Fonte dos dados: DN online http://www.dn.pt/pesquisa/default.
aspx?Pesquisa; CM online http://pesquisa.cmjornal.xl.pt/?,
acedidos em Julho de 2012.
A rádio TSF174 apresenta, por sua vez, um perfil muito
semelhante de intensidade de cobertura, com picos significativos dos três casos em análise entre 2009 e 2011.
TSF online http://www.tsf.pt/pesquisa/default.aspx?Pesquisa (acedido em Julho de 2012).
174
396
AF miolo corrupcao 3.indd 396
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Gráfico 5 . Intensidade dos casos
Freeport, BPN, Face Oculta naTSF
Fonte dos dados: TSF online http://www.tsf.pt/pesquisa/default.
aspx?Pesquisa, acedido em Julho de 2012.
Ao longo destes anos de cobertura, o Freeport tem
como principal personagem o primeiro-ministro, José Sócrates, que nunca foi constituído arguido neste processo.
Seguem-se Charles Smith e Manuel Pedro, os corretores
que intermediaram o processo e que foram constituídos
arguidos mas, posteriormente, ilibados. No caso BPN, o
personagem mais nomeado ao longo destes anos é Cavaco Silva, Presidente da República, seguindo-se José
Sócrates, primeiro-ministro, e um ex-ministro de Cavaco Silva, Duarte Lima, também envolvido num homicídio de uma herdeira de fortuna portuguesa, ocorrido no
Rio de Janeiro. A nomeação do Presidente da República
neste caso está associada ao facto dos principais envolvidos terem sido seus ministros e um deles ter ocupado,
também, um lugar de conselheiro de Estado. O presidente é, igualmente, evocado por ter sido acionista e ter
ganho avultadas somas na venda de ações pertencentes
397
AF miolo corrupcao 3.indd 397
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
a uma empresa do banco, que faliu. No caso Face Oculta
os mais nomeados na cobertura jornalística são Armando Vara (ex-membro da direção do PS, amigo pessoal do
primeiro-ministro e administrador do banco do Estado,
Caixa Geral de Depósitos), José Sócrates (primeiro-ministro) e José Penedos (administrador da REN, empresa de distribuição energética, participada pelo Estado).
As escutas feitas pela polícia judiciária a Armando Vara,
detetaram conversas com o primeiro-ministro, e revelaram interesses comuns no controle dos media, levantando
suspeitas sobre o tráfico de influências e financiamento
ao partido socialista.
A análise detalhada nos dois títulos de imprensa (DN
e CM) aponta para uma continuidade entre os casos, a
que se soma um processo em cascata. Isto é, quando a
cobertura de um caso diminui de intensidade, um outro
caso o substitui e alcança maior intensidade. Deste modo,
Freeport é o caso que inicia o ano de 2009, seguindo-se o
BPN e posteriormente a cobertura do Face Oculta. A cadência da agenda de cobertura jornalística envolve aproximadamente três meses, normalmente com um pico
acentuado. Poderemos explicar a “acalmia” da cobertura
nos meses de Agosto, Setembro e Outubro lembrando
que em Agosto, a silly season portuguesa, correspondente
às férias grandes, implica as férias judiciais, tendo como
consequência uma pausa dos tribunais e, por conseguinte, ao acesso a fontes privilegiadas. Os meses de Setembro e Outubro, correspondem, respetivamente, ao mês
da campanha eleitoral, com maior restrições e vigilância
sobre a informação, enquanto Outubro, deverá ser entendido como “estado de graça” do candidato vencedor.
Comparado o fluxo de cobertura jornalística dos três
casos nos dois jornais diários, observamos que existe um
padrão diferente. No DN notamos que há um crescendo
398
AF miolo corrupcao 3.indd 398
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
na cobertura de cada “nova agenda”: no caso BPN começa com uma intensidade superior ao pico do Freeport,
e em seguida, o Face Oculta, “rebenta” com o dobro da
cobertura jornalística do caso anterior. No DN o caso
Freeport tem dois picos significativos: em fevereiro (denúncia do envolvimento da família do primeiro-ministro na receção de avultadas somas) e em Abril (investigações em Inglaterra e apresentação nesse país, por um
dos arguidos ingleses, de um DVD acusando o primeiroministro de ter recebido “luvas” e de ter “manipulado”
a decisão do juiz português, presidente do Eurojust, de
encerrar as investigações sobre este caso). O caso BPN
apresenta, igualmente dois picos salientes: em Maio (denúncia sobre os ganhos do Presidente da República e da
filha na venda de ações de uma das empresas do BPN;
demissão e audição pela segunda vez, na Assembleia da
República, do conselheiro de Estado, Dias Loureiro, antigo ministro de Cavaco Silva) e em Julho (denúncias sobre
o envolvimento de três ex-ministros de Cavaco Silva). O
caso Face Oculta tem o seu pico, em 2009, em Novembro
(inquérito a Armando Vara, administrador da Caixa Geral de Depósitos e membro destacado do PS, seguida da
denúncia de escutas entre este e o primeiro‑ministro).
399
AF miolo corrupcao 3.indd 399
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Gráfico 6. Intensidade dos casos
Freeport, BPN, Face Oculta no DN
DN: Total Freeport: 1022; Total BPN:1153; Total Face Oculta: 684.
Fonte dos dados: DN online http://www.dn.pt/pesquisa/default.
aspx?Pesquisa, acedido em Julho de 2012.
No CM, tendo em consideração que a intensidade da
cobertura jornalística é menor em todos os casos, dado
tratar-se de um jornal popular e tabloide, verificamos que,
cada novo caso vem substituir o anterior. Os picos por
caso são bastante semelhantes ao DN, no entanto a diferença está no seu apelo “escandalizante”, visível nos enquadramentos e no tom da notícia. O Freeport manifesta
dois picos: em Fevereiro (denúncia do envolvimento da
família do primeiro-ministro e receção de avultadas somas no licenciamento do Freeport) e em Abril (divulgação
do DVD em que Charles Smith denúncia o suborno do
primeiro-ministro). O caso BPN apresenta, tal como no
DN, dois picos, um em Maio e outro em Julho, salientando o envolvimento de grandes figuras políticas dos governos democráticos. O caso Face Oculta surge no CM em
Novembro e centra-se no envolvimento dos gestores das
empresas públicas e nas relações entre o primeiro-ministro
e o gestor da Caixa Geral de Depósitos, Armando Vara.
400
AF miolo corrupcao 3.indd 400
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Gráfico 7. Intensidade dos casos
Freeport, BPN, Face Oculta no CM
CM: Total Freeport 529; Total BPN 500; Total Face Oculta: 221.
Fonte dos dados: CM online http://pesquisa.cmjornal.xl.pt/? ,
acedidos em Julho de 2012.
A análise dos dados da rádio parece demonstrar um
ritmo mais constante na cobertura jornalística, embora se
possam identificar picos, nomeadamente, quando explode
o caso Face Oculta em Novembro de 2009, com especial
relevância para o envolvimento dos ex-ministros de Cavaco Silva e a ligação passada do Presidente da República
às empresas do BPN.
401
AF miolo corrupcao 3.indd 401
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Gráfico 8. Gráfico de intensidade dos casos
Freeport, BPN, Face Oculta na TSF
TSF: Total Freeport 279; Total BPN 304; Total Face Oculta: 217.
Fonte dos dados: TSF online http://www.tsf.pt/pesquisa/default.
aspx? Pesquisa, acedido em julho de 2012.
Nos meios analisados os picos no fluxo de notícias correspondem, de uma maneira geral, a “revelações” associadas a três situações-tipo: envolvimento de governantes;
entrada de novos atores (familiares ou amigos próximos
dos “suspeitos” ou dos arguidos nos “casos” sob investigação) e denúncias de pressões sobre instituições (tribunais, meios de comunicação, ministério público).
A n á l is e
d o s d a d o s d e t e l e v is ã o
Como media de fluxo a televisão disponibiliza uma
enorme quantidade de dados, tornando a delimitação do
corpus uma tarefa complexa que deve almejar ser o mais
representativo possível do universo em análise. Neste estudo exploratório a nossa atenção recairá na análise dos
conteúdos manifestos dos noticiários de televisão, permitindo assim uma comparação entre os meios analisados.
402
AF miolo corrupcao 3.indd 402
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Ressaltamos que, tal como propõem alguns autores, nomeadamente Grabe (2009), Charaudeau (2005) e Deacon
e all. (1999) a análise do fluxo noticioso televisivo é muito
mais que a análise dos conteúdos das notícias. Como refere Grabe (2009: pp. 67-93) a alfabetização dos espetadores faz com que reconheçam, para além dos conteúdos
manifestos, outros indicadores importantes como o som
ambiente das notícias (aplausos, vaias, vivas, murmúrios,
música, som natural, etc.), os dispositivos emocionais nãoverbais (gestualidade, comunicação interpessoal e corporal, etc.), assim como os dispositivos técnicos utilizados
(close-up, grandes planos, etc.). Conscientes desta realidade, e dado o objetivo de realizarmos uma pesquisa comparativa, deixaremos para pesquisas posteriores a descodificação do fluxo noticioso, constituído pela sucessão e
acumulação de imagens, sons e palavras.
Assumindo estes pressupostos, analisaremos a cobertura jornalística televisiva dos casos Freeport, BPN e Face
Oculta nos canais abertos RTP1 (estação pública) e TVI
(estação privada). Em busca da intensidade da cobertura
jornalística e da visibilidade dos atores políticos iniciamos
este processo apresentando dados gerais, recolhidos pela
empresa MarktestMedia/Monitor, sobre os noticiários televisivos do ano de 2009. Em seguida, mantendo os mesmos objetivos, e tendo sempre em mente que se trata de
um trabalho exploratório, faremos uma análise dos sítios
online dos dois canais com base nas peças que disponibilizam quando se pesquisa pela palavra-chave atribuída a
cada caso. Também convém lembrar que não são conhecidos os critérios que presidem à seleção e manutenção
destes sítios pelas empresas, constituindo, no entanto,
neste estudo exploratório o nosso universo de referência.
Uma outra observação geral decorre do tamanho das
peças – maiores na TVI e menores na RTP1 – e dos enqua403
AF miolo corrupcao 3.indd 403
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
dramentos. Estes, segundo Gitlin (1980: p. 7), são padrões
persistentes de cognição, interpretação e apresentação utilizados pelos construtores da informação para organizar e
conhecer o mundo. Na TVI como na RTP1, os enquadramentos são preferencialmente episódicos – centrados sobre
um issue, facto, ator político ou cenário – mas enquanto na
primeira estação há uma tendência em reforçar a política-espetáculo através de aspetos de informação-entretenimento,
na segunda prevalece o enquadramento temático, centrado
na explicação do issue ou acontecimento (Iyengar, 1991).
Dados gerais, recolhidos pelo serviço Telenews da empresa MarktestMedia/Monitor contabilizaram 2 490 horas
de informação, num total de 85 303 peças noticiosas, correspondendo a uma média de 1 hora e 42 minutos diários
por canal. A RTP1, canal público, e a SIC, canal privado,
apresentaram o maior número de peças, seguidos da TVI
e da RTP2. No que toca ao tempo despendido por cada
canal na emissão de notícias, a RTP1 foi o canal que mais
tempo dedicou à informação, cerca de 883 horas (35%),
seguido da SIC (28%, cerca de 691 horas), da TVI (27%,
679 horas) e da RTP2 (10%, 236 horas). Neste estudo a
Telenews salienta que a TVI foi o canal que, face ao ano
anterior, mais cresceu no número e na duração de peças
noticiosas175. Esta observação e o facto de a TVI ter sido
objetivamente pressionada pelo poder político, nomeadamente na pessoa da apresentadora do jornal das sextasfeiras176 constitui uma justificação para a análise pormenorizada que iremos empreender das notícias desta estação.
175
Marktest MediaMonitor. Telenews: “85 mil notícias na TV em 2009”
(http://www.marktest.com/wap/a/n/id~14ae.aspx, acedido em Julho de
2012).
176
Cfr: “Jornal de Sexta suspenso: direcção da TVI demite-se.” Informação, 03 de Setembro de 2009.
www.ionline.pt/.../21214-jornal-sexta-suspenso-direccao-informacao.
404
AF miolo corrupcao 3.indd 404
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Gráfico 8. Número e percentagem de peças
por canal em 2009
Fonte: MediaMonitor: Telenews (http://www.marktest.com/wap/
a/n/id~14ae.aspx, acedido em Julho de 2012.
As análises mensais realizadas pela mesma empresa
concluíram que em janeiro se observou um maior número de notícias (7 493 peças) e uma maior audiência média
(8.8%), enquanto em Junho se registaram menos notícias
(6 556) mas com maior duração média (1 minuto e 51 segundos). Ressalvamos que no início de Junho se realizaram as eleições europeias. Com base nos mesmos dados
verificámos, também, que os meses de Julho e Agosto cativaram menos audiências (respetivamente 6.7% e 6.5%),
mantendo sensivelmente o mesmo número de peças e a
mesma duração média. Salientamos que estes meses correspondem às férias de verão e o padrão de cobertura
noticiosa política tende a adaptar-se ao vazio gerado pelo
encerramento do parlamento e pelas férias de grande
parte dos políticos. Observamos, também, que tal como
em Junho – mês em que ocorreram as eleições europeias
405
AF miolo corrupcao 3.indd 405
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
– Setembro, mês em que decorreu a campanha e as eleições legislativas, é um dos meses com menor volume de
notícias (6 819) e menor audiência (6.9%)177.
A análise dos protagonistas políticos das notícias, ao
longo do ano de 2009, confirma a visibilidade do então
primeiro-ministro, José Sócrates, que surge com intervenções na primeira pessoa em 1 879 notícias (RTP1, RTP2,
SIC e TVI) e em notícias com maior duração178. A líder do
partido de oposição (PSD), Manuela Ferreira Leite, ocupa
o segundo lugar protagonizando 1 025 notícias, com 42
horas e 39 minutos de duração. O presidente da república, Cavaco Silva, aparece em sexto lugar na lista dos dez
protagonistas políticos de 2009 com uma visibilidade de
33 horas e 36 minutos. No entanto, esta posição do presidente da república alterou-se ao longo do ano. No primeiro trimestre registou o segundo maior protagonismo
(198 notícias, cerca de 7 horas), depois do primeiro-ministro (437 notícias e 18 horas e 40m) e antecedendo a
líder de oposição (217 notícias e 7 horas e 31 minutos).
177
A nota metodológica da empresa MediaMonitor: Telenews informa:
“As audiências expressas nesta análise referem-se apenas à audiência média
obtida pelas peças jornalísticas incluídas nos programas de informação
em análise. Não inclui genéricos de abertura ou fecho e é feita com base
em todas as peças noticiosas independentemente da diferente duração
dos noticiários. Esta análise considera apenas os serviços regulares de
informação dos canais em análise no período compreendido 1 de Janeiro
e 31 de Dezembro de 2009. Em análise estão os seguintes programas:
Jornal da Tarde, TeleJornal e Portugal em Directo (RTP1); Jornal 2 (RTP2);
Primeiro Jornal e Jornal da Noite (SIC); Jornal Nacional e Jornal da Uma
(TVI)” (http://www.marktest.com/wap/a/n/id~135b.aspx , acedido em
Julho de 2012).
178
Cfr: segundo nota metodológica da Marktest MediaMonitor Telenews
“Esta análise exclui eventuais programas, debates ou entrevistas realizadas
no período, considerando apenas os serviços regulares de informação. Na
contabilização do tempo, considera-se o tempo total de duração da notícia”.
(http://www.marktest.com/wap/a/n/id~14b2.aspx, acedido em Julho
de 2012).
406
AF miolo corrupcao 3.indd 406
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Os dados do primeiro semestre de 2009 colocam o presidente da república em terceiro lugar (444 notícias, cerca de 16 horas), numa ordem encimada igualmente pelo
primeiro-ministro (886 notícias, 38 horas) e pela líder da
oposição (476 notícias, 18 horas)179.
Gráfico 9. Avaliação da opinião pública do presidente da
república e do primeiro-ministro em 2009
Fonte: Barómetro político http://www.marktest.com/wap/a/p/
m~200911/s~3/id~e9.aspx acedido em Julho de 2012;
http://www.marktest.com/wap/a/p/m~200911/s~2/id~e9.aspx,
acedido em Julho de 2012.
A evolução deste barómetro político, recolhido pela
Marktest, decorrente de sondagens que têm como objetivo aferir a evolução da opinião pública face aos principais
representantes da democracia, demonstra as oscilações da
opinião pública face aos dois representantes máximos da
democracia180.
179
Cfr: http://www.marktest.com/wap/a/n/id~13b3.aspx acedido em
Julho de 2012.
180
Cfr: http://www.marktest.com/wap/a/p/m~201001/s~5/id~e9.
aspx.
407
AF miolo corrupcao 3.indd 407
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Ao cotejar os dados sobre a visibilidade dos protagonistas com os índices recolhidos no barómetro político, e tendo
em consideração os objetivos do nosso trabalho, poderemos
avançar algumas leituras: 1ª – a visibilidade do presidente
da república e do primeiro-ministro parecem estar em linha com a divulgação de notícias sobre os casos Freeport e
BPN; 2ª – a intensidade da cobertura e os issues divulgados
destes casos poderão justificar, no primeiro semestre, a queda dos índices de opinião pública sobre as duas principais
figuras da democracia; 3ª – os índices de opinião pública
mostram variações entre os 30 e os 15 pontos percentuais,
sendo que em Maio o presidente da república se distancia,
claramente, do primeiro-ministro vindo a aproximar-se de
forma muito significativa em Outubro.
Salientamos que a cobertura noticiosa televisiva do mês
de Maio focou preferencialmente as pressões sobre Lopes
da Mota, presidente do Eurojust, sobre este organismo
europeu e os procuradores do caso Freeport, estabelecendo relações entre esse magistrado e o primeiro-ministro
(índice de opinião pública do primeiro-ministro situa-se
nos 24.7%). Em Maio o presidente da república deixa de
ser nomeado no caso BPN (índice de 65.8%). Em Outubro o primeiro-ministro acaba de ser nomeado para um
segundo mandato (índice de 41.6%) e o presidente da república recolhe o menor índice de sempre de um presidente em exercício, após ter-se pronunciado sobre o caso
das escutas em Belém181.
181
Cfr: Caso das escutas em Belém em que o PR é acusado de ter incitado a divulgação da informação através do seu assessor político. “Assessor
de Cavaco Silva terá encomendado caso das escutas” (http://www.tsf.pt/
PaginaInicial/Portugal/Interior.aspx?content_id=1365554&page=2) . Publicado TSF, 19 de Setembro. “No texto publicado pelo Diário de Notícias
afirma-se que a iniciativa para tornar pública a suspeita partiu do próprio
408
AF miolo corrupcao 3.indd 408
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Aprofundando a análise da cobertura jornalística dos
casos Freeport, BPN e Face Oculta na RTP1 e na TVI iremos procurar responder às perguntas de partida iniciais:
Como a televisão agenda o tema corrupção política? Que
intensidade e longevidade apresentam essas agendas na
televisão e em que medida os casos se sobrepõem, ou se
substituem, nos media? Quais os atores com maior protagonismo?
Na totalidade do ano de 2009 o sítio da RTP1 apresenta 887 peças sobre os três casos, 235 relativas ao Freeport,
452 sobre o BPN e 200 sobre o Face Oculta, que apenas se
iniciou em Outubro. Os picos desta cobertura estão em
consonância com notícias que envolvem o primeiro-ministro e o presidente da república. Em maio a RTP1 dá
destaque, no caso Freeport, às pressões do presidente do
Eurojust sobre os magistrados que investigam o caso estabelecendo relações com o primeiro-ministro. Nos meses
de Maio e Junho as notícias sobre o caso BPN centram-se
nas sessões da Comissão de Inquérito Parlamentar e nas
declarações dos dois principais implicados (ex-ministros
dos governos de Cavaco Silva), bem como nas pressões
que rodearam a saída de um desses implicados do Conselho de Estado (Dias Loureiro). Em Novembro, a RTP1
chefe de Estado. É isso que diz Luciano Alvarez, editor do Público, no e-mail
que enviou a 23 de Abril de 2008 a Tolentino Nobrega, o correspondente
do Jornal na Madeira. Alvarez informa-o que se reuniu com Fernando Lima,
a pedido deste, e que a conversa começou com o assessor de Cavaco Silva
a dizer que estava ali a pedido do chefe de Estado para falar de um assunto
grave. E qual era o assunto? O presidente da república acha que o gabinete
do primeiro-ministro o anda a espiar e que a maior prova disso tinha sido
o facto de José Sócrates ter enviado um funcionário do Ministério da Administração Interna à Madeira só para espiar os passos do presidente e dos
homens do seu gabinete durante uma visita ao arquipélago. Luciano Alvarez
relata depois que Fernando Lima lhe entregou um dossier sobre Rui Paulo
da Silva Figueiredo, o tal elemento do MAI…”.
409
AF miolo corrupcao 3.indd 409
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
foca o caso Face Oculta revelando as escutas que ligam o
principal implicado, ex-ministro e membro destacado do
PS, ao primeiro-ministro.
Gráfico 10. Intensidade da cobertura televisiva dos casos
Freeport, BPN e Face Oculta na RTP1 no ano de 2009
RTP1: Total Freeport: 235; Total BPN: 452; Total Face Oculta: 200
Fonte: sítio online da RTP1 (http://pesquisa.rtp.pt/ acedido
em Julho de 2012.
Na RTP1 o protagonista do caso Freeport é o primeiroministro, mencionado como ator ativo em cerca de 48%
das notícias, segue-se o presidente da república e o presidente do Eurojust. O caso BPN tem como ator principal o conselheiro de Estado Dias Loureiro, ex-ministro
do governo de Cavaco Silva; o presidente da república
e o primeiro-ministro. No caso Face Oculta surge como
protagonista Armando Vara, destacado membro do PS
e membro do conselho da CGD, e o primeiro-ministro. A cobertura jornalística da TVI tem no Freeport o seu
pico em Abril na sequência da apresentação de um vídeo
410
AF miolo corrupcao 3.indd 410
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
onde Charles Smith, um dos arguidos e mediadores do
negócio, acusa o primeiro-ministro de ser corrupto e ter
recebido dinheiro para aprovar a construção do Freeport
182
. O BPN tem o seu ponto alto em Maio, tal como na
RTP1, aquando do inquérito parlamentar e demissão do
conselheiro de Estado, acusado de atuação fraudulenta
nas empresas associadas ao banco. No caso Face Oculta o
pico situa-se em Novembro, enfatizando as escutas telefónicas realizadas ao principal implicado que implicariam
o primeiro-ministro na compra da TVI pela PT e aludiam
a financiamentos ao PS183.
Gráfico 11. Intensidade da cobertura televisiva dos casos
Freeport, BPN e Face Oculta na TVI no ano de 2009
TVI: Total Freeport: 69; Total BPN: 36; Total Face Oculta: 44
Fonte: sítio online da TVI http://www.tvi.iol.pt/pesquisa/
acedido em Julho de 2012.
Cfr: Jornal Público “Cronologia de um caso mediático” http://static.
publico.pt/homepage/infografia/sociedade/freeport2012/.
183
Cfr: Jornal IOnline “Escutas Face Oculta: Sócrates mentiu ao parlamento sobre TVI-vídeo”, 13 de Novembro de 2009 http://www1.ionline.
pt/conteudo/32780-escutas-face-oculta-socrates-mentiu-ao-parlamentotvi.
182
411
AF miolo corrupcao 3.indd 411
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Na TVI o protagonismo do caso Freeport centra-se no
primeiro-ministro, mas dispersa em seguida entre o principal arguido, o inglês Charles Smith, a Procuradoria‑Geral
da República e o conjunto de magistrados. No caso BPN o
protagonismo é partilhado entre o presidente da república
e os dois principais implicados (Oliveira e Costa, banqueiro e Dias Loureiro, conselheiro de Estado). No caso Face
Oculta o protagonismo divide-se entre Armando Vara, o
primeiro-ministro e a Procuradoria-Geral da República.
Gráfico 12. Intensidade da cobertura televisiva dos casos
Freeport, BPN e Face Oculta na RTP1 e TVI no ano de 2009
RTP1: Total Freeport: 235; Total BPN: 452; Total Face Oculta: 200
TVI: Total Freeport: 69; Total BPN: 36; Total Face Oculta: 44
Fonte: sítio online da RTP1 http://pesquisa.rtp.pt/; sítio online da
TVI http://www.tvi.iol.pt/pesquisa/, acedidos em Julho de 2012.
A comparação das duas estações mostra, a partir dos
dados disponibilizados nos sítios e tomados como universo, que a RTP1 apresenta uma cobertura jornalística
televisiva mais intensa e focada nas duas figuras principais
da democracia. A TVI apresenta menos peças noticiosas
412
AF miolo corrupcao 3.indd 412
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
mas com maior duração. Por outro lado, na TVI observamos uma maior dispersão do protagonismo em atores
de menor relevância política. Observamos ainda que, em
ambas as estações, os meses de Julho e Agosto são os que
apresentam menor intensidade na cobertura destes casos.
Esta constatação deverá ter em conta que não só se trata dos meses de férias – menos fontes oficiais e oficiosas
– como também corresponde ao período de campanha
eleitoral para as legislativas.
Conclusão
Os dados apresentados anteriormente constituem uma
abordagem exploratória à cobertura jornalística da corrupção política, na imprensa, na rádio e na televisão, num ano
pautado por eleições. Sendo um estudo exploratório, que
incide na análise de conteúdo manifesto de notícias sobre
a corrupção política nestes meios, não poderemos generalizar as conclusões. No entanto, iremos tentar identificar algumas tendências na cobertura jornalística e avançar alguns
elementos que permitam estabelecer alguns padrões de cobertura da corrupção política, tendo em consideração que
se trata de um ano de eleições e por conseguinte envolver a
cobertura “tendencialmente negativa“ de um final de mandato de um primeiro-ministro184. Convém ainda referir que
estes fenómenos ocorrem num quadro em que a estrutura
institucional governativa que rege a interação entre atores
públicos e privados parece constituir um fator decisivo para
o aumento de práticas de corrupção e a complexificação
Cfr: Ferin, I. (2007) Finais de Mandato : tendências de cobertura jornalística In: Ferin, I. (Coord.) Jornalismo e Actos de Democracia. Lisboa: Paulus,
pp. 18-47.
184
413
AF miolo corrupcao 3.indd 413
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
da sua natureza, bem como a frágil identidade do Estado
face aos interesses económicos instalados.
Este estudo preliminar parece apontar para uma crescente cobertura jornalística de casos de corrupção na imprensa, na rádio e na televisão. A sucessão dos casos exige
um volume maior de peças publicadas, para que cada novo
caso possa, a partir da saliência de cobertura jornalística, “chamar” a atenção dos públicos e audiências. Neste
sentido, poderíamos avançar que há uma escandalização
crescente em torno da denúncia jornalística dos casos de
corrupção onde estão envolvidos políticos. Parafraseando
Schudson (2004: pp. 1231-2010) o escândalo parece estar
no centro da ação política e constituir, igualmente, a única
preocupação política dos media na atualidade, servindo à
sociedade de massas, simultaneamente de entretenimento
e de garante da moral e da ordem.
Aprofundando as conclusões da cobertura jornalística sobre os diferentes meios notamos que o DN e o
CM, sendo vocacionados para públicos-alvo diferenciados, conferem crescente atenção a estes fenómenos, sendo que o primeiro diário apresenta uma cobertura mais
intensa e o segundo mais picos de saliência, centrados na
escandalização. Por outro lado, a continuidade da cobertura de casos de corrupção na TSF, uma rádio noticiosa
que acompanha grande parte dos automobilistas ao longo do país, permite como fala Maia (2006) um contínuo
ruído de issues relacionados com aquele tema.
Nos canais de televisão analisados e a partir dos dados disponibilizados nos sítios, observamos o mesmo
padrão, cada novo caso corresponde a um aumento da
intensidade da cobertura. No entanto, a televisão pública
(RTP1) apresenta menos elementos de escandalização no
que toca aos enquadramentos e tom, apesar de atribuir
maior saliência à cobertura dos casos e aos atores polí414
AF miolo corrupcao 3.indd 414
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
ticos envolvidos. Apesar dos dados que se encontravam
online relativos a esta cobertura contrariarem o estudo anterior da ERC185, que atribuía à TVI uma maior cobertura
em número de peças e duração, observa-se que este canal
apresenta indicadores (tempo, enquadramento, tom) que
apontam para aquilo que Schudson (2004: p. 1236) designa
de “bota abaixo” do “escândalo da política” patrocinado
pelos media de massas.
Ao tentarmos estabelecer os padrões de cobertura jornalística dos três casos analisados no ano de 2009, podemos avançar, ainda de forma preliminar, com as seguintes
regularidades: fase de denúncia/desocultação; personalização em figuras de Estado; fase de estabelecimento do
círculo de implicados, com ênfase para os atores políticos;
fase de apresentação de móbeis e motivações; estabelecimento de rotinas de cobertura em torno dos processos
em julgamento; saliência atribuída aos arguidos com relevância política. Em todos os meios analisados a habilidade dos media em chamar a atenção, tornam estes tópicos
foco da atenção pública ou do pensamento dos cidadãos
sobre a coisa pública, determinando a formação da opinião pública e exercendo uma indiscutível influência na
perceção dos issues políticos (McCombs e Reynolds, 2002).
Nos casos analisados, se tivermos em conta que a
cobertura jornalística envolveu, preferencialmente, dois
atores políticos eleitos para as funções de maior prestígio na democracia – o primeiro-ministro José Sócrates
(caso Freeport e Face Oculta) e o Presidente da República,
Cavaco Silva (caso BPN) – poderemos ter a dimensão do
desgaste do regime neste ano de eleições. No entanto se
compararmos a visibilidade destes atores políticos com
185
Entidade Reguladora da Comunicação (ERC) (2009).
415
AF miolo corrupcao 3.indd 415
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
os casos onde estão envolvidos, percebemos que não
existe um padrão causa-efeito. Isto é, nem sempre a visibilidade atribuída a estes atores políticos nos casos de
corrupção política, estabelecendo relações com arguidos e atos denunciados, têm correspondência nas sondagens realizadas e nos barómetros políticos. Este facto
é comprovado pelas reeleições para segundos mandatos,
do primeiro-ministro José Sócrates (27 de Setembro de
2009) e do presidente da república, Cavaco Silva (23 de
Janeiro de 2011). Estes factos põem em causa, por um
lado, a relação anteriormente avançada sobre visibilidade
e perceção da corrupção política e a deslegitimação das
principais figuras da democracia. Por outro lado, tendem
a reforçar as estratégias de comunicação política de personalização dentro do princípio popular “falem bem ou
falem mal, mas falem de mim”.
Estes fenómenos de corrupção (Blankenburg, 2002:
pp. 149-165) não são novos, mas adequam-se às alterações do sistema económico, político e ideológico, refletindo, nomeadamente a chegada de uma nova classe
política ao poder, trazendo novas ambições e um novo
sistema de valores. Isto não quer dizer que, anteriormente não tenha existido fenómenos de corrupção. A
explicação avançada para a amplidão destes fenómenos
na Europa ocidental é que esta nova “classe dirigente”,
maioritariamente de origem rural e treinada nas juventudes partidárias, chega à governação sem ter adquirido o sofisticado know-how das velhas elites dirigentes,
sendo assim mais vulnerável às denúncias de corrupção
e ao escândalo. Por outro lado, ela está também mais
próxima das bases clientelistas e dependentes dos círculos familiares e de vizinhança, sendo pressionadas a
satisfazer necessidades reprimidas (Gambetta, 2002: p.
51). Ao analisarmos a cobertura jornalística dos casos
416
AF miolo corrupcao 3.indd 416
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Freeport, BPN e Face Oculta, pareceu-nos que, para além
da intensidade crescente da cobertura dos fenómenos,
existe uma tendência em os desocultar dentro destes enquadramentos, chamando a atenção para práticas culturais que novos contextos políticos, económicos e sociais
põem em causa.
Acresce ainda a estes elementos o fator “internacional”
dos casos de corrupção política. Na verdade, tendemos a
concluir que a internacionalização, ou melhor a tendência da rede de corrupção ser cada vez mais global, escapa,
em grande parte, à cobertura jornalística dos casos analisados. Esta constatação decorre, no nosso entender, das
dificuldades do jornalismo de investigação, limitado por
opções económicas das empresas jornalísticas, mas também de uma nova cultura de produção da notícia. Assim,
pensamos, que a cobertura jornalística do envolvimento dos interesses internacionais nos casos de corrupção
política em Portugal estão dependentes das fontes e dos
meios institucionais públicos e dificilmente conseguem
aceder a fontes internacionais e estabelecer agendas paralelas de investigação.
A estas questões acrescem quatro outros fatores evocados na literatura internacional, no sentido de explicar
uma maior visibilidade da corrupção política na atualidade:
as mudanças na arena ideológica (a supremacia da política partidária catch all o nascimento dos business politicians);
alterações do funcionamento da justiça e do ministério
público (independência destes órgãos face ao poder político e capacidade de avaliação internacional); papel dos
media e crescente tecnologização da comunicação política
(a corrupção e o escândalo como “armas de competição
política”); pressões internacionais no sentido de normalizar o mundo dos negócios e promover normas de competição universais.
417
AF miolo corrupcao 3.indd 417
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Referências Bibliograficas
ALLERN, S. e POLLACK, E. (2012) The mediated construction of Political Scandals in Four Nordic Countries. Goteborg: Nordicom, University of Gothenburg.
BLANKENBURG, E. (2002) From Political Clientelism to Outrighy Corruption – The rise of the Scandal Industry In: Kotkin,
Stephen & Sajó, A. Political Corruption in transition: a sceptic’s handbook. Budapeste: Central European University Press. pp. 149-165.
CHARAUDEAU, P. (2005) Le discours politique les masques du pouvoir.
Paris: Vuibert.
CUNHA, I. F. (2010) Televisão e Cobertura das Legislativas de 2009:
Das estratégias às crises. Revista Media & Jornalismo, nº 17 (9) 2:
pp. 175- 194.
CUNHA, I. F. (2012) Crise, Corrupção Política e Media In: Peixinho, A. T. e Camponês, C. Aprofundar a crise. Coimbra: Imprensa da Universidade.
DEACON, D., PICKERING, M., GOLDING, P. e MURDOCK, G.
(1999) Reseaching Communications. London: Arnold.
ENTMAN, R. (2004) Projections of Power: Framing News, Public Opinion,
and US Foreign Policy. Chicago, IL: University of Chicago Press.
GAMBETTA, D. (2002) Corruption: an Analytical Map In: KOTKIN,
S. e SAJÓ, A. (2002) Political Corruption in transition: a sceptic’s handbook. CEU Press, Central European University Press. pp. 33-56
GITLIN, T. (1980) The Whole World is Watching: Mass Media and the
Making and Unmaking of the New Left. Berkeley: University of California Press.
GRABE, M. E. (2009) Image bite politics. News and the visual framing
of elections. Oxford: Oxford University Press.
HEIDENHEIMER, A. J. e JOHNSTON, M. (Ed.) (2002) Political Corruption: Concepts & Contexts. (3Ed.). New Jersey: The State
University.
IYENGAR, S. (1991) Is anyone responsible?: how television frames political
issues. Chicago: University of Chicago Press.
LEBLANC, G. (1998) Del modelo judicial a los processos mediáticos In: GAUTHIER, G., GOSSELIN, A., MOUCHON, J. (Org.)
Comunicacion y Politica. Barcelona: Paidós, pp. 60-70.
MAIA, A. J. (2006) Representações sociais da corrupção em Portugal– contributo para o seu conhecimento. Lisboa: Instituto Superior de Ciências
Sociais e Humanas (www.bocc).
418
AF miolo corrupcao 3.indd 418
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
MAIA, A.J. (2011) O discurso social sobre o problema da corrupção
em Portugal. Lisboa: Observatório Social sobre o Problema da Corrupção em Portugal. Working Papers, nº 7.
McCOMBS, M. (2004) Setting the Agenda: The Mass Media and Public
Opinion. Cambridge: Policy Press.
McCOMBS, M. e REYNOLDS, A. (2002) News Influence on our
pictures of the worlds. In: Media Effects: advanced in Theory and Research. Mahwah: Lawrence Elbarn Associates.
McCOMBS, M. e SHOW, D. (1972) The Agenda-Setting Function of
Mass Media, Public Opinion Quarterly, 36 (2): pp. 176-197.
MORGADO, M. J. e VEGAR, J. (2003) Fraude e corrupção em Portugal:
o inimigo sem rosto. Lisboa: Publicações D. Quixote.
RUBIM, A. C. (Org.) (2004) Comunicação e Política: conceitos e abordagens.
Salvador: Edufba.
SCHEUFELE, D.A. (2000) Agenda-Setting, Priming, And Framing
Revisited: Another Look at Cognitive Effects of Political Communication. Mass Communication & Society, 3: pp. 297-316.
SCHUDSON, M. (2004) Notes on Scandal and the Watergate Legacy.
American Behavioral Scientist 47: pp. 1231-1238.
SOUSA, L. (2010) Anti-corruption agencies: between empowerment
and irrelevance. Crime Low Sopc Change. 53: pp. 5-22.
Sousa, L. de e Triães, J. (2007) Corrupção e ética em democracia: o caso
de Portugal. Lisboa: ObercomBrief.
SOUSA, L. e TRIÃES, J. (2010) A corrupção e os portugueses: atitudes,
práticas e valores. Oeiras: Rui Costa Pinto Ed.
THOMPSON, J. B. (2002). O escândalo político: poder e visibilidade na era
mídia. Rio de Janeiro: Vozes.
WEAVER, D. H., McCOMBS, M. (2007) Thoughts on agenda setting,
framing and priming. Journal of Communication, 57: pp. 142-147.
419
AF miolo corrupcao 3.indd 419
7/31/14 12:55 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 420
7/31/14 12:55 AM
11. Meios de Comunicação,
corrupção e redes sociais
nas eleições
pa r a p r e f e i t o n o B r a s i l
Helcimara de SouzaTelles
Pedro Soares Fraiha
Nayla Lopes
Introdução
O objetivo deste artigo é o de identificar vetores que
foram preditivos da decisão de voto nas eleições municipais de 2012, em Belo Horizonte, e, em que medida a
percepção e níveis de tolerância da corrupção por parte
do eleitor foram relevantes da decisão de voto. O artigo
busca compreender quais variáveis podem explicar a decisão de voto nestas eleições municipais , mas, sobretudo,
clarificar a temática da corrupção na opinião dos eleitores, e a maneira como foi abordada nas campanhas. Nesse sentido, consideramos que a mediação da informação
influencia o processo de escolha de candidatos. Enfatizar o papel da mídia significa supor que a visibilidade e
a vinculação de conteúdos na mídia têm impacto na formação da opinião pública. Os conteúdos veiculados podem gerar efeitos sobre a decisão de voto, na medida em
que constroem imagens que agregam valor aos atores da
representação política e às instituições. Entretanto, ainda
assim é questionável a capacidade que os escândalos políticos midiáticos possuem para afetar a decisão do voto.
A luz das principais vertentes que discursam sobre o
comportamento eleitoral – sociologia política, perspectiva psicológica e a escolha racional –, pretende-se verificar
421
AF miolo corrupcao 3.indd 421
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
os preditores da decisão de voto na capital mineira, sob os
efeitos de variáveis que expressem a exposição dos eleitores
às campanhas eleitorais – temas que envolvam diretamente
os atores políticos, neste caso a corrupção –, controladas
por atributos relacionados ao auto-posicionamento ideológico, preferência partidária, aspectos sócio‑demográficos,
percepção, e tolerância à corrupção, exposição aos media,
avaliação retrospectiva e outras variáveis políticas.
O artigo está dividido em cinco seções. A primeira
pondera a importância da função mediadora dada aos
meios de comunicação e seus possíveis efeitos, em último termo, sobre a formação da opinião pública e decisão de voto do eleitor. A segunda seção discorre a respeito dos efeitos da vinculação de conteúdos, sobretudo
que abordem a questão da corrupção, sobre os atores e
instituições políticas, destacando a percepção e tolerância
à corrupção dos eleitores de Belo Horizonte. A seguinte
seção se destina à análise das campanhas dos candidatos
a prefeito, Márcio Lacerda (PSB) e Patrus Ananias (PT),
evidenciada de maneira diferente nas abordagens on-line e
off‑line, além de ressaltar os principais temas que estiveram
em pauta no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral.
A quarta seção retoma a discussão do comportamento
eleitoral sob a perspectiva das teorias de decisão do voto.
Posteriormente são apresentadas variáveis descritivas retiradas do survey elaborado uma modelo estatístico o qual
fornece indícios de quais seriam os principais fatores que
influenciaram a decisão de voto. Finalmente, exploramos
os resultados e avaliamos a hipóteses levantadas.
Os dados foram coletados através de survey, aplicados
em Belo Horizonte, em setembro de 2013, no primeiro
turno das eleições municipais de Belo Horizonte. Foram
entrevistados 803 informantes. A margem de erro foi de
3%, com intervalo de confiança de 95%.
422
AF miolo corrupcao 3.indd 422
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Mídia
e v isi b i l i d a d e
A importância da função mediadora dos meios de comunicação torna a visibilidade dos acontecimentos na arena política das sociedades democráticas liberais disputas
sobre as fontes do poder simbólico (Thompson, 2002: p.
139), uma vez que a diversidade de interesses, não captada
pelas instituições representativas, é orientada por aspectos
de confiabilidade e credibilidade nas instituições. A participação ocorre em interação com os agentes, na medida em que cria uma situação social na qual os indivíduos
são conectados por meio de um processo de comunicação e de trocas simbólicas. A demanda por informações
na esfera política é atendida em grande parte através da
qualidade de elo que a mídia possui, tendo em vista que
a visibilidade dos fatos na esfera política (sobretudo dos
acordos e negociações ocorridos nos bastidores) é atribuída, sobretudo, aos meios.
A mídia é tratada pela literatura como um canal capaz de produzir efeitos controversos. Sua ação ora é tida
como um incentivo à apatia e à desmobilização popular
em relação à política (Torcal e all., 2003), ora é responsável por maiores níveis de interesse e participação política,
principalmente quando há o acesso a variadas fontes de
informação (Dalton, 1984). Na perspectiva da “democracia centrada na mídia” (Chavero, 2011), na sociedade atual, os meios de comunicação se converteram em um dos
principais atores da esfera política, na medida em que se
apresentam como o ponto de encontro entre os partidos
políticos e o cidadão eleitor.
O enfraquecimento dos partidos políticos como mediadores entre os eleitores e seus representantes e, por conseguinte, à sua menor expressão na obtenção de capital
político, reforça a necessidade de estudos sobre a relação
423
AF miolo corrupcao 3.indd 423
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
estabelecida entre os meios de comunicação e os agentes
políticos. Os partidos têm perdido espaço e não são vistos pela maioria dos cidadãos como orientadores do voto.
Na ausência de vínculos fortes entre cidadãos e ocupantes de cargos políticos, a mídia tem sua atuação ampliada, tanto para quem já conquistou e consolidou sua legitimidade política ao longo do tempo (capital delegado),
quanto para aqueles que, após obterem reconhecimento e
popularidade pelo trabalho exercido em outras áreas, decidem utilizar esta legitimidade para se arriscar na política
(capital convertido). É fundamental ressaltar, no entanto,
que a permeabilidade do campo da política à construção
de carreiras por “celebridades” encontra limites. Os políticos que acumulam o capital delegado tendem a resistir ao ingresso de outsiders em seu meio, ou seja, impõem
uma “taxa de conversão particularmente desfavorável a
capitais simbólicos oriundos de outros campos” (Miguel,
2003: p. 128), como o econômico ou o midiático, do qual
nos ocupamos no momento.
A redução do controle de sua imagem pelos políticos
resulta da evolução dos aparatos de comunicação. Além de
haver muitos atores (inclusive oponentes) em disputa por
uma visibilidade midiática favorável, há que se considerar o
papel desempenhado pela internet nos últimos anos. Neste
meio, dada a multiplicidade de emissores, é consideravelmente mais difícil controlar os conteúdos em circulação.
Ademais, a evolução tecnológica tornou portáteis os aparelhos de captação de imagens, o que aumenta as possibilidades de que figuras públicas sejam flagradas em momentos
desfavoráveis à sua imagem – mesmo que tais momentos
pertençam ao âmbito privado de sua existência. Logo, o
controle da imagem tornou-se difícil com os meios de comunicação tradicionais (especialmente a televisão) e, com
a expansão da internet, parece quase impossível.
424
AF miolo corrupcao 3.indd 424
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Além das gafes e revelações de aspectos íntimos da vida
dos representantes eleitos, os escândalos políticos compõem a faceta indesejada (ao menos por eles), da visibilidade midiática. O funcionamento das instituições representativas é incompreensível para os menos interessados
em política, e os próprios atores políticos não fazem muito
esforço para levar ao conhecimento geral os procedimentos e rituais que se desenvolvem nos bastidores de tais instituições. Graças ao trabalho de jornalistas investigativos
e à atuação de entidades da sociedade civil (ou mesmo de
cidadãos participativos), o “véu de segredo” (Thompson,
2008) no qual estão envoltos acordos políticos tem sido
retirado em inúmeras ocasiões, com desdobramentos diversos. O interessante é que um escândalo não é assim
definido pela mídia após sua ocorrência, mas a visibilidade
através dos meios de comunicação se impõe como “parte
constitutiva do evento como escândalo (Thompson, 2008:
p. 29). Em outras palavras, um escândalo é assim classificado por adquirir espaço na mídia, levando à ocorrência
de desdobramentos que, possivelmente, não seriam verificados se não fosse a visibilidade midiática.
Cabe destacar que a elevada incidência de escândalos
políticos, desde meados do século XX, não decorre necessariamente da degradação moral das novas gerações
de políticos. O que acontece é que, conforme explicitado
anteriormente, aumenta-se a observação de atitudes associadas ao caráter dos políticos, tanto no âmbito de sua
vida pública quanto da privada. Quando se tem uma pessoa (e não seu trabalho, sua atuação, sua postura pública)
em alta conta, espera-se dela a correção dos atos e a manutenção de uma reputação imaculada, não somente no
que concerne aos interesses da sociedade.
A expectativa por políticos “virtuosos”, aliada à exploração de comportamentos reprováveis dos políticos
425
AF miolo corrupcao 3.indd 425
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
pela mídia, acarreta a desconfiança nos políticos, de modo
que aquele que “rouba, mas faz” pode até mesmo ser legitimado pela parcela descrente de eleitores. À primeira
vista, parece incoerente que o eleitor busque candidatos
que pautem sua vida por valores socialmente aceitos e, ao
mesmo tempo, que não acredite que este perfil de político
exista de fato (o que o levaria ao pragmatismo na escolha ou de escolher o “menos pior”). Porém, o sucesso de
outsiders pode ser um indicativo de que, embora creiam na
“contaminação” do campo político, os eleitores buscam
alternativas. É neste contexto de desconfiança nos representantes tradicionais da política no que ela tem mais escuso que se fortalecem os novatos e alternativos.
Assim como na desinformação sobre o funcionamento das instituições, os postulantes também desempenham
um papel importante para que se apresente um cenário de
descrença dos cidadãos. As campanhas eleitorais de muitos deles enfocam os episódios de desvios de conduta envolvendo oponentes, numa tentativa de desqualificá-los e,
naturalmente, de se colocarem como opções mais próximas do que se espera de um representante. A confiança
depositada num político adviria, ironicamente, do fato de
ele não evidenciar (ou, em casos extremos, até mesmo negar) seu pertencimento ao campo da política – pelo menos
no seu sentido pejorativo. Neste contexto de centralidade
das imagens públicas, é inevitável que a mídia se coloque
como um ator político de peso – o que, vale reiterar, não
quer dizer que a política se submeta completamente à sua
lógica de funcionamento186.
186
O exemplo do Mensalão, escândalo midiático de grandes proporções
que envolveu políticos brasileiros no ano de 2005, é bastante esclarecedor.
Embora tenha sido reeleito em 2006, o ex-presidente Lula foi ao segundo
turno e precisou escapar ao máximo de confrontações que o obrigassem a
discorrer sobre o assunto.
426
AF miolo corrupcao 3.indd 426
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Mídia,
desconfiança e percepção
da corrupção
Casos de corrupção são exibidos na mídia, tanto impressa quanto eletrônica. Imagens registradas com câmeras
escondidas e gravações de conversas telefônicas colocam
lideranças políticas em situações no mínimo embaraçosas e, em último termo, inviabilizam a continuidade de
suas carreiras. Nesta seção, pretendemos refletir sobre
causas e efeitos da divulgação midiática de episódios que
se convertem, então, em escândalos de corrupção. A desconfiança na classe política – e, de modo mais amplo, os
baixos níveis de confiança interpessoal – acabam sendo
reforçados pelos escândalos, nos quais mudam somente
os personagens.
Alguns achados, como os apresentados por Casas e
Rojas (2011), sugerem que, quanto maior a percepção de
corrupção, dada sua exposição na mídia, menor é a confiança nas instituições, incluindo os partidos políticos. Canel e Sanders (2003) argumentam que uma das fontes de
poder da imprensa é a habilidade para construir narrativas fortes, que enfocam incidentes de forma memorável
e apontam para significados mais extensos. Este poder
constitui a chamada função de agenda-setting dos meios de
comunicação social (McCombs e Shaw, 1972), que reside
precisamente na capacidade que possuem para conferir
visibilidade a problemas sociais que, de outra forma, dificilmente chegariam ao conhecimento do público. Neste sentido, a notícia é resultado da leitura efetuada pelo
autor sobre a realidade que lhe é dada a observar e que
pretende mostrar.
Os efeitos deletérios que a visibilidade midiática garante
sobre os acontecimentos que envolvem práticas corruptas
podem ser entendidos como a deterioração da confiança,
427
AF miolo corrupcao 3.indd 427
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
tanto nas instituições políticas como na própria mídia. A
partir da exposição dos escândalos de corrupção, e considerando a expectativa dos cidadãos quanto à segurança
jurídica, eficácia e aplicabilidade das leis, conforme estabelecidos no Estado Democrático de Direito, os fundamentos do sistema político podem ser mal compreendidos segundo o “modo de produção” e difusão das mídias,
possíveis protagonistas de uma ação intencionada à mescla
entre verdades e mentiras e descontextualização de notícias e acontecimentos. Se o fato torna-se recorrente, poderíamos questionar a percepção dos cidadãos quanto à
legitimidade das ações institucionais e midiáticas.
Nesse sentido, a opinião pública pode se aprofundar
em descrédito quanto ao sistema político, sem poupar a
atuação da própria mídia do mesmo julgamento. O efeito da desconfiança institucional ocorre no momento em
que reforça a cultura de personalização das relações políticas, sobrepondo lideranças individuais às instituições de
representação, ou descaracterizando formas tradicionais
de representação. De modo adicional e complementar,
quando a opinião pública percebe que a mediação entre
instituições e sociedade é corrompida, a legitimidade do
sistema político, ou do regime democrático, pode aprofundar o descrédito (Seligson, 2002).
Power e Jamison (2005) evidenciam que a desconfiança
dos cidadãos brasileiros – e, num contexto mais amplo,
latino-americanos – não tem como alvo apenas os políticos, mas é bem mais generalizada. Ao apresentar dados
que indicam que a confiança interpessoal é ainda menor
que aquela depositada em instituições tão desacreditadas
quanto os partidos e o Congresso Nacional, os autores
demonstram que, para além do alarmismo quanto aos
possíveis impactos da desconfiança em políticos e instituições sobre os regimes democráticos, é possível encarar
428
AF miolo corrupcao 3.indd 428
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
esta situação como reflexo de um quadro mais amplo e
não como indicativo de que as democracias – em que políticos e instituições não são vistas com confiáveis – estão
fadadas ao fracasso. Ademais, o declínio da confiança em
instituições e em políticos não é específica da América Latina, mas representa um fenômeno de dimensões globais.
Por outro lado, isso não quer dizer que esteja “tudo
bem” (Power e Jamison, 2005: p. 66) no Brasil. Por mais
que o retorno a um regime autoritário não pareça uma
ameaça real no contexto em que vivemos, é preciso considerar o seguinte: se, para as democracias consolidadas,
o impacto da redução da confiança dos cidadãos em instituições democráticas não abala a manutenção dos regimes democráticos em virtude do estoque de legitimidade,
qual o efeito deste declínio em sociedades que não contam
com o mesmo reservatório de legitimidade em relação à
democracia? Para onde os latino-americanos tendem a
“correr” diante do descrédito que demonstram em referência a partidos e outras instituições de representação?
Seria o desencanto um resultado inevitável deste cenário?
Quais os desdobramentos práticos da desconfiança nas
novas democracias?
Privilegiando o estudo do contexto em que se constituem as democracias da América Latina, Power e Jamison
(2005) buscam apontar as principais causas e consequências dos baixos índices de confiança. Como causas, temos
o fraco desempenho econômico (sobretudo na incapacidade de reduzir as desigualdades), corrupção e uso instrumental das instituições políticas. Destas, destacamos a
última, por ter o potencial de afetar de maneira que nos
parece mais acentuada a credibilidade tanto dos políticos
quanto das instituições. Casos de corrupção podem ter
um impacto sobre a reputação dos políticos (não apenas
dos envolvidos nos escândalos), mas, daí a gerarem des429
AF miolo corrupcao 3.indd 429
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
confiança nas instituições, existe um caminho que passa
pela sensação de impunidade diante dos episódios. A percepção de que os governantes tratam as leis e instituições
da democracia com descaso ou de modo a atender a interesses particulares põe em dúvida não apenas o caráter
destes políticos, mas a confiabilidade nas instituições que
eles modificam a seu serviço e, no limite, da classe política
como um todo. “Constituições e leis são vistas como inconveniências, em vez de limites institucionais à política.
O resultado final é que os políticos são percebidos como
governando para eles mesmos, não para o povo” (Power
e Jamison, 2005: p. 81).
Quanto às consequências da desconfiança política, a
principal delas, ainda de acordo com Power e Jamison
(2005), é a dispensabilidade dos políticos. Esta, por sua
vez, pode gerar um fenômeno bastante interessante e que
se verifica em inúmeros processos eleitorais no Brasil: “na
tentativa de escapar da identificação com a classe política,
com os partidos tradicionais ou com rótulos ideológicos,
muitos políticos escolhem atacar as instituições de representação (Power e Jamison, 2005: p. 85).
Neste contexto de desconfiança em pessoas e em instituições, é fundamental refletirmos acerca da postura dos
cidadãos diante das possibilidades cotidianas de praticarem atos de corrupção. Quando se trata dos políticos, a
condenação a práticas de mau uso ou desvio de recursos
públicos é corrente, bem como a crença de que a maioria
dos ocupantes de cargos públicos teria a mesma atitude
diante de oportunidades de obterem benefícios pessoais
em detrimento do interesse público. Mas, quando se trata de “pequenas” atitudes do dia a dia, os brasileiros as
entendem como corrupção? São igualmente intolerantes
a estes desvios de menor porte e cometidos por cidadãos
comuns ou, ao contrário, encontram justificativas para
430
AF miolo corrupcao 3.indd 430
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
tais atos? De acordo com pesquisas realizadas por Cervelini (2006), a corrupção encontra-se ainda presente no
cotidiano dos próprios brasileiros que, se por um lado criticam a existência dela na esfera pública, por outro lado
podem fazer uso destas mesmas práticas, se estivessem
no lugar dos políticos.
Além das questões anteriormente colocadas, o cenário
de desconfiança generalizada decorre do senso comum de
que “o brasileiro comum tem um caráter duvidoso e que,
a princípio, não se nega a levar algum tipo de vantagem no
âmbito das relações sociais ordinárias” (Filgueiras, 2009:
p. 387). Buscando rechaçar este pressuposto, Filgueiras
defende que atos de corrupção não se devem a desvios
de caráter inerentes aos brasileiros, mas à existência de regras informais que distinguem as práticas de corrupção
“toleráveis” daquelas inaceitáveis. Tal distinção reside no
que ele classifica como uma “antinomia entre o mundo
moral e o mundo da prática”, ou seja, o paradoxo entre
as leis morais – que não deixam espaço para a aceitação a
atos corruptos – e o funcionamento prático das instituições e das interações sociais, onde a corrupção ocorre e,
até certo ponto, é tolerada.
Isso leva à constatação de que não podem ser considerados somente elementos de ordem institucional para
a análise da percepção e tolerância à corrupção no país.
A cultura política também precisa ser tida em conta para
que se compreenda, entre outros exemplos possíveis,
a antinomia presente no fato de um mesmo indivíduo
condenar veementemente a desonestidade dos políticos
e considerar aceitável vender seu voto, sonegar impostos
ou tentar subornar um guarda de trânsito para evitar uma
multa. O envolvimento de elementos da cultura política
não complexifica a discussão sobre corrupção e torna
431
AF miolo corrupcao 3.indd 431
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
ainda mais difícil a implementação de soluções eficazes
e de curto prazo para o cenário detectado no Brasil187.
A tolerância à corrupção não é um desvio de caráter
do brasileiro, uma propensão e culto à imoralidade, nem
mesmo uma situação de cordialidade, mas uma disposição prática nascida de uma cultura em que as preferências
estão circunscritas a um contexto de necessidades, representando uma estratégia de sobrevivência que ocorre pela
questão material:
[...]. Isso implica que a corrupção represente um desafio à
democratização brasileira, não no plano formal, mas no plano
da cultura política. Não se pode dizer, portanto, que o brasileiro típico represente um caso de ausência de virtudes. As democracias não podem confiar apenas nas virtudes dos cidadãos, uma
vez que é fundamental pensar a efetividade das leis (Filgueiras,
2009: p. 417).
Considerando o contexto brasileiro, é válido afirmar
que a corrupção cometida por agentes políticos chega aos
cidadãos, em grande medida, através das notícias veiculadas nos meios de comunicação. Por isso mesmo, alguns
governantes defendem que não houve o crescimento da
corrupção nas últimas décadas, mas sim o aumento da
divulgação dos episódios e de sua exploração midiática.
A este respeito, é interessante observarmos, mesmo sem
o embasamento de dados conclusivos, que casos em que
pessoas comuns demonstram honestidade – ao devolverem grandes quantias em dinheiro encontradas na rua, por
exemplo – ganham destaque em noticiários, como se o
pressuposto fosse de que os indivíduos não têm a mesma
Moisés (2011) também realiza pesquisas que enfatizam as variáveis de
cultura política e seus efeitos sobre a tolerância dos brasileiros à corrupção.
187
432
AF miolo corrupcao 3.indd 432
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
obrigação de serem honestos no âmbito privado. Ao contrário, a expectativa de que figuras públicas pautem suas
ações sobre valores como a sinceridade e a integridade é
reforçada pela ampla disseminação de casos em que estes
princípios são desconsiderados.
Como um dos critérios de noticiabilidade é a ocorrência do inesperado ou a ruptura da normalidade (Traquina,
2005), é possível inferir que se espera dos agentes públicos
que se norteiem por rigorosos preceitos morais, embora se
admita uma certa inclinação “natural” dos indivíduos à desonestidade – o que eles colocariam em vigor na vida privada. Estes limites entre público e privado se tornam ainda
mais tênues e confusos se considerarmos a grande visibilidade dada pela mídia à vida pessoal de figuras públicas,
conforme apontamos em outra seção deste mesmo artigo.
Abordamos, até o momento, as possíveis causas da
percepção e tolerância à corrupção, bem como a principal consequência da ocorrência destes dois fenômenos:
a desconfiança interpessoal e nas instituições representativas. Porém, é oportuno colocarmos a seguinte questão:
os brasileiros intolerantes à corrupção e aqueles que notam sua incidência são a maioria ou falamos aqui sobre
um grupo de pequena expressão?
Em comparação a outros países, a percepção da corrupção pelo “brasileiro médio” está em um patamar parecido com o constatado entre cidadãos de países como
Estados Unidos e Canadá, nos quais imaginamos que seja
menor a incidência deste problema (Rennó e all., 2011: p.
66). Isso nos leva a outra forma de mensuração, complementar à percepção, que indique uma “taxa de corrupção”
mais aproximada da realidade: trata-se da vitimização por
corrupção. Diferentemente da percepção, o índice de vitimização por corrupção – construído a partir de variáveis que envolvem o pagamento de propina para a obten433
AF miolo corrupcao 3.indd 433
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
ção ou agilização de serviços públicos ou o recebimento
de ofertas de propina –, aproxima o Brasil de países que
passaram por crises democráticas recentemente, como
Equador e Venezuela. O que assemelha as duas formas
de investigação do problema da corrupção são os efeitos. Rennó e all. (2001, pp. 89-90), constataram que tanto
a vitimização quanto a percepção afetam negativamente
a crença na aplicação universal das leis e na capacidade de
punição do sistema judiciário.
Quando a sensação de impunidade está presente, abrese caminho para a prática da corrupção – e a simples
pressuposição de que os demais indivíduos pensarão da
mesma forma torna evidente a tendência de reforço da
desconfiança interpessoal. Voltamos, então, ao cenário
inicialmente desenhado – se não um pouco pior.
Percepção
e tolerância à corrupção
A sensação de que o problema está arraigado em diversas esferas da sociedade e que se reproduz de maneira
recorrente e mais visível no âmbito político, tem revelado
que a confiança da população, tanto nas instituições políticas como nas relações interpessoais, está fragilizada. A
exposição de práticas corruptas sinaliza aos agentes que
além de corromperem a ordem pública, os eleitos estão
mais inclinados a representarem o interesse privado que
o público. Esta seção destina-se a apresentar a percepção
da corrupção da população belorizontina.
A frequência com que o indivíduo é exposto à mídia
não pôde ser captada pela pesquisa realizada com os eleitores. Então, foi utilizada uma variável que aproxima o
grau de inserção do cidadão no debate político, a medida
de “interesse por política”. Sobre essa variável supomos
434
AF miolo corrupcao 3.indd 434
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
que um maior interesse conduza o indivíduo a se informar e inserir-se mais no debate sobre as eleições. Segundo
Almond e Verba (1989), a medida de interesse por política pode representar um indicador importante da cultura
cívica da população.
Gráfico 1. Interesse por política em Belo Horizonte (%)
Fonte: Pesquisa Eleições Municipais 2012, Belo Horizonte –
Grupo Opinião Pública (UFMG) e IPESPE. Base: 784.
O baixo percentual de entrevistados que declaram se
interessar muito por política, é significativo. O fato de mais
de um terço da amostra não se interessar “nada” por política pode expressar apatia dos entrevistados, mas não podemos afirmar se ela provém apenas de uma desconfiança
generalizada do sistema político; importa apresentá-la e
relacioná-la á outras variáveis.
Tabela 1. Percepção da corrupção em Belo Horizonte (%)
Perguntas
Sim
Não
Conhece ou ouviu falar de algum
caso de corrupção nos últimos meses
70,7
29,3
Percebe que a corrupção
está presente em Belo Horizonte
83,3
16,7
Fonte: Pesquisa Eleições Municipais 2012, Belo Horizonte –
Grupo “Opinião Pública” (UFMG) e IPESPE. Base: 625
435
AF miolo corrupcao 3.indd 435
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Para verificar a percepção da corrupção na cidade de
Belo Horizonte, foram realizadas duas perguntas. A primeira questionou acerca do conhecimento, ainda que indireto, sobre casos de corrupção, nos últimos meses que
antecederam o dia da eleição, no primeiro turno. Destaca-se que para 83,3% dos respondentes, a corrupção está
presente em Belo Horizonte. Nota-se que 70.7% dos cidadãos conheciam casos de corrupção. Dentre os entrevistados, 75% dos homens e 67% das mulheres conhecem,
mesmo de ouvir falar, sobre casos de corrupção. Quanto
ao nível de escolaridade, nota‑se que os grupos de menor escolaridade são os que menos conhecem casos de
corrupção. Na medida em que a escolaridade aumenta, o
conhecimento sobre tais casos também aumenta188.
Quadro 1. Casos de corrupção mais citados pelo eleitorado
Casos mais citados
Frequência
%
Mensalão
Caso Cachoeira
Marcos Valério
Dinheiro na cueca
419
45
12
6
52%
6%
2%
1%
Fonte: Pesquisa Eleições Municipais 2012. Belo Horizonte –
Grupo Opinião Pública (UFMG) e IPESPE.
O quadro 1 mostra quais casos foram mais citados de
forma espontânea entre aqueles entrevistados que declararam conhecer casos de corrupção: no topo da lista,
Valores: “não frequentou a escola” (58,3%) “primário completo”
(49%) “ginasial completo” (36%), “ensino médio incompleto” (32%) e “ensino médio completo” (30%). Os grupos “superior incompleto” e “de superior completo a pós-graduação” apresentaram 18% e 12% de entrevistados
que não conhecem casos de corrupção.
188
436
AF miolo corrupcao 3.indd 436
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
nota-se que o julgamento do caso do Mensalão foi o mais
lembrado pelo eleitorado, provavelmente pela cobertura
do caso nos meios de comunicação durante as eleições, já
que os supostos envolvidos estavam sendo julgados naquele momento. A significativa presença do escândalo do
Mensalão como caso mais citado pode ter sido influenciada
pelo contexto em que a pesquisa foi realizada. O fato do
julgamento do caso acontecer muito próximo da data da
eleição de 2012 pôde, em certa medida, ter influenciado na
percepção das pessoas quanto à corrupção. O volume de
exposição sobre o esquema de corrupção foi considerável, bem como o tom negativo que as notícias assumiam.
O julgamento do caso promoveu uma longa retrospectiva
sobre questões centrais do escândalo, da ação criminosa
dos envolvidos e, sobretudo, das evidências apontadas pela
Procuradoria-Geral da República. Foi considerado o caso
mais importante da história do Supremo Tribunal Federal
– STF –, desde a redemocratização. Para muitos, o comportamento da imprensa naquele momento foi entendido
como “incendiário”.
O gráfico 2 apresenta a distribuição dos meios de
comunicação para aqueles que responderam ter ouvido
falar de casos de corrupção nos últimos meses, questão acima. O conhecimento dos casos de corrupção
associa-se ao “interesse pela política”. Entre os eleitores que declararam ter muito interesse pela campanha, 90% conheciam ou ouviram falar de algum caso
de corrupção nos últimos meses. Por outro lado, 40%
dos entrevistados que não tinham nenhum interesse
pela política desconheciam casos de corrupção nos
últimos meses, contra apenas 10% dos que tem “muito” interesse.
A percepção da corrupção, além de outros condicionantes - participação direta em atividades políticas,
437
AF miolo corrupcao 3.indd 437
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
socialização e vínculos de interação pessoal –, é diretamente influenciada pelo tipo de mídia que é utilizado
para se informar189.
Gráfico 2. Notícias sobre corrupção nos meios
de comunicação
Fonte: Pesquisa Eleições Municipais 2012,
Belo Horizonte – Grupo Opinião Pública (UFMG) e IPESPE.
A televisão parece ser o principal divulgador dos casos
de corrupção: 93% do eleitorado soube de casos de corrupção através de informações veiculadas pela televisão.
Apesar da popularidade do rádio, somente 37% declararam ter ouvido falar de corrupção através deste meio de
comunicação190.
189
A diferença percentual entre a percepção e conhecimento de casos
de corrupção pode parecer contraditória,contudo três motivos nos servem
de esclarecimento. Primeiro, o distanciamento entre percepção de corrupção e conhecimento de casos, sendo a segunda situação mais condicionada
à exposição de casos ou escândalos na mídia, já a percepção pode incluir
a experiência efetiva do entrevistado com práticas corruptas. O segundo
motivo seria conceitual e próprio da flexibilidade do termo corrupção, não
concebido somente na esfera política, mas considerado recorrente também
no cotidiano, no serviço público ou na justiça.
190
Relativamente aos grupos de idade, os idosos são os que se informam
mais através da televisão (98,4% dos idosos) e rádio (41% dos idosos), já
pela “internet” ou “jornais/revistas” o grupo entre 25 a 40 é o que mais
acessa, 37% e 46% respectivamente. Os meios “rádio” e “jornais/revistas”
438
AF miolo corrupcao 3.indd 438
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Além da percepção da corrupção, foi verificada a tolerância da população. O Índice de Tolerância à Corrupção
Política (ITCP) foi criado a partir de um bloco de perguntas que perguntava ao indivíduo qual seria sua atitude
diante uma situação caso estivesse no lugar de um político.
A opção de resposta é ordenada na escala de 1 a 4. Sendo
o valor inferior correspondente à “nunca faria” e o último “sempre faria”. As questões escolhidas para compor
o bloco estão no quadro abaixo.
Quadro 2. Perguntas que compõe o índice
de tolerância à corrupção
1. Escolher familiares e/ou pessoas conhecidas para cargos de confiança
2. M
udar de partido em troca de dinheiro ou cargo/emprego para
familiares / pessoas conhecidas.
3. A
ceitar convites de festas/eventos de empresas particulares que seriam
beneficiadas pela aprovação de leis a serem votadas.
4. Aproveitar viagens oficiais para lazer próprio e de familiares.
5. R
eceber dinheiro de empresas privadas para fazer e/ou aprovar leis que
as beneficiem
6. Usar caixa 2 em campanhas eleitorais
7. Trocar o voto a favor do governo por um cargo para familiar ou amigo
Fonte: Pesquisa Eleições Municipais 2012, Belo Horizonte –
Grupo Opinião Pública (UFMG) e IPESPE.
são mais acessados por homens que mulheres. A mídia online é mais acessada
por aqueles que possuem escolaridade mais alta, 35% e 43% das pessoas
que possuem “superior incompleto” e “superior completo ou pós-graduação” respectivamente declararam receber informações pela internet. Os
demais níveis de escolaridade apresentam média de 25% de acesso à rede.
439
AF miolo corrupcao 3.indd 439
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Aplicamos as sete questões do bloco uma análise fatorial exploratória a fim de investigar os padrões ou relações latentes para as sete variáveis escolhidas e determinar aquelas que apresentam características estatísticas
desejáveis e comuns entre o bloco, ou seja, que está já medindo aspectos da mesma dimensão subjacente, no caso
a tolerância à corrupção. A técnica exploratória consiste em observar uma estrutura dos dados sem estabelecer
restrições ou a estimação do número de componentes
comum às variáveis. Esperamos encontrar um índice que
não seja contaminado por variabilidade de erro. Feita a
análise, dada à baixa comunialidade, optamos por retirar
a primeira e terceira questões do bloco acima. Portanto
as respostas sobre o posicionamento diante do tema nepotismo e da situação em de aceitar ou não convites para
festas e eventos de empresas particulares que seriam beneficiadas pela aprovação de leis a serem votadas foram
excluídas do índice.
O índice consiste basicamente em somar as respostas
que devem estar compreendidas entre 1 a 4. O máximo
e o mínimo de pontos obtidos são 20 e 4 respectivamente. Através de análise de cluster (agrupamento) extraímos
dois grupos de característica similares.
Tabela 2. Índice de tolerância
à Corrupção (ITCP)
Intolerantes 84%
Tolerantes 16%
Fonte: Pesquisa Eleições Municipais 2012,
Belo Horizonte – Grupo Opinião Pública (UFMG) e IPESPE.
440
AF miolo corrupcao 3.indd 440
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Nota-se que a tolerância à corrupção é relativamente baixa na cidade. Fica evidente que a maioria dos entrevistados
esteve exposta ao tema da corrupção, e o alto índice de respostas positivas quanto à percepção de práticas corruptas
em Belo Horizonte deixa claro que o eleitor considerava
o fenômeno recorrente na capital mineira. Cabe, portanto, perguntar em que medida o assunto foi abordado nas
campanhas e como se refletiu no momento das eleições.
A
corrupção nas campanhas
para prefeito
Se os escândalos de corrupção têm presença garantida nos noticiários e estão constantemente em pauta
nos grandes veículos de comunicação no Brasil, não se
pode dizer que este tema tenha recebido a mesma atenção das campanhas eleitorais de 2012, em Belo Horizonte. A despeito do julgamento dos réus do Mensalão,
ocorrido durante o processo eleitoral deste ano, nem
este nem outro episódio referente a corrupção foi tratado nas campanhas oficiais televisivas dos dois principais
candidatos da capital mineira, Márcio Lacerda (PSB) e
Patrus Ananias (PT).
Observando-se todos os programas do Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral, Telles e Lopes (2013), notaram que o foco dos dois candidatos foi na apresentação
das respectivas trajetórias políticas e realizações durante
seus mandatos como prefeitos. Entre os temas mais tratados, sobretudo por Lacerda, estava a saúde, que era a
principal preocupação dos belo-horizontinos à época do
processo eleitoral.
E, embora não tenha abandonado a apresentação de
projetos para um eventual governo, Patrus Ananias con441
AF miolo corrupcao 3.indd 441
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
centrou-se em criticar duramente o adversário. Esta estratégia não parecia a mais adequada ao contexto, tendo
em vista a boa avaliação do mandatário pelo eleitorado da
capital mineira – Lacerda era o prefeito mais bem avaliado
entre as maiores capitais do país. O que também parece
ter contribuído para seu sucesso nas urnas foi a tática de
responder aos ataques – embora não de diretamente, mas
de maneira rápida, objetiva e pragmática, no seu próprio
espaço de campanha. Por ocupar a dianteira nas pesquisas de intenção de voto, Lacerda pode se ocupar mais de
propostas e realizações, apelando ao pragmatismo do eleitorado. Por não poder se colocar como o postulante da
continuidade, Patrus investiu nos apoiadores Lula e Dilma
Rousseff e no seu “caso de amor” com Belo Horizonte.
Ele até buscou exaltar suas qualidades como gestor, mas
esta imagem de “gerente eficiente” já estava muito mais
associada a Lacerda. Em suma, quem forneceu mais informações que reduzissem o grau de incerteza dos eleitores, em virtude de sua posição privilegiada, foi o atual
mandatário (Telles e Lopes, 2013).
Já no ambiente online, onde os emissores são muitos
(nem todos identificados), os conteúdos das postagens
costumam ser mais negativos e satíricos do que elogiosos e os controles da legislação são bem menos efetivos,
o leque de assuntos tratados inclui, certamente, menções
à corrupção e a assuntos convenientemente ignorados
pelos postulantes em seus espaços oficiais de campanha.
Obviamente, não podemos considerar para esta análise
somente as páginas oficiais dos candidatos, visto que estas, sim, estão sujeitas a uma fiscalização mais fácil e às
possíveis penalidades decorrentes da aplicação da legislação eleitoral. Um vídeo que circulou durante a campanha
de 2008, no qual o candidato Lacerda era vinculado ao
Mensalão, num suposto depoimento do publicitário Mar442
AF miolo corrupcao 3.indd 442
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
cos Valério (um dos personagens centrais do escândalo),
voltou a ser acessado e compartilhado na web191. Naquela
campanha, o candidato precisou se defender das acusações em seu horário eleitoral, ao contrário do que ocorreu
em 2012 – momento em que a discussão sobre a participação do candidato à reeleição neste episódio tinha um
volume consideravelmente menor que na disputa anterior.
Por ser o candidato do PT, legenda de onde veio a
maior parte dos supostos envolvidos no Mensalão, Patrus
Ananias foi associado por alguns usuários da internet a
este escândalo. O foco dos vídeos mais assistidos no site
YouTube a este respeito recai sobre a amizade e o vínculo político de Patrus com o ex-ministro José Dirceu, um
dos petistas condenados no julgamento do Mensalão192.
No entanto, esta associação entre o candidato do PT e o
Mensalão era fraca e indireta o suficiente para também não
precisar ser respondida em sua campanha televisiva. Tudo
o que Patrus se limitou a declarar a respeito de uso dos
recursos públicos é que, durante o tempo em que foi ministro de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (de
2004 a 2010), não houve nenhuma suspeita de corrupção.
Uma particularidade das campanhas nesta eleição municipal nos induziu a vincular variáveis sobre corrupção,
especialmente aquelas que mensuram a percepção do problema, à variáveis de exposição à mídia. Pelo acompanhamento das campanhas no HGPE, constatamos que tanto
Patrus quanto Márcio Lacerda utilizaram pouco do tempo
disponível no HGPE, na televisão ou rádio, para atacar
seus adversários a respeito do tema da corrupção. Já a internet, cuja campanha foi observada através do Observa191
Vídeo disponível em: <http://www.youtube.com/watch? v=qXVy
4RzI7wc>. Acesso em 31 de Agosto de 2013.
192
Vídeo disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=g9 AILGGycYc>. Acesso em 31 de Agosto de 2013.
443
AF miolo corrupcao 3.indd 443
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
tório das Eleições Municipais193, foi amplamente utilizada
para fins de ataque político entre os candidatos. Na mídia
online foram expostos vídeos e notícias por parte de ambos
os grupos na tentativa de desmoralizar seus adversários.
Os candidatos mantiveram uma postura conservadora no
HGPE, pois, os ataques baseados na corrupção poderiam
se voltar contra os próprios, uma vez que o vasto material disponível para acusações era suficiente para insinuar
a participação de Patrus e Márcio em escândalos.
Os aspirantes à prefeitura preferiam então atacar seus
adversários com base às administrações passadas. Esta constatação interessa-nos, pois revela o conhecimento por parte
dos formuladores de campanha sobre a influência da avaliação retrospectiva na escolha do voto por parte do eleitor.
A
d e c is ã o d o v o t o p a r a p r e f e i t o
Os meios de comunicação são relevantes nas campanhas
e nos momentos que a antecedem, já que eles fornecem aos
eleitores uma variedade de informações políticas, muitas
vezes a baixo custo e de maneira cômoda. Nesse contexto,
fatores conjunturais – entre os quais se destaca a campanha
eleitoral – adquirem papel de destaque na escolha dos candidatos. Afinal, indivíduos abertos a novas informações são
alvos potenciais dos instrumentos de persuasão inerentes
às peças de campanha. Os efeitos da mídia estão, portanto,
Projeto do Inweb, DCC/UFMG, em parceria com o Centro de Convergência de Novas Mídias (CNNM) e com o Grupo de Pesquisa “Opinião
Pública, Marketing Político e Comportamento Eleitoral”, ambos da UFMG,
acompanhou o debate sobre as eleições na Web., em 14 cidades, através do
monitoramento de notícias, comentários, vídeos e acompanhar a repercussão nas redes sociais dos principais debates e da apuração dos votos.http://
www.observatorio.inweb.org.br/eleicoes2012/destaques/.
193
444
AF miolo corrupcao 3.indd 444
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
justamente no fato de que, ao refletirem sobre os problemas nacionais, os eleitores formam impressões dos candidatos, principalmente e de maneira mais regular, a partir dos
‘meios de comunicação de massa, especialmente a televisão
e a imprensa escrita’, que funcionam como um intermediário entre os candidatos, seus representantes e eventos de
campanha e o público. (Mundim, 2010: p. 358).
Cabe destacar que, nas campanhas brasileiras atuais,
principalmente para cargos majoritários, os partidos aparecem cada vez menos. A campanha geralmente se concentra nas figuras do candidato, quando ele tem capital
político acumulado, e dos apoiadores, como pudemos observar ao longo de toda a campanha televisiva das eleições
presidenciais de 2010. Manin (1995) observa que a tendência na democracia de público é, assim como no parlamentarismo, do voto em uma pessoa, não em um partido, embora as siglas continuem existindo. Os atributos
dos candidatos são exibidos nos meios de comunicação,
o que “aproxima” novamente estes candidatos do eleitorado. Nesse contexto, tende a ganhar mais votos o candidato que souber trabalhar melhor sua imagem na mídia.
A midiatização das campanhas eleitorais é apenas um dos
componentes da complexificação da vida social como um
todo (Ribeiro, 2004). Não se pode esquecer o papel destacado dos noticiários e programas televisivos não relacionados
ao HGPE. Para conquistarem visibilidade e legitimidade, os
candidatos precisam aparecer não apenas em seus programas do horário eleitoral, mas em espaços já conhecidos (e
cuja credibilidade já é reconhecida) pelo público.
A centralidade da televisão na campanha não se resume, assim, ao caráter referencial assumido pelos programas
do horário gratuito de propaganda eleitoral em relação aos
demais formatos de comunicação política. O papel central
desempenhado pelos medias na sociedade acaba, ao fim e ao
445
AF miolo corrupcao 3.indd 445
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
cabo, por fazer com que toda a campanha se estruture ao
redor dessa arena midiática central, com a participação dos
candidatos em debates, programas populares e de entrevistas, com a influência da agenda temática dos midia sobre a
agenda temática de candidatos e partidos e com a necessidade de fabricação de fatos que sejam positivamente noticiáveis pela cobertura dos meios de massa (Ribeiro, 2004:
pp. 38-39). Em outras palavras, os esforços de campanha
não se limitam à confecção de boas peças para o HGPE,
mas, também, à produção de eventos de campanha noticiáveis. Isso porque, “se os candidatos dispõem de mais tempo na televisão, maior o volume de informações que poderão apresentar para o eleitor e mais sofisticados podem
ser os argumentos de persuasão” (Telles e all., 2009: p. 98).
Visitando a perspectiva de racionalidade dos agentes,
no sentido de escolherem conforme a possibilidade de ganhos futuros, a escolha do representante responsabiliza o
político em aumentar a satisfação dos eleitores, expressa
materialmente em rendas. Esse tipo de abordagem pressupõe que o eleitorado possui informação para processar dois procedimentos cognitivos, o primeiro de carga
retrospectiva e o seguinte, prospectiva. Ambos compõem
a equação dos ganhos esperados no próximo governo em
relação aos benefícios que possui atualmente.
No procedimento retrospectivo a tomada de decisão
passa a ser amparada pela proposição de que, ao avaliar o
desempenho gerencial e econômico, os eleitores estariam
utilizando informação passada para aumentarem as chances de alcance de suas expectativas futuras, ou seja, quais
benefícios a escolha da nova administração traria dado seu
desempenho anterior. Pode-se tratar esse comportamento conforme é feito na abordagem sugerida por Fiorina
(1981), baseada no modelo de Downs (1957), em que o
voto retrospectivo representa uma etapa do prospectivo.
446
AF miolo corrupcao 3.indd 446
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Ao avaliar o aumento na satisfação que a administração
passada proporcionou, o indivíduo estaria considerando
apenas os resultados das políticas implementadas pelo governante, e não os meio políticos empregados. Ao contrário, no voto prospectivo é necessário julgar as propostas dos candidatos para então decidir em qual deles votar.
Daremos atenção preponderante à carga retrospectiva,
pois demanda menos informação por parte do eleitor se
comparada às análises prospectivas. Essa adequação deve-se ao fato de que o estudo se insere num contexto que
predomina o perfil de um público desatento, com pouca
informação sobre os candidatos e baixo interesse político,
marcadamente próximo ao eleitor mediano. É mais provável que o eleitor , ao definir sua escolha, se baseie nos
fatos atuais em detrimento dos futuros.
Nossa base de dados fornece uma informação que corrobora com o argumento anterior. Quando questionamos aos
entrevistados sobre as principais razões de voto para prefeito constatamos que a experiência anterior do candidato
mostrou-se mais importante que as propostas dos mesmos.
Gráfico 3. Razão importante para decisão
de voto para prefeito.
Fonte: Pesquisa Eleições Municipais 2012, Belo Horizonte - Grupo
Opinião Pública (UFMG) e IPESPE Base: 750.
447
AF miolo corrupcao 3.indd 447
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Em resumo, a experiência anterior do candidato ou
as propostas de governo, principalmente tratando-se
da possibilidade de reeleição de Márcio Lacerda, podem estar mais vinculadas à decisão de voto se comparadas à questão ideológica do político ou do partido
que representa. Uma análise inicial do gráfico anterior
faz-nos supor que o voto retrospectivo econômico teve
mais peso sobre o resultado das eleições que o voto calcado em fatores ideológicos ou partidários. Um dado
que corrobora o argumento é o fato de que 21% dos
entrevistados que declararam votar em Márcio Lacerda
alegaram também preferência partidária pelo Partido
dos Trabalhadores, sigla do então concorrente. O apoio
político de outros partidos ao candidato teve expressão
mínima (1,3%). “Qualidades pessoais e ou aparência do
candidato”, “A opinião dos amigos/ parente-vizinhos”
e” campanha eleitoral do candidato” apresentaram menos importância.
As eleições e campanhas nas capitais e grandes cidades brasileiras são realizadas sob a mescla de práticas políticas mais tradicionais ao uso de técnicas sofisticadas de
linguagem televisivas. No tocante às campanhas o partido tem sido posicionado marginalmente às estratégias de
persuasão, sem muita importância no material de campanha (Telles, Lourenço e Storni, 2009; Lavareda e Telles,
2011). É possível observar que o declínio do voto partidário e o crescimento do voto não ideológico é também
uma realidade em diversos países.
Ao supormos a carga retrospectiva econômica que
pôde ter influenciado no voto para prefeito, destacamos
duas variáveis pertinentes à análise. A primeira diz respeito à avaliação passada da administração de Márcio Lacerda (PSB); a segunda expressa o grau de satisfação com a
economia do país. A precisão em mensurar efeitos sobre
448
AF miolo corrupcao 3.indd 448
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
o voto municipal é mais característica da avaliação gerencial. De acordo com trabalhos de Fiorina (1981) e Kinder
e Kiewit (1981), consideramos a avaliação econômica importante fator na decisão do voto, a partir do pressuposto de que os eleitores percebem indicadores econômicos
básicos, oferta de emprego e inflação, como sinais de estabilidade ou não da economia. Portanto, não podemos
estender de forma clara tal avaliação para o âmbito municipal ou prever seu efeito sobre a decisão de voto no
mesmo âmbito sem considerar um viés regional. Tanto
é assim que os diferenciais de resposta para as perguntas
sobre avaliação da economia e da administração passada
são significativos.
Gráfico 4. Avaliação da Administração
do Prefeito Márcio Lacerda.
Fonte: Pesquisa Eleições Municipais 2012, Belo Horizonte –
Grupo Opinião Pública (UFMG) e IPESPE Base: 721.
A predileção pelo atalho cognitivo da retrospecção não
exime a necessidade em considerar a sua multidimensionalidade. Entre outros fatores, que não os tradicionalmente
estudados – a avaliação da atuação passada dos políticos
e o desempenho no gerenciamento da economia –, devese considerar também aspectos que emergem de outras
esferas de atuação política, tais como a percepção de ho449
AF miolo corrupcao 3.indd 449
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
nestidade e probidade administrativa, solidariedade social
entre outros avanços que não necessariamente representem valores materiais.
Tabela 3. Avaliação gerencial e desempenho da economia
(escala de 1 a 5)
Média
Desvio Padrão
Avaliação da administração
do Prefeito Márcio Lacerda
3,28
1,113
Avaliação da situação Econômica do País
1,49
0,987
Fonte: Pesquisa Eleições Municipais 2012, Belo Horizonte - Grupo
Opinião Pública (UFMG) e IPESPE Base: 654.
Quanto às dimensões não convencionais do voto
retrospectivo, destacamos a percepção da corrupção
como fator que pode ser incluso ao cálculo do eleitor.
A análise dos efeitos da corrupção sobre a decisão de
voto importa também para compreensão mais ampla de
contabilidade democrática, sobre a necessidade ou capacidade dos eleitores em punirem seus representantes.
Como expõe Holdbrook (1994), se uma administração
passa a ser associada à corrupção e a escândalos, esse fator passa a ser caracterizador de seu desempenho passado e critério para o voto retrospectivo. Portanto, mesmo
que a avaliação do desempenho gerencial de determinado candidato seja positiva, há de se ponderar o peso de
casos ou de escândalos de corrupção, que foram expostos durante o governo.
A percepção de recorrência de práticas corruptas pode
minar outras dimensões retrospectivas. O trabalho de Ren450
AF miolo corrupcao 3.indd 450
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
nó (2006) aponta que no contexto de eleição presidencial
de 2006, os escândalos que envolviam o governo Lula não
foram suficientes para impedir a reeleição do candidato,
portanto outras dimensões retrospectivas de cunho econômico ou avaliações gerais do governo foram preponderantes na tomada de decisão dos eleitores. O peso do
fenômeno sobre a decisão de voto assenta-se na hipótese
de que escândalos de corrupção possam ter prejudicado
o desempenho dos candidatos ao analisarmos informações sobre a percepção do problema pelos entrevistados,
o nível de tolerância e posicionamento gerais dos eleitores quanto às práticas corruptas
C o n si d e r a ç õ e s F i n a is
A exposição do fenômeno da corrupção tem, sob determinado contexto, capacidade para mobilizar e gerar
juízos de valor, além de despertar interesses e fomentar a
luta por poder simbólico na arena política. A relevância
dos estudos de decisão de voto é evidenciada na diversidade de teorias que fundamentam as principais pesquisas de comportamento eleitoral. Na literatura, é evidente
uma concentração de estudos sobre as eleições presidenciais, mas a compreensão de como o brasileiro vota para
prefeito e a identificação de fatores que estão associados
à sua escolha, ainda suscitam divergências entre pesquisadores. Atualmente, a identificação com o candidato, a
sua representação política e avaliação da administração
passada assumem importância como preditoras do voto
em detrimento da estruturação ideológica e identidade
dos partidos
A decisão do voto nas eleições para prefeito de Belo
Horizonte, em 2012, provavelmente esteve mais relacio451
AF miolo corrupcao 3.indd 451
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
nada com o voto retrospectivo, especialmente no tocante
à avaliação positiva da administração do candidato Márcio Lacerda. Neste contexto, a campanha de reeleição de
Márcio Lacerda esteve associada à continuidade, e o candidato esteve à vontade para enfatizar aspectos da sua capacidade de realização, bem como a aprovação recebida
por ele à frente da prefeitura de Belo Horizonte. Da parte
dos principais candidatos, tanto o HGPE quanto os spots
e inserções em outras mídias, exaltaram as realizações dos
postulantes ou mitigaram a habilidade ou a experiência
passada dos concorrentes (principalmente se mencionarmos Patrus Ananias, que, como vimos, investiu bastante
em ataques ao oponente de maior relevo).
Os eleitores ficaram expostos a um conteúdo que contribuiu para constituição do voto retrospectivo, baseado
nas capacidades de administração de cada candidato, dado
suas experiências passadas à frente da prefeitura. O eleitorado foi influenciado, ainda, por uma carga prospectiva
que favoreceu o candidato eleito do PSB, ao enaltecer o
discurso de continuidade do projeto ou plano de governo
já estabelecido em seu mandato anterior. Neste contexto, cabe destacar ainda os esforços de Patrus em valorizar
suas qualidades gerenciais, embora este não tenha sido o
foco de sua campanha e num contexto em que a imagem
de bom gestor já era marca registrada de Lacerda.
A mídia online foi utilizada para a promoção de ataques, que tentaram desmoralizar a atividade política dos
principais incumbentes. Pelo modelo logístico, é possível
dizer que Patrus obteve mais sucesso na campanha online, na medida em que é sua a maioria dos eleitores que
declaram ter a internet como principal meio de informação para as eleições. De modo contrário, Márcio Lacerda
angariou mais votos daqueles que se informam por revistas ou jornais.
452
AF miolo corrupcao 3.indd 452
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Apesar da exposição pelos meios de comunicação,
a pauta da corrupção apresentou menos relevância na
decisão do voto para prefeito, em comparação a aspectos econômicos e avaliações de administrações passadas.
Apesar do eleitorado da cidade estar exposto ao tema
nacional da corrupção, representada midiaticamente através do julgamento do caso do Mensalão, este tema não
foi utilizado na decisão de voto. A cobertura e a veiculação massiva de conteúdos sobre corrupção na mídia
podem não acarretar efeitos no momento das eleições
– pelo contrário, podem ser danosas, por ressaltarem patologias institucionais, como o fenômeno da corrupção,
em detrimento de virtudes.
Dado que a visibilidade dos casos e escândalos é garantida principalmente pela mídia, os efeitos sobre a percepção e o posicionamento do cidadão diante do tema,
podem recair principalmente sobre a confiança nas instituições políticas e o prestígio dos atores. Ao mesmo tempo em que partidos e políticos utilizam veículos de comunicação para construir um estoque de capital político
simbólico diante do eleitorado, os escândalos políticos
midiáticos podem contribuir para desgastar capitais políticos. A excessiva visibilidade dada aos escândalos, sem
nenhuma contrapartida de controle judicial e público não
estatal, evidencia de maneira nociva as falhas das instituições representativas, o que pode implicar a emergência de
contextos de instabilidade política, uma cultura de baixa
confiança institucional e a sensação de recorrência das
práticas seguidas de impunidade.
Forma-se, então, um círculo vicioso que, embora não
seja o foco das campanhas eleitorais e não esteja no centro das preocupações do eleitor ao decidir seu voto, é difícil de ser rompido e causa transtornos ao funcionamento
da democracia. Ao ser tratado frequentemente pela mí453
AF miolo corrupcao 3.indd 453
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
dia, como notícia, a corrupção passa a ser rotinizado e,
de escândalo, transforma-se, na percepção do eleitor, em
“fato natural” e atributo de todos os políticos, o que reduz, assim, a possibilidade do tema da corrupção produzir efeitos na decisão de voto.
Referências Bibliográficas
ALMOND, G. A. e VERBA, S. (1989) The civic culture revisited: an
analytical study. Thousand Oaks: Sage.
ARAÚJO, R. B. (2010) Corrupção e instituições políticas: uma análise
conceitual e empírica. Paper apresentado no 7º Encontro da Associação
Brasileira de Ciência Política.
CASAS, D. P. M. e ROJAS, H. (2011) Percepciones de corrupción y
confianza institucional In: ROJAS, H. e all. Comunicacion y cidadania. Bogotá: Universidade de Externado.
CANEL, M. J. e SANDERS, K. (2005) El poder de los medios en los
escándalos políticos: la fuerza simbólica de la noticia icono. Anàlisis: quaderns de comunicació i cultura, n. 32, pp. 163-178.
CERVELLINI, S. (2006) Corrupção na política: eleitor vítima ou cúmplice?
São Paulo: IBOPE Inteligência.
CHAVERO, P. (2011) La corrupción política en los medios de comunicación españoles: un estudio del caso Gürtel. II Congreso Internacional em Gobierno, Administración y Políticas Públicas. Madrid. pp. 12-13.
DALTON, R. (1984) Cognitive mobilization and partisan dealignment in advanced industrial democracies. The Journal of Politics,
vol. 46, n. 1, pp. 264-284.
DOWNS, A. (1957) An economic theory of democracy. New York: Harper &Row.
FILGUEIRAS, F. (2008) Corrupção, democracia e legitimidade. Belo Horizonte: Editora UFMG.
FILGUEIRAS, F. (2009) A tolerância à corrupção no Brasil: uma
antinomia entre normas morais e prática social. Opinião Pública,
Campinas, vol. 15, n. 2, nov. 2009, pp. 386-421.
FILGUEIRAS, F. (2011) Transparência e controle da corrupção no
Brasil In: FILGUEIRAS, F. e AVRITZER, L. (Orgs.) Corrupção e
sistema político no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
454
AF miolo corrupcao 3.indd 454
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
FILGUEIRAS, F. (2012) Corrupção e cultura política: a percepção
da corrupção no Brasil In: TELLES, H. e MORENO, A. (Orgs.)
Opinião pública e comportamento político na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG.
FIORINA, M. (1981) Retrospective Voting in American National Elections.
New Haven: Yale University Press.
HOLBROOK, T. (1994) Campaigns, national conditions, and U.S.
presidential elections. American Journal of Political Science, vol.38,
pp. 973-98.
HUNTINGTON, S. P. (1975) Modernização e corrupção In: A ordem política nas sociedades em mudança. São Paulo: EDUSP.
KINDER, R. e KIEWIT, D. (1981) Sociotropicpolitics: The American Case British Journal of Political Science, vol.11, pp.129-61.
KLINGEMANN, H. (1999) Mapping political support in the 1990s:
a global analysis In: NORRIS, P. (Ed.). Critical Citizens: global support for democratic government Oxford: Oxford University Press,
pp. 31-56.
LAVAREDA, A. e TELLES, H. de S. (2011) Como o eleitor escolhe seu
prefeito: campanha e voto nas eleições municipais. Rio de Janeiro: FGV.
MANIN, B. (1995) As metamorfoses do governo representativo.
Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), São Paulo, ano 10, n.
29, out. 1995.
McCOMBS, M. e SHAW, D. (1972) The agenda setting function of
mass media. Public Opinion Quarterly, vol. 36 (2).
MENEGUELLO, R. (2011) O lugar da corrupção no mapa de referências dos brasileiros: aspectos da relação entre corrupção e
democracia In: Corrupção e sistema político no Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira.
MIGUEL, L. F. (2003) Capital político e carreira eleitoral: algumas
variáveis na eleição. Revista de Sociologia e Política, vol. 20, n. 20,
pp. 115-134.
MOISÉS, J. À. (1995) Os brasileiros e a democracia: bases sociopolíticas da
legitimidade democrática. São Paulo: Ática.
MOISÉS, J. À. (2008). A cultura política, instituições e democracia:
lições da experiência brasileira. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
v. 23, pp. 11-43.
MUNDIM, P. (2010) Cientistas políticos, comunicólogos e o papel
da mídia nas teorias da decisão do voto. Revista Política Hoje, vol.
19, n. 2, pp. 338-364.
MUTZ, D. (2006) Hearing the other side: deliberative versus participatory democracy. Cambridge: Cambridge University Press.
455
AF miolo corrupcao 3.indd 455
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
POWER, T. J. e JAMISON, G. D. (2005) Desconfiança política na
América Latina. Opinião Pública, Campinas, vol. 11, n. 1, pp.
64-93.
RENNÓ, L. (2007) Escândalos e voto: as eleições presidenciais brasileiras de 2006. Opinião Pública, vol. 13, n. 2, pp. 260-282.
RENNÓ, L., SMITH, A., LAYTON, M. e PEREIRA, F. (2011) Legitimidade e qualidade da democracia no Brasil: uma visão da cidadania.
São Paulo: Intermeios; Nashville: LAPOP.
RIBEIRO, P. F. (2004) Campanhas eleitorais em sociedades midiáticas. Revista Sociologia Política, jun. Curitiba, pp. 25-43.
RUBIM, A. A. C. (1997) Configurações da política na Idade Mídia In:
FAUSTO NETO, A. e PINTO, M. J. (Orgs.) Mídia & Cultura.
Rio de Janeiro: Diadorim, pp. 13-35.
RUBIM, A.A. C. e AZEVEDO, F. A. (1998) Mídia e Política no Brasil: estudos e perspectivas. Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, 1998.
RUBIM, A. A. C. (2001) Novas configurações das eleições na idade
mídia. Opinião Pública, vol. 7, n. 2, pp. 168-181.
SELIGSON, M. (2002) The impact of corruption on regime legitimacy: a comparative study of four LatinAmerican countries. Journal of Politics, v. 64, n. 2, pp. 408-433.
SHEA, D. M. (1999) All scandal politics is local: ethical lapses, the
media, and congressional elections. The Havard International Journal of Press/Politics, pp. 4-45.
TELLES, H. de S. e LOPES, N. (2013) Passado ou futuro? O duelo entre
as realizações e propostas de Marcio Lacerda e Patrus Ananias na
disputa pela prefeitura de Belo Horizonte em 2012 In: PANKE, L.
e CERVI, E. Eleições nas capitais brasileiras em 2012: um estudo sobre
o HGPE em eleições municipais. Curitiba, UFPR, 2013 (e-book).
TELLES, H. de S., LOURENÇO, L. C. e STORNI, T. P. (2013) Partidos, campanhas e voto: como o eleitor decide nas municipais. 2009.
Disponível em: <http://www.revistas.ufg.br/index.php/fchf/article/view/6903/4958>. Acesso em: 10 ago 2013.
THOMPSON, J. B. (2002) O escândalo político: poder e visibilidade na
era da mídia. Petrópolis: Vozes.
THOMPSON, J. B. (2008) A nova visibilidade. MATRIZes, vol. 1,
n. 2, pp. 15-38.
TORCAL, M., MONTERO, J. R. e GUNTHER, R. (2003) Ciudadanos y partidos en el sur de Europa: los sentimientos antipartidistas. REIS - Revista Española de Investigaciones Sociológicas, pp. 9-48.
456
AF miolo corrupcao 3.indd 456
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
TRANSPARENCY INTERNATIONAL (2013) Politics and government.
Disponível em: <http://www.transparency.org/topic/detail/politics_and_government>. Acesso em: 31 ago 2013.
TRAQUINA, N. (2005) Teorias do jornalismo. Florianópolis: Insular.
Base de Dados
Pesquisa Eleições Municipais de 2012. Belo Horizonte: IPESPE/UFMG,
2012.
457
AF miolo corrupcao 3.indd 457
7/31/14 12:55 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 458
7/31/14 12:55 AM
12. A objetividade na
c o b e rt u r a d o e s c â n d a lo
político e os novos
propósitos de uma
s u b j e t i v i d a d e o b j e t i va n t e
Bruno Paixão
Introdução
Conta-se com eufemismo que dois homens foram
condenados a uma pena igual. Sendo ambos jornalistas,
a sentença apontou-lhes o caminho cavo da mesma cela
isolada, para que cumprissem penitência juntos. Esta estória parece deixar-nos diante de um caminho vazio. Mas
o foco nos dois sujeitos exprime a condição da comunicação, de onde brotam algumas das questões emergentes
que aqui pretendemos tratar.
Sem liberdade, não podemos informar, declararam os
jornalistas ao guarda do portão. Encarando isso como uma
alegoria, o guarda retorquiu, mandando construir uma pequena janela para os seus dois prisioneiros, dizendo-lhes
que através daquela abertura poderiam ver a realidade, mas
não tocá-la, nem fazer parte dela ou modificá-la.
Sem implicação com a realidade que observam, poderão os jornalistas cumprir o seu papel informativo? Como
sustenta Cornu (1994: pp. 362-363), os jornalistas não são
meros observadores, mas intérpretes e também narradores. Captam os factos, “põem inteligência e convicções
ao serviço da sua compreensão”. E para os expressarem,
“envolvem a sua sensibilidade”. Comunicam-nos por meio
da sua linguagem. Isto conduz-nos a uma dúvida que se
459
AF miolo corrupcao 3.indd 459
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
encontra no cerne deste tema: de que realidade podemos
então comummente falar?
O filósofo José Manuel Chillón (2010) sistematiza-a,
identificando a “realidade‑matéria prima da informação”,
ou numénica (no sentido de ser real e absoluta, está a margem da compreensão do indivíduo); a “realidade fenoménica”, enquanto conjunto de factos jornalísticos noticiáveis cuja captação depende tanto dos meios tecnológicos
como dos critérios profissionais; e a “realidade informativa” que, enquanto existência construída, corresponde
à realidade difundida pelos media e captada pelo recetor.
Daqui se infere, como González Bedoya (1987), que na
sua base a realidade não pode ser modificada pelo homem,
mas pode ser distorcida ao ser conhecida. Esta proposição
assume a maior importância, sabendo-se que é em grande
parte através dos media que o público toma conhecimento
da realidade – um dado evidenciado em inúmeras investigações, por vários autores, como Codina, Mauro Wolf,
Lipmann, Raymond Boudon, Chillón, ou Rose-Ackerman.
Esta última, na sua investigação sobre a corrupção política (1999), conclui que a perceção do público está intrinsecamente relacionada com as características da cobertura jornalística, dado seguramente corroborado por Doris
Graber (2004) nos seus estudos sobre a política e os órgãos de informação. Esta sugere ainda que as discrepâncias de orientação política entre os jornalistas e o público
podem explicar por que é que quase metade deste expressa
uma tão limitada confiança na exatidão dos media. Estando em causa a confiança e a credibilidade dos jornalistas,
como relançar as bases de uma reposição destes capitais
simbólicos perante o público? Chillón (2010) considera
que “a credibilidade do jornalismo é tanto maior quanto
menor for a marca do profissional”. Posição que parece
convencer mais teóricos do que jornalistas, por preten460
AF miolo corrupcao 3.indd 460
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
der despojar a notícia de subjetividades ‘supérfluas’ dificilmente descartáveis.
Em geral, os jornalistas, tal como alguns académicos,
procuram legitimar a sua posição invocando sobretudo
três razões em defesa da subjetividade. A primeira, de razão kantiana, que se escora no facto de a realidade não
poder ser captada sem a implicação experiencial do sujeito, usando este o seu quadro de perceção individual. A
segunda refere que a transmissão da informação é parte
de um processo comunicativo que depende, logo à partida, das competências linguísticas do jornalista. Por último, quer no processo de captação da informação, quer
no de expressão, “o jornalista sofre sempre a influência
do seu sistema de valores e da sua particular relação com
o mundo” (Santos, 2002: p. 57).
Estas razões são sobretudo invocadas quando se trata
de rejeitar a objetividade. Trata-se de um erro persistente,
pois os dois conceitos, objetividade e subjetividade, não
se encontram em campos opostos. Aliás, desde a Crítica
da Razão Pura, publicada por Kant em 1781, que as barreiras entre ambos se desmoronaram. Tornou-se claro que
a objetividade do conhecimento necessita da subjetividade para se constituir, da mesma forma que a objetividade
jornalística precisa da atividade profissional (subjetividade) na sua formação.
Se a objetividade não implica a renúncia a atos inalienáveis de subjetividade individual, recusar a objetividade
é, segundo Américo Sousa (2006) abrir a porta a que “deixem de imperar os valores de imparcialidade, de isenção e
de rigor próprios do chamado jornalismo de referência”.
O mesmo autor ironiza: “o jornalista pode passar a dizer
o que lhe vier à cabeça, escrever sobre assuntos da sua
exclusiva preferência ou interesse pessoal, cingir-se à realidade ou misturar ficção. É indiferente…”. No fundo, a
461
AF miolo corrupcao 3.indd 461
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
rejeição da objetividade baseada no único argumento de
que o jornalismo é feito por pessoas que são condicionadas pelas suas próprias suscetibilidades e idiossincrasias,
acarreta consequências paradoxais, entre elas a de que o
jornalista, no limite, deixaria de se responsabilizar pelo
que produz.
O pretexto de que no discurso jornalístico a objetividade não é possível, defendido por alguns autores como
Glasser (1984: p. 123), Entman (1989: pp. 30-43), Carey
(1994: p. 132), Blumler (1995: pp. 129-132), Canel (1996)
e Expresso em parte por Hubert Beuve-Méry, fundador
do Le Monde (“a objetividade não existe, a honestidade
sim”), ou mesmo no livro de estilo do Washington Post (“a
objetividade é impossível, mas a imparcialidade é algo a
que podemos chegar”), deixa a via livre, como crê Cornu
(1994: p. 393), ao “vale tudo” e “a um jornalismo de preguiça, a uma trituração dos factos destinada a obrigá-los
a falar”. Pelo contrário, o profissional que opta por uma
conduta de objetividade coloca‑se ao serviço da verdade,
“com a máxima isenção e rigor possíveis”, refere Sousa
(2006), questionando: “Que melhor prova poderia dar do
seu sentido de responsabilidade?”. Esta é, naturalmente,
uma interpelação de retórica, que põe em evidência a postura, a intenção e a conduta de objetividade, por parte de
cada jornalista.
Visto de outra maneira, confinar o exercício jornalístico à subjetividade das vivências particulares e do conhecimento individual, deixa à deriva a própria profissão. É
aceitável, e reconhecido, que cada jornalista é detentor
da sua própria subjetividade. Todavia, no limite, se nada
pudéssemos acrescentar a isto, um órgão de informação
mais não seria do que uma mera e equívoca profusão de
subjetividades, sem identidade sequer. O denominador
comum a que uma redação pode aspirar é, pois, a obje462
AF miolo corrupcao 3.indd 462
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
tividade enquanto procedimento coletivo, fazendo dissipar alguns sinais individuais que maculam o processo de
elaboração da notícia. Nesta sequência, são precisamente
essas diferentes subjetividades que tornam imprescindível
aclamar a objetividade como preceito irrefutável da qualidade jornalística. Como expõe Mário Mesquita (2000),
num dos mais deferentes ensaios sobre a matéria, “no
jornalismo, tal como no conhecimento científico, os factos não existem independentemente de quem os apreende. Mas isso não invalida, antes pressupõe, uma conduta
de objetividade”. Pensamos que é precisamente aqui que
deve ser recentrada a questão.
A
conduta de objetividade
Voltemos à prisão onde os dois jornalistas estão detidos. Tivessem eles em mãos a elaboração de uma notícia,
até que ponto a objetividade, para se cumprir, careceria
do seu envolvimento intrínseco e subjetivo? A resposta
surge evidente. A objetividade, sem o jornalista e as suas
rotinas profissionais, não é mais do que uma objetividade sem valor informativo. Da mesma forma que o sujeito profissional, sem uma realidade para informar, leva o
jornalismo a renunciar à verdade. As três realidades desenhadas por Chillón pressupõem que o sujeito vá progressivamente construindo a notícia que será veiculada. Mas,
de uma maneira ou de outra, “a legitimidade da profissão
só pode estar garantida se no final os recetores souberem
algo sobre a realidade de que são informados”, refere Chillón (2007: p. 27). Uma realidade tolhida pela subjetividade mas com dever de verdade, como veremos de seguida.
Ao abrir uma janela na cela dos jornalistas, o guarda
exprimiu a metáfora da sinecura que reflete apenas um
463
AF miolo corrupcao 3.indd 463
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
fragmento da realidade. Não considerou, porém, que a
informação jornalística põe em cena “acontecimentos,
que constituem o seu material específico, sentido e estilo”, aproveitando as palavras de Cornu (1994: p. 329).
Nessas condições, a discussão sobre a verdade e a objetividade deve incidir sobre as três ordens da informação:
a observação, a interpretação e a narração. A busca da
verdade não pode ser apenas encarada como um requisito normativo do trabalho jornalístico. Deve “iluminá-lo”
continuamente, fomentando que prossiga com critérios
de objetividade, indo mais ao fundo da verdade, varrendo
dos meandros o pó que oculta contextos, motivações e interesses. A busca da verdade não pode assim admitir que
fiquem caminhos por investigar, nem fontes por verificar.
Retomando a nossa estória, na perspetiva a partir da
cela, a luz que incide sobre os objetos pode fazer também
aumentar as sombras que nele se deformam. Esta visão
parcial e sem rebatimento, valendo-se da crueza solitária
da subjetividade, afasta a precisão. E logo, a verdade. Sobre qualquer jornalista deve recair continuamente a exigência ética de respeitar a verdade, quer seja quando observa, interpreta ou relata um facto, quer mesmo quando
o comenta. Daí que o processo noticioso deva representar uma permanente tentativa de passar da subjetividade à
objetividade. A objetividade como método de orientação
para a verdade, que não seja apenas uma cosmética que
ajuda a maquilhar o jornalismo para o fazer parecer mais
responsável e credível. Mas que o faça ser efetivamente.
Eis um motivo que justifica a necessidade de reabilitar a
conduta de objetividade.
Chegados aqui, importa aclarar o que significa, em
suma, o “primado da objetividade”. Chillón (2010) sublinha reiteradamente a ideia de que a escassez de reflexões
teóricas aprofundadas sobre o jornalismo tem provocado
464
AF miolo corrupcao 3.indd 464
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
equívocos na terminologia que os profissionais utilizam
para compreender a sua orientação. Se perguntarmos aos
jornalistas o que lhes sugere a objetividade informativa,
teremos respostas díspares e imprecisas – na parte operativa deste trabalho fá-lo-emos. Como constata Bedoya
(1987), “para uns, a objetividade é igual à informação assética, livre de quaisquer comentários. Para outros, a objetividade é definida pela confrontação das várias fontes.
Para outros, finalmente, a objetividade é uma abstração
extraordinária”. Através desta diversidade de definições
facilmente constatamos que entre os jornalistas não existe o mesmo entendimento em relação ao conceito, o que,
malgrado, desde logo inviabiliza que a objetividade possa
ser reivindicada aos profissionais.
O desafio da objetividade tem sido uma questão recorrente que não encontra consenso. Mesmo a alternância de
abordagem (objetividade como método, como processo,
como ritual, como ideologia) tem trazido pouca luz ao
problema, como considera Fidalgo (2006: pp. 146-154).
Segundo McDonald (1971: p.82), “o conceito de objetividade [que não deve confundir-se com o objetivismo,
que é uma teoria filosófica do conhecimento, especializada e técnica], emprega-se para significar simplesmente
uma correspondência essencial entre o conhecimento de
uma coisa e essa mesma coisa”. Já Cornu (1994: p. 391)
refere que
se tivéssemos de exprimir a exigência da objetividade por meio
de um só critério prático, esse seria o do rigor no método. O rigor é ir ao fundo nas investigações materialmente realizáveis, no
tempo dado para essas pesquisas. É a recolha de todos os factos
confirmados disponíveis. É tudo o que se opõe à falsificação, à deformação, à mentira.
465
AF miolo corrupcao 3.indd 465
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Nesta perspetiva, Bedoya (1987) compendia aquilo que designa por “regras facilitadoras da objetividade”,
como a não ocultação das fontes de onde provém a informação, a inclusão das várias opiniões, ou a apresentação
de argumentos a favor e contra um facto. Chillón (2010:
p. 188) alude à “expressão correta e à palavra adequada,
à seleção e ordenação das informações ou das imagens, à
exigência de uma documentação o mais ampla possível”.
Hackett (1984: p. 102), por seu lado, põe a tónica na imparcialidade, como uma aproximação à objetividade. E
como havemos de constatar na parte operativa, através
das respostas ao questionário que dirigimos aos jornalistas, a profusão de definições varia ainda mais.
Como podemos constatar apenas através destes exemplos, não são apenas os jornalistas que não se entendem
quanto à definição do conceito, também os teóricos revelam
ter diferentes perspetivas, embora no fim concordantes. O
que fazer de um conceção que, em vez de unir e resolver
o problema do trilho do jornalismo contemporâneo, e da
sua falta de credibilidade, tem dividido e fragmentado as
partes envolvidas? Mais concretamente, por que continuamos então a discutir a questão da objetividade? À partida,
a objetividade parece não ser alcançável, mas, como vimos,
torna tudo funcional.
Há muito que o jornalismo deixou de ser, e bem, uma
mera vocação. Reclama competências concretas. Não basta
ter propensão, curiosidade ou tendência para a “bisbilhotice”, como ironiza Gaye Tuchman (1972). A falibilidade
do profissional é considerada natural, dada a sua condição
humana. Some-se a isto a tecnologia e a necessidade voraz
de dar informação em tempo útil, ou seja, quanto antes melhor. Estas condições acabam por afastar os profissionais
de uma cabal investigação. Todavia, por definição, o jornalismo carece de investigação. Sem ela, o erro aumenta. Não
466
AF miolo corrupcao 3.indd 466
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
é despiciente procurarmos perceber a que distância da realidade se situam o erro, a mentira, a veracidade e a verdade.
Como bem vaticinava Mário Mesquita (2000), os jornalistas podem até abolir da deontologia a palavra objetividade, “mas isso não lhes evitará o confronto com a
problemática em causa”. Por mais que os jornalistas procurem anular a sua operatividade,
os destinatários da informação continuarão a estabelecer unilateralmente que as notícias devem relatar os factos tal como eles
se verificam, ou seja, que a tal objetividade – inatingível, por definição – deve constituir-se em critério de avaliação da prática jornalística (Mesquita, 2000).
Na tentativa de sistematização de regras que são comportadas pela objetividade, caímos na redundância daquilo que já nos é transmitido pelos códigos deontológicos,
de forma mais ou menos aproximada. Se, como sugere
Mário Mesquita (2000), atentarmos na redação dos códigos deontológicos, verificamos que, afinal, “a objetividade se reconduz a um conjunto de procedimentos”. Isso
reflete-se com grande evidência no código da associação
de jornalistas norte-americanos que descreve “os requisitos postulados pela doutrina da objetividade no plano
das formas de expressão jornalísticas”.
Também a declaração da UNESCO, no seu primeiro
Princípio, refere que “os indivíduos têm o direito de receber uma imagem objetiva da realidade”, dizendo no segundo Princípio que:
a tarefa primordial do jornalista é servir o direito do povo a
uma informação verídica e autêntica, respeitando com honestidade a realidade objetiva, colocando conscientemente os factos no seu
contexto adequado, salientando os seus elos essenciais, sem provocar
467
AF miolo corrupcao 3.indd 467
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
distorções, desenvolvendo toda a capacidade criativa do jornalista,
para que o público receba um material apropriado que lhe permita
formar uma imagem precisa e coerente do mundo, na qual a origem,
a natureza e a essência dos acontecimentos, processos e situações
sejam compreendidas de uma forma tão objetiva quanto possível.
Tudo pareceria mais simples, não fossem alguns constrangimentos à ação jornalística, como iremos ver.
A
conjuntura dos
Media
como
ameaça à objectividade
Como menciona Cornu (1994: p. 182), a objetividade
não era um problema para a imprensa do século XVIII ou
da primeira metade do século XIX, “inteiramente votada
à expressão de opiniões, ao debate de ideias constitutivo
do espaço público”. É sobretudo a partir do séc. XIX, na
fase industrial da imprensa, que a objetividade, no caso
específico do jornalismo, adquire pertinência. Todavia, só
no séc. XX se impõe como valor jornalístico, nos EUA,
como forma de reação ao novo ethos jornalístico, estando este orientado para a caça de escândalos (muckraking),
alimentando vorazmente o negócio dos jornais com uma
nova fórmula de sensacionalismo.
Razões sociais foram determinantes para a eclosão deste
novo conceito. Sobretudo com a Segunda Guerra Mundial,
a relutância que resulta da propaganda conduz o público a
uma certa desconfiança em relação aos media, proclamando o fim da “inocência”. Isto levou também a que o público suspeitasse de ardilosos métodos que, ao abrigo de
uma falsa objetividade, acabavam por manipular a realidade.
O público mostrava ser seletivo e criterioso. Isso desencadeou a preocupação dos proprietários dos media e levou-os
468
AF miolo corrupcao 3.indd 468
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
a encarar o estabelecimento de um compromisso de verdade e, de certa forma, de objetividade, entre os seus órgãos de informação e o público. Agradar a uma audiência
estreita e elitista deixara de ser uma vantagem, como ocorrera em finais do séc. XIX. O requisito da objetividade na
informação, como alude Mário Mesquita (2000), “aparece
ligado à necessidade de construir o denominador comum
entre um conjunto de leitores que se deseja cada vez mais
vasto e diversificado, de modo a poder credenciar o periódico perante os anunciantes”. Por outro lado, a generalização da recorrência às agências noticiosas, que tinham por
clientes todo o universo de órgãos de informação a quem
enviavam a cobertura dos assuntos da atualidade, teve um
papel capital na “exigência de objetividade”.
Um órgão de informação tem como missão informar
o público. Ou pelo menos, esta é a posição genericamente assumida pelo jornalista. Já a direção e os proprietários
vêem-no como uma empresa, que só pode prosseguir a
sua missão “pública” se atingir níveis financeiros que estes
considerem razoáveis e que promovam a manutenção da
empresa, obtendo receitas por via quer da angariação de
publicidade quer das vendas em banca e assinaturas (no
caso da imprensa escrita).
Atualmente, o panorama empresarial dos media, padecendo de insuficiente rendibilidade em virtude do crescimento e aumento da diversidade da oferta dos meios e
dos suportes de comunicação publicitária, com a concentração do investimento publicitário (já escasso) nos maiores grupos, com as potencialidades das novas tecnologias
e das suas redes, com o crescimento da circulação de publicações gratuitas e o aumento do peso da dependência
da publicidade, a pressão sobre o produto jornalístico é,
naturalmente, forte. Para o tornar mais apetecível, a empresa procura fórmulas que apoiem o seu objetivo.
469
AF miolo corrupcao 3.indd 469
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Thompson (2002: p. 59) corrobora que, sendo empresas, os órgãos de comunicação têm interesse financeiro
na venda de temas como os escândalos: “fornecem histórias vivas, picantes, que podem ajudar esplendidamente
a conduzir esse objetivo”. A importância que a conquista
de audiências representa para os media obriga-os a desenvolver várias estratégias, “a principal das quais é a seleção
de temas capazes de captar a atenção”, como refere Mar
de Fontcuberta (1999: p. 37). Para esta autora, “os índices
de audiência e as tiragens converteram-se nos verdadeiros motores da criação, permanência ou desaparecimento
de certos conteúdos” (Fontcuberta, 1999: p. 35). Mário
Mesquita vai mais longe, notando que os próprios media
têm interesse em promover o escândalo e mantê-lo continuamente. Sob a invocação da liberdade de imprensa e
do interesse público, afirma o autor, os media têm alimentado prósperos negócios na área da informação (Mesquita, 1998: p. 71).
É neste contexto que Sobrinho (2010) entende que “a
notícia possui dupla face”: por um lado, é um bem público; por outro, um bem económico. Encontrar o equilíbrio entre ambas é ter de procurar temas que satisfaçam
as duas partes. Nesse sentido, entende Sobrinho, “o escândalo político seria o tipo de notícia que preencheria
essas exigências”, uma vez que o escândalo político permite que os jornalistas cumpram as suas “auto conceções
profissionais”, dado contribuir para que os jornalistas de
investigação tenham passado “a considerar-se não apenas
repórteres que deveriam esquadrinhar por debaixo da superfície das coisas a fim de conseguir a verdade, mas também reformadores sociais” (Thompson, 2002).
Há ainda um outro aspeto pertinente, enunciado por
Thompson, relativo às “rivalidades competitivas”. Na corrida entre órgãos de comunicação, ganha quem der a ca470
AF miolo corrupcao 3.indd 470
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
cha. O prémio, para além do eventual prestígio é, como
defende Thompson, manter um público mais assíduo. Por
outro lado, o polo económico “seria satisfeito por uma
notícia com suficiente potencial para atrair a curiosidade
pública (Bourdieu, 1997:p. 106). Ignacio Ramonet concorda que “os media se encontram sujeitos a uma concorrência cada vez mais feroz”, lembrando que os quadros
dirigentes dos media têm uma orientação empresarial, o
que os torna menos sensíveis à veracidade da informação.
Aos seus olhos, remata Ramonet (1999:p. 15), o news business é, acima de tudo, um meio de obter lucro.
A generalidade dos autores vê uma afinidade clara entre o escândalo e os media: “o escândalo vende”, sintetiza
Thompson (2002), concretizando que “o escândalo traz
benefícios, e os que mais têm a ganhar em alimentar o
espaço público com escândalos, têm poucas razões para
se abster de lucrar com isso, quando a oportunidade se
apresenta”.
Patterson (2003), um dos investigadores que se tem
dedicado à relação entre o conteúdo das notícias e as audiências e, por consequência, aos seus efeitos nas sociedades democráticas, refere que as notícias ditas “leves”
(associadas a notícias que não são sérias) estão a crescer
e que, quer em estudos de marketing quer em estatísticas sobre audiências, há indicação de que as notícias com
uma tónica de entretenimento podem atrair e reter audiências (Patterson, 2003: pp. 26-27). O que, aparentemente, serve a lógica de mercado subjacente às empresas de
media. Essa lógica de mercado, sustenta o sociólogo francês Rémy Rieffel (2003: p. 148), repercute-se no produto
jornalístico, ele próprio cada vez mais direcionado para
o infotainment. O jornalista que prossegue uma investigação, que ganha a cacha, que consegue conteúdo para a
primeira página e que causa demissões na classe política,
471
AF miolo corrupcao 3.indd 471
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
acaba até por ser vedetizado. Este protagonismo parece
assentar confortavelmente na lógica do infotainment. Os
defensores das ditas “notícias leves” entendem que “as
audiências são o sangue das notícias e que sem segurança económica uma imprensa livre existiria apenas teoricamente. Afirmam que notícias que não sejam vistas ou
lidas não têm qualquer valor. E defendem que um conteúdo leve não é, por definição, desprezível, dado fornecer
informação que pode guiar a atitudes das pessoas enquanto cidadãs” (Patterson, 2003: p. 21).
Nesta asserção, é fundamental o papel do público. José
Rebelo (2000: p. 58) menciona que é o “público que influencia o órgão de informação. Este [o órgão de informação] limitar-se-ia a dar aquilo que julga corresponder
ao desejo de quem recebe”. A ser assim, e fazendo fé nos
autores que têm denunciado a falta de credibilidade dos
media perante o público, parece-nos justo afirmar que sem
objetividade os media estão a afastar-se do caminho que
os concilia com o público. A conjuntura económica nefasta que afeta o setor empresarial dos media caracterizase, como prenunciava Mário Mesquita (2000) há mais de
dez anos, pela “abdicação da atitude de objetividade e pela
‘contaminação’ do jornalismo por outras formas comunicacionais, onde a emoção e a afetividade prevalecem sobre a informação. A ficcionalização, o sensacionalismo e
a hiperpersonalização destroem o sentido de aproximação
à realidade objetiva”.
Curiosamente, quem não espera encontrar neste cenário jornalistas que, num volte-face, levantem a bandeira da
objetividade, ficará surpreso. São precisamente os constrangimentos das redações, como os prazos de entrega
do material, a maior exposição a processos difamatórios,
a mediação entre as fontes e os recetores, entre outros,
que levam os jornalistas a resguardarem-se nos “procedi472
AF miolo corrupcao 3.indd 472
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
mentos rituais para neutralizar potenciais críticas e para
seguirem rotinas confinadas pelos limites cognitivos da
racionalidade, como justifica Tuchman, referindo também que “o processamento das notícias não deixa tempo
disponível para a análise epistemológica reflexiva. Todavia, os jornalistas necessitam de uma noção operativa de
objetividade para minimizar os riscos”. De forma mais
pragmática, Tuchman encara o jornal como uma “compilação de muitas estórias. Se muitas tivessem de ser reescritas, o jornal não conseguiria cumprir os seus prazos
e os lucros seriam afetados”.
Metodologia
Após a revisão bibliográfica anterior, em que focámos
o confronto de posições convocadas para a temática da
objetividade, incluiremos de seguida uma componente
operativa, com o intuito de responder às seguintes perguntas: que particularidades podemos extrair da cobertura
dos jornais diários portugueses sobre um episódio que decorre de um escândalo político? Os órgãos de informação
tendem a focar-se no contexto de infotainment que envolve
esse protagonista? Os media têm consciência que se converteram no tribunal que diariamente vai determinando
o veredito de inocente ou culpado? Como se posicionam
os jornalistas perante a objetividade?
Para procurar responder a estas questões, optámos pelo
uso da triangulação. Paul (1996) sustenta que a triangulação não se cinge unicamente à seriedade e à validade,
mas permite um retrato mais completo e holístico do fenómeno em estudo, que é o que aqui pretendemos fazer.
Ideia também colhida em Cox e Hassard (2005). Empregaremos através do Estudo de Caso uma pesquisa des473
AF miolo corrupcao 3.indd 473
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
critiva, uma vez que é nosso intuito a observação de um
objeto-matriz e a análise, classificação e interpretação de
um corpus que a seguir será explicitado.
O nosso objeto-matriz é a transmissão pela TVI da
declaração de Fátima Felgueiras, em direto a partir do
Rio de Janeiro, a 2003/06/11, uma quarta-feira, em horário nobre, na abertura do noticiário das 20:00h, tendo
esta peça ocupado 29m30s. Todas as outras televisões
em canal aberto transmitiram em direto a mesma declaração. Este objeto-matriz televisivo, ou seja, a transmissão do acontecimento-alvo, assume um papel estritamente referencial.
O corpus de análise incide na edição dos jornais Público,
Diário de Notícias e Correio da Manhã, relativo ao dia seguinte
ao da conferência de imprensa convocada pela então autarca Fátima Felgueiras a partir do Rio de Janeiro e, nessa
edição, todas as peças (unidades de análise) com alusão ao
happening. Foram selecionadas 16 peças por serem as que
se reportam à declaração proferida por Fátima Felgueiras. Foi adaptada uma codesheet enquanto instrumento de
análise, a partir do codebook de análise de imprensa desenvolvido pelo CIMJ para a ERC em 2009, contendo definições conceptuais e métodos de codificação para análise
da representação das eleições legislativas de 2009. A nossa
codesheet inclui três grupos de variáveis para a análise empírica: de forma (título, órgãos, mancha, página, secção,
género jornalístico e iconografia), de conteúdo (tema, ator
e organização) e de discurso (tom).
Noutra fase deste trabalho, procuraremos aferir a opinião dos profissionais dos media face às questões enunciadas. Assim, recorremos a um questionário que em termos morfológicos é composto unicamente por questões
abertas. Esta opção proporciona à pesquisa um desejável objetivo exploratório. Os profissionais dos media fo474
AF miolo corrupcao 3.indd 474
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
ram selecionados pelo papel que ocupam ou já ocuparam
em órgãos de informação nacionais, tendo sido enviado
o questionário por e-mail para 20 destinatários e tendo
obtido resposta de 11 deles, também por e-mail, entre
2012/05/23 e 2012/06/23. O posicionamento dos diversos órgãos de informação nacionais de ampla visibilidade,
e dos seus diretores, ex-diretores, editores e demais jornalistas, ajudar-nos-ão a aclarar com maior perspicuidade a
abordagem ao nosso tema.
No âmbito da componente metodológica, o instrumento de análise seguiu as metodologias usadas por
Isabel Ferin (2007, 2012) e testadas, entre outros, por
Bruno Paixão (2010). Os órgãos de informação selecionados têm uma abrangência generalista e um forte pendor de cobertura política. Em parte da análise operativa
deste trabalho, o discurso será, conforme o preconizado por Jensen (2002), objeto de investigação. Procuraremos aludir na componente operativa, dando sequência
ao que até aqui tem sido exposto a propósito do tema
central da objetividade jornalística, à aplicação dos conceitos de Realidade Numénica e Realidade Fenoménica
(Chillón: 2010).
Convocámos também para o campo operativo deste
trabalho um conceito estreitamente relacionado com a comunicação política: o Escândalo Político. Como sustenta
Thompson (2002: p. 32),
aqueles que exercem ou aspiram a posições de poder político
sabem muito bem que o escândalo é perigoso, que pode frustrar os
seus planos e levar as suas carreiras a um final abrupto. Mas o
escândalo pode também minar a sua capacidade de exigir o respeito e o apoio de outros e pode ter um impacto profundo e corrosivo nas formas de confiança social que sustentam as relações
sociais cooperativas.
475
AF miolo corrupcao 3.indd 475
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Podemos usar vários ângulos para definir o fenómeno do Escândalo Político. Um deles consiste em colocar
a tónica na natureza da transgressão (Thompson, 2002:
p. 124), sendo que o envolvimento de um político é condição suficiente para o catalogar como escândalo “político”. Foi Thompson (2002: p. 154) quem distinguiu os
três tipos clássicos mais frequentes de escândalo político:
sexuais, financeiros e de poder.
Centraremos, como já foi referido, a nossa análise no
caso do Saco Azul de Felgueiras, que alegadamente envolve o mau emprego de recursos económicos e financeiros por parte da então edil Fátima Felgueiras. Todavia, os
factos relatados pelos media aludem também ao abuso de
poder. Havendo a sobreposição de tipologias (financeiro
e de poder), Thompson defende que sempre que existir
mau uso ou abuso de poder, mesmo estando envolvidos
ilícitos de ordem financeira, deve prevalecer o escândalo
de poder, uma vez que a esfera financeira passa a ser secundária face à de poder. Para além de que os escândalos
de poder são os que envolvem o mau uso ou abuso de
poder político, como define Thompson (2002: p. 239),
esclarecendo que estes “são a forma mais pura de escândalos políticos”. Consideramos por isso que o Saco Azul
de Felgueiras é um caso de escândalo político de poder.
Apresentação
e d is c u ss ã o
d e r e s u lta d o s
A 01 de Junho de 2012 o Tribunal da Relação de Guimarães veio pôr uma pedra sobre o assunto: Fátima Felgueiras foi absolvida de todos os crimes de que estava
acusada. Mas aconteceu que, a 11 de Junho de 2003, Fátima Felgueiras, então presidente da Câmara Municipal de
476
AF miolo corrupcao 3.indd 476
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Felgueiras – pronunciada por crimes de corrupção, peculato, abuso de poder e participação em negócios fraudulentos – “foragida” no Brasil, deu uma conferência de
imprensa a partir do Rio de Janeiro. Esta teve início às
20:00h portuguesas, hora de começo dos telejornais nacionais, e estendeu-se por cerca de meia hora. A imprensa escrita pôde assistir à transmissão em direto emitida
em sinal aberto. Para além disso, os media contavam ainda
com correspondentes que se encontravam na sala onde
foi dada a conferência. O escasso tempo desde o visionamento da conferência até à redação da peça informativa
pode ter condicionado a forma como esta foi construída.
Todavia, iremos analisar o que foi publicado no dia seguinte pelos diários nacionais generalistas Público, Diário
de Notícias eJornal de Notícias, tomando em consideração
os tipos de realidade (numénica e fenoménica) dispostos
por Chillón (2010).
A realidade numénica, tal como nos é apresentada
por Chillón (2010), não é suscetível de ser representada, nem pelos jornais analisados, nem tão-pouco pela
transmissão televisiva, que captou apenas um dos ângulos possíveis. Da mesma forma que a cobertura do
evento ficou confinada à sala de conferência, sem que
se pudesse discernir mais profundamente os factos que
permitissem aos recetores conhecer convenientemente
a realidade ocorrida – como os pensamentos, ou as contrações gestuais, por exemplo.
Já a realidade fenoménica está sujeita às opções jornalísticas, que apreenderam um tipo concreto de realidade, que puderam escolher os planos e captaram o que os
meios tecnológicos lhes possibilitaram – desde as declarações à imagem. Como nota João Carlos Correia (2011:
p. 1155), “os jornalistas usam procedimentos retóricos e
discursivos e práticas organizacionais que se tornam vi477
AF miolo corrupcao 3.indd 477
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
síveis nos critérios de noticiabilidade”. A perspetiva de
análise que empregamos é por isso vertida sobre a realidade fenoménica.
Como podemos ver no quadro 1, no dia 12 de Junho
de 2003, o Público e o Jornal de Notícias publicaram ambos
seis peças. Já o Diário de Notícias publicou apenas quatro.
Quanto ao tom das peças, não registámos nos jornais analisados qualquer tom positivo para o ator visado. Este codificador assinala o tom dominante em cada peça: positivo, negativo, equilibrado/neutro. Apurámos que o Jornal
de Notícias publicou cinco peças com tom negativo e uma
com tom equilibrado/neutro. O Público quatro e duas peças, respetivamente, e o Diário de Notícias duas peças em
cada um dos tons.
No que concerne à Iconografia, pretendemos identificar se existe uma representação gráfica, através de fotografia, símbolos, infografias ou outro tipo de imagem nas
peças que compõem o corpus. Das seis peças publicadas
pelo Jornal de Notícias, três são acompanhadas por foto e
nas outras três não há qualquer imagem. No Diário de Notícias há um predomínio do uso de fotos em três peças, e
em apenas uma nota-se a ausência de imagem. Ao invés,
o Público dispõe quatro peças só com texto e apenas duas
acompanhadas por fotografia.
Relativamente aos géneros jornalísticos, a notícia foi
predominante em todos os jornais, com maior ênfase no
Jornal de Notícias. Destaca-se um único artigo de opinião,
assinado pelo jornalista do Público Eduardo Dâmaso, cujo
tom foi claramente crítico usando expressões como “degradante espetáculo”, “palavras sibilinamente ambíguas”,
“patética proclamação” ou “populismo desenfreado”.
478
AF miolo corrupcao 3.indd 478
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Quadro 1. Número de peças por jornal, tom e iconografia
Quanto à capa, foram usados os seguintes títulos:
Público: “Fátima Felgueiras implica direção do PS no
‘Saco Azul’”.
Diário de Notícias: “Fátima Felgueiras ‘exilada política’
contra a Justiça”.
Jornal de Notícias: “Fátima vitimiza-se e ataca a justiça”.
O Quadro 2 mostra-nos que o Jornal de Notícias faz
manchete com este assunto e coloca na primeira página
uma fotografia da protagonista Fátima Felgueiras. Também o Público fez manchete mas não usou qualquer imagem na capa alusiva ao tema. Já o Diário de Notícias, fez
apenas uma chamada de capa utilizando uma fotografia
de tamanho reduzido.
Uma análise conotativa dos títulos permite-nos desde logo constatar o uso do nome da protagonista política da análise (“Fátima”) em todos os jornais, dado ser
esta uma referência quase iconográfica facilmente reconhecida por todos os recetores, sem que seja necessário
479
AF miolo corrupcao 3.indd 479
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
adicionar outras explicações. O termo “Justiça” está presente em dois títulos, enquanto que o terceiro coloca a
tónica na querela política. Já quanto à análise da função,
o título do Público enquadra-se na categoria “informativa”, identificando o acontecimento sem pressupor qualquer espécie de conhecimento anterior do destinatário
sobre o contexto; enquanto que os outros dois inseremse na categoria “apelativa”, dado que relegam a função
informativa para segundo plano e procuram dramatizar
o acontecimento. Podemos aferir também que os jornais
que usaram títulos apelativos foram os mesmos que publicaram fotos na capa.
Quadro 2. Presença do tema na Capa
Quanto às peças no interior do jornal (no miolo), o
Jornal de Notícias publica uma peça principal, onde realça
que a autarca se considera “exilada”. Todavia, o jornal denomina-a de “foragida”. Aborda ainda nesta peça principal as acusações que a autarca dirigiu ao PS. Noutra peça,
480
AF miolo corrupcao 3.indd 480
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
descreve o cenário montado e os procedimentos impostos
pelo advogado de Fátima Felgueiras. Esta peça é assinada
por uma correspondente no Rio de Janeiro. O jornal opta
ainda por colocar noutro espaço as reações ocorridas na
cidade de Felgueiras.
No que concerne à secção onde as peças noticiosas sobre este assunto foram “arrumadas”, o Diário de
Notícias usou um separador intitulado “Caso Felgueiras”. Os outros jornais inseriram as peças nas secções
de política/nacional mas sem recurso a denominação
específica.
No que diz respeito ao Público, toda a peça principal é
construída focando as críticas ao PS. Com menor destaque, de forma semelhante ao Jornal de Notícias, é publicada uma peça, também assinada por uma correspondente
no Rio de Janeiro, sobre o cenário e as diretrizes do seu
advogado. Este é o único jornal que utiliza um espaço de
opinião para expor um artigo de um seu jornalista sobre
este assunto, sob uma perspetiva crítica e contundente. É
ainda explorado um conjunto de reações em Felgueiras.
Por último, o Diário de Notícias, seleciona na peça principal a parte do discurso em que Fátima Felgueiras se
considera exilada e explora a sua vitimização, usando também esta peça para abordar o ambiente de preparação da
conferência. Mas não só. Neste artigo assinado pelo correspondente no Rio de Janeiro, fala-se no “tailleur rosa
elegante e sóbrio”, o “anel vistoso, um colar e um relógio com uma pulseira dourada”, no penteado e na cor do
cabelo. É ainda feita uma síntese com várias opiniões de
políticos locais de todos os partidos, bem como do PS a
partir da sua sede nacional. Este jornal ouviu igualmente
reações da população em Felgueiras.
Como havíamos referido na parte metodológica, nesta fase, em que utilizamos o questionário de pergunta
481
AF miolo corrupcao 3.indd 481
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
aberta, a nossa pretensão é a de aferir a opinião dos profissionais dos media face a três questões:
1. Os órgãos de informação tendem a focar-se no contexto de espetáculo que envolve um protagonista político?
2. A objetividade jornalística é inadequada ou, pelo
contrário, deve cada vez mais ser reforçada nos rituais
jornalísticos contemporâneos?
3. Os media têm consciência de que se converteram no
tribunal que diariamente vai determinando o veredito de
inocente ou culpado?
Os 11 jornalistas que até 23 de Junho de 2012 responderam ao questionário foram, por esta ordem: Mário Crespo (pivô da SIC Notícias), Paulo Baldaia (diretor
da TSF), José António Saraiva (diretor do Sol), Henrique
Monteiro (ex-diretor do Expresso e diretor coordenador
editorial de multimédia e novas plataformas da Impresa),
Tânia Laranjo (Grande-Repórter e editora do Correio da
Manhã), Paulo Magalhães (pivô da TVI 24), Vítor Matos
(jornalista político na Sábado), Leonete Botelho (editora
de Política do Público), Graça Franco (diretora da Rádio Renascença), José Leite Pereira (ex-diretor do Jornal de Notícias)
e Eunice Lourenço (jornalista política e chefe de redação
da Rádio Renascença).
Quanto à primeira questão, os jornalistas auscultados
consentiram que o espetáculo é uma realidade presente
nas redações, muito particularmente na televisão. As respostas permitem-nos indicar algumas razões. Entre elas
porque é economicamente mais vantajoso, porque o espetáculo garante sucesso e audiências, é mais cativante e
original, e porque se cria a sensação de que os mais poderosos estão a ser punidos. E, como aventa Graça Franco,
porque há um efeito mimético nos media concorrenciais.
No que concerne à segunda questão colocada, as opiniões dividem-se, em linha com o havíamos preconizado e
482
AF miolo corrupcao 3.indd 482
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
com o que enunciámos no decorrer da parte teórica deste
trabalho. Dois dos inquiridos sustentam que a objetividade é um mito. Mário Crespo refere que a precariedade não
permite que a objetividade resista. Tânia Laranjo e Eunice Lourenço entendem que a objetividade é adequada e
Henrique Monteiro advoga que esta deve mesmo ser reforçada e que o bom senso é o melhor caminho.
Relativamente à terceira questão, sobre se os media têm
consciência de que se converteram no tribunal que publicamente condena e absolve, as opiniões dividem-se. Alguns inquiridos entendem que sim e que essa condição
dos media é irreversível, ao passo que outros consideram
taxativamente que não. Vítor Matos esclarece que “o papel dos media é pôr em evidência, questionar, procurar
respostas”. Graça Franco entende que os media têm essa
consciência todavia, legitima-os observando que “quando
a justiça se demite de julgar, os media tendem, por razões
de interesse público, a preencher essa falha”. Assentindo
também que os media têm essa consciência, Leonete Botelho considera que o descrédito na Justiça e nos políticos favorece a perceção dos cidadãos de que os jornalistas têm esse papel de julgar e que o público veja em cada
notícia uma sentença.
483
AF miolo corrupcao 3.indd 483
7/31/14 12:55 AM
Quadro 3.
Questionário
a 11 jornalistas
isabel ferin cunha e estrela serrano
484
AF miolo corrupcao 3.indd 484
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
485
AF miolo corrupcao 3.indd 485
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Conclusões:
u m p o d e r e m r is c o
Neste trabalho procurámos aferir, através de um estudo de caso, se o escândalo político, enquanto fenómeno
mediático, facilita a depreciação dessa objetividade. Como
pudemos verificar através do corpus selecionado, os jornalistas centraram-se com grande ênfase no espetáculo, em
detrimento das declarações. O evento constituiu palco não
só de informação mas também de entretenimento, com
alusão à preparação da conferência, ao caráter emotivo,
à roupa, aos adereços e ao penteado, às observações do
advogado, entre outros.
Também na resposta ao questionário aqui exposto,
Paulo Baldaia, diretor da TSF, entende que “o espetáculo
dá garantias de sucesso” e que “os escândalos políticos
valem, muitas vezes, mais pelas imagens que proporcionam os seus protagonistas do que pelo conteúdo da
peça informativa”. Mário Crespo, da SIC Notícias, alude à questão financeira para explicar que “o espetáculo
e o direto são os meios mais económicos de transmitir um tópico tabloide”. Graça Franco, diretora da Rádio Renascença, advoga que o espetáculo é um meio para
conseguir mais audiência, sendo corroborada por Eunice Lourenço, também da Rádio Renascença. Henrique
Monteiro, ex-diretor do Expresso, entende que a humilhação de outrem cria uma sensação de justiça ao público. Vítor Matos, repórter da Sábado, e Paulo Magalhães,
pivô da TVI 24, em sintonia, aludem à originalidade e
ao escândalo enquanto à fuga à normalidade para uma
emissão mais apelativa.
O contexto cultural tem influência na perceção do objeto. Markovits e Silverstein (1988) e Thompson (1998)
já haviam chamado a atenção para esse facto, relativamente ao escândalo político. De forma mais genérica,
486
AF miolo corrupcao 3.indd 486
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
também do ponto de vista mediático, como refere Mar
de Fontcuberta (1999: p. 17), “cada sociedade tem conceitos diferentes sobre o happening, por isso o conteúdo dos meios de comunicação refletirá o conceito dominante de notícia nessa sociedade”. Isso notou-se, no
âmbito da nossa investigação, na análise ao tom das peças apresentadas pelos três jornais, onde foi notório que
os correspondentes brasileiros, presentes na conferência
convocada por Fátima Felgueiras, foram mais descritivos, tendo-se estes debruçado mais sobre os detalhes da
constituição do cenário preparado para o processo de
mediatização, usando sobretudo a exposição do infotainment e do sensacionalismo.
O sociólogo Philo Wasburn (2002) comparou enquadramentos em que vários jornalistas oriundos de diversos países fizeram a cobertura do mesmo acontecimento.
Concluiu que existem, de certa forma, padrões característicos segundo a cultura representada pelo narrador da história. Tal como dá conta também Chillón no seu estudo
(2010: pp. 66-67), o trabalho de informação jornalística
começa quando o jornalista entra em ação, intervindo na
realidade fenoménica através dos seus critérios seletivos.
E fá-lo usando a sua subjetividade. Ao escolher a frase
que vai citar, por exemplo. Todavia, essa frase tem um caráter objetivante, pois ela foi de facto proferida. Chillón
defende então o uso da veracidade, enquanto garantia de
que a realidade mostrada aos públicos é uma realidade informativa e que a verdade correspondente é uma verdade
informativa. Sob este prisma, Chillón sugere uma nova
compreensão da veracidade para uma nova Teoria da Informação Jornalística, que por sua vez emana da conceção de subjetividade objetivante. Ou seja, pode substituirse o conceito tradicional de um jornalismo objetivo por
uma renovada noção de “subjetividade objetivante”. O
487
AF miolo corrupcao 3.indd 487
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
que implica assumir que o jornalismo informativo constrói, afinal, a realidade. E assim, como sublinha Traquina
(2004), os jornalistas substituem a fé nos factos pela fé
nas regras. Por silogismo, é o método que deve ser objetivo, e não os jornalistas.
Na altura em que Bedoya (1987) mencionou que, no
âmbito dos meios de comunicação, podemos distinguir
entre meios de informação e meios de opinião, o alcance da sua afirmação não tinha ainda atingido a amplitude
com que hoje nos confrontamos. As novas tecnologias que
nos põem em rede com o mundo através dos mais variados dispositivos, sem dificuldade e com fácil acesso, vão
agilmente ganhando terreno aos meios convencionais. E
fazem reposicionar o papel de cada um dos intervenientes no processo informativo. As redes sociais instalam-se
num espaço ilimitado e convocam cada um de nós a representar o papel que quisermos. Sem regras, um jornalista
cairá no paradoxo de assemelhar-se a um mero blogger.
Como observa Carlos Camponez (2011: p. 220)
o jornalista passou a confrontar-se não apenas com a concorrência proveniente das áreas comunicativas que lhe são mais próximas, como também do próprio público que é suposto servir. O
jornalismo praticado por todos não deixa de representar uma diluição do jornalismo profissional, relegando-o para um papel de
provedor ou sinalizador de conteúdos disponíveis.
E com acuidade nota que o “jornalismo do cidadão”
representa um certo menosprezo das técnicas discursivas
do jornalismo. Dados os constrangimentos financeiros do
sector, que origina uma certa “deslegitimação da função
social do jornalista”, este vê-se “confrontado com um
público mais crítico em relação ao seu papel de intermediário na esfera pública”.
488
AF miolo corrupcao 3.indd 488
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Estes meios de opinião estão condenados à parcialidade. Mas será que os de informação seguirão, por rudeza de ouvido, o mesmo caminho? Consideramos que,
mais do que a ameaça latente, esta pode ser uma oportunidade para que o jornalista faça eclodir um novo ethos
profissional. O eixo da objetividade pode diferenciar o
procedimento do jornalista daquele que é o espaço de
comunicação usado pelos cidadãos que interagem por
via das redes sociais e de outras esferas de intervenção
digital, no espaço global. Numa crítica assaz incisiva,
Américo de Sousa (2006) interroga: “que estranha razão
poderia levar o leitor a passar um cheque em branco a
um jornalista que não respeita o princípio da objetividade, quando, precisamente por isso, a maior vigilância
crítica o deveria submeter?”
Mas, claro, uma objetividade fértil, para que não caia
em campo estéril, deve rejeitar o realismo informativo,
bem como o extremo positivista que tende a menosprezar o jornalista, potenciando estas o risco de transformar
a profissão numa operação robotizada de transporte de
factos, como adverte Chillón (2007: p. 113). Uma subjetividade vigilante e autocrítica, acompanhada por uma
objetividade como método e como intenção, da qual nos
devemos ir aproximando, devem servir os propósitos de
deixar falar os novos valores do jornalismo, fundando
compromissos de credibilidade.
Finalmente, voltemos à cela onde se encontram os
dois jornalistas condenados. Diante da sua nova janela,
ambos correram ao mesmo tempo na sua direção. Constatou o guarda que um viu a lama. O outro, as estrelas. Na
junção destas duas contemplações estaria o quadro mais
próximo da realidade. E o que melhor serviria o jornalismo e o público.
489
AF miolo corrupcao 3.indd 489
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Referências Bibliográficas
BEDOYA, J. G. (1987) Manual de deontología Informativa. Periodismo, médios audiovisuales, publicidade. Madrid: Editorial Alhambra.
Blumler, J. e Gurevitch, M. (1995) The Crisis of Public Communication. New York: Routledge.
BOUDON, R. (1998) O justo e o verdadeiro. Estudos sobre a objetividade
dos valores e do conhecimento. Lisboa: Instituto Piaget.
BOURDIEU, P. (1997) Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editores.
CAMPONEZ, C. (2011) Deontologia do jornalismo: a autorregulação frustrada dos jornalistas portugueses, 1974-2007. Coimbra: Almedina.
CANEL, M. J. (1997) La objetividad periodística en campaña electoral: las actitudes profesionales de los periodistas de TVE1 y Antena3 en las elecciones de 1996. Revista de Estudios de Comunicación.
CAREY, J. (1994) The press, public opinion and public discourses; on
the edge of the postmodern In: GLASSER, T.L. e SALMON, J.
(Eds.) Public Opinion and the Communication of Consent. New York:
Guilford Press, pp. 130-153.
CHILLÓN, J. M. (2007) Periodismo y objectividad. Entre la ingenuidade y
el rechazo. Madrid: Biblioteca Nueva.
CHILLÓN, J. M. (2010) Filosofía del periodismo – razón, libertad, información. Madrid: Fragua.
CORNU, D. (1994) Jornalismo e Verdade. Para uma ética da informação.
Lisboa: Instituto Piaget.
CORREIA, J. C. (2011) Reflexões sobre Métodos de Pesquisa em
Jornalismo e sua Articulação com a Avaliação Crítica e Normativa: uma proposta baseada em estudo de caso. Porto: VII Congresso SOPCOM.
COX, J. W. e J. HASSARD (2005) Triangulation in Organizational
Research: a Representation. Organization, 12: 1, AB/INFORM
Global, pp. 109-133.
Entman, R. (1989) Democracy Without Citizens, Media and the Decay
of American Politics. Oxford: Oxford University Press.
EPSTEIN, E. J. (1981) La prensa de Estados Unidos: algunas verdades acerca de las verdades In: MERRIL, J. C. e BARNEY, R.
D. La prensa y la ética. Ensayo sobre la moral de los medios masivos de
comunicación. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, pp. 71-81.
FERIN cunha, I. (2007) Jornalismo e Democracia. Lisboa: Ed. Paulus.
490
AF miolo corrupcao 3.indd 490
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
FERIN cunha, I. (2012) A cobertura televisiva de Partidos, Candidatos e Temas nas Legislativas In: FIGUEIRAS, R. (Coord.) Os
media e as eleições Europeias, legislativas e autárquicas de 2009. Lisboa:
Universidade Católica Editora.
FIDALGO, J. (2006) O lugar da ética e da auto-regulação na identidade profissional dos jornalistas. Tese de doutoramento apresentada à Universidade do Minho.
FONTECUBERTA, Mar de (1999) A notícia – pistas para compreender
o mundo. Lisboa: Editorial Notícias.
Glasser, T.L. (1984) Objectivity precludes responsibility In: The
Quill. February, pp.120-135.
HACKETT, R. (1984) Declínio de um paradigma - a parcialidade e a
objectividade nos estudos dos media noticiosos In: TRAQUINA,
N. (Org.) (1999) Jornalismo: questões, teorias e ‘estórias’. Lisboa:Vega.
JENSEN, K. B. (2002) Humanistic scholarship as qualitative science:
contributions to mass communication research In: JENSEN, K.
B., JANKOWSKI, N. W. (Eds.) (2002). A Handbook of Qualitative Methodologies for Mass Communication Research. London and New
Yourk: Routeledge.
KANT, E. Crítica da razão pura tradução de J. Rodrigues de Merege,
(acedido em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000016.pdf).
MARKOVITS, A. S. e SILVERSTEIN, M. (1988) The Politics of Scandal.
Power and Process in Liberal Democracies. New York: Holmes & Meier.
McDONALD, D. (1971) Es posible la objectividad? The Center Magazine. vol. IV, nº 5, Set.-Out.
Merril, J. C. e Barney, R. D. (1981) La prensa y la ética. Buenos
Aires: Universidad de Buenos Aires.
MESQUITA, M. (1998) O jornalismo em análise. Coimbra: Minerva.
MESQUITA, M. (2000) Em louvor da santa objectividade JJ nº 1,
Jan-Mar. pp. 22-27.
PAIXÃO, B. (2010) O escândalo político em Portugal. 1991-1993 e 20022004. Coimbra: Minerva.
PATTERSON, T. E. (2003) Tendências do jornalismo contemporâneo. Estarão as notícias leves e o jornalismo crítico a enfraquecer
a Democracia? Media & Jornalismo, nº 2, Lisboa: CIMJ, pp. 19-47.
PAUL, J. (1996) Between-method triangulation in organizational diagnosis. International Journal of Organizational Diagnosis, 4, pp. 135-153.
RAMONET, I. (1999) A tirania da Comunicação. Porto: Campo de Letras.
REBELO, J. (2000) O discurso do jornal – o como e o porquê. Lisboa: Notícias Editorial.
491
AF miolo corrupcao 3.indd 491
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
RIEFFEL, R. (2003) Os Media e a Vida Política In. Sociologia dos Media. Porto: Porto Editora.
ROSEN, J. (2000) Para além da objectividade. Revista de Comunicação
e Linguagens: Jornalismo 2000, n.º 27, (pp. 139-150).
SANTOS, J. R. dos (2002) A Verdade da Guerra. Lisboa: Gradiva.
SOBRINHO, C. (2010) Escândalos Políticos, Identidade Profissional e Jornalismo: Uma perspetiva histórica. SBPJor – Associação
Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo, VIII Encontro Nacional
de Pesquisadores em Jornalismo.
SOUSA, A. (2006) Pode o jornalismo ser isento e rigoroso? Comunicação apresentada ao LUSOCOM 2006 - VII Congresso Lusófono de
Ciências da Comunicação, na Faculdade de Ciências da Comunicação
da Universidade de Santiago de Compostela, em 22 de Abril 2006.
THOMPSON, J. B. (1998) A mídia e a modernidade. Petrópolis: Editora Vozes.
THOMPSON, J. B. (2002) O escândalo político: poder e visibilidade na era
da mídia. Petrópolis: Editora Vozes.
TRAQUINA, N. (2004) Teorias do Jornalismo: por que as notícias são como
são? Florianópolis: Insular.
Tuchman, G. (1972) Objectivity Strategic Ritual: an Examination
of Newsmen’s Notions of Objectivity. American Journal of Sociology. 77, nº 4.
Wasburn, P. C. (2002) The Social Construction of International News:
We’re talking About Them, They’re Talking About Us. Westport,
CT: Praeger.
492
AF miolo corrupcao 3.indd 492
7/31/14 12:55 AM
13. A Corrupção Política
v i s ta at r av é s d a s R e d e s
S o c i a i s : M e t o d o l o g i a s pa r a
o Estudo de Conteúdos Web
Estrela Serrano
Introdução
Este artigo insere-se num projecto de investigação intitulado “Corrupção política nos media: uma perspectiva
comparada” que abrange para além dos media tradicionais,
os blogs. O projecto debruça-se sobre a cobertura de um
conjunto de “casos” tidos como de corrupção que se estenderam no tempo, envolvendo dirigentes políticos e governantes. Foram seleccionados os processos conhecidos
como Submarinos, Freeport, Face Oculta e BPN, os quais, em
momentos diferentes, obtiveram grande mediatização nos
media tradicionais e nas redes sociais.
O artigo constitui uma primeira exploração de metodologias para análise da maneira como esses casos foram
tratados nos blogs portugueses que sobre eles se debruçaram, tomando apenas um desses casos – o Freeport. Não é
objectivo do artigo deter-se sobre o conceito de corrupção,
matéria que será desenvolvida no projecto. Tão pouco é
intenção aprofundar o fenómeno social e comunicacional representado pelos blogs mas tão só discutir e analisar
metodologias adequadas ao objectivo traçado, sem prejuízo de um breve enquadramento teórico dos blogs, à luz
da literatura disponível sobre este fenómeno.
Na primeira parte do artigo procede-se a uma breve
revisão da literatura sobre os blogs e a blogosfera - definição, tipologias e características funcionais. Ainda nesta
493
AF miolo corrupcao 3.indd 493
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
parte, acompanha-se a discussão internacional sobre metodologias para a investigação dos blogs.
Na segunda parte, expõem-se as opções metodológicas para o estudo do caso Freeport nos blogs portugueses
mais visitados, aplicando-as numa amostra de conveniência. Finalmente, identificam-se os principais desafios
associados à análise de conteúdos web.
I P ARTE
Blogs
É um dado adquirido que a internet veio contribuir para
reforçar a procura de informação e de sociabilidade. Estudos recentes mostram que alguns usos da internet contribuem para o envolvimento cívico (Jennings e Zeitner
2003; Shah e all., 2005), aumentam o voluntarismo, reforçam as interacções pessoais e incitam a procura de informação. O dado mais significativo é porém a revolução no
campo da informação e a sua abundância, não apenas da
que resulta da migração para o online das fontes tradicionais, mas também da que decorre da emergência de um
espaço de opinião interligado em “jornais” ou “diários”
pessoais – weblogs (blogs) – com início em meados dos
anos 90 do século passado, ganhando força na viragem
do século (Bimber, 2003; Rheingold, 2002).
A partir de 1999 a paisagem mediática alterou-se profundamente, permitindo aos indivíduos publicar, partilhar
e republicar conteúdos na web usando ferramentas simples
e acessíveis. A web 2 veio facilitar e possibilitar conectividade, colaboração e conversação entre públicos espalhados pelo mundo, enquanto a Web 2.0 acelerou a sociedade em rede a que se refere Castells (2000). Ao contrário
494
AF miolo corrupcao 3.indd 494
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
do anterior modo hierárquico e centralizado de produção
de informação, os cidadãos podem agora criar livremente
os seus “nichos” de públicos, baseados nos seus próprios
interesses e usando instrumentos para criar conteúdos,
como membros de uma comunidade (Anderson, 2006;
Shirky, 2008). Esta forma social de produção, que ocorre fora dos modelos baseados no mercado e no preço da
produção, criou a “economia da informação em rede” (the
networked information economy) e a “produção comum dos
pares” (commons-based peer production), uma vez que os indivíduos não são motivados por compensações financeiras
mas por formas sociais de gratificação (Benkler, 2006). De
acordo com vários autores, os posts na web que mais contribuem para o movimento da comunicação e participação em rede foram os blogs (Marketer, 2008; Sifry, 2008;
Universal McCann, 2008) e, de entre os géneros de blogs
que comentam a actualidade atraindo crescentemente a
atenção dos públicos da web que vêem neles fontes credíveis, salientam-se os blogs políticos que actualmente se
organizam em grupos publicando informação e investigação em primeira mão.
Johnson e Kaye (2004) referem os blogs como uma
fonte de informação mais credível do que qualquer outro
media, incluindo jornais online e offline, televisão e rádio, e
apontam duas razões que sustentam essa elevada credibilidade: o facto de cobrirem muitas vezes assuntos com
maior profundidade do que os media tradicionais e de serem capazes de tratar assuntos complexos de maneira relevante e compreensível para os seus leitores.
Apesar de autores como Kerbel e Bloom (2005: p. 22)
defenderem que a blogosfera é um lugar altamente fragmentado no qual as pessoas se dividem de maneira natural e por vezes agressiva segundo campos ideológicos, e
que a influência dos blogs políticos se estende apenas a
495
AF miolo corrupcao 3.indd 495
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
pequenas audiências que partilham as ideias dos blogs que
seguem, a influência dos blogs atinge o público em geral
através do impacto que possuem nos media tradicionais.
Herring (2006) afirma que a investigação sobre a blogosfera mostrou que os blogs podem servir de motor para
o tratamento de determinados acontecimentos nos media
tradicionais. Em Portugal, as declarações da presidente do
Banco Alimentar contra a Fome sobre a inevitável pobreza a que os portugueses estariam votados, proferidas na
SIC Notícias, provocaram uma onda de indignação nas
blogosfera e nas redes sociais, obrigando os media tradicionais a cobrirem o assunto. As redes sociais funcionaram como agenda setter dos media tradicionais194.
O
que é um blog?
Não existe uma definição consensual sobre o que é um
blog. Contudo, as definições iniciais identificam-nos como
jornais interactivos online que facilitam a troca de informação entre utilizadores ou bloggers. Os seus temas são
em geral organizados por ordem inversa à ordem cronológica e a informação é actualizada pela pessoa responsável pelo blog ou por outros que nele participam (Bausch
e all., 2002; Weil, 2003). Podem funcionar como diários
pessoais, lugares para discussões técnicas, desporto, comentários, vida de celebridades, discussão política, etc..
Os conteúdos e os respectivos comentários referem-se
habitualmente a opiniões, experiências, factos e questões
(Coleman, 2004).
Outra característica distintiva dos blogs é o facto de
incorporarem links para outros blogs, para páginas web,
194
Cfr: Expresso, 11/11/2012.
496
AF miolo corrupcao 3.indd 496
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
gravações vídeos e áudio, fotografias, fóruns, etc., interligando-se em interdependência, assumindo um deles, o
mais linkado, um papel central relativamente aos outros
(Coleman, 2004; Thompson, 2003).
O conteúdo de um blog depende em grande medida
das intenções do seu autor. Uma das maneiras de estudar os blogs é, pois, conhecer as motivações dos próprios
bloggers, tendo em vista que eles são agentes únicos da
criação dos conteúdos dos respectivos blogs. Em Portugal, um estudo publicado por Canavilhas, aponta como
as três principais motivações para a criação de um blog
a vontade de “informar e ser informado’’, a necessidade
de `”ter uma intervenção cívica’’, e de possuir um espaço
de opinião inalcançável nos media tradicionais. Outros aspectos referidos pelos inquiridos nesse estudo são “sentir
a reacção imediata dos leitores”, “criar relações com pessoas que têm interesses comuns”, “possibilidade de participar numa comunidade verdadeiramente democrática”,
“ajudar os leitores a interpretar as notícias”, “possibilidade
de criar uma alternativa aos media tradicionais” e “atingir
públicos alternativos”. A
investigação académica
sobre os blogs
Blogar é uma forma relativamente nova de comunicação via Internet, pelo que e investigação académica não
é ainda muito aprofundada. Existem no entanto estudos
importantes. Herring e all. (2006) realizaram uma análise
quantitativa de 203 blogs seleccionados aleatoriamente,
com enfoque nas características do blog – autor, razões
para a criação do blog, frequência de posts, uso de recursos. Krishnamurthy (2002) analisou ​​posts em blogs sobre
497
AF miolo corrupcao 3.indd 497
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
o 11 de Setembro. Halavais (2002) discutiu questões metodológicas na análise de texto de 125 blogs seleccionados
aleatoriamente. Outros estudos, nomeadamente internacionais, têm ensaiado metodologias para análises de conteúdo de blogs detendo-se sobre a estrutura, os objectivos ou os temas. Herring e all., (2004, 2005) incorporaram
na pesquisa uma perspectiva longitudinal, analisando as
características de uma amostra de blogs de língua inglesa
e a sua evolução ao longo de um determinado período.
Em Portugal, Serra (2006) e (2009) analisou a forma
como os blogs estão a transformar os jornais e como se
relacionam com os vários sítios e meios de comunicação,
tendo concluído que eles não põem em causa, antes asseguram a pluralidade e a polifonia informativa. Segundo
o autor, os blogs portugueses surgem como verdadeiras
alternativas aos meios de comunicação dominantes. Por
seu turno, Silva (2012) analisou o papel dos blogs políticos na promoção da diversidade e do pluralismo, tentando
perceber de que forma os blogues políticos portugueses
podem cumprir o potencial de revitalização da intervenção cívica e política. A autora examinou as estratégias de
hiperligação e analisou os conteúdos e temas debatidos
em blogs políticos. Outros autores como Granado (2004),
Santos e Zamith (2004) e Canavilhas (2004) debruçaramse também sobre o fenómeno da blogosfera em Portugal.
Questões
metodológicas no estudo
dos blogs
Investigadores em novos media têm argumentado que novas tecnologias de comunicação necessitam de novos métodos de análise (Mitra e Cohen, 1999; Wakeford, 2000). Esses
autores defendem que qualquer abordagem para análise de
498
AF miolo corrupcao 3.indd 498
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
conteúdos web que vise abranger uma ampla gama de conteúdos deve incluir, no mínimo, os métodos que permitem
a identificação sistemática de padrões de ligação e conteúdos das mensagens interactivas, uma vez que estes tipos de
conteúdo são cada vez mais predominantes na web. Para
atingirem este objectivo, alguns investigadores baseiam-se
em paradigmas metodológicos oriundos de disciplinas fora
de Comunicação, como a Linguística e a Sociologia.
Uma das principais dificuldades que colocam no estudo dos blogs é a construção da amostra, já que o universo dos blogs é quase infinito. O uso de amostras aleatórias no estudo de conteúdos web é criticado por autores
como Herring (2004) que as considera mais adequadas ao
estudo de formas tradicionais de comunicação. Por outro
lado, a natureza dinâmica dos blogs torna em muitos casos inviável uma amostragem aleatória (McMillan, 2000;
Schneider e Pé, 2004;. Weare e Lin, 2000).
Para a análise de conteúdos web (sites, blogs, outros)
Herring (2004: p. 12) concebeu um esquema de um possível paradigma para análise de diferentes componentes
dos conteúdos web, os quais, a seu ver, requerem metodologias específicas de análise.
Imagem 1. Análise de contéudo na Web
Fonte: Herring, S. C., Scheidt, L. A., Kouper, I., e Wright, E.
(2006). Longitudinal content analysis of weblogs: 2003-2004. In:
Tremayne, M. (Ed.) Blogging, citizenship, and the future of media (pp.
3-20). London: Routledge.
499
AF miolo corrupcao 3.indd 499
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Para a autora, a coerência desta abordagem e os motivos pelos quais lhe chama “análise de conteúdo” residem no facto de os métodos usados serem inspirados
nos princípios gerais da análise de conteúdo (CA), ou
seja, devem permitir “descrição quantitativa objectiva e
sistemática” do conteúdo web. Por exemplo, a análise
das interacções não utiliza apenas métodos retirados da
análise do discurso, operacionaliza também elementos
da análise do discurso numa perspectiva da descrição
sistemática e objectiva.
No modelo de Herring, a análise de conteúdos web
pressupõe a análise de todos os seus elementos, dos quais
a autora identifica: análise da imagem; análise do discurso/
linguagem, a análise temática; análise morfológica; análise dos links; análise das interacções. Tal como no modelo
tradicional da análise de conteúdo, na análise de conteúdos web os métodos podem ser quantitativos (envolvendo codificação e contagem) e/ou qualitativos, seguindo
o processo de etapas semelhantes às usadas na análise de
conteúdo clássica:
1) Formular as questões da pesquisa
2) Seleccionar uma amostra mediada por computador
3) O
peracionalizar conceitos-chave (s) em termos de
características de discurso
4) Aplicar métodos (s) de análise de dados
5) Interpretar resultados
Apesar destas semelhanças Herring (2004: p. 346) recomenda uma visão mais pragmática relativamente ao
rigor e à objectividade exigidas pela análise de conteúdo
tradicional: escolher uma pergunta de partida que seja
“empiricamente respondível a partir dos dados disponíveis”; escolher a amostra segundo i) um critério de temporalidade; ii) baseada em acontecimento; iii) ou em prota500
AF miolo corrupcao 3.indd 500
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
gonistas; iv) usar variáveis e categorias (pré-existentes ou
emergindo dos dados) adequadas às questões de partida.
Os conteúdos web podem ser puramente textuais
ou multimodais, sendo nestes últimos que se colocam
os maiores desafios metodológicos devido à combinação de múltiplas formas de representação (Kress e Van
Leeuwen, 1996).
Nos conteúdos multimodais os hiperlinks ou links são
considerados por alguns autores como a essência da web e
daí a importância da sua análise no estudo das redes sociais
e dos blogs (Jackson, 1997) refere que os websites podem
ser considerados “nós”, enquanto os links são “laços” e a
morfologia (organização) isto é, o arranjo dos links dentro
e através dos sites e blogs pode ser representado como
“redes”. Os links são, pois, parte do conteúdo manifesto
das páginas web, podendo ser analisados com recurso às
técnicas de codificação e contagem usadas na análise de
conteúdo. A natureza de um link, em termos do destino
a que conduz, tem sido utilizada, por exemplo, para avaliar a credibilidade e a orientação ideológica de um site
ou de um blog (Foot e all., 2003). Além disso, os padrões
de ligação dentro e através de sites e blogs foram analisados por alguns autores ​​como indicadores de qualidade
académica (Thelwall, 2002). Foot e all. (2003), defendem
que os links são inscrições de escolhas comunicacionais e
estratégicas dos autores de sites e blogs.
A literatura mostra que para a análise de conteúdos
web, as práticas tradicionais da análise de conteúdo, tal
como refere a literatura, embora possam ser adaptadas
necessitam de novas técnicas adequadas à natureza dos
fenómenos emergentes. Por exemplo, na análise de conteúdos web nem sempre é possível identificar previamente variáveis e categorias de codificação. A necessidade de
integrar diferentes métodos requer, pois, uma perspectiva
501
AF miolo corrupcao 3.indd 501
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
metodológica mais ampla do que a análise de conteúdo
tradicional. Nesse sentido, a análise de conteúdo media da
por computador revelou-se a técnica adequada ao objectivo de compreender como é que os bloggers constroem
os conteúdos dos respectivos blogs, o destino dos links, a
sua tipificação (imprensa, radio, televisão, outros posts do
blog, posts de outros blogs, etc.), o uso de imagens (fotografias, tv, jornais/revistas, clipart).
I I P ARTE
O Freeport
nos blogs portugueses:
um estudo de caso
O caso Freeport foi despoletado em 2005 através de uma
carta anónima acusando o então ministro do Ambiente de
ter recebido luvas a troco da autorização para construção
de um outlet situado numa zona dita protegida no estuário do rio Tejo, financiado pelo consórcio britânico Freeport. O então ministro do Ambiente era em 2005 líder do
Partido Socialista e candidato às eleições legislativas desse ano, as quais o seu partido viria a ganhar assumindo
ele o cargo de primeiro-ministro. Em Outubro de 2012
o Ministério Público (MP) arquivou o processo por falta
de provas contra o então ministro do Ambiente. Durante
os sete anos de duração do processo, o líder do Partido
Socialista foi primeiro-ministro durante seis anos, nunca
tendo sido constituído arguido nem ouvido como testemunha pelo MP, porém sempre apontado como suspeito
nos media e em blogs.
A ideia inicial da análise do caso na internet inclinava-se para blogs políticos. Porém, essa opção impunha a
criação de uma tipologia para definição dessa categoria
502
AF miolo corrupcao 3.indd 502
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
de blogs, desviando o objectivo do projecto. Por outro
lado, estudos nacionais e internacionais sobre blogs políticos centram-se essencialmente em blogs de partidos e
de outras instituições políticas. São, em geral, trabalhos
sobre campanhas eleitorais, nos quais se analisa o papel
e a influência de blogs partidários. Não é esse, contudo,
o nosso objectivo, pelo que a opção por blogs políticos
revelou-se desadequada, o que não significa que os blogs
incluídos na amostra não possam, numa tipologia mais
alargada de blogs políticos (não limitada a blogs partidários) ser considerados blogs políticos.
Objectivos
e metodologia
O artigo propõe-se testar metodologias para análise de
conteúdos web aplicadas a posts temáticos sobre o caso
Freeport incluídos num conjunto de blogs considerados
relevantes para os objectivos definidos, abrangendo um
determinado período temporal.
O artigo identifica as seguintes dimensões de análise:
morfologia dos posts (elementos comunicativos e respectivas combinações); destino e tipologia de links; análise
do discurso; análise das imagens, análise das interacções.
Esquematicamente, a investigação pode ser representada
como segue:
503
AF miolo corrupcao 3.indd 503
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Imagem 2. Dimensão de análise
Amostra
Tendo em vista obter uma amostra coerente de blogs,
(Wall (2005) e Herring e all., 2006), foram usados os contadores Blogómetro do Aventar eu e o Wordpress top blogs
(blogs em português) e seleccionados os 100 blogs com
maior média de visitas195 em cada um destes contadores.
Imagem 3. BLOGOMETRO. Lista por média diária
de visitas: 2012
Fonte: http://blogometro.aventar.eu/
504
AF miolo corrupcao 3.indd 504
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Imagem 4. Lista dos Blogs
Fonte: http://botd.wordpress.com/?lang=pt#!/read/following/
De entre os 100 blogs, foram seleccionados196 os blogs comuns aos dois contadores e excluídos aqueles cujo
título e página de entrada revelaram não se enquadrar no
objectivo do estudo, tais como os dedicados ao desporto, culinária, moda, eventos ou causas específicas. Apenas
5 blogs são comuns aos dois contadores, uma vez que o
Wordpress inclui um grande número de blogs brasileiros.
A fim de perfazer 10 blogs, considerados como “amostra
de conveniência”, os 5 restantes foram obtidos na lista
dos mais visitados do Blogómetro.
Dos blogs da amostra o “5 Dias” ocupa a nona posição no Blogómetro, com uma média diária de 8926 visitas (consulta em 23/11/212). No
Wordpress top blogs o mais visitado de entre os blogs seleccionados é “A
Educação do meu Umbigo” (não indica número de visitas).
196
Selecção realizada em 15/11/2012.
195
505
AF miolo corrupcao 3.indd 505
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Figura 1.Blogs e contadores onde surgem referenciados
Blogs
(por ordem alfabética)
Contadores
Blogómet
Worpress
31 da Armada
x
x
5 Dias
x
x
A Educação do meu umbigo
x
x
Abrupto
x
Arrastão
x
Aspirina B
x
Blasfémias
x
Delito de Opinião
x
Jugular
x
O Insurgente
x
x
Trata-se de uma “amostra teórica” no sentido que
lhe dá Altheide (1996), isto é, inclui apenas um número
exemplificativo de blogs para acesso a um determinado fenómeno, que não pretende ser um número “correcto” mas antes um número considerado suficiente
para os objectivos definidos. Tal como nos estudos
etnográficos, o objectivo principal é compreender um
fenómeno, mais do que observá-lo objectivamente.
Construída a amostra de blogs, foi necessário escolher o período temporal e localizar os posts dedicados
ao caso Freeport em cada blog seleccionado. A escolha
do período temporal recaiu no ano de 2009, por ser
o ano em que o caso Freeport obteve um maior número de peças nos media tradicionais (figuras 2 e 3).
De acordo com Wall (2005), centrando a pesquisa em
temas e períodos temporais seleccionados é possível
estreitar o leque de posts que em determinados momentos focam determinados temas, ao mesmo tem506
AF miolo corrupcao 3.indd 506
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
po que se torna possível a comparabilidade no tratamento dado por diferentes blogs aos mesmos temas.
Figura 2. Número de peças sobre caso Freeport
nos principais diários portugueses
Fonte: Edições digitais de cada um dos diários, acedidas
em 18 de Novembro de 2012. Número total de peças sobre o caso
Freeport identificadas em cada diário: Diário de Notícias: 1499
(2004-2012); Correio da Manhã: 1050 (2002-2012);
Jornal de Notícias: 949 (2004-2012); Público: 879 (2001-2012).
507
AF miolo corrupcao 3.indd 507
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Figura 3. N. de peças e respectiva duração (h.m.s) emitidas
nos canais generalistas de sinal aberto – RTP1, SIC e TVI
(Janeiro de 2009 a Fevereiro de 2010)
Fonte: ERC: Relatório da cobertura jornalística do “caso
Freeport”- Anexo à Deliberação 13/OUT-TV/2010.
A unidade de análise é o post, identificado por busca di-
recta nos blogs da amostra através da palavra “Freeport”.
Foi seleccionada uma “amostra de conveniência” constituída pelos primeiros 10 posts do ano de 2009 (por ordem de postagem) sobre o caso Freeport, num total de 100
posts analisados (ver Anexo). Este critério permitiu que o
período coberto seja sensivelmente o mesmo em todos
os blogs, independentemente do número de postagens que
cada blog dedicou ao caso.
508
AF miolo corrupcao 3.indd 508
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Figura 4. Número do posts sobre
o caso Freeport em 2009
Blogs
(por ordem alfabética)
31 da Armada
5 Dias
A Educação do meu umbigo
Abrupto
Arrastão
Aspirina B
Blasfémias
Delito de Opinião
Jugular
O Insurgente
N.º de posts
(2009)
Total posts em 2009
604
Breve
133
141
24
18
31
64
17
122
35
19
caracterização dos blogs
da amostra
A autoria e o género dos autores foram identificados através
de consulta ao “perfil” disponível em cada blog. Os casos
em que os autores surgem apenas com iniciais ou com
pseudónimo são referenciados com a indicação “n/d”.
Apenas dois blogs da amostra possuem autoria individual, do género masculino – “A Educação do meu Umbigo”
e “Abrupto” - sendo os restantes oito, blogs colectivos.
Na grande maioria, os autores são do sexo masculino. A
excepção é o blog “Jugular” em que existe paridade entre
os dois géneros (figura 5).
509
AF miolo corrupcao 3.indd 509
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Figura 5. Caracterização dos blogs da amostra
Blogs
UR
Autoria
(por ordem alfabética)
Género/
autores
31 da Armada
http://31daarmada.blogs.sapo.pt/ colectivo
18 M+2 F
5 Dias
http://5dias.net/
colectivo 28 M+6 F+3 n/d
A Educação do meu umbigo http://educar.wordpress.com/ individual
Masculino
Abrupto
http://abrupto.blogspot.pt/
individual
Masculino
Arrastão
http://arrastao.org/
colectivo
7 M+2 F
Aspirina B
http://aspirinab.com/
colectivo
3 M+3 F
Blasfémias
http://blasfemias.net/
colectivo
11 M+1 F
Delito de Opinião
http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/ colectivo 13 M+12 F+3 n/d
Jugular
http://jugular.blogs.sapo.pt/
colectivo
11 M+11 F
O Insurgente
http://oinsurgente.org/
colectivo 28 M+3 F+7 n/d
Morfologia dos posts
Dos 100 posts analisados sobre o caso Freeport, 34 são
puramente textuais, isto é, não contêm combinações de elementos (imagens, links, vídeos) para além do texto (figura 6), enquanto 66 são multimodais, isso é, combinam vários elementos.
Figura 6. Morfologia dos posts
Nota. N.º de blogs analisados:10;
n.º total de posts analisados em 2009: 100.
Total de posts puramente textuais: 34. Total de posts multimodais 66
510
AF miolo corrupcao 3.indd 510
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Apenas no blog “Arrastão” o número de posts puramente textuais é igual ao número de posts multimodais.
O blog “Abrupto” é o único a não apresentar qualquer
post puramente textual, possuindo em todos os posts analisados combinações de vários elementos. Por seu turno,
o “Blasfémias” é o blog com maior número de posts puramente textuais da amostra. A figura 7 mostra um post
puramente textual.
Figura 7. Post puramente textual
Fonte: Blog “Aspirina B” (postado em 13/11/2009).
Para a análise morfológica dos posts multimodais, foram
criadas três variáveis a partir de uma consulta aos blogs:
links; imagens (fotografias, cartoons, outras); vídeos (incorporados). A variável link foi por sua vez desdobrada em categorias identificadas segundo o destino: edição digital de uma
publicação (nacional/estrangeira); site de canal de televisão (nacional/estrangeiro); post do mesmo blog; outro blog; site institucional; canal rádio; rede social (Facebook/Twitter). As figuras
seguintes mostram exemplos de diferentes posts multimodais.
511
AF miolo corrupcao 3.indd 511
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Figura 8. Post multimodal (combinação de texto e imagem)
Blog “Basfémias”, postado em 21/4/2009.
Figura 9. Post multimodal (combinação de texto,
link e imagem)
Blog 5 Dias, postado em 28/9/2009.
512
AF miolo corrupcao 3.indd 512
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Figura 10. Post multimodal (combinação de texto,
link e vídeo)
Blog “Arrastão”, postado em 28/11/2009.
D is c u ss ã o
dos dados
Observando a figura 11, verifica-se que a generalidade dos posts analisados apresenta conteúdos multimodais,
isto é, utiliza combinações de elementos. Os elementos
predominantes são as imagens e os links para edições digitais de publicações (jornais e revistas) nacionais, sendo
a imprensa diária o destino mais frequente dos links, verificando-se a existência de variados links para diferentes
destinos dentro de um mesmo post.
A presença frequente de links para edições digitais da
imprensa nacional sugere que os media mainstream influenciaram o agendamento do caso Freeport nos blogs. Contu513
AF miolo corrupcao 3.indd 513
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
do, só a análise do discurso dos posts permitirá apurar em
que sentido essa influência se exerce nos diferentes blogs. Por outro lado, a presença de variados links em muitos
posts indicia uma preocupação de rigor e credibilidade por
parte dos autores, na medida em que procuram remeter
os factos, as análises e as interpretações para fontes públicas e “autorizadas”, independentemente da valorização
que delas fazem e de lhe atribuírem ou não credibilidade.
Figura 11. Posts multimodais sobre o Caso Freeport
Categorias de elementos comunicativos
Ano de 2009
Nota. N.º de blogs analisados:10; n.º total
de posts analisados em 2009: 100.
Total de posts puramente textuais: 34. Total de posts multimodais 66.
De notar também que quase todos os blogs estabelecem ligações para posts dentro do mesmo blog (21 na totalidade
dos posts analisados, 16 de posts de um só blog – “O Insurgente”) criando relações entre bloggers dentro de um
mesmo blog (os links dirigem-se para posts ora do mesmo autor ora de outros autores do blog) e demonstran514
AF miolo corrupcao 3.indd 514
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
do preocupação com a visibilidade do blog ao remeterem
o visitante para outros posts relacionados com o mesmo
caso. Do mesmo modo, embora menos frequentes, encontram-se links para outros blogs (16 na totalidade dos posts
analisados, sendo 8 de um mesmo blog “O Insurgente”)
criando assim redes focadas no mesmo caso.
É escassa a incorporação de vídeos nos posts analisados
(5 links em 100 posts) o que pode dever-se, por um lado, a
dificuldades técnicas na sua incorporação ou localização.
Mais frequente é a ligação a sites de canais de televisão
nacionais, (geralmente peças noticiosas sobre o “caso Freeport”) ou links para o Youtube sobre peças emitidas nos
canais de televisão nacionais.
A leitura do eixo horizontal da figura 11 mostra que
em nenhum post dos 100 analisados se identificou a presença simultânea de todas as variáveis e categorias de elementos. Os blogs “5 Dias” e “O Insurgente” são aqueles
que apresentam maior número de combinações nos posts
sobre o “caso Freeport” (6 em 11), sendo o blog “Blasfémias” aquele cujos posts apresentam menor número de
combinações (2 em 11). A ligação a redes sociais, como
o Facebook e o Twitter, é inexistente quanto à primeira
e quanto à segunda apresenta apenas uma ligação à rede
Twitter (blog “O Insurgente”) nos posts analisados. Do
mesmo modo, não se identificam ligações a sites de rádios.
Questões
e desafios da investigação
de conteúdos web
Como referido anteriormente, este artigo explora metodologias para análise de conteúdos web em posts sobre
um caso de corrupção política, num conjunto de blogs
portugueses seleccionados entre os mais visitados. Não
515
AF miolo corrupcao 3.indd 515
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
se trata de analisar os blogs enquanto fenómeno comunicacional, nem de traçar o perfil sociográfico dos autores
mas apenas identificar metodologias adequadas à análise
dos seus conteúdos, através de um estudo de caso centrado num tema que teve larga cobertura nos media tradicionais e provocou grande polémica no País.
A opção por um tema de partida situado num determinado período temporal (o ano de 2009) tem a vantagem
de facilitar a constituição da amostra e limitar o âmbito
da análise. A análise de conteúdo mediada por computador, nas suas vertentes qualitativa e quantitativa, revelouse adequada à construção da amostra e à análise morfológica dos conteúdos/posts sobre o tema, objectivos que o
presente artigo se propôs estudar. A investigação permitiu
também constatar que a análise de conteúdos web requer
outras metodologias, entre as quais a análise do discurso
e a análise da imagem.
A investigação confirma as questões identificadas por
autores como Herring (2004) e Wall (2005), nomeadamente quanto à necessidade de introduzir sistematização, rigor
e objectividade na constituição de amostras e nas variáveis
para a análise de conteúdo, de modo a permitir comparabilidade com estudos congéneres nacionais e internacionais, sem que essas dificuldades inibam a investigação.
O aprofundamento da pesquisa, que aprofundaremos
em estudos posteriores, permitirão inferências teóricas
sobre a análise de conteúdos web.
Referências bibliográficas
Anderson, C. (2006) The Long Tail: Why the Future of Business is
Selling Less of More. New York: Hyperion.
516
AF miolo corrupcao 3.indd 516
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
BENKLER, Y. (2006) The Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets and Freedom. New Haven, CT: Yale University Press.
BIMBER, B. (2003) Information and American Democracy: Technology in the
Evolution of Political Power. Cambridge: Cambridge University Press.
CANAVILHAS, J. (2006) Political blogs in Portugal Has the device
created new actors? In http://www.bocc.ubi.pt/pag/canavilhasjoao-political-blogs-in-portugal.pdf
Castells, M. (2000) The Rise of the Network Society. Malden, MA:
Blackwell.
COLEMAN, S. (2004) Political Blogs: Craze or Convention. London:
Hansard Society.
FOOT, K. A., SCHNEIDER, S. M., DOUGHERTY, M., XENOS,
M. e LARSEN, E. (2003) Analyzing linking practices: Candidate
sites in the 2002 U.S. electoral Web sphere. Journal of ComputerMediated Communication, 8 (4). Consultado em http://jcmc.indiana.
edu/vol. 8/issue4/foot.html.
Granado, A. (2004) Algumas notas sobre o panorama da blogosfera portuguesa. Comunicação e Sociedade, n.º 5, Braga: CECS.
HALAVAIS, A. (2002) Blogs and the “social weather.” Paper presented at Internet Research 3.0., Maastricht: Netherlands.
HERRING, S. C. (2004) Computer-mediated discourse analysis:
An approach to researching online behavior In: Barab, S.A.,
Kling, R. e Gray, J.H. (Eds.) Designing for virtual communities
in the service of learning. New York: Cambridge University Press.
pp. 338-376.
HERRING, S. C., e PAOLILLO, J. C. (2006) Gender and genre variation in weblogs. Journal of Sociolinguistics, 10 (4), pp. 439-459.
HERRING, S. C., KOUPER, I., PAOLILLO, J., SCHEIDT, L. A.,
TYWORTH, M., WELSCH, P., WRIGHT, E., e YU, N. (2005)
Conversations in the blogosphere: an analysis “from the bottom
up.” Proceedings of the Thirty-Eighth Hawai’i International Conference
on System Sciences. Los Alamitos: IEEE.
HERRING, S. C., SCHEIDT, L. A., BONUS, S. e WRIGHT, E.
(2004) Bridging the gap: A genre analysis of weblogs. Proceedings
of the Thirty-Seventh Hawai’i International Conference on System Sciences.
Los Alamitos, CA: IEEE.
HERRING, S. C., SCHEIDT, L. A., BONUS, S. e WRIGHT, E.
(2005) Weblogs as a bridging genre. Information, Technology & People, 18 (2), pp. 142-171.
517
AF miolo corrupcao 3.indd 517
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
HERRING, S. C., SCHEIDT, L. A., KOUPER, I. e WRIGHT, E.
(2006) Longitudinal content analysis of weblogs: 2003-2004 In:
TREMAYNE, M. (Ed.) Blogging, citizenship, and the future of media.
London: Routledge, pp. 3-20.
JACKSON, M. (1997) Assessing the structure of communication on
the World Wide Web. Journal of Computer-Mediated Communication,
3(1). Acedido em http://www.ascusc.org/jcmc/vol3/issue1/jackson.html.
JENNINGS, M.K. e ZEITNER, V. (2003) Internet Use and Civic
Engagement: A Longitudinal Analysis. Public Opinion Quarterly
67(3): pp. 311–34.
JOHNSON, T.J. e KAYNE, B.K. (2004) Wag the Blog: How Reliance on Traditional Media and the Internet Influence Credibility
Perceptions of Weblogs among Blog Users. Journalism and Mass
Communication Quarterly 81(3), pp. 622–42.
KERBEL, M. e BLOOM, J.D. (2005) Blog for America and Civic
Involvement, Press/Politics 10 (4): pp.3–27.
KRESS, G. e VAN LEEUWEN, T. (1996) Reading images: The grammar
of visual design. London: Routledge.
KRISHNAMURTHY, S. (2002) The multidimensionality of blog conversations: The virtual enactment of September 11. Paper presented at Internet Research 3.0., Maastricht: Netherlands.
NARDI, B. A., SCHIANO, D. J. e GUMBRECH, M. (2004) Blogging as Social Activity, or, Would You Let 900 Million People
Read Your Diary? Conference’04, Month 1–2, 2004, City, State,
Country http://home.comcast.net/~diane.schiano/CSCW04.
Blog.pdf acedido em 18 /11/2012.
RHEINGOLD, H. (2002) Smart Mobs: The Next Social Revolution. New
York: Basic Books.
SANTOS, L. A., ZAMITH, F. (2004) Weblogues e jornalismo: um
exemplo de aproximação na universidade portuguesa, Comunicação e Sociedade n.º 5, Braga: CECS.
SERRA, P. (2009) A relação entre os blogs e os outros media: o caso
da blogosfera portuguesa. Acedido em http://www.bocc.ubi.pt/
pag/bocc-serra-impacto.pdf.
SERRA, P. (2006) A relação entre os blogs e os outros media: o caso
da blogosfera portuguesa. Acedido em http://www.bocc.ubi.pt/
pag/serra-paulo-blogs-outros-media.pdf.
SHAH, D.V., CHO, J., EVELAND Jr, W.P. e KWAK, N. (2005) Information and Expression in a Digital Age. Modeling Internet Effects
on Civic Participation. Communication Research 32(5), pp. 531-65.
518
AF miolo corrupcao 3.indd 518
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
SHIRKY, C. (2008) Here Comes Everybody: The Power of Organizing without Organizations. New York: Penguin Press.SmRa08.
THELWALL, M. (2002) The top 100 linked pages on UK university web
sites: High inlink counts are not usually directly associated with quality scholarly content. Journal of Information Science, 28(6), pp. 485-493.
THOMPSON, G. (2003) Weblogs, Warblogs, the Public Sphere, and
Bubbles’, Transformations 7(September): 1–12. Acedido em http://
www.transformationsjournal.org/journal/index/shtml
WALL, M. (2005) ‘Blogs of war’: Weblogs as news. Journalism. 6: p. 153.
WEIL, D. (2003) Top 20 Definitions of Blogging, Acedido em Novembro 2012: http://www.wordbiz.com/archive/20blogdefs.shtml.
ANEXOS
Datas dos posts analisados
Blog
Datas dos posts
31 da Armada
17/12/2009 (2 posts)
04/12/2009 (1 post)
29/11/2009 (1 post)
26/11/2009 (2 posts)
16/11/2009 (1 post)
13/11/2009 (1 post)
11/11/2009 (1 post)
10/11/2009 (1 post)
5 Dias
24/12/2009 (1 post)
23/ 12/2009 (1 post)
19/12/2009 (1 post)
17/12/2009 (1 post)
30/11/2009 (1 post)
25/11/2009 (1 post)
15/11/2009 (1 post)
18/10/2009 (1 post)
20/09/2009 (1 post)
17/09/2009 (1 post)
A Educação do meu Umbigo
16/12/2009 (1 post)
10/12/2009 (1 post
519
AF miolo corrupcao 3.indd 519
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
19/10/2011 (1 post)
10/10/2009 (1 post)
06/09/2009 (1 post)
03/09/2009 (1 post)
30/08/2009 (1 post)
05/07/2009 (2 posts)
24/01/2009 (1 post)
Abrupto
03/02/2009 (1 post)
03/04/2009 (1 post*)
28/02/ 2009 (1 post)
28/01/2009 (1 post)
09/04/2009 (1 post)*
20/02/2009 (1 post)
17/02/2009 (1 post)
16/09/2009 (1 post)*
30/01/2009 (1 post)
26/01/2009 (1 post)
Arrastão
16/12/2009 (1 post)
13/11/2009 (2 posts)
03/06/2009 (1 post)
17/05/2009 (1 post)
14/04/2009 (1 post)
06/04/2009 (1 post)
03/04/2009 (1 post)
31/03/2009 (1 post)
28/03/2009 (1 post)
Aspirina B
21/12/2009 (1 post)
18/12/2009 (1 post)
07/12/2009 (1 post)
01/12/2009 (1 post)
19/11/2009 (2 post)
17/11/2009 (1 post)
14/11/2009 (1 post)
13/11/2009 (2 posts)
Blasfémias
21/04/2009 (1 post)
21/02/2009 (2 posts)
12/02/2009 (1 post)
11/02//2009 (4 posts)
04/02/2009 (1 post)
31/01/2009 (1 post)
520
AF miolo corrupcao 3.indd 520
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Delito de Opinião
20/12/2009 (1 post)
17/12/2009 (1 post)
23/11/2009 (1 post)
15/11/2009 (1 post)
12/11/2009 (1 post)
02/11/2009 (1 post)
30/10/2009 (1 post)
20/10/2009 (1 post)
19/10/2009 (1 post)
03/10/2009 (1 post)
Jugular
20/11/2009 (1 post)
16/11/2009 (1 post)
02/09/2009 (1 post)
26/09/2009 (1 post)
03/09/2009 (2 posts)
13/08/2009 (1 post)
03/07/2009 (1 post)
04/06/2009 (1 post)
29/05/2009 (1 post)
O Insurgente
04/09/2009 (1 post)
17/05/2009 (4 posts)
16/05/2009 (1 post)
13/05/2009 (1 post)
01/04/2009 (1 post)
13/03/2009 (1 post)
14/02/2009 (1 post)
521
AF miolo corrupcao 3.indd 521
7/31/14 12:55 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 522
7/31/14 12:55 AM
14. Clicktivismo ou activismo a sério? Em que medida a
internet pode ser consider a d a e s pa ç o d e e x e r c í c i o d e
cidadania em Moçambique
Egídio Vaz
Introdução
O presente artigo discute a contribuição da internet
para a constituição e consolidação de um espaço de exercício da cidadania em Moçambique. Conferimos o termo
genérico de activismo digital, ao engajamento dos cidadãos na participação pública (Kalyango, 2012). Por sua vez,
entendemos por participação pública, o envolvimento de
indivíduos ou grupos de interesse na discussão de assuntos sujeitos a decisão ou em processo de implementação.
Partimos do pressuposto de que as redes sociais e a
mídia social da internet possuem uma capacidade de mobilização política pública capaz de levar à acção, salvaguardando o facto de esta mobilização apenas ser activada em
indivíduos com uma predisposição política (Vissers e Stolle, 2012). Questionamos se a democratização no acesso à
internet é determinante para a cristalização deste espaço
público ou, pelo contrário, se o activismo é indiferente à
quantidade de indivíduos que acedem à internet.
Da análise do sistema da mídia moçambicano, argumentamos que o activismo digital em Moçambique floresce e consolida-se como um espaço de excelência para
a participação pública ante a fraca tendência no consumo
de informação política pelos cidadãos.
523
AF miolo corrupcao 3.indd 523
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
A preferência pelo activismo digital justifica-se pelos
baixos custos no acesso às ferramentas da internet, pela
liberdade com que se acede e a pluralidade que a caracteriza. Estas características determinam a preferência dos
cidadãos por estes recursos gratuitamente disponíveis online, principalmente o Facebook, que permitem contornar
a censura e autocensura impostas aos órgãos de informação tradicionais. Por outro lado, fruto do reconhecimento
da centralidade da internet pelos órgãos de informação, as
estratégias de adaptação destes acabam beneficiando em
larga medida os cidadãos, quando livremente partilham
parte da informação por estes produzidas para o consumo publico nas redes sociais inscrita, aliás, na estratégia
de promoção dos seus órgãos.
A Internet
em
Moçambique
A penetração da internet em Moçambique é de 4,3%
dos 23 milhões de habitantes que a compõem. Existem
em Moçambique 1 011,185 usuários da internet; dos quais
362,560 são usuários do Facebook; Moçambique situa-se
no 124º lugar, de uma lista de 213 países. Quanto ao ranking
dos países africanos falantes do português, Angola é líder
com 385.360 usuários do Facebook (16o lugar em África);
seguido de Moçambique (21o lugar); Cabo Verde (31o lugar), com 87.260 usuários; Guiné-Bissau (40o lugar), com
41.100 usuários e, em último lugar, São Tomé e Príncipe
(49o lugar) com 5.400 usuários.
A opção pelo uso das redes sociais da internet pelos cidadãos pode estar associada às possibilidades que ela oferece para um debate aberto e plural, onde todos, querendo, podem participar na criação e difusão de informação.
Pressionando agentes políticos e determinando a agenda
524
AF miolo corrupcao 3.indd 524
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
de muitos mídia, os utilizadores demonstram estar ante
uma plataforma ideal para a criação de verdadeiros movimentos sociais ou de eventos mais ou menos fugazes,
como manifestos ou campanhas virtuais.
Em pouco tempo, desde que elas foram introduzidas em Moçambique e com a emergência da tecnologia
de comunicação de terceira geração, 3G, as redes sociais
tornaram-se autênticas “zonas libertadas da repressão e
da censura” da mídia moçambicana. Esta é, muitas vezes,
conotada como estando condicionadas às agendas de grupos de interesses, sejam eles políticos ou económicos, e
se encontrar sujeita à chantagem económica, o que condiciona que reportem, com isenção e rigor desejáveis, a
informação (Raposo, 2012: p. 4).
A tecnologia da terceira geração da telefonia móvel
permitiu que o acesso à internet e às respectivas redes sociais deixasse de depender apenas de computadores. Assim, a maioria dos moçambicanos pôde aceder à internet
mesmo sem um computador, a partir de um telemóvel.
Este facto veio revolucionar a forma como a informação
é obtida, partilhada e gerida.
Em virtude do que ficou exposto acima e das oportunidades que as redes sociais oferecem, estão a emergir em
Moçambique, principalmente nos grandes centros urbanos, como Beira, Maputo, Nampula e Matola, autênticos
centros de cidadania virtual, nos quais cidadãos de vários estratos e níveis académicos trocam informação valiosíssima
sobre os diferentes aspectos do país. Assim, estes espaços
virtuais se têm afirmado como referentes do debate intelectual, um pouco à margem dos cânones impostos à mídia tradicional pelos grupos de interesses e de pressão197.
Cfr: Mozambique: The Irrepressible Facebook Blogger. http://globalvoicesonline.org/2011/12/19/mozambique-facebook-blogger-apostolo/.
197
525
AF miolo corrupcao 3.indd 525
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
A
mídia em
Moçambique
O ambiente da mídia em Moçambique pode considerar-se estável do ponto de vista político e social, apesar
das manifestações esporádicas de censura e autocensura
bem como da “chantagem” financeira que em muito condiciona a sustentabilidade de larga maioria das empresas
jornalísticas.
Não obstante a expansão notável de estações televisivas, a rádio continua a ser o principal meio de comunicação social, sendo a Rádio Moçambique (RM) o órgão
comunicação social de maior cobertura em todo o país
(IREX, 2013)198.
Nos distritos, a interferência política é sistemática e a
censura praticada principalmente por autoridades distritais
contra as rádios comunitárias tem provocado uma certa
regressão neste sector (IREX, 2013).
A legislação da mídia não garante a liberdade de imprensa devido à sua porosidade, principalmente em relação a regulamentos e mecanismos de regulação. Ainda
estão por ser aprovadas a nova lei de imprensa, a nova lei
de radiodifusão; a política de migração digital está ainda
por ser definida e as leis anti-mídia por serem supridas
(Raposo e all., 2010).
A actuação da imprensa ainda se acha condicionada,
factual e/ou potencialmente, por um conjunto de leis antidemocráticas corporizadas por normas que se afiguram
como límpidos atentados à liberdade de imprensa e de
expressão bem como do direito à informação. Eis algumas dessas leis:
Lei número 12/79 (Lei do Segredo do Estado);
Cfr: http://www.meducationalliance.org/content/irex-annual-report-2013.
198
526
AF miolo corrupcao 3.indd 526
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Lei número 18/91 (Lei de Imprensa);
Lei número 19/91 (Lei dos Crimes contra a Segurança
do Estado).
A Lei número 12/79 estabelece, embora de forma
problemática, o regime jurídico do instituto do Segredo do Estado. Nessa lei, não se define, em concreto, o
que será o Segredo de Estado e nem se diz quem tem
competência para qualificar uma determinada situação
como configurando Segredo de Estado. Tudo pode ser
qualificado como tal pelos detentores do poder, tendo
em conta os interesses em jogo, o que torna insegura a
actuação da imprensa.
A Lei número 18/91 também pode ser considerada
como condicionando, em parte, o pleno usufruto da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão. O número
4 do art. 47º desta lei, reza que “Não é admitida a prova
da verdade dos factos se o ofendido for o Presidente da
República ou, havendo reciprocidade, Chefe de Estado
estrangeiro ou seu representante em Moçambique”.
A Lei número 19/91, que foi aprovada uma semana depois da aprovação da Lei de Imprensa (Lei número 18/91),
diz, no seu art. 20, que quando figuras como o Presidente
da República, ministros e secretários de partidos políticos
são difamadas pela imprensa, logo essa situação corresponde a um crime contra a segurança do Estado. Esta é,
nitidamente, uma lei desajustada daquilo que se pode esperar dum ou num estado de direito democrático.
A norma da Lei de Imprensa transcrita no parágrafo
anterior afigura-se deveras problemática, podendo até, a
nosso ver, operar como uma espécie de barreira psicológica à liberdade de imprensa e de expressão. Na verdade,
a constitucionalidade dessa norma é até questionável, tendo em conta que a Constituição da República estabelece
o direito à presunção de inocência.
527
AF miolo corrupcao 3.indd 527
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
É igualmente urgente a aprovação de uma Lei de Direito à Informação, para possibilitar a efectivação do acesso à informação por parte dos cidadãos, em geral, e dos
jornalistas, em particular. Estes últimos são, não poucas
vezes, condenados somente porque os documentos que
eram imprescindíveis para a confirmação dum e outro
facto foram “trancados a sete chaves”, mesmo contendo
informações de um indisputável interesse público e nada
tendo que ver com o Segredo de Estado, tendo em conta os princípios internacionais a ele aplicáveis (Raposo e
all., 2010).
O papel da mídia na formação da consciência cívica é
em Moçambique limitado. Pereira (2007) argumenta por
exemplo, que em tempos eleitorais, a influência dos órgãos de informação na formação do voto situa-se a 30%
enquanto a identificação partidária constitui o maior definidor do voto. As redes sociais e outras perfazem os restantes 20% (Pereira, 2007: p. 10).
Em
q u e m e d i d a é o a c t i v is m o
digital eficaz?
A internet e as redes sociais estão a tornar-se canais
poderosos para a aprendizagem sobre questões úteis aos
cidadãos, bem como para a mobilização e participação
pública em Moçambique. Por exemplo, aquando a greve
dos médicos, decorrida entre 20 de Maio a 15 de Junho
de 2015, a Associação Médica de Moçambique veiculava seus comunicados pelo Facebook. A detenção do Dr.
Jorge Arroz, Presidente da Associação Médica, foi anunciada pela primeira vez no mural de Facebook do Jornal
@Verdade e depois popularizada pelos demais órgãos de
comunicação social. Consequentemente, a mobilização
528
AF miolo corrupcao 3.indd 528
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
de mais de duas mil pessoas que apearam defronte da
VI Esquadra da PRM em Maputo exigindo a libertação
do médico, deveu-se igualmente às redes sociais. Mais
do que em qualquer momento na história da internet
em Moçambique, ficou provado que os cidadãos adoptaram a internet como o espaço privilegiado para obter
e trocar informações, mobilizar para causas públicas,
expressar livremente as opiniões contornando assim o
demais bloqueios de censura e autocensura impostas a
diversas redacções.
Por compreender encontra-se o potencial da internet
e dos recursos que ela oferece hoje. Os órgãos de informação moçambicanos estão abrindo páginas da internet,
disponibilizando gratuitamente as principais notícias dos
seus órgãos e partilhando-as em murais de Facebook ou
Twitter e YouTube. O caso mais recente (2013) inclui o
lançamento do Website do Jornal Domingo (www.jornaldomingo.co.mz).
Apesar destes avanços e facilidades, em Moçambique,
a eficácia das redes sociais enquanto espaço para o exercício de cidadania só pode ser verificada à luz da teoria de
dependência dos sistemas da mídia. Segundo esta teoria,
quanto mais o indivíduo depender da informação para suprir suas necessidades, mais importante será o papel que
a mídia exercerá na vida deste indivíduo elevando assim
a sua influência sobre ele.
Outros sim, importa acautelar o facto de em Moçambique muitos cidadãos obterem informação política de diversas fontes, sendo em menor grau através de órgãos de
informação (Pereira, 2007), uma vez que o acesso a estes
é limitado a um grupo menor, maioritariamente presente
em centros urbanos. As rádios comunitárias, privadas e
estatais, são as que chegam à esmagadora maioria da população moçambicana, porém, este facto não se traduz
529
AF miolo corrupcao 3.indd 529
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
automaticamente no consumo, pelos cidadãos, de informação necessária para engajá-los no debate público (Raposo, 2012: p. 4).
Importa também ressaltar o facto de ao falarmos do
papel da internet (através das suas ferramentas) como espaço para o exercício da cidadania pelos moçambicanos,
este exercício se verificar em grande parte ao nível do diálogo, apesar de não haver muita diferença entre o diálogo online e presencial, conforme notado por Zúñiga em
Reimagining Pathways to Political Participation (Zúñiga
e all., 2010: p. 36).
Esta situação levou a que se pensasse que o activismo
online não passa de um clicktivismo ou pseudo-activismo.
Alguns estudiosos duvidam mesmo do potencial das redes e mídia sociais para a promoção e consolidação de um
activismo político sério. Num artigo influente intitulado
“Small Change: Why the revolution will not be tweeted,
2010”, Malcolm Gladwell (2010) comparou a coragem
de estudantes afro-americanos de década de 1960 que se
amotinavam e enfrentavam barricadas na luta pelos seus
direitos, com os actuais activistas online. Para este estudioso, por ser pouco exigente, o activismo online precisaria de
ir um pouco mais além da mobilização de um click e de
simples actividades como adesão ao fóruns e grupos de
discussão, assinatura online de petições, etc..
Porém, David Karpf (2010) notou que os críticos do
activismo online estavam equivocados. Para ele, a diferença
entre o activismo online e offline está no grau e não no tipo.
No seu artigo intitulado “Online Political Mobilization
from the Advocacy Group’s Perspective: Looking Beyond
Clicktivism”, David Karpf argumenta que e-mails em
massa ou petições ou grupos de Facebook são do ponto
de vista funcional equivalentes às petições fotocopiadas,
ou cartazes colados em paredes ou distribuídos porta-a530
AF miolo corrupcao 3.indd 530
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
porta. Karpf também nota que tais acções representam
apenas parte de toda estratégia do activismo, pelo que deverão ser vistas numa perspectiva de conjunto.
As redes sociais estão cada dia a tornar-se numa ferramenta crítica para a cidadania digital, engajando cidadãos
num debate cívico ideal.
A partir da descrição feita anteriormente podemos
afirmar que o activismo digital que floresce nas redes sociais, fortalece-se para além dele. Um exemplo crítico é a
formação do Movimento Solidário do Facebook199, uma
entidade que nasceu em 2012 das discussões sobre as soluções para a mitigação dos efeitos das cheias na cidade
de Maputo e o papel dos cidadãos. A consolidação deste movimento200 implicou o desdobramento do âmbito e
foco das suas actividades para além da cidade de Maputo, estando agora igualmente envolvido na angariação de
bens, serviços e dinheiro para ajudar diversos grupos vulneráveis, entre os quais crianças órfãs, vítimas de cheias
bem como as maternidades.
Outro sinal da eficácia do activismo digital em Moçambique pode ser encontrado nas reacções que ele produz
no seio dos políticos. Por exemplo, no dia 15 de Abril de
2012 o Presidente da República disse durante a V Assembleia-geral da Organização da Juventude que as redes sociais da internet
têm o potencial de se transformar em espaços geradores de representações, fábricas de sonhos inalcançáveis e de infinitas miragens e
expectativas que podem levar à secundarização da cultura de trabalho, promovendo o espírito de mão-estendida.
199
200
Cfr: http://goo.gl/Tw1Zi.
Cfr: https://www.facebook.com/groups/255840577820696/.
531
AF miolo corrupcao 3.indd 531
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
O presidente esclareceu de seguida a ideia, nos seguintes termos:
Referimo-nos aos meios de comunicação social, à Internet e,
mais recentemente, às redes sociais virtuais. A conectividade, que é
uma realidade em cada vez mais espaços geográficos da nossa Pátria
Amada, tem, sem dúvidas, muitas vantagens, particularmente no
que diz respeito à democratização do acesso ao conhecimento e à
criação de cidadãos cosmopolitas virtuais. O facto de no premir de
uma tecla encontrar-se a solução comunicacional pretendida pode
ser extrapolado para a tendência de procurar respostas simples e
imediatas para problemas complexos. Podemos nos esquecer que
os desafios estruturais com que nos debatemos nesta ou naquela
área requerem respostas sustentadas e sustentáveis que, portanto,
levam mais tempo a aparecer201.
Como podemos aferir, este discurso confirma a breve
reflexão exposta neste artigo sobre a eficácia do activismo digital, que, como ficou documentado, transcende o
espaço virtual, criando consequentes efeitos sobre os assuntos debatidos.
Concluímos assim que o activismo digital em Moçambique está se consolidando como uma ferramenta critica
para a promoção do engajamento dos cidadãos na participação pública. As questões da penetração da internet (2.4%) ou do acesso e uso das redes sociais devem
ser relacionadas com a pobreza, a taxa de alfabetização e
outros condicionalismos que implicam a construção de
uma cidadania.
Cfr: http://goo.gl/ltA05 . O jornal Canal Moz fez a este propósito
um texto de opinião em que respondia à questão por si colocada. Porque
Guebuza não gosta do Facebook? Cf: http://macua.blogs.com/files/cmc_
n162_porqueguebuza.pdf.
201
532
AF miolo corrupcao 3.indd 532
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Referências Bibliográficas
CARDOSO, G. e LAMY, C. (2011) Redes sociais: comunicação e
mudança In: JANUS.NET e-journal of International Relations,
vol. 2, n.º 1, Primavera.
GLADWELL, M. (2010) Small Change: Why the revolution will not
be tweeted. The New Yorker, Oct. 4.
KALYANGO, Y. (2012) Public attitudes toward media control and incitement of conflicts in Easter Africa. Media, War& Conflit. Sage,
December vol 5(2), pp. 119-137.
KARPF, D. (2010) Online Political Mobilization from the Advocacy
Group’s Perspective: Looking Beyond Clicktivism. Policy & Internet, vol. 2: iss. 4, article 2.
PEREIRA, J. C. G. (2007) Onde é que os eleitores moçambicanos adquirem
as suas informações políticas? Maputo: IESE.
RAPOSO, E. V. e NHANALE, E. (2012) Como os eleitores de Inhambane foram informados sobre as eleições. Relatório de Observação/
Pesquisa sobre acesso à informação e exercício de cidadania nas eleições intercalares de Inhambane de 18 de Abril de 2012. Maputo: CEO/IBIS/
Agir. http://www.academia.edu/1900263/Como_os_eleitores_
de_Inhambane_foram_informados_sobre_as_eleicoes.
RAPOSO, E. V. e all. (2010) A centralidade das redes sociais no acesso
ao Estado pelos cidadãos. Boletim Debate. Maputo: CEC, pp. 4-11.
VISSERS, S. e STOLLE, D. (2012) Spill-over effects between Facebook and on/offline political participation? Evidence from a twowave panel study. Edmonton, Canadian Political Science Association.
Annual Meeting, June pp. 15-17.
ZÚÑIGA, H. G. de, VEENSTRA, A., VRAGA, E. e SHAH, D.
(2010) Digital Democracy: Reimagining pathways to political participation. Journal of Information Technology & Politics, 2: p. 5.
533
AF miolo corrupcao 3.indd 533
7/31/14 12:55 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 534
7/31/14 12:55 AM
Resumos e Abstracts
“Cobertura Jornalística da
C o r r u p ç ã o P o l í t i c a : sis t e m a s
p o l í t i c o s , sis t e m a s m e d i á t i c o s
e e n q u a d r a m e n t o s l e g a is ”
“ J o u r n a l is t i c C o v e r a g e o f
Political Corruption: Political
Systems, Media Systems and Llegal
Frameworks”
Isabel Ferin Cunha e Estrela Serrano (Coords.)
Análise do Sistema Político
Português no Período Democrático:
uma breve caracterização
| Mafalda Lobo
Resumo
O sistema político é o modo concreto de organização
e funcionamento da vida política numa dada época, que
engloba o conteúdo da Constituição, a estrutura das instituições, o sistema de governo, o sistema eleitoral, o sistema
de partidos. Por sua vez, nos regimes políticos democráticos, consideram-se a liberdade, o pluralismo, os direitos
do homem, o voto livre e secreto, a soberania popular.
Falar de sistema político implica considerar todos os elementos que o compõem. É, por isso, que não podemos
falar de sistema político sem equacionarmos os sistemas
eleitorais, e eventuais reformas, os sistemas partidários,
sendo que o sistema eleitoral funciona como base e condiciona todo o sistema político pela influência que tem
na configuração do sistema parlamentar, no sistema de
535
AF miolo corrupcao 3.indd 535
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
governo e na forma como molda o poder político. Neste
capítulo não tivemos como preocupação essencial apresentar uma relação política aprofundada, entre o sistema
de partidos, o sistema eleitoral e o sistema de governo em
Portugal, mas a partir de diversos contributos dispersos,
agregá-los numa síntese na qual se procede a uma breve
caracterização de cada um dos sistemas, e à apresentação
de algumas perspectivas.
Palavras-chave: Sistema Político; Sistema Eleitoral;
Sistema de Governo; Reforma Eleitoral; Semipresidencialismo.
A n a ly s i s
System
Portuguese Political
in Democracy: a brief
c h a r ac t e r i z at i o n | M a fa l d a L o b o
of
Abstract
The political system is the concrete form of organization and functioning of political life at a specific time, which includes the content of the Constitution, the structure
of institutions, the system of government, the electoral
system, the party system. In turn, in democratic political
regimes, we consider freedom, pluralism, human rights,
free and secret vote, popular sovereignty. Talking about
political system implies considering all the elements that
compose it. It is the reason, therefore, no one can talk
about a political system without questioning electoral systems, and possible reforms, party systems, and the electoral system works as the basis and conditions all of the
political system by the influence it has on the parliamentary system configuration, the system of governance and
in shaping political power. In this chapter, we did not have
the major concern of presenting a political relationship
536
AF miolo corrupcao 3.indd 536
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
between the party system, the electoral system, and system of government in Portugal, but, from many several
contributions, aggregating them into a synthesis in which
one proceeds to a brief characterization of each system,
and a presentation of some perspectives.
Keywords: Political System; Electoral System; System
of Government; Electoral Reform; Semi-Presidential.
2. Política
anticorrupção e o
Brasil | Fernando
M a t e u s M o r a is A r a ú j o
marco legal no
Filgueiras
e
Resumo
Este texto procura compreender a construção da política anticorrupção no Brasil com foco nas mudanças
institucionais promovidas pelo Estado brasileiro a partir do marco da Constituição da República Federativa de
1988. Esse processo de mudança institucional espelha
no marco legal brasileiro, o qual estabeleceu essa política
anticorrupção. No que tange à luta contra a corrupção
no Brasil, o que se percebe é que hoje existe uma política anticorrupção, adotando esse processo de inovação
institucional no âmbito do controle e da transparência.
Contudo, existe ainda uma barreira à plena efetividade
dessa política anticorrupção que está na responsabilização dos agentes públicos e privados pelos atos ilícitos.
No caso do Brasil, hoje, as instituições de controle são
efetivas no processo de desvelamento da corrupção. No
entanto, ainda não há efetividade na aplicação de sanções
aos casos de corrupção.
537
AF miolo corrupcao 3.indd 537
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Palavras-chave: Corrupção; Política anticorrupção;
Accountability; Leis.
The
anti-corruption policy and
Brazil
| F e r n a n d o F i lg u e i r a s e M at e u s
M o r a is A r a ú j o
r e g u l ato ry f r a m ewo r k i n
Abstract
This paper discusses the construction of anti-corruption policy in Brazil focusing on institutional changes promoted by the Brazilian State from the 1988 Federal Constitution. This process of institutional change
reflects the Brazilian legal framework, which established
that anti-corruption policy. Regarding the fight against
corruption in Brazil, what we see is that there is now an
anti-corruption policy, adopting this process of institutional innovation within the control and transparency.
However, there is still a barrier to the full realization of
this corruption that is in the accountability of public
and private actors by policy. In Brazil today, the institutions of control are effective in the process of unveiling
corruption. However, there is no effective sanctions in
cases of corruption.
Keywords: Corruption; Anti-Corruption policy; Accountability; Laws.
3. Prevenir
e reprimir a corrupção
Portugal – Evolução do
Legal | António João Maia
Hermenegildo Borges
política em
Quadro
e
538
AF miolo corrupcao 3.indd 538
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Resumo
Este artigo aborda a evolução do quadro legal português a partir dos anos oitenta, relativamente às estratégias e políticas públicas desenhadas e adotadas pelos
sucessivos governos para, no contexto das convenções
internacionais, reprimir, controlar, investigar e prevenir a criminalidade económica praticada contra o Estado por funcionários no exercício de funções públicas.
Este conjunto de crimes, mais vulgarmente conhecido
por corrupção, traduz a existência de graves ineficiências no desempenho dos Serviços Públicos, tanto na gestão dos bens e património públicos que lhes estão afetos, como na forma como se relacionam com o cidadão.
Palavras-chave: Corrupção; Crime económico; Crime financeiro; Leis criminais da Corrupção; Prevenção
da Corrupção; Má gestão pública.
Prevent
a n d s u pp r e s s p o l i t i c a l
Portugal - Evolution
Legal Framework | António João
Maia e Hermenegildo Borges
corruption in
of
Abstract
This article discusses the evolution of the Portuguese legal framework from the eighties in respect of strategies and public policies designed and adopted by successive governments, within the framework of international
conventions, to repress, monitor, investigate and prevent
economic crime committed against the State, particularly
by employees in the exercise of their public duties. These
crimes, mostly known as corruption, show the existence
of serious inefficiencies in the performance of Public Ser-
539
AF miolo corrupcao 3.indd 539
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
vices, both in the management of public goods, as in the
way they interact with citizens.
Keywords: Corruption; Economic Crime; Financial
Crime; Criminal Laws of Corruption; Corruption Prevention; Bad public goods management.
4. Eleições e corrupção em
Moçambique
| Domingos M. do Rosário
Resumo
Moçambique é uma democracia eleitoral onde a transição para a democracia é resultado de um conflito interno
que perdurou durante 16 anos (1977-1992). A independência de Moçambique foi proclamada pela Frelimo em
1975, nesse momento alguns partidos políticos criados antes ou pouco depois do 25 de Abril de 1974 foram abolidos a favor de um partido único. Em 1990, o país adopta
uma nova Constituição que consagrou o multipartidarismo. Neste artigo mostramos que o pluralismo instalado
em Moçambique não lançou as bases para o exercício de
um Estado de direito nem de cidadania, mas simplesmente
adoptou procedimentos formais que permitiram ao partido Frelimo consolidar a sua hegemonia através de mecanismo de corrupção politica nomeadamente a fraude.
O artigo está dividido em três partes: a primeira mostra
que apesar do sistema político eleitoral ser de tipo proporcional, razões de ordem estrutural e política, tornam
o sistema bipolarizado entre os dois antigos beligerantes.
A segunda parte mostra como a fragilidade institucional
dos pequenos partidos, aliada à falha do processo de institucionalização do maior partido da oposição, a Renamo,
540
AF miolo corrupcao 3.indd 540
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
contribui para a fraqueza do debate político. Na terceira parte analisamos os diferentes processos eleitorais de
1994 até 2009 e mostramos como instituições eleitorais
frágeis e sujeitas a manipulação política, jogam um papel
determinante na consolidação da hegemonia do partido
Estado através de mecanismos de corrupção eleitoral, nomeadamente a fraude.
Palavras-chave: Bipolarização; Eleições; Fraude; Frelimo; Instituições; MDM; Partidos políticos; Renamo.
Elections and corruption in
Mozambique
| Domingos M. do Rosário
Abstract
Mozambique is an electoral democracy where the transition to democracy is the result of an internal conflict
that lasted 16 years (1977-1992). The independence of
Mozambique was proclaimed by Frelimo in 1975, at that
time some political parties created before or shortly after
April 25, 1974 were abolished in favor of a single party.
In 1990, the country adopted a new constitution which
established a multiparty system. In this paper we show
that pluralism installed in Mozambique not laid the foundation for the exercise of the rule of law and citizenship,
but simply adopted formal procedures that allowed the
Frelimo party consolidate its hegemony through political
corruption mechanism including fraud. The article is divided into three parts: the first show that despite the political electoral system being a proportional type, structural
reasons and political order, make it a system bipolarized,
between the two former belligerents. The second part
shows how the institutional weakness of the small parties,
541
AF miolo corrupcao 3.indd 541
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
combined with the process fails of institutionalization of
the main opposition party, Renamo, contributes to weakness of the political debate. In the third part we analyze
the different electoral processes of 1994 until 2009, and
we show how fragile electoral institutions and enslaved to
political manipulation, play a decisive role in consolidating
the hegemony of the State party through mechanisms of
electoral corruption, including fraud.
Keywords: Bipolarisation; Elections; Fraud; Frelimo;
Institutions; MDM; Political parties; Renamo.
5. Sistema
dos media em
Portugal:
o s p r i m e i r o s a n o s ap ó s a
i n s tau r a ç ã o d a d e m o c r ac i a
| Estrela Serrano
Resumo
O artigo debruça-se sobre o sistema mediático português, abordando duas das dimensões do modelo de Hallin
e Mancini: o mercado dos media em Portugal, o grau e a
natureza da intervenção do Estado e o quadro legal e regulatório, percorrendo as etapas da evolução do sistema
mediático desde a instauração da democracia em Portugal, em 1974, com enfoque nas transformações verificadas no campo do jornalismo e das empresas noticiosas.
Conclui que em Portugal o sistema dos media se caracteriza
por baixas taxas de circulação de jornais e revistas, uma
forte intervenção do Estado na televisão pública e uma
regulação do sector dos media que evoluiu de um modelo assente na escolha partidária do órgão regulador, para
o da sua eleição parlamentar, sendo os membros nomeados ou cooptados e sujeitos a procedimentos e garantias
542
AF miolo corrupcao 3.indd 542
7/31/14 12:55 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
de independência e incompatibilidades que a aproximam
dos modelos europeus.
Palavras-chave: Sistema dos Media; Mercado; Propriedade; Regulação; Jornalismo.
Media System
in
Portugal:
the first
y e a r s a f t e r t h e e s ta b l i s h m e n t o f
democracy
| Estrela Serrano
Abstract
The article focuses on the Portuguese media system
addressing two of the dimensions of the Hallin and Mancini model: the media market in Portugal, the degree and
nature of state intervention and the legal and regulatory
framework. Stages of development of the media system
are analyzed since the establishment of democracy in
Portugal in 1974, focusing on the transformations in the
field of journalism and news companies. The article concludes that in Portugal the average system is characterized by low rates of circulation of newspapers and magazines, a strong state intervention in public television and
a regulation system of the media sector that has evolved
from a model based on party choice for the parliamentary election of its members, who are appointed and subject to procedures and guarantees of independence and
incompatibilities like other European models.
Keywords: Media system; Market; Property; Regulation; Journalism.
543
AF miolo corrupcao 3.indd 543
7/31/14 12:55 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
6. O Sistema dos Media em Portugal
no Contexto da Globalização do
s é c u l o XXI | R i t a F i g u e i r a s
Resumo
As alterações no processo de globalização e a profunda
crise económica em Portugal são os dois eixos centrais
do capítulo para se compreender as transformações
do sector da comunicação e dos media em Portugal. O
texto é ilustrado com exemplos das estratégias seguidas
pelos principais grupos que operam neste sector e cujo
desenvolvimento reflete as alterações globais nos fluxos
de capital na indústria dos media no século XXI. Palavra-chave: Grupos de Comunicação; Economia
Política dos Media; Globalização; Crise económica.
The Media System in Portugal in
t h e C o n t e x t o f G lo b a l i z at i o n i n
t h e XXI C e n t u r y | R i t a F i g u e i r a s
Abstract
Changes within globalization and the Portuguese
economic crisis are the central axes to understand the
morphing of the Portuguese Communication and Media
sector addressed in the chapter. The work is illustrated
by examples from the major players in the Portuguese
communication and media market, which also reflect
new global flows of capital in media industries in the
21st century.
Keywords: Media Companies; Political Economy of
the Media; Globalization; Economic crisis.
544
AF miolo corrupcao 3.indd 544
7/31/14 12:56 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
7. As diferentes dinâmicas da
Corrupção: Mídia, Percepção
e Instituições no Contexto
Brasileiro | Nuno Coimbra
M e s q u i t a , J o s é Á l v a r o M o is é s
e Bruno Rico
Resumo
O tema da corrupção para a ciência política, ainda que
seja de extrema importância para a teoria democrática,
é complexo devido a problemas de índices que possam
capturar a sua magnitude. Essa complexidade também é
expressa cotidianamente no discurso de agentes políticos ou da mídia, quando se questiona se a corrupção tem
aumentado ou diminuído no país. Ao contrário de outros temas onde se pode claramente indicar a melhora ou
piora mediante variáveis mais ou menos confiáveis (como
índices de inflação ou de desemprego, por exemplo), o
tema da corrupção pode ser mais facilmente manipulado
através do discurso de que não se aumentaram necessariamente os níveis de corrupção, e sim a sua divulgação,
devido à maior transparência das instituições, em um cenário de maior consolidação democrática. Não obstante, mesmo esses dados não são estruturados de maneira
adequada para que possam ser comparados. As notícias
sobre corrupção na mídia têm realmente aumentado ou
diminuído nos últimos 25 anos? Há ciclos de maior ou
menor relatos de corrupção na mídia, a depender de anos
eleitorais ou não-eleitorais? Há alguma correspondência
entre os períodos de maior relato de corrupção e outros
índices de corrupção? O objetivo desse capítulo, portanto, é a avaliação da dinâmica do tratamento da corrupção
na mídia brasileira, em comparação com outras variáveis
545
AF miolo corrupcao 3.indd 545
7/31/14 12:56 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
sobre percepção da corrupção e resposta institucional,
ao longo dos últimos 25 anos da democracia brasileira.
Palavras-chave: Mídia; Corrupção; Instituições;
Democracia.
The
CorrupMedia Perception and Institutions in the Brazilian Context |
Nuno Coimbra Mesquita,
J o s é Á l v a r o M o is é s e B r u n o R i c o
different dynamics of
tion:
Abstract
The theme of Corruption, although essential for democratic theory and quality, is complex due to problems
of successfully measuring the phenomenon. This complexity is also present in the discourse of political agents
and the media, regarding the debate of whether the problem of corruption has increased or decreased in certain
periods. Contrary to other topics where it could be clearly
argued if they have gotten better or worse (such as those
of inflation or unemployment), the debate on corruption
is more easily manipulated. It is frequently argued that it
is not necessarily corruption per se that has increased,
but rather its punishment by institutions, or its greater
publicization by media, on a changing more democratic
environment. Nevertheless, even these data are not adequately structured in order to be compared and enable
these inferences. Has news about corruption effectively increased over the years in Brazilian media? Are there
cycles of more or less news about this topic, depending
on election years? Is there any correspondence between
these cycles and other corruption indexes? The objective
of this paper, therefore, is to map out descriptively the
546
AF miolo corrupcao 3.indd 546
7/31/14 12:56 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
different dynamics of corruption in the Brazilian media,
in comparison with other corruption perception, and institutional response variables, in the past 25 years of the
recent Brazilian democratic period.
Keywords: Media; Corruption; Institutions; Democracy.
8. Sistema
midiático brasileiro:
m u lt i d ã o e e x p r e s s ã o d e u m a a r e n a
política
| M a r i a lva B a r b o s a
Resumo
O artigo procura caracterizar o sistema midiático brasileiro a partir da sua relação com o público e sua transformação como multidão ao longo de dois séculos. O objetivo
é mostrar como a compreensão do fenômeno histórico da
multidão está diretamente relacionada à constituição do
sistema midiático brasileiro, com três características centrais apropriadas em momentos precisos desde o século
XIX: a multidão como síntese da barbárie, no século XIX;
o abrandamento das ações pretensamente incivilizadas das
multidões ao serem apropriadas como público massa no
século XX; e a resignificação da multidão que, no século
XXI, ganha nova dimensão política.
Palavras-chave: Sistema Midiático; Brasil; Multidão.
547
AF miolo corrupcao 3.indd 547
7/31/14 12:56 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Brazilian Media System: Crowd and
Expression of a Political Arena |
M a r i a l v a B a r b o s a Abstract:
The paper characterizes the Brazilian media system
from its relationship with the public and its transformation
as the crowd over two centuries. The aim is to show how
understanding the historical phenomenon of the crowd is
directly related to the constitution of the Brazilian media
system with three central characteristics appropriate for
precise moments since the nineteenth century: the crowd
as a synthesis of barbarism in the nineteenth century; relaxation Share allegedly uncivilized crowds to be recognized
as mass public in the twentieth century, and reframing the
crowd that in XXI century gets new political dimension.
Keywords: Media system; Brazil; Crowd.
9. Sistema dos Media em
Moçambique: Uma breve análise
sobre o mercado da imprensa,
da radiodifusão pública e da
profissionalização do jornalismo
| Ernesto Nhanale
Resumo
O presente artigo tem como objectivo analisar o sistema dos media noticiosos em Moçambique, tendo em conta
as variáveis do mercado da imprensa escrita, o sistema da
radiodifusão pública e do nível da sua profissionalização.
No âmbito destas variáveis, o texto mostra, num primeiro nível, um recente e fraco desenvolvimento do merca548
AF miolo corrupcao 3.indd 548
7/31/14 12:56 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
do da imprensa, caracterizado fundamentalmente pela
fraca circulação e baixas audiências. Num segundo nível,
o texto ilustra o papel predominante dos meios electrónicos, sobretudo da rádio, e um sistema de radiodifusão
caracterizado pelo domínio do governo. Num terceiro
nível, discute-se a profissionalização do jornalismo em
Moçambique, caracterizado pelo fraco reconhecimento
dos profissionais, a frágil regulamentação da profissão, a
politização, autocensura, o que se tem traduzido num baixo nível de cumprimento da responsabilidade social dos
jornalistas de informar de forma equilibrada.
Palavra-chave: Sistema dos Media; Moçambique; Mercado e Profissionalização.
Media System in Mozambique: A
B r i e f A n a ly s i s o n t h e P r e s s M a r k e t ,
Public Broadcasting and the
P ro f e s s i o n a l i z at i o n o f J o u r n a l i s m
| Ernesto Nhanale
Abstract
This article aims to analyze the system of the news
media in Mozambique, taking into account the variables
of the written press market, the system of public
broadcasting and the level of their professionalism. Within
these variables, the text shows, in the first level, a recent
and weak development of the media market, mainly
characterized by poor circulation and low audiences. On
a second level, the text illustrates the dominant role of
electronic media, especially radio, and broadcast system
characterized by political dominance of the government.
At a third level, we discussed the professionalization
of journalism in Mozambique, characterized by poor
549
AF miolo corrupcao 3.indd 549
7/31/14 12:56 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
recognition of professionals, fragile regulation of the
profession, the politicization, self-censorship, which
has resulted in a low level of accountability and social
responsibility of journalists to inform in a balanced way.
Keywords: Media System; Mozambique; Marketing
and Professionalization.
10.Opinião
pública e cobertura
jornalística da corrupção política
em
Portugal | Isabel Ferin Cunha
Resumo
Neste texto pretendemos discutir a relação entre os indicadores de opinião pública e a cobertura jornalística dos
fenómenos de corrupção política em Portugal de 2005 a
2012. Fundamentamos esta comunicação nas teorias do
agendamento mediático e nos seus desdobramentos, tendo como objetivo discutir se a visibilidade da cobertura
jornalística da corrupção política poderá explicar os índices elevados de perceção de corrupção política na opinião pública portuguesa. Assumimos que a democracia
está centrada nos meios de comunicação, principalmente
na televisão apesar da crescente influência das redes sociais, e que os interesses comerciais tende a tornar a política matéria-prima valiosa e descartável condicionando
a atuação dos agentes políticos e a as formas de comunicação política. Por sua vez, o sistema partidário tendem a
formatar as suas mensagens para consumo dos media e a
governar com base nas sondagens e nos índices de aceitação pública (Maarek, 2007; Louw, 2005). Partindo dos
conceitos de agendasetting, framing, priming (Scheufele, 2000)
e dos princípios subjacentes ao modelo em cascata (Ent550
AF miolo corrupcao 3.indd 550
7/31/14 12:56 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
man, 2004), pretende-se explicar o processo da ativação
da atenção para determinados temas mediáticos, segundo uma lógica de contaminação entre os diversos meios
de comunicação. Selecionaram-se três casos mediatizados
de corrupção política de projeção nacional e analisamos
um corpus constituído por dois jornais diários, uma rádio
e duas televisões de sinal aberto. Os dados foram recolhidos a partir das edições online dos referidos meios de comunicação e contextualizados tendo em conta o sistema
político e mediático. Os indicadores de opinião pública
utilizados decorrem das sondagens periódicas realizadas
pela empresa Marktest para o Barómetro Político, que
têm como objetivo aferir a evolução da opinião pública
face aos principais representantes da democracia. A partir desta contextualização e da análise procura-se responder, tendo em conta a diversidade dos meios analisados e
as metodologias utilizadas, à seguinte pergunta: como os
casos de corrupção política agendados pelos meios de comunicação social refletem na opinião pública aferida pelas
sondagens periódicas; como a visibilidade promovida pela
cobertura jornalística da corrupção política influencia os
indicadores de opinião pública das principais figuras da
democracia. As respostas a estas perguntas constituem
uma primeira contribuição exploratória para esclarecer
as relações entre cobertura jornalística, opinião pública e
perceção da corrupção política.
Palavras-chave: Cobertura jornalística da corrupção política; Opinião pública; Corrupção política; media
portugueses.
551
AF miolo corrupcao 3.indd 551
7/31/14 12:56 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Public Opinion and Media Coverage
of Political Corruption in
Portugal
| Isabel Ferin Cunha
Abstract
In this paper we discuss the relationship between indicators of public opinion and media coverage of the phenomena of political corruption in Portugal from 2005 to
2012. We base this statement on the theories of media
scheduling and its consequences, aiming to to discuss if
the visibility of journalistic coverage of political corruption, may explain the high levels of perception of political corruption in Portuguese public opinion. We assume
that democracy is centered in the media, especially on television despite the growing influence of social networks,
and also we believe that commercial interests tend to make
political valuable raw material and disposable conditioning
the actions of political agents and forms of political communication. Meanwhile, the party system tend to format
your messages for media consumption and govern based
on polls and indexes of public acceptance (Maarek, 2007;
Louw, 2005). Based on the concepts of agenda-setting,
framing, priming (Scheufele, 2000) and the principles underlying the model cascade (Entman, 2004) seeks to explain the process of activating the media attention to certain issues, according to logic of contamination between
the different media. We selected three mediatized cases
of political corruption to national prominence and we
analyze a corpus composing of two daily newspapers, one
radio and two televisions open signal. Data were collected
from the online editions of these media and contextualized taking into account the political and media system.
Indicators of public opinion used derive from periodic
552
AF miolo corrupcao 3.indd 552
7/31/14 12:56 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
surveys conducted by the company Marktest for Political Barometer, which aim to measure the evolution of
public opinion regarding to the main political players of
democracy. From this contextualization and analysis seek
to answer, given the diversity of media and analyzed the
methodologies used, the following questions: how political corruption cases scheduled by the media reflect public opinion measured by periodic surveys; how visibility
promoted by media coverage of political corruption influences the indicators of public opinion of the main figures of democracy. The answers to these questions are
a first exploratory contribution to clarify the relationship
between media coverage, public opinion and perception
of political corruption.
Keywords: News coverage of Political Corruption;
Public Opinion; Political Corruption; Portuguese Media.
11. Meios
de
Comunicação,
corrupção e redes sociais nas
Brasil |
Helcimara de SouzaTelles,
Pedro Soares Fraiha e Nayl a Lopes
e l e i ç õ e s pa r a p r e f e i t o n o
Resumo
A análise da disputa eleitoral nas eleições municipais
de Belo Horizonte permite observar aspectos relevantes
que poderiam influenciar a decisão de voto do cidadão.
Entre estes fatores, o artigo irá destacar em que medida a
percepção da corrupção afeta a escolha do eleitor. Consideramos que a exposição dos indivíduos ao tema da corrupção seja fator preponderante para que o assunto tome
forma e componha a decisão de voto, portanto é funda553
AF miolo corrupcao 3.indd 553
7/31/14 12:56 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
mental clarificar os canais de informação com os quais o
eleitor tem acesso, além de determinar a forma como os
candidatos se utilizam da visibilidade de casos e escândalos
em seu favor. Parte-se do princípio que a mídia influencia
a opinião pública, analisamos os fatores que determinam
a intenção de voto, tais como a exposição à mídia, a percepção e tolerância à corrupção, a avaliação da economia
e do passado político dos candidatos a prefeito. A base
de dados repousa em pesquisa realizada em Belo Horizonte durante as eleições municipais de 2012. Apesar do
cenário político nacional por uma crise política centrada
em escândalos de corrupção, os resultados sugerem que
o voto econômico retrospectivo foi o principal fator de
influência na decisão de voto dos eleitores. Os candidatos concentraram ataques baseados em administrações
passadas, convencidos de que este tipo de avaliação seria
determinante na escolha do voto.
Palavras-chave: Percepção da Corrupção; Eleições;
Decisão de Voto; Escândalo Midiático.
Media,
social networks and
corruption in elections for mayor
Brazil
| Helcimara de SouzaTelles,
Pedro Soares Fraiha e Nayl a Lopes
in
Abstract
The analysis of the electoral contest in the municipal
elections of Belo Horizonte allows observing relevant aspects that could influence the voting decision of the citizen. Among these factors, the article will highlight the
extent to which the perception of corruption affects the
choice of the voter. We believe that the exposure of in554
AF miolo corrupcao 3.indd 554
7/31/14 12:56 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
dividuals to the issue of corruption is a major factor for
that matter takes form and compose the voting decision,
so it is essential to clarify the information channels with
which the voter has access, in addition to determining how
candidates make use of the visibility of cases and scandals in his favor. It starts from the principle that the media influences public opinion, we analyze the factors that
determine the intention to vote, such as media exposure,
awareness and tolerance for corruption, the assessment of
the economy and the political past of the candidates for
mayor. The database relies on research conducted in Belo
Horizonte during the municipal elections of 2012. Despite the national political scene by a political crisis centered
in corruption scandals, the results suggest that economic
retrospective voting was the main factor influencing the
voting decision of voters. Candidates focused attacks based on past administrations, convinced that this type of
evaluation would be decisive in the vote choice.
Keywords: Perception of Corruption; Elections; Voting Decision; Media Scandals
12. A Objetividade
na
Cobertura
do escândalo político e os novos
propósitos de uma subjectividade
o b j e t i va n t e
| B r u n o P a ix ã o
Resumo
Neste trabalho procuramos confrontar posições em
torno da objetividade jornalística e cotejar, através de um
Estudo de Caso, se o escândalo político, enquanto fenómeno mediático, facilita a depreciação dessa objetividade.
Pretendemos também, a partir das teorias e definições,
555
AF miolo corrupcao 3.indd 555
7/31/14 12:56 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
contribuir para encontrar um ponto de convergência entre defensores e opositores da objetividade no jornalismo contemporâneo. Expomos ainda o resultado de um
questionário dirigido aos media, sobretudo aos jornalistas
de política e direção editorial, sobre a objetividade e o escândalo político.
Palavras-chave: Objetividade; Escândalo Político;
Info-entretenimento; Caso Felgueiras.
The
objectivity in the coverage
of political scandal and a
new purposes of objectifying
subjectivity
| B r u n o P a ix ã o
Abstract
In this paper we confront positions around the journalistic objectivity and collate, through a case study, if
the political scandal, while media phenomenon facilitates
the depreciation of that objectivity. We also intend, based on the theories and definitions, help to find a point
of convergence between proponents and opponents of
objectivity in contemporary journalism. We also present
the results of a questionnaire addressed to the media, especially to political section journalists and editorial board
on the objectivity and political scandal.
Keywords: Objectivity; Political Scandal, Infotainment; Felgueiras’s Case.
556
AF miolo corrupcao 3.indd 556
7/31/14 12:56 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
1 3 . A C o r ru p ç ã o P o l í t i c a v i s ta
at r av é s d a s R e d e s S o c i a i s :
M e t o d o l o g i a s pa r a o E s t u d o d e
Conteúdos Web | Estrela Serrano
Resumo
A internet veio contribuir para reforçar a procura de
informação e de sociabilidade. Estudos recentes mostram
que alguns usos da internet contribuem para o envolvimento cívico, aumentam o voluntarismo, reforçam as interacções pessoais e incitam a procura de informação. O
artigo debruça-se sobre a blogosfera e explora as metodologias mais adequadas para o estudo do conteúdo de uma
amostra de blogs que abordaram um caso dito de corrupção política em Portugal – o Freeport. Na primeira parte é
feita uma revisão da literatura sobre os blogs e a blogosfera – definição, tipologias e características funcionais. Na
segunda parte, expõem-se as opções metodológicas para
o estudo do “caso” numa amostra de blogs portugueses
mais visitados. Finalmente, identificam-se os principais
desafios associados à análise de conteúdos web.
Palavras-chave: Web 2.0; Blogosfera; Blogs; Análise
de Conteúdo; Análise de Discurso.
Political Corruption seen through
Social Networking: Methodologies
for the Study of Web Content
| Estrela Serrano
Abstract
The internet has contributed to strengthen the demand
for information and sociability. Recent studies show that
some uses of the Internet contribute to civic engagement,
557
AF miolo corrupcao 3.indd 557
7/31/14 12:56 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
increase volunteerism, reinforce personal interactions and
encourage the search for information. The article focuses
on the blogosphere and explores the most appropriate
methodologies for studying the content of a sample of
blogs that dealt with a case study of political corruption
in Portugal – Freeport case. The first part focuses on the
literature reviews on the blogs and the blogosphere. The
second part exposes the methodological options for the
case study in a sample of Portuguese most visited blogs.
Finally, the article identifies the key challenges associated
with the analysis of web content.
Keywords: Web 2.0; Blogosphere; Blogs; Content
Analysis; Discourse.
14. Clicktivismo ou activismo a
Em que medida a internet
sério?
p o d e s e r c o n s i d e r a d a e s pa ç o
de exercício de cidadania em
Moçambique |Egídio Vaz Raposo
Resumo
O presente artigo discute a contribuição da internet
para a constituição e consolidação de um espaço de exercício da cidadania em Moçambique. Conferimos o termo
genérico de activismo digital, ao engajamento dos cidadãos na participação pública (Kalyango, 2012). Por sua vez,
entendemos por participação pública, o envolvimento de
indivíduos ou grupos de interesse na discussão de assuntos sujeitos a decisão ou em processo de implementação.
Partimos do pressuposto de que as redes sociais e a mídia social da internet possuem uma capacidade de mobilização política pública capaz de levar à acção, salvaguar558
AF miolo corrupcao 3.indd 558
7/31/14 12:56 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
dando o facto de esta mobilização apenas ser activada
em indivíduos com predisposição política (Vissers, 2012).
Questionamos se a democratização no acesso à internet
é determinante para a cristalização deste espaço público
ou pelo contrário, o activismo é indiferente à quantidade.
Da análise do sistema da mídia moçambicano, argumentamos que o activismo digital em Moçambique floresce e
consolida-se como um espaço de excelência para a participação pública ante a fraca tendência no consumo de
informação política pelos cidadãos.
Palavras-chave: Redes Sociais; Activismo; Participação Publica; Mídia.
Clicktivismo or
T o w h at e x t e n t
s e r i o u s ly ac t i v i s m ?
the internet can be
c o n s i d e r e d a s pa c e o f c i t i z e n s h i p
Mozambique
Vaz Raposo
exercise in
| Egidio
Abstract
This article discusses the contribution of the internet
to the establishment and consolidation of a space for
the exercise of citizenship in Mozambique. We attach
the generic term of digital activism, to the engagement
of citizens in public affairs (Kalyango, 2012). In turn, we
understand the public participation, the involvement of
individuals or interest groups, the discussion of matters
subject to public decision or implementation process. We
assume that social networks and social media have a capacity for political mobilization of citizens capable of taking
action, safeguarding the fact that this mobilization is only
activated in individuals with political predisposition (Vissers, 2012). We question whether the democratization of
559
AF miolo corrupcao 3.indd 559
7/31/14 12:56 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
access to the internet is crucial for the crystallization of
this public space or on the contrary, activism is indifferent to quantity. Based on the analysis of the Mozambican
media system, we argue that digital activism in Mozambique emerges and consolidates itself as an area of ​​excellence for public participation in the face of weak trend in
the consumption of political information by the citizens.
Keywords: Social Networking; Activism; Public Participation; Media.
560
AF miolo corrupcao 3.indd 560
7/31/14 12:56 AM
N o ta s b i o g r á f i c a s
António João Maia
Licenciado em Antropologia e mestre em Sociologia.
Doutorando em Ciências Sociais / Administração Pública. Membro do Observatório de Economia e Gestão de
Fraude, da Faculdade de Economia da Universidade do
Porto. Membro do Centro de Administração e Políticas
Públicas, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. É investigador criminal dos quadros da Polícia Judiciária, estando, desde 2009 em funções no Conselho de
Prevenção da Corrupção.
[email protected]
Bruno Paixão
Licenciou-se em Jornalismo e fez mestrado em Comunicação e Jornalismo. É doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade de Coimbra e investigador
do CIMJ. Integra o projeto de investigação sobre a “Cobertura Jornalística da Corrupção Política: uma perspectiva comparada”. Foi presidente da Comissão Executiva do
Congresso Pensar Portugal, realizado no Pavilhão Atlântico, em Lisboa, em abril de 2000, com o Alto Patrocínio
do Presidente da República. Foi presidente da Associação
Nacional de Jovens Jornalistas. Foi jornalista político e repórter parlamentar. É autor do livro O Escândalo Político em
Portugal e de várias comunicações sobre estas temáticas.
[email protected]
Bruno Rico
Pesquisador associado do Núcleo de Pesquisas em
Políticas Públicas - NUPPs da USP. É formado em
Ciências Sociais pela USP e em Jornalismo pela PUCSP. Foi jornalista durante cinco anos, tendo publicado
561
AF miolo corrupcao 3.indd 561
7/31/14 12:56 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
reportagens no jornal Folha de São Paulo, nas revistas
CartA Capital e História Viva, e nos portais UOL e iG.
Desenvolve sua pesquisa de mestrado no Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais (Política) da PUC-SP,
com financiamento do Conselho Nacional de Pesquisa –
CNPq.
[email protected]
Domingos Manuel do Rosário
Doutor em Ciência política. É Professor auxiliar e Docente de Ciência Política e Administração Pública na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo
Mondlane em Maputo. É também Investigador associado
no Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE). A
sua pesquisa está direccionada para as áreas de Democracia, Eleições, Descentralização e Políticas Públicas.
[email protected]
Egídio G. Vaz Raposo (Egídio Vaz)
Historiador e consultor de comunicação e pesquisador
de mídia e jornalismo há mais de 10 anos. É atualmente
pesquisador do Centro de Estudos Interdisciplinares de
Comunicação - CEC e também responsável pela capacitação profissional da mídia moçambicana do programa para
fortalecimento da mídia da IREX. Egídio Vaz Raposo é
também consultor internacional de comunicação e membro da Associação Americana de Educadores e Pesquisadores em Jornalismo e Comunicação de Massa, AEJMC. www.egidoivaz.com | [email protected]
Ernesto Constantino Nhanale
Doutorando em Ciências da Comunicação na Universidade Autónoma de Barcelona. Desenvolve a sua pesquisa na área de Comunicação e Política e fazendo parte do
562
AF miolo corrupcao 3.indd 562
7/31/14 12:56 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
grupo do Projecto Media e Corrupção Política do Centro
de Investigação Media e Jornalismo, em representação do
Centro de Estudos Interdisciplinares de Comunicação de
Moçambique. Para além de investigação, Ernesto Nhanale
é docente na Escola Superior de Jornalismo, em Maputo.
[email protected]
Estrela Serrano
Doutorada em Sociologia da Comunicação, da Cultura e da Educação pelo ISCTE-IUL, mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa
e licenciada em História pela Universidade Clássica de
Lisboa. É Presidente do Centro de Investigação Media
& Jornalismo (CIMJ), membro do Conselho Geral do
Instituto Politécnico de Lisboa (IPL), membro do Conselho de Opinião da RTP, membro do Conselho Diretivo
do Doutoramento FCT em “Estudos de Comunicação:
Tecnologia, Cultura e Sociedade”. Foi vogal da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, (2006-2011)
professora coordenadora e diretora do curso de Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social (IPL),
professora convidada do ISCTE-IUL e na Universidade Autónoma de Lisboa. Foi provedora dos Leitores do
Diário de Notícias e assessora para a Comunicação Social
do Presidente da República (1986-1996). Foi coordenadora para os Media da Presidência Portuguesa da União
Europeia em 2000, membro da direção da Sociedade
Portuguesa de Autores (1980-1994), jornalista na RTP
(1979/80), coordenadora e realizadora de programas, diretora adjunta do Programa 2 da RDP, diretora da Antena 1, e assessora principal na RDP (1965/81). É autora
de livros e de artigos científicos.
[email protected]
563
AF miolo corrupcao 3.indd 563
7/31/14 12:56 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Fernando Filgueiras
Professor do Departamento de Ciência Política da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil.
Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Coordenador
do Centro de Referência do Interesse Público (CRIP) da
UFMG. Autor de Corrupção, democracia e legitimidade (Editora UFMG, 2013) e organizou Dimensões políticas da justiça
(Editora Civilização Brasileira, 2013).
[email protected]
Helcimara Telles Doutora em Ciência Política pela Universidade de São
Paulo, pós-doutorado na Universidade Complutense de
Madrid. Professora da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). Coordenadora do grupo de pesquisa
Opinião Pública, Marketing Político e Comportamento
Eleitoral, da UFMG, e do grupo Comunicação Política e
Comportamento Eleitoral (LATICOM), da Associação
Latino-Americana de Ciência Política (ALACIP). Co-organizadora de Comunicação Política e Comportamento Eleitoral,
com Alejandro Moreno (Editora UFMG, 2013), Como o
eleitor escolhe o seu prefeito: voto e campanha nas eleições municipais, com Antonio Lavareda (Editora da FGV, 2011), organizadora do livro A educação desterritorializada: a expansão
das fronteiras (2007), coorganizadora de Das ruas às urnas:
partidos e eleições no Brasil contemporâneo (2004), entre outros.
[email protected]
Hermenegildo Ferreira Borges
Concluiu, no ano 2000, o doutoramento em Ciências
da Comunicação, variante Teoria da Comunicação, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da U.N.L., onde
exerce a atividade docente como Professor Auxiliar. Criou
564
AF miolo corrupcao 3.indd 564
7/31/14 12:56 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
e coordena o Mestrado em Comunicação, Media e Justiça,
organizado pela FCSH-UNL em parceria com a FDUNL.
Publicou 3 livros, 3 capítulos de livros, 11 artigos em revistas especializadas e 7 trabalhos em actas de eventos.
[email protected]
Isabel Ferin Cunha
Professora Associada, com agregação, da Universidade de Coimbra. Investigadora Principal do Centro de Investigação Media e Jornalismo. Tem coordenado alguns
projetos aprovados pela Fundação Ciência e Tecnologia/
Portugal, tais como Televisão e Imagens da Diferença e Jornalismo e Actos de Democracia e Cobertura Jornalística da Corrupção
Política: uma perspetiva comparada Brasil, Moçambique e Portugal (20132015). Publicou os livros: Comunicação e Cultura do
quotidiano, Quimera, 2002 ( 2006; 2009); Jornalismo e actos
de democracia (2007); Memórias da Telenovela (2011).
[email protected]
José Álvaro Moisés
Graduado em Ciências Sociais pela USP, Mestre em
Política e Governo pela University of Essex, Doutor
em Ciência Política pela USP. Foi Secretário Nacional de
Apoio à Cultura e Secretário Nacional de Audiovisual. É
Professor Titular de Ciência Política da USP. Diretor do
Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas - NUPPs da USP.
Dedica-se aos estudos de Teoria empírica Democrática e
Comportamento Político, tendo se especializado nos temas de transição politica, democratização, cultura política
e sociedade civil, cidadania e direitos, instituições democráticas e qualidade da democracia.
[email protected]
565
AF miolo corrupcao 3.indd 565
7/31/14 12:56 AM
isabel ferin cunha e estrela serrano
Mafalda Lobo
Bolseira da FCT no Programa Doutoral Estudos de
Comunicação: Tecnologia, Cultura e Sociedade da Universidade do Minho. Mestre em Comunicação Social pelo
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSPUL). Investigadora-colaboradora do CAPP-ISCSP, CIMJ
- FCSH-UNL e Investigadora Associada do Observatório Político (OP). Tem participado em vários projectos
de investigação, e tem vários artigos publicados sobre as
temáticas da comunicação e comunicação política digital.
Marialva Carlos Barbosa
Professora Titular de Jornalismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de PósGraduação em Comunicação e Cultura da mesma Universidade. Vice-Presidente da INTERCOM é pesquisadora
nível 1 do CNPq. Publicou diversos livros entre eles História da Comunicação no Brasil (Vozes, 2013); História Cultural da Imprensa em dois volumes (MAUAD, 2007 e 2010).
[email protected]
Mateus Morais Araújo
Doutorando em Ciência Política pelo Programa de
Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador do Centro
de Referência do Interesse Público (CRIP), da UFMG.
[email protected]
Nayla Lopes Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), especialista em Marketing Político,
jornalista e pesquisadora do grupo “Opinião Pública, Marketing Político e Comportamento Eleitoral”, da UFMG.
[email protected]
566
AF miolo corrupcao 3.indd 566
7/31/14 12:56 AM
cobertura jornalística da corrupção política:
sistemas políticos, sistemas mediáticos
e e n qua d r a m e n t o s l e g a i s
Nuno Coimbra Mesquita
Graduado em Ciência Política pela UnB, mestre
em Ciência Política e Relações Internacionais pela
Universidade Católica Portuguesa e doutor em Ciência
Política pela USP. Fez pós doutorado no Departamento
de Ciência Política da USP com apoio da FAPESP, com
estudo sobre mídia, apoio político e cultura política. É
pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas
– NUPPs da USP e membro do comitê executivo da RC22 - IPSA. Dedica-se aos estudos de teoria empírica da
democracia, tendo se especializado nos temas de meios de
comunicação, instituições democráticas e cultura política.
[email protected]
Pedro Fraiha
Economista e pesquisador do grupo “Opinião Pública, Marketing Político e Comportamento Eleitoral”, da
Universidade Federal de Minas Gerais.
[email protected]
Rita Figueiras
Professora Auxiliar da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Coordenadora
do Doutoramento em Ciências da Comunicação na mesma instituição e Coordenadora da linha de investigação
“Media, Tecnologia, Contextos” do Centro de Estudos
de Comunicação e Cultura (CECC). Diretora-Adjunta da
revista Comunicação & Cultura. Colabora também com o
Centro de Investigação Media e Jornalismo (CIMJ). Áreas
de pesquisa: Comunicação Política, Jornalismo, Economia
Política dos Media.
[email protected]
567
AF miolo corrupcao 3.indd 567
7/31/14 12:56 AM
AF miolo corrupcao 3.indd 568
7/31/14 12:56 AM

Documentos relacionados