01 - vii sapis e ii elapis - Universidade Federal de Santa Catarina

Transcrição

01 - vii sapis e ii elapis - Universidade Federal de Santa Catarina
Culturas e Biodiversidade:
O presente que temos e o futuro que queremos
Artigos e Relatos de Experiência
Anais do VII Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social – SAPIS e II Encontro Latino Americano sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social – ELAPIS
Organização
Natalia Hanazaki
Dannieli Firme Herbst
Júlia Vieira da Cunha Ávila
Marian Ruth Heineberg
Thiago Caio Celante Gomes
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015
Expediente
Revisão
Dannieli Firme Herbst, Júlia Vieira da Cunha Ávila,
Marian Ruth Heineberg, Natalia Hanazaki, Thiago Caio Celante Gomes
Capa e diagramação
Kelly Rhein Gerevini
Culturas e Biodiversidade: o presente que temos e o futuro que queremos. Anais do VII Seminário Brasileiros sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social e II Encontro Latino Americano sobre
Áreas Protegidas e Inclusão Social / Organizadores: Hanazaki, Natalia; Herbst, Dannieli Firme;
Avila, Julia Vieira da Cunha; Heineberg, Marian Ruth; Gomes, Thiago Caio Celante. Florianópolis:
Universidade Federal de Santa Catarina, 2015.
http://sapiselapis2015.paginas.ufsc.br/anais
ISBN
1. Compromisso com o futuro comum. 2. Áreas Protegidas, saúde e bem estar humano. 3. Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade. 4. Diversidade cultural e manejo da biodiversidade. 5.Sistemas de Gestão e Governança. 6. Educação para sustentabilidade e cidadania.
Caro Leitor
Convidamos você a navegar pelos trabalhos apresentados na sétima edição do Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social – SAPIS e segunda edição do Encontro Latino Americano sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social – ELAPIS. O evento aconteceu na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis (SC), de 3 a 6 de novembro de 2015.
O Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social é um seminário aberto à sociedade que visa discutir o
presente cenário que temos dentro e fora das unidades de conservação da natureza, das terras indígenas, dos territórios quilombolas, das reservas legais e de outras áreas protegidas e conservadas, que contribuem decisivamente para o equilíbrio dos
sistemas socioecológicos, essenciais à saúde e ao bem-estar humano. Pensando no futuro, o cumprimento dos objetivos de conservação da natureza pode se fortalecer de diferentes formas de manejo e governança da biodiversidade em áreas protegidas e
conservadas pelo Estado, pelos povos indígenas, comunidades tradicionais e locais, e por instituições privadas.
O VII SAPIS/ II ELAPIS tem como pano de fundo os resultados do Congresso Mundial de Parques da IUCN, que ocorreu
em Sydney (“A Promessa de Sidney”) em 2014, assim como as perspectivas de atuação em redes transformativas de conhecimento para estreitar laços entre as comunidades científicas e locais na prática da governança socioambiental.
O evento representa um espaço para o intercâmbio de experiências de pesquisas, iniciativas e projetos em conservação da diversidade biológica e sociocultural, com foco nas áreas protegidas e nos territórios tradicionais, e suas interfaces
com a questão do ordenamento territorial e do desenvolvimento, em âmbito nacional e latino-americano. Buscamos, no evento,
contribuir para a consolidação e fortalecimento de redes de pesquisadores e instituições, de âmbito interdisciplinar, intersetorial e transescalar, capazes de estabelecer parcerias e intercâmbios em programas e projetos no Brasil e na América Latina.
Procuramos também promover o diálogo de saberes entre a academia, o setor público, a sociedade civil, em especial, os povos
e comunidades tradicionais, com relação à gestão e governança de áreas protegidas e de territórios tradicionais no Brasil e na
América Latina.
O evento é, ainda, um espaço para compartilhar avanços, desafios e potencialidades dos campos científico, técnico,
político e social frente à implementação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC); da Política
Nacional de Biodiversidade (PNB); do Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP); da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Populações Tradicionais (PNPCT); da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de
Terras Indígenas (PNGATI); e do Marco da Biodiversidade, no cenário brasileiro.
A organização do VII SAPIS e II ELAPIS teve desde o seu princípio uma característica muito marcante que é a colaboração interdisciplinar, envolvendo programas de pós-graduação de diferentes áreas do conhecimento, ONGs e instituições governamentais.
Este volume congrega os trabalhos inscritos para apresentação oral e na forma de pôster, que consistiam em artigos
científicos ou relatos de experiências. Para respeitar a natureza interdisciplinar do evento, reunimos neste volume os 95 trabalhos
que foram aprovados por um comitê científico composto por 26 pesquisadores e docentes de instituições do Brasil e do exterior,
que, juntos, emitiram 248 pareceres. Alguns destes trabalhos tiveram apenas seus resumos publicados, por opção dos autores.
Os trabalhos estão organizados em seis eixos temáticos: 1) Compromisso com o futuro comum; 2) Áreas protegidas,
saúde e bem estar humano: natureza saudável, pessoas saudáveis; 3) Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade;
4) Diversidade cultural e manejo da biodiversidade; 5) Sistemas de Gestão e Governança e 6) Educação para a sustentabilidade
e cidadania e experiências de aprendizagem social. Como um foco transversal nestes debates está a necessidade aproximar a
interface entre a ciência, sistemas de governança e manejo e políticas públicas.
Desejando a todos uma proveitosa leitura, esperamos contribuir com reflexões sobre Culturas e Biodiversidade; e com os
desafios de, a partir do presente que temos, construirmos juntos o futuro que queremos.
Os Organizadores
Comissão científica
Alba Simon (UFF)
Alexandre Schiavetti (UESC)
Alfredo Ricardo Silva Lopes (UFSC)
Altair Sancho (UFMG)
Ana Beatriz Vianna Mendes (UFMG)
Bernardo Gontijo (UFMG)
Camila Rodrigues (UFRRJ)
Carlyle Torres Bezerra de Menezes (UNESC)
Cristiana Simão Seixas (UNICAMP)
Henrique dos Santos Pereira (UFAM)
Hilton Pereira da Silva (UFPA)
Iara Vasco Ferreira (UFSC)
João de Deus Medeiros (UFSC)
José Antônio Souza de Deus (UFMG)
José Matarezzi (UNIVALI)
Juliana Farinacci (UNICAMP)
Luciana Gomes de Araujo (UNICAMP)
Lucio Malizia (Argentina, Universidad de Jujuy)
Marinez Scherer (UFSC)
Natalia Hanazaki (UFSC)
Orlando Ferretti (UFSC)
Pedro Silveira (UFSC)
Ricardo Verdum (UFSC)
Rosana Martinelli Freitas (UFSC)
Wilson Madeira Filho (UFF)
Xose Solla Santos (Espanha, Univ. Santiago de Compostela)
VII Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social – SAPIS e
II Encontro Latino Americano sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social – ELAPIS
Centro de Eventos UFSC | de 3 a 6 de novembro de 2015
Presidentes
Natalia Hanazaki (ECZ/CCB/UFSC)
Marcos Fabio Freire Montysuma (HST/CFH/UFSC)
Secretaria Executiva
Iara Vasco Ferreira (Doutoranda, PPGICH/CFH/UFSC)
Edio Cunha Filho (Graduando em Geografia, CFH/UFSC)
Bruna Luiza Amante (Coletivo UC da Ilha)
Isabela Zignani (Mestranda, PPG Ecologia/CCB/UFSC)
Tesouraria
Sofia Zank (Doutoranda, PPG Ecologia/CCB/UFSC)
Gabriela Guimarães Orofino (Mestranda, PPG Ecologia/CCB/UFSC)
Comissão organizadora
Andrea Lamberts (ICMBio)
Aracídio Neto (Coletivo UC da Ilha e NESSOP/UFSC)
Carmen Tornquist (UDESC)
Carolina Alvite (ICMBio)
Edviges Marta Ioris (PPGAS/CFH/UFSC)
Elaine Zuchiwschi (FATMA)
Eunice S. Nodari (PPG História/CFH/UFSC)
Flora Neves (Coletivo UC da Ilha)
Gabriel Stroich da Costa (DEPUC - FLORAM)
Iara Vasco (PPGICH/CFH/UFSC)
João de Deus Medeiros (BOT/CCB/UFSC)
Julia Vieira da Cunha Ávila (Mestranda, PPG Ecologia/CCB/UFSC)
Luís Filipe Trois Bueno e Silva (FUNAI – CR Litoral Sul)
Marcelo Barbosa Spaolonse (INCRA)
Marcio Baldissera Cure (Mestrando, PPG Ecologia/CCB/UFSC)
Maria Tereza dos Santos (NESSOP/UFSC)
Mariana Reinach (INCRA)
Marina Campos Pinto (CEPAGRO)
Marinez E. G. Scherer (PPG Geografia/CFH/UFSC)
Neuza Cristina Rodrigues da Silva (DEPEA – FLORAM)
Orlando Ferretti (MEN/CED/UFSC)
Pedro Castelo Branco Silveira (Dept. Antropologia/CFH/UFSC)
Samira Safadi Bastos (NESSOP/UFSC)
Thais Vezehaci Roque (Mestranda, PPGFAP/CCB/UFSC)
1.
Sumário
01 Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
ÁREAS PROTEGIDAS E A CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIOLÓGICA: DESAFIOS PARA O CUMPRIMENTO DA META
11 DE AICHI. Prates, Ana Paula Leite & Irving, Marta de Azevedo .........................................................................................................23
CONSELHOS GESTORES DE ÁREAS PROTEGIDAS NO BRASIL: REFLEXÕES SOBRE A PARTICIPAÇÃO SOCIAL, DESAFIOS
E POSSIBILIDADES. Prado, Deborah Santos; Araujo, Luciana Gomes; Chamy, Paula; Dias, Ana Carolina Esteves & Seixas, Cristiana Simão ...................................................................................................................................................................................................25
EFETIVIDADE DE NORMAS AMBIENTAIS, MANGUEZAIS E OPORTUNIDADES SOCIAIS PARA COMUNIDADES TRADICIONAIS EM RESERVAS EXTRATIVISTAS MARINHAS NO PARÁ. Pinheiro, Elysângela Sousa, Thomas, Shaji & Almeida, Oriana Trindade ..............................................................................................................................................................................................................35
CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E TEMPORALIDADES NO ESTUDO DE CASO DO ACAMPAMENTO SEBASTIÃO LAN II.
Ribeiro, Ana Maria Motta; São Clemente, Bernardo Raphael Bastos; Freitas, Emmanuel Oguri; Lobato da Costa, Rodolfo Bezerra
de Menezes & Azevedo, Thaís Maria Lutterback Saporetti ....................................................................................................................45
TRANSFERÊNCIA DE RENDA: DIFICULDADES DE ACESSO DA POPULAÇÃO TRADICIONAL AOS PROGRAMAS DO GOVERNO FEDERAL BRASILEIRO- PROGRAMAS BOLSA FAMÍLIA E BOLSA VERDE NA RESERVA EXTRATIVISTA ARAPIXIAMAZONAS (2010 - 2014). Oliveira, Késsia Monteiro de; Neto, Gerson Carvalho Nunes; Santana, Elizângela Leão & Silveira, Leonardo Konrath da ..........................................................................................................................................................................................53
02 Áreas protegidas, saúde e bem estar humano: natureza saudável, pessoas saudáveis
ÁREAS PROTEGIDAS E SEUS BENEFÍCIOS PARA O BEM-ESTAR. João, Cristina Gerber; Mattos, Cristiane Passos & Irving,
Marta de Azevedo.........................................................................................................................................................................................65
A INSERÇÃO DA MUDANÇA DO CLIMA E ADAPTAÇÃO BASEADA EM ECOSSISTEMAS NO PLANO DE MANEJO DA APA
FEDERAL DE CANANÉIA-IGUAPE-PERUÍBE (APA-CIP). Filho, Miguel F Fluminhan; Coffani-Nunes, João Vicente; Fernandes,
Márcio Barragana; Jankowski, Mayra; Paixão, Rosiene Keila Brito da; Viezzer, Jennifer; Deitenbach, Armin; Becher, Martin; Hach,
Lukas; Betti, Patrícia & Silva, Ricardo B. Alves da .....................................................................................................................................75
MAPEAMENTO PARTICIPATIVO DOS SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS CULTURAIS NO PARQUE ESTADUAL DA PEDRA
BRANCA, RJ. Ribeiro, Fernando Patrício & Ribeiro, Katia Torres .............................................................................................................85
MUDANÇAS AMBIENTAIS NA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DE ANHATOMIRIM SOB A PERSPECTIVA DA COMUNIDADE LOCAL. Zignani, Isabela; Hanazaki, Natalia & Simões-Lopes, Paulo Cesar de Azevedo ........................................................93
MALÁRIA E DENGUE: IMPRESSÕES SOBRE A SAÚDE DA POPULAÇÃO RIBEIRINHA DO PARQUE NACIONAL SERRA DO
DIVISOR, ESTADO DO ACRE. Lana, Raquel Martins; Oliveira, Francisco Giovane Silva De; Schlosser, Andreus Roberto; Arruda,
Rayanne Alves De.; Araújo, Felipe Monteiro De; Santos, Ana Caroline Santana Dos; Bastos, Paula Rubia Jornada; Silva-Nunes,
Monica Da; Honório, Nildimar Alves & Codeço, Cláudia Torres ...........................................................................................................99
ÁREAS PROTEGIDAS: PARA QUEM PROTEGÊ-LAS? O SENTIDO DE PERTENCIMENTO COMO VIA PARA VALORIZAÇÃO
SOCIOCULTURAL EM ÁREAS NATURAIS PROTEGIDAS. Abreu, Manuela Muzzi de; Irving, Marta de Azevedo; Lima, Marcelo
Augusto Gurgel de & Correa, Frances Vivian ..........................................................................................................................................109
PERCEPÇÕES DE TRABALHADORES E ESTUDANTES SOBRE A VIVÊNCIA DIÁRIA EM LUGARES DE NATUREZA PRESERVADA NA CIDADE. Albuquerque, Dayse da Silva; Sousa, Adria de Lima; Higuchi, Maria Inês Gasparetto & Kuhnen, Ariane .....117
CONSIDERAÇÕES SOBRE OS POSSÍVEIS IMPACTOS AMBIENTAIS NA EXTRAÇÃO DO SHALE GAS NO BRASIL. Gomes,
Andréa dos Santos & Fernandes, Amarildo da Cruz ..............................................................................................................................125
O PROGRAMA “MINHA CASA, MINHA VIDA” E SEUS EFEITOS SOBRE AS ÁREAS PROTEGIDAS: ESTUDO DE CASO DA
MATA ATLÂNTICA PARANAENSE. Sezerino, Fernanda de Souza & Tiepolo, Liliani Marilia ...........................................................135
A PROBLEMÁTICA DOS CASTANHAIS ACESSADOS PELA POPULAÇÃO TRADICIONAL DA RESEX ARAPIXI: AMEAÇA DO
DESMATAMENTO DO PAE ANTIMARY. Oliveira, Jardeson Monteiro de; Silveira, Leonardo Konrath da; Lopes, Jordan Fonseca &
Oliveira, Késsia Monteiro de .....................................................................................................................................................................145
MANEJO ADAPTATIVO DE RISCO E VULNERABILIDADE EM SÍTIOS DE CONSERVAÇÃO: RELATO DE UMA OFICINA DE
CAPACITAÇÃO NA METODOLOGIA MARISCO. Ibisch, Pierre L.; Oliveira, Sara Silva de; Schick, Axel; Schiavetti, Alexandre;
Camargos, Virginia; Santos, Gildevânio Pinheiro dos; Senta, Mateus Dala; Holvorcem, Christiane & Cases, Maria Olatz .........155
03 Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
IMPACTOS SOCIOECOLÓGICOS E ECOFORMAÇÃO EM AMBIENTES PROTEGIDOS: O CASO DA COMUNIDADE DA
BARRA DO TORNEIRO, JAGUARUNA, SANTA CATARINA. Munari, Amanda Bellettini & Menezes, Carlyle Torres Bezerra de ..167
O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO NA PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL EM GAROPABA (SC). Costa,
Viegas Fernandes da & Reis, Clóvis ........................................................................................................................................................175
CARBONO ESTOCADO NOS PLANTIOS DE RECUPERAÇÃO DE APP E RL NOS IMÓVEIS DA AGRICULTURA FAMILIAR.
Medeiros, João de Deus; Stefani, Marcia Rosana; Prochnow, Miriam & Schaffer, Wigold Bertoldo .................................................185
LA METODOLOGÍA DE GESTIÓN DEL PAISAJE APLICADA EN EL ÁREA DE PROTECCIÓN AMBIENTAL DE LA BALLENA FRANCA – BRASIL, COMO INSTRUMENTO DE GESTIÓN TERRITORIAL EN ÁREAS PROTEGIDAS. Delfino, Deisiane &
Pèlachs Mañosa, Albért ............................................................................................................................................................................191
AS MULHERES EXTRATIVISTAS NA RESEX MARINHA DO PIRAJUBAÉ: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DE VALORIZAÇÃO
DOS SABERES E HABILIDADES FEMININAS NO DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES DA PESCA ARTESANAL. Laci Santin, Laci & Horton, Emily Y .........................................................................................................................................................................201
FORMAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DE CONDUTORES AMBIENTAIS LOCAIS: ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO DO
TURISMO SUSTENTÁVEL EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO GAÚCHAS. Silva, Celson Roberto Canto; Cunha, Aline Moraes;
Bazotti, Leandro dos Santos & Nascimento, Cristina Alves ...................................................................................................................211
ALTERNATIVAS PARA QUALIFICAÇÃO DO TURISMO NO PARQUE NACIONAL DE SÃO JOAQUIM (PNSJ) - SANTA CATARINA – BRASIL. Omena, Michel Tadeu Rodrigues Nolasco de; Schimalski, Marcos Benedito & Castilho, Pedro Volkmer de .....221
O TURISMO E OS DESAFIOS ESTRATÉGICOS PARA A CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE E INCLUSÃO SOCIAL NOS
PARQUES ESTADUAIS DO RIO DE JANEIRO. Irving, Marta de Azevedo; Lima, Marcelo Augusto Gurgel de; João, Cristina Gerber; Oliveira, Maria Elizabeth de; Prado, Mariana Oliveira & Abreu, Manuela Muzzi .......................................................................231
TRAVESSIA: ADENTRANDO OS GROTÕES DO ESPINHAÇO. Bulhões, Tainá Gonçalves; Gontijo, Bernardo Machado & Silva,
Gabrielly .....................................................................................................................................................................................................241
PRÁTICAS, SABERES E A CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE EM ANDRÉ DO MATO DENTRO, SUBSÍDIO A PROPOSTA
DO MOSAICO RDS E PARNA SERRA DO GANDARELA EM MINAS GERAIS – POR QUE E PARA QUEM? Dias, Janise Bruno
Dias & Pena, Lucas Luiz Senhorine ..........................................................................................................................................................251
O MOSAICO CARIOCA DE ÁREAS PROTEGIDAS E O MODELO DE DESENVOLVIMENTO URBANO NA CIDADE DO RIO
DE JANEIRO. Pena, Ingrid Almeida de Barros & Rodrigues Camila Gonçalves de Oliveira ..............................................................261
DESAFIOS AMBIENTAIS AO DESENVOLVIMENTO: A EVOLUÇÃO DA GESTÃO AMBIENTAL PÚBLICA NO AMAZONAS
(2003-2015) E AS MUDANÇAS GLOBAIS. Pereira, Henrique dos Santos & Vasconcelos, Ademar Roberto Martins de ...............271
PARTICIPAÇÃO DE JOVENS NA GESTÃO DE BENS COMUNS: A RESEX MARINHA DE CAETÉ-TAPERAÇU- PA. Lamarão,
Maria Luiza Nobre & Maneschy, Maria Cristina ....................................................................................................................................281
A CIÊNCIA E AS POPULAÇÕES DA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL ILHA DO COMBU, PARÁ. Barros, Benedita da Silva &
Jardim, Mário Augusto G ...........................................................................................................................................................................291
SOBRE A SUSTENTABILIDADE DA QUALIDADE DE VIDA: O QUÊ UMA COMUNIDADE TRADICIONAL AÇORIANA, INSTITUÍDA EM UMA ILHA DO SUL DO BRASIL, TEM A NOS DIZER SOBRE ISSO? Wermuth, Gilvana da Silva Machado & Kuhnen,
Ariane ..........................................................................................................................................................................................................301
PAISAGEM, LUGAR E PERCEPÇÃO AMBIENTAL: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A GESTÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA
MARINHA DEMOCAPAJUBA-SÃO CAETANO DE ODIVELAS-PA. Barros, Diego Merces de, Pimentel & Marcia Aparecida da Silva .................................................................................................................................................................................................................311
04 Diversidade cultural e manejo da biodiversidade
SOCIOBIODIVERSIDADE E AUTO-SUSTENTO NO COMPLEXO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DE TERRA RONCA.
Souza, Cláudia de & Trindade, Hiran de Gusmão .................................................................................................................................319
CONHECIMENTO TRADICIONAL E MANEJO DA BIODIVERSIDADE NO ESTADO DO AMAZONAS. Lima, Vilma Terezinha de
Araújo & Marchand, Guillaume ................................................................................................................................................................329
CONHECIMENTO LOCAL SOBRE PLANTAS NA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DO ANHATOMIRIM. Ludwinsky, Rafaela
Helena & Hanazaki, Natalia .......................................................................................................................................................................337
CONHECIMENTO LAKLÃNÕ/XOKLENG SOBRE A NATUREZA E CONSERVAÇÃO NA TERRA INDÍGENA IBIRAMA-LAKLÃNÕ, ALTO VALE DO ITAJAÍ, SANTA CATARINA, BRASIL. Cruz, Takumã; Heineberg, Marian; Gomes, Thiago; Hanazaki, Natalia & Peroni, Nivaldo ..................................................................................................................................................................................345
ANÁLISE SOBRE O ORDENAMENTO TERRITORIAL, ORGANIZAÇÃO E ESTRATÉGIAS DE MANEJO NO PARQUE ESTADUAL ILHA DO CARDOSO (PEIC) – SP. Silva, Jéssica de Lima & Oliveira, Regina Célia de ...............................................................347
A POTENCIALIDADE DA PAISAGEM CULTURAL COMO INSTRUMENTO DE PRESERVAÇÃO: O CASO DA ROÇA DE TOCO
DE BIGUAÇU – SANTA CATARINA – BRASIL. Vicente Filho, Ronaldo Guimarães ............................................................................359
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE AS COMUNIDADES TRADICIONAIS NO CONTEXTO DA PAISAGEM. Santos, Cássio Rogério
Graças dos & Senna, Cristina do Socorro Fernandes ............................................................................................................................369
A DIMENSÃO CULTURAL NO TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA: REFLEXÕES SOBRE DILEMAS E POTENCIALIDADES.
Prado, Mariana Oliveira do; Irving, Marta de Azevedo; Oliveira, Maria Elizabeth de & Lima, Marcelo Augusto Gurgel de .........377
O “ESTADO DA ARTE” DOS PROJETOS DE TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA NA COSTA VERDE (RIO DE JANEIRO – BRASIL). Lima, Marcelo Augusto Gurgel de; Irving, Marta de Azevedo & Prado, Mariana Oliveira do ..................................................387
SÍTIOS NATURAIS SAGRADOS NO BRASIL: O GIGANTE DESCONHECIDO. Fernandes-Pinto, Érika & Irving, Marta de Azevedo.................................................................................................................................................................................................................397
SOBREVIVÊNCIA E IDENTIDADE: REALIDADES SOCIOAMBIENTAIS DOS QUILOMBOLAS DO RIO EREPECURU/CUMINÃ
EM ORIXIMINÁ/PA. Rodrigues, Wagner de Oliveira; Madeira Filho, Wilson; Thibes, Carolina Weiler & Nobre, Bárbara Moreira ..
......................................................................................................................................................................................................................409
APONTAMENTOS PARA A ELABORACAO DE UMA POLÍTICA SOCIOAMBIENTAL PARA AS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO NO ALTO RIO TROMBETAS E EM SEU ENTORNO. Madeira Filho, Wilson; Ribeiro, Ana Maria Motta;
Simon, Alba; Alcântara, Leonardo; Rodrigues, Wagner de Oliveira; Thibes, Carolina Weiler; Costa, Rodoldo Bezerra de Menezes
Lobato da; Rocco, Rogério & Souza, Marcelino Conti ...........................................................................................................................419
AS INFLUÊNCIAS DE ASPECTOS SOCIOECONÔMICOS, AMBIENTAIS E CULTURAIS DA LOCALIDADE DO PARATI –
GUARATUBA/PR NA DINÂMICA DE CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS ENTRE POPULAÇÃO E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO. Santos, Péricles Augusto dos & Quadros, Juliana .........................................................................................................................429
CRIAÇÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE ITAIPU: UMA REFLEXÃO SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO. Simon,
Alba .............................................................................................................................................................................................................439
ESTRADA DO COLONO: ANÁLISE DOS ARGUMENTOS QUE SUBSIDIAM O CONFLITO. Kropf, Marcela Stüker & Eleutério,
Ana Alice .....................................................................................................................................................................................................447
A GESTÃO PARTICIPATIVA NA REDELIMITAÇÃO DO PARQUE ESTADUAL DA SERRA DO PAPAGAIO, SUL DE MINAS. Junqueira, Mariana Gravina Prates .................................................................................................................................................................455
CRIAÇÃO DO PARQUE NACIONAL DA SERRA DO GANDARELA: PARA QUÊ E PARA QUEM? Evangelista, Ana Carolina de Andrade ...........................................................................................................................................................................................................465
USO E CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS PELOS POVOS INDÍGENAS DE RONDÔNIA E NOROESTE DO MATO
GROSSO. Gomide, Maria Lucia Cereda .................................................................................................................................................471
05 Sistemas de Gestão e Governança
IMPACTOS DA GESTÃO EM ÁREAS PROTEGIDAS: UMA ANÁLISE DA PERCEPÇÃO DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
DA APA CHAPADA DO ARARIPE. Nascimento, Paulo Sérgio Silvino do & Sabiá, Rodolfo José .......................................................479
INSTRUMENTOS DE GESTÃO DE RESERVAS EXTRATIVISTAS FEDERAIS: DIFICULDADES E DESAFIOS NOS ÚLTIMOS 25
ANOS. Brusnello, Leidiane Diniz & Marinelli, Carlos Eduardo .............................................................................................................491
INTERAÇÕES E PODER ENTRE STAKEHOLDERS DA PESCA ARTESANAL DE PARATY, ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Araujo, Luciana Gomes de & Seixas, Cristiana Simão ...................................................................................................................................501
METODOLOGÍAS PARTICIPATIVAS EN LA GESTIÓN ADAPTATIVA DE ÁREAS NATURALES PROTEGIDAS MARINO-COSTERAS: UNA PROPUESTA DE APLICACIÓN EN LA RESERVA NACIONAL SISTEMA DE ISLAS, ISLOTES Y PUNTAS GUANERAS - RNSIIPG, PERÚ. Cardoso, Luciano Régis & Lopes Ferreira, José Cândido ..............................................................................511
PROCESSO DE CRIAÇÃO E GESTÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE ITAIPU – NITERÓI/RJ: O PAPEL DOS
ATORES SOCIAIS. Pinto, Maycon Correia; Moraes, Edilaine Albertino de & Irving, Marta de Azevedo .........................................519
DESAFIOS E OPORTUNIDADES PARA ROBUSTEZ INSTITUCIONAL DA PESCA ARTESANAL COSTEIRA EM UMA ÁREA
MARINHA PROTEGIDA DO SUDESTE BRASILEIRO. Freitas, Rodrigo Rodrigues de & Seixas, Cristiana Simão ..........................527
PROJETOS DO CICLO DE CAPACITAÇÃO EM GESTÃO PARTICIPATIVA DO ICMBIO: OPORTUNIDADES DE INCLUSÃO
SOCIAL NA GESTÃO DA BIODIVERSIDADE? Talbot, Virginia & Luz, Leda .....................................................................................537
GOVERNANÇA INDÍGENA EM ÁREAS DE SOBREPOSIÇÃO TERRITORIAL E A FORMAÇÃO DO CONSELHO GESTOR DO
PARQUE NACIONAL DO PICO DA NEBLINA. Bocarde, Flávio; Ramos, Salomão M. & Uehara, Luciana Y .................................547
AS RELAÇÕES EXISTENTES ENTRE O PARQUE NACIONAL DE SAINT-HILAIRE/LANGE E SUA ZONA RURAL DE ENTORNO: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A GESTÃO. Campos, Larissa Aparecida de Paula; Adriano, Ana Paula Pereira & Quadros, Juliana .............................................................................................................................................................................................................561
RELAÇÕES ANTAGÔNICAS E SOBREPOSIÇÕES NA APA DE GUARAQUEÇABA: UM PANORAMA DO CONFLITO SOCIOAMBIENTAL. Sibuya, Nathalia de Jesus & Denardin, Valdir Frigo ........................................................................................................571
CRUZANDO OS LIMITES: REFLEXÕES SOBRE ALGUMAS EXPERIÊNCIAS DE GESTÃO TERRITORIAL INDÍGENA NO NORDESTE. Nilsson, Maurice Seiji Tomioka; Parra, Lilian Bulbarelli; Prudente, Hugo & Cardoso, Thiago Mota ..................................581
DINAMIZANDO E CAPILARIZANDO A GESTÃO: O CASO DOS NÚCLEOS DE BASE COMUNITÁRIA DA RESERVA EXTRATIVISTA RIOZINHO DA LIBERDADE. Saldo, Pablo de Avila ................................................................................................................589
É PARQUE, MAS NEM TÃO PARQUE ASSIM: REPRESENTAÇÕES ACERCA DO PARQUE NACIONAL DA SERRA DO CIPÓ.
Souza, Leonardo Vasconcelos de .............................................................................................................................................................599
ESTUDOS SOCIOAMBIENTAIS PARA CRIAÇÃO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DE USO SUSTENTÁVEL: O CASO DAS
RESEX MARINHAS NO ESTADO DO PARÁ. Silva, Regina Oliveira da; Albuquerque, Adna; Almeida, Ruth Helena Cristo & Pereira,
Jorge Luiz Gavina .......................................................................................................................................................................................609
INTERFACES E SOBREPOSIÇÕES ENTRE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E TERRITÓRIOS DE POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS: DIMENSIONANDO O DESAFIO. Madeira, João Augusto; Abirached, Carlos Felipe de Andrade; Francis, Poliana
de Almeida; Castro, Daniel de Miranda Pinto de; Barbanti, Olympio; Cavallini, Marcelo Meirelles & Melo, Mônica Martins de ..
......................................................................................................................................................................................................................617
MONITORAMENTO PARTICIPATIVO DA BIODIVERSIDADE: ENVOLVIMENTO DE ATORES LOCAIS NA CONSERVAÇÃO
E GESTÃO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO NA AMAZÔNIA. Prado, Fabiana; Tofoli, Cristina Farah de; Figueira, Pollyana
Lemos; Chiaravalloti, Rafael Morais; Santos, Rita Silvana Santana dos; Sousa, Ilnaiara; Fernandes, Laís; Bonavigo, Paulo Henrique
& Maduro, Rubia Goreth Almeida ............................................................................................................................................................627
O PROGRAMA ÁREAS PROTEGIDAS DA AMAZÔNIA (ARPA) E O FORTALECIMENTO COMUNITÁRIO EM UNIDADES DE
CONSERVAÇÃO. Bueno, Marco Antonio Ferreira & Silva, Andréa Leme da .......................................................................................637
PERFIL DA FAMÍLIA BENEFICIÁRIA NA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DA BAÍA DO IGUAPE: REFORÇANDO A AUTONOMIA. Mendonça, Felipe Cruz; Cunha, Claudia Conceição; Tardio, Bruno Marchena Romão; Oliveira, Rosenil Dias de & Freitas, Sérgio Fernandes ................................................................................................................................................................................647
PLANEJAMENTO DE BACIA HIDROGRÁFICA PARA GESTÃO DE TERRITÓRIOS SOBREPOSTOS: SERTÃO DE UBATUMIRIM–UBATUBA/SP. Simões, Eliane1; Bussolotti, Juliana; Navarro, Flávia; Silva, Danilo S.; Moreira, Noeli; Ferreira, L. C.; Carvalhal,
Fabiana; Lóssio, Natália & Franco, Caetano ............................................................................................................................................657
PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS MUDANDO O FOCO DA RESEX ARAPIXI: DA PECUÁRIA PARA O SISTEMA
AGROFLORESTAL. Silveira, Leonardo Konrath da; Rios, Cláudia Márcia Almeida; Oliveira, Késsia Monteiro de & Gomes, Noel
Humberto Dias ...........................................................................................................................................................................................667
SUBCOMITÊS DE BACIAS HIDROGRÁFICAS: APRIMORAMENTO DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL PARA A CONSERVAÇÃO DOS
AQUÍFEROS E DAS ÁGUAS SUPERFICIAIS NA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL CARSTE DE LAGOA SANTA. Barbosa,
Cláudia Silva; Oliveira, Daniel Duarte de & Nogueira, Derza Aparecida Costa .................................................................................675
UNIDADES DE CONSERVAÇÃO, PRÁTICAS RELIGIOSAS NEOPENTECOSTAIS E DIREITOS HUMANOS: O CASO DO
PARQUE NACIONAL DA TIJUCA (RJ). Maciel, Gláucio Glei & Gonçalves, Rafael Soares ................................................................685
A CRIAÇÃO DO PARQUE NACIONAL MARINHO DAS ILHAS DOS CURRAIS E A NOVA REALIDADE DA REGIÃO. Sant’ana,
Thamyres Pires, Santos, Carolina Santana & Krelling, Allan Paul .........................................................................................................695
A GESTÃO PARTICIPATIVA NA RESERVA EXTRATIVISTA RIO XINGU. Guedes, Maite Alves, Pereira, Mauro Braga Costa & Brusnello, Leidiane Diniz .................................................................................................................................................................................705
CÂMARAS TÉCNICAS DE PESCA COMO INSTRUMENTOS DE GESTÃO PESQUEIRA EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
MARINHO-COSTEIRAS: O CASO DO LITORAL DO PARANÁ. Destéfani, Homero Luiz; Luiz Francisco, Faraco, Ditzel & Medeiros,
Rodrigo Pereira ..........................................................................................................................................................................................715
DESAFIOS DA GESTÃO DE RESERVAS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NO ESTADO DE SÃO PAULO: QUATRO
SITUAÇÕES NO MOSAICO DO JACUPIRANGA – VALE DO RIBEIRA (SP). Bim, O. J. B., Vieira, A., Portilho, W. G. & Campolim,
M. B. ............................................................................................................................................................................................................725
DIAGNÓSTICO DO SISTEMA SÓCIO-ECOLÓGICO ‘CONSERVAÇÃO E USO DE FLORESTAS NATIVAS EM UNIDADES DE
PRODUÇÃO AGRÍCOLAS PRIVADAS DO CORREDOR ECOLÓGICO CHAPECÓ, SANTA CATARINA, BRASIL’. Zuchiwschi,
Elaine & Fantini, Alfredo Celso .................................................................................................................................................................735
EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO PROPOSTA DE FORTALECIMENTO DA GESTÃO PARTICIPATIVA DE UNIDADES DE
CONSERVAÇÃO COM PRESENÇA DE COMUNIDADES TRADICIONAIS: O CASO DA ESTAÇÃO ECOLÓGICA JUREIAITATINS (IGUAPE-SP). Cruz, Thais Pereira da & Torres, Juliana Rezende .........................................................................................745
O PROGRAMA DE VOLUNTARIADO DO INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇAO DA BIODIVERSIDADE COMO
MECANISMO DE INTERFACE SOCIOESTATAL E/OU PARTICIPAÇÃO SOCIAL. Dau, Julia Zapata Rachid & Oliveira, Flávia
Cristina Gomes de .....................................................................................................................................................................................753
POSSIBILIDADES PARA OS MOSAICOS DE ÁREAS PROTEGIDAS: A EXPERIÊNCIA DO 1° ENCONTRO PARA O DIÁLOGO
ENTRE COMUNIDADES AGRÍCOLAS E TRADICIONAIS E PARQUES DO MOSAICO CARIOCA (RJ). Marques, Ana Carolina;
Pena, Ingrid Almeida de Barros & Marques, Maria Clara de Oliveira .................................................................................................761
RESERVA PARTICULAR DO PATRIMÔNIO NATURAL MUNICIPAL CASCATINHA, SITUAÇÃO ATUAL DA GESTÃO DA
PRIMEIRA RPPNM DE CURITIBA. Basniak, Marília Thiara Rodrigues & Tetto, Alexandre França ..................................................769
TERMO DE COMPROMISSO ENTRE PESCADORES DE TARITUBA E ESTAÇÃO ECOLÓGICA DE TAMOIOS: RELATO DE
PERCURSO. Chada, Sylvia de Souza .......................................................................................................................................................777
ZONA DE USO ESPECIAL INDÍGENA NO PARQUE ESTADUAL DO MATUPIRI/AM. Sakagawa, Sergio, Pereira, Henrique dos
Santos & Stancik, Juliane Franzen .............................................................................................................................................................787
06 Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania:
experiências de aprendizagem social
COMPARTILHANDO SABERES AMBIENTAIS ATRAVÉS DA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA EM COMUNIDADES DE PESCADORES NA RESERVA EXTRATIVISTA DE SÃO JOÃO DA PONTA-PA. Rodrigues, Rafael de Oliveira Castro, Filho, Waldemar Londres Vergara & Pimentel, Marcia Aparecida da Silva ............................................................................................................................799
EDUCAÇÃO AMBIENTAL E O DESPERTAR DO PROTAGONISMO JUVENIL: A EXPERIÊNCIA DO PROJETO JOVEM CIENTISTA DAS ÁGUAS NA RESERVA DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL PIAGAÇU-PURUS, AMAZONAS. Silva, Luiza Helena Pedra da; Freitas, Camila Carla de; Dutra, Juliana Cabral de Oliveira; Rossoni, Felipe & Rodrigues, Leonardo da Silveira .......
......................................................................................................................................................................................................................807
ENTENDIMENTO JUVENIL DOS QUATRO ELEMENTOS NATURAIS: CONTRIBUIÇÃO PARA A CONSERVAÇÃO DA FLORESTA AMAZÔNICA. Azevedo, Genoveva Chagas de & Higuchi, Maria Inês Gasparetto ...............................................................815
ENTENDIMENTO JUVENIL SOBRE PROBLEMAS AMBIENTAIS, PREOCUPAÇÃO E A ÉTICA NO CUIDADO COM O MEIO
AMBIENTE. Cordeiro, Themis Eliza Bessa S., Higuchi, Maria Inês Gasparetto & Azevedo, Genoveva Chagas de .....................827
.
POLITICAS EDUCACIONAIS EM ÁREAS DE RESEX MARINHA: GURUPIPIRIÁ/ VISEU-PA. Santos, Adria Macedo dos ...........835
AS RELAÇÕES GERACIONAIS NA SOCIALIZAÇÃO DOS CONHECIMENTOS ECOLÓGICOS LOCAIS NA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE CAETÉ-TAPERAÇU, AMAZÔNIA ORIENTAL, BRASIL. Vieira, Norma, Siqueira, Deis, Barboza, Roberta &
Pinheiro, Janielle ........................................................................................................................................................................................837
EDUCAÇÃO AMBIENTAL E VISITAÇÃO EM PARQUES NACIONAIS: A EXPERIÊNCIA DO PARQUE NACIONAL DA TIJUCA
(RJ) COM GUIAS DE TURISMO E CONDUTORES DE VISITANTES. Botelho, Eloise Silveira & Maciel, Gláucio Glei ................843
EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA: EXPERIÊNCIAS NA CO-GESTÃO DO CAMPING DO PARQUE ESTADUAL DO RIO VERMELHO, FLORIANÓPOLIS (SC). Palermo, Pedro Rodolfo Ocampos; Abreu, Marcos José de; Bottan, Guilherme Angelo; Pereira,
Icaro Chrsitóvam; Teixeira, Camilo; Trivella, Renato Barretto Barbosa; Cardoso, Stephanye Oliveira; Gellert, Luana Jamayna;
Taffe, Bruna Lunardi; Lorenzi, Karina Smania de.; Ganzarolli, André Martins & Angeloletto, Fernando ..........................................853
HAVETÉ NO VIDIGAL: O RELATO DA EXPERIÊNCIA DE UM COLETIVO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO MORRO DO VIDIGAL, RIO DE JANEIRO-RJ. Pelacani, Bárbara; Abreu, Manuela Muzzi de; Uchôa, Rafaella; Ximenes, Simone; Dantas, Thalita &
Costa, Érika Andrade ................................................................................................................................................................................861
PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO, AUTONOMIA DO MODO DE VIDA E CONSERVAÇÃO AMBIENTAL NA REGIÃO DA
SERRA DO CIPÓ/ MG. Lopes, Cristiana Gomes Ferreira .....................................................................................................................869
PROMOÇÃO DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA GESTÃO AMBIENTAL PÚBLICA: A FORMAÇÃO DE GESTORES AMBIENTAIS
NO ICMBIO. Fontana, Alessandra; Martins, Jerônimo Carvalho; Cunha, Cláudia Conceição; Santin, Laci; Fabiano, Fátima & Dino,
Karina ..........................................................................................................................................................................................................879
DIAGNÓSTICO DO DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADES NO PARQUE MUNICIPAL SÃO BARTOLOMEU, SALVADOR/BA,
PELAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO DE SEU ENTORNO. Pereira, Tiaro Katu; Pellin, Andrea, Reis, Jussara Christina & Pellin, Angela .............................................................................................................................................................................................................887
01
1.
Compromisso com o futuro
comum: Instrumentos jurídicos
O foco deste eixo temático são as
discussões relacionadas aos direitos humanos e da natureza; acordos e convenções
internacionais; legislações nacionais; políticas públicas; avaliação da implementação
do SNUC (Sistema Nacional de Unidades
de Conservação) e do PNAP (Plano Nacional de Áreas Protegidas); ameaças aos
instrumentos jurídicos relacionados à
inclusão social e áreas protegidas; e
experiências exitosas de implementação
desses instrumentos na prática.
ÁREAS PROTEGIDAS E A CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIOLÓGICA:
DESAFIOS PARA O CUMPRIMENTO DA META 11 DE AICHI
Prates, Ana Paula Leite1 & Irving, Marta de Azevedo2
1. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, [email protected]; 2. Eicos/IP e PPED/IE da UFRJ
e INCT/PPED/CNPq. Universidade Federal do Rio de Janeiro, [email protected]
Resumo
O Brasil apresenta a mais rica biodiversidade mundial e foi o primeiro país a assinar a Convenção de Diversidade Biológica.
Dentre os mecanismos para a conservação da biodiversidade previstos na CDB destacam-se as áreas protegidas destinadas
à conservação da biodiversidade. O objetivo do artigo é interpretar, avanços, desafios e tendências das políticas públicas para
as áreas protegidas no Brasil, à luz dos compromissos assumidos pelo país no âmbito da CDB frente às atuais Metas de Aichi e
aos desafios de um país emergente. Conclui-se que o Brasil dispõe de inúmeros instrumentos de políticas públicas voltados à
conservação da biodiversidade, em especial às áreas protegidas, por vezes desarticuladas e contraditórias com as demais políticas. Permanece o desafio de integrar as políticas públicas de conservação da biodiversidade e desenvolvimento e a inclusão da
sociedade no processo.
Palavras-chave: Convenção sobre Diversidade Biológica, Metas de Aichi, Áreas Protegidas, Políticas Públicas
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
23
CONSELHOS GESTORES DE ÁREAS PROTEGIDAS NO BRASIL: REFLEXÕES
SOBRE A PARTICIPAÇÃO SOCIAL, DESAFIOS E POSSIBILIDADES
Prado, Deborah Santos1; Araujo, Luciana Gomes2; Chamy, Paula 3; Dias, Ana Carolina Esteves4 & Seixas, Cristiana Simão1,2
1.Doutoranda em Ambiente e Sociedade/NEPAM/UNICAMP e Colaboradora do grupo de Pesquisa e Extensão em Gestão e
Conservação de Recursos Comuns (CGCommons), [email protected] 2.Pesquisadora de Pós doutorado, NEPAM/UNICAMP
e Colaboradora do grupo de Pesquisa e Extensão em Gestão e Conservação de Recursos Comuns (CGCommons) 3.Colaboradora do grupo
de Pesquisa e Extensão em Gestão e Conservação de Recursos Comuns (CGCommons) 4.Mestranda em Ecologia, UNICAMP e
Colaboradora do grupo de Pesquisa e Extensão em Gestão e Conservação de Recursos Comuns (CGCommons)
5.Professora e Pesquisadora NEPAM/UNICAMP e Coordenadora do grupo de Pesquisa e
Extensão em Gestão e Conservação de Recursos Comuns (CGCommons)
Resumo
Os Conselhos Gestores têm sido considerados instrumentos institucionais inovadores e importantes no exercício da democracia.
Este artigo tem o objetivo de apresentar um histórico dos marcos legais de regulamentação dos Conselhos de áreas protegidas
no âmbito federal, no que diz respeito à evolução de diretrizes e critérios de participação social incluídos nesses documentos.
Os resultados mostram que a participação social é garantida em diversos aspectos das normas analisadas, o que deve ser considerado uma conquista para a gestão de Unidades de Conservação. Ainda assim, são apontados alguns paradoxos e desafios,
incluindo questões de representatividade, independência, capacitação e compartilhamentos genuínos de poder e de tomada de
decisão. Mais do que um resultado final, a participação pressupõe um processo, que também se reflete no histórico dos arranjos
jurídicos.
Palavras-chave: Unidades de Conservação, Conselhos Gestores, Gestão Participativa, Representatividade, Capacitação
Introdução
A criação de diversos mecanismos participativos no Brasil tem contrariado afirmações na literatura internacional ao longo
das últimas décadas, de que as características das instituições e padrões de ação política de atores sociais latino-americanos
impediriam a existência de canais institucionalizados de representação de interesses societais (CORTÊS, 2007).
No campo socioambiental, foco específico deste artigo, observa-se a incorporação de práticas discursivas sobre participação social desde os anos 1970 em fóruns e documentos internacionais, como a Conferência de Estocolmo, relatório Brundtland e Rio-92. Desde então, a participação social na questão ambiental tem sido colocada como condição para o sucesso da
conservação aliada ao desenvolvimento (SPÍNOLA, 2012). No Brasil, como salientam Ferreira & Tavolaro (2008), também se
iniciou uma mudança paradigmática e um processo gradual de difusão da reflexão sobre a temática ambiental entre diferentes
setores da sociedade, culminando em um movimento ambientalista diverso e multifacetado.
Em busca da redemocratização da sociedade no final da década de 1970, a temática da participação pública ou popular
pautava as demandas de protestos e mobilizações dos movimentos sociais no país. Como resultado dessa efervescência, a profusão de conselhos gestores foi considerada uma das mais importantes inovações institucionais das políticas públicas no Brasil
democrático na segunda metade da década de 1980 (GOHN, 2011).
Os conselhos gestores podem ser concebidos como fóruns públicos de captação de demandas e pacto de interesses
específicos dos diversos grupos sociais, e como uma forma de ampliar a participação dos segmentos com menos acesso ao
aparelho do Estado (LUCHMANN & BORBA, 2008). Assim, os conselhos gestores constituem um espaço público onde indivíduos
interagem, debatem, apresentam demandas sobre questões estratégicas, tornando a autoridade pública sensível às suas deliberações (AVRITZER, 2000).
Os conselhos estão previstos na Constituição de 1988, bem como em outras leis, na qualidade de instrumentos de expressão, de representação e participação da população (GOHN, 2011), e têm o papel de mediar a relação entre sociedade e
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
25
Estado (AVRITZER, 2000). Exemplos desses fóruns na esfera socioambiental são os Conselhos de Meio Ambiente (Nacionais,
Estaduais e Municipais), os Conselhos de Recursos Hídricos, os Comitês de Bacias Hidrográficas, os Conselhos de Unidades de
Conservação, entre outros.
É importante ressaltar, no entanto, que a discussão e o debate acerca da democracia desejável (e possível) vêm percorrendo um caminho sinuoso que é atravessado por disputas sobre os sentidos da participação (LUCHMANN, 2006). Fonseca
(2011), por exemplo, problematiza a promoção descontextualizada da ideia de participação por meio da replicação indiscriminada de instâncias participativas e de desenhos institucionais, dados por “pacotes” e fórmulas prontas e preestabelecidas. O
autor (op.cit) denomina esses pacotes ou fórmulas como “manual da boa governança”, geralmente visto como necessário e
suficiente para o alcance eficiente da democracia participativa. Ainda segundo o autor, a simples obrigação legal de criação
desses espaços,
... sem observar e combater desigualdades nas relações de poder, na informação e na linguagem
apresentadas, bem como nas restrições materiais e simbólicas vivenciadas pelos participantes, faz
com que a utilização desse importante instrumento de gestão ambiental possa seguir a orientação
pro forma e não cumprir com seus objetivos principais de mobilizar a sociedade, fomentar capital
social e viabilizar um real controle social sobre as políticas (FONSECA, 2011 p. 22-23).
Frente a essa problemática e com foco nos conselhos gestores de Unidades de Conservação (UC) no Brasil, este artigo
tem como objetivo geral apresentar um histórico dos marcos legais de regulamentação desses Conselhos no âmbito federal, no
que diz respeito à evolução de diretrizes e ferramentas de participação incluídas nesses documentos. Objetivamos ainda, discutir as principais mudanças em fatores que afetam as possibilidades de participação e do controle social efetivos, elementos de
governança imprescindíveis para inclusão social em áreas protegidas.
Métodos de Pesquisa
Para analisar os marcos legais de regulamentação dos conselhos de UC no âmbito federal, foram levantadas as principais
normas jurídicas a eles relacionadas: (i) Lei Federal nº 9.985, de 18 de Julho de 2000, referência inicial da análise; (ii) Decreto
Federal nº 4.340, de 22 de Agosto de 2002; (iii) Instrução Normativa do ICMBio nº 02, de 18 de Setembro de 2007 (doravante IN
nº 02/2007); (iv) Instrução Normativa do ICMBio nº 11, de 8 de Junho de 2010 (doravante IN nº 11/2010) e (v) Instrução Normativa
do ICMBio nº 09, de 05 de Dezembro de 2014 (doravante IN nº 09/2014).
A análise das normas foi realizada com base nos critérios de avaliação de procedimentos de participação pública propostos por Rowe & Frewer (2000). Estes critérios também foram utilizados por TRIMBLE, ARAUJO & SEIXAS, (2014) e ARAUJO
(2014) para avaliar a participação social em Conselhos Gestores de Unidades de Conservação da região de Paraty, estado do
Rio de Janeiro.
Essa proposta de avaliação de procedimentos de participação pública tem o objetivo de verificar a efetividade da participação dos cidadãos em procedimentos de gestão ambiental e de riscos, além de permitir a comparação entre estudos com
base nos mesmos critérios de avaliação (ROWE;FREWER, 2000). Esses critérios baseiam-se em aspectos que ajudam a garantir
o efetivo exercício da participação e agrupam-se em dois conjuntos, denominados de critérios de reconhecimento e processuais.
O primeiro agrega a representatividade, a independência de coordenação, o envolvimento precoce dos participantes, a capacidade do mecanismo de participação em influenciar políticas e a transparência do processo. Os critérios processuais incluem o
acesso às informações, definição de objetivos, processo estruturado de tomada de decisões e a disponibilidade de recursos para
a execução do processo de participação.
Neste estudo, são usados os critérios de reconhecimento (i.e. a representatividade, a independência de coordenação,
o envolvimento precoce dos participantes, a capacidade do conselho em influenciar políticas e a transparência do processo).
Optamos por não analisar os critérios processuais nesse momento, entendendo que os processos também devem ser analisados
e acompanhados localmente. Uma exceção foi dada ao critério de estrutura do processo de tomada de decisões, por entendê-lo
como critério extremamente importante para avaliar a participação e para compreender como esse critério se reflete nas normas
legais.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
26
Resultados e Discussão: A evolução normativa dos Conselhos de UC
com base em critérios de avaliação da participação social
A partir da análise dos instrumentos jurídicos que regulamentam os conselhos gestores (Quadro 1), foi possível observar
que as instruções normativas (INs) estão em consonância com o que dispõem a Lei e o Decreto que regem o Sistema Nacional
de Unidades de Conservação (SNUC), e existe uma tendência de maior detalhamento da estrutura e funcionamento dos mesmos desde a instituição da Lei n° 9.985/2000 do SNUC até a IN nº 09/2014. É importante reconhecer que no detalhamento das
Instruções Normativas, mecanismos de participação e representação são reforçados, como o princípio da paridade entre Estado e sociedade civil, a representação de grupos sociais mais vulneráveis e a participação dos conselheiros na elaboração da
estrutura e regimento dos Conselhos.
A IN nº 02/2007 trata dos Conselhos Deliberativos de Reservas Extrativistas (RESEX) e Reservas de Desenvolvimento
Sustentável (RDS), enquanto a IN nº 11 de 2010 aborda os Conselhos Consultivos, cabíveis a todas as outras categorias de UC.
Os conselhos consultivos e deliberativos apresentam diversas competências comuns, mas se distinguem especialmente pela
característica única de conselhos de RESEX e RDS em deliberar sobre assuntos relacionados à gestão da UC e emitir resoluções.
Os conselhos consultivos, por sua vez, emitem manifestações, recomendações e moções, cabendo o poder decisório ao órgão
gestor1.
Após a publicação da IN nº 9/2014, o ICMBio produziu uma cartilha de orientação sobre os conselhos gestores intitulada
“Conselhos Gestores de Unidades de Conservação: Um guia para gestores e conselheiros” (ABIRACHED et al; 2014). Diversas
orientações do órgão que se mostram complementares às normas estão contidas nesse documento, ainda que sem peso jurídico,
como ferramentas metodológicas para identificação dos setores que comporão os Conselhos, entre outras atividades.
Os tipos de conselho podem variar de acordo com as categorias de UC no nível estadual. Em alguns casos de UC estaduais da região norte, como no Acre, Amazonas, Tocantins e Pará, há variações e outras possibilidades de estabelecimento de conselhos deliberativos para além de RESEX e RDS.
1
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
27
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
28
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
29
Além disso, o ICMBio possui uma Coordenação de Gestão Participativa e promove Ciclos de Capacitação nessa temática (que
ocorrem desde 2010) para formação de seus gestores, o que tem contribuído para que os Conselhos avancem em seu fortalecimento.
A evolução das normas e seu desenho institucional serão discutidos a seguir, com base nos critérios de avaliação da
participação propostos por Rowe & Frewer (2000), também apresentados no Quadro 1.
Representação
Os princípios e diretrizes sobre representatividade dos conselhos se mostraram historicamente assegurados pelas normas, desde o Decreto nº 4.340/2002. Na IN nº 2/2007 há a inclusão de representantes não organizados como pessoa jurídica,
dando espaço para representantes de comunidades tradicionais na qualidade de pessoa física. Há de se destacar que a participação da pessoa física ainda se consubstancia na representatividade de entidades constituídas (LUCHMANN, 2006) ou de
instituição-membro (IN n º 9/2014) e não deve se confundir com participação individual. Além disso, a evolução das normas
reforça a participação equitativa e qualitativa dos grupos sociais mais vulneráveis e especifica que nos Conselhos Deliberativos
a maioria do Conselho deve estar representada pelas populações tradicionais.
Embora a representação das populações afetadas pelas UC seja legitimada historicamente pelas normas, outras questões
também devem ser consideradas para reflexão, para além do que está “garantido como lei”. Considerando-se que a paridade
numérica não corresponde necessariamente à paridade política, deve-se observar que nos Conselhos a representação de populações afetadas pela implementação de UC estará assegurada de facto apenas quando existir transparência e comprometimento
político para que os temas de interesse desses atores sejam debatidos.
Como complemento à representação, a construção de confiança entre conselheiros e a coordenação dos conselhos é um
fator fundamental no processo de participação (BOOTH;HALSETH, 2011), especialmente quando há muita assimetria de poder.
Para Gohn (2011), a participação precisa ser qualificada para ser efetiva, ou seja, não basta a presença numérica das pessoas,
sendo necessário o fornecimento de apoio aos grupos mais vulneráveis para que sintam-se capazes de participar (ARNSTEIN,
1969).
Outro fator que merece reflexão está relacionado com a escolha dos representantes governamentais nos Conselhos. A
indicação desses membros pelo poder executivo não corresponde, muitas vezes, à familiaridade com as pautas socioambientais
das UC, o que pode tornar a representação da esfera governamental deficitária (KRUGER, 1998). Ainda assim, há outras diferenças importantes nas condições de participação entre os membros advindos do governo daqueles advindos da sociedade civil.
Como afirma Gohn (2011), os primeiros geralmente trabalham nas atividades dos Conselhos durante seu período de expediente
normal e remunerado, com acesso a infraestrutura de suporte administrativo, informação e linguagem tecnocrática, fatores que
geralmente se tornam barreiras aos representantes comunitários.
Independência
Alguns mecanismos identificados na análise histórica das normas mostra o incremento de possibilidades de maior independência como, por exemplo, a competência para criação de grupos de trabalho (GTs) e câmaras temáticas (CTs), que surge
pela primeira vez na IN nº 11/2010. Os GTs e CTs podem ser considerados instrumentos de gestão que ampliam a possibilidade
de descentralização, o que potencialmente expandiria o espaço de negociação, independência e controle social do conselho
em relação à sua coordenação. Os GTs e as CTs propiciam a análise e o encaminhamento de especificidades da Unidade, possibilitando tanto a participação dos representantes a partir de seus interesses e afinidades temáticas, quanto a participação de
representantes externos ao conselho. De acordo com o guia de orientação publicado pelo ICMBio, os GTs e as CTs podem,
ainda, “tratar de conflitos relacionados com a UC, amadurecendo questões que, quando chegarem ao Conselho, possam ser
discutidas e encaminhadas de modo mais ágil” (ABIRACHED et al; 2014).
Ainda que a inserção de GTs e CTs acene para uma maior independência dos Conselhos, esse fator ainda é bastante
limitado pelo papel de coordenação e presidência do órgão ambiental, principalmente nos Conselhos Consultivos que não têm
poder de deliberação. Os instrumentos jurídicos mostram uma tutela marcante do ICMBio tanto no nível local, quanto em níveis
hierárquicos superiores às chefias das UC, que necessitam, por exemplo, ser informados ou emitir pareceres-técnicos sobre a
formação dos conselhos, o seu regimento interno, a modificação dos seus representantes, a criação do plano de ação e a ava-
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
30
liação periódica dos conselhos (IN nº 9/2014, arts. 8º; 10; 24; 26 e 30), o que ainda demonstra uma relação de muito hierárquica
dentro deste órgão e do Conselho para com o órgão ambiental.
A tutela hierárquica do ICMBio regulamentada pelos instrumentos jurídicos pode se constituir em um paradoxo da independência. Por um lado, assegura que os gestores das UC sigam as normas e garantam os quesitos de representatividade e
a realização de diversos procedimentos participativos e de competências previstas para os conselhos (incluindo a garantia da
conservação da biodiversidade). Por outro lado, considerando uma ampla diversidade de contextos locais, históricos e sociopolíticos de participação, permite que os interesses do órgão ambiental se sobreponham aos interesses do Conselho de forma
unilateral, e que no decorrer do processo haja desestímulo, desconfiança, e barreiras para inovação e para a participação efetiva.
Em estudo realizado em UC federais do estado do Acre, verificou-se que a participação comunitária nos conselhos
gestores, incluindo de algumas RESEX, é marcada pela influência direta da presidência do conselho. O estudo apontou que em
alguns casos os regimentos internos não retratam a realidade dos representantes comunitários desconsiderando, entre outros fatores, o tempo necessário para preparação e organização dos temas de interesse local a serem incluídos nas pautas das reuniões
(CARRILLO;LUZ, 2013). Nestes casos, é necessário que a coordenação dos Conselhos flexibilize procedimentos para incorporar
as demandas e diversidades culturais dos conselheiros e as instituições-membro que representam.
Envolvimento precoce
A evolução das normas mostra um incentivo ao envolvimento cada vez mais precoce dos participantes no processo.
O Decreto nº 4.340/2002 estipulava a atuação dos conselheiros para a elaboração do regimento interno do conselho. A IN nº
2/2007 (art. 4, § 2º; e art. 5) altera esse dispositivo e prevê a participação de representantes das populações tradicionais na etapa
e atividades de formação dos conselhos deliberativos, o que se mantém nas sucessivas INs. A novidade da IN nº 9/2014 é a
instituição de um GT específico para essa etapa, “composto por um ou mais representantes do Instituto Chico Mendes, representantes das instituições diretamente envolvidas com a Unidade de Conservação e das populações tradicionais beneficiárias,
quando houver (IN nº 9/2014, art. 9º, I). O envolvimento dos participantes passa a se dar, portanto, não somente na elaboração
do regimento pós-criação do conselho, como também na atividade de caracterização do território em que se situa a UC e na
mobilização e definição dos setores do poder público e da sociedade civil que comporão o conselho. Isso se mostra relevante
para a construção de confiança, antes que julgamentos e disputas se tornem salientes (ROWE;FREWER, 2000).
Transparência
De forma geral, as diretrizes contidas nos instrumentos jurídicos analisados têm explicitado a importância do caráter
público dos conselhos, o que objetiva garantir o acesso e a transparência aos processos. As INs nº 11/2010 e nº 9/2014 foram
explícitas sobre a necessidade de publicizar as recomendações ou deliberações dos Conselhos.
A transparência é um critério que necessita ser avaliado na dinâmica de atuação do Conselho. As atas devem ser redigidas, revisadas e aprovadas em Plenária, pois é o registro formal do que ocorreu nas reuniões. Outro aspecto importante é a divulgação de datas e locais de reuniões, que deve ser ampla e feita com antecedência para garantia de presença do maior número
de pessoas. O Guia de Orientação dos Conselhos ressalta a importância das atas e da lista de comparecimento (ABIRACHED et
al, 2014) complementando o que consta nas Instruções Normativas.
Ainda que as orientações contidas no guia publicado pelo ICMBio indiquem que as reuniões do Conselho devem ocorrer em local de fácil acesso e em ambientes que garantam a livre manifestação de opiniões (ABIRACHED et al, 2014), essas
recomendações podem ser obstadas na prática, devido, por exemplo, ao tamanho da área da UC, recursos financeiros, falta de
informação, condições climáticas, entre outros.
Influência
A partir da análise das normas, verifica-se que a possibilidade de influência dos conselhos esteve presente na delimitação
de suas competências desde o Decreto nº 4.340/2002 e repetiu-se nas INs que se seguiram. No entanto, em relação à promoção
2
“Processo conduzido de forma democrática e transparente, estabelecendo ações e fóruns que possibilitem a participação dos distintos sujeitos, instituições e grupos
sociais que têm relação com os usos do território de influência da Unidade de Conservação, com o objetivo de definir a composição e instituir a criação do Conselho”
(IN n.9/2014)
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
31
de políticas, a IN nº 9/2014 apresenta uma junção das competências expostas nas normas anteriores e explicita a exclusividade
da competência dos conselhos deliberativos em “demandar e propor aos órgãos competentes ações ou políticas públicas de
qualidade de vida e apoio ao extrativismo às populações tradicionais beneficiárias da Unidade de Conservação” (art. 5º VI).
As demais competências, comuns aos dois tipos de conselho, dirigem-se diretamente às políticas de conservação na
UC, como: “demandar e propor aos órgãos competentes, instituições de pesquisa e de desenvolvimento socioambiental, ações
de conservação, pesquisa, educação ambiental, proteção, controle, monitoramento e manejo que promovam a conservação dos
recursos naturais das Unidades de Conservação, sua zona de amortecimento ou território de influência” (art. 4, III).
Os Conselhos Consultivos, comparativamente, estão mais limitados em seu poder de influência que os Deliberativos.
Ainda que a IN nº 9/2014 apresente possibilidades de ações dos conselhos, capazes de influenciar a política, alguns desafios
para que esses fóruns sejam capazes de construir processos que influenciem de fato a gestão dos territórios, estão relacionados
à distribuição equitativa de poder entre os diversos grupos de interesse (ARNSTEIN, 1969), à capacitação de conselheiros e
coordenadores dos Conselhos (PETERSON, 2011, TRIMBLE, ARAUJO & SEIXAS, 2014) e ao reconhecimento e à incorporação
de diferentes tipos de conhecimentos e visões de mundo às decisões (RAMÍREZ 1999, BORRINI-FEYERABEND et al. 2004) .
Estrutura para tomada de decisão
As normas discriminam que a tomada de decisão nos conselhos deve garantir a representatividade e a transparência,
mas não explicitam a estrutura do processo de tomada de decisão, para além da previsão da votação e demais formas de manifestação (art. 29 da IN nº 9/2014). O guia de orientação do ICMBio, por sua vez, menciona que a tomada de decisão pode ser
consubstanciada no consenso, por voto, por maioria simples, por maioria absoluta ou por quórum (ABIRACHED et al; 2014, p.
32), mas esses mecanismos não têm poder normativo e não são detalhados quanto ao procedimento.
As tomadas de decisão nos conselhos ocorrem também para a realização de outras competências, como a elaboração
do Plano de Ação do conselho e sua Avaliação continuada. Na IN nº 11/2010, a elaboração do plano de ação e sua avaliação são
citados como competências dos conselhos, mas sem maiores detalhamentos sobre sua estrutura. Essa estruturação aparece em
2014, quando são regulamentadas as informações mínimas sobre a função desses instrumentos e o que deve ser decidido para
o plano de ação da UC (IN 9/2014, arts. 25 e 26), bem como a necessidade de sua avaliação e monitoramento anual. A forma
como esses instrumentos de gestão são conduzidos na prática não é regulamentada, e pode denotar mais uma vez um paradoxo,
quando pode por um lado facilitar o uso de múltiplas formas participativas e adequadas às realidades locais, mas por outro, pode
permitir que esses instrumentos sejam aplicados de forma não democrática e não participativa.
Além disso, a capacitação de conselheiros volta a ser um fator relevante para os representantes das diversas categorias
que compõem o conselho nas tomadas de decisão. Em geral, os gestores têm maior conhecimento sobre as regras e exigências
relacionadas à gestão das UC. Os representantes comunitários, por sua vez, iniciam os processos com profundo conhecimento
sobre a realidade local, mas pouco familiarizados com as regras de gestão e burocracias (CARRILLO;LUZ, 2013). O desconhecimento de regras e a falta de capacitação contínua para os conselheiros e demais interessados é um fator crítico para a participação social nos conselhos. Nesse sentido, também pontuamos a importância de que os gestores também sejam capacitados a
entender a linguagem e realidade local, reforçando o conhecimento local como fonte de informação para subsidiar as tomadas
de decisão.
Considerações Finais
A participação social nos Conselhos Gestores está garantida formalmente em diversos aspectos das normas que o regem,
o que deve ser considerado uma conquista no âmbito da gestão de Unidades de Conservação. Na prática, é preciso lembrar que
os processos de participação se desenvolvem lentamente e no longo prazo (BASS; DALAL-CLAYTON; J. PRETTY,1995;STRINGER
et al., 2006; VON KORFF et al., 2010). Ainda que as normas legais tenham evoluído para o fortalecimento da participação, existem
lacunas quanto à necessidade de desafiar as assimetrias de poder, as fragilidades de independência, da representação de facto,
e as necessidades de capacitação de conselheiros e gestores.
A iniciativa do ICMBio em rever suas normativas e produzir materiais de orientação para conselheiros e gestores deve
“O requisito de avaliação e monitoramento está provavelmente relacionado com a Recomendação do ICMBio n.17 de 28 de Julho de 2014. O órgão recomenda estabelecer ferramentas para avaliação da efetividade da gestão de UC de forma periódica e participativa.
3
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
32
também ser contabilizada como uma conquista no exercício da participação. A capacitação e a avaliação sistemática e continuada das ações do conselho são dois aspectos fundamentais para que sua prática reflita as garantias de participação que constam das normas. Além disso, salienta-se a importância de que os critérios aqui analisados sejam considerados na elaboração de
normas futuras, incluindo os de caráter processual como a qualidade do acesso às informações, a definição de objetivos que seja
clara aos conselheiros na prática, e a disponibilidade de recursos financeiros para a execução dos processos de participação.
A análise dos instrumentos jurídicos nos permite ressaltar a emergência de paradoxos. Concordando com Gohn (2011),
que os Conselhos Gestores carregam suas contradições, eles podem ser instrumentos valiosos para a constituição de uma
gestão democrática e participativa, caracterizada por novos padrões de interação entre governo e sociedade, como também
podem se configurar como meras estruturas burocráticas formais que reforçam desigualdades sociais e políticas. O caminho
de abertura para a inserção de valores e conhecimentos distintos em instituições participativas é fundamental para o avanço
da construção coletiva nesses espaços, o que pressupõe um verdadeiro compartilhamento de poder e responsabilidades nas
tomadas de decisão.
Referências
ABIRACHED, C. F. de A. et al. Conselhos Gestores de Unidades de Conservação Federais. Um guia para Conselheiros
e Gestores. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. 2014.
ARAUJO, L.G. A pesca costeira artesanal de Paraty RJ: Uma análise multiescalar sob o enfoque da cogestão de recursos comuns. 2014.Tese (Doutorado em Ambiente e Sociedade) Universidade Estadual de Campinas. 2014.
ARNSTEIN, S.R. A ladder of citizen participation. Journal of the American Planning Association, n.35: p. 216-224.1969.
AVRITZER, L. Sociedade civil, esfera pública e poder local: uma análise do orçamento participativo em Belo Horizonte e Porto
Alegre. Relatório final do projeto. Civil Society and Democratic Governance. 2000.
BASS, S., DALAL-CLAYTON, B.; e PRETTY, J. Participation in strategies for Sustainable Development. Environmental Planning
Issues, No.7. Environmental Planning Group, International Institute for Environment and Development, London, England.
155 p. 1995.
BOOTH, A., HALSETH, G. Why the public thinks natural resources public participation processes fail: a case study of British
Columbia communities. Land Use Policy, v. 28, p. 898-906. 2011.
BORRINI-FEYERABEND, G.; PIMBERT, M; FARVAR, M. T.; KOTHARI, A; RENARD, Y. Sharing Power. Learning by doing in
co-management of natural resources throughout the world. IIED and IUCN/ CEESP/ CMWG, Cenesta, Tehran. 496p. 2004.
BRASIL. Lei Federal 9.985, de 18 de Julho de 2000. Regulamenta o art.225, §1º, incisos I,II, III e IV da Constituição Federal, institui
o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. 2000.
BRASIL. Decreto Federal n° 4.340, de 22 de Agosto de 2002. Regulamenta artigos da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que
dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC, e dá outras providências. 2002.
BRASIL. Instrução Normativa nº 02 do ICMBio de 18 de Setembro de 2007. Disciplina as diretrizes, normas e procedimentos para
formação e funcionamento do Conselho Deliberativo de RESEX e RDS. 2007.
BRASIL. Instrução Normativa nº 11 do ICMBio, de 8 de junho de 2010. Disciplina as diretrizes, normas e procedimentos para a
formação e funcionamento de Conselhos Consultivos em Unidades de Conservação federais. 2010.
BRASIL. Instrução Normativa n° 09 do ICMBio de 05 de Dezembro de 2014. Disciplina as diretrizes, normas e procedimentos
para formação, implementação e modificação na composição de Conselhos Gestores de Unidades de Conservação Federais.
CORTÊS, S.V. Viabilizando a Participação em Conselhos de Política Pública Municipais: arcabouço institucional, organização
do movimento popular e policy communities. In: HOCHMAN, G. ARRETCHE, M.; MARQUES, E.(orgs). Políticas Públicas no
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
33
Brasil. Editora Fiocruz. p.125-143. 2007.
CARRILLO, A. C.; LUZ, L. Reflexões sobre conselhos gestores de unidades de conservação federais apoiadas pelo
WWF Brasil. Lições Aprendidas nos Conselhos apoiados pelo WWF-Brasil – Reservas Extrativistas Chico Mendes e Cazumbá
Iracema; Florestas Nacionais de Macauã e de São Francisco e Parque Nacional do Juruena. 2013. Disponível em: http://d3nehc6yl9qzo4.cloudfront.net/downloads/reflexoes_sobre_conselhos_gestores_uc_apoiados_pelo_wwf.pdf. Acesso em 05 julho
2015.
FERREIRA, L.C; TAVOLARO, S. B.F. Environmental Concerns in Contemporary Brazil: An Insight into Some Theoretical and Societal Backgrounds (1970s–1990s). International Journal of Politics, Culture, and Society. 2008.
FONSECA, I. F. Participação e Poder: uma análise crítica da tendência de proliferação de conselhos e comitês locais enquanto
instrumentos de gestão ambiental no Brasil. Textos para discussão. 1572. Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada. 2011.
GOHN, M. da G.Conselhos Gestores e Participação Sociopolítica. Editora Cortez. 4ª edição. 2011.
KRÜGER, E. C. A estratégia conselhista na área da saúde: a dicotomia entre o plano legal e o real. Um estudo de caso
do Conselho Municipal de Saúde de São José. 1998. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal de Santa Catarina, 1998.
LUCHMANN, L.H.H. Os sentidos e desafios da participação. Ciências Sociais Unisinos. v.42, n.1, p.19-26. 2006.
LUCHMANN, L.H.H.; BORBA, J. Participação, desigualdades e novas institucionalidades: Uma análise a partir de instituições
participativas em Santa Catarina. Ciências Sociais Unisinos, v.44, n.1, p. 58-68. 2008.
PETERSON, N.D. Excluding to include: (Non)participation in Mexican natural resource management. Agriculture and Human
Values, v.28, p.99-107. 2011.
RAMÍREZ, R. Stakeholder analysis and conflict management. In: Buckles, D. (ed). Cultivating peace: conflict and collaboration in natural resource management. International Development Research Centre, Canada and World Bank Institute, Washington D.C. USA. 1999, pp.101-106.
ROWE, G., FREWER, L.J. Public participation methods: a framework for evaluation. Science, Technology and Human Values,
v.25, p.3-29. 2000.
SPÍNOLA, J.L. Participação e Deliberação da Resex Marinha do Pirajubaé (SC). 2012.Tese (Doutorado em Meio Ambiente
e Desenvolvimento). Universidade Federal do Paraná, 2012.
STRINGER, L.C., DOUGILL, A.J., FRASER, E., HUBACEK, K., PRELL, C. & REED,M.S. Unpacking “participation” in the adaptive
management of social–ecological systems: a critical review. Ecology and Society, v.11, n.2, p.39. 2006.
TRIMBLE, M., ARAUJO, L.G. & SEIXAS, C.S. One party does not tango! Fishers’ non-participation as a barrier to co-management
in Paraty, Brazil. Ocean & Coastal Management, v. 92, p.9-18. 2014.
VON KORFF, Y., D’AQUINO, P., DANIELL, K.A & BIJLSMA,R. Designing participation processes for water management and beyond. Ecology and Society, v.15, n.3, p.1. 2010.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
34
EFETIVIDADE DE NORMAS AMBIENTAIS, MANGUEZAIS E OPORTUNIDADES
SOCIAIS PARA COMUNIDADES TRADICIONAIS EM RESERVAS
EXTRATIVISTAS MARINHAS NO PARÁ
Pinheiro, Elysângela Sousa1, Thomas, Shaji2 & Almeida, Oriana Trindade3
1.Doutoranda do PPG em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido Universidade Federal do Pará,
[email protected], 2.Pós-Doutorando em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido Universidade Federal do Pará,
[email protected], 3. Professora Doutora da Universidade Federal do Pará, [email protected]
Resumo
A célere destruição do ecossistema manguezal no mundo impõe a urgência na efetividade de normas ambientais. O presente
estudo apresenta um cotejo entre normas ambientais e alguns aspectos práticos da interação entre instituições e atores sociais
em Reservas Extrativistas Marinhas - REMs - no Pará. O método da pesquisa foi o estudo de caso múltiplo com análise interdisciplinar qualitativa. Para o estudo, foram realizadas visitas exploratórias, entrevistas semiestruturadas e grupos focais. Os
resultados obtidos revelam que a criação e a implementação de REMs têm sido percebidas como medida eficaz na direção da
conservação dos manguezais por 87% das lideranças entrevistadas nas REM de Curuçá e São Caetano de Odivelas, em que
pese diversas dificuldades estruturais para efetivação das normas ambientais nas duas REMs.
Palavras-chave: Ecossistema Manguezal, Áreas Protegidas, Legislação Ambiental.
Introdução
Em 2014, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA - divulgou relatório alertando que o ritmo acelerado de destruição de manguezais no mundo impacta negativamente milhões de vidas e gera prejuízos de bilhões de dólares
(UNEP, 2014).
Estima-se que os serviços ecossistêmicos dos manguezais valham cerca de 33 a 57 mil dólares anuais por hectare para
as economias nacionais dos países em desenvolvimento e as ações para a conservação devem incluir o desenvolvimento de um
quadro jurídico e institucional necessárias para garantir que o desenvolvimento e gestão de planos para as zonas costeiras sejam
integrados com objetivos ambientais, incluindo sociais, feitos com a participação das pessoas afetadas (UNEP, 2014, p. 12).
Um quinto dos manguezais do mundo foi destruído de 1980 até 2012 (LAVIEREN et al., 2012, p. 12). A destruição do ecossistema manguezal é de três a cinco vezes mais rápida que em outras florestas. Especialmente os países com maiores áreas de
manguezais precisam agir para diminuir a retração dessas áreas (UNEP, 2014).
Spalding, Blasco & Field (1997) afirmam ser o Brasil o segundo país em extensão de áreas de manguezal (13.400 km²) e
Souza Filho (2005) identifica cinco setores geomorfológicos em uma superfície total de 7.591 Km2 de manguezais da Amazônia,
que representa a maior faixa de manguezais contínuos do planeta e corresponde a 56,6% dos manguezais do Brasil. Essa faixa,
nominada Costa de Manguezais de Macro Maré da Amazônia – CMMA, é formada pelos manguezais da costa nordeste do Pará
e noroeste do Maranhão.
O Brasil comprometeu-se a aprimorar a proteção da biodiversidade marinha em pelo menos 9.300 Km² das áreas marinhas
e costeiras e a priorizar a conservação para ecossistemas costeiros e marinhos, durante o Congresso Mundial de Parques do
Mundo, ocorrido nos dias 12 a 19 de novembro de 2014, em Sydney-Austrália (IUCN, 2014).
Este trabalho objetiva identificar quais instituições e atores sociais multiplicam esforços para dar efetividade às normas
jurídicas voltadas à proteção do ecossistema manguezal a partir da busca por oportunidades sociais para as comunidades tradicionais nas Reservas Extrativistas Marinhas – REMs - Mãe Grande de Curuçá, em Curuçá/PA e Mocapajuba, em São Caetano
de Odivelas/PA, à luz das percepções das lideranças dessas comunidades.
O resultado do estudo estabelece uma conexão entre as normas ambientais - enquanto medidas adotadas nos planos
internacional, nacional e local para a conservação do ecossistema manguezal e as relações construídas entre atores sociais e
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
35
instituições dentro de seus específicos processos sociais, referindo alguns efeitos dessas relações para a avaliação das metas
de conservação desenhadas para as reservas extrativistas marinhas paraenses acima especificadas, a partir da comparação das
diferentes fases de cada uma dessas REMs.
Materiais e Métodos
O campo identificado neste estudo é o socioambiental e a metodologia utilizada é interdisciplinar qualitativa. O recorte
temporal foi estabelecido entre os anos de 2002, ano de criação da REM de Curuçá, a março de 2015, última visita aos Municípios
de Curuçá e São Caetano de Odivelas para entrevistar lideranças. O recorte espacial cingiu-se às REM Mãe Grande de Curuçá
e Mocapajuba, respectivamente criadas nos municípios de Curuçá (BRASIL, 2002b) e São Caetano de Odivelas (BRASIL, 2014),
que foram utilizadas como amostragem.
Os referenciais teóricos das ciências sociais aplicadas (POLANYI, 1980; ALLEGRETTI, 1990; SEN, 2000; SANTILLI,
2005; BENATTI, 2009; FERREIRA, 2012; MILARÉ, 2013) constituíram o suporte para a resolução do problema proposto: como
estão articuladas as instituições e atores sociais para conservação de manguezais e implementação das normas ambientais em
reservas extrativistas? A seleção da literatura disponível sobre o tema da pesquisa foi realizada em bibliotecas públicas, páginas
eletrônicas, organizações governamentais e não governamentais.
A pesquisa tratou de estudos de casos múltiplos, mediante pesquisa bibliográfica, documental, trabalho de campo, observação (direta e participante) e 76 entrevistas com lideranças (direcionadas e perceptivas).
Quanto à pesquisa de campo, foram realizadas visitas exploratórias em Curuçá/PA e São Caetano de Odivelas/PA para
identificar as lideranças e melhor conhecer as áreas pesquisadas do ponto de vista da temática do trabalho. As principais lideranças identificadas pelos comunitários nos dois municípios participaram das entrevistas semiestruturadas, assim como servidores
públicos de entidades estatais com atribuições relacionadas ao estudo.
Resultado e Discussão
Normas Jurídicas para Conservação de Manguezais e atuação do Estado,
Comunidades Tradicionais e Instituições Ambientalistas no plano internacional e nacional.
No plano internacional, a Convenção Ramsar1 é considerada o mais antigo dos acordos ambientais intergovernamentais
globais modernos e originou-se da ação articulada de países e organizações não governamentais que, nos anos 1960, perceberam que a degradação das zonas úmidas diminuía a quantidade de seus recursos comuns, o que também afetava a vida das
aves migratórias.
Atualmente, 168 países são signatários dessa convenção que estabelece às partes acordantes o dever de adotar ações de
abrangência nacional e de cooperação internacional para conservação de zonas úmidas, tendo em vista o valor social, cultural,
científico, econômico e recreativo dessas áreas (RAMSAR, 2014). O Brasil é signatário da Convenção Ramsar desde 1993. E, a
partir do Decreto 1.905, de 16 de maio de 1996, a convenção entrou em vigor no Brasil, concretizou-se assim um passo adiante no
sentido de cumprir o dever constitucional, contido no artigo 225, de prover o manejo ecológico dos ecossistemas.
A lista dos Sítios Ramsar é constituída por áreas úmidas de importância internacional, habitats de aves aquáticas migratórias. A indicação dos Sítios Ramsar é feita pelos países signatários da convenção (RAMSAR, 2014).
No Brasil, todos os Sítios Ramsar estão em unidades de conservação (BRASIL. MMA, 2013). As unidades de conservação
são espécies do gênero espaços territoriais especialmente protegidos - ETEPS, estes últimos também compreendem as áreas
de preservação ambiental, reservas legais e reservas da biosfera (FERREIRA, 2012; MILARÉ, 2013).
Em novembro de 2014, a faixa protegida de manguezais brasileiros tornou-se a maior do mundo. Três novas reservas extrativistas marinhas foram criadas no Estado do Pará: Cuinarana, Mestre Lucindo e Mocapajuba, além da ampliação da
Reserva Marinha de Araí-Peroba (ICMBIO, 2015). Apesar disso, nenhum Sítio Ramsar ainda foi indicado pelo país em área de
reserva extrativista, o que poderia significar mais investimentos financeiros e humanos para o alcance das metas de conserva1
A Convenção Ramsar foi adotada na cidade Iraniana de Ramsar, em 1971 e entrou em vigor internacional em 1975. Essa convenção objetiva a proteção internacional
das zonas úmidas e aves migratórias. Para mais informações, vide The Ramsar Convention and its mission, disponível em: http://www.ramsar.org/about/the-ramsarconvention-and-its-mission.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
36
ção em estudo, uma vez que a Reserva Extrativista - RESEX é uma unidade de conservação de uso sustentável criada para ser
utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e,
complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e
tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar
o uso sustentável dos recursos naturais da unidade (BRASIL, 2000).
A origem da criação das Reservas Extrativistas - RESEX dá-se a partir da reivindicação dos trabalhadores rurais BENATTI (2009, p. 548). Para Allegretti (1990), a reserva extrativista representou uma ruptura com a visão colonial de desenvolvimento
regional implementada na Amazônia. O projeto colonizador impunha que as pessoas fossem deslocadas para um local desconhecido por elas, enquanto o conceito de reserva extrativista reflete um diálogo permanente entre as comunidades tradicionais
e os cientistas que buscam habilidade técnica para transformar as necessidades apresentadas por essas comunidades em realidade. Esse diálogo teceu o socioambientalismo - movimento fundado na perspectiva de que as políticas públicas ambientais
sejam elaboradas e executadas de maneira a incluir e envolver as comunidades locais, as quais detêm conhecimentos e práticas
de manejo ambiental (SANTILLI, 2005).
O socioambientalismo norteou a criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC, normatizado pela
Lei nº 9.985/2000 e pelo Decreto 4340/2002, cujos propósitos foram ampliados pelo Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas – PNAP, instituído pelo Decreto nº 5.758/2006. Todas essas normas ambientais resultaram da correlação de forças de
diversos atores sociais e instituições (Estado, comunidades tradicionais, associações comunitárias, organizações não governamentais, universidades) que construíram esses instrumentos jurídicos nacionais, dando cumprimento aos termos da Convenção
sobre Diversidade Biológica (BRASIL, 1998) ao enfatizar o dever do Estado de desenvolver estratégias, planos e programas para
conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica, valorizar as comunidades tradicionais e seus saberes, estimular
a interação entre estas e a comunidade científica para a disseminação de pesquisas capazes de identificar formas de uso sustentável dos recursos naturais.
As RESEXs são classificadas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC como espécies
de Unidades de Conservação - UC de Uso Sustentável. O seu escopo é combinar conservação ambiental e exploração econômica, mediante o gerenciamento conjunto do Governo e Comunidades quanto ao uso dos recursos naturais.
O Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos
e Comunidades Tradicionais - PNPCT, definiu como povos e comunidades tradicionais:
grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para
sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007).
A interação entre instituições estatais, notadamente o Ministério do Meio Ambiente e/ou instituições educacionais, comunidades tradicionais e organizações não governamentais veiculou a efetividade das normas ambientais do SNUC e do PNAP ao
formular a Recomendação da Comissão Técnica sobre Manguezais – CNZU, a partir da reivindicação dos pescadores artesanais presentes em diversas Conferências de Pesca e de Meio Ambiente que a antecederam (BRASIL. MMA, 2011).
De acordo com essa recomendação, mais de 500 mil pescadores no Brasil dependem direta ou indiretamente do ecossistema manguezal para suprir suas necessidades de alimentação, emprego e renda. Por isso, esse documento ressaltou a
necessidade de manter os manguezais em toda a sua extensão enquanto área de preservação permanente no Código Florestal
de 2012, tendo em vista, dentre outras considerações, a necessidade de dar efetividade ao artigo 225, § 4º, da Constituição da
República, no que tange à proteção dos Patrimônios Nacionais ali elencados proibindo a supressão de vegetação em áreas de
preservação permanente - APPs, quando houver presença de espécies ameaçadas de extinção e quando protegerem o entorno
de unidades de conservação.
É sabido que, apenas por pressão de ambientalistas e ao custo de insatisfações de grupos representativos dos setores
agropecuários, o Código Florestal, em seu artigo 4º, inciso VII, inseriu o ecossistema manguezal no rol das APPs.
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
37
Normas Jurídicas para Conservação de Manguezais e Oportunidades Sociais para as
Comunidades Tradicionais das Reserva Extrativistas Marinhas Paraenses.
Sen (2000, p. 18) define as oportunidades sociais a partir da inclusão de serviços de educação e saúde, que viabilizam
a participação econômica. As facilidades econômicas são concretizadas em oportunidades de participação no comércio e na
produção, podendo auxiliar a abundância individual, bem como recursos públicos para os serviços sociais.
Nos municípios costeiros paraenses de Maracanã, Augusto Correa, Tracuateua, Viseu, Santarém Novo, Curuçá, Marapanim, São João da Ponta, São Caetano de Odivelas, Soure, Bragança e Magalhães Barata foram criadas 12 REMs.
O Anexo “B” do Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (BRASIL, 1988) identifica Curuçá e São Caetano de Odivelas
na relação dos municípios paraenses abrangidos pela faixa terrestre da zona costeira2.
A REM Mãe Grande de Curuçá prevê, em seu decreto de criação, o objetivo geral contido no SNUC. Já a REM Mocapajuba inseriu como uma de suas finalidades a conservação do ecossistema manguezal (BRASIL, 2002b, 2014), o que indica a
maturação das reflexões e ações de instituições e atores sociais quanto à conservação dos manguezais. Segundo entrevistas e
grupos focais, instituições e atores sociais, inseridos no Projeto Manguezais do Brasil, articularam para que essa previsão fosse
destacada, vinculando a criação de Mocapajuba às demandas normativas exigidas no plano internacional e nacional, conforme
já delineado.
As REM são geridas pelo respectivo conselho deliberativo3, que aprova o plano de manejo para essas unidades. Esse
plano é constituído por resolução do conselho deliberativo da reserva, após a aprovação do órgão executor (BRASIL, 2002a), que
no caso é o ICMBIO, porque tais unidades de conservação são federais.
Apesar da criação de REMs ser significativa para a efetivação das normas ambientais de proteção dos manguezais, das
12 REMs criadas no Pará, apenas uma delas tem Plano de Manejo: a REM Caeté-Taperaçú, criada em 2005, no município de Bragança/PA, que possui um campus da Universidade Federal do Pará - UFPA, o que sugere maior proximidade entre comunidades
e pesquisadores a ensejar maior agilidade para articular a produção do plano de manejo4.
A REM de Curuçá, criada desde 2002, continua sem dispor desse importante instrumento de gestão, situação bastante
pontuada pelos entrevistados. Questionado sobre o fato, o ICMBIO informou, por meio de nota técnica, que a limitação para a
execução do plano de manejo em Mãe Grande é a não disponibilidade de recursos para a contratação dos experts para elaborálo, embora já exista termo de referência aprovado com essa finalidade.
A elaboração do plano de manejo deve ser realizada com atenção aos objetivos da Unidade de Conservação e ao Contrato de Concessão de Direito Real de Uso – CDRU. A previsão de manejo de manguezais deve ser pontuada nesse plano, considerando as razões de criação dessas unidades.
A Concessão de Direito Real de Uso é o instituto jurídico concedido pelo Poder Público autorizando o uso coletivo da área
da RESEX pelas populações tradicionais. O contrato para essa concessão (CDRU) deve ser realizado de acordo com o plano de
manejo (BRASIL, 2002a). Na REM Mãe Grande de Curuçá/PA, esse contrato foi firmado e a concessão foi entregue pela Secretaria do Patrimônio da União – SPU à Associação dos Usuários da REM Mãe Grande de Curuçá – AUREMAG sem a existência do
plano de manejo. Os usuários da REM Mocapajuba de São Caetano de Odivelas/PA, criada em 2014, ainda não dispõem desse
contrato, mas segundo informações de 30% das lideranças entrevistadas nesse município já existem articulações em andamento
objetivando a formulação desse documento para aquela associação recém-criada.
De qualquer forma, as reivindicações de pescadores artesanais e demais integrantes das comunidades tradicionais nos
dois municípios paraenses viabilizaram a criação das REMs, porque a criação dessas unidades de conservação aconteceu após
a realização de consultas públicas, precedidas da realização de estudos técnicos para avaliar a viabilidade da criação dessas
unidades, conforme determinação do SNUC (BRASIL, 2000).
Em Curuçá, 70% das lideranças entrevistadas afirmaram que participaram de cursos voltados ao empreendedorismo
2
A Zona Costeira Paraense é constituída pelos seguintes municípios: Bragança, Afuá, Chaves, Soure, Salvaterra, Cachoeira do Arari, Barcarena, Belém, Ananindeua,
Santo Antônio do Tauá, Colares, Benevides, Vigia, Marapanim, Magalhães Barata, Maracanã, Salinópolis, São José de Pirabas, Primavera, Augusto Correa, Vizeu,
Santa Bárbara do Pará, Quatipuru, São Caetano de Odivelas e Curuçá (BRASIL, 1988b). Portanto, dos 144 municípios paraenses, 25 situam-se na faixa terrestre da
zona costeira (IBGE, 2014).
3
O Conselho Deliberativo é “presidido pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e das populações tradicionais residentes na área” (BRASIL, 2000).
4
Informação prestada por representante do ICMBIO durante reunião com grupo focal em 13 de dezembro de 2014.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
38
local (artesanatos, ostreicultura, meliponicultura, conservação do pescado, técnicas de catação do caranguejo) ou a educação
ambiental. Esses cursos promoveram mudanças nos hábitos inclusive pela população urbana desse município, onde é notável a
maior preocupação com a limpeza do espaço público, como praças e ruas, do que em São Caetano de Odivelas, que até meados
de 2014 não tinha REM em seu território.
A observação no campo, interação e grupos focais e entrevistas nos dois municípios apontam que instituições de fomento, comando e controle, pesquisadores, pescadores, catadores de caranguejo, associações comunitárias no conselho gestor
da REM de Curuçá, entre outras, foram determinante para incentivar e implementar ações de educação, empreendedorismo e
mesmo maior controle sob as atividades prejudiciais ao meio ambiente no aludido município, conforme foi possível aferir das 17
atas do Conselho Gestor da REM Mãe Grande, referentes a reuniões realizadas no período de 2002 a 2012.
As lideranças de São Caetano de Odivelas, ao perceberem as mudanças no sentido de mais oportunidades sociais em
Curuçá, empenharam-se para acelerar a tramitação do processo de criação da REM em São Caetano.
Os avanços na implementação de relevantes instrumentos jurídicos previstos no Sistema de Unidades de Conservação
para significativas mudanças em favor da conservação dos manguezais e geradoras de oportunidades sociais para as comunidades vêm sendo operadas na REM Mãe Grande de Curuçá, criada há mais de dez anos e já consolidada. O reconhecimento
dessas mudanças foi apontado com frequência nos grupos focais e por uma média de 87% dos entrevistados nos dois municípios.
Curuçá e São Caetano de Odivelas são municípios paraenses costeiros, onde a população rural é superior à urbana5.
Nos dois municípios o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH está abaixo da média nacional (0,727 em 2010). São Caetano
de Odivelas ocupa a 4515ª posição em relação aos 5.565 municípios brasileiros e a 70ª posição em relação aos 143 municípios
do Pará com 0,585 em 2010. Curuçá ocupa a 4.590ª posição em relação ao Brasil e 73ª posição em relação ao Pará, com 0,582
em 2010 (PNUD, 2013).
Segundo dados fornecidos pelo PNUD (2013), o índice de Gini é um instrumento usado para medir o grau de concentração de renda num determinado território. Ele aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos.
Numericamente, varia de 0 a 1. O zero representa a situação de total igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda, e o valor 1
significa completa desigualdade de renda. Em Curuçá, onde a REM foi criada em 2002, o Índice de Gini passou de 0,55 em 1991
para 0,72 em 2000 e para 0,56 em 2010. Enquanto em São Caetano de Odivelas, esse índice passou de 0,41 em 1991 para 0,46
em 2000 e para 0,48 em 2010 (Figura 1), ou seja, a desigualdade social em São Caetano de Odivelas continuou aumentando,
enquanto houve diminuição em Curuçá, onde a REM havia sido criada há mais tempo.
Figura 1. Índice de Gini em São Caetano de Odivelas (PA) e Curuçá (PA). Fonte: PNUD (2013)
Tais dados, isoladamente, não constituem indicativo, mas agrega informação à análise se avaliados em conjunto com
outros fatores como inserção das comunidades em programas sociais, políticas de incentivo ao empreendedorismo, entre outros.
O ICMBIO, em informações prestadas durante a pesquisa documental, certificou que em Curuçá são implementadas as
seguintes políticas: o Plano Nacional de Habitação Rural, Bolsa Verde do Plano Brasil sem Miséria; Assistência Técnica e Extensão Rural e Pesqueira para as Populações Tradicionais - ATER e Projeto Manguezais do Brasil.
Curuçá possui área de 672,675 Km² e uma população estimada em 36.557 pessoas. São Caetano de Odivelas possui área de 743,466 Km² e uma população estimada
de 17.266 pessoas (IBGE, 2014).
5
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
39
A Divisão de Suporte Operacional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA sustentou, em resposta à
questionamento elaborado por escrito durante a pesquisa, que em Curuçá 2000 pessoas receberam imóveis construídos pelo
INCRA com a implementação de projeto de reforma agrária. Não existem registros de beneficiários desse projeto em São Caetano de Odivelas.
É possível que esses projetos nem sejam integralmente implementados e que as comunidades costeiras tradicionais não
sejam amplamente beneficiadas por eles. Sem embargo, certo é que São Caetano de Odivelas, área adjacente ao Município
de Curuçá, ainda está excluída dessas políticas públicas. Portanto, em tese, as comunidades em São Caetano de Odivelas têm
ainda maior redução de suas oportunidades sociais e econômicas em relação à Curuçá. Tal circunstância é percebida pela
maioria dos entrevistados, tanto nas comunidades tradicionais, quanto nas instituições públicas que atuam nas REMs estudadas.
Segundo informações da Controladoria Geral da União - CGU, das 36.557 pessoas residentes em Curuçá apenas 845
pessoas recebem o bolsa verde na RESEX Mãe Grande de Curuçá, onde 6.524 pessoas recebem o bolsa família (BRASIL. CGU,
2014). Portanto, apenas uma parcela dos moradores daquela reserva recebe o bolsa verde.
O bolsa verde foi instituído pela Lei nº 12.512, de 4 de outubro de 2011 e regulamentado pelo Decreto nº 7572, de 28 de
setembro de 2011. Os objetivos da implementação desse subsídio consistem em (1) incentivar a conservação dos ecossistemas
(manutenção e uso sustentável); (2) promover a cidadania e melhoria das condições de vida; (3) elevar a renda da população
em situação de extrema pobreza que exerça atividades de conservação dos recursos naturais no meio rural; e (4) incentivar a
participação dos beneficiários em ações de capacitação ambiental, social, técnica e profissional. Trata-se de um benefício decorrente do Programa Brasil Sem Miséria, destinado às famílias em situação de extrema pobreza (renda de até R$ 70,00 por pessoa)
e que vivam em áreas prioritárias para conservação ambiental. O bolsa verde é concedido a cada trimestre, no valor de R$ 300.
Ninguém em São Caetano de Odivelas recebe esse benefício, cujo valor é flagrantemente irrisório, mas expressivo em relação à
baixa renda da população nos dois municípios.
Com relação ao bolsa família, dados fornecidos pela Controladoria Geral da União durante a pesquisa documental indicam que das 36.557 pessoas residentes em Curuçá, 6.524 pessoas recebem o bolsa família. Em São Caetano de Odivelas, das
17.266 pessoas que ali residem, 3.126 recebem esse benefício. Em ambos os municípios o percentual de pessoas atendidas pelo
bolsa família é de 18%, mas dos 18% que recebem esse benefício em Curuçá, 13% recebem também o bolsa verde, isto é, 845
pessoas. Logo, em Curuçá os beneficiados pelo bolsa família estão também alcançados pelo bolsa verde.
Em São Caetano de Odivelas e Curuçá, em média 54% da renda das comunidades tradicionais da Vila de São Miguel, na
REM Mocapajuba; e na Vila Mutucal, em Mãe Grande de Curuçá provém da captura do caranguejo uçá e da pesca de variadas
espécies de peixes6. Nessas áreas as atividades de pesca incluem pesca com uso de curral, pesca com rede, captura de caranguejo, camarão e outros mariscos. À atividade pesqueira associa-se a agricultura familiar, que inclui plantação de mandioca,
macaxeira, café e algumas hortaliças. A maioria dos homens trabalha nas atividades de pesca e captura dos caranguejos. As
mulheres cuidam de atividades domésticas e também lavoram na agricultura familiar7. Elas também pescam, principalmente
mariscos.
A educação formal de ensino médio é disponibilizada nas respectivas sedes dos Municípios de São Caetano de Odivelas
e Curuçá e, ainda assim, funciona com escassez de recursos humanos e materiais.
Nas comunidades mais distantes das sedes, os jovens carecem de infraestrutura de transporte para se locomoverem
para a cidade. O transporte por barcos de madeira, movidos a motor, feito pelos rios, é demorado. O valor cobrado pelas viagens
nesses barcos, em média R$ 2,00, ao longo dos dias úteis, revela-se como despesa que atinge duramente o orçamento doméstico
das pessoas de baixa renda que necessitam desse transporte.
Migrar para as cidades sede ou mesmo para Belém em busca de oportunidades sociais apresenta-se como uma das
poucas opções, mas nesses lugares os custos de moradia e alimentação são altos, circunstância que muitas vezes inviabilizam
o prosseguimento dos estudos para os jovens daquelas comunidades. Por isso, apenas 21% dos entrevistados em Curuçá e 23%
em São Caetano de Odivelas chegaram ao ensino médio.
A concessão de oportunidades sociais é decisiva no momento em que há colisão das normas de proteção ambiental com
os interesses envolvidos nessas demandas. Por isso, os grupos focais, os entrevistados e as observações em campo apontam
A Pescada amarela, dourada, tainha, corvina, peixe-pedra, camurin (robalo), bagre, gurijuba, xaréu, arraia, piramutaba, piaba, pratiqueira, dentre outros.
A agricultura familiar é complementada com a criação de galinhas e a comercialização de polpas de frutas: taperebá, tucumam, bacuri, muruci e cupuaçu.
6
7
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
40
que estradas, hotéis, postos de combustível, mercados, marinas, viveiros para carcinicultura e praias artificiais são continuamente construídas nas REMs sem atenção às áreas de manguezais em São Caetano de Odivelas e Curuçá.
O ponto nodal é avaliar as capacidades institucionais de forma associada às demandas do mercado, como tipologia fundamental a reger as relações do homem com o meio ambiente. Nesse passo, é mister destacar as lições de Polanyi (1980) para
quem a força das instituições, para a mudança de paradigmas sociais, depende do entretecimento de questões multivariadas,
exigindo a interrelação de conhecimentos nas áreas da economia, ciências sociais e a análise institucional, em especial, tendo
em consideração o mercado como tipologia fundamental da lógica que rege as relações humanas desde o advento da Revolução
Industrial.
Ainda há carência de regras claramente definidas para a utilização do ecossistema manguezal, num espaço em que a
demanda pelos seus recursos naturais só aumenta. Exemplo disso é a ausência de regulamentação do Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (BRASIL, 1988), como parte integrante da Política Nacional para os Recursos do Mar e da Política Nacional
do Meio Ambiente, que quantifica o valor da reparação pelos danos causados pela degradação dos ecossistemas, do patrimônio
e dos recursos naturais da Zona Costeira.
Conclusão
A implementação dos instrumentos jurídicos disponíveis para conservação dos manguezais em todas as escalas depende da articulação entre os diversos atores sociais e instituições envolvidos em programas e ações para conservação dos
manguezais. A articulação entre instituições estatais, organizações não governamentais e comunidades tradicionais já produziu
avanços significativos no sentido de mitigar as demandas pelos recursos naturais oriundo de manguezais ou outras demandas de
mercado que pressionam para a destruição de áreas desse ecossistema. A implementação de ações de programas, a exemplo
do Programa Manguezais do Brasil, tem produzido resultados reconhecidos pelas comunidades tradicionais estudadas na busca
de alternativas para melhoria da qualidade de vida dessas comunidades e na efetivação dos princípios do dever do Estado de
proteger o meio ambiente, da função socioambiental da propriedade, do desenvolvimento sustentável e da participação. O desafio é compatibilizar os diversos interesses em pauta relacionados aos dilemas da conservação.
As normas de proteção ao manguezal e de gerenciamento das reservas extrativistas ainda apresentam baixa efetividade.
Contribuem para esse diagnóstico, a infraestrutura deficiente nos municípios estudados, a baixa escolaridade das comunidades
e a fragilidade das instituições e atores sociais afinados com propósitos de conservação dos manguezais, ainda muito dependentes de investimentos financeiros e humanos. A despeito desse fato, os resultados quanto ao IDHM e o índice de Gine em Curuçá
são indicativos importantes de que a criação da REM Mãe Grande de Curuçá significou a introdução de mais oportunidades
sociais para os usuários da reserva e, em São Caetano de Odivelas a criação da REM Mocapajuba já importa em novas perspectivas no mesmo sentido para os seus usuários, os quais já perceberam os avanços e benefícios para os usuários da RESEX em
Mãe Grande. Os incentivos governamentais para suprir as necessidades de mais educação, renda e oportunidades para essas
comunidades dão suporte importante para essa perspectiva. Tanto é assim que, nos anos de 2013-2014, 87% das lideranças entrevistadas na REM de Curuçá/PA reconheciam benefícios para o município com a criação dessa Unidade de Conservação. Em
março de 2015, lideranças comunitárias na REM em São Caetano de Odivelas estavam otimistas com a recém criação de REM
nesse município.
A divulgação da importância do ecossistema manguezal e a educação para sua proteção nos meios integrantes de toda
a teia de relações que envolve a utilização dos recursos naturais é imprescindível.
Referências
ALLEGRETTI, M. H. Extractive Reserves: an Alternative for Reconstructing Development and Environmental Conservation in
Amazonia, in Alternatives to Deforestation: Steps toward Sustainable Use of the Amazon Rainforest. New York: Columbia University Press, 1990.
BENATTI, J.H. A Posse Agrária Alternativa e a Reserva Extrativista na Amazônia. In. D’INCAO, M.A.; SILVEIRA, I.M.(Org.). 2 Ed.
A Amazônia e a Crise da Modernização. l. 2.ed. Belém: ICSA; UFPA; MPEG, 2009.
BRASIL. Lei Federal nº 7.661, de 16 de maio de 1988. Institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro e dá outras providên-
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
41
cias. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília-DF, 16 mai. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/l9985.htm>. Acesso em 5 julho 2014.
BRASIL. Decreto nº 2519, de 16 de março de 1998. Promulga a Convenção sobre Diversidade Biológica. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília-DF, 16 mar. 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto/1998/D2519.
htm>. Acesso em 05 maio 2014.
BRASIL. Lei Federal nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal,
institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. Diário Oficial da República
Federativa do Brasil, Brasília-DF, 18 jul. 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm>. Acesso em
5 julho 2014.
BRASIL. Decreto nº 4340, de 22 de agosto de 2002a. Regulamenta artigos da Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC, e dá outras providências. Diário Oficial da República
Federativa do Brasil, Brasília-DF, 22 ago. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto/2002/D4340.htm>.
Acesso em 15 junho 2014.
BRASIL. Decreto s/nº, de 13 de dezembro de 2002b. Cria a Reserva Extrativista Mãe Grande de Curuçá, no Município de Curuçá,
Estado do Pará. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília-DF, 13 dez. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/dnn/2002/Dnn9774.htm>. Acesso em 06 junho 2015.
BRASIL. Decreto nº 5758, de 13 de abril de 2006. Institui o Plano Estratégico de Áreas Protegidas, e dá outras providências.
Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília-DF, 13 abri. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/2006/D5758.htm>. Acesso em 25 junho 2014.
BRASIL. Decreto nº 6040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília-DF, 7 fev. 2007. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto/2007/D6040.htm>. Acesso em 15 maio 2015.
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Recomendação Comissão Técnica sobre Manguezais – CNZU nº 4, de 19 de agosto de
2011. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/estruturas/205/_arquivos/rec_manguezais_cnzu_2011_205_3.pdf >. Acesso em
27 janeiro 2013.
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Sítios Ramsar Brasileiros. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/biodiversidade/biodiversidade-aquatica/zonas-umidas-conven cao-de-ramsar/sítios-ramsar-brasileiros>. Acesso em 27 janeiro 2013.
BRASIL. Controladoria Geral da União – CGU. Relatórios de Auditoria, fiscalização e Avaliação. Disponível em: <http://sistemas2.
cgu.gov.br/relats/relatorios.php>. Acesso em 22 março 2014.
BRASIL. Decreto s/nº, de 10 de outubro de 2014. Cria a Reserva Extrativista Mocapajuba, no Município de São Caetano de
Odivelas, Estado do Pará. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília-DF, 10 out. 2014. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Dsn/Dsn14009.htm>. Acesso em 06 junho 2015.
FERREIRA, H. S. Política Ambiental Constitucional. In: CANOTILHO, J.G.; LEITE, J.R.M. (Orgs.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 5 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 261-294.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Cidades. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br /cidadesat/xtras/ temas.php? codmun=150290&idtema=75& estimativa-da-populacao-2012>. Acesso em 11 outubro 2014.
INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE - ICMBIO. Unidade de conservação. Disponível
em: <http://www.icmbio.gov.br/ portal/ biodiversidade/unidades-de-conservacao/biomas-brasileiros/marinho/unidades-de-conservacao-marinho>. Acesso em 20 fevereiro 2015.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
42
INTERNATIONAL UNION FOR CONSERVATION NATURE - IUNC. World Parks Congress. Sydney, 2014. Disponível em:
<http://worldparkscongress .org/about/promise_of_sydney_commitments.html>. Acesso em 10 julho 2014.
LAVIEREN et al. Securing the Future of Mangroves. A Policy Brief. Okinawa: UNU-INWEH, UNESCO-MAB, ITTO, FAO,
UNEP-WCMC e TNC, 2012.
MILARÉ, E. Direito do Ambiente. 8. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
POLANYI, K. Ascenção e Queda da Economia de Mercado: moinho satânico. In. A Grande Transformação: As origens da
nossa época. Rio de Janeiro: Editora Campus. 1980, p. 51-69
PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO - PNUD. Atlas do desenvolvimento humano no Brasil.
2013. Disponível em: <http://atlasbrasil.org.br/ 2013/pt/perfil>. Acesso em: 14 janeiro 2015.
RAMSAR. About the Ramsar Convention. Disponível em: <http://www.ramsar.org/about-the-ramsar-convention>. Acesso em
20 dezembro 2014.
SANTILLI, J. Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. Rio de Janeiro:
Petrópolis, 2005.
SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SPALDING, M.; BLASCO, F.: FIELD, Collin.Word Mangrove Atlas. International Society for Mangrove Ecosystems, WCMC.
Paris: National Council for Scientific Research, 1997. Disponível em: <http://www.archive.org/details/worldmangroveatl97spalv>.
Acesso em 10 dezembro 2014.
SOUZA FILHO, P. M. Costa de Manguezais de Macromaré da Amazônia: Cenários Morfológicos, Mapeamento e Quantificação
de Áreas Usando Dados de Sensores Remotos. Revista Brasileira de Geofísica, v. 23, n.4, out./dez. São Paulo: 2005.
UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME - UNEP. The Importance of Mangroves to People: A Call to Action. VAN
BOCHOVE, J., SULLIVAN, E., NAKAMURA, T. (Org.). Cambridge: World Conservation Monitoring Centre, 2014. Disponível em:
<http://aple.unep.publications/index.php?option=com_pub&task>. Acesso em 31 dezembro 2014.
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
43
CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E TEMPORALIDADES NO ESTUDO DE
CASO DO ACAMPAMENTO SEBASTIÃO LAN II
Ribeiro, Ana Maria Motta1; São Clemente, Bernardo Raphael Bastos2; Freitas, Emmanuel Oguri3; Lobato da Costa,
Rodolfo Bezerra de Menezes4 & Azevedo, Thaís Maria Lutterback Saporetti5
1.Professora do PPG em Sociologia e Direito e Coordenadora do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF); Universidade Federal
Fluminense, [email protected]; 2. Doutorando do PPGSD e pesquisador do OBFF, Universidade Federal Fluminense,
[email protected]; 3. Doutorando do PPGSD e pesquisador do OBFF, Universidade Federal Fluminense,
[email protected]; 4.Doutorando do PPGSD e pesquisador do OBFF, Universidade Federal Fluminense,
[email protected]; 5. Doutoranda do PPGSD e pesquisadora do OBFF, Universidade Federal Fluminense,
[email protected];
Resumo
Este artigo pretende apresentar uma releitura sobre o histórico de ocupação da terra que deu origem à comunidade rural Sebastião Lan, no município de Silva Jardim, interior do Estado do Rio de Janeiro. O assentamento localiza-se no entorno da Reserva Biológica (Rebio) de Poço das Antas, sendo impactados por restrições ambientais em decorrência da proximidade com a unidade
de conservação. No dia 11 de junho de 2015, foi comemorado o aniversário de 19 anos de ocupação. Por meio da observação
participante como metodologia, procura-se dar voz e enfatizar a morosidade e o “cansaço” dos trabalhadores rurais diante dos
impasses ambientais e agrários criados por órgãos federais em disputa (INCRA e IBAMA), processo acompanhado, desde 2002,
pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e que continua sem um encaminhamento definitivo quanto à situação das famílias
na área.
Palavras-chaves: Conflito Socioambiental Rural, Regularização Fundiária, Projeto de Desenvolvimento Sustentável
Apresentação
Pretende-se com este artigo apresentar uma releitura sobre o histórico de ocupação da terra que deu origem à comunidade rural de Sebastião Lan, no município de Silva Jardim, interior do Estado do Rio de Janeiro. No dia 11 de junho de 2015,
foi completado o aniversário de 19 anos de ocupação. Além da releitura do processo territorial, apresentamos o novo cenário,
levando em conta a permanência do conflito que levou pela primeira vez os pesquisadores da Universidade Federal Fluminense
(UFF) a campo, em 2002. A morosidade da justiça, aliada aos impasses ambientais e agrários dos órgãos federais em disputa
(INCRA e IBAMA) apresentam-se como a principal queixa dos trabalhadores rurais.
Histórico da Região
A implantação da Reserva Biológica (Rebio) de Poço das Antas, em 1974, envolveu questões importantes e problemáticas
presentes no Brasil relativos à concentração de terras, modos de exploração do solo, dos recursos hídricos (minerais) e energéticos (biomassa). Somados aos impasses provocados pela implantação da Rebio, ocorreu a construção de uma barragem que
redefiniu os limites da Lagoa de Jurtunaíba, local que, com o passar do tempo, tornou-se de grande interesse da especulação
imobiliária, por fornecer abastecimento de água para a ascendente “Região dos Lagos”, dando suporte para o início do desenvolvimento da atividade turística nesta região1.
Simultaneamente, assiste-se a um processo planejado e flagrante no sentido de caracterizar a suposta decadência agrícola - intencionalmente provocada em nome de um conceito de modernização, relacionada ao desenvolvimento urbano, como
característica a ser forjada enquanto imagem do Estado do Rio de Janeiro - vinculada a uma pretensa falta de vocação rural.
Assim, se seguem a morte da fruticultura fluminense de laranja, a devastação da Mata Atlântica, a decadência dos grandesciclos de cana e café que representavam alicerces econômicos do Estado e que passam a ser substituídos pelo capital espeEncontramos indícios da participação da empresa Camargo Correa e outras empreiteiras consorciadas do movimento urbanizador: a Barragem de Juturnaíba, a
privatização da estrada para a região dos Lagos e a privatização do fornecimento água para atender o aumento demográfico da Região dos Lagos.
1
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
45
culativo imobiliário. A mudança da correlação de forças entre o campo e a cidade é o traço fundamental no desenvolvimento
econômico da região2.
Um falso conceito de suposta “vocação turística” do Estado do Rio de Janeiro (ERJ) passou a abafar ideologicamente os
projetos federais com base nos modelos da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), visando uma soberania e o
barateamento da oferta alimentar pela transformação da Baixada Fluminense no Cinturão Verde da Guanabara. A mercantilização não-agrícola do território e dos recursos naturais (paisagem, madeira, terra e a fauna), valorizados no início do século XX,
também podem ser citados como mais uma das prováveis causas para a concentração de grandes propriedades na medida
em que empresas ou grandes investidores passaram a comprar terras que tinham reservas de mata. Em uma primeira fase
econômica na região, destaca-se a extração vegetal, que de acordo com Geiger, ocorria da seguinte forma: “A exploração de
mata visa principalmente a produção de energia com lenha e carvão”, sobretudo para a companhia siderúrgica Nacional (GEIGER; MESQUITA,1956).
Já a partir da segunda metade do século XX, podemos observar o desenvolvimento da atividade turística na região serrana e da substituição de atividades agrícolas pela pecuária extensiva no noroeste do Estado, à exceção da monocultura da cana
no Norte do Estado que se mantinha pela influência política dos usineiros, apesar de uma baixa produtividade (diferentemente
de São Paulo) e altamente necessitada de subsídios do Estado para sua reprodução.
Neste quadro, destaca-se a importância do Estado mais centralizado, entre os anos 30 e 50, em termos da organização
territorial, seja através da “guerra fiscal” ou mesmo por decreto federal, como, por exemplo, o que objetivava a criação de uma
“Zona prioritária de emergência para fins de reforma agrária”, promulgado em 15/10/1965 para a região fisiográfica definida pelo
IBGE como Baixada. O objetivo inicial desse decreto era permitir a implantação de colônias agrícolas, porém, rapidamente os
interesses dos especuladores se sobrepuseram, e uma série de processos de grilagem de terra (apoiados no modelo de Estado
autoritário da ditadura militar a partir dos anos 60) criaram obstáculos. O desdobramento destes processos se caracteriza em
uma intensa onda de conflitos, expulsão de camponeses e pelo gradativo avanço da urbanização sobre áreas agrícolas, que
convencionamos chamar na pesquisa de processos de “desagriculturação”3 .
Atualmente, o entorno da Rebio possui 3 assentamentos e 1 acampamento. O primeiro foi o de Aldeia Velha, oficializado
em 1991, desapropriados da própria reserva. O assentamento de Cambucaes surgiu em1995, nomeado com o nome da fazenda
ocupada. E o de Sebastião Lan (gleba I) em junho de 1997, em terras que se mostraram inundáveis e inapropriadas para habitação posteriormente.
O resquício de mata atlântica que faz parte da Rebio, e também se encontra nas Reservas Particulares de Proteção Natural – RPPNs - no seu entorno, demonstra um favorecimento de estratégias conservacionistas para áreas poucos transformadas
pela ação humana e não urbanizadas. Tornam-se, portanto, áreas prioritárias para proteção integral de um “bioma natural”, gerando, além do conflito entre urbanização e áreas agrícolas, o conflito entre unidades de conservação e população residente no
local e em seu entorno, ambos os casos encontrados na região da Rebio Poço das Antas.
Outras ações governamentais nos anos 70 refletem mudanças que têm efeito até hoje, entre elas a construção de canais
de escoamento e drenagem da agua vinda do rio São João para o favorecimento da implantação de projetos agropecuários que
associavam monoculturas de arroz, cana e gado. O represamento da lagoa, a drenagem do solo, a construção de canais, os
projetos agropecuários dependentes de insumos químicos e agrotóxicos, a retirada de árvores, a pastagem e a utilização do fogo
para limpar o terreno resultaram no empobrecimento do solo, modificação da rede hídrica e significativa alteração da ecologia
local e da biodiversidade como um todo (PEREIRA, 2006).
2
Destaca-se do ponto de vista institucional a unificação dos Estados da Guanabara (centro de urbanização) que tem hegemonia nesse acordo, com o Estado do Rio
de Janeiro (eminentemente rural) em 15 de março de 1975, acaba por uniformizar desejos especulativos na região.
3
Verbete “Desagriculturalização”, Dicionário da Terra, páginas 158-161 (MOTTA, 2005).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
46
Figura 1. Mapa de Uso e Ocupação do Solo produzido pelo INCRA na área do assentamento Sebastião Lan II, com destaques
em azul para os canais construídos onde originalmente era um pântano. (INCRA, 2014, Portaria Incra SR 07).
A área onde se encontra o acampamento, chamada de Brejão, após a canalização na década de 70 para plantação de
arroz, foi grilada por um fazendeiro, posteriormente arrendada para continuidade da rizicultura e, depois, recebendo tentativas
de cultivo de aipim, batata-doce e banana. A área de 1466 ha que foi ocupada em 1997, possui um solo que carrega uma história
que se origina com a derrubada da mata nativa, queimadas e produção com agrotóxicos, dentro do pacote da Revolução Verde
(maquinário e insumos químicos).
Hoje, a desobstrução de alguns destes canais não ocorre para favorecer a atividade agrícola, nem o abastecimento humano. Ela acontece, principalmente, após as enchentes de 2003, quando o volume de água da represa de Juturnaíba superou sua
capacidade e forçou a abertura das comportas, inundando boa parcela de onde se encontra o Sebastião Lan causando efeitos
catastróficos para quem ali residia.
Ao mesmo tempo em que o Estado do Rio de Janeiro é hoje um dos mais urbanizados da Federação, se mantém
abertos uma série de processos que atuam em diferentes sentidos, dentre os quais destacamos a resistência dos trabalhadores
em luta constante por reforma agrária, o desenvolvimento da pluriatividade enquanto estratégia de permanência no campo e o
surgimento de novas iniciativas relacionadas com a questão ambiental, o turismo, o processamento de alimentos, entre outras.
Destaca-se, ainda, uma óbvia participação da ocupação no processo de modificação do status de perigo de extinção do mico
leão dourado que passou a frequentar um território com lavoura branca (alimentos) dos trabalhadores, uma vez que era pressionado pelos “vazios espaciais” ocasionados pela pecuária, forma majoritária de ocupação territorial até o aparecimento dos
agricultores familiares.
Podemos, teoricamente, visualizar os processos de “desagriculturalização”, “desruralização” e “rerruralização” no tempo
e no espaço. Geiger e Mesquita, autores de um texto clássico sobre a questão agrária no Estado do Rio de Janeiro (escrito há 50
anos), colocam dados interessantes para a compreensão das raízes históricas da relação rural-urbano (GEIGER; MESQUITA,
1956, p. 36-37). A suposta decadência agrícola do Estado do Rio de Janeiro, vinculada a uma pretensa falta de vocação, é criticada pelos autores com o exemplo que diz por si mesmo: a fruticultura colocou a produção fluminense de laranja como a maior
do país. A mudança da correlação de forças entre o campo e a cidade é o traço fundamental no desenvolvimento econômico da
região.
Ao mesmo tempo que o Estado do Rio é hoje o mais urbanizado da federação se mantêm abertos uma série de processos
que atuam em diferentes sentidos, dentre os quais destacamos a resistência dos trabalhadores em luta constante por reforma
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
47
agrária, o desenvolvimento da pluriatividade enquanto estratégia de permanência no campo e o surgimento de novas iniciativas
relacionadas com a questão ambiental, com o turismo, com o processamento de alimentos, entre outras. É importante destacar
que este conjunto de processos estão redefinindo a ocupação territorial do Estado, e não alteram sua tendência geral de urbanização. O reflexo desta situação é bastante sintomático: evidencia-se o crescimento desordenado dos grandes centros com
índices cada vez maiores de desemprego e violência, e na própria balança comercial do Estado, que hoje é um importador de
gêneros alimentícios.
Parece pouco provável que o turismo e o grande latifúndio possam modificar sua tendência histórica de degradação ambiental e aliarem-se a um processo de desenvolvimento sustentado e equilibrado ecologicamente. Por outro lado, deve merecer
atenção o processo de construção de novas iniciativas de produção agrícola que podem relacionar a rerruralização do Estado
do Rio com as demandas crescentes por trabalho e terra dos movimentos sociais.
Ao ampliar o campo das funções sociais da agricultura, o que inclui a pluriatividade e a multifuncionalidade como características da reprodução simples do modelo familiar, deixando de ser mera produtora de bens agrícolas, destaca-se a capacidade inerente de ampliar a conservação dos recursos naturais (água, solo), a partir de uma produção agroecológica estimulada
pelo Estado, a qual, livre de venenos, poderia reproduzir um patrimônio natural (paisagem), envolvendo o fornecimento de
alimentos de qualidade e o agroturismo.
Dado que existe entre parte dos acampados receptividade às práticas agroecológicas, o plantio de mudas e a fiscalização
no que consiste a caça, queimadas e qualidade da água do canal que os abastece, surge entre eles uma certa indignação com
os órgãos ambientais. Esses órgãos reconhecem apenas parcialmente os benefícios que a ocupação daquele território pode ter
trazido à reserva e a potencialidade de uma produção e vivência que chegue a um consenso entre os limites para reprodução da
reserva e as necessidades para sobrevivência digna dos produtores rurais ali residentes.
Argumentação
No ano de 2002, a UFF recebeu uma solicitação para formação de um Grupo de Pesquisa na tentativa de responder ao
processo encaminhado pelo Ministério Público Federal (acionado pelo IBAMA e pela Rebio de Poço das Antas) relativo a algumas demandas referentes a uma Ação Civil Pública ajuizada contra o INCRA, face aos supostos danos causados por assentamentos rurais no entorno da Rebio de Poço das Antas4. Considerando o processo de extinção do mico leão dourado, eminente na
época, foi criado o GT Ecossocial5, com a contribuição de especialistas de diversas áreas para superação dos conflitos socioambientais consolidados em uma cooperação técnica entre o IBAMA e o INCRA, mediada pela Academia.
Realizou-se formalmente um Laudo “multidisciplinar” envolvendo as expertises nas áreas de Sociologia Rural, Direito
Agrário e Ambiental; Engenharia Agrícola, Biologia e Geografia Agrária (MADERIA FILHO et al., 2007). Foi produzida, entre
outras tarefas, a caracterização dos agricultores e das atividades rurais no entorno da Rebio, através de um Diagnóstico Rural
Participativo (DRP). Esse diagnóstico tinha como objetivo inicial mapear as atividades realizadas pelos trabalhadores antes da
ocupação da terra, seus respectivos municípios de origem, as culturas produzidas, técnicas e recursos existentes6.
O Laudo, realizado através de ações coletivamente construídas em assembleias (envolvendo representantes da REBIO,
do IBAMA, do INCRA, da comunidade de assentados e da UFF), culminou com a proposta de Termo de Ajustamento de Conduta,
aceito por todas as tendências e grupos de interesses envolvidos. Apenas no final de 2013 é que a equipe da UFF voltou a ser
convidada para acompanhar um processo de sensibilização da comunidade de agricultores de Sebastião Lan. Agora, trata-se de
uma proposta conduzida por uma nova direção do INCRA, em outra conjuntura, que se relaciona a construção de um Projeto de
Desenvolvimento Sustentável (PDS) para a área. Trata-se de modalidade de projeto criada para o desenvolvimento de atividades
ambientalmente diferenciadas, destinado às populações que baseiam sua subsistência no extrativismo, na agricultura familiar e
Localizado entre Silva Jardim e Casimiro de Abreu, considerando o processo de extinção, eminente na época, do “mico leão dourado”. A partir dessa demanda foi
criado por Portaria especial do Reitor o GT Ecossocial, com a contribuição de especialistas de diversas áreas para superação dos conflitos socioambientais consolidados em uma cooperação técnica entre o Ibama e o Incra, mediada pela academia e centrada em agências federais públicas;
5
Sob coordenação dos professores Ana Motta (sociologia), Dario Prata Filho (engenharia agrícola), Mônica Cox (geogragia), Wilson Madeira Filho (Direito), o GT
ECOSOCIAL contava com os seguintes pesquisadores: Ana Claudia Tavares, Carlos André da Costa, Erika Moreira, Ernane Filho, Fernando Barcellos, Flávio Serafini,
Janaína Sevá, João Brito, Juliana Calomeni, Juliana Moreira, Luciana Silva, Marcelle Pires, Patrícia de Sá, Paula Pinto e Rodolfo Lobato.
6
O diagnóstico identificou as seguintes culturas: Coco, aipim, maracujá, laranja, feijão, banana, milho, inhame, abóbora, cana, manga. Além de também evidenciar
e pesquisar equipamentos utilizados, formas de adubação, tipos de defensivos, irrigação, comercialização, armazenamento, processamento de alimentos, energia
elétrica, construções rurais, saneamento, abastecimento de água, esgotos sanitários, resíduos sólidos, queimadas, extração de recursos florestais, entre outros.
4
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
48
em outras atividades de baixo impacto ambiental.
Atualmente, esse estudo pretende acompanhar e observar o processo institucional que busca integrar os imperativos de
conservação da natureza com as necessidades de sobrevivência das comunidades agrícolas de pequenos produtores7. Merece
destaque o fato de que as 83 famílias originais encontram-se na condição de acampados há mais de 17 anos e um dos grandes
dilemas será o de assentar, deste total, apenas 44, segundo conclusões de estudos técnicos realizados pelo INCRA8. Durante o
longo tempo de espera, várias situações contraditórias emergiram. Venda de lotes por alguns que não suportaram financeiramente ou emocionalmente a longa espera (separações de casais, morte de parentes, pais idosos ou filhos que se envolveram em
situações de vulnerabilidade nas periferias do Rio de Janeiro, em busca de ocupação ou de lazer); alteração na direção política
da comunidade e rachas das lideranças; reocupação desordenada por “gente de fora” que não participou da luta inicial, ocasionando o surgimento de novos interesses, entre eles, a forte presença de uma Igreja Evangélica que foi construída ao lado do
prédio feito pela comunidade para sitiar a sede da associação9.
O fato é que hoje existe já consolidado um cinturão de agricultura familiar no entorno da Rebio de Poço das Antas, que
ainda se destaca como um campo privilegiado de pesquisa sobre o rural fluminense e sobre a “rerruralização”. São movimentos de ocupação de terra em áreas historicamente ocupadas por um campesinato ribeirinho que foi expulso para a entrada da
monocultura de arroz e depois, pecuária em larga escala, os quais com sua presença “rerruralizam” o Vale do Rio São João com
a produção de alimento, ou lavoura branca. Esse cenário se desenha dinamicamente em variadas formas de conflito, uma diversidade de atores em tensão permanente acerca de direitos sobre a titularidade da terra e, principalmente, no enfrentamento com
projetos econômicos, ambientais e agrícolas que colocam em jogo as diversas noções de territorialidade10.
Vários são os pesquisadores envolvidos no desafio de compreender as dinâmicas territoriais do território hidrográfico da
Bacia do rio São João, no foco desta pesquisa. Estamos seguros de que para uma redefinição da ocupação desse vale torna-se
fundamental uma releitura de trabalhos, como o do geógrafo Jacob Binstock (1998) que desenvolveu uma pesquisa na região em
um momento de transformação de um território camponês em um território de latifúndios.
Depois de décadas de ocupação no entorno da Rebio, alguns funcionários do INCRA já reinterpretam nominalmente
a situação atual das famílias não mais como “acampados”, mas como comunidades de produtores agrícolas, em vias de assentamento. Situação que fortalece as demandas por acesso a serviços públicos e direitos, que se arrastam por anos, mas que
continuam suspensas por supostas incompatibilidades entre a implantação de uma atividade agrícola familiar e a preservação
ambiental.
O caso apresenta conflitos ideológicos que se refletem em disputas institucionais entre órgãos responsáveis pela reforma
agrária (INCRA) e a preservação ambiental (atual ICMBIO) acerca da legitimidade na ordenação do território. Há nítida diferenciação a ser examinada com cuidado entre as exigências do Termo de Ajustamento de Conduta e as condicionantes da Licença
Prévia para a área.
Assim, trabalhando com um conceito importado da geografia, pretende-se delinear o território não como espaço natural
imutável, mas como artefato humano em que seus traços são ora desfocados pelos conflitos, ora invisíveis pelos consensos. A
expansão urbana do município de Casimiro de Abreu e os usos diversos de uma natureza preservada (turismo e ciência) sujeitaram os assentamentos a diversas influências que precisam ser melhor investigadas, o que possivelmente vem reforçando as
tendências identificadas sob a noção de “desagriculturalização” do Estado do Rio de Janeiro.
Até que ponto a especulação imobiliária apresenta-se como uma ameaça para a consolidação da agricultura familiar? A
“desagriculturalização” em nome da preservação ambiental ou mesmo como resultado de grandes fluxos de capitais do mercado
imobiliário colocariam as comunidades rurais do território em situação de vulnerabilidade? Quais são as reações ou posicionamentos dos atores envolvidos diante da interseção entre conflitos fundiários rurais com conflitos fundiários urbanos? A especula7
Esse movimento de integração entre Reforma Agrária e Preservacionismo tem seu ponto de partida na luta de Chico Mendes que investiu na criação de uma Reserva
Extrativista, trazendo para dentro da luta sindical e político partidária a importância da questão ambiental para a agenda dos trabalhadores rurais em luta no País.
8
A situação de acampados representa a ausência de direitos por parte do estado uma vez que a ocupação de terras não constitui cidadania neste País.
9
Ambos os prédios são considerados ilegais por terem sido construídos em terras da união sem qualquer autorização. A vinda da família do pastor para um dos lotes
vendidos, novos “irmãos” atraídos para a área; uma nova geração de filhos dos ocupantes originais que depois de mais de uma década formaram novas famílias e
demandam o legítimo direito de um lote; a presença de um grupo de perfil diferente identificado pelos moradores mais antigos como membros da “milícia evangélica” do ERJ.
10
“Disputando espaço com o avanço da urbanização, como é o caso do Rio de Janeiro; [...] A reapropriação de espaços pouco explorados, onde as atividades agrícolas dos assentados para além de proporciona-lhes os meios de vida também adquire funções políticas de delimitação de território, [...] (MEDEIROS, p.14, 1999).
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
49
ção imobiliária que avança da periferia de Casimiro de Abreu com apoio do governo local11 apresenta-se como um perigo maior
ou menor à preservação ambiental? A agricultura familiar pode ser apresentada como uma proteção ou barreira socioeconômica
contra os usos da especulação imobiliária?
Proposta de Pesquisa Participante
A demanda, por parte do INCRA, para uma análise mais geral e implementação do PDS mostra a relevância de uma pesquisa para aprofundar a compreensão sobre a Reforma Agrária no momento atual, a partir da observação cuidadosa da relação
tensa entre ecologia, preservação e a reprodução de uma agricultura sustentável, sobretudo no ERJ onde existe uma grande incidência da sobreposição entre áreas reformadas nas cercanias de sítios de preservação ambiental com vários graus de controle
em termos da criação, pelo Estado, de unidades de Conservação (de simples APAS a REBIOS no outro extremo).
Fundamentalmente esse estudo pode nos conduzir a um novo conceito de reforma agrária com danos ambientais controlados (novidade no cenário nacional e nos planos do INCRA, uma vez que este instituto sempre atuou desconsiderando a relação
entre assentamentos humanos reformados e meio ambiente). Em nível jurídico, a pressão foi sendo intensificada na medida em
que globalmente a preservação da natureza transformava-se em uma pauta de compromisso internacional, no Brasil, em especial, a partir da Eco 92. Nesse sentido, a transição do Acampamento Sebastiao Lan II em assentamento poderá vir a ser considerada como uma experiência substantiva e paradigmática da qualidade e da profundidade desta suposta virada governamental
em território fluminense, nas suas práticas usuais de assentamento de trabalhadores sem-terra em “piores terras” ou em “terras
de borda de matas” preservadas, como a Mata Atlântica.
Outra questão que diz respeito aos órgãos públicos refere-se a pouca ou nenhuma correlação entre projetos e ações governamentais. O embate judicial entre INCRA e ICMBIO apresenta-se como sintoma de conflitos maiores em que as famílias de
agricultores familiares ficam reféns de uma estrutura estatal burocrática e cristalizada que, por meio da sua morosidade, impõem
aos movimentos sociais uma pluralidade de estratégias. Estratégias essas que também, ou consequentemente, refletem processos de defesa e sobrevivência, aparentemente contraditórios, insuficientes e eventualmente até nefastos, mas que permitem uma
produção agrícola já inserida no mercado.
Metodologicamente, a intenção é operar dentro da “observação participativa” e das técnicas de “cartografia social”,
sempre numa dinâmica em que a experiência social possa ser registrada e estimulada de modo coletivo e reafirmada por uma
estratégia de coleta de dados que se defina a partir de decisões quando em disputa. Vale reafirmar que ao longo dos mais de 19
anos de expectativa alguns ocupantes primários desistiram do esforço pessoal de sobreviver nessa longevidade ou em função da
demora de definição pelo Estado, ou porque não conseguiram manter os recursos particulares como condição de sustentação
de sua ocupação produtiva. O fato é que algumas vendas de lotes (ilegais por não pertencerem aos ocupantes, mas à União)
que foram realizadas ao longo desse percurso, resultaram em confronto até armado dentro da comunidade e na explicitação de
objetivos e interesses opostos. O que parece ter ocorrido de modo supostamente coordenado por um tipo de ator, já mencionado,
que é localmente identificado como os “milicianos evangélicos”, com propósitos individualistas e fechados dentro de seu grupo
em termos de aquisição de lotes; e demais partes interessadas em um loteamento urbano da área do assentamento, que se relaciona com a especulação imobiliária do território. Grupos que são denunciados por profissionais do INCRA por suas ameaças e,
eventualmente, por utilização do argumento da violência como forma de constrangimento.
Essa tensão pôde ser percebida nas idas a campo, em que se revelou com clareza quando encontramos a comunidade
na assembleia com presença da UFF e do INCRA reativa em relação ao PDS. Percebemos uma “Campanha Ideológica” encaminhada por representantes orgânicos do grupo evangélico num discurso compatível com o diálogo acadêmico contra o PDS,
como suposta forma de aprisionamento totalitário e antidemocrático que tornaria trabalhadores rurais em “escravos do Estado”
sem direitos, elaborada no sentido de desqualificar e gerar medos pessoais.
Entre Disputas e Leis: Caminhos e Contornos das Ações Judiciais
Por estar ao lado de uma Reserva Biológica, o acampamento Sebastião Lan II tem seus conflitos socioambientais ligados
a uma dinâmica judicial que ultrapassa o limite do seu espaço de organização. Seu traço mais marcante, para além das disputas
Uma vez que a comunidade acampada está situada em Silva Jardim torna-se, portanto, um segmento de eleitores deste município embora utilize prioritariamente
os recursos e equipamentos urbanos de Casimiro de Abreu, de onde está mais próxima.
11
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
50
possessórias que se deram ao longo das décadas de 80 e 90, que tinham como atores INCRA e supostos proprietários, apresenta-se nas disputas entre concepções de uso da terra, que envolvem a autarquia fundiária e o IBAMA.
A função social da terra não se resume a critérios técnicos de produtividade, mas reafirma um compromisso de preservação da força de trabalho e da natureza externa (MARÉS, 2003, p. 20). Nesse sentido, elementos de diferentes visões de mundo
passam a ser foco de disputas judicializadas, a partir de representações e mediações dos atores legitimados para exercício dos
papéis próprios do campo jurídico.
Durante os trabalhos que resultaram no Laudo Multidisciplinar em Conflito Socioambiental, o levantamento processual aponta
uma mudança nos sujeitos envolvidos nas demandas judiciais. Pereira (2008) organiza os dados relativos à mudança da seguinte
forma: década de 80, disputas entre Estado e Fazendeiros; década de 90, Estado e trabalhadores rurais sem-terra; a partir do ano
2000, IBAMA e INCRA. Por conta da participação do INCRA em qualquer dos polos das ações judiciais, todas se dão no âmbito
da Justiça Federal, mas apresentam diferentes objetos e partes.
O Ministério Público Federal promoveu Ação Civil Pública (ACP) no ano de 1998, processo número 980010661-8, com
o intuito de impedir que o INCRA promova assentamentos rurais no entorno da Rebio. As ações civis públicas visam recompor
danos morais e patrimoniais referentes a questões ambientais, bem como tutelar interesses coletivos e difusos, entre outras
hipóteses, tendo o Ministério Público e associações como legitimados para sua interposição. Utilizou-se, para tanto, a Resolução
CONAMA número 13/90, em seu artigo segundo, que estabelece a chamada zona tampão, em que qualquer atividade que possa
afetar a biota do entorno de até 10 quilômetros de Unidade de Conservação depende de licenciamento de órgão ambiental.
Pouco tempo depois a Associação dos Amigos do Rio São João – AMIRIO- interpõe ACP com o mesmo objeto. A primeira
reação do Judiciário – tanto da Justiça Estadual quanto Federal - é acatar de maneira liminar o pedido dos demandantes com base
na necessidade de prevenir um suposto dano irreparável ao equilíbrio da Rebio.
Durante o período que vai da propositura da ação e a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta- TAC- envolvendo o MPF, INCRA e IBAMA, as decisões foram no sentido de acatar os pedidos de impedir o INCRA de promover assentamentos na área de amortecimento. Em 23 de maio de 2005, o TAC finalmente prevê a criação de projetos na área na modalidade
Projeto de Desenvolvimento Sustentável- PDS. O documento estabelece prazos e obrigações para que o INCRA estruture o assentamento, levando em conta a situação específica do entorno de Rebio.
A partir da assinatura do TAC, com a devida homologação por parte do magistrado, a ação civil pública perde seu objeto
e é arquivada. A Resolução Conama 289/2001 passa a regulamentar a dinâmica do licenciamento ambiental, interferindo na
implantação do assentamento, visto que o tempo do mundo jurídico não acompanha o tempo da vida de camponeses. O licenciamento ambiental termina freando a implantação do assentamento rural e sua imposição sem uma construção dialógica tem
sofrido críticas dos movimentos sociais de luta pela terra (PEREIRA, 2008, p. 56).
O processo foi desarquivado algumas vezes pelo INCRA e pelo MPF, entretanto, nunca foi imposta qualquer penalidade
a nenhuma das partes em relação a descumprimento dos prazos estabelecidos no TAC. A assinatura do TAC não diminuiu os
enfrentamentos entre as duas autarquias, que continuaram em desacordo acerca do tratamento aos acampados e a política ambiental no entorno da reserva.
O processo é redistribuído para a 2ªVara Federal de Itaboraí em abril de 2011, tendo sido arquivado novamente nesse
mesmo período. Desde a assinatura do TAC, o caminho da resolução do conflito na região passa a ser resolvido pela lógica da
política e dos financiamentos públicos, sem, entretanto, avançar em termos de celeridade e participação dos sujeitos diretamente
tocados pelos imbróglios: os/as camponeses/as.
Considerações Finais (Impasses)
No caso em observação, emerge uma situação de embate entre as duas esferas governamentais gerando uma visão
ambiental conservacionista que à priori, sem verificar a experiência social em curso, não vislumbra uma adaptação da comunidade que ali resiste em um modo de vida que não agrida a vegetação nativa circundante. Paradoxalmente, aparece para os
pesquisadores a possibilidade de construção de um acerto harmônico, quando se vislumbra nas ações mais consensuadas pela
comunidade uma iniciativa no sentido de criar um projeto concreto de desenvolvimento sustentável no Lan II.
O local é de interesse especial para a reprodução e expansão da reserva, além de servir como proteção ao entorno degradado pelas queimadas e pelo pasto. A ocupação demonstra uma recuperação produtiva do solo castigado, além de não interferir
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
51
na reprodução do mico leão-dourado e da fauna da reserva. Existe até uma afirmação por parte de uma ONG internacional que
o plantio por parte dos acampados pode ter favorecido a reprodução e comunicação do mico com outros habitats.
Finalmente, vale destacar que também para a Academia, existe uma extraordinária vantagem neste estudo, que está
ligada à oportunidade de acompanhamento de uma experiência comunitária de luta no meio rural fluminense a nível teórico
metodológico ao longo de quase duas décadas, em que se pode verdadeiramente captar o movimento histórico humano do real.
Referências
BINSZTOK, J. Capitalismo autoritário e a questão ambiental no Vale do São João. In: CARNEIRO, M. J. et al. (orgs.) Campo aberto, o rural no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998.GEIGER, P. P. e MESQUITA, M. G. C. Estudos rurais
da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1956.
MADEIRA FILHO, W.; RIBEIRO, A. M. M.; PEREIRA, M. C. de B.; PRATA FILHO, D. de A. (coords.). Laudo multidisciplinar
em conflito sócio-ambiental: o caso da reforma agrária no entorno da Reserva Biológica de Poço das Antas. Série
Pesquisas nº 2. Niterói: PPGSD-UFF, 2007.
MARÉS, C. F. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2003.
MOTTA, M. (org.). Dicionário da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
PEREIRA, M. C. de B. Mediação de conflitos agrários e ambientais: um estudo sobre o Vale do São João no estado do
Rio de Janeiro. 2006. Tese (Doutorado) CPDA\UFRRJ, 2006.
PEREIRA, M. C. de B. Reforma Agrária e Meio Ambiente: desafios e possibilidades em torno de conflitos envolvendo assentamentos rurais/INCRA e reserva biológica/IBAMA. Floresta e Ambiente, v.14, n.2, 2008.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
52
TRANSFERÊNCIA DE RENDA: DIFICULDADES DE ACESSO DA POPULAÇÃO
TRADICIONAL AOS PROGRAMAS DO GOVERNO FEDERAL BRASILEIROPROGRAMAS BOLSA FAMÍLIA E BOLSA VERDE NA RESERVA EXTRATIVISTA
ARAPIXI-AMAZONAS (2010 - 2014)
Oliveira, Késsia Monteiro de1; Neto, Gerson Carvalho Nunes²; Santana, Elizângela Leão³ & Silveira, Leonardo Konrath da4
1.Universidade do Estado do Amazonas [email protected] 2. Universidade do Estado do Amazonas [email protected]
3.Universidade do Estado do Amazonas – UEA, [email protected]
4. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, [email protected]
Resumo
Este trabalho tem o objetivo de apresentar as facilidades e dificuldades com relação ao acesso aos Programas de Transferência
de Renda na RESEX Arapixi, no período de 2010 a 2014. Foi efetuado um estudo de campo em março de 2015, com a aplicação
de questionários a 41 famílias que residem na UC. O foco dos questionários foi efetuar um levantamento de dados sobre os
programas Bolsa Família e Bolsa Verde, buscando compreender como é o acesso destes pela população tradicional. Através da
análise dos questionários, constata-se que boa parte das famílias da RESEX acessam o programa Bolsa Família e uma menor
parte acessa o Programa Bolsa Verde. Fica evidente que estes programas influenciam positivamente a vida das famílias da UC, já
que houve aumento na produção. Os programas de transferência de renda não são a solução definitiva para a melhoria da renda
da população próxima a linha da pobreza, mas um caminho para a solução desta questão que afeta a tantas famílias brasileiras.
Palavras-chave: RESEX Arapixi, Unidade de Conservação, Bolsa Família, Bolsa Verde
Introdução
O sistema de proteção social brasileiro, com seus programas de transferência de renda, vem sendo um importante instrumento no combate a desigualdade social, para a garantia dos direitos humanos e também para conservação do meio ambiente.
Sob esses eixos temáticos, são encontrados dois programas sociais que vem recebendo um destaque privilegiado nas políticas
sociais e, também na sociedade brasileira, que são: Programa Bolsa Família (PBF) e o Programa Bolsa Verde (PBV) (BICHIR,
2010).
O Programa Bolsa Família é um dos programas de transferência de renda que concedeu maiores êxitos às famílias que
se encontram na faixa de pobreza e/ou extrema pobreza desde a sua implantação. Este programa foi criado no ano de 2004 no
governo de Luís Inácio Lula da Silva, com o intuito de diminuir a pobreza das famílias de baixa renda.
Para Zimmermann (2006), o Programa Bolsa Família é avaliado como um novo jeito de atacar um problema social que já é
conhecido há muito tempo: a fome. O autor ainda enfatiza que, comparado aos outros programas que existiram e/ou existem, com
o mesmo enfoque, o Bolsa Família ainda é o caminho mais rápido para beneficiar as classes sociais oprimidas. Este programa
tem como condicionalidades a permanência das crianças e adolescentes matriculados em estabelecimentos regulares de ensino, mantendo a sua frequência escolar, e também levando-as às unidades de saúde para o devido acompanhamento nutricional
junto a assistência social. Esses vínculos têm como estratégia garantir um melhoramento no acesso a direitos sociais para essa
faixa da população que é tão desfavorecida.
Segundo os dados do Programa Brasil Sem Miséria (MDS, 2015), 52,40% da população de Boca do Acre/AM é beneficiária do referido programa, o PBF se apresenta como um programa de transferência direta de renda com condicionalidades,
1
que beneficia famílias em situação de pobreza e extrema pobreza.
Outro programa fundamental entre os Programas de Proteção Social é o PBV, sendo também um programa do Governo
Federal, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente que faz parte do Plano Brasil sem Miséria. Este programa é voltado à
conservação ambiental, visando conceder incentivos financeiros aos pequenos proprietários e posseiros. O programa foi instiBeneficiário é a família que está inserida no CadÚnico, sistema informatizado do governo federal onde deve estar apta a participar dos programas de transferência
de renda.
1
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
53
tuído através da medida provisóriade n° 535 de 02 de junho de 2011, que trata de programa de apoio à conservação ambiental,
regulamentada através do Decreto Federal nº 7.572 de 28 de setembro de 2011. O PBV trata-se de um programa relativamente
“novo” voltado à conservação da biodiversidade. Este programa procura vincular a preservação da floresta com a erradicação da
pobreza, apesar de se tratar de um oneroso trabalho, para se cumprir este principal e ambicioso objetivo (MMA, 2015).
O foco central do PBV é manter uma ótima relação com o meio ambiente, preservando e, ao mesmo tempo, não deixando
de lado o desenvolvimento em seu meio rural, isso sem causar a degradação do meio ambiente e servindo como um incentivo
governamental para a agricultura familiar. Para ser incluso neste cadastro social é necessário que a família seja cadastrada no
Cadastro Único (CadÚnico)2 dos Programas Sociais do Governo Federal. Se a família já possui o cadastro no Programa Bolsa
Família, ou acessa outros programas de políticas públicas do Governo Federal, torna-se mais fácil fazer a inserção neste novo
programa, pois a família já está inclusa no CadÚnico. De maneira geral é possível informar que o foco principal desses programas sociais é o de fazer com que essas famílias ultrapassem a linha de inclusão social.
O objetivo geral deste trabalho é dar ênfase aos PBF e PBV no município de Boca do Acre/AM, tendo como foco central
a Reserva Extrativista Arapixi/AM, no período de 2010 à 2014. Será estudado e avaliado como está o acesso destes programas
aos beneficiários existentes dentro da RESEX Arapixi. Este trabalho tem como objetivos específicos: i) analisar a atuação dos
programas de transferência de renda BF e BV acessados pela população tradicional da RESEX Arapixi do ano de 2010 à 2014; ii)
avaliar o perfil socioeconômico dos beneficiários dos programas BF e BV na RESEX Arapixi durante o período proposto; e iii) evidenciar as principais dificuldades encontradas pela população tradicional da RESEX Arapixi para acessar aos programas BF e BV.
Metodologia
Este trabalho é de caráter dedutivo, buscando explorar a forma como a transferência de renda é distribuída, e as dificuldades de inserção da população nos principais programas sociais desenvolvidos pelo Governo Federal, no qual evidencia a realidade das comunidades que compoem a RESEX Arapixi assistidas pelos programas BF e BV. O tipo de pesquisa é bibliográfica,
respaldada em artigos científicos, monografias com temas afins, revistas eletrônicas e sites relacionados ao tema desenvolvido.
Em relação à coleta de dados, primou-se pela busca de informações primárias e secundárias. As famílias foram escolhidas de modo aleatório, de forma que foram entrevistadas as pessoas que se encontravam nas comunidades, iniciando a
pesquisa no órgão responsável pela Reserva Extrativista Arapixi em Boca do Acre/AM, o Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBio) para reunião dos dados sobre esta UC (Unidade de Conservação). Foram realizadas também com
o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Como auxílio na compreensão da análise dos dados, utilizou-se gráficos afim de dar maior clareza sobre o tema abordado. Posteriormente, na coleta de dados primários foi realizada uma pesquisa de campo com a aplicação de questionários
socioeconômicos em diversas comunidades da RESEX Arapixi, utilizando técnica de entrevistas para com os extrativistas.
Este trabalho foi desenvolvido em uma Unidade de Conservação (UC) Federal, a Reserva Extrativista Arapixi, localizada
no município de Boca do Acre/AM, a qual possui uma área aproximada de 134 mil hectares, dividida em quinze comunidades.
Nesta UC residem aproximadamente 700 pessoas, totalizando 129 famílias. A RESEX Arapixi foi criada através do Decreto Presidencial s/n de 21 de junho de 2006, como objetivo de promover a proteção dos recursos naturais e o uso sustentável dentro desta
UC. O período de estudo se dá entre os anos de 2010 e 2014.
Os questionários socioeconômicos foram aplicados a 41 famílias, que compõem uma amostra de 31,78% da população
existente no local, para avaliar como estão sendo distribuídas as políticas públicas para essas famílias. Também foi objetivo deste
estudo verificar qual o impacto causado diretamente por estes programas em suas rendas.
A Trajetória dos Programas de Transferência de Renda no Brasil e
Suas Finalidades
Segundo Zimmermann & Silva (2008), os anos 1980 foram marcados pela modernização dos sistemas de proteção social,
tendo como objetivo direto se basear na proteção pública do cidadão contra uma variedade de riscos originários de fatores conjunturais e suas relações sociais, econômicas e políticas.
O Cadastro Único para Programas Sociais ou CadÚnico é um sistema computadorizado usado pelo Governo Federal para coleta de dados e identificando a situação
socioeconômica das famílias de baixa renda, que são consideradas como aquelas com renda igual ou inferior a um salário mínimo por pessoa (per capita).
2
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
54
Em concordância, Frota (2006 apud ZIMMERMANN et al., 2009) diz que esse conceito sobre renda mínima no Brasil teve
um olhar válido no início dos anos noventa, quando o Projeto de Lei nº 80/19913 criado pelo senador Eduardo Suplicy acabou
sendo aprovado por unanimidade no Senado. O Projeto seria para o cidadão com mais de vinte e cinco anos de idade, e seria
um complemento no rendimento daqueles que se enquadrassem como abaixo de um valor determinado. De início seria uma
complementação de 30% da diferença entre a renda recebida e o mínimo estabelecido. Depois de tantos embates e divergências,
o projeto teve início a partir do ano de 1995 e alguns municípios brasileiros foram pioneiros no assunto como: Campinas, Ribeirão
Preto e Distrito Federal, sob a forma de Programas de Renda Mínima.
No final do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002), o Governo Federal ganhou simpatia com a implantação em cadeia nacional de alguns programas sociais, que renderam grandes resultados como: Bolsa Escola que era um programa federal que atuava em cadeia nacional sendo associado ao Ministério da Educação, sendo seguido pelo programa BolsaAlimentação, o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), o Brasil Jovem e o Vale-Gás, que por meio dos mesmos
conseguiu atender 12,6 milhões de brasileiros que se encontravam em situação de extrema pobreza até o ano de 2002 (FOLHA
DE SÃO PAULO, 2002).
O governo de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) foi marcado por haver um crescimento significativo no país, mantendo
uma economia estável, e um salto elevado na redução da desigualdade social, onde o governo deu predominância aos programas sociais. Já no inicio de 2003, devido a essa inovação no governo, foi implantado imediatamente o Fome Zero um programa
com abrangência nacional, visando o direito de alimentação de qualidade à população brasileira. Isso iria garantir cidadania às
populações que se encontravam em situações de vulnerabilidade à fome (ESTADÃO, 2008).
Já o governo de Dilma Rousseff (PORTAL BRASIL, 2011) procurou não só dar continuidade aos programas de proteção
social deixados pelo governo anterior - como implantar várias novas políticas públicas - tendo como objetivo garantir uma renda
mínima a todas as famílias, promovendo alívio imediato à situação de extrema pobreza, fazendo com que as famílias mais pobres sejam inseridas no Cadastro Único tornando-as conhecidas pelo Governo Federal, podendo assim ter acesso às políticas
públicas voltadas à essa classe social.
Campello (2013) relata que eles deram uma arrancada, recadastrando quase 3,6 milhões de famílias, reorganizando a
origem dos programas implantados a cada cidadão, inserindo milhões de novas famílias, chegando 12,8 milhões de famílias
recebendo ao longo de seu governo o benefício Bolsa Família.
Principais Programas Sociais do Governo Federal que se destacam no Amazonas
As implantações dos serviços de transferência de renda passaram a ganhar uma visibilidade mais abrangente entre o
governo e populações de baixa renda, principalmente as que eram voltadas para combater a fome e a miséria, pois para aqueles
que não tinham perspectivas na melhora de sua qualidade de vida, surgia um fio de esperança neste pacto contratual com o
estado. Buscou dar ênfase a algumas dessas políticas públicas destinadas à Região Norte, mais precisamente no Amazonas,
ganhando notoriedade no cenário político estadual, onde viabilizou uma inserção no Cadastro Único (CadÚnico) do Governo
Federal, fazendo os que não tinham nenhuma renda mínima, ter acesso a serviços públicos de qualidade.
O Programa Bolsa-Família (PBF) foi criado em 2004 e tornou-se o carro chefe dos programas sociais, com sua atuação em
benefício das famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, com renda mensal por pessoa de até R$ 77,00. As famílias participantes devem cumprir algumas condicionalidades como: a permanência escolar (mínima de 85%), bem como vacinações em dia.
De acordo com Ministério de Desenvolvimento Social (MDS, 2015), o programa conta com seis tipos de benefícios: I)
Benefício Básico: valor R$77,00 (famílias com renda mensal de até R$ 77,00 per capita); II) Benefício Variável de 0 a 15 anos: valor
R$ 35,00 (famílias que tenham crianças, adolescentes de até 15 anos); III e IV) Benefício Variável a Gestantes ou nutrizes: valor R$
35,00 (às grávidas ou lactantes com crianças menores de 0 a 6 meses); V) Benefício Variável Vinculada aos Adolescentes (BVJ):
valor R$ 42,00 (famílias com adolescentes entre 16 e 17 anos frequentando a escola); VI) Benefício para Superação da Extrema
Pobreza (BSP): pago às famílias, que mesmo recebendo os benefícios do PBF continuam em situação de pobreza extrema (renda
per capita mensal de até R$ 77,00).
3
De acordo com projeto de lei da câmara nº 2561, de 1992, pls 80/91 art. 1º é instituído o Programa de Garantia de Renda Mínima - PGRM, que beneficiará, sob a forma
do imposto de renda negativo, todas as pessoas residentesno país, maiores de vinte e cinco anos e que aufiram rendimentos brutos mensais inferiores a CR$45.000,00
(quarenta e cinco mil cruzeiros). (programa de garantia de renda mínima)
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
55
Bolsa Verde (PBV)
O Programa Bolsa Verde lançado em 2011 é um programa do Governo Federal coordenado pelo Ministério do Meio
Ambiente, totalmente voltado à conservação ambiental, visando incentivos financeiros aos proprietários e posseiros visando a
conservação dos ecossistemas, e a manutenção da sua área de forma sustentável. O pagamento deste programa é feito de forma
trimestral, sendo o valor distribuído de R$ 300,00 por família. As famílias que participam do programa tem como condicionalidade
estar em situação de extrema pobreza sendo inscrita no CadÚnico. Para permanência no programa devem cumprir o termo de
adesão que é apresentado a cada família no ato do cadastro.
Segundo Sawyer (2011), este é um programa que irá atender e cuidar de carências não só do presente como também das
futuras gerações, sendo que já é notável que o desenvolvimento de forma sustentável precisa ser aplicado de forma responsável.
O programa além de contribuir na preservação da biodiversidade, oferece uma contribuição na renda dos seus beneficiários. Por
tratar-se de um programa novo, hoje no município de Boca do Acre/AM ainda é pequena a quantidade de famílias com acesso ao
mesmo. Segundo o site do Ministério do Meio Ambiente, encontram-se apenas 147 famílias cadastradas (MMA, 2015).
Dificuldades e Desafios Enfrentados no Acesso aos Programas de
Transferência de Renda em Boca do Acre e na RESEX Arapixi
O município de Boca do Acre/AM- localizado na mesorregião sul amazonense, fica a 950 km de distância da capital
Manaus, com uma população estimada segundo dados do IBGE (2015), de 33.148 mil habitantes, tem como principal atividade
econômica, a pecuária bovina.
Segundo os dados do Plano Brasil Sem Miséria (MDS, 2015), o município de Boca do Acre/AM no final de 2014 possuia
6.966 famílias registradas no CadÚnico, sendo 4.647 famílias beneficiadas somente pelo PBF, num percentual de 52,40% da
população do município. Já em relação ao PBV são poucas as famílias cadastradas que tem acesso ao programa; até dezembro
de 2014 eram apenas 147 famílias encontradas em todo o município de Boca do Acre/AM, das quais apenas 28 famílias são de
beneficiários da RESEX Arapixi.
O atual Prefeito de Boca do Acre/AM, Antônio Iran de Souza Lima, no dia 24 de dezembro de 2014 assinou a Lei nº 41
criando o Bolsa Família na esfera municipal, com a mesma modalidade do PBF federal, tendo como beneficiários crianças desde
0 a 12 anos como jovens de até 15 anos de idade. O valor da contribuição é de R$ 40,00 por beneficiário, destinado às famílias do
município que tenham renda de R$ 100,00 por pessoa, podendo ser beneficiadas apenas duas pessoas por família, tendo como
condicionalidade que os mesmos tenham frequência escolar de no mínimo 75% e acompanhamento de saúde regular. O público
alvo deste programa são aqueles que mesmo recebendo auxílio governamental ainda se encontram na margem de pobreza ou
extrema pobreza.
De acordo com o gestor da RESEX Arapixi, esta UC tem um papel fundamental para a preservação dos ecossistemas e
conservação do meio ambiente, buscando o desenvolvimento de maneira sustentável da população tradicional residente no local. Uma grande preocupação para UC é o desmatamento causado pela extração madeireira ilegal e a caça predatória. Apesar
de muitas dificuldades na concretização de ações voltadas a gestão da RESEX, a equipe gestora da UC permanece numa busca
contínua pela melhoria na qualidade de vida de seus beneficiários. Segundo Duarte & Melo apud Ravallion et al. (2001 p.):
as estratégias de enfrentamento são orientadas para atenuar o impacto do risco ao qual as pessoas ou comunidades pobres estão expostas , uma vez que a situação de pobreza já existe. As
estratégias de suavização e prenveção, por sua vez , são adotadas para dimunuir os riscos futuros.
É notório que os programas de transferência de renda tem uma relevância significativa para essas famílias tradicionais
que hoje se encontram no interior da floresta. Conforme Dilma Rousseff afirmou, no seu discurso em Manaus
“o Bolsa Verde por exemplo seria uma via de mão dupla, pois é uma maneira do Governo Federal
ajudar os extrativistas melhorando suas vidas e sua renda e em troca eles cuidam na conservação
do meio ambiente, sendo responsabilidade de todos a preservação do nosso meio ambiente, para
o futuro dos nossos filhos” (PORTAL BRASIL, 2011).
A problematização dos programas, busca saber se é a falta de informação que não chega até eles devido a longitude da
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
56
cidade, ou se é descaso das secretarias responsáveis pela execução dos programas. Pois assim poderemos saber os efeitos
positivos desses programas na vida de cada família beneficiada, analisando assim o impacto causado na renda destas famílias.
Programas de Transferência de Renda na RESEX Arapixi
A principal característica dos programas sociais do Governo Federal é encontrar maneiras de garantir a efetivação dos
direitos humanos, culturais, sociais e econômicos, buscando meios de minimizar a fome e a desigualdade para essas famílias
que se encontram em situação de vulnerabilidade (ZIMMERMANN, 2006).
De acordo com o questionário socioeconômico aplicado a 41 famílias, a qual compõe uma amostra de 31,78% do total
de famílias da RESEX Arapixi, a Figura 1 apresenta que 32 famílias são beneficiárias de pelo menos um dos dois principais programas (BF e BV) de transferência de renda do Governo Federal identificados nessa área, e apenas 9 famílias não acessam a
nenhum destes. Um número bem relevante quando comparado às famílias cadastradas na zona urbana do município.
Figura 1. Quantidade de famílias que acessam aos Programas BF/BV. Fonte: 41 pessoas entrevistadas,
esses dados foram obtidos em estudo de campo/2015 - Estimativas elaboradas pelos autores.
Por se tratar de um Programa relativamente novo, ou seja, de recente implementação, o PBV, em comparação com o
PBF, na Figura 2, mostra ainda um baixo percentual de famílias que acessam este, apresentando apenas 17,07% de famílias que
acessam o PBVcontra 60,98% que acessam o PBF, o que se alega é que o acesso deste programa as famílias ainda está sendo
efetuado de forma lenta, por parte dos responsáveis pelo cadastramento.
Figura 2. Quantidade de famílias por Programa. Fonte: 41 pessoas entrevistadas, esses dados foram obtidos em
estudo de campo/2015 - Estimativas elaboradas pelos autores.
Avaliação do Perfil Socioeconômico dos Beneficiários dos Programas BF e
BV na RESEX Arapixi.
Apesar da RESEX Arapixi estar localizada a aproximadamente 40 km de distância da sede do município de Boca do ‘’Acre
e, considerando também a falta de infraestrutura das escolas e do transporte até estas e, ainda, todas a qualidades necessárias
para que haja um bom desempenho educacional.
A figura 3 aponta que a RESEX Arapixi apresenta um péssimo desempenho na educação dos chefes de família.Conforme
constatou na pequisa os chefes de família ainda possuem baixa educação, onde 53,65% dos chefes de família entrevistados
possuem somente o ensino fundamental.Um dos fatores que afetam diretamente essa questão é que os chefes de família são os
responsáveis pela manutenção dos roçados e áreas de plantio, sendo esta atividade estritamente diurna e, ainda, há somente
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
57
uma escola em toda a RESEX Arapixi que apresenta aulas a noite.
Outro fator que determina essa questão é que muitas vezes do ano em questão não apresentar ensino médio em nenhuma
das escolas da RESEX, necessitando assim os alunos precisarem se deslocar para a sede do município, a fim de continuarem
seus estudos ou então perdem o ano escolar. Devido a essa dificuldade tão comum nas diversas comunidades da UC, muitos
preferem parar seus estudos, muitas vezes nem concluindo o ensino fundamental, já que não podem de forma nenhuma se ausentar de sua área por um tempo maior. A questão do estudo torna-se ainda mais complicado, quando verificamos que a educação de forma geral pouco contribui para as atividades em si que são desenvolvidas na RESEX.
Figura 3. Grau de Escolaridade dos Chefes de Famílias. Fonte: 41 pessoas entrevistadas, esses dados foram
obtidos em estudo de campo/2015 - Estimativas elaboradas pelos autores.
Apesar da pequena amostra exposta pelos questionários,torna-se visível que mais de 80% das famílias tradicionais não
chega a tirar mensalmente sequer, um salário mínimo (Figura 4). Essa questão inicialmente apresenta uma renda muito baixa,
mas precisamos levar em consideração que a população tradicional da RESEX Arapixi não paga impostos em sua maior parte, já
que não pagam o Imposto Territorial Rural (ITR) assim como não pagam energia elétrica e nem água, também não pagam taxas
públicas como as de iluminação pública e limpeza urbana.
Outro fator que deve ser levado em consideração é que parte de sua alimentação é proveniente da própria RESEX, seja
através de carne de caça, da pesca ou criações de pequenos animais (geralmente galinha, porco e carneiro), sem contar as
suas próprias plantações, onde se produz macaxeira para produção de farinha, feijão de praia, coco, cana, melancia e jerimum.
Quando analisamos estes fatores, que demonstram que seus rendimentos são mais do que suficientes para a manutenção
dos seus meios de vida, já que não possuem ou evitam diversos gastos tão comuns no meio urbano, percebe-se que mesmo
possuindo uma renda considerada baixa, esta renda atende bem as suas necessidades mais básicas. Talvez seja possível estabelecer uma relação entre seus baixos rendimentos e a falta de necessidade de maiores rendimentos, já que a maior parte de
suas necessidades básicas são devidamente supridas. Outro fato ainda preponderante é que estamos analisando uma população tradicional que possui costumes totalmente diferentes daqueles existentes no meio urbano, principalmente daqueles de
grandes centros, desta forma receber menos um salário mínimo mensal na RESEX Arapixi representa uma problemática menor
do que receber dois salários mínimos em um centro urbano de maiores proporções, tal como uma capital.
A força de trabalho disponível também pode justificar os baixos rendimentos, já que a maior parte dos trabalhadores são
compostos de pessoas da própria família. Mendonça (2010) diz que, a divisão do trabalho para a população tradicional começa
na adolescência principalmente com os jovens do sexo masculino, que usam a força braçal para cuidar dos roçados, da coleta
de castanha (de onde a maioria das famílias da RESEX Arapixi retira boa parte do seu sustento), pescar.
Em relação as mulheres por sua vez, acabam tendo sua participação nas atividades que lhe são cabíveis, embora muitas
vezes acabam também auxiliando no trabalho braçal. Conforme informação dos gestores da RESEX Arapixi, verifica-se que os
jovens tendem a casar “cedo”, muitas vezes antes de completar vinte anos, o que ocasiona uma fragmentação na mão de obra familiar disponível e, assim ,diminuindo os seus rendimentos, já que passa então a existir uma nova família, com novos gastos, onde
a nova família focará sua atenção para sua produção, não mais fazendo parte da produção da família da qual são provenientes.
Contando ainda que essas famílias estão expostas a diversos tipos de desastres naturais,tais como problemas com a
perda de suas plantações devido as cheias dos rios, assim como a perda de suas moradias devido ao “derretimento” dos barrancos, sem levar em consideração a problemática da saúde e questões sanitárias do uso d’água e da própria preparação dos
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
58
alimentos. Gallo (2012) diz que, a pobreza e as condições precárias de vida estão em todos os lugares do mundo, e que devido
as famílias que se encontram vulneráveis em suas necessidades mais básicas, fiquem mais suscetíveis a doenças e a mortes
precoces. Diversas doenças relacionadas a má alimentação podendo levar a desnutrição crônica, acarretando assim em sérios
e drásticos problemas de saúde, principalmente no meio rural.
Figura 4. Renda Familiar dos Extrativistas da RESEX Arapixi. Fonte: 41 pessoas entrevistadas,
esses dados foram obtidos em estudo de campo/2015 - Estimativas elaboradas pelos autores.
Na Figura 5, verifica-se que 66% das famílias entrevistadas afirmam que houve um crescimento em sua produção após a
sua inclusão nos programas sociais analisados. Entre algumas das justificativas para este fato, alguns entrevistados alegam que
o benefício proveniente destes programas possibilita mais tempo para cuidar de suas plantações. Outros afirmam que como sabem que o beneficio é certo, seja este mensal ou trimestral, focam em outras atividades para buscar melhorar ainda mais a vida
de sua família. Somente 12% das famílias entrevistadas afirmam que não verificam qualquer tipo de aumento na sua produção.
Figura 5. Quantitativo na Produção da RESEX. Fonte: 41 pessoas entrevistadas, esses dados foram
obtidos em estudo de campo/2015 - Estimativas elaboradas pelos autores.
Evidenciando as principais dificuldades encontradas pela população tradicional da RESEX Arapixi para acessar aos
Programas BF e BV.
Embora mais de 60,98% (vide Figura 2) das famílias desta UC está inserida nos programas sociais do Governo Federal,
ainda tem uma pequena parcela da população que não tem acesso a nenhum dos programas ou apenas um dos Programas
como no caso do BF que tem mais anos de atuação. Quase todas as famílias hoje dentro da RESEX tem acesso ao PBF, já o PBV
segundo dados do MMA (2015) são apenas 28 famílias cadastradas de 2011 até 2014. Assim sendo, em 3 anos de execução do
Programa ainda existem deficiências, pois de acordo com Decreto nº 7572 Art.5º parágrafo I, apresenta que as famílias que se
encotram em situação de pobreza ou/ extrema pobreza e estando dentro de Reservas Extrativistas Federais serão beneficiárias
devido a estes desenvolverem atividades de conservação ambiental. Já no Art. 6, §1º diz que as famílias que possuem o PBF são
priorizadas no momento de sua adesão.
São inúmeras as dificuldades para acessar os programas (figura 6). A distância foi a dificuldade mais recorrente entre as
demais, com um total de 46,34% de famílias entrevistadas relatam que a distância entre a RESEX e o local destinado para atender
as questões relacionadas aos Programas é um fator complicador. A falta de informação foi a segunda dificuldade elencada, com
36,58% das famílias entrevistadas apontando essa questão, pois como a maioria das famílias não possui rádio, não há energia
elétrica (somente através de geradores, que não passam mais de duas horas ligados ao dia), o que os deixa ainda mais isolados
da sede do município de Boca do Acre/AM. Já 14,63% afirmam que tanto a distância quanto a falta de informação os prejudica
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
59
na inserção e acesso aos Programas, já que o custo é alto para que saiam de suas residências e se desloquem até a área urbana e ainda, muitos não tem local onde ficar e/ou tempo de atendimento é demorado, pois são muitas pessoas à procura de
esclarecimentos e/ou solução para seus problemas no acesso aos programas havendo poucas pessoas disponíveis para efetuar
o atendimento.
Figura 6. Dificuldades de Acesso aos Programas. Fonte: 41 pessoas entrevistadas, esses dados
foram obtidos em estudo de campo/2015 - Estimativas elaboradas pelos autores.
Considerações Finais
Através do trabalho desenvolvido verifica-se que o Governo Federal via seus Programas de Transferência de Renda tem
buscado resgatar uma parte da população brasileira para situá-la acima da linha de pobreza. Entre estes Programas tanto o Bolsa
Família quanto o Bolsa Verde são de vital importância para este “resgate” conforme é possível constatar através dos dados aqui
apresentados anteriormente. Para uma Unidade de Conservação Federal, como a Reserva Extrativista Arapixi, estes Programas
tem sido um diferencial para a melhoria da qualidade de vida de seus moradores. Por se tratar de uma UC de Uso Sustentável,
um Programa como o Bolsa Verde, tem um grande potencial para o desenvolvimento sustentável, já que busca casar a conservação do meio ambiente com melhoria da qualidade de vida de seus beneficiários (pagamento por serviços ambientais), os quais
tanto se vem falando nos últimos anos.
Programas que relacionam não somente a conservação, mas também a educação e saúde, como no caso das condicionalidades do Programa Bolsa Família, garantem que parte da população antes tão esquecida possa agora contar com serviços de
melhor qualidade, e ainda, possibilita que o Governo Federal possa melhor conhecer onde estão as principais mazelas e lacunas
de parte de suas Políticas Públicas.
A Reserva Extrativista Arapixi embora apresente uma situação mais complicada em relação a educação, pois muitas
vezes não é possível para o chefe de família se dedicar para completar seus estudos, ela também apresenta um bom cenário
para as futuras gerações, pois conforme vários comentários destes mesmos chefes de família, hoje não permitem que seus filhos
abandonem seus estudos. Em parte isso pode estar relacionado às condicionalidades do Programa Bolsa Família, mas também
fica claro que estes pais não querem que seus filhos levem o mesmo tipo de vida difícil.
Finalmente os Programas de Transferência de Renda não são a solução definitiva para a melhoria da renda da população
mais pobre ou próxima da linha da pobreza, mas um caminho para uma questão que afeta a tantas famílias brasileiras.
Referências
BICHIR, R. M. O Bolsa Família na Berlinda: Os desafios atuais dos Programas de Transferencia de renda, 2010, disponível em: http://www.scielo.br/pdf/nec/n87/a07n87. Acesso em 19 abril 2015.
BRASIL. Decreto Federal nº 7.572 de 28 de Setembro de 2011, sob medida provisórianº 535 de 02 de Junho de 2011.Programa de
Apoio a Conservação Ambiental –Bolsa Verde, disponível em: http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEC%207.572-2011?OpenDocument. Acesso em 02 abril 2015.
BOCA DO ACRE. Lei Municipal nº 41, de dezembro de 2014. Cria o Programa Bolsa Família Municipal e dá outras
providências. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/82772497/aam-30-12-2014-pg-7. Acesso em 07 fevereiro 2015.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
60
CAMPELLO, T. Entrevista à revista Teoria e Debate, editada pela Fundação Perseu Abramo, do PT, disponível em:
http://josiasdesouza.blogo sfera.uol.com.br/2013/05/31/nao-tinha-programa-de-transferencia-de-renda-sob-fhc-declara-a-ministra-do-bolsa-familia/. Acesso em 11 abril 2015.
DUARTE, G.B.; MELO, R.M.S.M. Impacto do Programa Bolsa Família sobre a Frequência Escolar: o caso da agricultura familiar
no Nordeste do Brasil. Rev. Econ. Sociol. Rural, v. 48, n.3, pp. 635-657, 2001.
PORTAL BRASIL. Bolsa Verde é um estímulo para preservação ambiental, avalia líder extrativista, disponível em:
<www.brasil.gov.br/meio-ambiente/2011/09/bolsa-verde-e-um-estimulo-para-preservacao-ambiental-avalia-lider-extrativista.
Acesso em 10 março 2015.
GUIMARÃES, E. FHC só lançou programas sociais a 4 meses da eleição de 2002. Folha de São Paulo. 26 de maio de 2002,
disponível
em
http://www.blogdacidadania.com.br/2013/02/fhc-so-lancou-programas-sociais-a-4-meses-da-eleicao-de-2002/.
Acesso em 08 abril 2015.
FROTA, M. M. R.; ZIMMERMANN, C. R. O Brasil e as experiências internacionais do Programa de Transferência de
Renda. 2009 Disponível em: http://www.sinteseeventos.com.br/bien/pt/papers/mainaramizziOBrasileasexperienciasinternacionaisdeProgramas.pdf. Acesso em 07 abril 2015.
GALLO, E. et al. Saúde e economia verde: desafios para o desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza. Ciência &
Saúde Coletiva, v. 17, n. 6, p. 457-1468, 2012.
IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 2015. Disponível em:
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.
php?codmun=130070. Acesso em 30 abril 2015.
MENDONÇA, F. C. Plano de Manejo Participativo da Reserva Extrativista Arapixi, Boca do Acre/AM, Junho de 2010.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL. Informações sobre o Cadastro Único (CadÚnico). Disponível em http://
www.mds.gov.br/bolsafamilia/cadastrounico. Acesso em 14 abril 2015.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL (MDS). Programa Bolsa Família. Disponível em: http://www.mds.gov.br/
bolsafamilia. Acesso em 15 abril 2015.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL. Plano Brasil Sem Miséria no seu município. 2015. Disponível em: http://
aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/ferramentas/nucleo/grupo.php?id_grupo=69. Acesso em 19 abril 2015.
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE (MMA). Programa Bolsa Verde. Disponível em: http://www.mma.gov.br/index.php/desenvolvimento-rural/bolsa-verde. Acesso em 15 abril 2015.
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE (MMA). Relatório Bolsa Verde. Disponível em: http://www.mma.gov.br/desenvolvimentorural/bolsa-verde/item/9141. Acesso em 15 abril 2015.
PROGRAMA DE GARANTIA DE RENDA MÍNIMA. Projetos. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senadores/Senador/esuplicy/Programa/projeto_lei.asp. Acesso em 08 abril 2015.
SAWYER, D. Economia Verde “Desafios e oportunidades” - Economia verde e/ ou desenvolvimento sustentável? 2011.
Disponível em: http://www.conservacao.org/publicacoes/files/PoliticaAmbiental08sawyer.pdf. Acesso em: 15 abril 2015.
ZIMMERMANN, C. R. Os programas Sociais sob a ótica dos direitos Humanos: o Caso do BolsaFamilia no Governo de Lula no
Brasil. Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos, v.4, n.3, p. 144-159, 2006.
ZIMMERMANN, C. R.; SILVA,M. da C. As experiências internacionais de renda mínima na redução da pobreza. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/082/82zimmermann.htm. Acesso em 07 abril 2015.
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
61
02
1.
Sistemas de Gestão e
Governança
A proposta deste eixo temático é abrir
espaços para a discussão sobre a
diversidade de formas de tomada de
decisão e de controle social sobre a
ocupação/destinação dos espaços e os usos
dos recursos naturais comuns nas unidades
de conservação e demais áreas protegidas
e conservadas; arranjos institucionais,
equidade na participação em diferentes
níveis e eficiência no seu funcionamento.
ÁREAS PROTEGIDAS E SEUS BENEFÍCIOS PARA O BEM-ESTAR
João, Cristina Gerber1; Mattos, Cristiane Passos2 & Irving, Marta de Azevedo3
1.Pesquisadora Dra. do Programa Eicos de Pós-graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social e do PPG em Políticas
Públicas, Estratégias e Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e-mail: [email protected]
2. Professora MS Geografia do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Sukow da Fonseca. 3. Profa. Dra. do PPG Eicos em
Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (IP) e do PPG em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (IE) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Resumo
A criação de áreas protegidas vem se tornando uma forte ferramenta na busca pela conservação da natureza. No ano de 2002 o
Congresso Nacional aprovou a lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC – que dá continuidade
à tendência de resguardar parte da biodiversidade, como forma de garantir sua própria sobrevivência. O benefício gerado pela
biodiversidade preservada pode ser considerado um fluxo de bem-estar não quantificável. O presente trabalho tem como objetivo
principal interpretar esse significado que é gerado pelo convívio com o ambiente natural, segundo a percepção dos usuários
do PARNASO, utilizando-se de metodologias qualitativas de pesquisa. Com base nos resultados alcançados observa-se que o
trabalho vem oportunizando a vivencia de um processo participativo de gestão de uma unidade de conservação e a imersão em
diálogos com atores sociais, que constituem suas vidas dentro ou em áreas de influência de áreas protegidas de proteção integral.
Palavras-chave: Áreas Protegidas, Gestão, Bem-Estar, Parque Nacional da Serra dos Órgãos - PARNASO
Introdução
A criação de espaços naturais especialmente protegidos vem se tornando uma forte ferramenta na busca pela garantia
da manutenção dos serviços ambientais necessários à sobrevivência humana (SCHERL, et al., 2006), uma vez que provê serviços
essenciais à manutenção das necessidades básicas da sociedade, como regulação do ciclo de chuvas, fornecimento de água,
ciclagem de nutrientes e regulação do clima, dentre outros (COSTANZA, 2000).
No que toca ao arcabouço legal e regulatório do uso do ambiente natural no Brasil, a Carta Magna de 1988 trouxe, em
seu artigo 255, o ambiente sadio como um direito fundamental e eleva-o a categoria de “garantia coletiva” ao prescrever que um
ambiente equilibrado é direito de todos, o que vem ao encontro das atuais diretrizes do Conselho de Direitos Humanos da ONU
(BOBBIO, 1992) e é interpretado pelo filósofo como a terceira geração dos direitos fundamentais da pessoa humana, pois tem
clara a necessidade de que o ambiente saudável é vital para a manutenção da vida humana.
Com a necessidade de regulamentar esta parte da Constituição Federal, nos anos de 2000 e 2002 o Congresso Nacional
aprovou a lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC – (BRASIL, 2000, 2002), que dá continuidade
à tendência mundial de resguardar parte da biodiversidade, como forma de garantir sua própria sobrevivência. Além disso,
a existência de áreas protegidas proporciona qualidade de vida, bem-estar e saúde a uma importante parcela da população,
pois o ambiente natural, além do escopo mercadológico, onde exerce a função de fornecer serviços difusos e elementares à
nossa sobrevivência, gera um fluxo de bem-estar não quantificável e, muitas e diversas vezes, não perceptível ao ser humano,
principalmente,pela sua forma de gestão, que aparta do ser humano da natureza.
A gestão destes espaços ainda gera conflitos com a sociedade, sejam por questões culturais, pelo sentimento de pertencer a um determinado local ou pela disputa territorial. Fato é que não se podem dissociar questões ambientais e socioeconômicas, pois que são interligadas e inseparáveis.
No sentido aqui exposto, o presente trabalho, que buscou interpretar os benefícios gerados pelo ambiente natural em
termos de seus efeitos para a geração de bem-estar, segundo a percepção de seus usuários, se constituiu em um estudo de caso
com atores sociais existentes na área de influência do Parque Nacional da Serra dos Órgãos (RJ), em relação a sua qualidade de
vida e bem-estar providos pelo contato com a natureza.
02: Sistemas de Gestão e Governança
65
Observa-se, a partir da segunda década do século XX, que as atividades humanas cresceram com diferentes impactos na
natureza. A expansão populacional que se registra hoje, aliada ao modelo econômico de crescimento contínuo, tem sido apontada como a principal causa da crescente pressão da sociedade sobre os recursos naturais (DALY, 1973). Entretanto homem e
natureza fazem parte do mesmo habitat e não existe sentido na manutenção de numa natureza exuberante sem a inserção social,
pois este lar, no qual todos os seres estão predestinados e do qual depende a existência da humanidade, está em crise. A terra,
como habitat natural, está ameaçada por uma enormidade de fardos e agressões crônicas (MOSCOVICI, 2007).
No sentido de ratificar o aqui exposto, pode-se afirmar que a partir da última década do século passado, estudos vêm
comprovando a inexorável conexão entre homem/natureza. Kaplan, (1992), apresenta uma pesquisa demonstrando que a vida
em contato com natureza contribui substancialmente para a redução da fadiga mental. A partir desse trabalho, outros estudos,
pesquisas e levantamentos começam a aparecer e a comprovar a importância para o ser humano sua relação com o ambiente
natural, aumentando a importância do significado existente entre bem-estar e saúde.
Ecologicamente, muitas funções ecossistêmicas estão envolvidas em um véu de incertezas e nem mesmo renomados
cientistas têm respostas a muitas das nossas perguntas. A existência de unidades de conservação torna-se vital para que se
possa manter um estoque de biodiversidade tal, que permita que a humanidade e a vida na terra possam, com certa margem de
segurança, evitar adversidades potenciais no futuro, ou até mesmo, permitir que haja futuro.
Através da criação de espaços protegidos como depositários de biodiversidade, a sociedade busca garantir a manutenção de uma escala sustentável de recursos naturais, geradoras de serviços difusos, de bem-estar e de qualidade de vida.
O Estado Brasileiro buscando sanar ou mesmo reduzir estes conflitos, vem implantando políticas públicas voltadas para
a manutenção dos bens e serviços ecossistêmicos, com instrumentos que, se bem conduzidos, podem reduzir a tensão existente
entre o nosso modelo de desenvolvimento, estimular a conservação de recursos naturais, proporcionar o bem-estar, a qualidade
de vida, a saúde e a liberdade da população.
Dentro deste panorama, o presente projeto de pesquisa, que pretende interpretar o significado subjetivo do bem-estar
das comunidades locais na área de influência do Parque Nacional da Serra dos órgãos –PARNASO, tem, como pano de fundo, a
convicção de que a proteção da biodiversidade pelo seu valor intrínseco, além de manter os processos ecológicos e sinecológicos, são geradores de bem-estar para as populações que com ela, de alguma forma, interagem.
Nessa área objeto de estudo, o ecoturismo vem despontando como uma potencialidade para o turismo que emerge como
um integrador do desenvolvimento socioeconômico, conservação da biodiversidade e valorização cultural, segundo novas bases
de planejamento, o que vem sendo reforçado pelo fato de o Estado do Rio de Janeiro abrigar uma importante extensão de Mata
Atlântica, reconhecida como “hostspot” em biodiversidade no plano global e ser um dos estados da federação com maior número
de áreas protegidas (FRAGELLI et al., 2013).
Assim, um parque representa não apenas uma área protegida, mas as construções sociais e os códigos culturais a ele
associados que, por sua vez, interferem diretamente no delineamento deste lugar turístico e na experiência que ele pode proporcionar aos visitantes que ali decidem chegar. E, sendo assim, os parques, embora áreas de natureza preservada expressem
a história e a cultura do lugar, antes de serem “lugares turísticos”. Nesse sentido, pode-se questionar: qual o significado de uma
área protegida para o bem-estar das populações locais na sua própria percepção?
Bem Estar e Ecossistemas
O conceito primordial de bem-estar veio da economia, com os estudos de Jeremy Bentham (1789), e estava eminentemente ligado à noção de utilidade e suas necessidades materiais, como alimento, trabalho, acesso a água potável, saúde, educação segurança e lazer.
Mesmo no seu sentido econômico, John Stuart Mill (1861) discutia a necessidade de manutenção de um estoque de capital natural que fosse compatível com as necessidades da sociedade em meio a revolução industrial inglesa. O cientista social
defendia a conservação do ambiente como forma de preservação das suas principais funções e manutenção do bem-estar social,
no sentido de que aquela lhe provia suas necessidades básicas, como água, energia, ar, terra.
Arthur Cecil Pigou (1925) trouxe à luz o efeito das externalidades no bem-estar dos indivíduos. Para Pigou (1925 op. cit.),
os recursos naturais não são adequadamente preservados, pois suas funções não são devidamente inseridas nos mecanismos
de mercado.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
66
Com o passar dos tempos, o conceito se expandiu para outras áreas como saúde e psicossociologia e internalizou suas
subjetividades. Entretanto, não deixou de ser um conceito ligado a condição humana, e por esta razão, está intrinsecamente
conectado à percepção que uma determinada sociedade tem de bem-estar em um determinado momento e sob determinadas
condições.
Para Minayo (2000) a percepção de bem-estar está relacionada e é dependente de aspectos históricos, culturais e subjetivos, além disso, esta percepção só pode fazer parte de uma determinada comunidade se ela usufrui o que percebe ser um
determinado nível de qualidade de vida, o que está intimamente relacionado ao grau de satisfação com a sua existência, tanto
material, quanto imaterial.
Assim, a ideia central passa a ser a de que o bem-estar de cada pessoa lhe é uma característica intrínseca e individual
e está ligada aos seus aspectos mentais e subjetivos. Significado esse que não está ligado unicamente às possibilidades financeiras de um indivíduo, mas também a outros aspectos como noções de justiça social, pertencimento, elos familiares, ciclo de
amizades, contato com o ambiente natural, etc.
O bem-estar, no seu sentido mais amplo, tira o foco do incremento de renda como o objetivo maior da sociedade. A renda
passa a ser o meio para a obtenção de felicidade e satisfação (BENTHAN, 1789 apud SEN, 2000). Subjetivamente, pode-se afirmar que o bem-estar é o estudo científico do significado da felicidade: o que a causa, o que a destrói e quem a tem.
A partir do crescimento do movimento ambientalista na década de 1970, a comunidade científica passa a questionar o
modelo de bem-estar predatório e agrega, à noção de conforto, bem-estar e qualidade de vida, a perspectiva da ecologia humana - que trata do ambiente biogeoquímico, no qual vivem o indivíduo e a população; e o conjunto das relações que os seres
humanos estabelecem entre si e com a própria natureza. Esse conceito questiona as condições reais e universais de manutenção
de um padrão de qualidade de vida fundado no consumismo e na exploração da natureza que, pelo seu elevado grau predatório,
desdenha a situação das gerações futuras, desconhece a cumplicidade de toda a biosfera e não é replicável
Na literatura médica, o termo bem-estar parece não ter um único significado. Gill & Feinstein (1994), defendem que a
percepção de bem-estar relaciona-se com a qualidade de vida e não inclui somente fatores relacionados à saúde, tais como bemestar físico, funcional, emocional, mental e econômico, mas também elementos não relacionados à saúde como trabalho, família,
amigos e circunstâncias de vida além do sentimento confortável advindo do contato com a natureza.
Assim, a comunidade cientifica da área da saúde, principalmente a saúde social, reconhece a importância da manutenção de espaços protegidos a fim de proporcionar o fortalecimento da saúde humana. Além disso, nos mostram que a vida em
contato com a natureza reduz a desigualdade da saúde, independente da classe social (MITCHELL; POPHAN, 2008).
Maas et. al., 2006 mostram a conexão linear e negativa em relação a taxa de mortalidade existente entre pessoas da terceira idade e o ambiente natural, quando em comparação com aquelas que vivem em áreas urbanas sob stress. O convívio com
áreas naturais tem sido considerado como “reparador” tanto do ponto de vista psicológico como fisiológico (HARTIG et. al, 2003).
Para Herman Daly (1968), o foco da analise socioeconômico-ambiental deve ser alterado da percepção mercadológica
para uma calcada em princípios éticos e morais, levando-se em conta que os serviços gerados pela natureza podem não proporcionar um aumento da renda diretamente, mas podem evitar custos quando provêm à sociedade suas necessidades elementares.
Daly (1973 op. cit) descreve o uso dos serviços ecossistêmicos como “a satisfação experimentada pelo alcance de nossos desejos ou necessidades”. Isso só é possível pela manutenção do estoque de capital natural.
Além da via de mercado, levantamentos feitos em estados americanos (THE TRUST FOR PUBLIC LAND, 2010) mostram
que comunidades que participam da gestão das áreas protegidas de seus lugares apresentam um sentimento de pertencimento
aguçado, o que contribui para o fortalecimento da coesão e da inserção social. Áreas protegidas são partes indissociáveis de
suas vidas diárias.
Se áreas protegidas forem geridas em harmonia com a sociedade local, elas virão a utilizar mais e melhor seu lugar de
viver, e, consequentemente, se sentem mais orgulhosos do local onde vivem. Além disso, a identificação com a terra, com sua
comunidade e com a gestão de áreas protegidas fazem emergir o sentido de empoderamento da sociedade em relação ao local
e a cultura de onde vivem, intensificando a percepção da importância da natureza no seu significado de bem-estar.
Foi nesse sentido que a Organização das Nações Unidas – ONU – por meio da Resolução 65/309 de 19 de julho de 2011,
reconhecendo que o PIB não reflete adequadamente o bem-estar da população de um determinado país e levando em consideração a necessidade de se promover o desenvolvimento sustentável, indica aos membros de sua assembléia geral que busquem
02: Sistemas de Gestão e Governança
67
elaborar medidas adicionais que mostrem o bem-estar gerado pelas suas respectivas políticas públicas socioeconômicas, pois
que são investimentos que tem como finalidade a produção de bem-estar social e qualidade de vida (ONU, 2011)
A concepção de que bem-estar social e liberdade, trazida à baila pelo filósofo e economista Amartya Sen (2000, op cit.),
se entrelaçam, no sentido de que o sentimento de bem-estar é um dos principais caminhos para o alcance da liberdade, não só
individual, mas também social, reforça a ideia de que além da geração de renda ou incremento de PIB, a liberdade depende de
outros aspectos como disposições sociais, educação, saúde, segurança, direitos civis primários – democracia e participação, e
sentimento de bem-estar, e de pertencimento ao lugar onde se vive.
Ainda nessa linha de raciocínio, é tão importante, para legisladores do país e gestores de áreas depositárias de biodiversidade, reconhecerem que, além do papel financeiro nas condições de vida de uma sociedade – seja sob a ótica de uma
comunidade de vila, ou da população de um país – quanto entenderem que natureza e sociedade possuem uma relação de
interdependência.
O desenvolvimento econômico não pode e não deve ser considerado um fim em si mesmo. Ele tem de estar relacionado,
sobretudo, com a melhoria da vida das pessoas e da liberdade de que elas desfrutam.
O sistema natural e social se interconectam e se modificam. A partir desse entendimento sugere-se a criação de caminhos que possibilitem um convívio harmonioso com justiça social, respeito à dignidade humana e conservação dos ecossistemas.
Da mesma forma que a teia da vida, as relações entre bem-estar, qualidade de vida, liberdade, desenvolvimento e conservação do ambiente natural estão interconectados e devem ser levados em consideração na criação, implantação e avaliação
de políticas públicas de proteção da biodiversidade, sob pena de não perceber-se que os meios não atingiram os fins almejados
(MEADOW, 1991). Homem e natureza não se dissociam (MOSCOVICI, 2007 op. cit; NOORGARD, 1994).
Para o nosso modelo de gestão de parques, constante do arcabouço legal brasileiro, calcadono princípio da proteção
integral, que distancia homem/natureza, isso ainda é um aprendizado. Não um aprendizado convencional, mas um aprendizado
real, de fato, onde se caminha um pouco para frente, numa espécie de passo “dois para frente e um para trás”, e ao se avançar
é preciso voltar para aprender um pouco mais sobre aquilo que não pode ser absorvido, ou que não se sabia estar lá apara ser
aprendido. Isso é também mudar nossos modelos.
Objetivos
O presente trabalho tem como objetivo principal interpretar o significado subjetivo do bem-estar gerado pelo convívio e
proximidade com o ambiente natural, segundo a percepção dos usuários do PARNASO.
Objetivos Específicos
Para que se possa alcançar o objetivo maior do presente trabalho fez-se necessário alcançar os seguintes objetivos específicos:
•Identificar populações existentes sob influência da unidade de conservação sob estudo – Parque Nacional da Serra dos
Órgãos - PARNASO;
•Construir metodologia participativa que possa ser utilizada para abordar e capturar as reflexões dos participantes da
pesquisa;
•Extrair dos textos obtidos as informações que conduzirão ao processo reflexivo.
Justificativa
O Estado do Rio de Janeiro está totalmente inserido no bioma da Mata Atlântica, onde as áreas naturais tombadas e as
Unidades de Conservação criadas com a finalidade de proteger o patrimônio ecossistêmico do estado abrangem, em conjunto,
aproximadamente 18% do território (RIO DE JANEIRO, 2014). Isto faz do território fluminense o segundo maior no que se refere
à área de proteção aos ecossistemas.
Considerando-se que as unidades de conservação de proteção integral são aquelas que produzem, com efetividade, a
proteção dos ecossistemas a que se destinam, pode-se considerar que o Estado do Rio de Janeiro protege 10,62% da sua área
territorial (RIO DE JANEIRO, 2014, op cit.).
Esse percentual encontra-se acima do de diversos estados brasileiros e pode ser considerado dentro dos parâmetros consi-
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
68
derados pela União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais – IUCN (IUCN/UNEP/WWF, 1980).
A Mata Atlântica no Estado do Rio de Janeiro constitui um “hotspot” em escala global e sua perda representa um dos
principais problemas a serem enfrentados pelo Estado nos próximos anos.
Parte importante das áreas protegidas no Estado do Rio de Janeiro encontra-se na região serrana e compõem a área conhecida por “Serra Imperial”, tendo em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo seus principais municípios e que tem no turismo
histórico e, mais recentemente, no turismo ecológico uma importante fonte de recursos (BRASI, 2010).
Esses municípios, apesar de abrigarem em seu seio um conjunto montanhoso de rara beleza e guardarem aspectos
históricos do Brasil Imperial têm pouca participação no PIB estadual (BOTELHO, 2009). Com isso, a oportunidade de proteção
da natureza surge e com ela a criação de diversas categorias de unidades de conservação de proteção integral. Hoje, o município
de Teresópolis cede 8,8% da sua territorialidade à conservação do Parque Nacional da Serra dos Órgãos - PARNASO. É nesse
município que se encontra uma das 3 sedes do parque e sua porção mais urbanizada.
A fim de possibilitar a integração entre a cultura local e a possibilidade de desenvolvimento surge o ecoturismo como
parte importante de uma das principias fontes de arrecadação do estado – o turismo.
Entretanto, se o aumento de receita não tem um fim em si mesmo, qual o ganho em qualidade de vida que a população
destas áreas vem recebendo? Elas estão incluídas no planejamento turístico da região?
Metodologia
Caracterização da Área do Estudo De Caso
A região, conhecida como Serra Imperial, ou Micro Região Serrana, no Estado do Rio de Janeiro, é composta pelos municípios de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo.
A denominação de “Serra Imperial” se deve às características históricas e culturais do país presentes nos municípios de
Petrópolis e Teresópolis e às suas ligações com a família imperial brasileira.
Essas municipalidades tem população marcadamente urbana – 90%, com um IDHM médio em torno de 0,74 (abaixo do
IDH do Estado – 0,837 em 2010) (BRASIL, 2010. Op. Cit ).
No que toca as áreas protegidas, o principal parque nacional é o Parque Nacional da Serra Dos Órgãos - PARNASO - onde
se concentra a pesquisa ora proposta, cuja localização está ilustrada na Figura1.
Figura 1. Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Localização e ampliação.
Fonte: Ministério do Meio Ambiente: http://www.mma.gov.br/img/ascom/fotos/serradosorgaos_mapa.jpg
02: Sistemas de Gestão e Governança
69
Esta unidade de conservação federal de proteção integral possui 20.024 ha (ICMBio, 2008), é o terceiro parque mais
antigo do Brasil. Situa-se nos municípios de Petrópolis, Teresópolis, Magé e Guapimirim. Possui 57% da sua área inserida na
Serra Imperial.
O clima no Parque é tropical super úmido (com 80 a 90 % de umidade relativa do ar), com média anual que varia de 13
ºC a 23 ºC (atingindo valores de 38 ºC a -5 ºC, nas partes mais altas) e variação pluviométrica de 1.700 a 3.600 mm. Por estar
localizado na Serra do Mar, apresenta relevo bastante acidentado com grande variação de altitude (de 80 m a 2.263 m na Pedra
do Sino, ponto culminante do Parque).
Os mananciais que drenam para as duas principais bacias hidrográficas fluminenses, a do Paraíba do Sul e a da Baía de
Guanabara, estão situados no Parque.
A região é um importante pólo turístico e atrai milhares de turistas todos os anos. É um dos melhores locais do país para
a prática de esportes de montanha, como escalada, caminhada, rapel e outros; além de ter fantásticas cachoeiras (Véu de Noiva,
Petrópolis, com 42 m de queda). O Parque tem a maior rede de trilhas do Brasil – mais de 130 km de trilhas em todos os níveis
de dificuldade. Entre as escaladas destacam-se o Dedo de Deus, considerado o marco inicial da escalada no país, e a Agulha do
Diabo, escolhida uma das 15 melhores escaladas em rocha do mundo (http://www.icmbio.gov.br/parnaserradosorgaos).
A Pesquisa de Campo
A metodologia descrita como estudo de caso, resulta de um histórico de pesquisa do Grupo de Pesquisa Lattes/CNPq,
intitulado “Governança, Biodiversidade, Áreas Protegidas e Inclusão Social” - GAPIS, e se deu através da realização de entrevistas semi-estruturadas com os atores da gestão pública, lideranças locais e o público em geral e tiveram objetivam levantar, sob a
ótica do cotidiano da gestão e das lideranças locais e da população, os principais atrativos e problemas a serem enfrentados para
o desenvolvimento eco turístico no parque, bem como buscar a percepção dos atores quanto as principais fontes de bem-estar
ligadas às comunidades pesquisadas.
Além disso, realizou-se uma entrevista filmada com o gestor do Parque Nacional da Serra do Órgãos – PARNASO - Leandro Goulart (PARNASO – ICMBIO em 29/08/2014) (IRVING et al., 2013)
As visitas a campo foram efetuadas pela equipe do Grupo de Pesquisa Lattes/CNPq - Governança, Biodiversidade, Áreas
Protegidas e Inclusão Social - GAPIS, com o envolvimento de 30 pessoas e que teve como base o trabalho realizado em pesquisas
do GAPIS no ano de 2009 (IRVING et. al., 2013. Op.Cit . ), para a execução de diálogos com atores sociais identificados, obtendose a realização de várias entrevistas com atores sociais estratégicos (turismo e cultura), entre 28 e 30/08/2014 (UFRJ, 2015)
O trabalho de campo se deu em duas comunidades localizadas em municípios distintos: 1) Vila Inhomirim, em Magé (RJ)
e; 2) Vale do Bonfim, em Petrópolis (RJ).
Para empreender o levantamento de campo e a aplicação de questionários, a população local foi previamente convidada
a participar deste “dia de campo” com pesquisadores do GAPIS/Lattes/CNPq, e alunos e estagiários da Universidade Federal
do Rio de Janeiro – UFRJ.
Houve a aplicação de diversos questionários a todos os interessados, seguindo sempre a reafirmação dos compromissos
éticos e solidários, bem como uma postura crítica e de caráter investigativo, mantendo uma posição que permita uma troca a fim
de que se permitam emergir os reais anseios das comunidades pesquisadas
A Vila Inhomirim
Esta vila, localizada no município de Magé concentra a maior parte da sua população total (cerca de 100 mil habitantes)
do município.
As principais vias de acesso popular são feitas por trem urbano, à diesel operado pela SuperVia, sendo a Vila do Inhomirim o ponto final do tronco do ramal Guapimirim de itinerário férreo.
A hidrografia de Vila Inhomirim é desenhada pelas bacias dos Rios Inhomirim, Estrela e Saracuruna e formam uma área
de abrangência de 667,50 Km². Entre os afluentes do Rio Inhomirim estão os Rios Cachoeira, Piabetá e o Canal Caioba. O PARNASO abriga importantes nascentes, cujas águas tributárias da bacia hidrográfica da Baía de Guanabara. Os principais rios que
fluem para a Baía de Guanabara são, além do Rio Inhomirim, o Soberbo, o Bananal, o Sossego, o Magé, o Santo Aleixo, o Iconha
e o Corujas.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
70
Os pesquisados apresentaram interesse pelo desenvolvimento do turismo de base comunitária, marcadamente o ecoturismo e o de aventura, como fonte de renda, e citaram a existência de empresas de turismo na região. Algumas delas de propriedade dos pesquisados.
Além disso, observou-se a percepção deles quanto a necessidade de melhoria dos serviços públicos prestados, principalmente em relação à conservação do Parque. Apesar de tal, os pesquisados são usuários da UC, principalmente como fonte de
lazer, como escaladas e uso de cachoeiras e poços, igualmente, provê aulas de educação ambiental na rede de educação local.
O Vale do Bonfim
No Vale vivem mais de 3 mil pessoas, 400 das quais na área rural (IBGE, 2010).
A area caracteriza-se por uma paisagem predominantemente rural mesclada com o setor econômico hoteleiro, com ocupação do solo de fundo de vale, onde pode-se obervar a forte ação da dinâmica das águas, que é potencializada pelo desenho
da topografia, o que denota sua vulnerabilidades do solo perante a ação das linhas d’águas do vale do Bonfim.
A hidrografia do Vale do Bonfim é composta pelas águas do Rio Bonfim que alimentam as águas da bacia hidrográfica
do rio Paraíba do Sul. Grande parte do abastecimento das cidades de Petrópolis e Teresópolis vem da vertente continental do
PARNASO - rios Paquequer, Caxambú e Bonfim, o que gera valor agregado às economias de bases comunitárias.
Um dos aspectos mais importantes levantados no Vale do Bonfim, é o que toca a localização de empresas engarrafamento
de águas do PARNASO, mas que não geram beneficios para a população local.
Os pesquisados, que são usuários da UC, principalmente como fonte de lazer – ecoturismo e águas – percebem a busca
por um convívio harmonioso entre a gestão do Parque e as lideranças comunitárias e entendem que hoje existe uma forte parceria
entre os moradores e lideranças da comunidade e o processo de gestão da UC.
Conclusões
Sob a ótica dos pesquisadores envolvidos, o trabalho vem representando uma excelente oportunidade de troca de aprendizado, exercício de cidadania, gerando integração acadêmica em todas as suas etapas.
Além disso, vem oportunizando a vivencia de um processo participativo de gestão de uma unidade de conservação e
a imersão em diálogos com atores sociais, que constituem suas vidas dentro ou em áreas de influência de áreas protegidas de
proteção integral.
Por fim, conclui-se que, apesar da complexidade do tema que envolve a relação entre homem e áreas protegidas, podese afirmar que os atores das comunidades mais participativas na gestão do parque, tem clara a percepção de que é possível
ter-se direito à moradia o prover um ambiente saudável, com geração de bem estar para si próprio, quanto para outrem.
Referências
BENTHAM, J. An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, 1789.
BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BOTELHO, E.S. Conflitos na gestão de parques: o caso do conselho do Parque Estadual dos três Picos (RJ). 2009.
Dissertação (Mestrado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social). Instituto de Psicologia, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
BRASIL. Lei n. 9.985 de 18 de julho de 2.000. Regulamenta o artigo 255, § 1º incisos I,II,III e VII da Constituição Federal, institui o
Sistema nacional de Unidades de Conservação e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 de julho de 2.000.
BRASIL. Decreto N° 4.340 de 23 de agosto de 2002, que regulamenta os artigos da Lei Nº. 9.985, que institui o Sistema Nacional
de Unidades de Conservação – SNUC, Brasília.
BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censo Populacional de 2010. Disponível em
http://cod.ibge.gov.br/34O acesso em 20/10/2014.
COSTANZA, R. Social Goals and the Valuation of Ecosystem Services. Ecosystems, v. 3, p.4-10. Springer: 2000.
02: Sistemas de Gestão e Governança
71
DALY . H. On economics as life science. Journal of Political Economy. v. 76, n.3 p. 392-406, The University of Chicago. 1968.
DALY, H. Towards a Steady-States Economy. San Francisco, W. H. Fermann. 1973.
FRAGELLI, C.; IRVING, M.; FIGUEIRA, M. L.; BOTELHO, E. S. O Parque Nacional da Tijuca: Um ícone para a conservação da
biodiversidade e para a imagem do Rio de Janeiro. In: IRVING, M.; CORREA, F.V. & ZARATTINI, A.C. Parques Nacionais do Rio
de Janeiro: Desafios para uma gestão social da biodiversidade.Ed.: Folio Digital; Letra e Imagem, 2013.
GILL, T. M.; FEINSTEIN, A. R. A critical appraisal of the quality of quality-of-life measurements. Journal of the American Medical Association, v.272, n.8, p. 619-926, 1994.
HARTIG, T. EVANS, GW., JAMNER, LD., GARLING, T. Tracking restoration in natural and urban fields sets. Journal of Environmental Psycology, v. 23 p. 109-123. 2003.
ICMBio. Parque Nacional da Serra dos Órgãos. 2008. Disponível em http://www.icmbio.gov.br/parnaserradosorgaos/o-quefazemos/gestao-e-manejo.html.
IRVING, M. A. et al. Relatório Final do Projeto FAPERJ Dinâmica socioeconômica, subjetividades e institucionalidades na
gestão de Parques Estaduais do Rio de Janeiro, 2012
IUCN/UNEP/WWF. World Conservation strategy: living resource conservation for sustainable development. Gland: IUCN/
UNEP/WWF, 1980.
KAPLAN, S. The restorative environment: nature and human experience. In:RELF, D (ed.) The role of Horticulture in human
Well-Being and Social Development. Portland. OR. Timber Press. 1992, p. 65-73.
MAAS, J., VERHEIJ, RA., GRONEWEGEN, PP., De VRIES, S.; SPREEUWENBERG P. Green Space, Urbanity, and health: how
strong is this relation? Journal of Epidemiology and Community Health. v. 21, n.1, p. 587-592, 2006.
MEADOW, D. The Global Citizen. Island Press, 1991.
MILL, J.S. Utilitarism. Londres, 1861. Reedição, Londres: Collins/Fontana, 1962.
MINAYO, M. A. Qualidade de vida e saúde: um debate necessário. Ciência & Saúde Coletiva, v. 5, n.1, p.7-18, 2000. Disponível
em http://adm.online.unip.br/img_ead_dp/35428.PDF. Acesso em 10 agosto 2015.
MITCHELL, R.; POPHAM, F. Effect of Exposure to natural environment health inequalities: an observational population study. The
Lancet. n. 372. p. 1655-1660. 2008.
Ministério do Meio Ambiente: Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Localização e ampliação. Disponível em http://www.
mma.gov.br/img/ascom/fotos/serradosorgaos_mapa.jpg. Acesso em 19 maio 2015
MOSCOVICI, S. Natureza. Para pensar Ecologia. Mauad X: Instituto Gaia, 2007. p. 254
NOORGARD, R. Development Betrayed – The End of Progress and a Co evolutionary Revisioning of the Future. London. Routledge. 1994.
ONU. Resolução 65/309 de 19 de julho de 2011. Happiness: towards a holistic approach to development. Disponível em
http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N11/420/70/PDF/N1142070.pdf?OpenElement. Acesso em 15 outubro 2014.
PIGOU, A.C. The Economics of Welfare. Londres: Macmillan,1925.
RIO DE JANEIRO. Plano Estadual de Recursos Hídricos - PERHI. Relatório de Diagnóstico Parcial - Unidades de Conservação e Áreas de Proteção de Mananciais. INEA-RJ e Fundação Coppetec, 2014.
SEN, A.K. Desenvolvimento como Liberdade.São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
72
THE TRUST FOR PUBLIC LAND. The Economic Benefits of Denver’s Park and Recreation System: A Report by The Trust
for Public Land’s Center, for City Park Excellence, for the City and County of Denver. University of Denver, 2010.
SCHERL, L.M.; WILSON, A; WILD, R; BLOCKUS, J; FRANKS, P; McNEELY, J. A. &McSHANE, T. O. As áreas protegidas podem
contribuir para a redução da pobreza? Oportunidades e limitações. Gland, Suíça, Cambridge, Reino Unido. IUCN. 2006.
Disponível em: https://portals.iucn.org/library/efiles/documents/2004-047-Pt.pdf. Acesso em 10 agosto 2015.
UFRJ. Pró-Reitoria de Extensão. Relatório de atividades de extensão- SIGProj PROEXT 2014. Coordenadora. Marta de
Azevedo Irving. 10 jan.2015.
02: Sistemas de Gestão e Governança
73
A INSERÇÃO DA MUDANÇA DO CLIMA E ADAPTAÇÃO BASEADA EM
ECOSSISTEMAS NO PLANO DE MANEJO DA APA FEDERAL DE
CANANÉIA-IGUAPE-PERUÍBE (APA-CIP)
Filho, Miguel F Fluminhan1; Coffani-Nunes, João Vicente2; Fernandes, Márcio Barragana1; Jankowski, Mayra3; Paixão, Rosiene
Keila Brito da3; Viezzer, Jennifer4; Deitenbach, Armin5; Becher, Martin5; Hach, Lukas5; Betti, Patrícia5 & Silva, Ricardo B. Alves da6
1. APA-CIP, ICMBio, [email protected] 2.UNESP Registro 3.PNUD/MMA/ICMBio 4. MMA 5. GIZ 6. ACADEBio/ICMBio
Resumo
A Inserção da Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas – AbE no Plano de Manejo da APA – CIP apresenta
uma proposta inédita de incluir um tema de importância global em um âmbito regional como uma das primícias de sua gestão.
Reuniões foram realizadas para viabilizar a inserção do tema dentro do Plano de Manejo que já estava em elaboração. A inclusão
se deu em quatro níveis: na inclusão de informações sobre Mudança do Clima no diagnóstico, na inclusão de dinâmicas e diálogos nas Reuniões Temáticas junto às comunidades; a realização de uma Oficina sobre Mudança do Clima e AbE, e a elaboração
de um programa transversal sobre Mudança do Clima e AbE que atuará em conjunto com outros programas do Plano de Manejo.
Desta forma a inserção desses temas fortalece a APA-CIP como interlocutor regional sobre a temática.
Palavras-chave: Sociedade, Adaptação à Mudança do Clima, Unidades de Conservação, Ecossistemas.
Introdução
No contexto da Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável Brasil-Alemanha, no âmbito da Iniciativa Internacional
de Proteção do Clima (IKI) do Ministério Federal do Meio Ambiente, Proteção da Natureza, Construção e Segurança Nuclear
(BMUB) da Alemanha, o Ministério do Meio Ambiente – MMA implementa o Projeto Biodiversidade e Mudanças Climáticas na
Mata Atlântica – Projeto Mata Atlântica cujo objetivo é contribuir para a mitigação e adaptação à mudança do clima por meio de
medidas baseadas em ecossistemas (Adaptação baseada em Ecossistemas, AbE), implementadas nas regiões de três mosaicos
de unidades de conservação – Mosaico da Mata Atlântica Central Fluminense (MCF), Mosaico Lagamar e Mosaico do Extremo
Sul da Bahia (MAPES). Espera-se que essas experiências, que inter-relacionam os temas de biodiversidade e clima, sejam compartilhadas com instituições relevantes e incorporadas em instrumentos de gestão territorial e em políticas públicas.
Em meados de 2014 o Projeto Mata Atlântica iniciou suas ações na região do Lagamar (Litoral Sul de São Paulo e Litoral
do Paraná). Para desenvolver capacidades de AbE promoveu cursos de três dias sobre a Mudança do Clima e de Adaptação
baseada em Ecossistemas – AbE nos municípios de Curitiba (PR) e Cananéia (SP). Os cursos utilizaram o método de Harvard de
estudos de casos que foram construídos conforme a realidade de cada região. Alguns participantes destes cursos, que tinham
intenção de utilizar a AbE no seu trabalho profissional, participaram adicionalmente de um curso de “Formação de Formadores
em Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas”, abreviado “FoFo”, em setembro de 2014 em Brasília.
O curso FoFo, de cinco dias, adota uma metodologia participativa e que possibilita aos alunos vivenciarem os conceitos
e aplicá-los em situações reais. Ele acrescenta ao conteúdo técnico um conjunto de conteúdos didáticos que permitem aos formados ministrarem cursos para diversos públicos. Ao final dele, seus participantes apresentam as intenções de aplicação desse
conhecimento em suas atividades profissionais.
No final do curso FoFo em Brasília, um grupo de participantes ligados à Área de Proteção Ambiental Cananéia – Iguape
– Peruíbe - APA-CIP, à Academia Nacional de Biodiversidade – ACADEBio/ICMBio e à Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” - UNESP Campus de Registro, colocaram a intenção de inserir, com apoio do Projeto Mata Atlântica, a metodologia AbE na elaboração do Plano de Manejo da APA-CIP que se realizaria em 2015.
Tanto o gestor da APA-CIP, como a coordenação do Projeto Manguezais do Brasil em Brasília, que financia o Plano de
Manejo da APA – CIP, apoiaram a iniciativa. Assim, já na proposta da elaboração do Plano de Manejo e nos Termos de Referência
de contratação da consultoria especializada foi colocada a intenção da inserção do tema Mudança do Clima (MC) e Adaptação
baseada em Ecossistemas (AbE). Esta experiência envolve profissionais de diferentes diretorias do ICMBio e a parceria de dois
02: Sistemas de Gestão e Governança
75
projetos de cooperação internacional, o Manguezais do Brasil e o Mata Atlântica.
Base Conceitual
Área de Proteção Ambiental de Cananéia, Iguape e Peruíbe (APA-CIP)
De acordo com a Lei 9.985/2000 que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, a Área de Proteção Ambiental – APA faz parte do grupo de Unidades Conservação de Uso Sustentável. (MMA/SBF, 2006).
A APA-CIP foi criada em 1984 abrangendo cinco municípios (Cananéia, Iguape, Ilha Comprida, Itariri, Miracatu e Peruíbe) (ICMBIO 2015a). Ela foi ampliada em 1985 (ICMBio 2015b), totalizando cerca de 234.000 ha.
Localizada na região costeira do litoral sul do Estado de São Paulo (Figura 1), está completamente inserida no domínio da
Mata Atlântica, com predominância de manguezais, restingas e floresta ombrófila densa.
Figura 1. Localização da APA Cananéia Iguape Peruíbe no Litoral Sul de São Paulo (Fonte: http://maps.mootiro.org/resource/919).
Plano de Manejo (PM)
De acordo com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação todas as Unidades de Conservação devem dispor de
um Plano de Manejo, e esse deve ser elaborado de forma participativa, como reza o Art. 27, parágrafo 2º (MMA-SBF 2006).
O roteiro metodológico para elaboração do Plano de Manejo da APA-CIP foi orientado pela Diretoria de Criação e Manejo
das Unidades de Conservação – DIMAN/ICMBio.
Diante das novas demandas da gestão ambiental de Unidades de Conservação, notadamente as Áreas de Proteção Ambiental – APA em virtude dos desafios das multiplicidades de usos e oportunidades de uma gestão ambiental mais contemporânea,
a APA-CIP propõe a inserção da temática de Adaptação baseada em Ecossistemas no Plano de Manejo.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
76
Adaptação baseada em Ecossistemas
A Adaptação baseada em Ecossistemas (AbE) “usa a biodiversidade e os serviços ambientais que os ecossistemas
prestam como parte de uma estratégia geral para ajudar as pessoas a se adaptarem aos efeitos adversos da mudança do clima”
(GIZ, 2013a). Desta forma, procura minimizar os efeitos da mudança do clima sobre as formas de produção e na qualidade de
vida da comunidade.1 O conceito, pela primeira vez formulado pela Convenção da Biodiversidade, procura facilitar a valoração
de soluções “verdes”, em contraste a soluções “cinzas”:
“Adaptação baseada nos Ecossistemas é o uso da biodiversidade e dos serviços ambientais como
parte de uma estratégia de adaptação completa para ajudar pessoas a se adaptarem aos efeitos
adversos das mudanças climáticas” (CBD, 2009 apud GIZ, 2013b).
No entanto, outros conceitos relevantes para compreensão da estratégia de aplicação das medidas AbE são:
Adaptação - Ajustes dos sistemas humanos ou naturais em resposta a estímulos climáticos atuais
ou previstos, ou seus efeitos, para moderar os danos ou explorar oportunidades benéficas (IPCC,
2007).
Resiliência - Capacidade dos sistemas sociais, econômicos e ambientais de enfrentar eventos,
tendências ou distúrbios perigosos, respondendo a eles ou reorganizando-se de forma que possam manter sua função essencial, identidade e estrutura, mantendo também a capacidade de
adaptação, aprendizado e transformação (IPCC, 2012).
Vulnerabilidade – É o grau de suscetibilidade de um sistema ou sua incapacidade de resposta
aos efeitos adversos da mudança climática, incluindo-se a variabilidade climática e os eventos
extremos (IPCC, 2007), ou ainda a propensão ou predisposição a ser adversamente afetado pelos
efeitos das mudanças climáticas (IPCC, 2012).
Segundo Dieisner (2013), nem todas as medidas de adaptação às mudanças do Clima são boas, há as que podem
causar impactos negativos inesperados e as que podem apresentar baixo nível de eficiência e efetividade, além das incertezas
dos prognósticos climáticos e seus possíveis impactos, Portanto, uma medida de adaptação “ideal” é uma medida de “não arrependimento”, aquela que traz benefícios para a comunidade apesar dos prognósticos eventualmente não se realizarem.
Medidas de AbE em geral são consideradas como medidas de não arrependimento, visto que a sua execução, independente do fator impactante, como p.ex. Mudança do Clima, reestabelece os serviços ecossistêmicos. Em termos gerais, medidas
de Adaptação baseada em Ecossistemas focam na conservação, restauração ou uso sustentável de ecossistemas. Mas como
salientado por Olivier et. al. (2012), é uma abordagem antropocêntrica que tem como perspectiva a forma como os ecossistemas
poderão ajudar as populações, comunidades, por meio da redução da vulnerabilidade, a se adaptarem à variabilidade do clima
atual e às futuras mudanças climáticas.
Como AbE é um conceito relativamente novo, ainda existem poucas experiências sobre sua implementação, tanto no
Brasil como no mundo. Portanto a inserção de AbE no Plano de Manejo da APA CIP constitui uma experiência pioneira em escala
internacional.
O grande desafio, do ponto de vista metodológico, se refere à execução de uma análise de vulnerabilidade à mudança
do clima na etapa de diagnóstico da construção do plano de manejo, prévia à seleção e implementação de medidas de AbE.
Desta forma, as medidas são selecionadas com o objetivo de reduzir a exposição aos efeitos adversos de mudança do clima (p.
ex. ondas de calor, chuvas torrenciais) ou a sensibilidade aos mesmos (p. ex. solos propensos à erosão) de sistemas de interesse
centrados em pessoas. Desta forma, uma medida AbE (p.ex. implantação/manutenção de um sistema agroflorestal diversificado), pode contribuir a aumentar a capacidade adaptativa das mesmas.
A avaliação de vulnerabilidade é a atividade que permitirá estabelecer prioridades e direcionar as atividades de gestão
nas áreas com probabilidade de manterem a provisão de serviços ecossistêmicos. Segundo o relatório do IPCC (2007), a avaliação de vulnerabilidade consiste em três etapas:
Etapa 1: Avaliação dos potenciais impactos das alterações climáticas sobre os ecossistemas e os sistemas de produção
1
A GIZ fornece mais subsídios para entendimento e aprofundamento no site AdaptationComunitty.net” (GIZ, 2015).
02: Sistemas de Gestão e Governança
77
baseados em ecossistemas incluindo: descrição dos sistemas expostos (recursos hídricos, outros ecossistemas e sistemas de
produção baseados em ecossistemas); desenvolvimento de lista de possíveis consequências das alterações climáticas para
os ecossistemas e setores; priorização das tendências e impactos de mudanças climáticas, análise dos objetivos políticos para
contribuir com a seleção de indicadores de impacto e de valores de ameaça de impacto.
Etapa 2: Identificação e avaliação de potenciais medidas de adaptação às alterações climáticas, com foco em abordagens de gestão adaptativa da água e AbE.
Etapa 3: Integração da avaliação de impacto e avaliação da adaptação junto com os resultados de estudos de apoio em
uma avaliação de vulnerabilidade abrangente.
Inserção da Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas no
Plano de Manejo da APA-CIP
No caso da APA-CIP, inicialmente foi elaborado um Plano de Gestão com um zoneamento preliminar que foi publicado
em 1996 (ICMBio, 2015 c). No final de 2014, o ICMBio, com financiamento do Projeto “Manguezais do Brasil” BRA/07/G32 e com
apoio técnico do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, deu início à elaboração do primeiro Plano de
Manejo da APA-CIP. A previsão é que a elaboração esteja concluída em setembro de 2015.
Em janeiro de 2015 foi realizada reunião com a consultoria contratada para elaborar o Plano de Manejo, que apresentou
as etapas que seriam adotadas nesse processo, possibilitando o primeiro desenho de intervenções visando à inserção da Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas no Plano de Manejo.
No início de maio de 2015 houve a primeira reunião conjunta das equipes de elaboração do Plano de Manejo, técnicos
do ICMBio e do Projeto Mata Atlântica (MMA/GIZ), entre eles os formados no curso FoFo de Brasília, com o objetivo de planejar
atividades para inserção dos temas Mudança do Clima e da AbE no Plano de Manejo da APA-CIP.
Metodologia
Nesse relato de experiência focaremos nos aspectos relacionados à inserção do tema Mudança do Clima e Adaptação
baseada em Ecossistemas nas diferentes etapas do plano de manejo.
No planejamento ficou estabelecido que o tema seria abordado: (i) nas reuniões temáticas de diagnóstico, (ii) em uma
oficina específica para discutir Mudança do Clima e AbE, (iii) na inclusão de um capítulo no Plano de Manejo sobre Mudança
do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas e de um Programa de Ação focado no enfrentamento da mudança do clima e
dos seus impactos adversos.
Inserção do tema Mudança do Clima e AbE nas reuniões temáticas:
Na reunião de início de maio ficou definido o modelo a ser adotado em cada reunião temática com a inclusão do tema.
As reuniões temáticas teriam cerca de 3 a 4 horas de duração. Houve a preocupação de inserir o tema sem desviar do objetivo
principal das reuniões que era o diagnóstico para a elaboração do Plano de Manejo.
A atividade inicial de recepção dos participantes teve o objetivo de provocar a reflexão dos participantes assim que chegassem, sobre o tema de Mudança do Clima. Para isso foram utilizados quadros com perguntas onde os participantes, por meio
de pontos adesivos, podiam indicar o grau de alteração do clima segundo a sua percepção em relação a seu modo de vida e a
sua atividade produtiva.
Os participantes, por meio de dinâmicas interativas contribuíram com seu conhecimento sobre a percepção da mudança
do clima (Figura 2).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
78
Figura 2. participantes de reunião temática.
No final das primeiras reuniões foi efetuado o resgate das atividades iniciais de percepção climática, passado um vídeo
sobre Mudança do Clima (A hora de decidir - GIZ - https://youtu.be/VW5R_rpDjm0) e realizada discussão sobre o tema e a sua
relação às atividades desenvolvidas pelos participantes na região da APA-CIP em que moram/trabalham. Como a reunião era
exaustiva e esta atividade acontecia no final, os participantes não conseguiam aproveitar os conceitos e mensagens e esta atividade não foi continuada.
No fechamento foi feito um convite especial para participar da Oficina sobre Mudança do Clima e AbE no dia 07 de maio
de 2015 na sede da APA-CIP.
Oficina sobre Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas na APA-CIP
Em maio de 2015, foi realizada reunião de planejamento da Oficina sobre Mudança do Clima e Adaptação baseada em
Ecossistemas, na qual se estabeleceu o roteiro para a oficina de um dia, como segue abaixo:
- Percepção dos sinais da mudança do clima: conforme as pessoas chegavam eram recebidas e lhes eram passadas as
orientações dessa atividade que contou com um mapa da APA-CIP impresso em formato A0 e pendurado na parede, no qual os
participantes assinalaram os locais onde já tinham observado algum sinal de mudança do clima (p. ex. chuvas mais fortes, onda
de calor, diminuição de chuva, período maior de seca, etc). Cada sinal climático tinha uma cor de adesivo para ser colocado no
mapa (Figura 3).
- Introdução à Mudança do Clima e Adaptação (visão geral): apresentação de sensibilização sobre o tema e apresentação do vídeo “Como as Mudanças do Clima mudarão nossas vidas em 2050” (https://youtu.be/0QoZ8hh8-Qg ).
02: Sistemas de Gestão e Governança
79
Figura 3. Mudança do Clima e AbE: construção do mapa de Sinais Climáticos.
- Mudança do clima e adaptação na região da APA-CIP (visão local): apresentação do Projeto da Organização Não
Governamental Iniciativa Verde sobre a Mudança do Clima e adaptação na região da APA-CIP.
- Identificação de impactos da mudança do clima na APA-CIP: dinâmica de percepção em que os participantes, em
grupos separados, sinalizaram no mapa da APA-CIP os impactos da mudança do clima relacionados a Aspectos Biofísicos
(Figura 4) e Aspectos Socioeconômicos. Depois, verificou-se a correlação entre os dois mapas e desses com os sinais climáticos
indicados na atividade de recepção (Figura 5).
Figura 4. Construção do mapa de Impactos Biofísicos da Mudança
do Clima na área da APA-CIP
Figura 5. Análise dos mapas dos Impactos Biofísicos, Socioeconômicos e dos Sinais Climáticos na APA-CIP
- Dinâmica - aprendizado ativo: APA vulnerável: As atividades de aprendizagem ativa facilitam os processos de aprendizagem a partir das experiências vividas. A atividade “Adaptação organizacional” consiste em espalhar os membros do curso
aleatoriamente na sala. Em seguida pede-se que estes escolham um colega e passem (jogando) uma bola ou pequeno objeto.
Os objetos foram identificados como impactos da Mudança do Clima. Ao longo da aprendizagem o número e a velocidade de
objetos vão aumentando.
- Dinâmica: o que são serviços ecossistêmicos e o que eles têm a ver com o bem estar da população e com a adaptação
a mudança do clima? Uma reflexão da importância dos Serviços Ambientais no contexto de nossas vidas (Figura 6).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
80
Figura 6. Atividade de Análise da importância dos Serviços Ambientais.
- Identificar e Espacializar Opções AbE: analisar e organizar as e possíveis soluções AbE em categorias (Conservação,
Restauração, Uso Sustentável e Outros) (Figura 7). Em seguida, as principais opções AbE foram indicadas no mapa da APA-CIP.
- Apresentação e Reflexão sobre os resultados do dia e a sua inserção no Plano de Manejo da APA-CIP: a equipe
avaliou como positivas as contribuições da oficina e optou pela elaboração de um Programa que focasse no enfrentamento da
mudança do clima com especial atenção à adaptação baseada em ecossistemas.
Figura 7. Discussão sobre opções de medidas AbE
Na Oficina contou-se com a participação de lideranças de comunidades da APA-CIP, pesquisadores, representantes das
esferas federal, estadual, municipal e os membros do Conselho Consultivo da APA.
02: Sistemas de Gestão e Governança
81
Programa de Enfrentamento da Mudança do Clima
Este programa foi elaborado conjuntamente pelas equipes do Plano de Manejo (ICMBio/PNUD) e do Projeto Mata Atlântica (MMA/GIZ) e seguiu o mesmo modelo dos demais programas do Plano de Manejo. Já em sua concepção ficou estabelecido
que teria uma função diferenciada de atuar de forma transversal em relação aos demais programas.
Resultados e Discussão
A inclusão da temática de Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas nos passos planejados para a
elaboração do Plano de Manejo foi assertiva, proporcionando resultados significativos para a elaboração do Plano de Manejo.
As Reuniões Temáticas proporcionaram uma visão diversificada sobre a percepção da comunidade da APA sobre os
sinais climáticos, sendo que eles notam que já há alguma influência nas atividades desenvolvidas na região, mesmo sem um
entendimento claro sobre Mudança do Clima.
É importante ressaltar que as dinâmicas sobre a percepção da Mudança do Clima tiveram o objetivo de conduzir os
participantes das reuniões e da oficina a se inserirem na reflexão sobre o tema. As informações obtidas foram consideradas relevantes em vista do conhecimento local e do envolvimento dos participantes com atividades de pesca, agricultura, extrativismo entre outras que se relacionam com o meio ambiente e que por isso, de forma empírica, interpretam os sinais climáticos regionais.
Muitas das propostas levantadas durante as Reuniões Temáticas quando associadas à Oficina de Mudança do Clima e
AbE, durante a atividade de “Opções AbE e Espacialização na APA-CIP”, evidenciaram que são opções de medidas AbE possíveis de serem realizadas na APA-CIP.
Da mesma forma, a dinâmica sobre os Serviços Ecossistêmicos e o bem-estar do ser humano, reforçou a importância de
desenvolver as medidas de AbE.
Dois desafios na metodologia aplicada foram detectados nas reuniões em relação aos temas Mudança do Clima e AbE
que precisam ser aprimorados:
- a inserção no final da reunião, quando os participantes tinham dificuldade de manter a atenção e concentração; e
- a falta de conhecimento prévio sobre o tema, que atuou de forma sinérgica com o item anterior.
Esse cenário ratificou a preocupação apresentada durante o planejamento referente ao tempo de cerca de 3 horas para
cada reunião destinada ao diagnóstico participativo e ainda abordar o tema de Mudança do Clima e AbE. Fato que reforçou a
importância de haver uma Oficina específica sobre Mudança do Clima e AbE para detalhar e trabalhar essa temática de forma
integrada com os resultados obtidos nas reuniões.
O formato dinâmico e participativo da oficina sobre Mudança do Clima e AbE com as palestras de sensibilização e (in)
formação sobre o tema central e a região da APA-CIP, valorizou o conhecimento e a percepção das pessoas. Essa metodologia
favoreceu a rápida integração do público com a temática e a produção de novas informações para o diagnóstico da APA-CIP.
Além disso, fez com que os participantes validassem a inserção da temática no Plano de Manejo da Unidade de Conservação.
Diante da relevância do tema e dos resultados obtidos na oficina consolidou-se a decisão pela elaboração de um Programa de Enfrentamento da Mudança do Clima e de Adaptação baseada em Ecossistemas. O programa representa a expectativa da APA-CIP/ICMBio em estabelecer um canal de comunicação e ação com os atores envolvidos visando minimizar os
possíveis efeitos da Mudança do Clima por meio de medidas AbE.
O Programa propõe atuar diretamente sobre o tema por meio de eventos de sensibilização e de cursos de capacitação,
articular com outras instituições, incentivar a pesquisa, e auxiliar a inserção de medidas AbE nos demais programas do Plano
de Manejo quando pertinente. O formato participativo deste Programa ajudará aprofundar questões específicas, como p.ex.
análises de vulnerabilidade da APA-CIP.
Outro resultado concreto da inserção da Mudança do Clima e AbE é a presença de um capítulo no Plano de Manejo
tratando do assunto, no qual haverá um diagnóstico climático da região da APA-CIP.
Dessa forma, o Plano de Manejo da APA-CIP torna-se o primeiro a inserir essa temática e a estabelecer uma metodologia
de trabalho para a sua formulação, sendo este esforço passível de replicação para outros planos de manejo, servindo como um
referencial teórico/prático.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
82
Conclusões
Após a realização das reuniões temáticas e da oficina sobre a Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas, concluímos que os objetivos propostos de levantar a discussão sobre a Mudança do Clima, identificar medidas de AbE em
conjunto com os atores relevantes na gestão dos recursos naturais e de consolidar essas reflexões no Plano de Manejo foram
atendidas.
A inserção da Mudança do Clima e AbE vem ao encontro dos objetivos estabelecidos no decreto de criação da APACIP, contribuindo com o desenvolvimento sustentável, a conservação dos recursos naturais e o modo de vida das comunidades
tradicionais.
A metodologia de abordagem sobre Mudança do Clima e AbE nas reuniões temáticas pode ser aprimorada em relação
ao tempo e o material de apoio sobre o tema, visto que o público em geral apresentou dificuldade de acompanhar os conceitos
desenvolvidos nas apresentações AbE.
Por outro lado, a opção de dinâmicas em que o público possa interagir diretamente e nas quais o seu conhecimento seja
valorizado foi muito produtiva. Isto promoveu o envolvimento dos participantes com as propostas que emergiram nas reuniões e
da oficina sobre Mudança do Clima e AbE. Esse processo permitiu que os participantes identificassem alternativas de Adaptação baseada em Ecossistemas.
A inserção do tema Mudança do Clima e AbE introduz um novo horizonte no planejamento regional, visto que nenhum
dos municípios ou órgãos gestores de outras Unidades de Conservação apresentam propostas para o enfrentamento da Mudança do Clima.
A gestão da APA-CIP inova dispondo-se a promover o diálogo entre os diferentes atores a respeito da Mudança do Clima
e da necessidade de adaptação.
Conclui-se que tanto a inserção da Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas como a proposta metodológica foram decisões acertadas e que podem e devem ser estimuladas a serem replicadas na construção de outros planos
de manejo de unidades de conservação e em outros instrumentos de planejamento e de gestão territorial, em especial os que
visam o uso sustentável dos recursos naturais.
Referências
DIESNER, F. Bases conceptuales y guía metodológica para iniciativas rápidas de AbC en Colombia. Ministerio de
Ambiente y Desarrollo Sostenible de la Republica de Colombia. 2013.
GIZ. Integrating climate change adaptation into development planning – A practice-oriented training based on an OECD
Policy Guidance, 2013a. Disponível em <https://gc21.giz.de/ibt/var/app/wp342deP/1443/index.php/knowledge/monitoring-evaluation/tools-and-training-material/> Acesso em 14 julho 2015.
GIZ. Adaptação baseada nos Ecossistemas (AbE) - Uma nova abordagem para antecipar soluções naturais conducentes a
uma adaptação às mudanças climáticas nos diferentes setores, 2013b. Disponível em <http://www.giz.de/expertise/downloads/
giz2013-pt-adaptacao-baseada-nos-ecossistemas.pdf>. Acesso em 19 agosto 2015.
GIZ. AdaptationCommunity.net, 2015. Disponível em <https://gc21.giz.de/ibt/var/app/wp342deP/1443/>. Acesso em 14 julho
2015.
ICMBio. Decreto nº 90.347 de 23 de outubro de 1984, 2015a. Disponível em <http://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/
imgs-unidades-coservacao/apa_cananeia_1.pdf>. Acesso em 24 junho 2015.
ICMBIO. Decreto nº 91.892, de 06 de novembro de 1985, 2015b. Disponível em <http://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/
imgs-unidades-coservacao/apa_cananeia_2.pdf>. Acesso em 24 junho 2015.
ICMBIO. Plano de Manejo. 2015c. Disponível em <http://www.icmbio.gov.br/portal/biodiversidade/unidades-de-conservacao/
planos-de-manejo.html>. Acesso em 24 junho 2015.
02: Sistemas de Gestão e Governança
83
IPCC - Intergovernmental Panel on Climate Change. Climate Change. Synthesis Report. Contribution of Working Groups I, II
and III to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Core Writing Team, Pachauri, R.K and
Reisinger, A. (eds.). Geneva: IPCC. Switzerland, 2007.
IPCC - Intergovernmental Panel on Climate Change: Managing the risks of extreme events and disasters to advance climate
change adaptation. Special Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press, 2012. Disponível em <http://www.ipcc.ch/pdf/specialreports/ srex/SREX_Full_Report.pdf>. Acesso em 25 setembro 2014.
MMA-SBF. SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – Lei no. 9.985, de 18 de julho de 2000,
Decreto no. 4340, de 22 de agosto de 2002. 6.ed. aum. Brasília: MMA/SBF, 2006.
OLIVIER, J.; PROBSTK.; RENNER, I.; RIHA, K. Adaptação baseada nos Ecossistemas (AbE) - Uma nova abordagem para
antecipar soluções naturais conducentes a uma adaptação às mudanças climáticas nos diferentes setores, 2012. Disponível em
<http://www.giz.de/expertise/downloads/giz2013-pt-adaptacao-baseada-nos-ecossistemas.pdf>. Acesso em 21 agosto 2015.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
84
MAPEAMENTO PARTICIPATIVO DOS SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS CULTURAIS
NO PARQUE ESTADUAL DA PEDRA BRANCA, RJ
Ribeiro, Fernando Patrício1 & Ribeiro, Katia Torres2
1.Conservação Internacional, [email protected] 2. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
Resumo
Numerosos estudos têm apontado os benefícios das áreas protegidas aos moradores dos grandes centros urbanos no mundo.
No Brasil, ainda são poucos os estudos nas regiões metropolitanas que visam verificar como estes benefícios são percebidos
e geridos, apesar da grande extensão e quantidade de áreas verdes urbanas no país, muitas delas unidades de conservação
formais. Este estudo, realizado na maior área protegida do município do Rio de Janeiro, o Parque Estadual Pedra Branca (PEPB),
traz a avaliação dos benefícios imateriais associados a sete serviços culturais ecossistêmicos: - Beleza Cênica, Interação Social,
Recreação e Ecoturismo, Aprendizagem e Valores Educacionais, Herança Cultural, Diversidade Cultural, Religiosidade e Espiritualidade. O trabalho foi realizado por meio de entrevistas e mapeamento participativo com 69 pessoas entre funcionários do
parque, visitantes e moradores da unidade. Os resultados mostram que o parque oferece importantes benefícios imateriais para
os entrevistados e assim atinge parte de seus objetivos de criação. Implicações para o manejo do uso público do parque e gestão
de conflitos com os residentes e população do entorno são discutidos.
Palavras-chave: Serviços Ecossistêmicos culturais, Sistema de Informação Geográfico Participativo, Benefícios Imateriais, Gestão
de Áreas Protegidas, Parque
Introdução
O número de áreas formalmente protegidas - AP cresceu significativamente na última década, no mundo. Atualmente
há mais de 100.000 AP registradas, cobrindo cerca de 12% da superfície do planeta (UNEP/CBD, 2005), o que as torna um dos
principais destinos turísticos da Terra. AP preservam importantes ecossistemas que por sua vez fornecem bens e serviços que
direta ou indiretamente satisfazem várias necessidades da sociedade (MEDEIROS et al; 2011). Sua formalização visa fazer frente
aos intensos processos de conversão de habitat em todo o mundo (como monoculturas e expansão urbana). No Brasil, dá-se
forte ênfase às unidades de conservação - UC, organizadas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC, 2000),
aqui genericamente chamadas de parques, dentre o conjunto maior de áreas protegidas, que incluem terras indígenas, reservas
legais e outras.
A importância das áreas entendidas como naturais para a saúde física e psíquica vem sendo evidenciada por muitos estudos. Chiesura (2003) argumenta que parques e outros espaços verdes são de importância estratégica para o bem-estar nas sociedades cada vez mais urbanizadas, reduzindo o estresse e aumentando a sensação de tranquilidade e sossego. O Congresso
Mundial de Parques da IUCN de 2014 trouxe a saúde e o bem-estar relacionados às áreas verdes como um dos principais eixos
de discussão e promoção para os próximos 10 anos (IUCN, 2014).
Há crescente evidência científica sobre os benefícios das áreas verdes para os habitantes das cidades (GODBEY; GRAEFE; JAMES, 1992, CHIESURA, 2004, BROWN; SCHEBELLA; WEBER, 2014), dos estudos mais qualitativos àqueles com abordagem fortemente estatística, como o de Maas (2006) que avalia a relação entre bem estar e proporção de área verde.
Benefícios mais introspectivos podem ser associados a estas áreas: incluem o senso de desafio, privacidade e intimidade, beleza
cênica e herança histórica, por exemplo. Os valores recreativos, históricos e estéticos assegurados por estas áreas podem aumentar a atratividade da cidade (CHIESURA, 2004). Essa conexão é explícita e ativamente incentivada pelo sistema de parques
norte americano, mas ainda muito tímida no Brasil.
No Rio de Janeiro as áreas verdes ganham destaque na paisagem e na vida das pessoas, e em grande parte constituem
UC. O Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB) é a maior UC deste município e é o maior parque urbano do país. Localizado no
maciço da Pedra Branca, na região oeste, o PEPB apresenta belas paisagens, rios e cachoeiras e áreas de floresta, que lastreiam
sua vocação para recepcionar variada atividade turística e recreativa.
02: Sistemas de Gestão e Governança
85
Paralelamente muitos desafios se colocam para o PEPB. Desde o período colonial a região sofre grande pressão: a extração do pau-brasil no início, continuando com os sucessivos ciclos da cana de açúcar, café e pecuária. Em seguida, outros ciclos
mais locais como o plantio de laranjas e de bananas, sendo que este cultivo continua avançando nas áreas de floresta. Dentro do
parque persistem atividades conflitantes com a categoria de manejo da unidade, dentre as quais numerosas moradias, atividades
agropecuárias, mineração e captação clandestina de água, dentre outras (INEA, 2013).
Uma gestão ambiental que busque melhor condução dos problemas e conflitos ambientais como os que atingem o
PEPB deve considerar as percepções e necessidades dos diferentes atores sociais, como enfatizado por Gonçalves & Hoeffel
(2012), de modo a se chegar a soluções culturalmente mais viáveis e portanto mais longevas e que não levem a um isolamento
cognitivo das áreas naturais em relação à sociedade. Estratégias amparadas apenas na legislação, fiscalização e tecnologias têm
resultados incipientes, parciais e de curto prazo (FADINI, 2005).
Os chamados Sistemas de Informações Geográficas Participativas (SIGP) têm sido bem sucedidos na investigação da
percepção e dos valores dos atores sociais sobre o meio ambiente (RAMBALDI et al., 2006). O enfoque participativo desta abordagem pode trazer a revelação e incorporação das necessidades, saberes e desejos das pessoas afetadas pelos processos de
tomada de decisão, no âmbito do planejamento e gestão territorial (RAMBALDI et al., 2006). O método tem auxiliado também
no entendimento dos benefícios imateriais dos serviços culturais ecossistêmicos para o ser humano. Como exemplo, Raymond
et al. (2009) quantificaram e mapearam a distribuição espacial do capital natural e de 31 serviços ecossistêmicos listados pelo
relatório da Avaliação Ecossistêmica do Milênio (MEA, 2005), na Bacia de Murray-Darling, Austrália, com base na percepção
das pessoas.
Os SIGPs têm sido usados para estabelecimento de corredores ecológicos, identificação de hotspots socioecológicos,
identificação de relações de apego entre as pessoas e a natureza e na avaliação dos benefícios potenciais das áreas verdes
urbanas (BROWN; SCHEBELLA; WEBER, 2014).
Neste estudo avaliamos os benefícios imateriais associados a sete serviços culturais ecossistêmicos no PEPB pela abordagem SIGP, de modo a subsidiar vários aspectos de sua gestão.
Materiais e Métodos
Área de estudo
O Parque Estadual da Pedra Branca localiza-se no centro geográfico do município do Rio de Janeiro. Com 12.500ha, compreende todas as encostas do maciço da Pedra Branca acima de 100m do nível do mar (Figura 1). Abriga o Pico da Pedra Branca,
ponto culminante do município (1.024m de altitude) e numerosos outros morros.
Papel de destaque pode ser atribuído à unidade no equilíbrio climático e regulação dos processos ecossistêmicos da
cidade do Rio de Janeiro, por suas características e pela inserção em região muito industrializadas (INEA, 2013).
O entorno do parque apresenta fragmentos de mata atlântica e locais de visitação contíguos à unidade. Predomina no
entorno a expansão urbana desordenada, mas ainda há pequenas propriedades rurais e sítios e cinco UC que ajudam a proteger
remanescentes florestais.
Levantamento dos serviços culturais percebidos
Com base no Relatório de Avaliação Ecossistêmica do Milênio (MEA, 2005a), fez-se uma seleção dos serviços mais
adequados para a pesquisa. Foram selecionados oito dentre as 10 categorias citadas: Beleza Cênica; Recreação e Ecoturismo;
Relações Sociais; Sistemas de Conhecimento; Valores Educacionais; Religião e Espiritualidade; Diversidade Cultural e Herança
Cultural. Senso de Lugar e Inspiração foram excluídos por serem inadequados para a abordagem proposta. As categorias Sistemas de Conhecimento e Valores Educacionais foram unificadas já que são conceitos complementares e interdependentes.
Para levantamento e mapeamento dos serviços percebidos, foram realizadas 69 entrevistas, com os três grupos identificados como de interesse pelo plano de manejo do parque: 1) moradores do parque; 2) visitantes; 3) funcionários. As pessoas entrevistadas foram aquelas que aceitaram a abordagem, em seis locais geograficamente distantes: sede do Pau da Fome, na face
leste; Núcleo da Piraquara, face norte; Núcleo do Camorim, face sudoeste; Posto avançado de Vargem Grande, face sul; Posto
Avançado do Rio da Prata, face oeste, e na trilha de acesso ao parque de Barra de Guaratiba, no extremo sul do parque (Figura 1).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
86
Figura 1. Localização do Parque Estadual da Pedra Branca no município do Rio de Janeiro e os locais onde as
entrevistas foram realizadas (Fonte: elaboração própria).
As entrevistas foram feitas nos finais de semana e feriados entre dezembro de 2012 e julho de 2013, com apoio de questionário semiestruturado com duas partes. Primeiro, os entrevistados eram solicitados a mapear, conforme sua percepção, a
ocorrência de cada um dos serviços culturais na área de estudo; em seguida, respondiam questões gerais sobre: frequência de
visitação, tempo gasto na unidade por visita, idade, sexo, grau de escolaridade, bairro de residência e renda. Coletaram-se ainda
impressões do entrevistado acerca da natureza do parque e o histórico da sua relação com a unidade.
Para auxiliar o mapeamento, foram disponibilizados em superfície imantada três mapas em tamanho A1, escala 1:15.000,
cada um correspondendo a uma porção do parque, cobrindo o todo. O entrevistado podia escolher quais mapas usar e tinha à
sua disposição cinco pequenos imãs para cada um dos sete serviços culturais, diferenciados por cores, para plotar nos locais
onde ele identificou a ocorrência de cada serviço.
02: Sistemas de Gestão e Governança
87
Análise de dados
A análise dos serviços culturais identificados na Tabela 1 considerou: 1) em termos espaciais, identificação dos hotspots
(áreas onde foram os serviços culturais foram percebidos) e coldspots (áreas onde os serviços culturais não foram percebidos)
de cada um dos serviços culturais, a partir de grade regular com células de 400m x 400m; 2) correlação (coeficiente de pearson) entre frequências de percepção dos serviços culturais identificados; 3) frequência de distribuição dos serviços por grupo
de entrevistado; e 4) análise qualitativa dos discursos sobre a relação com ao parque, classificados a posteriori nas categorias:
a) satisfação de interesses e necessidades, b) sentimento de prazer, c) sentimento de cuidado com o lugar, d) sentimento de
enraizamento, e) sentimento de identidade, f) sentimento de dependência.
Resultados
Dos 68 entrevistados, 79% eram homens e 21% eram mulheres, com média de idade de 39 anos. Do total, 40% terminaram o ensino médio e apenas 4% não completaram o ensino fundamental. Pouco mais da metade (53 %) ganha até três salários
mínimos. A frequência de visitação de 34% dos turistas não chega a uma vez por mês na unidade. Do total dos entrevistados, 19%
estão de dois a cinco anos frequentando o parque. Conhecimento razoável sobre o parque foi declarado por 35% dos entrevistados. Apenas 13% disseram ter conhecimento excelente. Sobre natureza, 43% declararam ter um razoável conhecimento. Dos
moradores, 54% alegaram ter um bom ou excelente conhecimento e 9% declararam ter baixo conhecimento.
Frequência de serviços ambientais por grupo entrevistado
Os entrevistados usaram 875 pontos para mapear sua percepção dos sete serviços culturais investigados. Beleza Cênica
foi o serviço mais marcado (256 pontos: 55 de funcionários, 76 de moradores e 125 de turistas). Recreação e Ecoturismo, o segundo mais marcado: 159 pontos (funcionários: 41; moradores: 47; turistas: 71). Relações Sociais foi o terceiro, com 143 pontos,
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
88
sendo o segundo mais marcado entre moradores e turistas (54 e 73 pontos respectivamente). O serviço de informação ficou em
quarto lugar: 122 pontos. Diversidade Cultural, Herança Cultural e Religiosidade e Espiritualidade tiveram 81, 78 e 36 pontos
respectivamente.
Concentração espacial de serviços culturais
Quase todo o parque teve serviços culturais identificados, com maior concentração de pontos no centro-norte, leste e sul
do parque, nas proximidades da sede do parque, do Açude do Camorim e das praias selvagens (Figura 2)
Figura 2. Densidade de pontos marcados em malha regular de 400mx 400m, considerando todos os serviços culturais.
Quadrados azuis: nenhum ponto; quadrados vermelhos: de 44 a 59 pontos marcados.
Correlações na percepção dos serviços culturais
As áreas percebidas como bonitas, no parque, apresentam forte correlação com as áreas tidas como propícias para recreação (R=0,85), e com áreas para interação social (R=0,77). Áreas para recreação e relações sociais estão também fortemente
relacionadas (R=0,78). Áreas percebidas como propícias para a manifestação da diversidade cultural apresentam moderada
correlação com áreas percebidas como religiosas ou espirituais (R=0,65, Tabela 2).
02: Sistemas de Gestão e Governança
89
Relação dos entrevistados e a unidade
Pela análise dos discursos, tem-se que a relação de apego ao parque difere razoavelmente entre os grupos e entre seus
próprios integrantes. Entre os turistas, 35% vincularam a sua relação com o parque à satisfação de interesses e ao sentimento
de prazer. Neste grupo, 12% falaram de sentimento de cuidado com a natureza abrigada no parque, 3% têm um forte sentimento
de enraizamento com o local e 1% identifica-se com a região. Dos moradores, 16% sentem-se vinculados ao parque a partir de
sentimentos de enraizamento e 7% a partir de sentimentos de identidade, uma vez que grande parte dos moradores entrevistados
nasceu e foi criada no parque. Ainda sobre esse grupo, 6% demonstraram apego ao local com declaração de sentimentos de
cuidado com o lugar e 3% com sentimentos de dependência. Dos funcionários, 12% reportaram sentimentos de identidade que
os vinculam ao local, 3% reportaram de sentimentos de cuidado e 1% a satisfação de interesses e necessidades.
Discussão
Esse estudo procurou avaliar a riqueza do Parque Estadual da Pedra Branca em termos de serviços culturais a partir da
percepção de moradores, visitantes e funcionários da unidade de modo a levantar questões para o manejo da unidade, sem que
se pretenda extrapolar para algo como análise da importância do PEPB para a sociedade carioca, que estaria para além do possível com a amostra realizada.
Os resultados revelam o quanto o PEPB é rico em serviços culturais percebidos, associados a ecossistemas e paisagens
e ao seu potencial em oferecer benefícios imateriais aos visitantes. A unidade engloba muitas áreas que possuem significados
subjetivos de ordem educativa, cênica, espiritual, religiosas, interativa, recreativa, diversamente cultural e hereditária para cada
um dos grupos.
De forma similar aos resultados dos estudos conduzidos por Brown, Montag & Lyon (2011), a apreciação da beleza
cênica, recreação e interação social foram os benefícios culturais mais mapeados pelos entrevistados e que apresentaram maiores índices de correlação entre si. Esta relação pode se dar pelo fato da beleza cênica estar associada ao grau de preservação
percebido dos ecossistemas e seus processos naturais e motivar a prática do ecoturismo, esportes ao ar livre e interação social
(MEA, 2005).
Os resultados também reforçam a constatação de que as pessoas percebem os serviços culturais diferentemente, de
acordo suas origens, coerente com os achados de Plieniger et al. (2013). Enquanto turistas relatam majoritariamente sentimentos
de prazer e cuidado com o parque, os moradores relatam sentimentos de enraizamento e identidade. De fato, ao considerar os
níveis de percepção, é comum que os grupos humanos revelem suas bagagens experienciais distintas devido a elementos como
cultura, ocupação, faixa etária, gênero, nível socioeconômico, entre outros, que revelam percepções sob diversas formas, inclusive em relação às mesmas áreas (GONÇALVES; HOEFFEL, 2012).
A identificação e mapeamento dos hotspots de serviços culturais podem ajudar a revelar o grau de coincidência espacial
entre benefícios percebidos pelos usuários e o reconhecido e proposto nos instrumentos de gestão da área (BROWN; MONTAG;
LYON, 2011). No caso do PEPB viu-se que, em geral, ao redor dos atrativos já identificados oficialmente pela gestão do parque
concentram-se boa parte as áreas percebidas pela beleza cênica e oportunidades de interação social e aprendizado – em parte
o plano de manejo valorizou atrativos já usados pela população, por outro lado, a população usufrui com mais intensidade e conhece aquilo que é divulgado. É importante mencionar que os moradores conhecem um número grande de atrativos históricos e
naturais no parque que ainda não foram identificados e mapeados pelos administradores da unidade.
Benefícios religiosos e espirituais também foram reportados pelos entrevistados. Parte desta percepção está associada
às igrejas católicas e evangélicas que servem como local de manifestação e referência religiosa para os moradores e visitantes.
Outros locais com exuberância natural também estão relacionados à religiosidade e sentimentos espirituais, embora não possuam uma referência religiosa clara. Em geral, devido à sua riqueza natural, especialmente pelas matas e cachoeiras, associada
à tranquilidade em meio ao ambiente urbano em que o PEPB insere-se, a área acaba por ser muito procurada por pessoas que
buscam expressar sua religiosidade (INEA, 2013). O entendimento das motivações, valores e atitudes que envolvem a percepção
dos indivíduos, entre eles, os entrevistados da pesquisa, é fundamental para gestores de um parque das proporções do PEPB,
localizado no centro da segunda maior cidade do Brasil. Compreender essa percepção poderá, por um lado, auxiliar a administração a melhorar o diálogo com os moradores na unidade e mitigar o impacto ambiental causado por sua presença na região,
por outro, poderá subsidiar a elaboração de programas que agreguem valores socioculturais aos ativos naturais da unidade na
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
90
gestão do uso público. É possível assim que o manejo do parque, a partir levantamento das percepções dos principais atores
sociais sobre este ecossistema, fortaleça os elos entre os usuários e o PEPB, tornando a unidade mais conhecida da população
e contribuindo ainda mais para a qualidade de vida urbana.
Referências
BROWN, G.; MONTAG, J. M.; LYON K. Public Participation GIS: A Method for Identifying Ecosystem Services, Society & Natural
Resources, n. 25, p. 633-651, 2011.
BROWN, G.; SCHEBELLA, M. & WEBER, D. Using participatory GIS to measure physical activity and urban park benefits,
Landscape and Urban Planning, v. 121, p. 34-44, 2014.
CHIESURA, A. The role of urban parks for the sustainable city. Landscape and Urban Planning, v. 68, p.129–138, 2004.
CHIESURA, A.; DE GROOT, R. Critical natural capital: a socio-cultural perspective. Ecological Economics, v. 44, p. 219-231,
2003.
FADINI, A.A.B. Sustentabilidade e Identidade Local: Pauta para um Planejamento Ambiental Participativo em Subbacias Hidrográficas da Região Bragantina. 2005 Tese (Doutorado), UNESP, Rio Claro, 2005.
GODBEY, G.C.; GRAEFE, A. & JAMES, S.W. The benefits of local recreation and parkservices: a nationwide study of the
perceptions of the American public. Ashburn VA: National Recreation and Park Association, 1992.
GONÇALVES, N. M.; HOEFFEL, J. L. M. Percepção ambiental sobre unidades de conservação: os conflitos em torno do Parque
Estadual de Itapetinga – SP. Revista VITAS: Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade, n. 3, 2012.
INEA. Plano de Manejo – Parque Estadual da Pedra Branca. Rio de Janeiro, 2013.
MAAS, J.; VERHEIJ, R.A.; GROENEWEGEN, P.P.; VRIES, S.; SPREEUWENBERG, P. Evidence based public health policy and
practice: Green space, urbanity, and health: how strong is the relation? J. Epidemiol. Community, v. 60, p 587-592, 2006.
MEDEIROS, R.; YOUNG; C.E.F.; PAVESE, H. B.; ARAÚJO, F. F. S. 2011. Contribuição das unidades de conservação brasileiras para a economia nacional: Sumário Executivo. Brasília: UNEP-WCMC, 44p.
Millenium Ecosystem Assessment (MEA). Ecosystems and Human Well-Being: Synthesis. Washington, DC: Island Press,
2005.
PLIENINGER, T., DIJKS, S., OTEROS-ROZAS, E.; BIELING, C. (2013): Assessing, mapping, and quantifying cultural ecosystem
services at community level, Land Use Policy, v.33, p.118-119, 2013.
RAMBALDI, G.; MCCALL, M.; KYEM, P.A.; WEINER D. Manejo y comunicación de la información territorial en forma participativa en los países en vía de desarrollo. The Eletronic Journal on Information Systems in Developing Countries, v. 11,
n.25,p.1-11. 2006.
RAYMOND, C. M.; BRYAN, B. A.; MACDONALD, D. H.; CAST, A.; STRATHEARN, S.; GRANDGIRARD, A.; KALIVAS, T. Mapping
community values for natural capital and ecosystem services. Ecological Economics, v. 68, p.1301-1315, 2009.
SNUC - Sistema Nacional de Unidades de Conservação; Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000; Ministério do Meio Ambiente, 2000.
UNEP/CDB. Towards effective protected areas systems: An action guide to implement the Convention on Biological
Diversity. CDB Series no. 18. Montreal, Canadá, 2005.
02: Sistemas de Gestão e Governança
91
MUDANÇAS AMBIENTAIS NA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DE
ANHATOMIRIM SOB A PERSPECTIVA DA COMUNIDADE LOCAL
Zignani, Isabela1; Hanazaki, Natalia1 & Simões-Lopes, Paulo Cesar de Azevedo1
1. Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Ecologia e Zoologia e PPG em Ecologia e Zoologia, email: [email protected]
Resumo
A APA de Anhatomirim (APAA) é uma UC de Uso Sustentável que foi criada com o principal objetivo de proteção da população
residente de Sotalia guianensis (botos-cinza).Estudos recentes sugerem que a APAA está sofrendo mudanças ambientais, assim
como alteração na área de ocupação dos botos-cinza. Nosso objetivo foi de investigar as percepções de moradores locais da
APAA sobre essas mudanças. As informações foram coletadas através 76 entrevistas individuais com moradores locais, dos quais
35% são pescadores artesanais. Todos os entrevistados perceberam mudanças ambientais na APAA e seu entorno e 84% perceberam mudanças na área de ocupação dos botos-cinza. A consideração das percepções locais sobre mudanças pode trazer
indicativos importantes sobre a efetividade da UC, com vistas para uma gestão participativa, assim evidenciar possíveis conflitos
com órgãos fiscalizadores.
Palavras-chave: Áreas de Proteção Ambiental, Mudanças Ambientais, Botos-cinza.
Introdução
No Brasil, as Unidades de Conservação (UC) compõem o principal mecanismo para conservação in situ da biodiversidade (PRIMACK; RODRIGUES, 2001). Tais UC compreendem duas grandes divisões: as Unidades de Proteção Integral e as
Unidades de Uso Sustentável (BRASIL, 2000). Áreas de Proteção Ambiental (APAs), inseridas no contexto de Uso Sustentável,
compreendem a categoria de UC que possui maior área total em território brasileiro (CNUC/MMA, 2014).
Tal categoria tem como objetivo básico “proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais” (BRASIL, 2000). Para garantir que estes objetivos sejam alcançados, a gestão
participativa e a efetiva implementação do plano de manejo e de seu zoneamento, constituem um tripé fundamental. A presença
de moradores em UC de Uso Sustentável fortalece a necessidade de entendimento da interface entre pessoas e recursos naturais, de modo a garantir e monitorar a funcionalidade do uso sustentável com a conservação da natureza.
A zona costeira de Santa Catarina é uma das regiões mais densamente povoadas no Estado e importante polo para atividades econômicas, tais como portos, indústrias, pesca e turismo. A maior parte dessas atividades utiliza-se dos atributos naturais
para se desenvolver, o que é notório no caso das atividades portuárias, turísticas e pesqueiras (BRASIL, 2011). Esta zona abriga
nove UC Marinho-costeiras, com diferentes instâncias de gestão: cinco federais, duas estaduais e três municipais (ECOMAR,
2010) e diversas categorias de manejo.
A APA de Anhatomirim, localizada ao norte da ilha de Santa Catarina foi criada em maio de 1992 e se enquadra como
UC de uso Sustentável, o que possibilita a permanência de populações em seu interior e exploração sustentável de recursos
(BRASIL, 2011). A criação desta UC tem como objetivos fundamentais a preservação dos remanescentes de Floresta Ombrófila
Densa e proteção das áreas de alimentação, reprodução e descanso da população de boto-cinza (Sotalia guianensis), que tem
nesta região o limite austral de sua ocorrência (SIMÕES-LOPES, 1988).
Estudos recentes sugerem que a população de Sotalia guianensis, residente na Baía Norte vem demonstrando uma
tendência de alteração em seus padrões de ocupação de áreas, onde se tem observado uma gradual diminuição da frequência
de relatos de avistagem dessa espécie nas áreas onde, no passado eram comumente avistadas, como na Baía dos Golfinhos,
chamada também de Baía dos Currais (BRASIL, 2013).
Nos últimos 23 anos, além da tendência de alteração nos padrões de ocupação dos golfinhos, a APAA e o seu entorno vem
sofrendo um acelerado desenvolvimento urbano e intensa atividade turística gerando ou intensificando problemas ambientais e
estruturais, tais como ocupação das encostas, tratamento de esgotos domésticos e poluição (FLORIANI, 2005). Diversos outros
componentes da APAA, apresentam-se ameaçados por este acelerado desenvolvimento urbano, como: a avifauna, herpetofauna,
02: Sistemas de Gestão e Governança
93
mastofauna, por perda de seus habitats originais e os recursos pesqueiros, com a depleção de estoques ao longo dos anos
(BRASIL, 2013).
Relatar a percepção da comunidade local quanto a mudanças ambientais é de fundamental importância para o entendimento e avaliação da situação das UC e para averiguar se estas estão cumprindo, de fato, o papel da conservação biológica
com integração da comunidade local. Considerando-se a relevância das populações humanas locais como condições para a
conservação da biodiversidade, a Etnobiologia tem como objetivo analisar a classificação das comunidades humanas sobre a
natureza, em particular sobre os organismos (BEGOSSI, 1993). Investiga como a natureza é vista, manejada e apropriada pela
população humana.
Os estudos sobre Etnoecologia visam também contribuir com estratégias para a conservação da biodiversidade e melhoria da qualidade de vida humana. Os esforços conservacionistas devem, também, estar endereçados para os problemas sócioeconômicos destas populações locais que dependem direta ou indiretamente da biodiversidade (HANAZAKI, 2003). Assim, o
conhecimento ecológico tradicional pode complementar o conhecimento científico através do fornecimento de experiências
práticas derivadas da convivência nos ecossistemas e respondendo a mudanças deste, numa perspectiva que converge com as
propostas de manejo adaptativo (HOLLING; BERKES; FOLKE, 1998).
Sob o enfoque da Etnoecologia, o presente estudo visa compreender e avaliar a percepção da comunidade local da
Costeira da Armação quanto às mudanças ambientais locais, os conflitos e expectativas referentes à APAA e o delineamento
das áreas atuais de ocupação da espécie S. guianensis. Como referência temporal inicial partiremos dos registros de Ferreira,
Hanazaki & Simões-Lopes (2006) sobre os conflitos ambientais e a conservação do boto-cinza na visão de uma comunidade da
APA de Anhatomirim.
O objetivo geral deste trabalho é de investigar a percepção da comunidade local quanto a mudanças ambientais na APAA
e seu entorno, tanto em relação ao ambiente quanto em relação aos botos-cinza.
Metodologia
Área de estudo
A APA de Anhatomirim está localizada no município de Governador Celso Ramos, compreendendo área marinha e terrestre com um total de 4.602,6 hectares (WEDEKIN; DAURA-JORGE; SIMÕES-LOPES, 2002). A área marinha da APA de Anhatomirim é constituída por enseadas e praias, incluindo a Ilha de Anhatomirim, onde se localiza a Fortaleza de Santa Cruz, a Enseada da Armação e a Baía dos Currais. A população humana residente no interior da APA está distribuída em seis localidades:
Areias de Baixo, Caieira do Norte, Praia do Antenor, Costeira da Armação, Fazenda da Armação e Armação da Piedade. Como
núcleo adjacente à Baía dos Golfinhos, local de maior incidência dos botos da espécie S. guianensis, a comunidade da Costeira
da Armação foi selecionada para o estudo. A comunidade da Costeira possui como principal prática econômica a pesca artesanal e, mais recentemente, o turismo.
Planejamento da amostragem
O cálculo do esforço amostral e delineamento foi baseado no universo de 282 moradores da comunidade e 10% de erro
amostral (BARBETTA, 2002), seguindo os critérios de inclusão: ser maior de 18 anos e residente fixo ou temporário da Costeira
da Armação há pelo menos cinco anos. Após a obtenção de anuências prévias e do consentimento do entrevistado por meio do
aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a coleta de informações foi realizada através de entrevistas individuais,
com questões abertas e fechadas.
As questões visaram analisar a percepção dos moradores locais sobre as mudanças ambientais, estruturais e sociais
percebidas na UC e seu entorno. Cada evento percebido como mudança foi classificado como mudança positiva, negativa ou
neutra, pelo próprio entrevistado. Os resultados obtidos nas entrevistas foram analisados através de estatística descritiva (eg.
porcentagens, médias) e comparados com a literatura.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
94
Resultados
Características da população amostrada
Foram realizadas 76 entrevistas,entre os meses de dezembro de 2014 e fevereiro de 2015, com moradores adultos, sendo
41 homens (54%) e 35 mulheres (46%), com média de idade de 52 anos e a maioria de origem local. Dos entrevistados, 35% são
pescadores, 21% são donas-de-casa, 16% são aposentados, 8% trabalham com atividades ligadas ao turismo (comerciantes,
restaurantes e embarcações de turismo) e 15% possuem outras ocupações ou desempregados (funcionário público, autônomo
e lavrador) (Figura 1).
Figura 1. Ocupação dos moradores entrevistados na comunidade da Costeira da Armação,
Área de Proteção Ambiental de Anhatomirim, Santa Catarina.
Percepção das mudanças ambientais
Todos os entrevistados perceberam mudanças ambientais na APAA e seu entorno. Os entrevistados citaram de 2 a 11
mudanças, sendo o número total de citações de 410. As mudanças percebidas pelos moradores da comunidade foram referentes à Fauna e Flora local e do entorno (38%) – mais mata, mais animais, desmatamento, presença de Pinus, rios, botos-cinza;
Estruturais (23%) - problemas no saneamento básico, asfaltamento local, construções; Turismo (13%); Fiscalização/Proibições
(13%) - delimitações, arrastão na Baía, defeso, caça e roça; Outros (7%) - marisqueiras, peixes, mato e mar; Pesca Artesanal (6%)
- mudanças nos artefatos de pesca e embarcações (Figura 2 e 3).
Figura 2. Mudanças ambientais relatadas pelos moradores entrevistados na comunidade da Costeira da Armação,
Área de Proteção Ambiental de Anhatomirim, Santa Catarina.
As mudanças relatadas quanto à Fauna e Flora e Fiscalização/Proibições e Turismo apresentaram-se positivas diante da
percepção dos moradores locais, destacam-se Fauna e Flora com 58% das respostas positivas, como aumento da mata nas encostas e Turismo com 56% das respostas positivas, relacionadas ao retorno financeiro aos moradores locais. Mudanças relativas
à Pesca artesanal, Estruturais e Outras, apresentaram-se em sua maior proporção de respostas como negativas, destacando-se a
Pesca artesanal, relatada negativamente com 81% das respostas, como as proibições de arrasto artesanal na Baía dos Golfinhos
e Outras mudanças com 73% das respostas negativas, como a mudança na área de ocupação dos botos-cinza.
02: Sistemas de Gestão e Governança
95
1957(1)
2015(2)
Figura 3. Imagens aéreas da Baía dos Golfinhos, adjacente a comunidade Costeira da Armação. As imagens foram tratadas da mesma cor
para melhor visualização das mudanças, como na Fauna e Flora (aumento da mata nativa) e estruturais (asfalto e residências).(1) Imagem
aérea cedida pelo Governo de Santa Catarina - Secretaria de Estado do Planejamento. (2) Imagem aérea Google Maps (2015).
Percepção da mudança da área de ocupação dos botos da espécie Sotalia guianensis
Quando perguntados sobre o que achavam dos botos da região, 54% dos entrevistados relataram que o boto trazia benefícios para a comunidade, como aumento do turismo e ajuda na pesca; 44% relataram que os botos não interferiam em suas
atividades; 1% não soube responder; e 1% relatou que os botos traziam prejuízos para a pesca, pois estes comiam os peixes que
os pescadores artesanais poderiam pescar.
A mudança na área de ocupação dos botos-cinza foi percebida por 84% dos entrevistados, sendo que, quando perguntados sobre observarem os botos em seu local de maior ocorrência, Baía dos Golfinhos, 72% não os observa na Baía, 28% ainda
observam, relatando “de vez em quando”, “raramente vê” e “observo pela manhã antes dos barcos de turismo chegarem”. A
média de anos relatada da mudança de área foi de nove anos e o local atual de maior frequência dos botos citado por 58% dos
entrevistados foi a Baía de São Miguel, localizada nas proximidades da APA de Anhatomirim.
O maior número de citações relatadas quanto às possíveis causas da mudança de área de ocupação da espécie foi
relacionada com a presença de barcos de turismo (escunas) dentro da Baía dos Golfinhos (45 citações). A proibição do arrasto
dentro da Baía, com 19 citações, foi relatada como uma das causas da mudança de área dos botos, pois quando o arrasto era
permitido, os pescadores artesanais relatam que jogavam o chamado “comedio” (peixes pequenos ou sobras de peixes) para os
botos, onde estes viam oportunidade de comida fácil e assim permaneciam no local.
Os mesmos informantes entrevistados que mencionaram sobre o arrasto relataram que os botos migraram para a Baía de
São Miguel, por esta prática não ser proibida ali. Outras citações como causas da mudança foram: lanchas (“voadeiras”), ausência de comida, poluição da água pelo óleo das escunas, lixo e traineiras (tipo de barco de arrasto) dentro da Baía, as quais não
são permitidas. Uma das sugestões de parte dos entrevistados, para que os botos voltem a frequentar a Baía, com assiduidade,
seria a de proibir a entrada de escunas nesta Baía e diminuir a quantidade destas pela área da APA de Anhatomirim. Entretanto,
é importante destacar que a sugestão não é consensual entre todos os entrevistados.
Discussão
As mudanças locais citadas são mudanças que ocasionam interferência direta para os entrevistados, como problemas de
saneamento básico e proibições e delimitações relacionadas ao uso de recursos, o que pode intensificar conflitos de uso entre moradores e gestão da UC. O relato de mudanças tais como os problemas com a fiscalização na pesca, persistem ao longo do tempo,
sendo relatadas no trabalho de Ferreira, Hanazaki & Simões-Lopes (2006), que coletou dados na mesma comunidade em 2004.
O maior de número de citações relacionadas à Fauna e Flora local e entorno da APAA referiam-se à regeneração da
mata nativa e um aumento no número de animais silvestres. Tal aumento deve-se às proibições de desmatamento e aberturas de
roças no interior da APAA, previstos pelo seu Plano de Manejo. O turismo é uma atividade recente na comunidade, muito intensa
e problemática para alguns moradores locais. Além do retorno financeiro, benéfico para a comunidade, os turistas geram pro-
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
96
blemas ambientais e estruturais, tais como ocupação das encostas, necessidade de tratamento de esgotos domésticos e aumento da poluição (FLORIANI, 2005).
Uma sugestão de moradores para a mudança percebida relacionada à área de ocupação dos botos Sotalia guianensis
foi a de proibir a entrada das escunas na Baía dos Currais, local que, há cerca de dez anos apresentava-se como local residente
desta população de botos. A sugestão de organizar e diminuir o número de escunas por toda área da APAA também foi mencionada, similar ao que foi apresentado por Ferreira, Hanazaki & Simões-Lopes. Esta percepção dos moradores nos mostra o
seu interesse, para a conservação dos botos-cinza da região que, além de trazer benefícios para a comunidade, como o retorno
financeiro, contribui para a sua conservação.
Conclusões
A consideração das percepções locais sobre mudanças pode trazer indicativos importantes relacionados a conflitos
com órgãos de fiscalização e com a própria UC, onde moradores se sentem prejudicados à medida que muitas restrições são
impostas e não são discutidas alternativas para o seu sustento, principalmente para a comunidade de pescadores artesanais. No
caso de mudanças identificadas como positivas, elas também podem ser indicativos da efetividade de ações de gestão da UC.
Referências
BARBETTA, P. A. Estatística aplicada às ciências sociais. 5ª ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2002.
BEGOSSI, A. Ecologia Humana: Um Enfoque Das Relacões Homem-Ambiente. Interciência, v 18, p. 121-132, 1993.
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza: Lei n. 9.985, de 18 de
julho de 2000; Decreto n. 4.340, de 22 de agosto de 2002. Decreto n. 5.758, de 13 de abril de 2006. Brasília: MMA/ SBF, p.76, 2011.
BRASIL. Instituto Chico Mendes de Conservaçãod a Biodiversidade. Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental de
Anhatomirim – Encarte 2: Diagnóstico da APA de Anhatomirim. Florianópolis, p. 35-46, 2013.
BRASIL. Lei 9.985, de 18 de Julho de 2000. Publicada no Diário Oficial da União em 19 de Julho de 2000.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm Acesso em 30 julho 2014.
CNUC/MMA. Tabela consolidada das Unidades de Conservação. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/images/arquivo/80112/UCporCategoria0214.pdf>Acesso em 30 julho 2014.
ECOMAR. 2010. Santa Catarina. Disponível em: www.ecomarbrasil.org. Acesso em 20 março 2014.
FERREIRA, M. C. E.; HANAZAKI, N.; SIMÕES-LOPES, P. C. A. Os conflitos ambientais e a conservação do boto-cinza na visão da
comunidade da APA de Anhatomirim, Sul do Brasil. Natureza & Conservação, Curitiba, v.4, 2006.
FLORIANI, D. C. Situação atual e perspectivas da área de Proteção Ambiental do Anhatomirim – SC. 2005. Dissertação
(mestrado em Geografia), Universidade Federal de Santa Catarina, 2006.
HANAZAKI, N. Comunidades, conservação e manejo: o papel do conhecimento ecológico local. Biotemas, Florianópolis, v. 16,
n. 1, p. 23-47, 2003.
HOLLING, C. S.; BERKES, F.; FOLKE, C. Science, sustainability and resource management. In: BERKES, F.; FOLKE, C. (eds.)
Linking ecological and social systems: management practices and social mechanisms for building resilience. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
PRIMACK, R.B.; RODRIGUES, E. Biologia da Conservação. Londrina: Ed. Planta. 2001.
SIMÕES-LOPES, P. C. Ocorrência de uma população de Sotalia fluviatilis (Gervais,1853) (Cetacea, Delphinidae) no limite sul de
sua distribuição, Santa Catarina, Brasil. Biotemas, v. 1, n. 1, p. 57-62, 1988.
WEDEKIN, L.; DAURA-JORGE, F.G.; SIMÕES-LOPES, P.C. Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, 3., 2002, For-
02: Sistemas de Gestão e Governança
97
taleza. Desenho de unidade de conservação marinha com cetáceos: estudo do caso do boto-cinza, Sotalia guianensis, na Baía
Norte de Santa Catarina, sul do Brasil. Anais..., Fortaleza, p. 56-62, 2002.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
98
MALÁRIA E DENGUE: IMPRESSÕES SOBRE A SAÚDE DA POPULAÇÃO RIBEIRINHA
DO PARQUE NACIONAL SERRA DO DIVISOR, ESTADO DO ACRE
Lana, Raquel Martins1; Oliveira, Francisco Giovane Silva De2; Schlosser, Andreus Roberto3; Arruda, Rayanne Alves De.3; Araújo,
Felipe Monteiro De3; Santos, Ana Caroline Santana Dos3; Bastos, Paula Rubia Jornada3; Silva-Nunes, Monica Da3;
Honório, Nildimar Alves4,5 & Codeço, Cláudia Torres6
1.Doutoranda do PPG em Epidemiologia em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública Fiocruz, [email protected].
2. Graduando de Biologia, Universidade Federal do Acre. 3. Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Acre.
4.Laboratório de Transmissores de Hematozoários, Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz. 5. Núcleo Operacional Sentinela de Mosquitos
Vetores-NOSMOVE/Fiocruz. 6. Programa de Computação Científica, Fiocruz.
Resumo
Em fevereiro de 2015 foi realizado um inquérito domiciliar junto à população residente do Parque Nacional Serra do Divisor,
localizado no noroeste do estado do Acre, com o objetivo de caracterizar essa população em relação ao perfil socioeconômico
e principalmente em relação à saúde com foco em malária, conhecimento sobre dengue (recente na região) e impressões autorreferidas sobre a saúde. Os resultados do inquérito mostraram que quase 100% da população relata ter tido malária alguma vez
na vida, mas nos últimos 12 meses, apenas 21%. Em sua totalidade, quase todos os entrevistados tinham conhecimento sobre a
dengue e mais da metade considerava seu estado de saúde como bom (42%). Das principais queixas de saúde, estão problemas
nos rins, coluna e gastrite e as demandas mais mencionadas são a necessidade de médicos, medicamentos e agentes de saúde.
Palavras-chave: Saúde, Malária, Dengue, População Ribeirinha.
Introdução
A Organização Mundial de Saúde aponta a exclusão social como importante causa de desigualdade em saúde (WHO,
2008). A exclusão social, sendo essa definida como o não acesso à direitos, independente da existência de leis que os garantam, retira das pessoas suas formas e instrumentos de crescimento e autodeterminação (OLINDA, 2006). Para compreender e
interferir no binômio exclusão/inclusão e saúde/doença, é necessário aprofundar nos determinantes sociais da saúde a nível
local. Seguindo o modelo de Dahlgren e Whitehead, o conhecimento do ambiente de trabalho, de vida, o acesso aos serviços de
saúde, a habitação, e alimentos, interagem com hábitos e estilos de vida individuais, e é na complexidade dessa interação que
as políticas de redução de iniquidade em saúde devem ser pensadas (DAHLGREN; WHITEHEAD, 1992; BUSS; FILHO, 2007).
O alvo do presente estudo é a população residente no Parque Nacional Serra do Divisor (PNSD), localizado no noroeste
do estado do Acre, na fronteira do Brasil com o Peru. Criado em 1989 pelo Decreto Nº 97.839 (BRASIL, 1989), o PNSD protege
o divisor de águas das bacias hidrográficas do Médio Vale do Rio Ucayali no Peru e do Alto Vale do Rio Juruá no Acre, uma das
áreas de maior biodiversidade do país (PNSD, 1998).
Essa população tem hábito ribeirinho e descendem em sua maioria de nordestinos ex-seringueiros, que antes da implantação do parque, tinham como principal atividade econômica a agricultura de subsistência, além da seringa, pesca, pecuária de
pequeno porte, extrativismo, extração madeireira, caça de subsistência e comercial (PNSD, 1998).
As populações ribeirinhas na Amazônia apresentam especificidades no que tange aos riscos à saúde decorrentes do
ambiente, das condições de vida e de trabalho em que vivem (LIMA; POZZOBON, 2005). Localmente, essas populações estão
expostas à um ambiente de alta diversidade biológica, baixa densidade demográfica, e difícil implementação de medidas sanitárias, assim como o difícil acesso aos serviços de saúde, componentes esses, que favorecem a exclusão e o aumento do risco
de adoecer. Além disso, há também um fluxo migratório entre a população ribeirinha e a sede das cidades (PNSD, 1998), o que
favorece o contato com agravos típicos de áreas urbanas.
Nas últimas décadas, ocorreram muitas mudanças no estado do Acre, e em particular na região do Alto Juruá, onde o parque
se localiza. Uma intensificada política de desenvolvimento levou à implantação de diversos assentamentos rurais, inclusive na área
de transição do PNSD, bem como programas de incentivos fiscais para estimular a pecuária e a instalação deatividades de piscicul-
02: Sistemas de Gestão e Governança
99
tura.A pavimentação da BR-364 ligando o Alto Juruá à Rio Branco permitiu a maior mobilidade da população humana, contribuindo
para aumentar a atratividade do Alto Juruá para migração e trabalho, e além disso, para o turismo. Programas de governo como
o “Luz para Todos” e Programas Assistenciais como Bolsa Família, também modificaram a forma de viver dessas populações.
Nesse contexto, duas doenças transmitidas por artrópodes vetores são de importância epidemiológica no estado do Acre,
e interesse particular desse estudo: malária e dengue. A malária é uma doença tratável, mas que pode resultar em alta mortalidade, na ausência de assistência. Na região do Alto Juruá, a malária é importante causa de morbidade e carga de doença, tendo
sido registrado epidemias nos últimos 20 anos (SVS/MS, 2014). Os municípios de Mâncio Lima e Rodrigues Alves, municípios
com maior número de casos de malaria do Alto Juruá, relataram, em 2013, um índice parasitário anual de 250 lâminas positivas
por 1000 habitantes por Plasmodium vivax e 80 lâminas positivas por 1000 habitantes, de malária por Plasmodium falciparum
(SVS/MS, 2014). Sabe-se que o Anopheles darlingi, principal vetor da doença no país, está presente nessa região, onde encontra
ambiente favorável a sua manutenção em florestas inundadas e tanques de piscicultura (principalmente em áreas rurais e urbanas – fora do PNSD) (REIS, 2015).
Figura 1. Mapa de localização do PNSD no estado do Acre, estados vizinhos e países de fronteira.
Em amarelo, os limites do PNSD no noroeste do Acre. Fonte: ICMBio, 2015.
A dengue, por sua vez, era ausente no Acre até o final dos anos 90, enquanto praticamente todos os estados brasileiros
registravam importantes epidemias (NOGUEIRA et al., 1999). A partir do ano 2000, viu-se a dengue sendo introduzida e disseminando-se pelo estado do Acre, de forma a tornar-se atualmente uma das prioridades de controle na região (MS/SINAN, 2014).
Em 2014, a primeira epidemia de dengue assolou a região do Alto Juruá com um pico de 200 casos notificados em uma semana
no mês de setembro desse ano. Em 2015, até a semana epidemiológica 23, a taxa de incidência era de 750 casos por 100.000
habitantes (SVS/MS, 2015).
A dengue coloca em risco não só a população local urbana mas aquela que vive no ambiente silvestre e que comuta
entre os dois espaços. A mobilidade da população entre área urbana e ribeirinha expõe essa última aos agravos típicos do meio
urbano, tornando-a de especial interesse para a vigilância epidemiológica e para a assistência em saúde. Do ponto de vista da
vigilância, trata-se também de uma população exposta à novos patógenos, na qual o diagnóstico diferencial é muito difícil devido
às dificuldades de acesso.
Nessa perspectiva, este estudo visa contribuir para um melhor conhecimento das condições de vida da população ribeirinha residente no PNSD em relação à exposição à duas doenças de naturezas etiológicas distintas, uma predominantemente
silvestre e local (malária) e outra importada (dengue), para as quais existem políticas públicas bem definidas a nível nacional.
Além disso, caracterizar os principais problemas em relação à saúde da população e o acesso à assistência.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
100
Metodologia
Área de Estudo
O estudo foi realizado no setor norte do Parque Nacional da Serra do Divisor-PNSD (7°16’9°4’ S, 72°43’74° O), ao longo
dos Rios Moa e Azul. O encontro desses dois rios define o início do PNSD, que se estende pela margem direita do Rio Azul, a
montante, e ambas as margens do Rio Moa, também a montante. No Rio Azul, as localidades encontravam-se em sua maioria na
margem esquerda, que constitui uma área de assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
O Rio Moa segue até a Serra do Divisor.
Nesse setor norte, o parque é vizinho de áreas indígenas (Nukini e Naua) e do Projeto de Desenvolvimento Sustentável
(PDS) São Salvador. É também onde se encontram os principais atrativos turísticos do parque, na Serra do Divisor (GUERRA,
2004). O único acesso é por barco, e a sede municipal mais próxima é a cidade de Mâncio Lima, de 4 a 8 horas de viagem, dependendo da embarcação e época do ano.
Descrição da Expedição
O inquérito domiciliar foi realizado em fevereiro de 2015 durante 7 dias por uma equipe de 9 pessoas além de 3 guias
que também foram responsáveis pelo transporte, acomodação e introdução da equipe às comunidades. O ponto de partida foi
o porto de Mâncio Lima, no Rio Japiim, seguindo primeiramente pelo Rio Azul até a Comunidade Bom Sossego e retornando ao
cruzamento dos dois rios, seguindo pelo Rio Moa até a Comunidade Serra do Moa.
Dados
Entrevistas por meio de questionário foram aplicadas ao responsável pelo domicilio, maior de 18 anos, em uma amostra
de 107 domicílios em 14 das 26 localidades ao longo dos rios. A entrevista era feita após a explicação do objetivo da pesquisa e a
assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. O questionário coletou informações sobre: características do domicílio,
hábitos e costumes dos moradores, em particular associado ao risco de malária, características sócio-demográficas, morbidade,
e acesso ao serviço de saúde.
O protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação
Oswaldo Cruz (nº 861.871). Além disso foi obtida a autorização do ICMBio para a realização das atividades no PNSD (nº 46911-1).
Descrição das variáveis e Análises
Foram analisadas as variáveis relacionadas à saúde da população, além de variáveis demográficas como idade e sexo
do responsável pelo domicilio. As variáveis “Malária pelo menos uma vez na vida” e “Malária nos últimos 12 meses” (Sim/Não)
foram construídas a partir de perguntas sobre a primeira malária, a última malária e malária nos últimos 12 meses. As variáveis
coletadas sobre dengue foram: “Ouviu falar de dengue (Sim/Não)”, “Já teve dengue” (Sim/Não), “Conhece alguém que já teve
dengue” (Sim/Não) e “Sabe como se pega dengue” (Sim, Não, Parcial). A impressão do entrevistado em relação à sua saúde
foi baseada na pergunta: “O que acha do seu estado de saúde?”, categorizada em Ruim, Regular e Bom, e a pergunta “Quais os
problemas de saúde você tem?”. Em relação aos serviços de saúde, perguntou-se quais as principais demandas para melhorar
a saúde da população.
Análise exploratória das variáveis acima foi realizada utilizando-se gráficos de barra e tabelas de medidas resumo. Os
gráficos foram feitos no software R Core Team versão 3.1.1 (2014).
Resultados
Caracterização da População
Foram entrevistados 23 domicílios ao longo do Rio Azul e 84 no Rio Moa. A Tabela 1 mostra a relação de localidades
visitadas, o número estimado de domicílios por localidade e o número e porcentagem de domicílios entrevistados. Do total de
entrevistados 35% eram do sexo masculino e 65% do sexo feminino. A idade variou de 18 anos (mínimo exigido para a entrevista)
a 76 anos, com média de 39 anos.
02: Sistemas de Gestão e Governança
101
Caracterização das condições do domicilio (Luz, Água e Esgoto)
Dentre os domicílios entrevistados, um terço não fazia uso de energia elétrica, recorrendo ao uso de velas, lanternas,
lamparinas e a poronga (iluminação utilizada pelos seringueiros). Os 2/3 restantes fazem uso de energia produzida via gerador.
Normalmente cada domicílio tem o seu gerador, ou dependendo da localidade, um é ligado em mais de um domicílio, e então,
esses dividem as despesas com o combustível, que são altas. O uso do gerador é restrito às primeiras horas da noite, variando
de 1 a 3 horas ligado.
A água utilizada para cozinha e banho é retirada diretamente dos rios, igarapés e cacimba, e normalmente usada sem
tratamento. Alguns moradores relataram o uso de cloro na água de beber, mas esse uso está condicionado à disponibilidade nos
postos de saúde. No comércio, não existe produtos de higienização de água para venda. Nas localidades e/ou domicílios em
que era possível, a fossa é utilizada como sistema de esgoto. No entanto, em algumas localidades o alagamento do rio dá-se até
a porta dos domicílios, assim, a construção de fossa é inviável e as necessidades são feitas na mata.
Renda
Dois terços das famílias entrevistadas recebem algum tipo de auxílio financeiro do governo, sendo o mais comum o bolsa
família. A bolsa verde (assentamentos) e o auxílio pesca (para não pescarem na época de reprodução dos peixes) também foram
constantemente mencionados. Além das bolsas, a renda da população provem predominantemente do cultivo e venda da farinha
de mandioca. Com a redução do valor da saca de farinha, essa atividade encontra-se desvalorizada.
Malária, dengue e saúde da população
Dos 107 entrevistados, 92% relataram ter tido malária pelo menos uma vez na vida. Já nos últimos 12 meses, de fevereiro
de 2014 a fevereiro de 2015, 21% dos entrevistados tiveram malária (Figura 2).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
102
Figura 2. Proporção dos 107 entrevistados residentes do PNSD que relataram ter tido malária, pelo menos
uma vez na vida (3 colunas da esquerda), ou nos últimos 12 meses (3 colunas da direita)
Em relação à dengue (Figura 3), praticamente todos os entrevistados já tinham ouvido falar da doença (97%), enquanto
apenas 3% afirmaram ter tido dengue e 89% conheciam alguém que já teve. Mas somente 34% tinham algum conhecimento sobre a transmissão da doença e 2% sabia pelo menos parcialmente como se transmite a dengue, afirmando ser pela água e pelo
mosquito.
Figura 3. Proporção dos 107 entrevistados residentes no PNSD que afirmaram já ter ouvido falar da dengue, ter tido dengue,
conhecer alguém que teve dengue e sabem informar como se pega dengue.
Sobre as impressões da população em relação ao seu estado de saúde, 42% considera ter boa saúde, enquanto 36% considera ter uma saúde regular e 21% afirma ter a saúde ruim (Figura 4). Dentre as principais queixas estão a pressão alta, problema
nos rins, coluna e gastrite. Alguns entrevistados relataram mais de um problema de saúde (Tabela 2).
Figura 4. Impressões sobre o estado de saúde coletadas em 107 entrevistados no PNSD em fevereiro de 2015.
02: Sistemas de Gestão e Governança
103
Demandas da população e acesso aos serviços de saúde
A falta de médicos e medicamentos foi apontado como o maior problema de assistência de saúde (Tabela 3). Muitas
vezes os entrevistados afirmavam ter acesso apenas ao diagnóstico e tratamento de malária mas que para qualquer outro agravo,
era preciso se deslocar até a cidade de Mâncio Lima. A falta de agentes de saúde também foi apontado como outro problema,
já que anteriormente a municipalização da saúde, em geral, todos os postos tinham a presença constante de agentes. Também
mencionaram o fato de que muitas localidades terem posto de saúde, mas grande parte não está funcionando. Na data da
pesquisa, muitos moradores referiram recorrer à Área Indígena Nukini, onde há um posto de saúde com agente mantido pela
Comissão Pró-Índio do Acre, de esfera federal. A falta de microscopista, enfermeiro e dentista também foram reclamações frequentes. Na maioria das vezes, não pediam a presença diária desses profissionais, sugeriam que fosse uma vez por semana ou
mesmo uma vez por mês.
Discussão
O presente estudo constatou que a população do PNSD em alguns aspectos ainda necessita de maiores investimentos.
Apesar do Programa Luz para Todos, não existe uma distribuição uniforme de energia elétrica, que é totalmente vinculada às
condições de compra de combustível. Isso tem impacto na segurança alimentar, pois a população não tem como estocar alguns
alimentos, recorrendo a formas primitivas de conservação como o sal e o açúcar. As práticas de consumo de água e saneamento
observadas resultam em alto risco de contaminação já que muitas vezes a população toma banho, lava roupa e louça nos mesmos corpos d’água utilizados para cozinhar e beber. Estudos em outras regiões similares da Amazônia mostram a alta endemicidade de hepatite A em populações ribeirinhas, claramente relacionado à essas condições precárias de higiene (PAULA et al.,
2001). O desafio, porém, é implantar um sistema eficaz de tratamento de água e esgoto em uma área protegida e com tantas
regiões de difícil acesso. Mesmo com a construção de fossas, determinadas regiões necessitam de uma adaptação, uma vez que
o alagamento impossibilita a construção das mesmas.
Em relação a renda, não existe uma organização que formalize o comércio na região, para escoamento dos produtos
como a farinha de mandioca (principal produção), feijão, milho, entre outros. Além disso, a saca da farinha foi desvalorizada
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
104
devido a concorrência com grandes produtores e o combustível para levar a produção de barco é extremamente caro, o que
muitas vezes inviabiliza o escoamento rápido da produção. Portanto, benefícios como o Bolsa Família, Bolsa Verde e Auxílio Pesca
são essenciais para que essa população garanta o mínimo de que precisa para sobreviver.
Ainda sim, nas localidades mais distantes, os moradores só conseguem ir à cidade retirar o benefício bimestralmente,
assim como comprar produtos de primeira necessidade para estoque até a próxima ida. Uma consulta à população, sobre o
interesse e a possibilidade de um serviço mensal de banco móvel poderia ser importante do ponto de vista da inclusão social.
Assim como um comércio mensal com itens de primeira necessidade. Caso fosse realmente uma demanda, poderia ser feita
uma parceria com a população para que isso acontecesse.
A organização em cooperativas para escoamento da produção agrícola, com capacitação e participação intensa da população nas decisões e na mão de obra também poderia garantir melhores condições de trabalho e renda, assim como apontado
por SILVA et al. (2013). Mas é importante lembrar, que o PNSD é um parque nacional e por isso tem algumas restrições quanto
a forma de produção agrícola e extrativismo. De acordo com SILVA (2007), é importante ter as populações tradicionais e seu
conhecimento como parceiros na organização de Unidades de Conservação.
Assim como na década de 90, a população ainda recorre a plantas medicinais ou automedicação e somente em último
caso, as famílias se deslocam para a sede municipal de Mâncio Lima ou para o Hospital de Cruzeiro do Sul. Esse padrão de
busca por atendimento se repete em algumas áreas protegidas, como por exemplo na RESEX Catauá-Ipixuna (ANDRADE &
SATO, 2013).
Em alguns domicílios visitados, foram encontrados moradores doentes há vários dias e quando eram questionados o
porquê de não terem buscado atendimento, a justificativa era que no posto mais próximo só tinha atendimento para malária e
já tinham feito o teste, ou então, não estava funcionando e se deslocar para a cidade, era um custo alto, o que no momento não
podiam arcar. Essa situação se mostra uma demanda a ser solucionada pela inclusão social, e, no entanto é delicada, uma vez
que não é possível ter atendimento médico em toda e qualquer localidade devido à falta de recursos humanos e financeiros e a
distância. Por outro lado, as populações locais não têm condições financeiras de se deslocar sempre que necessário e muitas
vezes permanecem doentes até suportarem e de preferência, coincidir com a época de irem a cidade retirar os benefícios e
vender a farinha.
Sobre a malária, a maioria sabia que a transmissão era veiculada pelo mosquito anofelino, também conhecido como
carapanã, mas normalmente, pareciam não acreditar nessa explicação. Isso pode influenciar no uso do mosquiteiro (distribuído
gratuitamente pela equipe de Endemias da região) e outras proteções contra malária. O fato de ter havido uma redução na
transmissão de malária após uma grande epidemia em 2005/2006 (SVS/MS, 2012 e 2014) também faz com que isso não seja considerado um grande problema para a população, resultando em descuido com a proteção e aceitação dos mosquiteiros. Muitos
moradores relataram que os agentes passaram pelas localidades e deixaram os mosquiteiros nos domicílios sem dar muitas
instruções, nesse caso, um trabalho delicado de educação sobre malária deveria ter sido feito, para que os mosquiteiros fossem
bem aceitos e tivessem o fim desejado.
A dengue apesar de ser recente na região, é uma doença conhecida pela população do PNSD devido a campanha em
massa apresentada na televisão, atividade que praticamente todos fazem ao anoitecer enquanto o gerador de luz fica ligado.
Portanto, mesmo nas localidades mais distantes a doença era conhecida e mais da metade dos entrevistados sabia dizer como
se transmite a doença, mesmo essas localidades não sendo propícias ao desenvolvimento do mosquito Aedes aegypti, transmissor do vírus dengue. Entretanto, é essencial esse conhecimento para essas populações, pois de 2 em 2 meses ou uma vez por
mês, eles se deslocam para as cidades mais próximas para retirar os benefícios, quando, então, ficam expostos à dengue. Em
sua maioria, a população não sabia como se prevenir da doença, poucas menções foram feitam sobre evitar acúmulo de água e
uso de repelente.
Interessante notar que, em sua maioria a população se considera com a saúde boa ou regular. As principais queixas apresentadas podem ser um indicativo do tipo de trabalho exercido, que exige bastante esforço físico, o que pode explicar as dores
e problemas na coluna, que provavelmente se confundem com problemas renais. No entanto, as condições de higiene também
podem explicar o alto índice de relatos de problemas estomacais e renais, o último também se confundindo com infecções
urinárias. A pressão alta que apareceu em 19% dos relatos, talvez esteja relacionada com o tipo de alimentação e uso excessivo do sal para conservar alimentos. Seria importante realizar um acompanhamento mais detalhado sobre essas queixas para
02: Sistemas de Gestão e Governança
105
confirmar as verdadeiras causas e propor alguns intervenções que pudessem melhorar a qualidade de vida dessa população.
Sobre as principais demandas mencionadas, é interessante pontuar as grandes dificuldades de se deslocar aos centros
urbanos, uma vez que o deslocamento compromete parte significativa da renda mensal e com a desvalorização da saca de
farinha, isso tem se acentuado. No entanto, quando se referem à presença de médicos, medicamentos e agentes, muitos mencionam que poderia ser uma vez por mês, no máximo uma vez por semana, ou mesmo, em localidades mais próximas, para que
desse modo, não ficassem tão dependentes do combustível para terem acesso à saúde.
Considerações Finais
Viver em áreas protegidas é complexo, uma vez que configuram uma diversidade de atores sociais e por consequência,
divergências de ideias, interesses econômicos, políticos, culturais e sociais (CABRAL, 2010). O estabelecimento de políticas
públicas locais deveria ser feito sempre após consulta à população e não decisões fechadas e restritas aos órgãos estatais,
uma vez que em sua maioria, elas têm suas próprias vontades e necessidades, e quando essas políticas são implantadas sem a
vontade dos mesmos, estão fadadas ao insucesso (IRVING, 2006; CABRAL, 2010). Dessa forma, propor políticas públicas para
populações residentes em áreas protegidas, seja na saúde, educação e economia, é um desafio para os gestores, que precisam
identificar as principais carências da população e qual a melhor forma de amenizá-las e um desafio para a população, que precisa se fazer presente nas decisões que impactam suas vidas.
Dentre a diversidade de determinantes sociais em saúde descritos pelo modelo de Dahlgren e Whitehead (DAHLGREN;
WHITEHEAD, 1992), os fatores hereditários da população do PNSD não foram caracterizados no presente estudo, porém pode
ser fruto de um novo trabalho, com uma equipe especializada na área. No nosso estudo, o foco foi a inclusão social dentro da
saúde, mas ainda há muito o que analisar com os dados coletados sobre educação, renda, hábitos e costumes. Em um panorama
geral, observamos que há evidências de exclusão social e desigualdades dentro dessa população. Concluindo apenas sobre a
saúde, isso é evidente quando os residentes do PNSD precisam recorrer à outras localidades para ter acesso à saúde e quanto
mais distante o local de residência, maior é a exclusão, ou seja, o acesso à assistência.
Como sugestão, a criação de serviços de saúde intermitentes, com prioridades e intervalos bem estabelecidos juntamente à população, poderia ser uma alternativa para amenizar a assistência à saúde na região, bem como um barco disponível
somente para encaminhar a população quando necessário, ao local apropriado para o tipo de necessidade do paciente. Vale
ressaltar ainda que seria necessário uma forma de comunicação viável entre os operadores do barco e a população.
A médio e longo prazo, uma política de promoção da saúde, em todos os seus aspectos e com intensa participação
dos moradores, feito em cada localidade (seria impossível realizar essa atividade ao mesmo tempo para todos os residentes
do PNSD, porque algumas localidades são muito distantes e isso acarretaria custos altos à população), seria interessante para
caracterizar à fundo e corrigir os principais problemas identificados como a falta de assistência à saúde, à uma educação de
qualidade, água limpa, esgoto, habitação e alimentação adequadas, trabalho estável e organizado em cooperativas. Ou seja, há
deficiências em todos os setores, setores esses, que trabalham muitas vezes sem parceria, acarretando prejuízo para a população, pois é necessário que haja uma ação integrada desses setores para que a exclusão social seja revertida no PNSD.
Agradecimentos
ICMBio, principalmente ao Diogo Koga, Secretarias de Saúde e Endemias de Mâncio Lima, SESACRE, barqueiros Gilson,
Jorge, Genilson, equipe, moradores do PNSD, FAPERJ e CNPq. À Thais I. S. Riback por toda ajuda na confecção dos gráficos.
Referências
ANDRADE, A. P. & SATO, C. S. Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social, 6, Encontro Latino-americano sobre
Áreas Protegidas e Inclusão Social, 1., 2013, Belo Horizonte. As expressões das lutas e mobilizações sociais na RESEX CatuáIpixuna no Amazonas. Anais... Belo Horizonte: SAPIS, 2013. p. 688-699.
BRASIL, Decreto Nº 97.839, de 16 de junho de 1989. Cria o Parque Nacional da Serra do Divisor. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D97839.htm. Acesso em 17 junho 2015.
BUSS, P. M.; FILHO, A. P. A saúde e seus determinantes sociais. PHYSIS: Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.17, n.1,
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
106
p.77-93, 2007.
CABRAL, C. L. Encontro Nacional dos Geógrafos. Crise, praxis autonomia: espaços de resistência e de esperanças. Espaço
de diálogos e praticas, 16., 2010, Porto Alegre. Da repressão aos desafios da inclusão social em áreas protegidas. Anais...Porto
Alegre, 2010. ISBN: 978-85-99907-02-3.
DAHLGREN, G.; WHITEHEAD, M. Policies and strategies to promote equity in health Copenhagen, WHO Regional Office
for Europe, 1992.
GUERRA, R. Verificando a viabilidade do PDS São Salvador no estado do Acre. Ambiente e Sociedade, Campinas, v. 7, n.1,
2004. Disponível em: http://www.scielo.br. Acesso em: 14 julho 2015.
ICMBio. Instituto Chico Mendes. 2015. Disponível em: http://www.icmbio.gov.br/portal/biodiversidade/unidades-de-conservacao/biomas-brasileiros/amazonia/unidades-de-conservacao-amazonia/1974. Acesso em: 17 junho 2015.
IRVING, M. A. Áreas Protegidas de Fronteira e Turismo Sustentável na Amazônia:entre o Surrealismo e a Invenção. Salvador,
Revista de Desenvolvimento Econômico, Ano VIII, n.13, 2006.
LIMA, D.; POZZOBON, J. Amazônia socioambiental. Sustentabilidade ecológica e diversidade social. Dossiê Amazônia
Brasileira II. Estudos Avançados, São Paulo, v. 19, n. 54, 2005.
MS/SINAN. Ministério da Saúde, Sistema de Informação de Agravos e Notificações. Incidência de Dengue. Brasil, Grandes
Regiões e Unidades Federadas, 1990 a 2013. 2014. Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/situacao-epidemiologica-dados-dengue. Acesso em 02 julho 2014.
NOGUEIRA R. M. R., MIAGOSTOVICH M. P., SCHATZMAYR H. G., SANTOS F. B., ARAUJO E. S. M., SOUZA R. V., ZAGNE S.
M. O., NICOLAI C., BARAN M.; FILHO G.T. Dengue in the State of Rio de Janeiro, Brazil, 1986-1998. Memórias do Instituto
Oswaldo Cruz, v. 94, 1999.
OLINDA, Q. B. Inclusão social e saúde. Editorial. Revista Brasileira em Pesquisa com a Saúde, v.19, n.3, 2006.
PAULA, V.S.; ARRUDA, M.E.; VITRAL, C.L.; GASPAR, A.M.C. Seroprevalence of viral hepatitis in riverine communities from the
Western Region of the Brazilian Amazon Basin. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, v. 96, n.8, p. 1123-1128, 2001.
PNSD, Parque Nacional Serra do Divisor, Plano de Manejo, Fase 2, S.O.S. Amazônia/The Nature Conservancy/IBAMA/USAID,
Rio Branco, setembro de 1998. Disponível em: http://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/docs-planos-de-manejo/parna_
serra_divisor_pm.pdf. Acesso em 17 junho 2015.
R Core Team. R: A language and environment for statistical computing. Viena: R Foundation for Statistical Computing,
Austria., 2014.
REIS, I.C. Epidemiologia da paisagem da malária em área de transmissão urbana da Amazônia. 2015. 111p. Tese (Doutorado em Medicina Tropical) Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2015.
SILVA, J. B. Unidades de conservação e organizações de populações tradicionais sul-amapaenses: problemas,
tendências e perspectivas. 2007. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sócio-Ambiental) PDTU/NAEA/UFPA, Belém, 2007.
SILVA, M. J. S., OLIVEIRA, A. L., KELLERMANN, A., PAULETTO, D. Histórico das ações do grupo de trabalho dos conselhos consultivos das Florestas Nacionais de Itaituba I e Trairão. In Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social, 6, Encontro
Latino-americano sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social, 1., 2013, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: SAPIS, 2013. p. 59-66.
SVS/MS, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Dados epidemiológicos de malaria, por estado. Amazônia
Legal, janeiro a dezembro de 2010 e 2011. Brasilia. 2012.
02: Sistemas de Gestão e Governança
107
SVS/MS. Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. SIVEP malária- Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica - Notificação de Casos. 2014. Disponível em: http://portalweb04.saude.gov.br/sivep_malaria/default.asp. Acesso
em 10 maio 2014.
SVS/MS. Boletim Epidemiológico: Monitoramento dos casos de dengue e febre de chikungunya até a Semana Epidemiológica 23, 2015. Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/situacao-epidemiologica-dados-dengue. Acesso
em 14 julho 2015.
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO), Understanding and tackling social exclusion - final report of the Social
Exclusion Knowledge Network, 2008. Disponível em: http://www.who.int/social_determinants/knowledge_networks/final_reports/sekn_final%20report_042008.pdf?ua=1. Acesso em 14 agosto 2015.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
108
ÁREAS PROTEGIDAS: PARA QUEM PROTEGÊ-LAS? O SENTIDO DE
PERTENCIMENTO COMO VIA PARA VALORIZAÇÃO SOCIOCULTURAL
EM ÁREAS NATURAIS PROTEGIDAS
Abreu, Manuela Muzzi de1; Irving, Marta de Azevedo1; Lima, Marcelo Augusto Gurgel de1 & Correa, Frances Vivian1
1.Universidade Federal do Rio de Janeiro, [email protected]
Resumo
As áreas protegidas representam uma das principais estratégias de proteção da natureza e sua criação implica em transformações socioespaciais no território em que se inserem. Frequentemente são criadas em locais de elevada biodiversidade e que
abrigam também populações tradicionais, que estabelecem seus modos de vida e sua organização socioeconômica com base
na relação direta de uso da natureza. Este artigo apresenta uma discussão teórica resultante de uma dissertação de mestrado do
Programa de Pós-graduação EICOS/UFRJ. Buscou discutir a importância de se considerar estas relações sociais preexistentes
no território para a criação de áreas protegidas, uma vez que se constata a necessidade de valorização sociocultural e de se proporcionar benefícios sociais, para que a importância da conservação da biodiversidade seja incorporada como parte da história
de vida da população local.
Palavras-chave: Pertencimento, Áreas protegidas, Territorialidades, Valorização sociocultural.
Introdução
A criação de áreas protegidas é uma forma de proteger recursos naturais, ecossistemas e biomas de sua degradação
ou extinção, em escalas local e global, haja vista a sobrexploração a que vem sendo expostos desde meados do século XVIII,
período da Revolução Industrial. As mudanças provenientes dos avanços técnico-científicos vêm trazendo consequências desastrosas ao ambiente, tais como o desequilíbrio ecológico e a deterioração do próprio modo de vida humano (GUATTARI, 1980).
Estas transformações vêm sendo observadas desde quando o sistema de produção passou a demandar muito mais o uso da
natureza do que nos séculos anteriores. A partir de então, a natureza passa a ser vista como recurso, e vem sendo incorporada
pelo mercado, baseada nos pilares expansionistas nos quais a modernidade capitalista-industrial se constrói (IRVING; GIULIANI; LOUREIRO, 2008).
Assim, a preocupação com a questão ambiental e os debates em relação à proteção de áreas naturais como estratégia
para a conservação da biodiversidade vem se afirmando, cada vez mais, como prioridade em pesquisa e em políticas públicas.
Sua criação traz diversos benefícios em termos de recuperação e manutenção do equilíbrio ecológico de uma região considerada como prioritária para a conservação da biodiversidade local. No entanto, vale considerar que estas regiões não estão
isoladas; se inserem no espaço geográfico e, portanto, interagem de alguma forma com o meio antrópico que está ao seu redor
ou seu interior. Assim, é importante se pensar em maneiras de criar interações positivas que agreguem valor e benefícios àqueles
que convivem com tais espaços, para que compreendam a importância de sua existência e da conservação ambiental de forma
mais ampla.
A premissa deste artigo é que se a população que vive próxima das áreas protegidas não se sentir parte integrante de
tais áreas e, da mesma forma, que tais áreas fazem parte de suas vidas, será bastante difícil que estas percebam seu valor e importância e que apreendam os benefícios da conservação de tal área natural. E isto não é desejável tendo em vista a importância
de se trabalhar sobre os conflitos para que sejam minimizados com o objetivo comum de melhorar a qualidade de vida desses e
também a qualidade ambiental de tais áreas.
O embasamento teórico partiu assim de uma releitura da dissertação defendida em 2015 no Programa de Pós-graduação
em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS), no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, intitulada “Territorialidade e Pertencimento: o olhar local sobre o Parque Estadual do Pico do Itambé”. Nesta, a relação
sociedade-natureza e as implicações sociais das áreas protegidas foram abordadas, trazendo, em seu estudo de caso, o olhar
local sobre a criação do Parque Estadual para compreender de que forma as territorialidades foram desconstruídas e recons-
02: Sistemas de Gestão e Governança
109
truídas, num processo de des-re-territorialização (HAESBAERT, 2012) e como sua relação de pertencimento ao território foi
transformada.
A partir disto, o presente artigo, resultante dessa dissertação, buscou levantar uma reflexão sobre a importância de se
considerar as relações socioeconômicas e culturais preexistentes no território para a criação de áreas protegidas, uma vez que
se constata a necessidade de se valorizar culturalmente a população local e trazer benefícios sociais a essa, para que incorpore a
importância da conservação da biodiversidade e a existência de uma área protegida em seu território, como parte de sua história
de vida.
Para tanto, a metodologia utilizada se baseou em um método qualitativo (MINAYO, 2004) de pesquisa social. A teoria, na
pesquisa social, é entendida como uma aproximação da realidade, numa tentativa de explicação parcial da mesma, procurando-se,
a partir dela, desvelar as subjetividades envolvidas nos significados, motivos, atitudes e valores de determinados grupos sociais.
Segundo esta linha de abordagem, a pesquisa foi fundamentada na leitura crítica sobre a relação sociedade e natureza
e os seus rebatimentos na legislação brasileira sobre as áreas protegidas, importante estratégia adotada para a conservação da
natureza, a partir da segunda metade do século XIX (IRVING; MATOS, 2006). Para avançar neste debate, foram ainda aprofundadas as discussões a respeito das políticas públicas relativas à proteção da natureza no Brasil e de que forma elas abordam a
temática social e os conflitos que implicam. Além disso, foram analisadas em bancos de dados e anais de encontros científicos
como o Banco de Teses da Capes e os Anais do Seminário de Áreas Protegidas e Inclusão Social (SAPIS), em suas seis edições
(2005 a 2013) publicações e/ou pesquisas sobre a temática.
Áreas protegidas: para quem protegê-las?
Para além da própria criação de áreas protegidas e dos mecanismos pelos quais essa ocorre, é importante refletir também sobre as implicações do processo de criação e implantação dessas áreas na dinâmica territorial do local em que são inseridas. Sua criação gera diversas consequências, que vão desde intervenções na dinâmica ecológica quanto na reorganização
socioespacial, e esta implica em desdobramentos que influenciam diretamente na vida dos atores sociais locais.
Devido ao fato de que as sociedades constroem um entendimento do que seja a natureza, que é cultural, estas carregam
assim na construção de suas relações sociais e com o meio, uma concepção de natureza. E, por vezes, a visão dissociada entre
natureza e sociedade, resultado de um processo histórico, imprime na sociedade uma noção de dominação humana/cultural
sobre a natureza. No entanto, em outras sociedades que não aquelas urbano-ocidentais e industriais, podem ser observadas
outras formas de se relacionar com a natureza, uma vez que não se enxergam fora dela, compreendendo-se mais em comunhão com o meio. E, a atual situação mundial de problemas ambientais globais emergentes, é essencial que se construa um
novo pensamento, que parta de um lugar comum entre natureza e sociedade, considerando também a interdependência entre
cultura e natureza como fundamento básico para perpetuação tanto da diversidade biológica quanto da sociocultural (PORTOGONÇALVES, 2011).
De acordo com essa perspectiva, é primordial que se valorize outras formas de se relacionar com a natureza, a exemplo
das populações tradicionais, que tem um vínculo com a natureza, em alguns casos com o sagrado, considerando que a cultura
faz parte da natureza e, a natureza, da cultura (DIEGUES, 2004). Compreendendo a relação sociedade-natureza de forma indissociada, conforme aquela estabelecida por algumas populações com o local onde vivem, para Diegues (2000) é importante que
no processo de criação das áreas protegidas se considere melhor a organização do espaço preexistente. Isto porque elas são
implantadas em lugares já habitados ou utilizados, mesmo que por uma parcela pequena da população, e de uma forma diferente a daquela realizada pela população urbana.
Nesse sentido, o estabelecimento de áreas protegidas, em vez de ser baseado na ideia importada de “natureza selvagem intocada”, deveria fundamentar-se na concepção de “paisagem” ou mosaico de ecossistemas e habitats, construindo um
continuum entre porções de matas nativas até áreas de agricultura tradicional que, em muitos casos, constituem territórios de
comunidades tradicionais (DIEGUES, 2000).
No caso de lugares onde a base econômica é primaria, ou seja, a produção está ligada ao cultivo ou extração de recursos
naturais, a relação de populações tradicionais com o meio é de estreita ligação e dependência da natureza. Assim, impor uma
nova ordem a uma realidade previamente estabelecida, nesses casos, pode representar uma forma injusta de se construir uma
proposta de conservação, seguindo os moldes importados de países desenvolvidos. E esse pode ser um problema fundamental
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
110
da criação de áreas protegidas que não visam atender aos interesses dos locais, mas sim de um público externo.
Considerando a criação de um aparato legislativo direcionado a proteção e valorização do conhecimento tradicional e de
sua cultura, que envolve sua relação material e imaterial com o meio, e que os principais instrumentos brasileiros de proteção à
biodiversidade, como a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB, 2000), o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC, 2000) e o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP, 2006) também incluem a questão da valorização
da sociodiversidade, é importante que haja uma integração das políticas em relação a sua aplicação prática. É necessária uma
releitura de tais instrumentos seguida por uma reinterpretação de forma conjunta, para que uma análise mais ampla seja realizada, a luz dos direitos garantidos aos povos tradicionais, tais como a autoidentificação, o direito ao uso do território e de seus
recursos, além da continuidade de suas tradições (SANTILLI, 2014).
Tais direitos são garantidos internacionalmente e foram internalizados no Brasil a partir da aprovação da Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada pelo Decreto nº 5.051/2004. Esta convenção legisla sobre os
direitos dos povos indígenas e tribais, mas é abrangente o suficiente para incluir populações tradicionais. Ainda, preconiza a
necessidade do consentimento dos povos diretamente envolvidos para qualquer restrição ao uso dos recursos no território tradicionalmente usado por eles ou ocupado, sobre as possibilidades de reassentamento, ressaltando, inclusive que nas decisões
governamentais se considere o respeito a sua cultura e aos valores espirituais.
Seguindo e reforçando os acordos assumidos pelo país em âmbito internacional, alguns estados brasileiros inovaram
criando legislações específicas sobre o tema, como é o caso da recém criada Política Estadual para o Desenvolvimento dos
Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais, Lei nº 21.147, de 14 de janeiro de 2014. Esta dispõe sobre a necessidade
de regularizar a propriedade sobre os territórios tradicionais, na condição de interesse social, para garantir sua reprodução
econômica, cultural e a preservação dos recursos naturais utilizados. Tais compromissos estaduais e nacionais chamam atenção
para a importância da valorização sociocultural e ao respeito à ligação e ao pertencimento da população tradicional com o território. Assim, Santilli (2014) destaca que a interpretação do SNUC deve considerar esses outros instrumentos legais vigentes,
tais como a PNPCT e a Convenção 169 da OIT, inclusive nos casos de criação de unidades de conservação de proteção integral,
se tratando de populações inseridas no território em voga ou próximo dos mesmos.
Entende-se que existe uma relação intrínseca entre diversas práticas culturais que dependem da diversidade biológica
para sua sobrevivência e que, por outro lado, a diversidade biológica também é garantida pelo manejo realizado de acordo com
os conhecimentos tradicionais de grupos sociais (UNESCO, UNEP, 2002). E este argumento é reforçado por Nazarea (2006),
que discute que a cultura local e a memória social são essenciais para a conservação da natureza, pois “possuem o papel de
repositório de alternativas, para que a diversidade cultural e biológica continuem florescendo”. Nessa perspectiva, a base cultural local está diretamente ligada ao processo de conservação da biodiversidade, que possibilita o movimento da sociedade e
na qual apoia sua construção histórica.
Nesse sentido, as áreas protegidas são compreendidas, pela perspectiva de West, Igoe & Brockington (2006), como
“modos de ver, entender e (re)produzir o mundo”. A partir de sua análise antropológica, os autores alegam que a separação
sociedade-natureza reproduz o imaginário ocidental de natureza e cultura para o restante do mundo (GILLISON, 1980; JOHNSON, 2000; SEELAND, 1997; STRATHERN, 1980; apud WEST; IGOE; BROCKINGTON, 2006).
Estes autores apontam também importantes lacunas nos estudos sociais relacionados às áreas protegidas, mencionando que os mesmos carecem de aprofundamento, especificamente no que tange à dinâmica das populações em seu interior
e entorno. Para estes, as relações estabelecidas entre a população local e o ambiente são interpretadas, em geral, de modo
demasiado simplista, sendo geralmente compreendidas apenas como relações associadas ao uso de recursos (TSING, 2003;
WEST, 2005; apud WEST; IGOE; BROCKINGTON, 2006). Tal consideração representa um equívoco, pois nessa generalização
não são consideradas as relações de ancestralidade, de profunda ligação de povos com a natureza, que serve de alicerce para
a construção de sua cultura e de suas relações sociais.
West, Igoe & Brockington (2006) discutem que na literatura sobre áreas protegidas em geral, tais questões ainda não são
abordadas de forma clara e direta, como uma construção de novos espaços. E ressaltam a importância de se questionar “o que a
criação de novos lugares através da intervenção da conservação faz com os lugares sendo simbólica e materialmente remapeados pelas topologias da conservação? Como essas produções do espaço alteram as relações sociais locais com o ambiente das
pessoas? E como alteram o modo com que as pessoas usam e atribuem sentido ao seu ambiente?”.
02: Sistemas de Gestão e Governança
111
No cenário brasileiro, especificamente, estas importantes lacunas são também reafirmadas pelo recente relatório do Instituto Semeia1, que comprova que apenas na minoria das UC do país são desenvolvidas pesquisas que geram algum benefício
para a população do interior ou entorno (SEMEIA, 2012). Esta constatação leva ao reconhecimento da necessidade de aprofundamento na discussão sobre a relação da sociedade com o espaço que habita, para uma melhor compreensão das transformações “sutis e profundas” (WEST; IGOE; BROCKINGTON & 2006) ocasionadas no modo de vida da população local a partir da
implantação de UC. Da mesma maneira, estas informações tendem a ser essenciais para que se possa interpretar o imaginário
local sobre a natureza preservada e como este se materializa na relação afetiva e de pertencimento destes grupos humanos com
o ambiente natural do qual faz parte ou é excluído, pela via das políticas públicas.
Para apoiar o debate teórico proposto, torna-se importante compreender a noção de territorialidade e a noção de pertencimento a ela associada, uma vez que estas dão sentido às construções sociais no espaço habitado. Tal reflexão é necessária
para orientar a análise das transformações territoriais ocasionadas pela implantação de áreas protegidas, especialmente no que
concerne ao modo de vida das populações locais. Nesse sentido, ressaltando a importância de se analisar o território e as territorialidades, que representa a relação da população local com o espaço em que habita e constrói suas relações sociais.
Diante do exposto, é possível interpretar a noção de territorialidade também pelo viés da análise de Raffestin, como um
tripé, composto por sociedade, espaço e tempo (RAFFESTIN, 1993 apud ALBAGLI, 2004). Entende-se, portanto que o enfoque
territorial e o seu aprofundamento na discussão sobre territorialidades podem auxiliar na compreensão da dinâmica das relações
sociais e da relação sociedade-natureza em um contexto da criação de áreas naturais protegidas. Isso se justifica uma vez que
estas áreas formam novos territórios em um mesmo espaço, que se sobrepõe a outros existentes a priori (PIMENTEL; MAGRO,
2011). Assim, se sobrepõem também às territorialidades ali vivenciadas.
Esta complexidade de relações sobrepostas que dividem uma espacialidade e uma temporalidade constitui o foco desta
investigação. O questionamento levantado por Haesbaert (2009) inspira as reflexões que se pretende aprofundar:
Dentro do amplo continuum que vai desde os territórios construídos com propósitos meramente
funcionais (uma espécie de “controle de mão única”, típico do produtivismo capitalista) até aqueles
com forte carga simbólica e identitária, como restituir uma territorialização capaz de significar não
apenas um “controle” do espaço, em sentido estrito, mas também a sua produção e vivência em
novas bases, onde “controlar” ou “exercer poder” signifique também “afetar” – na dupla condição
de afetarmos e sermos afetados pelo ambiente que criamos. Pois, como lembra Spinoza, o aumento do nosso poder para agir significa também o crescente poder de sermos transformados – pelo
“afeto” – dos outros e do território que indissociavelmente construímos (HAESBAERT, 2009, p.16).
A partir da compreensão sobre as territorialidades e o que as envolvem em termos de uma base material espacial e de
um corpo subjetivo criado pelas interações sociais territoriais, a reflexão passa a ser dirigida à temática de pertencimento. Este
é um ponto central para que se possam interpretar as territorialidades em um contexto de relação sociedade-natureza e da proteção de áreas naturais.
A dimensão analítica e conceitual de pertencimento é compreendida aqui como um dos aspectos fundadores na construção das territorialidades, visto que atribui sentido à relação de identificação social de um grupo com determinado território.
Nessa direção, Diegues expressa um entendimento sobre territorialidade compreendendo-a “como noção de pertencimento a
determinado território, em cujos limites se reproduzem crenças mitos, práticas, ancestrais ou não, que reatualizam e revificam a
memória coletiva” (DIEGUES; ARRUDA, 2001 apud RODRIGUES, 2009).
O debate sobre pertencimento tem sido recorrente na literatura relacionada às ciências sociais principalmente no que
tange às questões étnicas, raciais e da participação em grupos sociais ligados ao esporte, à dança, à música, entre outros
(SILVA, 2012; SILVA, 2007). Nesta discussão, o termo é compreendido como uma dimensão subjetiva diretamente ligada à noção
de territorialidade. Uma importante reflexão que vai de encontro a esta fundamentação teórica é apresentada pelo economista
marroquino Hassan Zaoual (2006), que propôs a Teoria dos “sítios simbólicos de pertencimento” para estudar o desenvolvimento
e iniciativas locais nos países do “Sul”.
1
INSTITUTO SEMEIA. Uso público e parcerias para conservação e desenvolvimento: a perspectiva dos gestores de unidades de conservação do Brasil. Análise 2012.
Disponível em: http://www.semeia.org.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=234%3Aanalise-das-ucs-do-brasil-em-2012&Itemid=58&lang=pt, acesso em:
10/01/14.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
112
Este autor desenvolve sua argumentação com base nos problemas da importação de modelos, técnicas e projetos dos
países desenvolvidos para os países do “Sul”. Defende que é preciso haver uma adaptação à realidade local anterior à implantação destes modelos importados nos países em desenvolvimento. Em sua obra, apresenta diversos casos de fracassos em
projetos que tinham a pretensão de trazer soluções para os problemas de desenvolvimento utilizando a mesma fórmula em
diferentes locais do mundo. Esses casos eram, em sua maioria, desenvolvidos na Europa ou nos EUA e trazidos como proposta
para a América Latina, África e Ásia. A partir de sua pesquisa, baseada em estudos empíricos e apoiada na obra de autores
como Amartya Sen, Zaoual constrói uma teoria que se debruça sobre a epistemologia do “homo situs”, ou o “homem situado”,
em detrimento do “homo oeconomicus”, utilitarista e oportunista. Este “homem situado” seria o “homem vivo concreto, cujo comportamento enraíza-se no território em que harmonia pressupõe a consideração da multiplicidade do comportamento humano”
(ZAOUAL, 2006, p.24).
Seguindo os pressupostos de sua teoria sobre os sítios simbólicos de pertencimento, Zaoual (2006, p. 210) define os sítios
como “um imaginário social, moldado pelas contingências e a trajetória da vida comum dos atores considerados”. Para o autor,
os sítios funcionam como uma “identidade imaterial”, que interfere nos comportamentos e nas “materialidades visíveis do lugar
ou região”. Conforme Walliser (2000, apud ZAOUAL, 2006), “o sítio é um vínculo cognitivo entre o ator e seu meio circundante”.
Segundo a perspectiva de Zaoual (2006), o sítio simbólico é uma “entidade invisível”, que se concretiza no modo de vida, na economia, na cultura e na organização social. Assim, o sítio está presente em todos os aspectos da vida social, moldando, de certa
forma, o comportamento dos atores no território. E por ser uma “estrutura imaginária” que coordena os territórios, para o autor
esta estrutura atua de forma diferente da lógica do mercado, já que considera a dimensão econômica e social simultaneamente
(ZAOUAL, 2006, p. 18).
Relacionando os territórios “horizontais” e “verticais” de Milton Santos com os sítios simbólicos de pertencimento de Zaoual, Ribeiro (2006) reforça a ideia de Santos (2012) sobre a necessidade de se enfatizar as interrelações presentes nos territórios
horizontais. Considerando que “o território, que é simultaneamente espaço herdado e condição indispensável às resistências
sociais, opõe-se aos desenraizamentos estimulados pelo agir hegemônico e às fábulas que acompanham a globalização da
economia” (RIBEIRO, 2006, p. 8). Conforme a autora, o pensamento contra-hegemônico, que procura reforçar a importância da
defesa dos interesses locais, se refere a uma procura baseada na “valorização do território e, sobretudo, das territorialidades”.
A relação entre território e pertencimento é também expressa por Santos quando este define que o território é o espaço
usado. Para o autor, o território usado “é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos
pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida”
(SANTOS, 2002 apud RIBEIRO, 2006).
Nesse mesmo sentido, para Zaoual (2006) a escala de abordagem mais pertinente para compreender a complexidade
das interações entre sociedade e seu meio é também a do território. O território é então fruto das relações sociais compartilhadas
entre os atores numa “realidade viva”, que é singular em cada espaço.
Ao abordar a temática de pertencimento, Little (2002) utiliza a ideia de homeland para traduzir o sentido de pertencer a
um território. Para o autor, “a situação de pertencer a um lugar refere-se a grupos que se originaram em um local específico, sejam eles os primeiros ou não” (LITTLE, 2002, p. 10). Mesmo se referindo ao caso de populações tradicionais e povos indígenas,
o autor afirma que é possível encontrar o sentido de pertencimento em grupos e/ou atores sociais mesmo que estes não tenham
nascido no território, mas que tenham constituído um grupo social e uma relação com o espaço.
Para Callai (2004), os sentimentos de identidade e de pertencimento dos atores sociais em relação ao território são construídos no espaço vivido, formado pelas diferentes dimensões da vida social e produtiva. E, por meio dos aspectos simbólicos,
como a memória e a cultura, é possível apreender sobre a identidade imaterial do território, que também é expressa materialmente. Para a autora, a importância deste tipo de análise espacial está na compreensão do que as aparências não revelam como
a história de vida dos sujeitos, abrangendo seus interesses, disputas, motivações e articulações no território (CALLAI, 2004, p. 5).
Na sistematização da teoria dos sítios simbólicos de pertencimento, Zaoual (2006, p. 31) discorre sobre a associação que
ocorre nos sítios entre “os mundos simbólicos e morais dos homens e suas práticas cotidianas”, que traduz os aspectos materiais
e imateriais que coexistem em cada sítio. De acordo com o autor, os sítios não podem ser delimitados como espaços geométricos
pois, na verdade, correspondem ao campo imaterial que permeia a vida social no território.
Para melhor compreender e visualizar a forma pela qual se estruturam os sítios, o autor os organiza em três “caixas”, de
02: Sistemas de Gestão e Governança
113
acordo com seus componentes. A caixa que envolve os conhecimentos dos grupos sociais, que são acumulados e passados
pelas gerações em cada sítio seria a caixa conceitual. Esta forma um verdadeiro saber social, composto de conhecimentos tanto
teóricos quanto práticos. A caixa preta seria aquela que guarda os elementos simbólicos relativos aos atores e grupos sociais,
tais como os mitos, ritos, crenças e valores. Por fim, as técnicas, o modo de fazer e os modelos adotados pelos atores sociais
para agir em cada situação estão relacionados à caixa de ferramentas. Todas as caixas guardam conteúdos próprios a cada sítio,
contudo, os sítios não são inertes e fechados, mas ao contrário, são abertos ao mundo. A analogia das caixas é utilizada pelo autor
para explicar de forma didática o que os sítios guardam. Todavia, as caixas não operam isoladamente, elas interagem a todo o
momento e são acessadas pelos atores mediante as demandas de cada situação.
Nessa perspectiva, a crença possui um papel importante. Isto ocorre porque o sentido de pertencimento ao território somente é realizado a partir do compartilhamento de crenças e de visões de mundo comuns entre os atores, que assim constroem
suas relações sociais (ZAOUAL, 2010). Para o autor, “o homem precisa crer, pertencer a algo e ser integrado em uma sociedade”
(ZAOUAL, 2006, p.16). Nesse sentido, a crença é um elemento que compõe a estrutura de funcionamento dos sítios, pois “a
crença motiva, a norma organiza e o comportamento executa” (ZAOUAL, 2006, p. 48).
Diante da caracterização do autor, os sítios representam, “comunidades de sentido, ou sistemas de pertencimento”. Os
sítios são relativos ao pertencimento dos atores a um determinado território em que constroem suas relações sociais, de maneira geral. Nesse território, os sítios se manifestam em todas as dimensões da vida social, como observado pelo conteúdo das
“caixas”. Mesmo antes de se expressarem de forma material, os sítios existem como “fornecedores de balizamento” aos atores.
O sentido de pertencimento está expresso no sítio, pois este opera como “ponto de enraizamento” nos territórios, onde os sujeitos
encontram uma “área de estabilidade” aos fenômenos sociais, sejam essas materiais ou não (ZAOUAL, 2006, p. 35).
A partir do exposto, a perspectiva dos sítios simbólicos enriquece a análise sobre as territorialidades. Isto porque a
construção dos sítios considera a composição do território em seu viés material e imaterial, a partir da ótica local. Isso se justifica uma vez que “os homens não se comportam da mesma maneira sob todas as latitudes e em todo tempo. Por natureza, são
mutáveis e conjugam vários imperativos ao mesmo tempo, em situações que escapam a toda abordagem monodisciplinar e
monocultural” (ZAOUAL, 2006, p. 36).
Assim, a teoria dos sítios e sua forma de analisar os territórios e principalmente as territorialidades são consideradas
como uma importante inspiração para analisar a organização social, a construção da territorialidade e ao sentido de pertencimento da população local no estudo da dinâmica social e das transformações ocorridas nas regiões nas quais as áreas protegidas são criadas.
Considerações finais
A histórica cisão entre sociedade e natureza tem sido um dos principais desafios enfrentados para a implementação de
políticas públicas de proteção da natureza, principalmente no caso das áreas protegidas. Esta é uma temática também a ser
abordada pela pesquisa acadêmica, sobretudo considerando que as questões sociais envolvidas no debate sobre proteção da
natureza estão no cerne de inúmeros conflitos e dificuldades enfrentadas pela gestão pública. Apesar disso, são ainda raras
as pesquisas que incidem sobre esta problemática e, em especial, aquelas que abordam o tema pela perspectiva local. Neste
contexto, a pesquisa psicossocial e a valorização do saber local tendem a ser essenciais para a compreensão da complexidade
envolvida nas subjetividades sobre a natureza que, por sua vez, tem rebatimentos diretos nos modos de vida locais.
Com base nesse argumento, este artigo teve como objetivo central levantar a reflexão sobre a importância de se considerar as relações socioeconômicas e culturais preexistentes no território para a criação de áreas protegidas e que benefícios sociais sejam percebidos associados a tais áreas. Isto com o objetivo de que a população local incorpore a importância da conservação da biodiversidade e a existência de uma área protegida em seu território, como parte de sua história de vida. Assim, esse
estudo foi desenvolvido segundo as perspectivas teóricas orientadoras de Zaoual (2006) e Haesbaert (2012). Este se insere no
debate sobre a criação de áreas protegidas, sendo esta uma das principais estratégias adotadas globalmente e também no caso
do Brasil, para a proteção da natureza. E, nesse viés, partiu-se do entendimento que as políticas públicas devem considerar a indissociabilidade entre natureza e cultura conforme também discutido por Diegues (2000), Irving (2010) e Porto-Gonçalves (2011).
Por essa razão, optou-se pelo aprofundamento da leitura crítica sobre a dinâmica territorial local que se expressa, como
um caminho possível, para a compreensão da forma pela qual a sociedade transforma o espaço e se transforma, conforme dis-
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
114
cutido por Santos (2006) e, também como as territorialidades são constituídas, como debatido por Haesbaert (2010).
A partir dessa discussão, é possível reafirmar que o sentido de pertencimento em relação às áreas protegidas tende a
ser essencial para o reconhecimento das iniciativas para a sua conservação. E assim, que as iniciativas dirigidas à conservação
da biodiversidade somente serão consideradas por parte dos grupos sociais envolvidos se também for valorizada, em políticas
públicas de proteção da natureza, a forma pela qual estes constroem social e historicamente o território.
No entanto, as transformações positivas ocasionadas na região pela criação da área protegida só tenderão a ser internalizadas pelos atores sociais se estes puderem compreender os benefícios dela decorrentes para os modos de vida locais,
não se sentindo apenas expropriados de suas origens e seu território. Com essa compreensão, e a valorização do sentido de
pertencimento às áreas protegidas, a sociedade poderia então se transformar em aliada do movimento dirigido ao processo de
conservação da natureza.
Referências
ALBAGLI, S. LAGES, V; BRAGA, C; MORELLI, G. (Orgs.). Território e territorialidade. In: Territórios em movimento: cultura
e identidade como estratégia de inserção competitiva. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Brasília, DF : SEBRAE, pp. 25-70,
2004.
BRASIL. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT
sobre Povos Indígenas e Tribais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm
BRASIL. Lei 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o
Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. Brasília, DF, Brasil. Disponível: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9985.htm>.
BRASIL. Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de 2002. Regulamenta artigos da Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000, que dispõe sobre
o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC, e dá outras providências. Brasília, DF, Brasil. Disponível:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4340.htm.
BRASIL. Decreto nº 5.758, de 13 de abril de 2006. Institui o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas - PNAP, seus princípios,
diretrizes, objetivos e estratégias, e dá outras providências. Disponível em: http://www.mma.gov.br/estruturas/240/_arquivos/decreto_5758_2006_pnap_240.pdf. Acesso em 01 dezembro 2013.
BRASIL, Ministério do Meio Ambiente. A Convenção sobre Diversidade Biológica. Cópia do Decreto Legislativo no. 2, de 5
de junho de 1992. Série Biodiversidade no. 1. Brasília, DF, 2000. Disponível em: http://www.mma.gov.br/estruturas/sbf_dpg/_arquivos/cdbport.pdf. Acesso em 16 novembro 2013.
CALLAI, H. C. Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, 8., Coimbra, 2004. O estudo do lugar como possibilidade de
construção da identidade e do pertencimento. A questão social no novo milênio. Anais... Coimbra, 2004.
DIEGUES, A. C. S. Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: Editora HUCITEC, 2000.
DIEGUES, A. C. S. O mito moderno da natureza intocada. (3a ed.). São Paulo: Editora HUCITEC. Núcleo de Apoio à Pesquisa
sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras, USP, 2004.
GUATTARI, F. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus,1980.
HAESBAERT, R. Dilema de conceitos: espaço-território e contenção territorial. In: SAQUET, M. A; SPOSITO, E. S. (Orgs.). Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular: UNESP. pp. 95-120, 2009.
HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 7 ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2012.
INSTITUTO SEMEIA. Uso público e parcerias para conservação e desenvolvimento. A perspectiva dos gestores
02: Sistemas de Gestão e Governança
115
de unidades de conservação do Brasil. Análise 2012. Disponível em: http://www.semeia.org.br/index.php?option=com_
k2&view=item&id=234%3Aanalise-das-ucs-do-brasil-em-2012&Itemid=58&lang=pt. Acesso em 21 janeiro 2014.
IRVING, M. A. Áreas protegidas e inclusão social - uma equação possível em políticas públicas de proteção da natureza no Brasil? Sinais Sociais, v.4, n.12, p. 122-147, 2010.
IRVING, M. A., GIULIANI, G. M.,; LOUREIRO, C. F. B. Parques Estaduais do Rio de Janeiro: construindo novas práticas para
a gestão. São Carlos, SP: Editora Rima, 2008.
IRVING, M. A ; MATOS, K. Gestão de Parques Nacionais no Brasil: projetando desafios para a implementação do Plano Nacional
Estratégico de Áreas Protegidas. Floresta e Ambiente, v.13, n.2, p. 89 - 96, 2006.
LITTLE, P.E. Territórios Sociais e Povos Tradicionais no Brasil: Por uma antropologia da territorialidade. 2002. Série Antropologia, 322, 2002. Disponível em http://www.unb.br/ics/dan/Serie322empdf.pdf. Acesso em 5 julho 2013.
MINAS GERAIS. Lei n° 21.147, de 14 de janeiro de 2014. Institui a Política estadual para o desenvolvimento sustentável dos
povos e comunidades tradicionais de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG. Disponível em: http://jornal.iof.mg.gov.br/xmlui/handle/123456789/111485.
MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 23. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
NAZAREA, V. D. Local knowledge and memory in biodiversity conservation. Annual Review of Anthropology, 35: 317-335, 2006.
PIMENTEL, D. S.; MAGRO, T. C. Múltiplos olhares, muitas imagens: o manejo de parques com base na complexidade social. GEOgraphia, v. 13, n. 26, 2011.
PORTO-GONÇALVES, C. W. Os (des)caminhos do meio ambiente. 15ª ed. São Paulo: Contexto, 2011.
RIBEIRO, R. Apresentação. In: ZAOUAL, H. Nova Economia das Iniciativas Locais: uma introdução ao pensamento pósglobal. Tradução de Michel Thiollent. Rio de Janeiro: DP&A: Consulado Gerald a França: COPPE/UFRJ, 2006.
RODRIGUES, C. G. O. O uso público nos parques nacionais: a relação entre as esferas pública e privada na apropriação da biodiversidade. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável) Universidade de Brasília, Brasília, 2009.
SANTILLI, J. Áreas protegidas e direitos de povos e comunidades tradicionais. In: BENSUSAN, N; PRATES, A. P. (Orgs.). A diversidade cabe na unidade? Áreas Protegidas no Brasil. Brasília: IEB, p. 398-435, 2014.
SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed., 2 reimpressão, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1 ed., 2., reimpressão, 2012.
SILVA, J. A. F. Pertencimento e identidade, territorialidade e fronteira entre os Chiquitanos no Brasil e na Bolívia. Espaço Ameríndio, v. 6, n. 1, p. 119-137, 2012.
SILVA, V. F. Origem Migrante. Avá [online]. n.11, p. 117-136, 2007. ISSN 1851-1694. Disponível em: http://www.scielo.org.ar/scielo.
php?script=sci_abstract&pid=S1851-16942007000200005&lng=es&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 15 março 2014.
UNESCO, UNEP. Cultural diversity and biodiversity for sustainable development. 2002. Disponível em http://unesdoc.
unesco.org/images/0013/001322/132262e.pdf. Acesso em 03 dezembro 2013.
WEST, P. IGOE, J.,; BROCKINGTON, D. Parks and peoples: the social impact of protected areas. Annual Review of Anthropology, 35: 251-277, 2006.
ZAOUAL, H. Nova Economia das Iniciativas Locais: uma introdução ao pensamento pós-global. Tradução de Michel Thiollent. Rio de Janeiro: DP&A: Consulado Gerald a França: COPPE, UFRJ, 2006.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
116
PERCEPÇÕES DE TRABALHADORES E ESTUDANTES SOBRE A VIVÊNCIA DIÁRIA
EM LUGARES DE NATUREZA PRESERVADA NA CIDADE
Albuquerque, Dayse da Silva1; Sousa, Adria de Lima 2; Higuchi, Maria Inês Gasparetto3 & Kuhnen, Ariane4
1. Universidade Federal de Santa Catarina - PPG em Psicologia 2. Universidade Federal do Amazonas - PPG em Psicologia 3. HIGUCHI, M.I.G.
Pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e Docente do PPG em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas
4. Docente do PPG em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina
Resumo
O contato com a natureza tem sido apresentado como possibilidade para a redução do estresse advindo de atividades que
demandam concentração e respostas a inúmeros estímulos nos grandes centros urbanos. Nesse estudo, procurou-se verificar
as implicações das atividades de trabalho e estudo desenvolvidas em ambientes urbanos de natureza preservada. Foram entrevistadas 86 pessoas (50 estudantes e 36 trabalhadores) em dois campi na cidade de Manaus-AM. Buscou-se compreender as
percepções provenientes da vivência diária em fragmentos florestais urbanos. Com viés descritivo e exploratório, a análise de
conteúdo evidenciou percepções associadas à capacidade restaurativa desse ambiente florestado, culminando em sensações de
agradabilidade, em contraponto às possibilidades de perdas de benefícios decorrentes da ausência dessa natureza. Constatouse a relevância de investimentos em espaços com elementos naturais para o bem-estar biopsicossocial no desempenho de
atividades cotidianas.
Palavras-chave: Percepção Ambiental, Natureza, Ambiente de Trabalho, Ambiente Escolar, Bem-Estar Psicológico
Introdução
As cidades na Amazônia têm sofrido, assim como as demais metrópoles, um crescimento exponencial e desordenado.
Manaus, capital do Amazonas, já está no rol das grandes e problemáticas cidades, cuja expansão pressiona impiedosamente o
ambiente natural para dar lugar às construções. Apesar da grandiosidade da floresta amazônica, esta vai se transformando numa
paisagem distante e pouco desejada para o perímetro urbano destas cidades (DRAY, 2014). Restam atualmente apenas algumas
áreas protegidas, as quais ocupam 4,75% do perímetro do município. Tal fato contraria o mito de uma natureza próxima e presente
entre os manauenses, apesar de sua reconhecida importância (HIGUCHI, AZEVEDO; FORSBERG, 2012).
A reduzida existência de áreas de natureza preservada nas cidades não apenas compromete sua função ecológica, mas
sobretudo sua função psicossocial. Nas grandes cidades, o entorno é complexo e carregado de estímulos que formam paisagens confusas e repetitivas. Não é difícil prever elevados níveis de estresse que o habitante sofre nesses contextos (MOSER;
ROBIN, 2006). A busca de compensações e reequilíbrio de energia diante desses fatores estressantes pode ser bem-sucedida
no encontro com paisagens que apaziguem o estado de estresse. Essas paisagens geralmente remetem a áreas verdes, infelizmente cada vez mais distantes da cor cinza metropolitana.
Os benefícios da paisagem verde para a saúde têm sido constatados em vários estudos (KAPLAN; KAPLAN, 1989; ULRICH et al., 1991). O ambiente natural ganha destaque por apresentar elementos que ativam sentimentos capazes de modificar o
estado de espírito e produzir bem-estar físico e emocional. Atribui-se a esse fato sentimentos biofílicos, isto é uma predisposição
positiva que os seres humanos têm com a natureza a partir do reconhecimento dos seus benefícios e recompensas que oferece
(FEDRIZZI, 2011). Esses benefícios podem disparar aspectos sensibilizadores com relação à necessidade de proteção e cuidado ambiental (ALVES, 2011; CORRAL-VERDUGO, 2012).
Louis Wirth (1967), ao refletir sobre o urbanismo como modo de vida, afirma que nesse contexto há um distanciamento
cada vez maior das pessoas em relação aos elementos da natureza. Esse modo de vida predominantemente urbano tem gerado
implicações nos processos de saúde e doença das populações. Tais processos estão, entre outros aspectos, associados ao
afastamento de espaços restaurativos, propriedade inerente à natureza. A esse respeito, Simmel (1987), nos fala da atitude blasé
ou indiferença e embotamento frente a distinção das coisas, uma atitude predominante e possível das pessoas que vivem nas
grandes metrópoles que nos leva a refletir acerca dos impactos que essa atitude provoca no citadino.
02: Sistemas de Gestão e Governança
117
Para entender esse comportamento humano, a Psicologia Ambiental enfatiza a essencialidade do ambiente no qual se
desenvolvem as relações e interações humanas e o modo reciproco que faz com que ambos se afetem, gerando pensamentos,
emoções e comportamentos específicos em seus espaços de vida. Esses espaços são percebidos com o corpo e a partir da
relação com o outro, isto é, o mundo é percebido com todos os sentidos a partir da vivência imediata e também a partir dos significados compartilhados diante da intersubjetividade (MERLEAU-PONTY, 1999).
Para Simmel (1987), os problemas mais graves da vida moderna derivam da pretensão do indivíduo de preservar a autonomia e individualidade, desconsiderando a historicidade e a força sociocultural. Esse espaço, onde se dá a experiência dessa
individualidade, da autonomia e liberdade bem como da atitude blasé, é a cidade. O contexto urbano, como qualquer entorno,
desencadeia uma série de estímulos. Por ser um espaço construído pela própria sociedade, ocorre, não raro, a naturalização da
paisagem e de seus acontecimentos sociais onde se condensam aspectos de violências, desigualdades sociais, atos desumanos, catástrofes e desastres ambientais. A cidade tem se tornado, assim, um espaço eminentemente insustentável seja pelo
afastamento da natureza e/ou pela massificação e naturalização do estresse urbano.
A sustentabilidade, vem sendo repensada nesta via de desencontros. Sustentabilidade requer uma distribuição equitativa
dos recursos e de acesso a todos os espaços que viabilizam uma melhor qualidade de vida e bem-estar. Quando o modo de vida
nas cidades não estimula tais requisitos, a sociedade deve discutir modos sustentáveis de existir, pois o que está em jogo é o
próprio existir do sujeito humano (CARVALHO; MANSANO, 2013). Tal reflexão não é simples, mas podemos iniciá-la repensando
a espacialidade presente na cidade. Como se configuram tais espaços nas cidades? Como os espaços de natureza preservada
se comunicam com os citadinos e como esses espaços de natureza preservada são percebidos pelas pessoas no cotidiano
urbano?
Uma forma de mergulharmos nesse imaginário que orienta as práticas de nosso cotidiano, são os estudos de percepção
ambiental. A percepção ambiental está relacionada a aspectos físicos, socioculturais e históricos que moldam as imagens dos
espaços que acessamos. A função de interpretar e construir significados, presentes no processo de formação das percepções
ambientais, define rumos importantes na apropriação e identificação dos lugares (HIGUCHI; KUHNEN, 2011). É nessa trajetória
racional e efetiva que a compreensão do mundo ocorre, fruto dos significados que atribuímos aos lugares que vivenciamos. Esse
processo se estabelece em um mundo no qual a pessoa está inserida, um mundo que envolve aspectos objetivos e subjetivos,
com características que são percebidas ou não, a que se atribui significados ou não, mas que culminam em implicações mútuas
(MERLEAU-PONTY, 1999).
Tais situações e pressupostos teóricos nos impulsionaram a investigar a percepção ambiental de trabalhadores e estudantes que realizam suas atividades dentro de uma área caracterizada como fragmento florestal urbano, já reconhecida como
uma APA. O estudo aqui descrito buscou apreender os benefícios do contato diário dessas pessoas com uma área de natureza
preservada em meio urbano, bem como as implicações diante da possibilidade de perda desse cenário natural.
A proposta se insere na concepção de que tal entendimento pode auxiliar a construção de intervenções que promovam
tanto o bem-estar social quanto uma relação mais sustentável com os recursos naturais. Entende-se sustentabilidade não somente como a capacidade de manter um ambiente e um estilo de vida favorável para si mesmo e para as sociedades futuras,
mas como um estilo que promove bem-estar e uma relação positiva entre a pessoa e seu entorno.
Lócus da Pesquisa
A pesquisa foi desenvolvida numa Área de Proteção Ambiental (APA) instituída através do Decreto nº 1503/2012 pela
Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMMAS), onde se situam um campus universitário e um campus
de pesquisa científica na cidade de Manaus-AM. Localizada na zona centro-sul de Manaus, a APA reúne 759,15 hectares e é
formada pelos fragmentos florestais de um instituto de pesquisa, de uma Universidade Federal, um parque e um conjunto residencial. Nestas áreas a floresta é nativa com várias espécies de animais silvestres e pequenos córregos de água entrecortados
com alamedas e construções.
O campus universitário abriga o maior fragmento verde em contexto urbano do país e possui 6,7 milhões de metros
quadrados, com apenas 35% de área construída. A área florestal do instituto de pesquisa é de 23 mil metros quadrados, apesar
de não ser primária, está mantida como tal há mais de 40 anos. As duas áreas estão entrecortadas por uma via de rápido acesso
urbano. A APA mantém preservada inúmeras espécies da fauna e flora da região amazônica.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
118
Método
A pesquisa apresenta-se como descritiva, exploratória e de abordagem qualitativa. Teve caráter transversal, por refletir
percepções em espaço e tempo específicos. Para este estudo foram aplicadas entrevistas com roteiros semiestruturados, realizadas nos espaços em que os participantes desempenham suas atividades diárias.
O estudo apresentado incorpora um recorte de duas dissertações de mestrado (ALBUQUERQUE, 2015; SOUSA, 2015),
respectivamente aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos das Universidades Federais do Amazonas
(UFAM – Proc. 804.214) e de Santa Catarina (UFSC – Proc. 1.044.668).
Participantes
Foram entrevistadas 86 pessoas (F=46; M=40), sendo 50 estudantes de graduação do campus universitário e 36 trabalhadores do campus de pesquisa científica, com idade entre 19 e 62 anos. Foram incluídos aqueles com no mínimo um ano de
efetiva atividade no local.
Procedimentos de Coleta e Análise dos dados
A entrevista se deu a partir de um roteiro com perguntas abertas que foram audiogravadas com o devido consentimento
dos participantes. Com tempo médio de 20 minutos, as entrevistas ocorreram entre os meses de janeiro e fevereiro de 2015 nos
períodos matutino e vespertino, nas dependências das instituições escolhidas.
O conteúdo dos áudios foi transcrito integralmente e organizado em planilhas de maneira a facilitar a visualização dos
dados. Após a transcrição, foi realizada a análise de conteúdo (BARDIN, 2011) para compreensão e categorização dos dados
emergentes das entrevistas.
Os dados foram confrontados de maneira a evidenciar pontos comuns e divergentes para o enriquecimento da discussão dos resultados e explorar os benefícios e implicações do desempenho de atividades laborais e acadêmicas em uma área
de proteção ambiental da região amazônica.
Resultados e Discussão
Contribuições para a qualidade de vida e benefícios para o bem-estar
A natureza tem sido reconhecida como fator de influência positiva no enfrentamento do estresse vivido pelos habitantes
de grandes cidades (BERTO et al., 2010; KAPLAN; KAPLAN, 2011; TYRVAINEN et al., 2014). Comumente, esses benefícios são
associados à visitação de ambientes naturais com os quais se mantém contato esporádico e intencional, contudo, pouco se tem
explorado sobre a percepção daqueles que tem uma convivência diária com esses espaços.
Estudar e trabalhar configuram-se como dimensões existenciais distintas. Os sentidos e significados atribuídos às atividades laborais e acadêmicas e os respectivos ambientes em que ocorrem, perpassam pelos próprios estágios de desenvolvimento do ciclo vital humano. O ponto de aproximação desse estudo revela-se na convivência com uma área de proteção ambiental
e os benefícios associados a essa vivência por pessoas que desempenham suas atividades nesse local. O contato com a natureza
não se dá por decisão voluntária, mas apresenta-se como pano de fundo da vivência diária em fragmentos florestais urbanos. Ambas as atividades demandam concentração e respostas a diferentes estímulos, capazes de gerar estresse e sobrecarga cognitiva.
Seria, pois, a natureza propulsora de bem-estar nesses ambientes quando as pessoas estão envolvidas com distintas atividades?
O estudo evidenciou percepções associadas à capacidade restaurativa desse ambiente florestado, culminando em sensações de bem-estar e qualidade de vida, em contraponto às possibilidades de perdas de benefícios para trabalhadores e estudantes diante do afastamento dessa área.
Trabalhar e estudar em proximidade com a natureza
Residir em uma metrópole, com todos os problemas próprios da urbanização exponencial, e de certa forma não planejada e caótica, é por si só um ambiente já apontado como estressante (SIMMEL, 1987; MOSER & ROBIN, 2006). Estar em um
fragmento florestal urbano inserido nesse contexto urbano para realizar suas atividades laborais e acadêmicas possibilita estímulos diferenciados.
Os campi universitário e de pesquisa científica destacam-se na cidade de Manaus como lugares onde a floresta nativa
02: Sistemas de Gestão e Governança
119
foi preservada durante a construção dos prédios, cujas portas e janelas se confundem com a própria vegetação. Esses espaços
foram preservados para abrigar inúmeras espécies silvestres que circulam entre as trilhas e os prédios. São espaços em que os
trabalhadores e estudantes dividem com as plantas e os animais diariamente.
A presença do verde entre os prédios, nas janelas e corredores, traz uma sensação de familiaridade que é evidenciada
por discursos como: “eu acho que pra comunidade acadêmica, eu acho que todos sentem o privilégio de estudar aqui, entendeu, tem uma colega minha que diz que é a mata acadêmica”, mas no decorrer do dia-a-dia, com as demandas próprias da
rotina, muito se perde dessa relação.
O reconhecimento do campus universitário como aquele que abriga a maior área verde em contexto urbano do país já
exerce influência sobre a percepção dos discentes, como denota a seguinte fala: “é uma universidade que tá dentro de uma área
de preservação né, acho que a partir disso mesmo, eu acho que é, como é que falam, é a maior área de preservação dentro
da cidade”. É bastante presente no discurso dos universitários a valorização por esses espaços, apesar do distanciamento no
que concerne a um contato mais próximo. Há uma interação majoritariamente mais passiva, voltada para a contemplação em
momentos de pausa e busca de relaxamento.
Ao adentrar o campus de pesquisa científica, os trabalhadores também percebem que a inserção em um fragmento
florestal urbano traz sensações diferenciadas pelas próprias características do ambiente físico e sua estética paisagística. Essas
sensações são caracterizadas a partir da presença do ambiente natural e da paisagem agradável que permite a contemplação:
“O clima diferente que é mais fresco, mais agradável. Fica mais ameno o clima, a gente se sente melhor. É a questão das árvores, às vezes tá florido sabe, bonito, aí a gente para pra olhar, as chuvas de semente, fica bonito”. O próprio clima da região
(quente e úmido) leva à percepção de um microclima diferenciado em ambos os campi, que potencializa a sensação de agradabilidade.
Trabalhar em um ambiente florestado também possibilita sensações de conectividade. Os trabalhadores percebem a
possibilidade de aproximação e interação com essa natureza que estimula o contato e bem-estar através de trocas com o ambiente: “Ao adentrar dentro da instituição eu me sinto bem porque é um lugar arejado, flui uma energia boa. Sinto isso. Sensação
muito boa. Espiritual. Eu tô num ambiente de trabalho onde eu posso me locomover tendo essa ligação com a natureza. É muito
forte isso. Eu me sinto bem. A energia é outra”.
Ao serem questionados acerca da possibilidade dessa proximidade com a natureza trazer contribuições para a qualidade
de vida, os estudantes são unânimes em afirmar os benefícios percebidos. Os benefícios citados englobam aspectos biofílicos
(FEDRIZZI, 2011) associados a fatores ambientais que culminam no restauro psicológico (KAPLAN; KAPLAN, 2011). O bem-estar, dessa forma, é percebido tanto pelos elementos da natureza quanto pelos efeitos psicológicos propiciados pelo contato com
ambiente natural. A preservação da área auxilia na manutenção de um clima agradável, da qualidade do ar, da biodiversidade do
local e da estética paisagística. A diferença é nítida quando se compara o ambiente do campus com outras regiões da cidade,
conforme elucida a fala: “aqui não tem tanta poluição, seja sonora ou poluição [...] de ar, então sempre, de certa maneira, [...]
as árvores tão cuidando da gente porque elas dão ar fresco pra gente e a gente não tá em contato com essa poluição, seja do
ar ou do som”.
Em relação aos efeitos psicológicos, é evidenciada a possibilidade de alívio das tensões diárias em decorrência dos
espaços verdes propiciarem um ambiente silencioso e tranquilo, que permite contemplação e manutenção da concentração. Os
discentes ressaltam que a natureza contribui significativamente para a qualidade de vida nesse aspecto restaurador, como fica
em destaque na fala: “[a presença desses espaços] torna o ambiente mais agradável, menos estressante, porque um ambiente
só prédios se torna mais estressante, o ambiente verde passa essa sensação de relaxamento”.
Embora a presença intensa da natureza seja notada de forma significativa em ambos os campi, para 14% dos trabalhadores e 22% dos estudantes, ela tornou-se tão habitual que passa a ser uma característica indistinta, indiferenciada, o que pode
estar associado ao tempo de convivência com o local: “A floresta... é uma reserva diferente de outros lugares. Talvez eu não
perceba porque já trabalho aqui há muito tempo” e “Eu acho que a maioria das pessoas nem repara muito assim, por causa da
área verde [...] não influencia na vida do estudante”.
O trabalho, dado o próprio caráter existencial que ocupa nas vidas das pessoas, proporciona significados que se estendem para além dos limites físicos e laborais, visto que o ambiente é sempre um espaço construído socialmente (FISCHER, s.d.).
Nesse sentido, o ambiente de trabalho traz em sua configuração aspectos de forte presença da natureza (árvores, plantas e
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
120
animais silvestres), que transcendem e se confundem com o próprio trabalho, mesmo que tais significados não sejam compartilhados pela maioria, mas se mostram reveladores da importância do espaço verde na estruturação espacial do trabalho.
Estudar nesses ambientes por sua vez, revela um caráter similar, ainda que as atividades vivenciadas sejam distintas.
Cada campus universitário apresenta elementos próprios, com dimensões e concepções distintas, o que implica nas mais variadas percepções daqueles que vivenciam esse espaço diariamente. Os estudantes apropriam-se, atribuem significados, estabelecem avaliações sobre o campus e seus elementos ao transitarem nas distintas configurações fornecidas pelo ambiente físico,
seja natural ou construído (FISCHER, s.d.; GILMARTÍN, 2002).
Os benefícios percebidos em relação ao contato com ambientes naturais, acarreta em uma valorização desses espaços.
A convivência diária induz ao hábito, o que contribui para a compreensão de que mudanças drásticas nesse ambiente podem
gerar implicações associadas a perda de benefícios.
Trabalhar e estudar com a possibilidade de distanciamento da natureza
O trabalho com a possibilidade da ausência de convivência com essa natureza, provoca, na percepção da maioria dos
entrevistados a perda de benefícios para o bem-estar. Trabalhar em um ambiente com a ausência da natureza traria implicações
negativas no desenvolvimento do trabalho e na satisfação de estar ainda ativo nas suas atividades laborais. A possibilidade de
trabalhar sem esse cenário geraria implicações para o próprio bem-estar e desenvolvimento das atividades laborais: “Não seria
a mesma coisa porque o visual também te beneficia muito ou o contrário. Você trabalhar vendo essa paisagem é diferente (...)
você fica aqui em paz, ó a natureza daqui”.
De modo similar à percepção dos trabalhadores, os universitários em sua maioria, ressaltam que a ausência de elementos naturais no entorno do campus ocasionaria perda de benefícios: “o fato de você caminhar num local preservado, digamos
assim, arejado, é, tem a questão da qualidade de vida, tem a questão do bem estar, tem a questão de saúde, de tudo, eu acho
que a gente é afetado diretamente pelo ambiente que a gente tá, então se é um ambiente bom, um ambiente agradável, então
só tem a refletir positivamente pra gente”. A perda de benefícios faz alusão à impossibilidade de se usufruir dos efeitos provenientes da preservação de uma área natural e seus elementos.
Dessa forma, os universitários citam que haveria um aumento de fatores de influência (GARCÍA-MIRA, 1997; FISCHER,
s.d.) como ruído, aglomeração e temperatura. Tais perdas dificultariam a redução do estresse, a manutenção da concentração e
a melhora do humor, aspectos percebidos como favorecedores de uma relação mais saudável com o ambiente acadêmico. Os
universitários ressaltam que a exclusão da APA os tornaria ainda mais indiferentes e distantes da natureza e descaracterizaria o
campus que é reconhecido por abrigar essa área verde. Repercutiria ainda nos processos de aprendizagem, pesquisa e extensão promovidos pela instituição no que tange ao aprofundamento de questões regionais, principalmente para os alunos das áreas
biológicas e agrárias que fazem uso desses espaços para realização de aulas práticas.
Esses dados permitem constatar o que entendemos por apego ao lugar, que implica em dimensões funcionais - espaço
físico interferindo nos comportamentos - simbólicas - conteúdo simbólico, sociocultural e individual - e relacionais - interação
dinâmica entre o envolvimento social cotidiano e as características do ambiente (ELALI; MEDEIROS, 2011). Esses aspectos
refletem a percepção dos trabalhadores e estudantes a respeito da inserção em um fragmento florestal urbano. Considerando
o tempo de convivência, as experiências, memórias, histórias e sentimentos imbricados, não é possível dissociar esse espaço
físico da identidade social na dinâmica existencial dessas pessoas.
Apenas 29% dos trabalhadores e 22% dos estudantes afirmaram que realizar cotidianamente suas atividades em um lugar
sem a presença da natureza não traria nenhum tipo de implicação, pois teriam que se adaptar. Os discentes destacam ainda que
a ausência do entorno verde poderia trazer ganhos no que se refere à acessibilidade e segurança da universidade. A justificativa
daqueles que apresentam uma percepção indiferenciada quanto à ausência do ambiente natural, remete ao embotamento e
atitude blasé discutido por Simmel (1987), precursora de um distanciamento e baixa mobilização a respeito de questões socioambientais.
A percepção desses trabalhadores a respeito desse lugar de trabalho engloba múltiplos elementos e a natureza aparece
ora como figura, ora como fundo, de maneira que vivências positivas são associadas aos significados atribuídos a esse lugar
contando como elemento de vínculo e apego. O tempo de trabalho que esses trabalhadores possuem no campus de pesquisa
científica e os diversos elementos presentes nessa relação, ressaltam o papel da natureza como elemento de agradabilidade e a
02: Sistemas de Gestão e Governança
121
relação de respeito com essa natureza mesmo quando impõe riscos.
A familiaridade com um lugar apresenta-se como um indicador avaliativo importante para valoração positiva ou negativa.
Para Tuan (1980), a familiaridade engendra afeição ou desprezo. Os dados nos revelam que para as pessoas entrevistadas, a
familiaridade com o lugar, no qual há a convivência e presença exuberante da natureza se revela, possibilita uma afetividade
positiva capaz de trazer sentimentos de bem-estar, satisfação e preferência.
Considerando tais percepções, faz-se necessário reconhecer que a rotina laboral e acadêmica pode tornar-se maçante e
cansativa e que o ambiente físico contribui para atribuição de prazer ou desprazer na realização das atividades rotineiras (FELSTEN, 2009; RIBEIRO, 2005). O investimento em espaços nesses cenários que possam reduzir essas tensões é uma alternativa
que tem se mostrado promissora, principalmente quando se destacam elementos naturais que permitem proximidade com a
natureza (KAPLAN, 1993; MCFARLAND; WALICZEK; ZAJICEK, 2008; MCFARLAND; WALICZEK; ZAJICEK, 2010; SPEAKE, EDMONSON; NAWAZ, 2013).
Considerações Finais
Os resultados instigam reflexões a respeito de questões relativas a sustentabilidade em tempos de emergências ambientais. Estudos anteriores (HARTIG, KAISER & BOWLER, 2001; CORRAL-VERDUGO, 2012) têm mostrado que, de acordo com
a vinculação com o ambiente natural, há uma maior tendência a comportamentos ecologicamente responsáveis e de cuidado
ambiental. Quando uma afetividade positiva é capaz de gerar ações igualmente positivas e sustentáveis e a natureza apresentase como fator de agradabilidade, esses sentimentos são favorecidos. O estudo reverbera possibilidades de (re)construções de
ambientes institucionais nos quais a natureza se faça presente, visto que espaço físico e social constituem-se mutuamente na
atribuição de significados (BOURDIEU, 1997).
No decorrer do processo de desenvolvimento humano, há a vinculação com distintos ambientes institucionais que contribuem com a construção identitária dos sujeitos. Os ambientes escolares e de trabalho auxiliam nesse processo de mediação
quando propiciam benefícios que contribuem para a qualidade de vida dos sujeitos que com eles se relacionam. Dessa forma, a
convivência com ambientes saudáveis repercute na salubridade das pessoas. Nessa pesquisa, acadêmicos e trabalhadores associaram as sensações de bem-estar percebidas ao entorno que se constitui como uma área de proteção ambiental, o que nos leva
a crer que há uma necessidade de aprofundar o conhecimento acerca das contribuições de áreas preservadas em meio urbano.
Nesse sentido, esse estudo possibilita suscitar reflexões a respeito de ambientes institucionais saudáveis, satisfatórios
e comprometidos com uma ética voltada para a sustentabilidade. Acredita-se que o investimento em espaços que propiciem
o estreitamento da relação pessoa-ambiente, como os fragmentos florestais urbanos, contribui não somente para o equilíbrio
ecológico, mas para o bem-estar físico e psicossocial das pessoas que vivem na cidade.
Referências
ALBUQUERQUE, D. S.. Campi Universitários e Espaços Verdes: Percepções Ambientais no Norte e Sul do Brasil. 2015.
Dissertação (Mestrado em Psicologia). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.
ALVES, S. M. Ambientes restauradores. In: CAVALCANTI, S.; ELALI, G. A. (Orgs.) Temas básicos em Psicologia Ambiental.
Petrópolis: Vozes, 2011. pp.44-52
BARDIN, L. Análise de Conteúdo. 3ª ed. Lisboa: Edições 70, 2011.
BERTO, R.; BARONI, M.R.; ZAINAGHI, A.; BETTELLA, S. An exploratory study of the effect of high and low fascination environments on attentional fatigue. Journal of Environmental Psychology,. v.30, n.4, p494-500, 2010.
BOURDIEU, P. Efeitos do Lugar In: BOURDIEU, P. (Org.). Miséria do Mundo. Petrópolis: Vozes, 1997. p159-166
CARVALHO, P.R. & MANSANO, S.R.V. Encontro da ABRAPSO, 17., 2013. Sustentabilidade Afetiva: Por uma política de resistência.
Anais... 2013. Disponível em: <http://migre.me/qFR2A>. Acesso em 13 janeiro 2014.
CORRAL-VERDUGO, V. Sustentabilidad y Psicologia Positiva: uma visión optmista de las conductas proambientales y prosociales. Mexico: Editorial el Manual Moderno, 2012.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
122
DRAY, W.T. Arborização Condominial Em Manaus: Um Estudo Sobre As Percepções Dos Moradores. Dissertação (Mestrado em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia). Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2014.
ELALI, G.A.; MEDEIROS, S.T. F. Apego ao lugar. In: CAVALCANTI, S.; ELALI, G. A. (Orgs.) Temas básicos em Psicologia
Ambiental. Petrópolis: Vozes, 2011. pp.53-62
FEDRIZZI, B. Biofilia e biofobia. In: CAVALCANTI, S.; ELALI, G. A. (Orgs.) Temas básicos em Psicologia Ambiental. Petrópolis: Vozes, 2011. pp. 98-104
FELSTEN, G. Where to take a study break on the college campus: an attention restoration theory perspective. Journal of Environmental Psychology, v.29, p.160-167, 2009.
FISCHER, G. Psicologia Social do Ambiente. Lisboa: Instituto Piaget, s.d.
GARCÍA-MIRA, R. La ciudad percebida: uma psicologia ambiental de los barrios de la Coruña. La Coruña: Universidade de
Coruña, 1997.
GILMARTÍN, M.A. Ambientes Escolares. In: ARAGONÉS, J.I.; AMÉRIGO, M. (Coord.). Psicología Ambiental. Madri: Ediciones Pirámide, 2002. pp. 221-238
HARTIG, T.; KAISER, F.G. & BOWLER, P.A. Psychological Restoration in Nature as a Positive Motivation for Ecological Behavior.
Environment and Behavior. v.33, n.4, p.590-607, 2001. DOI:10.1177/00139160121973142
HIGUCHI, M.I.G.; AZEVEDO, G. C.; FORSBERG, S.S. A floresta e sociedade: ideias e práticas históricas HIGUCHI, M.I.G.;
HIGUCHI, N. (Eds.). A Floresta Amazônica e suas Múltiplas Dimensões: Uma Proposta de Educação Ambiental. Manaus:
[s.n.], 2012. p311-329
KAPLAN, R; KAPLAN, S. The experience of nature: A psychological perspective. Cambridge: University Press, 1989.
KAPLAN, R.; KAPLAN, S. Well-being, Reasonbleness and the natural environments. Applied Psychology: health and wellbeing. v.3, n.3, p.304-321, 2011.
KAPLAN, R. The role of nature in the context of the workplace. Landscape and Urban Planning. v. 26, p.193–201, 1993.
KUHNEN, A.; HIGUCHI, M.I.G. Percepção Ambiental. In: CAVALCANTI, S.; ELALI, G. A. (Orgs.) Temas básicos em Psicologia Ambiental. Petrópolis: Vozes, 2011. pp.250-266
MCFARLAND, A. L.; WALICZEK, T. M.; ZAJICEK, J. M. The relationship between student use of campus green spaces and perceptions of quality of life. HortTechnology. v.18, n.2, p232-238, 2008.
MCFARLAND, A. L.; WALICZEK, T. M.; ZAJICEK, J. M. Graduate student use of campus green spaces and the impact on their
perceptions of quality of life. HortTechnology. v.20, n.1, p.186-192, 2010.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MOSER, G.; ROBIN, M. Environmental annoyances: an urban-specific threat to quality of life?. European Review of Applied
Psychology. v.56, n. 1, p.35-41, 2006.
RIBEIRO, T. Ambientes Laborais: Espaços de trabalho em contexto organizacional. In: SOCZA, L. (org). Contextos Humanos e
Psicologia Ambiental. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.
SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.) O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
SOUSA, A.L. A floresta na porta e na janela: percepções sobre o lugar de trabalho em um fragmento florestal urbano.
Dissertação (Mestrado em Psicologia). Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2015.
02: Sistemas de Gestão e Governança
123
SPEAKE, J.; EDMONDSON, S.; NAWAZ, H. Everyday encounters with nature: students’ perceptions and use of university green
spaces. Human Geographies – Journal of Studies and Research in Human Geography. v.7, n.1, p.21-31, 2013.
TUAN, Y. Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: DIFEL, 1980.
TYRVAINEN, L.; OJALA, A.; KORPELA, K.; LANKI, T.; TSUNETSUGU, Y.; KAGAWA, T. The influence of urban green environments
on stress relief measures: a field experiment. Journal of Environmental Psychology. v.38, p.1-9, 2014.
ULRICH, R.S.; SIMONS, R.F.; LOSITO, B.D.; FIORITO, E.; MILES, M.A.; ZELSON, M. Stress Recovery During Exposure to Natural and Urban Environments. Journal of Environmental Psychology, v.11 n.3, p.201-230, 1991.
WIRTH, L. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.) O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar,
1967. pp.97-122
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
124
CONSIDERAÇÕES SOBRE OS POSSÍVEIS IMPACTOS AMBIENTAIS NA
EXTRAÇÃO DO SHALE GAS NO BRASIL
Gomes, Andréa dos Santos1 & Fernandes, Amarildo da Cruz2
1. Mestranda em Engenharia Ambiental na Universidade Federal do Rio de Janeiro [email protected]
2. Professor Associado do Departamento de Engenharia Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Resumo
A exploração do shale gas através do fracking tem apresentado impactos negativos a nível mundial, com proeminentes riscos à
garantia de fornecimento de água potável, à saúde pública e ao meio ambiente. Estes intempéries motivaram alguns países no
aperfeiçoamento desta técnica, no registro de patentes e em contraponto, na proibição e moratória de seu uso em sua nação.
Através de um estudo exploratório e descritivo utilizando o método qualitativo, a proposta deste trabalho é fazer considerações
sobre os possíveis impactos ambientais causados pelo uso da técnica do faturamento hidráulico aliada à perfuração horizontal
na extração do Shale Gas em território brasileiro, baseado em experiências internacionais, artigos e documentos sobre essa
extração.
Palavras-Chave: Shale Gas, Fracking, Fraturamento Hidráulico, Impactos Ambientais, Perfuração Horizontal.
Introdução
A exploração de Petróleo e gás no país sofreu intenso impacto a partir de 2014 com as inúmeras investigações de corrupção e tomadas de decisões técnicas errôneas, deflagradas pela Polícia Federal Brasileira, que influenciaram diretamente
na economia da principal empresa do setor no Brasil. Em meio à procura por respostas visando definir qual o melhor modelo
energético a ser seguido e quais estratégias, a fim de assegurar o crescimento econômico aliado à garantia do fornecimento
energético nacional, que de acordo com o Ministério de Minas e Energia (MME), a ampliação do uso do gás natural tem espaço
neste cenário.
A exploração do shale gas não consta no Plano Nacional de Energia (PNE) 2030 como estratégia, em contraponto com
a promoção da 12ª rodada de licitações1 para Exploração, Desenvolvimento e Produção de Petróleo e Gás Natural. O PNE 2030
é o primeiro estudo de planejamento integrado dos recursos energéticos realizado no âmbito do Governo brasileiro. Conduzidos pela Empresa de Pesquisa Energética – EPE em estreita vinculação com o MME, os estudos do PNE 2030 originaram a
elaboração de quase uma centena de notas técnicas. O trabalho fornece os subsídios para a formulação de uma estratégia de
expansão da oferta de energia econômica e sustentável com vistas ao atendimento da evolução da demanda de gás (MONIZ,
2013), segundo uma perspectiva de longo prazo (CHAMBRIARD, 2014). O PNE foi um estudo de planejamento cobrindo não
somente a questão da energia elétrica, como também dos demais energéticos, notadamente petróleo, gás natural e biomassa.
Autorizada em Diário Oficial da União (DOU) pela Resolução nº 6, de 25 de junho de 2013 a realização da 12ª Rodada de
Licitações de blocos para a exploração e a produção de petróleo e de gás natural em 2013, a ser implementada pela Agência
Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), de acordo com as diretrizes e as políticas do MME.
Como objeto da Rodada há oferta de duzentos e quarenta blocos exploratórios totalizando 168.348,42 km² de área, sendo:
cento e dez blocos exploratórios em áreas de Novas Fronteiras Tecnológicas e do Conhecimento nas Bacias do Acre, Parecis,
São Francisco, Paraná e Parnaíba, com o objetivo de atrair investimentos para regiões ainda pouco conhecidas geologicamente
ou com barreiras tecnológicas a serem vencidas, possibilitando o surgimento de novas bacias produtoras de gás natural e de
recursos petrolíferos convencionais e não convencionais, totalizando 164.477,76 km² de área e cento e trinta blocos nas Bacias
Maduras do Recôncavo e de Sergipe-Alagoas, com o objetivo de oferecer oportunidades exploratórias nessas áreas, de modo
a possibilitar a continuidade da exploração e a produção de gás natural a partir de recursos petrolíferos convencionais e não
Rodadas de Licitações – A partir da Lei 9.478/1997 (Lei do Petróleo) foi permitida que empresas estatais ou privadas, constituídas sob as leis brasileiras e com sede
e administração no País, realizem atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural no País, mediante contratos de concessão, precedidos de licitação;
A partir de então são programadas Rodadas de Licitação com locais pré definidos.
1
02: Sistemas de Gestão e Governança
125
convencionais contidos nessas regiões, totalizando 3.870,66 km² de área.
Entretanto, porque a disponibilização destes Blocos foi feita com sobreposição de Áreas Prioritárias para a Conservação,
Uso Sustentável e Repartição dos Benefícios da Biodiversidade Brasileira (Portaria MMA nº 09/2007), a Bacia do Acre, os blocos
estão em quase sua totalidade dentro dessas áreas. Há sobreposições com categorias de Unidades de Conservação que não
permitem este tipo de atividade, áreas de Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), por exemplo. Há sobreposição com
a região do Aquífero Guarani, reserva de água localizado em território de 4 países.
De acordo com a Lei 8666/1993 a licitação só poderia ocorrer com a aprovação do projeto básico, que entre outros, deve
ser elaborado com base nas indicações de estudos técnicos preliminares que assegurem a viabilidade técnica e o adequado
tratamento do impacto ambiental do empreendimento. Contudo, onde estão disponibilizados estes estudos?
Mas o que seria gás não convencional, Shale Gas e faturamento hidráulico? Segundo a Nota Técnica da ANP nº 09/2010SCM ANP, gás não convencional é uma denominação que agrupa diferentes categorias de gás, como o gás alocado em reservatórios a grande profundidade ou em águas profundas, em formações pouco permeáveis tight gas, shale gas, gás de carvão,
gás de zonas geopressurizadas e hidratos submarinos e árticos.
Para que a exploração deste gás fosse economicamente viável agrupou-se o uso de duas técnicas: o faturamento hidráulico à perfuração horizontal conhecido como fracking, onde é feita a perfuração vertical até a altura da existência do folhelho,
na sequência esta perfuração passa a ser horizontal, após esta perfuração são injetados fluidos, areia, outros granulares com
aditivos em alta pressão para promover fissuras nos folhelhos de forma a permitir a escoada do gás de acordo com a Figura 1. A
composição desses fluidos varia da mistura de água e areia até misturas mais complexas com uma gama de aditivos químicos
(USHR, 2011).
Esses compostos químicos são adicionados com diversas funções, incluindo redução da perda do fluído, dissolução de
minerais, inibição de corrosão, espessamento e redução de crescimento bacteriano (MICHAELS et al., 2010; ZOBACK et al.,
2010; COLBORN et al., 2011; BATLEY; KOOKANA, 2012; GILLEN; KIVIAT, 2012; HOLLOWAY; RUDD, 2013).
No Brasil esta exploração é inédita, assim como não há regulamentação para este tipo de exploração. Por isso em face
às experiências internacionais, artigos e documentos sobre o tema é que este trabalho objetiva fazer uma avaliação prévia dos
possíveis impactos ambientais causados na extração do Shale Gas em território brasileiro.
Figura 1. Funcionamento da Técnica do Fracking – Fonte: http://www.istoe.com.br/reportagens/302929_AMEACA+SUBTERRANEA.
Metodologia
O presente trabalho pode ser classificado como um estudo exploratório e descritivo, e o método utilizado foi o qualitativo. Como estudo descritivo propondo uma revisão bibliográfica e documental analisando artigos, dissertações, teses, livros e
documentos oficiais. O objetivo com o estudo exploratório é pesquisar sobre os impactos ambientais causados pela exploração
de shale gas no cenário mundial e projetá-los numa exploração nacional já autorizada pela ANP em áreas com conflito de uso da
terra, sobreposição geográfica com aqüífero plurinacional com uma técnica exploratória com alto consumo de recursos hídricos
numa realidade de futura escassez de água.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
126
Linha do Tempo na Exploração do Shale Gas no Brasil
•18 e 19 de setembro de 2013: Audiência Pública do 12º Leilão – Seminário Técnico Ambiental: Presença dos órgãos
ambientais estaduais
•03 de outubro de 2013: Parecer Técnico GTPEG2 03/2013
•19 a 21 de novembro de 2013: Asibama Nacional notifica o MMA, MME e ANP questionando a utilização do faturamento
hidráulico para a exploração do gás não convencional
•21 de novembro de 2013: Audiência Pública no RJ para discussão da minuta de Resolução para a regulamentação da
exploração de gás não convencional
•20 de dezembro de 2013: Ministério Público Federal (MPF) do Piauí obtém liminar que suspende exploração do gás
xisto no Estado;
•11 de abril de 2014: Publicação da Resolução 21 da ANP no DOU;
•05 de junho de 2014: O juiz da 1ª Vara Federal de Cascavel determina a suspensão imediata e por tempo indeterminado
da 12ª Rodada de Licitações para a exploração de gás de folhelho na Bacia do Rio Paraná;
•11 de setembro de 2014: MPF/BA ajuíza ação para suspender efeitos da 12ª rodada de licitações para exploração de
gás de xisto;
•24 de setembro de 2014: Seminário sobre Exploração e Produção de Gás Não Convencional CNRH/MMA;
•17 de dezembro de 2014: MPF/SP protocola ação civil pública;
•17 de junho de 2015: Audiência Pública na Câmara dos Deputados para discussão do Projeto de Lei 6904/2013 do
Deputado José Sarney Filho que estabelece medidas para a exploração de gás de folhelho com os seguintes expositores: Symone Christine de Santana Araújo - Diretora de Gás Natural da Secretaria de Petróleo, Gás Natural e Combustíveis Renováveis do
MME, Silvio Jablonski - Chefe de Gabinete da ANP (*), Edmar Luiz Fagundes de Almeida - Coordenador do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Juliano Bueno de Araújo - Coordenador da Coalizão Não-Fracking Brasil,
Luiz Fernando Scheibe - Professor Emérito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Regulamentação no Brasil
A Resolução ANP nº 21/2014, que regulamenta as atividades de perfuração seguida de fraturamento hidráulico em reservatório não convencional, tem como objetivo estabelecer requisitos para a exploração de gás não convencional dentro de parâmetros de segurança operacional que assegurem a proteção à saúde humana e ao meio ambiente. Publicada no Diário Oficial
da União, em 11/04/2014, a Resolução recebeu 150 comentários e sugestões enquanto esteve em consulta pública por 30 dias, a
partir de 17 de outubro de 2013. Mas destas contribuições quantas foram incorporadas nesta resolução?
Em virtude da técnica para exploração de gás não convencional ser bastante polêmica a nível mundial em 2012, a Agência Internacional de Energia - EIA emitiu o relatório: Golden Rules for a Golden Age of Gas que informa os requisitos para uma
exploração segura, devido ao seu elevado potencial de impactos socioambientais.
A União Europeia em fevereiro de 2014 emitiu a Recomendação 2014/70/EU, apresentando os princípios mínimos para a
exploração e produção de hidrocarbonetos utilizando o fracking com claras restrições sobre a necessidade de preservar, proteger a saúde da população, o meio ambiente, e a transparência na informação aos cidadãos dos Estados Membros.
Enquanto a Resolução ANP nº 21/2014 apresenta definições do fraturamento hidráulico em reservatório não convencional: técnica de injeção de fluidos pressurizados no poço, em volumes acima de 3.000 m³, com objetivo de criar fraturas em determinada formação cuja permeabilidade seja inferior a 0,1mD (mili Darcy) a definição pela Recomendação 2014/70/EU apresenta
parâmetros mais rígidos no que diz respeito à quantidade de água injetada para a realização do fraturamento (volume igual ou
superior a 1.000 m³).
Outros comparativos podem ser descritos ao longo da tratativa da Resolução Brasileira versus a Recomendação Europeia
enquanto a primeira determina que o Sistema de Gestão Ambiental deverá conter um plano detalhado de controle, tratamento
e disposição de efluentes gerados e que a água utilizada para o fracking deverá ser preferencialmente efluente gerado, água
GTPEG – Grupo de Trabalho Interministerial de Atividades de Exploração e Produção de Óleo e Gás - Grupo criado com o objetivo de apoiar tecnicamente a
interlocução com o setor de exploração e produção de petróleo e gás natural, em especial no que se refere às analises ambientais prévias a definição de áreas para
outorga e às recomendações estratégicas para o processo de licenciamento ambiental dessas atividades no território nacional e águas jurisdicionais (Portaria 119,
de 24 de abril de 2008).
2
02: Sistemas de Gestão e Governança
127
imprópria ou de baixa aceitação para o consumo humano ou dessedentação animal, ou água resultante de efluentes industriais
ou domésticos a segunda é mais restritiva quando determina expressamente um plano de gestão das águas a fim de garantir
que a água seja utilizada de forma eficiente durante todo o projeto. A União Europeia se preocupa mais com a eficiência do uso
do que com a natureza do recurso hídrico.
Ao tratar dos produtos químicos utilizados a Recomendação obriga o operador a publicar em seu endereço eletrônico
os produtos químicos (quantidade e composição) em uso, no transporte e armazenagem no fracking com possível impacto à
saúde humana e ao ambiente utilizados no processo, transportados e armazenados enquanto que a Resolução não estabelece
obrigações quanto Porém me parece que a Resolução ANP 21/2014 não evidencia tal grau de preocupação quanto quais e a
quantidade utilizada de produtos químicos, ao contrário do que ocorre na da União Européia, ao determinar que os EstadosMembros deverão assegurar que é minimizada a utilização de substâncias químicas no fraturamento hidráulico (artigo 10.1, b),
da Recomendação).
Essa norma da ANP também estabelece que para fins de aprovação regulatória do fraturamento hidráulico em reservatório não convencional, o operador deverá garantir por meio de testes, modelagens, análises e estudos, que o alcance máximo
das fraturas projetadas permaneça a uma distância segura dos corpos hídricos existentes, conforme as melhores práticas da
indústria do petróleo, ou seja, parâmetro genérico.
Na passagem da minuta ao texto desta regulamentação algumas alterações foram um tanto questionáveis como no artigo
“V- Declaração de Responsável Técnico Designado pela empresa de que o projeto atende aos requisitos legais aplicáveis e que
foram realizados os testes, modelagens, análises e estudos alinhados com as melhores práticas de engenharia que permitam
concluir que não existe possibilidade técnica de que as fraturas preexistentes ou as geradas durante a atividade alcancem
qualquer corpo d’água existente.” Para “... práticas de engenharia, os quais permitiram concluir que, sendo executado o projeto,
os riscos de falhas preexistentes serem reativadas ou das fraturas geradas alcançar qualquer Corpo Hídrico Subterrâneo existente foram reduzidos a níveis toleráveis:”.
Quais seriam estes níveis? A Resolução não estabelece o reaproveitamento de efluente no processo do fracking. Entre
outras informações contidas nesta resolução fica explícita a sensível limitação de controle pelo empreendimento com relação aos
riscos eminentes deste processo, análise de água de corpos hídricos, entre outros.
Houve uma manifestação através do Senhor Deputado Federal Rodrigo Maia do Partido Democratas/RJ com o objetivo
de sustar a aplicação da Resolução ANP nº 21, de 10 de abril de 2014, que estabelece os requisitos a serem cumpridos pelos
detentores de direitos de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural que executarão a técnica de Fraturamento Hidráulico
em Reservatório Não Convencional por entender que a forma escolhida para se resolver a questão seja equivocada.
O referido Deputado entende que não se pode definir as condições acima por resolução da ANP e sim estabelecê-las em
lei fazendo referência à Carta Magna, em seu art. 177, §§ 1º e 2º. Entende que tal ato seja um flagrante de inconstitucionalidade.
Contudo, não há certeza de protocolização desta manifestação, tão pouco de sua resposta.
Possíveis Riscos e Impactos Ambientais Associados à Exploração de Shale Gas
INDUÇÃO SÍSMICA
O processo de faturamento hidráulico causa microssísmicos eventos de magnitudes muito baixas para serem detectadas
na superfície. Enquanto que a prática de reinjeção de água de processo pode propiciar eventos de maiores magnitudes. A
variação interna de pressão nas rochas pode influenciar na capacidade selante das falhas existentes, assim fluidos antes contidos podem migrar por entre essas falhas devido a diminuição do atrito. A influência se dará diretamente pelas características
geológicas do lugar (IEA, 2009). Esta análise é de fundamental importância visto que o processo de reinjeção de água residual
do fracking seria uma possível solução do descarte de resíduos líquidos.
O trabalho de Ellsworth (2013) demonstra a tendência de aumento de ocorrência de abalos sísmicos nas porções central
e leste dos E.U.A., e indica claramente, a partir de diversos outros estudos, a clara relação entre a aplicação da técnica de fraturamento hidráulico e a ocorrência de abalos sísmicos. Holland (2011) também demonstra uma clara correlação temporal entre a
ocorrência a aplicação da técnica de fraturamento hidráulico e a ocorrência de atividade sísmica, em Oklahoma.
Uma investigação conduzida pela Comissão de de Óleo e Gás de British Columbia, Canadá, conclui que uma série de
abalos sísmicos de magnitude igual ou maior a 3.0 M, ocorridos na região no ano de 2009, “foram causados por injeção de fluido
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
128
durante o fraturamento hidráulico na proximidade de falhas [geológicas] pré-existentes” (BCOGC, 2012). Green e colaboradores (2012) também afirmam a correlação entre o registro de sismos de magnitude menor a 3.0 M explicitamente relacionados
com o uso da técnica de fraturamento hidráulico próximo a Blackpool, na Inglaterra, durante o ano de 2012; o estudo apontou
ainda a preocupação quanto a ocorrência de novos eventos sísmicos caso a técnica volta-se a ser utilizada.
A regulamentação desta atividade de exploração no país deve contemplar normas para monitoramento para que alterações no subsolo possam ser antecipadas e ou corrigidas.
REDUÇÃO NA DISPONIBILIDADE DE RECURSOS HÍDRICOS RH NOS LOCAIS DOS EMPREENDIMENTOS
O consumo de RH no processo de exploração do gás não convencional estimasse que seja na ordem de 20 vezes mais
que no convencional. Num período sério de questionamento sobre a disponibilização de água no planeta de maneira geral, causa
estranheza a introdução de novo processo no mercado nacional que requeira tamanha proporção de RH.
No Reino Unido para produzir 9 bilhões de m3 estima-se que sejam necessários de com um consumo de água na ordem
de 87 milhões de m3 de água ao necessitar de 2580 a 3000 poços (NOUYRIGAT, 2013). Há a possibilidade do reuso da água de
produção para a perfuração e faturamento, contudo, não há estudos que tratem da disponibilidade e qualidade desta água para
este fim. O que impacta em grande escala ao utilizar água potável.
Outro complicador é a concorrência no uso deste RH, pois no país atualmente a fonte de energia elétrica vem de usinas
hidrelétricas. O país é um dos maiores exportadores de grãos de acordo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o que pode gerar conflito na concorrência pela utilização de RH nos locais disponibilizados pela 12 rodada
de licitações, além do consumo humano, por animais, indústria, entre outros. A regulamentação da exploração deve contemplar
o respeito ao zoneamento da área urbana e rural quanto ao percentual no uso do RH disponibilizado para cada setor ficando
explícita assim a sua limitação.
CONTAMINAÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS SUPERFICIAIS E SUBTERRÂNEOS
A grande utilização de produtos químicos, já identificado pelo menos 900 substâncias químicas diferentes, na perfuração
hidráulica já causa preocupação diretamente relacionada com o manuseio, armazenamento e transporte destes produtos (EPA,
2013). O deslocamento destes produtos químicos até a chegada à zona de perfuração provavelmente será feito por transporte
terrestre o que deve ser considerada a possibilidade de tombamento com possíveis vazamentos podendo interferir na qualidade
do solo e da água, tanto superficial quanto por infiltração no solo.
Muitos exploradores desta atividade se reservam do direito do segredo industrial para não informarem com exatidão
quais produtos serão utilizados nos fluidos de injeção o que dificulta a elaboração de um possível plano de emergência em
caso de vazamento, assim como o estudo destes com relação ao comportamento nos ambientes onde serão utilizados e sua
disposição final.
O congresso norte-americano lançou um relatório que menciona o uso de mais de 2.500 produtos utilizados no fraturamento hidráulico entre os anos de 2005 e 2009, por 14 empresas de petróleo e gás, contendo ao menos 750 químicos e outros
componentes (USHR, 2011). Esses produtos foram encontrados nos fluídos utilizados no fraturamento hidráulico e também na
água produzida resultante. O relatório destaca dentre esses produtos químicos a presença de 29 compostos químicos “(1) conhecidamente ou possivelmente carcinogênicas para humanos, (2) reguladas pelo Safe Drinking Water Act pelos riscos para a
saúde humana, ou (3) listadas como perigosos poluentes do ar no ´Clean Air Act´” (USHR, 2011).
Dente as substâncias carcinogênicas para humanos, o relatório ressalta a presença de benzeno, registrando ainda que
por questões de propriedade intelectual as empresas de petróleo e gás informaram que “não possuem acesso a informações
sobre os produtos que eles adquiriram de fornecedores dos produtos químicos.” (USHR, 2011).
A perfuração por ser feita em camadas abaixo dos aquíferos é necessária a perfeita vedação chamada neste processo
de cementação para evitar a passagem da água do aquífero ou lençol freático pela tubulação de perfuração para que não haja a
sua contaminação. Michaels et al. (2010) relatam registros de contaminação do lençol freático subterrâneo e de corpos d´água
superficiais por gás metano (JACKSON et al., 2013) e compostos químicos utilizados no processo de fraturamento hidráulico.
Assim como, os cuidados na propagação dos abalos sísmicos de maneira que não atinjam estes corpos d’água. É ne-
02: Sistemas de Gestão e Governança
129
cessária muita atenção em virtude de estarem envolvidos nas áreas desta licitação aquíferos de segurança hídrica nacional e
internacional como é o caso do aquífero Guarani considerado como o maior manancial de água doce subterrânea transfronteiriço
do mundo que ocupa uma área de 1,2 milhões de Km², estendendo-se pelo Brasil (840.000l Km²), Paraguai (58.500 Km²), Uruguai
(58.500 Km²) e Argentina (255.000 Km²). Sua maior ocorrência se dá em território brasileiro (2/3 da área total), abrangendo os
Estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
O auto estudo comportamental dos fluidos de perfuração e a criação de planos de emergência e de contenção a ser elaborado pela indústria são procedimentos para empreendedores que estão em outro nível de maturidade, que talvez a legislação
brasileira e a população diretamente ou indiretamente afetada em caso de incidente não estejam seguras de aceitação.
CONFLITO NO USO DA TERRA
A exploração do shale gas diferente do gás convencional tem a durabilidade de produção do poço muito fugaz (VALLE,
2014). No primeiro a produção dura poucos anos num mesmo poço ao contrário do segundo que pode perdurar por décadas.
Requerendo a instalação em novo local para que o campo seja economicamente viável (CORADESQUI, 2013). A instalação requer uma grande quantidade de equipamento no local conforme por ser observado na figura 2.
O que por vezes representa uma nova abertura de área, possivelmente um desmatamento, a implementação de novo
aparato com interferência visual na paisagem do local de maneira continuada. Propiciando grande densidade de poços, a depletação rápida está na faixa de 60 a 90% da produção ao findar o primeiro ano (CHERRY, 2014). As novas perfurações intensificam
os riscos e impactos relacionados às etapas iniciais (STERN et al., 2014).
Ao findar a exploração daquele poço como será a recuperação deste local? Espera-se que a regulamentação da exploração do shale gas contemple a recuperação deste espaço pós exploração.
Figura 2. Exploração de Shale Gas exige grande quantidade de equipamento no local durante as operações
Foto no Canadá - Fonte: CSUG_HydraulicFrac_Brochure.
CONTAMINAÇÃO DO SOLO
Devido ao grande consumo de água no processo de faturamento hidráulico a contaminação do solo pode ser dada tanto
pelo transporte dos produtos químicos utilizados no processo quanto pelo descarte da água de retorno dita flowback.
A flowback com intensa quantidade de produtos químicos já citados anteriormente por USHR, 2011 e compostos tóxicos
naturalmente presentes no subsolo, como arsênio, bário, mercúrio e elementos radioativos (ZOBACK et al., 2010; ROWAN et al.,
2011; RAHN; RIHA, 2012; RIDLINGTON; RUMPLER, 2013) que veem à superfície por arrasto na saía da flowback, o que tende
a conter grandes concentrações de sal (ZOBACK et al., 2010), o que pode gerar uma série de impactos sobre o solo e sobre as
atividades agrícolas.
O armazenamento da flowback e da água de produção deve ser muito bem controlada para que não infiltre no solo e
que não transborde, pois este armazenamento é feito de maneira aberta e próxima ao local de faturamento conforme a figura 3.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
130
Figura 3. Foto de piscinas de flowback e água de produção - fonte: http://www.iee.usp.br/eventos/nov12/Colombo_Shale.pdf.
DESCARTE INADEQUADO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS E LÍQUIDOS
O intenso uso de Recursos Hídricos para este tipo de exploração com a adição de vasta diversidade e quantidade de
produtos químicos requer a preocupação na mesma proporção com o descarte desta água de retorno gira em torno de 10 a 40%
da injetada (SCHEIBE, 2014). Este efluente ou fica acondicionado em piscinas na região próxima à exploração ou é enviado à estação de tratamentos sendo deslocada através de caminhões pipas. Normalmente estas piscinas ficam abertas, como observado
nas figuras 4 e 5 propiciando tanto a interação com o ar, quanto com os operários (KIBBLE et al., 2014).
Deve ser observada a interação dessas piscinas em caso de chuva e/ou alagamento da área, propiciando contaminação
do solo, humana e possivelmente dos corpos hídricos (RAHM et al., 2013). A Resolução 21/2014 da ANP está contemplando essa
possibilidade?
Figuras 4 e 5. Apresentação de Bianca Dieile no Seminário sobre Exploração e Produção de Gás Não Convencional
CNRH/MMA - Enchente em Colorado – Setembro – 2013.
Conclusões
As avaliações preliminares da ANP, aqui no Brasil, aliadas às informações da agência americana de planejamento energético (EIA, 2011) estimularam o lançamento em 2013 da 12ª rodada de licitações para Exploração, Desenvolvimento e Produção de
Petróleo e Gás Natural ofertando 240 blocos exploratórios, distribuídos em sete bacias sedimentares em áreas de novas fronteiras
nas bacias do Acre, Parecis, São Francisco, Paraná e Parnaíba e em bacias maduras do Recôncavo e de Sergipe-Alagoas como
oportunidades para a geração de energia elétrica com a produção de gás on shore. Contudo, este lançamento em DOU através
da Resolução do Conselho Nacional de Politica Energética (CNPE) nº 6 de 25 de junho de 2013 foi publicado ANTES do parecer
da área ambiental federal contrariando o já estabelecido pela Resolução CNPE nº 08 de 21 de julho de 2003. Este parecer foi
desfavorável e recomendou a não ofertar neste interim tais blocos para exploração. Além de evidenciar a falta de regulamentação específica. Mesmo contrariando os órgãos ambientais competentes, o MME avançou nas negociações e publicou no DOU
a referida rodada, processo este freado pelo Ministério Público Federal (MPF) que ajuizou ação em diversos estados para sus-
02: Sistemas de Gestão e Governança
131
pender os efeitos da 12ª rodada de licitações para exploração de shale gas, que permanece até a presente data.
Os artigos, trabalhos, pesquisas e intensos debates sobre a exploração do shale gas a nível mundial incentivam uma
reflexão por parte dos órgãos nacionais competentes tanto no setor energético quanto no setor ambiental. A legislação nacional
deve ser respeitada em sua íntegra, assim como a manifestação dos órgãos competentes devem ser consideradas no processo
de abertura a este tipo de exploração: órgãos ambientais, de culturas e populações tradicionais, agricultura devido a concorrência no uso dos recursos hídricos e de terra. Os exemplos internacionais devem servir como direcionadores aos pontos de conflito
que devem receber intensa atenção antes da abertura a este tipo de exploração. No Brasil desde dezembro de 2013 as licitações
para este tipo de exploração estão suspensas por ação do MPF e a decisão.
Países da Europa como a Alemanha, França, assim como o Estado de Nova Iorque nos Estados Unidos fizeram moratórias
e proibições devidos aos grandes impactos negativos de vazamentos de produtos químicos, contaminação dos corpos hídricos
com metano, rádio e outros produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente. Estes exemplos negativos devem servir como pontos
de atenção e norteadores a parâmetros que devam ser observados na regulamentação do setor. Assim como o relatório da Agência Internacional de Energia (EIA) Golden Rules for a Golden Age of Gas e a Recomendação 2014/70/EU podem servir como
balizadores à proposta de Regulamentação do setor no país.
Além de todos os possíveis impactos negativos de larga escala apresentados: contaminação do solo, das águas superficiais e subterrâneas, indução sísmica, redução na disponibilidade de água, exposição do trabalhador a produtos químicos, conflito no uso do solo, a intenção é provocar a seguinte reflexão: neste atual momento de escassez mundial de água, vale correr o
risco em utilizar uma técnica exploratória com consumo de água 20 (vinte) vezes superior à técnica atualmente utilizada? Não há
outras alternativas para fonte de energia disponíveis com estabilidade e segurança para serem utilizadas ao invés de exploração
do shale gas, eólica, hidráulica, solar, maremotriz? Teremos respostas rápidas, um Plano de Emergência e contingência mesmo
sem a transparência 100% dos produtos químicos que serão utilizados no fracking? Como conter uma possível contaminação
do MAIOR MANANCIAL DE ÁGUA DOCE SUBTERRÂNEA transfronteiriço do mundo que com área de 1,2 milhões de Km² ou
melhor como reverter esta contaminação? Já houve tratativa com os outros países envolvidos: Paraguai, Uruguai e Argentina?
Referências
BAMBERGER, M.; OSWALD, R.E. Impacts Of Gas Drilling On Human. New solutions, v.22, n.1, p.51–77, 2012.
BATLEY, G. E.; KOOKANA, R. S. Environmental issues associated with coal seam gas recovery: managing the fracking
boom. Environmental Chemical, v. 9, p. 425–428, 2012.
BC OIL & GAS COMMISSION. Investigation of Observed Seismicity in the Horn River Basin. Canada: British Columbia,
2012.
CHAMBRIARD, M. Discurso. In: Rio Oil & Gas Expo and Conference. Rio de Janeiro, 2014.
CHERRY, J. et al. Environmental Impacts of Shale gas Extraction in Canada. Expert Panel on Harnessing Science and Technology to Understand the Environmental Impacts of Shale gas Extraction. Disponível em <shalegas_fullreporten.pdf> Acesso
em: 01 setembro 2014.
COLBORN, T.; KWIATKOWSKI, C.; SCHULTZ, K.; BACHRAN, M. Natural Gas Operations From a Public Health Perspective. Human and Ecology Risk Assessment, v. 17, p. 1039-1056, 2011.
CORADESQUI, S.; SANTOS, P. Análise de Viabilidade Econômica da Produção de Shale gas: Um Estudo de Caso em
Fayetteville. Monografia (Engenharia de Petróleo da Escola Politécnica), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013.
CNRH, RESOLUÇÃO Nº 100, DE 26 DE MARÇO DE 2009. Define os procedimentos de indicação dos representantes do Governo Federal, dos Conselhos Estaduais, dos Usuários e das Organizações Civis de Recursos Hídricos no Conselho Nacional de
Recursos Hídricos.
CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA ENERGÉTICA – CNPE. RESOLUÇÃO No 8, DE 21 DE JULHO DE 2003. Política de
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
132
produção de petróleo e gas natural e diretrizes para a realização de licitações de blocos exploratórios ou áreas com descobertas
já caracterizadas, nos termos da Lei no 9.478, de 6 de agosto de 1997. Disponível em <http://www.brasil-rounds.gov.br/arquivos/
cnpe/RCNPE_082003.pdf>. Acesso em: 26 setembro 2014.
CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA ENERGÉTICA – CNPE. RESOLUÇÃO No 6, DE 25 DE JUNHO DE 2013 do CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA ENERGÉTICA – CNPE. Autoriza a realização da Décima Segunda Rodada de Licitações
de blocos para a exploração e produção de petróleo e gas natural. Disponível em http://www.mme.gov.br/mme/menu/conselhos_comite/cnpe/Resoluxo_CNPE_6_12x_Rodada_Licitaxo.pdf. Acesso em 26 setembro 2014.
EPA, Study of the Potential Impacts of Hydraulic Fracturing on Drinking Water Resources. Disponível em <http://www2.
epa.gov/sites/production/files/documents/hf-report20121214.pdf> Acesso em 14 novembro 2013.
ELLSWORTH, W. L. Injection-Induced Earthquakes. Science, v. 341, n. 6142, 2013.
GILLEN, J. L.; KIVIAT, E. Environmental Reviews and Case Studies: Hydraulic Fracturing Threats to Species with Restricted Geographic Ranges in the Eastern United States. Environmental Practice, v. 14, p 320-331, 2012.
HOLLAND, A. Examination of Possibly Induced Seismicity from Hydraulic Fracturing in the Eola Field, Garvin County:
Oklahoma Geological Survey, 2011.
HOLLOWAY, M. D.; RUDD, O. Fracking. Massachusetts: Scrivener, 2013. 376p.
IEA - INTERNATIONAL ENERGY AGENCY. Ensuring Green Growth in a Time of Economic Crisis: the Role of Energy
Technology. G8 (Siracusa, Italy), p. 7, 2009.
JACKSON, R. B. et al. Increased stray gas abundance in a subset of drinking water wells near Marcellus shale gas extraction. Proceedings of the National Academy os Sciences of the United States of America Early Edition, v. 110, n. 28, p. 1-6, 2013.
KIBBLE, A. et al. Review of the Potential Public Health Impacts of Exposures to Chemical and Radioactive Pollutants
as a Result of the Shale gas Extraction Process. Public Health England, 2014.
MMA, PARECER TÉCNICO GTPEG Nº03/2013. GRUPO DE TRABALHO – PORTARIA MMA Nº 218/2012. Análise ambiental
prévia das áreas propostas para a 12ª Rodada de Licitações da ANP. Disponível em <http://www.brasil-rounds.gov.br/arquivos/
Diretrizes_Ambientais_GTPEG_12a_Rodada/Parecer/Parecer_GTPEG_R12.pdf> Acesso em 12 novembro 2013.
MICHAEL, C.; SIMPSON, J. L.; WEGNER, W. Fractured Communities – Case studies of the Environmental Impacts of Industrial Gas Drilling, 2010.
MONIZ, E. J. et al. The future of natural gas an interdisciplinary MIT study interim report. MIT Energy Iniciative, Boston.
2010 Disponível em <https://mitei.mit.edu/system/files/NaturalGas_Report.pdf> Acesso em 26 setembro 2013.
NOUYRIGAT, V. Gaz de Schiste – Le dossier vérité. Sciencie et Vie, n. 1148, 2013.
RAHM, B.G. et al. Wastewater management and Marcellus Shale gas development: trends, drivers, and planning implications.
Journal of Environmental Management, v.120, p. 105–13, 2013.
RAHN, B. G.; RIHA, S. J. Toward strategic management of shale gas development: Regional, collective impacts on water resources. Environmental Science & Policy, v. 17, p. 12-23, 2012.
RIDLINGTON, E.; RUMPLER, J. Fracking by the Numbers Key Impacts of Dirty Drilling at the State and National Level. Environment Colorado Research & Policy Center, 2013.
ROWAN, E. L.; ENGLE, M. A.; KIRBY, C. S.; KRAEMER, T. F. Radium Content of Oil- and Gas-Field Produced Waters in the
Northern Appalachian Basin (USA): Summary and Discussion of Data. U.S. Geological Survey Scientific Investigations Report
2011–5135, 2011.
02: Sistemas de Gestão e Governança
133
SCHEIBE, L.F. Gás de Folhelho e Águas Subterrâneas Conflitos e Soluções. Apresentação no Seminário sobre Exploração
e Produção de Gás Não Convencional CNRH/MMA. 2014.
STERN, P.C., WEBLER, T.; SMALL, M.J., 2014. Special issue: understanding the risks of unconventional shale gas development.
Environmental Science & Technology, p. 8287–8, 2014.
UNITED STATES HOUSE OF REPRESENTATIVES COMMITTEE ON ENERGY AND COMMERCE. Chemicals used in hydraulic fracturing, 2011.
VALLE, A. Da Revolução do gás não convencional nos EUA tendo como substrato uma interferência governamental
persistente, no estímulo a atividade econômica e no fomento as inovações tecnológicas afetas ao setor. Dissertação
(Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas), Centro de Formação Acadêmica e Pesquisa, p.1–31. 2014.
ZOBACK, M., KITASEI, S.; COPITHORNE, B. 2010. Addressing the Environmental Risks from Shale Gas Development.
Washington: Worldwatch Institute, 2010.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
134
O PROGRAMA “MINHA CASA, MINHA VIDA” E SEUS EFEITOS SOBRE AS ÁREAS
PROTEGIDAS: ESTUDO DE CASO DA MATA ATLÂNTICA PARANAENSE
Sezerino, Fernanda de Souza1 & Tiepolo, Liliani Marilia1
1.PPG em Desenvolvimento Territorial Sustentável (Universidade Federal do Paraná).
Resumo
O litoral do Paraná abriga um dos maiores remanescentes do bioma Mata Atlântica. Apesar da existência de um sistema de Unidades de Conservação (UC) regional, isso não tem garantido a proteção da região. Recentemente, um novo fator tem agravado
esta situação: a criação do Programa “Minha Casa, Minha Vida”, do Governo Federal, como parte do Programa de Aceleração
do Crescimento (PAC). Desde a sua implantação, inúmeros loteamentos foram licenciados para a construção de novas moradias,
muitas vezes localizados no entorno imediato de áreas protegidas. Este estudo analisou a situação do bairro Porto Seguro no
município de Paranaguá, inserido na zona de amortecimento de duas UC e considerada Zona de Expansão Urbana pelo Plano
Diretor Municipal, onde estão sendo construídos diversos conjuntos habitacionais, colocado a população local e as áreas protegidas em situação de vulnerabilidade.
Palavras-chave: Mata Atlântica, Política Habitacional, Políticas Públicas, Unidade de Conservação.
Introdução
O século passado foi marcado, principalmente no contexto geográfico brasileiro, por um significativo aumento demográfico urbano, trazendo consequências diretas na estruturação e organização das cidades, desregulando ecossistemas e expondo
a população às situações de vulnerabilidade, como afirmam Maior & Cândido (2014). Somado a isso, a expansão urbana sobre
áreas naturais têm aumentado significativamente nas últimas décadas, ocasionando diversos impactos e conflitos socioambientais, visto que, ecologicamente e socialmente são áreas fragilizadas.
Apesar da criação de diversas legislações e instrumentos de ordenamento, gestão ambiental e conservação da biodiversidade, principalmente a partir da década de 1930, eles não têm garantido a preservação e conservação dos remanescentes
florestais, da biodiversidade e, consequentemente, dos inúmeros serviços ambientais prestados, como observado no Litoral do
Paraná.
A situação é agravada nas áreas protegidas localizadas em áreas urbanas, como identificado no município de Paranaguá,
que destaca-se no cenário litorâneo pela maior população da região, com cerca de 140 mil habitantes, sendo 96% urbana. A
área territorial do município é de 826 km² e a densidade é de aproximadamente 170 habitantes/km² (IBGE, 2010). O município
também se destaca no cenário econômico estadual, devido à presença do Porto de Paranaguá, de grande relevância na América
Latina pelo escoamento da produção de grãos e farelos. A ocupação urbana do município sempre esteve ligada ao porto e seus
acessos. Com a ampliação da área portuária, os bairros residenciais foram impulsionados para regiões onde estão localizadas
as áreas naturais protegidas.
Recentemente, um novo fator tem agravado as intenções de conservação da natureza na região: a criação do Programa
“Minha Casa, Minha Vida” - PMCMV (Lei Federal Nº 11.977/2009), Política Habitacional do Governo Federal, como parte do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Desde a implantação do Programa, inúmeros loteamentos foram licenciados
para a construção de novas moradias, com recursos do Governo Federal. Ocorre que muitos deles estão localizados no entorno
imediato de Unidades de Conservação, ignorando as legislações ambientais, notavelmente o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação (SNUC) (Lei Nº 9985/2000 e Decreto Nº 4340/2002), a Lei da Mata Atlântica (Lei Nº 11428/2006) e o Código Florestal (Lei Federal Nº 12651/2012).
Considerando este contexto, esse trabalho teve como objetivo levantar o histórico de criação do PMCMV, contextualizando com a criação de políticas e instrumentos ambientais, e, a partir disso, realizar uma breve análise histórica comparativa
para compreender os impactos socioambientais atuais da construção de moradias de interesse social.
02: Sistemas de Gestão e Governança
135
Metodologia
Para exemplificar a problemática do PMCMV na Mata Atlântica Paranaense, foi analisado o caso da construção dos
conjuntos habitacionais no bairro Porto Seguro em Paranaguá para a relocação de famílias residentes em áreas de risco da
região portuária do município. Porém, localizados no entorno imediato de duas Unidades de Conservação: a Floresta Estadual
do Palmito, de Uso Sustentável, criada em 1998 com 530 hectares inseridos na zona urbana e com seus limites a cerca de 400
metros do bairro Porto Seguro; e a Estação Ecológica de Guaraguaçu, de Proteção Integral, criada em 1992 com 1.150 hectares,
inserida na zona rural.
Para isso foi realizado um levantamento bibliográfico e documental sobre a temática, consulta em portais eletrônicos
oficiais, como do Ministério das Cidades, Ministério do Meio Ambiente, Caixa Econômica Federal, Prefeitura Municipal, dentre
outros, e consulta às políticas, legislações e instrumentos de gestão. Também foi realizado um levantamento e análise de imagens
de satélite disponibilizadas pelo Instituto de Terras, Cartografias e Geociências (ITCG), Secretaria Municipal de Meio Ambiente
de Paranaguá (SEMMA) e do software Google Earth, e visitas in loco para verificação das informações.
Uma breve análise do programa minha casa minha vida no contexto da
conservação da natureza
A entrada do Governo Lula (2003-2010) marca uma nova fase da Política Habitacional no Brasil. Para viabilizar as propostas neste setor, o governo cria, em 2003, o Ministério das Cidades, dividido em quatro Secretarias: Habitação, Saneamento
Ambiental, Transportes e Mobilidade e Programas Urbanos, e diversos mecanismos institucionais de participação social, como
o Conselho Nacional das Cidades, as Conferências da Cidade e o Conselho Curador do Fundo Nacional de Habitação e Interesse Social. Somado a isso, ao longo de 2004 é elaborada a Política Nacional de Habitação por meio de quatro instrumentos: o
Sistema Nacional de Habitação, que abrange os subsistemas Habitação de Interesse Social e Habitação de Mercado; o Plano
de Capacitação e Desenvolvimento Institucional; o Sistema de Informação, Avaliação e Monitoramento da Habitação; e o Plano
Nacional de Habitação.
No ano seguinte, em 2005, foi aprovada a Lei Federal Nº 11124/2005, primeira Lei de iniciativa popular pós Constituição
de 1988, após 13 anos de tramitação. Ela regulamentou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), do qual
fazem parte o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e o Conselho Gestor.
Em 2007, já no segundo mandato do governo Lula, é lançado o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), com
recursos financeiros para o planejamento e execução de grandes obras de infraestrutura no país, mantidos mesmo com a crise
econômica mundial em 2008. A reação do governo à crise foi rápida, adotando medidas de expansão de crédito pelos bancos
públicos para compensar a retração do setor privado, por isso ficou conhecida como uma política anticíclica (NAIME, 2010;
CARDOSO; ARAGÃO, 2013). Como uma das consequências, pôde ser observado um “boom imobiliário” nessa época, como
observam Cardoso & Aragão (2013).
Com os recursos do PAC é lançado o Programa “Minha Casa, Minha Vida” (PMCMV), em 2009, com objetivo de criar
condições de ampliação do mercado imobiliário para atendimento das famílias com renda de até 10 salários mínimos. O PMCMV foi aprovado pela Medida Provisória Nº 459/2009 e posteriormente convertida na Lei Federal Nº 11977/2009 e Decreto Nº
6962/2009, com a meta de construir um milhão de moradias.
Cabe ressaltar que o programa foi pensado como estratégia para mitigar os efeitos da crise econômica. Desta forma, ele
“transcende a questão habitacional e insere-se num projeto político mais amplo, que tem na indústria da construção civil elemento-chave para dinamização da economia e o consumo como principal mecanismo de inclusão social” (CARDOSO; JAENISCH,
2014). Juntamente com o PAC, esses programas constituíram-se como “motor para a promoção do crescimento econômico do
país”, conforme ressalta Naime (2010).
Além disso, apesar dos avanços no sistema de habitação, como a promoção da participação social e o volume de recursos, as análises do PMCMV revelam que o modelo anterior de produção de moradias não foi totalmente rompido, ou seja, o
modus operandi permaneceu, a iniciativa privada (empresas incorporadoras) continua sendo a promotora da política habitacional, decidindo onde o empreendimento será construído, a faixa de renda dos beneficiários e as características construtivas dos
imóveis, restando às administrações municipais (ou mesmo à sociedade civil) um papel coadjuvante neste processo (NAIME,
2010; CARDOSO; JAENISCH, 2014).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
136
Nesse desenho institucional, os empreendimentos são construídos e vendidos integralmente para a Caixa Econômica
Federal que o repassa aos beneficiários selecionados a partir de critérios definidos pelas administrações municipais. Assim, as
incorporadoras têm garantia de demanda, não precisam arcar com custos de comercialização e divulgação, além de geralmente
se beneficiar com a doação de terrenos, flexibilização das leis urbanísticas ou redução na tributação oferecida pelas administrações municipais, como explicam Cardoso & Jaenisch (2014).
Essas facilidades explicam a nacionalização de empresas de atuação regional para o segmento popular, como as construtoras TENDA e MRV, além da migração de grandes empreiteiras para o segmento habitacional, como foi o caso da OAS e da
Odebrecht. Outro problema está na incapacidade dos municípios destinarem terras em volume satisfatório para a habitação social, que deveriam estar estabelecidos nos Planos Diretores, fazendo com que o problema da terra urbanizada e bem localizada
seja um dos principais gargalos da política habitacional atual (NAIME, 2010).
Em 2011, já no governo Dilma Rousseff, é lançado o PMCMV 2, com algumas mudanças, dentre elas a definição de melhorias do padrão construtivo das unidades habitacionais, permissão de uso misto (residencial e comercial), estímulo a utilização
de soluções energéticas sustentáveis, dentre outras (CARDOSO; ARAGÃO, 2013).
Apesar do volume de recursos financeiros para o setor habitacional ter sido inédito e os resultados numéricos significativos, que em junho de 2013 atingiu a marca de mais de 2, 7 milhões de unidades construídas, esse modelo, baseado na lógica
de mercado, atingiu predominantemente a classe média, além de ter atendido aos interesses do empresariado da construção
civil (CARDOSO; ARAGÃO, 2013; CARDOSO; JAENISCH, 2014). Além do público privilegiado pela política, Cardoso & Aragão
(2013), apresentam outras críticas ao PMCMV que superam apenas resultados quantitativos: (i) a falta de articulação do programa com a política urbana; (ii) a ausência de instrumentos para enfrentar a questão fundiária; (iii) os problemas de localização
dos novos empreendimentos; (iv) excessivo privilégio concedido aos setor privado; (v) a grande escala dos empreendimentos
(vi) a baixa qualidade arquitetônica e construtiva dos empreendimentos; (vii) a descontinuidade do programa em relação ao
SNHIS e a perda do controle social sobre a sua implementação; e (viii) as desigualdades na distribuição dos recursos como fruto
do modelo institucional adotado (p. 44).
Parte desses problemas, podem ser explicados pelo fato do Programa ter desconsiderado diversas propostas que estavam presentes no Plano Nacional de Habitação, proposta elaborada durante a campanha eleitoral do Governo Lula, dentre
elas a falta de articulação com a política urbana, como observa Bonduki (2009). Além disso, Cardoso & Aragão (2013) ressaltam
as contradições e a “confusão federativa” da política habitacional atual, visto que a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade
delegaram aos municípios a competência de definir e implementar os instrumentos da política urbana, ou seja, a dimensão da
“terra” é delegada a esfera municipal, enquanto o financiamento está na esfera federal (PMCMV).
Nesse sentido, pode-se observar que o Estado passa a assumir um papel mais de “facilitador”, pois a produção de moradias não é feita diretamente por ele, estando restrito a gerar as condições materiais, institucionais e legais para a efetivação
dos projetos (NAIME, 2010). Cardoso & Aragão (2013) complementam que, a partir do PMCMV 2, o poder público municipal,
despreparado e pressionado por resultados, deixou de ter controle sobre a implantação dos empreendimentos habitacionais de
interesse social, tornando-se meros coadjuvantes desse processo, “atuando mais no sentido do relaxamento dos controles do
que de uma regulação efetiva” (p. 59).
Este contexto da criação e implantação do programa auxiliam na compreensão dos efeitos da construção desses novos
conjuntos habitacionais na conservação dos remanescentes florestais, serviços ambientais e na biodiversidade local. Isso se
deve ao fato da lógica de maximização dos lucros pelas construtoras, que buscam terrenos mais baratos para a construção dos
empreendimentos. Desta forma, pode-se observar que os empreendimentos para as famílias com rendas maiores concentramse em áreas mais centrais, enquanto para as famílias de baixa renda, em áreas muito distantes do tecido urbano, como relatam
Cardoso & Jaenisch (2014).
Ocorre que, muitas vezes, a localização dos terrenos mais baratos coincidem com o entorno imediato de áreas protegidas, estabelecidas por apresentarem risco de deslizamentos e enchentes, por exemplo, e por tanto, com baixo valor imobiliário,
atraindo os projetos das grandes construtoras. Contudo, aumentam o “custo social” dos empreendimentos, conforme apontam
Cardoso & Aragão (2013). Ressalta-se ainda que essas áreas protegidas possuem regulamentação específica quanto ao uso e
ocupação do solo em suas zonas de amortecimento. O histórico da criação de políticas ambientais é anterior às políticas habitacionais, como apontam os estudos de Urban (1998), Little (2003), Pádua (2004) e Medeiros (2006), como é o caso, por exemplo,
02: Sistemas de Gestão e Governança
137
da Política Nacional de Meio Ambiente (Lei Nº 6938/1981), do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Lei
Federal Nº 9985/2000 e Decreto Nº. 4340/2002) e da Lei da Mata Atlântica (Lei Federal Nº 11428/2006). Apesar de serem criados
anteriormente ao PMCMV, esses aspectos não estão sendo considerados na escolha do local dos empreendimentos e as legislações ambientais têm sido ignoradas e/ou flexibilizadas pela política habitacional atual.
Dentre as flexibilizações, está o processo de licenciamento ambiental desses empreendimentos. A Resolução CONAMA
Nº. 412/2009 estabelece que o licenciamento ambiental de novos empreendimentos destinados à construção de habitações
de Interesse Social seja realizado de modo simplificado, cabendo ao órgão ambiental competente a instituição de critérios de
enquadramento neste caso. Isso se aplica aos empreendimentos de parcelamento de solo de até 100 hectares, no entanto, os
empreendedores resolveram facilmente este problema, subdividindo os megaempreendimentos em vários projetos, como observado nos estudos de Maricato (2009) e Cardoso & Aragão (2013).
Outro exemplo é referente à definição das Zonas de Amortecimento das UC. Antes mesmo da criação do SNUC (2000),
a Resolução CONAMA Nº 13/1990 já estabelecia que nas áreas circundantes das UC, em um raio de dez quilômetros, qualquer
atividade que possa afetar a biota, deveria ser obrigatoriamente licenciada pelo órgão ambiental. Em 2010 essa resolução foi
revogada pela CONAMA Nº 438/2010. Ela diminuiu os limites de 10 km para apenas 3 km de raio, quando a zona não estiver
estabelecida no ato de criação ou Plano de Manejo da UC. Porém, são exceções as RPPNs, Áreas de Proteção Ambiental (APAs)
e Áreas Urbanas Consolidadas. No caso de empreendimentos não sujeitos a EIA/RIMA a zona de amortecimento considerada
será de 2 km, não se aplicando às Áreas Urbanas Consolidadas, APAs e RPPNs.
No que se refere às Áreas de Preservação Permanente, o novo Código Florestal (Lei Federal Nº 12651/2012), por exemplo,
alterado pela forte pressão do agronegócio, permite a supressão da vegetação nativa em APP em “hipóteses de utilidade pública,
de interesse social ou de baixo impacto ambiental” (Art. 8). Essa exceção já havia sido permitida pela Resolução CONAMA Nº
369/2006 que permite a regularização fundiária em áreas de APP em diversos casos, como relata Quintslr, (2012): (i) ocupações
de baixa renda predominantemente residenciais; (ii) ocupações localizadas em área urbana declarada como Zona Especial
de Interesse Social (ZEIS) no Plano Diretor ou outra legislação municipal; (iii) ocupação inserida em área urbana que possua
no mínimo três dos seguintes itens de infraestrutura urbana implantada: malha viária, captação de águas pluviais, esgotamento
sanitário, coleta de resíduos sólidos, rede de abastecimento de água, rede de distribuição de energia.
No caso das ZEIS, a sua instituição é um dos instrumentos da Política Urbana, prevista no Estatuto da Cidade e definida
na lei do PMCMV como “parcela de área urbana instituída pelo Plano Diretor ou definida por outra lei municipal, destinada
predominantemente à moradia de população de baixa renda e sujeita a regras específicas de parcelamento, uso e ocupação do
solo” (Art. 47, inc. V). Cabe destacar que a declaração dessas zonas, para então serem consideradas como exceção à legislação
federal, fica a cargo da esfera municipal, como também é o caso do decreto de “Utilidade Pública”, assim como a caracterização
em “Área Urbana Consolidada”, o que pode causar diversos conflitos, visto que as decisões dos governos locais, muitas vezes,
são permeadas por outros interesses que não os sociais.
Considerando esse contexto, Zhouri & Laschetski (2010, p.17) afirmam que a presença do Estado mostra-se carregada
de dubiedade, pois “de um lado, surge como implementador das políticas conservacionistas autocráticas que acirram conflitos
ambientais; de outro, surge como mediador que, por vezes, se posta ao lado das populações atingidas”.
Os efeitos do pmcmv na conservação do litoral do paraná
O município de Paranaguá é um dos sete Municípios do Litoral do Estado do Paraná, sul do Brasil, região costeira inserida
integralmente no bioma Mata Atlântica, hotspot de biodiversidade. Toda a região do Litoral do Paraná possui prioridade “extremamente alta” para a conservação, uso sustentável e repartição dos benefícios da biodiversidade (MMA, 2007). Apesar de grande
parte da área do litoral paranaense estar contemplado nos limites de algum tipo de categoria de Unidade de Conservação,
principalmente aquelas de uso sustentável, que não são consideradas efetivas para a proteção e conservação, todo o sistema de
unidades de conservação regional é caracterizado pela precária gestão, notável pela significativa ausência de planos de manejo,
conselhos gestores, servidores analistas ambientais e de processos de regularização fundiária, o que traz como consequência
inúmeros processos desencadeadores de conflitos ambientais em toda a região.
O histórico de ocupação e crescimento populacional do município tem forte ligação com o porto e seus acessos, via
ferrovia e rodovias (SEZERINO; TIEPOLO, 2013). Com a expansão portuária, diversos bairros foram transformados em zonas in-
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
138
dustriais, estabelecidas pelo Plano Diretor do Município e pelo Plano de Desenvolvimento e Zoneamento do Porto Organizado de
Paranaguá (PDZPO) e a Mata Atlântica, pouco a pouco e progressivamente desmatada para atender as demandas do comércio
exterior, mesmo sendo um bioma com garantias especiais de conservação segundo a Lei da Mata Atlântica (Lei Nº 11428/2006).
Um dos exemplos é o bairro Vila Becker, localizado no entorno imediato dos quatro terminais de granéis líquidos do Porto
de Paranaguá, sendo um público, o Terminal Público de Álcool do Paraná, e três de empresas privadas: Petrobrás Transporte S/A
(Transpetro), Cattalini Terminais Marítimos S/A e União Vopak Armazéns Gerais (Figura 1). Juntos, possuem uma capacidade
para armazenar 540.781m³ de granéis líquidos (APPA, 2015). A região também apresenta outras empresas, como a Fospar S/A do
ramo de fertilizantes, deixando a população local à mercê de extremo risco e vulnerabilidade.
O bairro Vila Becker não é oficialmente reconhecido pela Prefeitura Municipal, que considera toda essa região como um
único bairro: a Vila Portuária, incluindo os moradores do Canal da Anhaia. Esta região apresenta cerca de 2.220 habitantes e 650
domicílios. A maioria dos moradores são mulheres, somando 52% do total de habitantes. A faixa etária predominante é de adultos entre 30 a 59 anos, representando 34% dos moradores, seguido das crianças e jovens de 0 a 14 anos, cerca de 30% do total
(IBGE, 2010). De acordo com o Plano Diretor e o Zoneamento Urbano Municipal, a Vila Becker está inserida na Zona de Interesse
Portuário (ZIP), que segundo a Lei Complementar Nº 62/2007, “caracteriza-se pelo uso prioritário e preponderante de atividades
portuárias e correlatas, com potencial de impacto ambiental e urbano significativos” e tem como objetivos “dar condições de
desenvolvimento e incrementar as atividades portuárias; concentrar atividades incômodas ao uso residencial; e concentrar atividades de risco ambiental de forma controlada.
A população da Vila Becker sempre conviveu com os riscos de estar cercada pelas empresas portuárias que operam na
área, mas também por morarem em uma área de influência fluvio-marinha, os manguezais do rio Itiberê. Um dos acidentes que
atingiram a população ocorreu no dia 14 de julho de 2009, com o vazamento de álcool do Terminal Público de Álcool do Porto de
Paranaguá, obrigando várias famílias deixar suas residências. Como medida de resolução do conflito territorial, após esse e outros graves acidentes que colocaram em riscos a saúde e a vida da população local, o poder público municipal em conjunto com
a Administração dos Portos de Paranaguá e Antonina (APPA) e em parceria com a Companhia de Habitação do Paraná (COHAPAR) iniciou o processo de relocação das famílias para um novo bairro residencial, chamado Porto Seguro.
A região do bairro Porto Seguro, para onde as famílias estão sendo relocadas (Figura 1), está inserida na Zona de Consolidação e Qualificação Urbana 2 (ZCQU-2), que se caracteriza por possuir “áreas consolidadas regulares e irregulares, áreas passíveis de ocupação e proximidade com área de proteção e conservação ambiental”. Essa zona tem como objetivos: I. promover
a ocupação ordenada do território; II. qualificar a paisagem; III. implantar novos usos e atividades, principalmente o habitacional;
IV. ampliar a disponibilidade de equipamentos e serviços públicos; V. ampliar a oferta de infra-estrutura, de forma a possibilitar a
ocupação do território; VI. garantir a integridade do entorno, ambientalmente frágil.
Figura 1. Localização do bairro Vila Becker, totalmente inserido na Zona de Interesse Especial Portuário (ZIEP), à esquerda; e do bairro Porto
Seguro, inserido na Zona de Consolidação e Qualificação Urbana (ZCQU 2), limítrofe à Zona de Consolidação e Expansão Urbana (ZCEU 1) e
à Zona de Restrição à Ocupação (ZRO) onde está inserida a Floresta Estadual do Palmito (FEP), à direita.
Fonte: Dados Prefeitura Municipal de Paranaguá (2009); organização dos autores.
02: Sistemas de Gestão e Governança
139
Como o próprio Plano Diretor reconhece, essa região é fragilizada, sob o aspecto ecológico. São áreas nativas de Floresta
Ombrófila Densa de Terras Baixas (florestas de planície) e de Formações Pioneiras de Influência Marinha (restingas), como se
pode perceber na Figura 1, à direita, por isso são áreas naturais sujeitas a inundações. O bairro Porto Seguro está localizado no
entorno imediato de duas Unidades de Conservação que protegem esses ecossistemas: a Floresta Estadual do Palmito, de Uso
Sustentável, criada em 1998 com 530 hectares inseridos na zona urbana e com seus limites a 400 metros do bairro Porto Seguro;
e a Estação Ecológica de Guaraguaçu, de Proteção Integral, criada em 1992 com 1.150 hectares. Estas áreas protegidas estão
distantes cerca de quatro quilômetros entre si.
A ZCQU-2 é limítrofe à Zona de Restrição à Ocupação (ZRO) pela existência de áreas com características naturais que
exigem tratamento especial devido a seu potencial paisagístico e ambiental (PDDI, 2007), onde está inserida a Floresta Estadual
do Palmito. A ZRO tem como objetivos: I. impedir a ocupação de forma a assegurar a qualidade de vida da população; II. preservar os manguezais, as margens e as nascentes dos canais de drenagem; III. possibilitar o uso e coleta dos recursos naturais de
forma planejada em compatibilidade com a conservação da natureza, seguindo as diretrizes e os objetivos do desenvolvimento
sustentável; IV. possibilitar a realização de atividades culturais, de lazer, de turismo e de contemplação de forma planejada; e V.
valorizar o potencial paisagístico das áreas de beleza cênica.
Esses ambientes naturais são extremamente importantes na promoção de inúmeros serviços ambientais, como a regulação do regime hídrico, prevenção de assoreamentos e enchentes, regulação do microclima, entre outros, e por isso, são protegidos por diversas legislações ambientais federais, dentre elas, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) (Lei Nº
9985/2000 e Decreto Nº 4340/2002), a Lei da Mata Atlântica (Lei Nº 11428/2006) e o Código Florestal (Lei Federal Nº 12651/2012).
Contudo, todo esse aparato jurídico não tem garantido a conservação dos remanescentes florestais, visto que, conforme relatado anteriormente, as legislações ambientais e de ordenamento territorial, como o Plano Diretor, por exemplo, são alteradas
e/ou flexibilizadas, permitindo o licenciamento do desmatamento, loteamento e implantação de diversos empreendimentos em
grandes áreas nativas.
A análise de uma série histórica de imagens de satélite (Figura 2) revela que a ocupação urbana na região do bairro Porto
Seguro é intensificada a partir de 2006, quando é elaborado o Plano Diretor do Município, estabelecendo essas áreas como de
expansão e consolidação urbana. Em 2008 é inaugurado o Instituto Federal do Paraná (IFPR) no bairro, área doada pela Prefeitura, também se constituindo como um marco da expansão urbana local. Porém, é a partir de 2009, com a criação do PMCMV que
o bairro sofre as maiores transformações, visto que diversos conjuntos habitacionais estão sendo construídos com recursos do
Governo Federal, especialmente por meio do PMCMV e do PAC. Pode-se observar que as dinâmicas de ocupação são bastante
aceleradas a partir de então, permitindo a identificação dos desmatamentos para a construção de novos conjuntos habitacionais.
Figura 2. Evolução da ocupação urbana na região do bairro Porto Seguro, no município de Paranaguá.
onte: ITCG (1996); SEMMA (2009); Google Earth (2006; 2013; 2014).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
140
No caso do Estado do Paraná, o Instituto Ambiental do Paraná (IAP) é o órgão ambiental competente pelos licenciamentos
dos loteamentos e dos empreendimentos habitacionais, que podem ser feito de forma simplificada, de acordo com a Resolução
CONAMA Nº 412/2009. Para a emissão da Licença Ambiental Simplificada (LAS), o IAP exige, dentre outros documentos: o
preenchimento de um cadastro do empreendimento, detalhando ou anexando um croqui de localização, contendo nascentes e/
ou corpos hídricos em um raio de 100 m, vias de acesso principais e pontos de referências para chegar ao local; Certidão Municipal informando a compatibilidade do empreendimento com o estabelecido pelo Plano Diretor e Zoneamento Municipal, quanto
ao uso e ocupação do solo; e um Projeto Simplificado do Sistema de Controle de Poluição Ambiental.
Apesar da exigência de todos esses documentos, o processo de licenciamento ambiental simplificado é pouco transparente e participativo. No caso dos licenciamentos completos, ou seja, necessidade de emissão de Licença Prévia, Licença de
Instalação e Licença de Operação e de estudos ambientais mais complexos, como é o caso do EIA/RIMA, a legislação ambiental
obriga que os estudos sejam disponibilizados, apresentados e discutidos com a população em audiências públicas. Esse é o
principal mecanismo de participação social nos processos de licenciamento. Porém, no caso dos loteamentos e construção das
moradias no bairro Porto Seguro, os projetos e as licenças dos empreendimentos, bem como os Planos de Controle Ambiental,
não foram disponibilizados para consulta.
Neste sentido, Cardoso & Aragão (2013) relatam que a partir do PAC e do PMCMV a elaboração e implementação da
política urbana e a distribuição dos recursos deixa passar por mecanismos de participação social, refletindo as contradições
de um programa com objetivos ao mesmo tempo econômicos e sociais e que busca resolver o déficit habitacional unicamente
por meio da atuação da iniciativa privada. Esses mecanismos, garantidos na Constituição, se executados nos espaços de participação social, poderiam também auxiliar na discussão dos impactos ambientais desse modelo de construção dos conjuntos
habitacionais e, em conjunto com a sociedade, discutir novas propostas e alternativas.
Além dessa, outras consequências das flexibilizações nas legislações podem ser apontadas, como os impactos ambientais causados pelo desmatamento da vegetação nativa, compactação do solo, pressão antrópica sobre as UC e as áreas de
mananciais, dentre outros. Como agravante, pode-se observar que a construção desses empreendimentos imobiliários nessa localidade, regularizados sob o aspecto jurídico, tem colocado a população em situação de vulnerabilidade socioambiental, como
explicam Mello-Théry, Landy & Zérah (2010). Os autores ressaltam que o desconhecimento de estratégias da política habitacional
pela política ambiental (e vice-versa) resulta em escolhas de locais para ocupação das populações de baixa renda que têm representado um alto ônus ao ambiente local, como é o caso das zonas de amortecimento das Unidades de Conservação que “simbolizam a pressão antrópica sobre as áreas protegidas, a exclusão social e as difíceis relações entre políticas públicas” (p. 203).
Na mesma linha, Cartier et al., (2009) trazem indicativos de que a escolha de moradia frente aos riscos ambientais geralmente está relacionada com a capacidade financeira dos grupos sociais. Assim, a camada populacional mais pobre não tem
opção de saída destes espaços, fortalecendo os laços entre a vulnerabilidade social e a vulnerabilidade ambiental e propiciando
diversos conflitos socioambientais.
Somado a isso, temos os processos de ocupação irregular, que são facilitados com os novos loteamentos e a abertura de
novas vias de acesso próximas ao bairro. Podemos observar a intensificação de vias e a ocupação no entorno do bairro regularizado, cada vez mais próximo dos limites da Floresta Estadual do Palmito, na análise da Figura 2.
Esse fenômeno explica a “periferização” do entorno de UC em áreas urbanas, que passam a abrigar grande parcela da
população pobre dos municípios. Holz & Monteiro (2008, p. 2) explicam que sempre houve um “descompasso entre o acesso
à moradia e o crescimento populacional” no Brasil. Para os autores, o mercado imobiliário capitalista, os baixos salários, e a
desigualdade social impossibilitaram o acesso à moradia para grande parte da população, o que levou a ocupação de áreas ilegais no país. Essas regiões geralmente carecem de infraestrutura urbana e serviços públicos, que, somados aos riscos naturais,
agravam a situação de vulnerabilidade socioambiental da população local e da conservação das áreas protegidas.
Considerações Finais
Apesar de diversas legislações ambientais e instrumentos de gestão terem sido criados anteriormente às políticas habitacionais, em especial ao Programa “Minha Casa, Minha Vida” em 2009, podemos observar com este estudo de caso no município
de Paranaguá que esses aparatos jurídicos têm sido ignorados e ou flexibilizados a fim de regularizar a implantação de empreendimentos imobiliários em áreas protegidas e seus entornos imediatos. Esse fato prejudica o cumprimento dos objetivos de
02: Sistemas de Gestão e Governança
141
conservação da biodiversidade, dos recursos naturais e dos serviços ecossistêmicos, necessários à vida, dentre eles, em meio a
crise atual, o volume e a qualidade da água, além do objetivo maior, do desenvolvimento sustentável.
O contexto da crise econômica mundial e os objetivos do lançamento do PMCMV em fomentar a construção civil no país
como forma de enfrentamento da crise permite a compreensão do desenho institucional do programa, que deixa a construção
de habitações de interesse social a cargo da iniciativa privada. Porém, parte dos problemas socioambientais identificados na
implantação desses empreendimentos imobiliários poderia ser minimizada por meio do estabelecimento de condicionantes para
recebimento dos recursos, como acontecem em políticas de outros setores, citados por Cardoso & Aragão (2013). Dentre as
condicionantes, poderia estar a exigência de utilização dos instrumentos existentes na política urbana, estabelecidos no Estatuto
das Cidades, e na política ambiental.
Analisando o caso de Paranaguá, podemos perceber os entraves existentes na garantia dos direitos fundamentais da
moradia e do meio ambiente equilibrado, estabelecidos na Constituição Federal de 1988. Contudo, fica evidente que tanto a problemática habitacional como a ambiental, para terem resultados efetivos precisam ser planejadas e implementadas em conjunto,
ou seja, são políticas intersetoriais. Conjuntamente, a participação social deve ser assegurada, na tentativa de identificar novas
possibilidades, como por exemplo, a ocupação de “Vazios Urbanos” como alternativa locacional das habitações de interesse
social.
Cabe ainda destacar, que a descentralização promovida pela Constituição é, no mínimo, controversa, pois analisando
os estudos de caso, podemos observar que o poder local tem agido sobre outros interesses, sejam políticos ou econômicos,
permitindo alterações nos planos diretores e zoneamentos a favor da iniciativa privada, em especial do setor imobiliário. Isso provoca efeitos irreparáveis sobre a conservação da biodiversidade e à população local, visto que os inúmeros serviços ambientais
prestados são comprometidos pela expansão urbana sobre as áreas protegidas.
Caso não sejam tomadas novas medidas de reformulação da política ou ao menos, no estabelecimento de novas condicionantes ao acesso dos recursos, e considerando o quadro atual de flexibilização das legislações, podemos afirmar que os
impactos e conflitos ambientais serão intensificados. Desta forma, uma parcela cada vez maior da população estará exposta às
situações de vulnerabilidade socioambiental.
Referências
APPA. Administração Dos Portos De Paranaguá E Antonina. Granéis Líquidos. Disponível em: <http://www.portosdoparana.pr.gov.br/ >. Acesso em 09 julho 2015.
BONDUKI, N. Do Projeto Moradia ao programa Minha Casa, Minha Vida. Teoria e Debate, ed. 82, 2009.
CARDOSO, A. L.; ARAGÃO, T. A. Do fim do BNH ao Programa Minha Casa Minha Vida: 25 anos da política habitacional no Brasil.
In: CARDOSO, A. L. (Org.). O programa Minha Casa Minha Vida e seus efeitos territoriais. Rio de Janeiro: Letra Capital,
2013. pp.17-65.
CARDOSO, A. L.; JAENISCH, S. T. Nova Política, velhos desafios: problematizações sobre a implementação do programa Minha
Casa Minha Vida na região metropolitana do Rio de Janeiro. e-metropolis, n. 18, p. 6-19, 2014.
CARTIER, R.; BARCELLOS, C.; HÜBNER, C.; PORTO, M. F. Vulnerabilidade social e risco ambiental: uma abordagem metodológica para a avaliação de injustiça ambiental. Cad. Saúde Pública, v.25, n.12, p. 2695-2704, 2009.
HOLZ, S.; MONTEIRO, T. V. D. Coloquio Internacional de Geocrítica , 10., 2008, Barcelona. A. Política de Habitação Social e o
Direito a Moradia no Brasil. Anais... Universidad de Barcelona, Barcelona, p. 1-12, 2008.
IBGE. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo 2010. Disponível em: <http://cidades.ibge.gov.br/
painel/painel.php?codmun=411820> Acesso em 26 janeiro 2015.
LITTLE, P. Os desafios das Políticas Ambientais no Brasil. In: LITTLE, P. (Org.). Políticas Ambientais no Brasil: análises, instrumentos e experiências. São Paulo: Peirópolis; Brasília, DF: IIEB, 2003. p. 13–21.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
142
MAIOR, M. M. S; CÂNDIDO, G. A. Avaliação das metodologias brasileiras de vulnerabilidade socioambiental como decorrência
da problemática urbana no Brasil. Cadernos Metrópole, v.16, n.31, p. 241-264, 2014.
MARICATO, E. Por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação. Cadernos Metrópole, v.21, p. 33-52, 2009.
MEDEIROS, R. Evolução das tipologias e categorias de Áreas Protegidas no Brasil. Ambiente & Sociedade, v.9, n.1, p. 41-62,
2006.
MELLO-THÉRY, N. A.; LANDY, F.; ZÉRAH, M.-H. Políticas ambientais comparadas entre países do Sul: pressão antrópica em
Áreas de Proteção Ambiental Urbanas. Mercator, Fortaleza, v. 9, n. 20, p. 197-215, 2010.
MMA. MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE.Portaria Nº. 9 de 23 de Janeiro de 2007.
NAIME, J. A Política de Habitação Social no Governo Lula: Dinâmicas e Perspectivas. In: Seminário Nacional de Governança
Urbana e Desenvolvimento Metropolitano. Natal, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 01 a 03 de setembro de
2010. p.1-22.
PÁDUA, J. A. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2004.
PDDI. Plano diretor de Desenvolvimento Integrado de Paranaguá. 2007.
QUINTSLR, S. Direito à moradia e a questão ambiental. In: FERREIRA, R. F. C. F.; BIASOTTO, R. C. (Org). Políticas Públicas e
o Direito à Cidade: Política Habitacional e o Direito à Moradia Digna. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2012. pp.29-36.
SEZERINO, F; TIEPOLO, L. Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social, 6., 2013. Belo Horizonte. A expansão
urbana sobre áreas protegidas: o caso da Floresta Estadual do Palmito no Litoral do Paraná. Anais... Belo Horizonte, 2013.
URBAN, T. Saudades do Matão: relembrando a história da conservação da natureza no Brasil. Curitiba: Editora UFPR; FBPN;
Fundação MacArthur, 1998.
ZHOURI, A.; LASCHETSKI, K. Desenvolvimento e conflitos ambientais: um novo campo de investigação. In: ZHOURI, A.; LASCHETSKI, K. (Org.). Desenvolvimento e Conflitos Ambientais. Belo Horizonte: UFMG, 2010. pp.11-31.
02: Sistemas de Gestão e Governança
143
A PROBLEMÁTICA DOS CASTANHAIS ACESSADOS PELA
POPULAÇÃO TRADICIONAL DA RESEX ARAPIXI:
AMEAÇA DO DESMATAMENTO DO PAE ANTIMARY
Oliveira, Jardeson Monteiro de1; Silveira, Leonardo Konrath da2; Lopes, Jordan Fonseca3 & Oliveira,
Késsia Monteiro de4
1. Universidade do Estado do Amazonas [email protected] 2. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; 3. Centro
Tecnológico do Amazonas; 4. Universidade do Estado do Amazonas.
Resumo
A Reserva Extrativista Arapixi apresenta uma grande ameaça em um de seus principais recursos acessados por sua população
tradicional: as colocações de castanha do Brasil. Devido à delimitação da Resex Arapixi não abranger a totalidade das colocações
de castanha do Brasil, as colocações que ficaram de fora de seus limites encontram-se sob forte ameaça do desflorestamento
proveniente do PAE Antimary. Foram mapeadas todas as colocações de castanha do Brasil nos igarapés acessadas pelos Arapixianos. Através dos dados obtidos foi possível estimar a distância que se encontra o desflorestamento das últimas colocações
de castanha. Estas informações são fundamentais para respaldar o processo de ampliação da Resex Arapixi a fim de que as
colocações de castanha do Brasil sejam englobadas no seu interior, garantindo assim a efetiva proteção destes recursos.
Palavras-chave: RESEX Arapixi, Colocações de Castanha, Arapixianos, Desmatamento, Unidade de Conservação.
Introdução
De acordo com as normas brasileiras, o ambiente, assim como bens ambientais que o integram (conhecidos também
como recursos ambientais tais como água, floresta, flora, fauna, biodiversidade, etc.), são bens de uso comum do povo e, por isso
mesmo, têm sua apropriação e o seu uso privados controlados (BENATTI, 2005).
Em termos de conservação e uso dos recursos naturais da Amazônia, as questões mais urgentes relacionam-se à perda
em grande escala pelo avanço do desmatamento ligado às políticas expansionistas de desenvolvimento desenfreado na região,
especulação de terra, crescimento desordenado das cidades, aumento da pecuária bovina, exploração madeireira, construção
de estradas e agricultura mecanizada (FEARNSIDE, 2003; ALENCAR et al., 2004; LAURANCE et al., 2004). A situação em relação
ao desmatamento é tão crítica que, a mais de dez anos que o Governo Federal criou um Grupo Interministerial a fim de combater
o desmatamento e apontar soluções para minimizar seus efeitos na Amazônia legal (MMA, 2004). Porém não ocorreu como
planejado, pois o desmatamento continuou e continua aumentando ano a ano. A dinâmica e os problemas inerentes à Amazônia
resultam mais da ausência do Estado do que da própria intervenção estatal (CLEARY, 1993).
Nas últimas décadas a Floresta Amazônica vem sendo destruída de forma rápida e constante. A especulação fundiária e
a corrida pelos recursos naturais têm acirrado conflitos fundiários e aumentado os casos de violência e assassinatos no campo,
além de acelerar o processo de desmatamento (BARTHOLO et al., 2005). O avanço crescente da agropecuária e, ainda, as
inúmeras invasões de terras e/ou ocupações desordenadas, são apontados como alguns dos principais fatores que agravam
essa situação, devastando ecossistemas desse importante bioma e às formas tradicionais de vida ali existentes (ICMBIO, 2010).
Apesar de vários órgãos reguladores e fiscalizadores, governamentais e não governamentais promoverem grandes esforços para manter a floresta nativa em pé, a floresta Amazônica é derrubada por diversas razões, mas a principal delas é a
expansão das grandes e médias propriedades, responsáveis por 70% do desmatamento (FEARNSIDE, 2003). As populações extrativistas são antagonistas históricos e uma força de resistência contra a absurda cultura expansionista da agricultura e pecuária
extensiva na Amazônia (ALLEGRETTI, 2002). Em termos de conservação e uso dos recursos naturais da Amazônia, as questões
mais urgentes relacionam-se à perda em grande escala pelo avanço do desmatamento ligado às políticas expansionistas de desenvolvimento descontrolado na região, especulação de terra, crescimento desordenado das cidades, aumento da pecuária bovina, exploração madeireira, construção de estradas e agricultura mecanizada (ALENCAR et al., 2004; LAURANCE et al., 2004).
A Instrução Normativa n0 3, de 8 de setembro de 1992 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),
02: Sistemas de Gestão e Governança
145
reconhece que áreas de floresta nativa são consideradas improdutivas e, portanto, passíveis de desapropriação para fins de
reforma agrária (BRASIL, 1992). Com isso os fazendeiros, visando dar a terra uma suposta “função social”, executam as derrubadas, retiram a madeira com interesse econômico e acaba substituindo a floresta nativa por pastagens, inicialmente para
o uso da pecuária. Após a utilização da pecuária, muitos latifundiários substituem o gado por lavouras e monocultura, que
possuem elevada dependência de insumos externos, como agrotóxicos, os quais contaminam o solo, os aquíferos superficiais
e subterrâneos. Além de afetar diretamente a biodiversidade, ocasionando uma seleção artificial de diversos organismos, impactam diretamente os microrganismos detritívoros encontrados nos solos, e por sua vez auxiliam na decomposição de matéria
orgânica, essenciais para ciclagem de nutrientes e enriquecimento do próprio solo. Como o solo acaba perdendo sua fertilidade,
são necessárias cada vez maiores cargas de nutrientes externos ou agrotóxicos, devido ao fortalecimento de algumas espécies
selecionadas artificialmente, tornando o processo cada vez mais oneroso o que acaba por resultar em abertura de novas áreas.
A Reserva Extrativista Arapixi é uma Unidade de Conservação (UC) de Uso Sustentável, localizada no município de Boca
do Acre, sul do Amazonas. Seus moradores/beneficiários vivem basicamente do extrativismo da castanha do Brasil, do açaí, da
andiroba, do cupuaçu, do cacau “nativo” e da borracha. Em relação a esse último benefício, os baixos preços de mercado, tem
ocasionado uma grande diminuição do número de famílias dependentes deste recurso.
Inicialmente, antes mesmo da criação da Resex Arapixi, a maior parte das famílias fixaram moradia no local onde hoje ainda se encontram, devido aos seringais que eram utilizados principalmente na metade inicial do século passado, para a extração
da seringa. Especificamente em relação ao extrativismo da castanha do Brasil, ocorre em um curto espaço de tempo, aproximadamente no período de apenas três meses do ano. Ocorrendo nos meses de novembro (últimos dias) a março (primeiros dias),
justamente no período chamado de inverno Amazônico, onde rios e igarapés apresentam maior vazão, o que acaba por facilitar
o deslocamento e transporte da castanha do Brasil.
Apesar da sua grande importância e diversidade, a RESEX Arapixi tem sofrido uma forte pressão atualmente no seu
principal recurso, justamente o recurso acessado pela população tradicional que ali vive e dos quais tanto depende financeiramente ao longo de todo o ano. A ameaça em questão refere-se ao avanço do desmatamento localizado nos limites ao sul da
RESEX Arapixi, avançando em direção as diversas colocações de castanha acessadas pelos moradores/beneficiários desta UC.
Este avanço do desflorestamento, tem tornado cada vez mais difícil encontrar animais silvestres em seus respectivos habitats
e, algumas espécies vegetais também vêm sofrendo severos impactos. Em alguns casos correndo o risco de deixar de existir
naquele local. A própria castanha do Brasil (Bertholetia excelsa H.B.K.), provavelmente a espécie de maior interesse comercial
para a população tradicional local, acaba sendo também a espécie mais ameaçada entre todas independentes de fauna ou flora.
O presente artigo tem como objetivo geral apresentar a importância da conservação dos castanhais acessados pela
população tradicional da RESEX Arapixi e a importância fundamental da ampliação desta UC para a proteção dos castanhais. Os
objetivos específicos deste trabalho são o mapeamento dos castanhais acessados pela população tradicional da RESEX Arapixi,
nos igarapés: Fraga, Cedro, Manithiãn, Extrema, São Benedito, São Raimundo e Sossego; embasar a ampliação da RESEX Arapixi através do mapeamento dos castanhais, apresentando informações que justifiquem não somente a conservação do ambiente
em si, mas também garantir a preservação da cultura e dos costumes da população tradicional que acessa e vem utilizando estes
recursos a diversas gerações.
METODOLOGIA
O trabalho foi desenvolvido na RESEX Arapixi, Unidade de Conservação Federal de Uso Sustentável. A RESEX Arapixi
foi criada em 21 de junho de 2006 através do Decreto Presidencial s/n, tendo como objetivos a proteção dos meios de vida e a
cultura da população extrativista residente na área de sua abrangência e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da
unidade. A UC apresenta uma área total de 133.637 hectares, localizada no município de Boca do Acre/AM, a aproximadamente
a 40 quilômetros de distância de sua sede (Figura 1). A UC é praticamente cortada ao meio pelo Rio Purus, apresentando em
seu interior cerca de dezesseis comunidades, com aproximadamente 700 pessoas divididas em 160 famílias. Para fins de melhor
explanação os moradores/beneficiários da RESEX Arapixi serão referidos no texto como Arapixianos.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
146
Figura 1. Localização da Reserva Extrativista Arapixi.
O mapeamento das colocações de castanha do Brasil foi realizado no período de fevereiro a abril de 2015, através de
recursos disponibilizados do Programa Áreas Protegidos Da Amazônia (ARPA). Foram mapeadas todas as colocações de castanha do Brasil existentes nos seguintes igarapés: Fraga, Cedro, Manithiãn, Extrema, São Benedito, São Raimundo e Sossego. Os
igarapés foram percorridos desde a sua foz no Rio Purus até a última colocação acessada pelos Arapixianos. Vale ressaltar que
não foi objetivo desse trabalho mapear as colocações de pessoas que não eram Arapixianos.
Para o mapeamento das colocações de Castanha do Brasil foram estruturadas duas equipes, as quais foram compostas
por dois técnicos Florestais e por dois Arapixianos que “quebram” castanhas do Brasil naqueles respectivos igarapés a ser
mapeado. Os Arapixianos que compunham cada equipe tinham como função auxiliar na condução da canoa, como proeiro e/
ou popeiro, devido à enorme dificuldade de acesso aos igarapés e pela grande quantidade de árvores, e galhos com espinhos,
caídos no meio deste. Os Arapixianos também tinham a função de guias, orientando a localização de cada colocação, e seus
respectivos “donos” assim como a comunidade onde estes residem.
Foram coletadas as coordenadas geográficas de cada colocação através do uso de dois GPS Garmin Etrex Vista HCx,
utilizando o Datum WGS-84. As coordenadas geográficas foram registradas na sede de cada colocação e registradas em uma
planilha para evitar a perda de dados, assim como foram registrados em cada GPS. A sede das colocações geralmente é chamada pela população tradicional como tapiri ou papiri, sendo este o local que é utilizado como base e/ou moradia durante o período
de extração/quebra da castanha do Brasil. Também não foi objetivo deste trabalho mapear cada uma das árvores de castanha
do Brasil que compõem cada colocação, devido à falta de condições técnicas para o desenvolvimento desta atividade. Com a
cheia que atingiu os igarapés e o Rio Purus de fevereiro até início de abril, as atividades tiveram de ser paradas até que as águas
voltassem ao seu normal para aquela época. A retomada das atividades de mapeamento nos Igarapés Fraga e Cedro foram
retomados no dia 06 de abril.
Para análise dos dados foram plotadas as coordenadas geográficas de cada colocação e adicionadas no software TrackMaker, gerando assim um mapa com os pontos para servir de base e assim confeccionar o mapa principal, com todas as colocações mapeadas. Por conseguinte, foi utilizada uma imagem do satélite Landsat 7, do mês de julho de 2014. A imagem foi inserida
em um Sistema de Informações Geográficas (SIG), elaborado no software Quantum GIS (QGIS), tendo este sido escolhido por se
tratar de software freeware. Em seguida foram inseridos os shapes com os limites da RESEX Arapixi, Terras Indígenas Camicuã
e Terra Indígena Igarapé Capana, e foram inseridos os pontos coletados referentes a cada colocação. Em seguida foram confeccionados os mapas referentes a cada igarapé mapeado. Desta forma foi estruturado o SIG para as colocações de castanha do
Brasil utilizadas pelos Arapixianos.
Foi realizado um levantamento bibliográfico para o embasamento teórico deste trabalho, através da consulta de diversos
documentos da RESEX Arapixi, tais como o Plano de Manejo da RESEX Arapixi, o Decreto Federal que cria a UC, atas de reuniões, oficinas e capacitações, livros e, artigos científicos disponibilizados em periódicos acessados viam online.
02: Sistemas de Gestão e Governança
147
Resultados e Discussão
Os igarapés mapeados só são possíveis de trafegar através de barcos e/ou canoas no período do “inverno amazônico”.
Essa estação apresenta a quantidade de água necessária para trafegar pelos igarapés, facilitando o acesso às colocações de
castanha do Brasil e, assim, facilitando também o escoamento desta pela população tradicional. Em outros períodos do ano
não é possível acessar por barco estes igarapés, pois o nível das águas é baixo demais, quase secando os igarapés. Por motivo
desses obstáculos para acessar as colocações de castanha do Brasil no decorrer do ano, estes acabam por se tornar muito mais
suscetíveis às pressões provenientes das áreas invadidas, já que as colocações ficam praticamente abandonadas na maior parte
do ano. Muitas vezes os Arapixianos ficam mais de oito meses sem visitar suas colocações, já que após deixarem suas colocações no mês de março, a maioria somente retorna no final de novembro ou início de dezembro para “limpar” seus piques e os
próprios igarapés.
A maior parte dos igarapés percorridos é de difícil acesso, sendo que alguns podem levar até três dias para chegar a
ultima colocação que é utilizada pelos Arapixianos. O único igarapé a apresentar fácil acesso foi o Igarapé Sossego, já que o
mesmo pôde ser percorrido de “voadeira” com motor de 40 HPs. O mesmo foi percorrido em somente um dia, levando apenas
algumas horas entre a entrada e saída do mesmo.
Uma das maiores dificuldades é que mesmo “limpando” o igarapé, no início do período da quebra da castanha do Brasil, ao percorrer novamente o igarapé os Arapixianos muitas vezes necessitam fazer todo o serviço novamente, pois devido às
chuvas, que são abundantes neste período, muitas árvores são derrubadas desabando no igarapé. O “tapiri” que os moradores
utilizam, em sua maioria é coberto por telhas de alumínio e/ou palhas, sendo o mais comum à cobertura por palhas. O local é
aberto nos lados, permitindo a entrada de insetos. Os tapiri em sua maior parte são altos, distantes do chão, a fim de dificultar
a entrada de cobras e outros animais de maior porte. Um dos maiores obstáculos encontrado no transcorrer do mapeamento
foi à dificuldade no acesso as colocações. Devido ao nível dos igarapés estarem em seu auge, acabou dificultando o acesso às
colocações, para coletar as coordenadas geográficas, fotos e informações do proprietário.
Em algumas colocações são extraídas mais de 1.200 baldes de castanhas do Brasil, sendo que um balde possui o peso
de 15 kg. Um das menores colocações retira a média de 500 baldes. A grande diferença de uma colocação de castanha do Brasil
para outra ocorre devido à alta quantidade de castanheiras que compõem a colocação propriamente dita. Assim como pode estar
diretamente ligado à idade das próprias castanheiras, já que as mais velhas produzem mais ouriços, os quais “carregam” as castanhas do Brasil propriamente ditas. Outro fator que impacta diretamente a quantidade de baldes de uma colocação para outra é
a quantidade de árvores de castanha que cada colocação apresenta. Mais uma variável que acaba por influenciar a quantidade
de baldes gerados por colocação é o próprio desmatamento, sendo que os Arapixianos não quebram castanha de árvores que se
encontram em campos, devido à falta de proteção ao Sol, já que estes ficam expostos por muito tempo se não houver cobertura
vegetal para protegê-los da radiação solar.
A primeira comunidade onde teve início os trabalhos de mapeamento foi à comunidade Manithiãn. Foram necessários
aproximadamente quatro dias para mapear todas as colocações no igarapé Manithiãn. Sendo necessárias 36 horas para alcançar
a última colocação deste igarapé e praticamente o mesmo tempo para voltar. Foi utilizada uma canoa pequena e um motor 5,5
HP do Sr. Tonho, Arapixiano daquela comunidade. O Sr. Tonho leva em média dois dias e meio para chegar, não só por causa
da grande distância a ser percorrida, mas principalmente devido aos inúmeros obstáculos já anteriormente citados. A distância
da sua foz no Rio Purus, até a última colocação é de aproximadamente 28,5 km (medidos em linha reta do ponto de entrada do
igarapé até a última colocação de castanha do Brasil). O motor de 5,5 HP somente é utilizado na “subida” do igarapé, pois para
retornar utiliza-se somente o remo, já que este igarapé apresenta uma grande correnteza. Os remos são utilizados para navegar
seguramente na canoa, podendo levar de cinco a seis dias para retornar à Comunidade Manithiãn, com a canoa devidamente
carregada de castanhas do Brasil. No entanto, mesmo em meio a tantas dificuldades foi possível catalogar todas as dezesseis
colocações utilizadas pelos Arapixianos. Todavia para chegar à última colocação foi necessária uma caminhada de 11,5 km, entre
o igarapé e o último pique da colocação, no meio da floresta.
A maior parte das colocações situadas no Igarapé Manithiãn está posicionada no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Antimary. Infelizmente devido aos limites da RESEX Arapixi terem sido estabelecidos sobre os limites dos títulos
privados que se encontrava naquela área e que foram “englobadas” na criação da UC, algumas colocações de castanha do Brasil
ficaram de fora dos seus limites, neste caso ficando as colocações no interior do PAE Antimary. Das quinze colocações existentes
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
148
no Igarapé Manithiãn acessados pelos Arapixianos, somente três encontram-se dentro dos limites da RESEX Arapixi. As outras
doze colocações situam-se em uma área facilmente suscetível ao desflorestamento, já que não estão sob a tutela direta do ICMBIO, representado localmente pela equipe gestora da RESEX Arapixi, não sendo possível uma atuação mais direta naquela
área. A principal preocupação em relação a este igarapé refere-se ao desmatamento proveniente do PAE Antimary encontrar-se a
menos de 1,5 km do último pique da última colocação neste igarapé. Provavelmente este desflorestamento encontra-se muito mais
próximo, já que algumas castanheiras estão localizadas na direção do mesmo e por este trabalho não ter mapeado cada árvore.
No igarapé Extrema foram necessários dois dias e meio para mapear e obter os dados. Para alcançar a última colocação
foi necessário um dia e meio e para percorrer este igarapé foram utilizados uma canoa pequena e um motor 5,5 HP, até onde
o Arapixiano conhecido por DIM tem a sua colocação de castanha do Brasil, neste caso a última colocação daquele igarapé.
O Senhor Dim. leva em média três dias para chegar a sua colocação. Este igarapé é muito estreito, o que acaba bloqueando a
passagem de canoas maiores, assim como é fácil que árvores ou até mesmo galhos caídos acabam por bloquear o caminho,
tornando ainda mais lento o trajeto. A última colocação de castanha do Brasil, a colocação do Senhor Dim. encontra-se distante
do Rio Purus 20,5 km (medidos em linha reta do ponto de entrada do igarapé até a última colocação de castanha do Brasil). Neste
igarapé é comum encontrar grandes árvores caídas.
Apesar da utilização do motor 5,5 HP na maior parte do igarapé Extrema, o trecho final deste só é acessível através da
utilização de remo. O retorno com a canoa cheia de castanhas do Brasil leva em media de seis a sete dias para retornar à comunidade São José. Na colocação do Senhor Dim. são extraídas em média de 900 a 1000 baldes de castanha do Brasil. O Senhor
Dim. informou que o desmatamento a cada ano encontra-se cada vez mais próximo, e foram derrubadas diversas castanheiras.
Também informou que estão caçando animais de forma desenfreada. O desmatamento fica a quase 3 km de distância da sede
da colocação do Senhor Dim., sendo esta distância provavelmente muito inferior às castanheiras em si, já que as coordenadas
geográficas referem-se a “tapiri” do Senhor Dim. e não a última árvore acessada por este. Após o final do mapeamento o Senhor
Dim. informou que o desmatamento já chegou a sua colocação, onde já encontrou pastagens e campos no entorno de algumas
das castanheiras que compõem sua colocação. Neste igarapé existem dez colocações de castanha do Brasil de Arapixianos. Em
algumas destas colocações são extraídas apenas 400 baldes e em outros mais do que o dobro disso, como no caso da colocação
do senhor Dim., já citada anteriormente.
Na comunidade Nova Amélia, o acesso ao Igarapé São Benedito se dá por meio do lago homônimo a comunidade. Este
foi um dos igarapés que apresentou maior dificuldade, já que o mesmo encontrava-se com muitos galhos e árvores caídas, tornando o deslocamento tediosamente lento. O motivo pelo qual este igarapé encontrava-se desta forma é que nenhum Arapixiano
ainda havia o percorrido até a última colocação no ano de 2015. O Sr. Leno que acompanhou a equipe de mapeamento, declarou
que na maioria das vezes a última colocação, a qual a proprietária é a Dona Wanda, também é a ultima a ser “quebrada”, principalmente devido a necessidade do igarapé “ter mais água”, facilitando o acesso e a navegação.
Os tapiris encontrados neste igarapé apresentavam o mesmo padrão do igarapé Manithiãn e Extrema. Para alcançar a
última colocação também foi necessário o deslocamento em um dia e meio, através de uma canoa pequena e motor de 5,5 HP.
Os Arapixianos que possuem colocações neste igarapé, comumente necessitam de dois dias e meio até três dias para chegar
à última colocação, embora utilizem canoas maiores. No total os Arapixianos precisam de quatro a seis dias entre acessar suas
colocações e retornar a comunidade, já com as castanhas do Brasil devidamente “quebradas”, não sendo considerado o período
necessário para a “quebra” destas. A distância desta última colocação até o Rio Purus é de 20 km (medidos em linha reta do
ponto de entrada do igarapé até a última colocação de castanha do Brasil). No igarapé São Benedito foram mapeadas dez colocações de castanha do Brasil, onde na menor colocação são retirados em média 600 baldes e na maior são retirados mais 1.100
baldes de castanha.
O desflorestamento encontra-se cada vez mais próximo da última colocação deste igarapé, localizando-se a apenas 2,5
km de distância do “tapiri” da colocação. O Sr. Leno alegou que já estão sendo sentidos os impactos desta ameaça, pois principalmente diversos animais que antes eram comuns, agora dificilmente são vistos, dificultando a alimentação dos Arapixianos no
período de quebra da castanha.
O Igarapé São Raimundo está situado na comunidade Santo Honorato apresenta a mesma conformidade com os outros
igarapés, sendo estreito, com diversas árvores caídas e com correnteza muito forte. No período em que foi realizado o mapeamento das colocações de castanha do Brasil este se encontrava totalmente alagado devido as fortes chuvas do período.
02: Sistemas de Gestão e Governança
149
A distância da última colocação neste igarapé até o Rio Purus é de 20 km (medidos em linha reta do ponto de entrada do
igarapé até a última colocação de castanha do Brasil). Para percorrer todo o igarapé foi necessário um dia e meio para chegar
a ultima colocação de castanha do Brasil. Também foi utilizada uma canoa pequena e um motor 5,5 HP. Os Arapixianos que possuem colocações de castanha do Brasil neste igarapé afirmam que gastam geralmente dois dias para chegar a ultima colocação,
pois a canoas que estes utilizam possuírem um tamanho superior àquela que foi utilizada no mapeamento e, assim, impedindo as
manobras no igarapé. A menor colocação de castanha neste igarapé extrai mais de 400 baldes de castanha do Brasil, já a maior
extrai em torno de 1000 baldes. Neste caso a colocação que mais produz fica fora dos limites da RESEX Arapixi.
No igarapé São Raimundo existe sete colocações, sendo que quatro encontram-se fora dos limites da RESEX Arapixi. Os
tapiris que os Arapixianos utilizam neste igarapé são apenas cobertos por palhas. Após a análise dos dados observa-se que o
desflorestamento está a menos de 2,5 km da última colocação de castanha do Brasil.
O penúltimo igarapé mapeado foi o Igarapé Sossego, o qual marca o limite extremo da RESEX Arapixi no Rio Purus.
Como já foi exposto anteriormente o acesso ao igarapé Sossego foi bastante fácil, onde foi possível realizar o mapeamento pelo
meio de uma “voadeira” com motor de 40 HP. Foram necessárias cerca de quatro horas entre acessar a última colocação e retornar até a sede do Seringal Arapixi. O Igarapé Sossego apresenta ótimas condições de navegabilidade, já que não foram encontradas quaisquer árvores caídas ou qualquer outro tipo de dificuldade para percorrê-lo. O Igarapé Sossego apresentam condições
de navegabilidade durante quase todo o ano. Segundo o Sr. Luiz da Mata, o qual possui uma colocação neste igarapé, leva em
cerca de um dia para chegar nesta colocação. A distância da última colocação até o Rio Purus é de somente 14 km (medidos
em linha reta do ponto de entrada do igarapé até a última colocação de castanha do Brasil). Os tapiris neste igarapé também são
cobertos por palhas, alumínio e lonas, sendo aberto dos lados.
Na maioria das colocações encontradas no Igarapé Sossego, são extraídas em media de 600 a 1000 baldes de castanha
do Brasil. Neste igarapé existem oito colocações pertencentes à Arapixianos, onde somente duas encontram-se fora dos limites
da RESEX Arapixi.
O ultimo igarapé mapeado foi o Fraga que tem como seu afluente o igarapé Cedro. Ele está situado na divisa das comunidades Maracaju I e Porto Alegre. Foram necessários seis dias para mapear todas as colocações nestes dois igarapés. Foram
necessários dois dias para chegar à última colocação de castanha do Brasil no Igarapé do Fraga. Após finalizá-lo iniciou-se o
mapeamento em seu afluente, o Igarapé Cedro, onde foram necessários mais dois dias para chegar a ultima colocação e, ainda,
mais dois dias para retornar ao Rio Purus. Para percorrer estes dois igarapé também foi utilizada uma canoa pequena e um motor
5,5 HP. Segundo o Sr. Sabá, este leva aproximadamente quatro dias para chegar a ultima colocação em qualquer um dos igarapés, já que estas são muito distantes da foz no Rio Purus, aproximadamente 20 km de distância (medidos em linha reta do ponto
de entrada do igarapé até a última colocação de castanha do Brasil). Nestes igarapés também são encontrados muitos obstáculos. Mesmo frente a tantas dificuldades foram mapeadas vinte colocações, as quais os “donos” são Arapixianos. Um dos resultados surpreendentes é que apenas quatro colocações estão dentro dos limites da RESEX e o restante encontra-se no interior do
PAE Antimary. Os tapiris encontrados neste igarapé apresentam o mesmo padrão dos anteriores. A colocação que extrai menos
castanha nestes igarapés retira entorno de 500 baldes e a maior retira aproximadamente 1200 baldes de castanha do Brasil.
O desmatamento encontrado as últimas colocações destes dois igarapés está a cada dia mais próximo, estando a menos
de 4 km. O impacto deste desflorestamento está cada vez mais visível, devido à escassez de fauna e diversas áreas “aberta”
percebidas em imagens de satélite.
Através da análise das coordenadas geográficas inseridas no SIG da RESEX Arapixi, verifica-se que nos Igarapés Fraga,
Cedro, Extrema, São Benedito, São Raimundo e Sossego, a maior parte das colocações mapeadas nestes igarapés encontramse fora dos limites da UC. Estes dados são alarmantes, devido a grande insegurança dos Arapixianos em relação à exposição
de suas colocações nestes igarapés ao desmatamento, já que estas se encontram desprotegidas, sem nenhum segurança. Ao
analisar todos os igarapés, o Igarapé do Fraga foi aquele que apresentou situação mais crítica, pois a maior parte colocações de
castanha dos Arapixianos localiza-se fora dos limites da UC.
Através dos dados obtidos nas colocações mapeadas, verifica-se a grande necessidade de ampliação da RESEX Arapixi,
de forma mais breve possível. Devido ao risco iminente que se encontram estes recursos essenciais acessados pela população
tradicional desta UC, situarem-se fora de seus limites e tão suscetíveis ao desflorestamento proveniente do PAE Antimary. Assim
sendo para garantir a manutenção dos castanhais torna-se essencial que os limites da RESEX Arapixi sejam redefinidos urgente-
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
150
mente, englobando todas as colocações de castanha.
Através da análise da localização das colocações plotadas sobre a imagem de satélite, verifica-se que o desflorestamento
encontra-se ameaçadoramente próximo das colocações de castanha e dos próprios limites da RESEX Arapixi. Embora ainda
encontre-se em uma distância média de aproximadamente dois quilômetros das últimas colocações de cada igarapé e uma distância um pouco maior dos limites da RESEX Arapixi. Mesmo sendo uma distância ainda “segura” entre o desflorestamento e os
limites da RESEX Arapixi, este apresenta uma grande ameaça aos recursos acessados pelos Arapixianos, não só as colocações
de castanha, mas também a diminuição da própria biodiversidade.
Os relatos de diversos Arapixianos apresentam uma realidade preocupante, onde alguns recursos naturais apresentam
sinais de grave diminuição. Animais que antes eram fonte de proteína para alimentação dos Arapixianos, quando estes se encontravam em suas colocações para quebrar castanha do Brasil, já não são encontrados tão facilmente. Em algumas colocações já se
observa a derrubada ilegal de castanheiras e de outras árvores protegidas por lei, diminuindo o potencial daquelas colocações.
A questão das colocações de castanha do Brasil ameaçadas pela aproximação constante do desflorestamento proveniente do PAE Antimary é a maior preocupação da equipe gestora da RESEX Arapixi. Devido às colocações encontrarem-se fora
dos limites da UC, o grau de dificuldade para efetuar um controle mais efetivo sob o desflorestamento é muito maior. Como a
RESEX Arapixi é uma UC de Uso Sustentável, pontualmente em seu interior verificam-se desmatamentos, embora estes sejam
realizados com a devida autorização da equipe gestora da UC, tendo como base o Plano de Utilização da própria RESEX, geralmente relacionado com o estabelecimento de agricultura de subsistência e/ou SAFs.
Após analisar todos os igarapés com suas respectivas colocações, analisando a proximidade do desmatamento a estas
colocações está sendo elaborada uma proposta de ampliação da RESEX Arapixi, para incluir todas as colocações de castanha
do Brasil que hoje estão fora dos limites da RESEX Arapixi. A área proposta inicialmente é de pelo menos 685.000 km2, ou 68.500
hectares (Figura 2). Para delimitar esta área a ser ampliada, foi delimitado um “bolsão” englobando não só as colocações de
castanha do Brasil, mas também uma distância de pelo menos 1,5 km entre a última colocação e o limite proposto, garantindo
assim que haja uma área que possa servir como amortecimento, mitigando o impacto de qualquer desflorestamento que possa
estar se aproximando destes novos limites da RESEX Arapixi.
Figura 2. Proposta de ampliação da RESEX Arapixi.
02: Sistemas de Gestão e Governança
151
Atualmente para frear a aproximação do desflorestamento, a equipe gestora da RESEX Arapixi tem buscado estabelecer uma maior aproximação com o INCRA, para que juntos possam desenvolver um planejamento conjunto para mitigar esta
pressão. A equipe gestora da UC também tem buscado parceria com o IBAMA e com a Polícia Federal, a fim de estruturar uma
ação mais efetiva de fiscalização nas áreas próximas a RESEX Arapixi, para identificar se os agentes deste desflorestamento são
realmente assentados do PAE Antimary ou se estes são invasores.
Conclusão
Uma das possíveis soluções para amenizar esse grande desmatamento causado pela pressão proveniente do PAE Antimary seria realizar um levantamento cadastral de quem se encontra naquelas áreas. Outro ponto essencial para mitigar esse desmatamento é manter um controle referente a estas ocupações, acompanhando as atividades ali desenvolvidas, já que a maioria
das áreas “abertas” é utilizada para criação de gado, destoando dos objetivos de um Projeto Agroextrativista. Oferecer acompanhamento técnico para que os assentados possam produzir mais com menos área, focando principalmente na recuperação das
áreas desflorestadas com sistemas agrossilvipastorio, associando a conservação ambiental com a rentabilidade.
Através do mapeamento dos castanhais, constatou-se que mais de 65% das colocações de castanhas utilizados pelos
Arapixianos está fora de seus limites, o que os deixa suscetíveis ao desflorestamento proveniente do PAE Antimary. Torna-se
essencial para a gestão da UC garantir a conservação e proteção destes recursos, que tanto impacto gera na economia dos Arapixianos. Também é de fundamental importância proteger esta atividade desenvolvida pela população tradicional da UC, pois
esta gera baixo impacto ao ambiente e, sendo aos Arapixianos a sua principal fonte de recursos, acaba por gerar em resposta
um menor impacto de desflorestamento no interior da própria RESEX Arapixi, já que com os rendimentos provenientes das colocações de castanha, acaba por evitar que os Arapixianos busquem outras formas impactantes para obter meios para manter
sua sobrevivência.
A ampliação da RESEX Arapixi busca atender não só a conservação das colocações de castanha do Brasil acessadas
pela população tradicional da UC, mas também evitar que danos mais severos e provavelmente irreversíveis sejam causados
naquela área. Através de sua ampliação será possível garantir através da presença institucional do ICMBIO, neste caso representada pela equipe gestora da UC a manutenção e conservação daqueles recursos.
Referências
ALENCAR, A.; NEPSTAD, N; MCGRATH, D; MOUTINHO, P; PACHECO, P; DIAZ, M. D. C. V.; FILHO, B. S. Desmatamento
na Amazônia: indo além da emergência crônica. Manaus: Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), 2004. 89p.
ALLEGRETTI, M. H. A construção social de politicas ambientais – Chico Mendes e o movimento dos seringueiros. (Tese de
Doutorado em Desenvolvimento Sustentável, Gestão e Politica Ambiental) Universidade Federal de Brasília, 2002.
ANDERSON, A. B. Extrativismo vegetal e Reservas Extrativistas: limitações e oportunidades. In: ANDERSON, A. B. et al. (eds.),
O Destino da Floresta: Reservas Extrativistas e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia. Rio de Janeiro: Relume-Dumara,
pp. 227–245, 1994.
BARTHOLO, R.; DELAMARO, M.; TUNES, G. Muito além do asfalto: cenários amazônicos para a BR-163. Relatório de Pesquisa
realizada no âmbito do Projeto Avaliação e Planejamento Integrado – setor de soja na área de influência da BR-163. Brasília: SDS,
SCA/MMA, PNUMA, CDS/UnB, 2005.
BENATTI, J. H. O meio ambiente e os bens ambientais. In: RIOS, A. V.V.; IRIGARAY, C. T. H. (Orgs.). O direito e o desenvolvimento sustentável: curso de direito ambiental. São Paulo: Peirópolis; Brasília: IEB, pp. 205-243, 2005.
BRASIL. Instrução Normativa n0 3, de 8 de setembro de 1992. Disponível em: <www.incra.gov.br>. Acesso em 12 agosto 2015.
CLEARY, D. After the frontier: problems with political economy in the modern Brazilian Amazônia. Journal of Latin American
Studies, v.25, p. 331-349, 1993.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
152
FEARNSIDE, P. M. A floresta Amazônia nas mudanças globais. Manaus: Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
(INPA), 2003. 134p.
INSTITUTO CHICO MENDES PARA CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE, Plano de Manejo da Resex Arapixi, 2010.
LAURENCE, W. L.; ALBERNAZ. A. K. M.; FEARNSIDE, P. M.; VASCONCELOS, H; FERREIRA, L. V. Deforestation in Amazonia.
Science, v.304, 2004.
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE (MMA). Plano de ação para a prevenção e controle do desmatamento na Amazônia
legal (PPCDAm), Brasília, 2004. Disponível em: <www.mma.gov.br>. Acesso em 12 agosto 2015.
02: Sistemas de Gestão e Governança
153
MANEJO ADAPTATIVO DE RISCO E VULNERABILIDADE EM SÍTIOS DE
CONSERVAÇÃO: RELATO DE UMA OFICINA DE CAPACITAÇÃO
NA METODOLOGIA MARISCO
Ibisch, Pierre L.1; Oliveira, Sara Silva de1; Schick, Axel1; Schiavetti, Alexandre2; Camargos, Virginia 3; Santos,
Gildevânio Pinheiro dos3; Senta, Mateus Dala4; Holvorcem, Christiane5 & Cases, Maria Olatz5
1.Centre for Econics and Ecosystem Management 2.Universidade Estadual de Santa Cruz, [email protected]
3. RPPN Estação Veracel 4. Ministério da Mata Atlântica 5. GIZ Brasil
Resumo
Apesar de sua elevada fragmentação, causada por séculos de uso, a Mata Atlântica fornece serviços ecossistêmicos essenciais
ao bem-estar de grande parte da população brasileira, cuja manutenção depende de um manejo eficiente dos remanescentes
florestais. Este trabalho relata a primeira oficina de capacitação no Brasil utilizando o método MARISCO (Manejo Adaptativo de
Risco e Vulnerabilidade em Sítios de Conservação) de planejamento adaptativo do manejo de áreas protegidas, realizada em abril
de 2015, utilizando a RPPN Estação Veracel, Sul da Bahia, como um estudo de caso. O método MARISCO é o primeiro a incluir
explicitamente os possíveis efeitos da mudança do clima no planejamento da conservação, e vem sendo aplicado com sucesso
em uma variedade de ecossistemas em vários países. Participaram da referida capacitação técnicos do governo, de unidades de
conservação e acadêmicos.
Palavras-chave: Serviços Ecossistêmicos, RPPN Estação Veracel, Mudança Climática.
Introdução
A relação de não-equilíbrio entre a espécie humana, com suas diversas atividades sócio-econômicas, e os ecossistemas
naturais, cujos recursos e serviços são explorados de forma insustentável e frequentemente destrutiva, vem gerando incertezas
crescentes sobre o futuro tanto dos ecossistemas naturais quanto da espécie humana. Na ausência de perturbações antrópicas,
a biodiversidade global se auto-organiza e auto-regula sustentavelmente, em uma hierarquia de sistemas aninhados, que transferem matéria, energia e informação entre si, contribuindo para a estabilidade dos ciclos biogeoquímicos e do clima global.
Entretanto, a pressão crescente causada pelas atividades antrópicas perturba o equilíbrio dos ecossistemas e do clima, sendo
impossível prever em detalhes a evolução futura dos serviços dos ecossistemas e do sistema climático global (IBISCH; VEGA;
HERRMANN, 2010; IBISCH; HOBSON, 2014).
A Mata Atlântica é um exemplo claro deste tipo de relação de não-equilíbrio: desde o início da colonização europeia
em 1500, os efeitos cumulativos da expansão agrícola no período colonial, e da industrialização e urbanização que se seguiram
reduziram a vegetação nativa a 12,5% de sua extensão original, distribuída em um grande número de fragmentos florestais, em
sua maioria de pequenas dimensões (FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA; INPE, 2015), e sujeitos à perda gradual de biodiversidade (devido ao isolamento, que reduz o fluxo gênico entre fragmentos) e de cobertura florestal (devido aos efeitos de borda).
Atualmente, a região originalmente coberta pela Mata Atlântica foi reduzida a um mosaico dinâmico de paisagens em grande
parte modificadas pela ação humana, incluindo plantações, pastagens (em uso ou abandonadas), áreas de vegetação nativa em
diferentes estágios de regeneração, silvicultura e sistemas agroflorestais (RIBEIRO et al., 2011).
Como resultado das grandes perdas de habitat sofridas pela Mata Atlântica, uma elevada proporção do seu grande
número de espécies, muitas delas endêmicas (que conferem ao bioma o status de “hot spot” global de biodiversidade), está
criticamente ameaçada de extinção (TABARELLI et al., 2005; GALINDO-LEAL; CÂMARA, 2003). Esta situação, que continua a se
agravar gradualmente, ameaça a manutenção dos serviços ecossistêmicos (especialmente recursos hídricos) fornecidos pela
Mata Atlântica a grande parte da população brasileira. O problema se complica devido ao baixo grau de proteção dos remanescentes florestais da Mata Atlântica: existem aproximadamente 700 áreas protegidas no bioma, mas estas protegem somente
1,62% da região (RIBEIRO et al., 2009).
Assim, o desafio atual é utilizar os recursos limitados existentes para manejar de forma eficiente os remanescentes flo-
02: Sistemas de Gestão e Governança
155
restais existentes (e restaurar áreas onde a vegetação nativa foi degradada ou eliminada) de forma a minimizar as perdas de
biodiversidade e cobertura vegetal, evitando o colapso dos serviços ecossistêmicos essenciais ao bem-estar humano.
Nas últimas décadas, a percepção crescente da natureza não-determinística e da interdependência dos sistemas naturais
em diferentes escalas levou ao desenvolvimento de métodos de planejamento adaptativo da conservação. Dentre os métodos
existentes, destacam-se os Padrões Abertos para a Prática da Conservação (Open Standards for the Practice of Conservation),
desenvolvido pela organização não-governamental The Nature Conservancy (TNC), com base em metodologias anteriores1 e,
mais recentemente, o método MARISCO (Manejo Adaptativo de Risco e Vulnerabilidade em Sítios de Conservação),2 baseado
nos Padrões Abertos, e que é a primeira metodologia de planejamento adaptativo do manejo de áreas protegidas a incluir explicitamente análises de vulnerabilidade e risco associados à mudança do clima.
O método MARISCO é uma metodologia dinâmica, participativa e multidisciplinar, que proporciona uma visualização
sistemática dos alvos de conservação e seus fatores de estresse e ameaças, que são mapeados por meio da criação de um
modelo conceitual que incorpora as estratégias de conservação existentes e facilita as decisões sobre a criação de novas estratégias, a implementação de processos de monitoramento, a adaptação das estratégias frente a condições que mudam ao longo
do tempo e a gestão do conhecimento adquirido e do não-conhecimento sobre a área sob manejo. O método já foi aplicado em
países da Europa, Ásia, África e América Latina (IBISCH; HOBSON, 2014).
Neste trabalho, relatamos uma primeira aplicação do método MARISCO no Brasil. O Projeto “Biodiversidade e Mudanças
Climáticas na Mata Atlântica”,3 em parceria com o Centre for Econics and Ecosystem Management (Universidade de Eberswalde, Alemanha) e o Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Estadual de Santa
Cruz (UESC) realizaram, de 14 a 18 de abril de 2015, em Ilhéus (BA) uma oficina de capacitação na metodologia MARISCO, com
participação de 19 pessoas, incluindo técnicos dos governos estadual e federal, assim como de professores e estudantes de
pós-graduação da UESC e da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
O sítio escolhido como estudo de caso para esta primeira oficina de capacitação foi a RPPN Estação Veracel, pertencente
à empresa Veracel Celulose S/A, situada nos municípios de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, no extremo sul da Bahia. Com
área de 6063 ha de Mata Atlântica, em excelente estado de conservação, a RPPN Estação Veracel é um importante remanescente
florestal da Mata Atlântica no Corredor Central da Mata Atlântica, sendo a maior RPPN da região Nordeste do Brasil dentro do
Bioma Mata Atlântica e um dos núcleos da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.
Segundo Schiavetti, Magro & Santos (2012) das 30 áreas protegidas analisadas quanto a efetividade de manejo no Corredor Central da Mata Atlântica, 50% se encontravam razoavelmente implantadas e somente uma, a RPPN Estação Veracel estava
satisfatoriamente implantada. Os quesitos básicos e determinantes para uma AP alcançar a implementação estavam ligados a
uma situação fundiária regularizada e à existência de instrumento de manejo, de gestores, de funcionários e trabalhos com a
comunidade do entorno/interior.
A RPPN Estação Veracel é coberta por floresta ombrófila densa (CARVALHO, 2011), com algumas áreas de mussununga
(vegetação herbáceo-arbustiva, em solos arenosos), apresentando mais de 307 espécies arbóreas. A fauna da reserva tem elevada biodiversidade, com 38 de mamíferos (FALCÃO; GUANAES; PAGLIA, 2012), 39 de anfíbios (PIMENTA; NUNES; CRUZ,
2007), 302 de aves e 53 de répteis; sendo 37 das espécies de fauna da reserva classificadas como ameaçadas e 54 endêmicas do
Estado da Bahia (CI, 2007). A RPPN possui plano de manejo aprovado pelos órgãos competentes (ICMBio, 2009).
A oficina de capacitação na metodologia MARISCO
Um exercício MARISCO típico inclui um amplo leque de participantes, procurando cobrir todas as perspectivas e interesses ligados à área a ser manejada (IBISCH; HOBSON, 2014). Deve-se incluir participantes com bom conhecimento sobre a área
em questão, assim como representantes de diferentes setores da sociedade (governos, sociedade civil, academia, iniciativa
privada), incluindo pessoas com conhecimento científico e técnico em diferentes áreas (em especial, em ecologia dos ecoshttp://www.conservationmeasures.org/wp-content/uploads/2013/05/CMP-OS-V3-0-Final.pdf
http://www.marisco.training/further-languages/português/apresentações-do-metodo-marisco/
3
O Projeto Biodiversidade e Mudanças Climáticas na Mata Atlântica é um projeto do governo brasileiro, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), no
contexto da Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável, no âmbito da Iniciativa Internacional de Proteção ao Clima (IKI) do Ministério do Meio
Ambiente, Proteção da Natureza, Construção e Segurança Nuclear da Alemanha (BMUB). Prevê apoio técnico através da Deutsche Gesellschaft für Internationale
Zusammenarbeit (GIZ) GmbH, e apoio financeiro através do KfW Entwicklungsbank (Banco Alemão de Desenvolvimento), por intermédio do Fundo Brasileiro para
a Biodiversidade – Funbio.
1
2
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
156
sistemas). O exercício é conduzido de forma participativa, baseada em evidências, e não supõe que se tenha um conhecimento
exaustivo sobre a área a ser manejada e seu entorno: o não-conhecimento é explicitamente levado em consideração durante todo
o processo. Uma equipe de treinadores (facilitadores) e organizadores conduz o exercício, auxiliando os participantes em cada
um dos passos metodológicos envolvidos.
Um exercício MARISCO completo é dividido em quatro fases: Fase I (Preparação e conceitualização inicial), Fase II
(análise sistêmica de vulnerabilidade e risco), Fase III (avaliação abrangente, priorização e formulação da estratégia), e Fase IV
(implementação e gestão do conhecimento (e do não-conhecimento)), como mostrado na Figura 1.
A Fase I da metodologia (preparação e conceitualização inicial) iniciou-se com a apresentação de uma Análise Diagnóstica do Ecossistema (ADE), realizada nas semanas anteriores à oficina, com base em informações compiladas da literatura
científica e de várias fontes, e em visitas de campo à RPPN Estação Veracel e seu entorno. Durante a discussão deste diagnóstico
inicial com os participantes, procurou-se demonstrar como identificar mudanças e riscos inesperados, além de ressaltar a necessidade de uma abordagem sistêmica do planejamento da conservação.
02: Sistemas de Gestão e Governança
157
A RPPN Estação Veracel serve como “stepping stone” entre o Parque Nacional do Pau-Brasil, ao sul, e um maciço florestal
de milhares de hectares ao norte, no município de Belmonte. O seu entorno consiste de um mosaico de propriedades rurais,
algumas das quais pertencentes à Veracel Celulose S/A, incluindo pastagens, plantações, áreas de silvicultura de eucaliptos e
áreas de vegetação nativa. A perda de boa parte da vegetação nativa nestas áreas ocorreu principalmente nas décadas de 1960 a
1980, quando a abertura de novas rodovias (especialmente a BR-101) facilitou a intensificação da extração de madeira na região.
As principais pressões externas que afetam a RPPN são a agropecuária no entorno, cujas áreas de vegetação rasteira
ou de pequeno porte aumentam a exposição da borda da reserva ao sol e ao vento, o que pode levar à gradual degradação da
vegetação nativa (efeito de borda), e a caça ilegal, uma atividade culturalmente arraigada na região, aproveitando-se de estradas
no interior da reserva que já existiam quando a reserva foi estabelecida na década de 1990. Dentre estas estradas, destaca-se
uma estrada municipal que liga Santa Cruz Cabrália ao trecho da BR-367 e que atravessa a RPPN de leste a oeste.
Um importante serviço ecossistêmico fornecido pela RPPN é a proteção de um trecho do Rio dos Mangues, que nasce
fora da reserva, e é utilizado para captação de água no município de Porto Seguro. No entorno da RPPN, como em qualquer área
predominantemente antropizada, os serviços ecossistêmicos têm sua eficiência reduzida.
Após a apresentação da ADE, como um primeiro passo na construção do modelo conceitual do método MARISCO, o
grupo foi orientado a definir o escopo geográfico em torno da RPPN a ser considerado no exercício. Os primeiros elementos
definidos no modelo foram os objetos de conservação (objetos de biodiversidade, serviços ecossistêmicos e objetos de bemestar humano) contidos no escopo geográfico definido, assim como os serviços e sistemas sociais que interagem com estes
objetos (Figura 2). A seguir, os participantes definiram uma visão inicial sobre o manejo da RPPN e sua interação com o entorno,
a fim de orientar a elaboração de objetivos e metas a serem definidos na Fase III.
Figura 2. Desenvolvimento do modelo conceitual pelos participantes da oficina.
A Fase II consiste de uma análise sistêmica de vulnerabilidade e risco, aplicando uma análise da situação a fim de estabelecer uma boa compreensão da situação atual, passada e futura (num horizonte de 20 anos no passado e no futuro) dos objetos
de conservação e de bem-estar humano. Assim, os participantes foram orientados a incluir no modelo conceitual os atributos
ecológicos chave dos objetos de conservação, os estresses ambientais, as ameaças e seus fatores contribuintes.
Após a inclusão destes elementos, os participantes revisaram o modelo e em seguida avaliaram participativamente o nível de criticalidade (importância percebida para o estado de vulnerabilidade de um objeto de conservação) dos mesmos, assim
como sua “atividade sistêmica” (quantificação do grau em que um elemento do modelo influencia outros ou é influenciado por
outros elementos), gerenciabilidade (quantificação do grau em que um elemento do modelo pode ser diretamente influenciado
por estratégias e atividades de manejo), o grau de conhecimento sobre os mesmos e sua relevância estratégica (um score que
combina criticalidade atual, tendência atual da criticalidade, criticalidade futura e atividade sistêmica), como ilustrado na Figura 3.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
158
Ao final da Fase II, o modelo conceitual foi revisado pelos facilitadores, de forma a produzir uma versão “limpa” e organizada, a ser utilizada nas etapas seguintes da metodologia.
A Fase III compreende uma análise das estratégias existentes e o desenvolvimento sistemático de novas estratégias que
permitam uma melhoria efetiva da funcionalidade dos objetos de conservação e de bem-estar humano, a redução das ameaças, e a prevenção ou redução da vulnerabilidade e dos riscos. Os participantes aprenderam a avaliar as estratégias de forma
abrangente, visualizando as relações entre as estratégias e os elementos do modelo conceitual, a priorizar as estratégias existentes e a formular estratégias complementares, baseando-se nos elementos do modelo conceitual.
Figura 3. Discussão dos elementos do modelo conceitual pelos participantes da oficina.
Os participantes avaliaram estas estratégias complementares, e discutiram sua factibilidade, seus impactos, e suas relações com as estratégias existentes e com os demais elementos do modelo conceitual. Neste processo, os consultores orientaram
o grupo no uso de um pensamento estratégico e sistemático sobre fatores contribuintes, ameaças e estresses, que conduziu à
elaboração de uma “teia de resultados” esperados como consequência da implementação das estratégias. Estes resultados são
ligados entre si por relações de causa e efeito, e seu resultado final esperado é a melhoria da situação e da funcionalidade dos
objetos de biodiversidade e de bem-estar humano (Figura 4). Finalmente, a Fase III também inclui a concepção dos processos
de monitoramento a serem implementados para que se possa mensurar a efetividade das estratégias, assim como diagnosticar
a necessidade de ajustes adaptativos nas mesmas.
Figura 4. Processo de avaliação das estratégias (Fase III).
02: Sistemas de Gestão e Governança
159
A Fase IV da metodologia MARISCO consiste do planejamento operacional e da implementação das estratégias e processos de monitoramento de resultados e impactos. Também se incluem nesta fase a gestão do conhecimento acumulado e do nãoconhecimento sobre a área sob manejo. Uma vez que em uma aplicação real do método MARISCO esta etapa se estende por um
longo período, não foi possível realizar esta etapa na oficina de capacitação. Após a oficina, os resultados da mesma foram documentados e digitalizados, produzindo-se versões finais do modelo conceitual, incluindo as estratégias existentes e propostas.
Resultados da oficina
Fase I
O escopo geográfico definido pelos participantes (Figura 5) incluiu o entorno da RPPN, com suas propriedades rurais,
os principais remanescentes próximos de vegetação nativa (incluindo o Parque Nacional do Pau Brasil e a APA de Coroa Vermelha), porções das bacias de rios principais da região (rio Buranhém, rio dos Frades e rio Santo Antonio), os centros urbanos
que mais influenciam a reserva (Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália), e regiões costeiras que recebem sedimentos transportados
pelos rios que atravessam a porção terrestre do escopo geográfico (em especial o rio Buranhém), incluindo o Parque Municipal
Marinho do Recife de Fora, importante sítio para a conservação de corais.
Figura 5. Escopo geográfico definido pelos participantes.
O retângulo próximo ao limite leste do escopo é o Parque Municipal Marinho do Recife de Fora.
Os objetos de biodiversidade definidos pelos participantes foram reunidos em quatro grupos interconectados, que compreendem toda a biodiversidade presente na região: ecossistemas terrestres (floresta ombrófila densa, mussununga, restinga,
cordões litorâneos), ecossistemas aquáticos de água doce (rios, lagos e brejos), ecossistemas marinhos e costeiros (recifes de
coral, bancos de gramas marinhas, estuários, manguezais e mar aberto) e ecossistemas antrópicos (florestas plantadas, sistemas
agroflorestais, cabruca, plantações, pastagens, areias e represamentos).
O grupo de objetos de conservação “ecossistemas terrestres” continha ainda os objetos “árvores”, “bromélias”,
“orquídeas”, e “animais”, além de objetos representando espécies relevantes da flora, como “pau-brasil” e “jacarandá da Bahia”.
O grupo de objetos “ecossistemas marinhos e costeiros” continha também objetos representando os corais endêmicos e espécies relevantes da fauna marinha, como “baleia jubarte”, “tartarugas marinhas”, “budião azul”, “caranguejo uca”, entre outros.
Os objetos de biodiversidade escolhidos foram associados aos serviços ecossistêmicos que oferecem, classificados pelos participantes em três categorias: serviços de abastecimento (água, produção de alimentos, de madeira, recursos genéticos),
de regulação (purificação da água, qualidade do ar, controle de erosão, estabilidade do clima local, sequestro de carbono, proteção da costa) e culturais (beleza cênica, atividades de educação e pesquisa, espiritualidade).
Foram também definidos objetos de bem estar-humano (acesso à água limpa, segurança alimentar, moradia, saúde, emprego e renda, desenvolvimento de habilidades e conhecimento, identidade e lazer, entre outros), conectados aos serviços ecossistêmicos dos quais dependem. Também foram incluídos no modelo os serviços sociais (políticas públicas, saneamento básico,
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
160
fornecimento de energia, democracia, etc.) que interagem com os objetos de bem-estar humano, e os sistemas sociais (os três
poderes, órgãos estatais, organizações da sociedade civil, iniciativa privada, etc.) que fornecem ou regulam os serviços sociais.
Esta fase foi concluída com a elaboração de uma visão inicial do manejo da RPPN e demais áreas dentro do escopo
geográfico.
Fase II
Os atributos ecológicos chave definidos pelos participantes foram agrupados em cinco categorias: fatores-mestre (quantidade, qualidade e características físicas da água, estabilização do clima, estrutura, características químicas e fertilidade do
solo), biomassa (que inclui o atributo “cobertura vegetal”), informação e diversidade (flora e fauna nativas, composição e riqueza
de habitat, corais), conectividade e redes (conectividade ecológica, polinização, dispersão, ciclagem de nutrientes, transporte de
sedimentos e nutrientes, espécies de topo de cadeia), e atributos antropogênicos (planejamento das ações humanas).
Os vários estresses sofridos pelos objetos de conservação foram ligados aos atributos ecológicos chave por eles afetados.
Os estresses foram reunidos em categorias aproximadamente correspondentes às categorias de atributos ecológicos chave; por
exemplo, uma das categorias continha os estresses “perda/redução de floresta”, “perda de cobertura vegetal” e “redução de
manguezais”, que afeta primariamente os atributos ecológicos chave da categoria “biomassa”. Dentre o grande número de estresses identificados pelos participantes, incluem-se ainda a perda de espécies, a fragmentação florestal, alterações do ciclo de
vida das espécies, o branqueamento dos corais, mudanças na composição das comunidades, a perda de produção dos sistemas
antrópicos, o aumento de pragas, além de vários estresses sobre o solo e os recursos hídricos.
As ameaças aos objetos de conservação identificadas durante o exercício MARISCO foram reunidas em sete categorias:
mudanças climáticas locais, nível do mar e correntes, manipulação hídrica, manipulação ambiental, uso não-sustentável dos
recursos naturais, extração de organismos e espécies exóticas e invasoras.
Os fatores que contribuem para os estresses e ameaças foram identificados e agrupados em nove categorias: fatores
ligados à governança, fatores institucionais, fatores demográficos, fatores relacionados à produção industrial, fatores naturais,
fatores socioculturais, fatores espaciais, fatores relacionados à infraestrutura, e fatores socioeconômicos.
Seguindo os procedimentos da metodologia MARISCO, várias propriedades relevantes das ameaças, estresses e fatores
contribuintes foram classificados participativamente, utilizando scores discretos, codificados como cores no modelo conceitual.
Estas propriedades incluem: criticalidade atual e futura (avaliada com o auxílio de cenários futuros desenvolvidos durante a oficina), atividade sistêmica, relevância estratégica, conhecimento e gerenciabilidade.
Fase III
Seguindo os procedimentos da metodologia MARISCO, os participantes identificaram as estratégias existentes (coluna
da esquerda na Tabela 1) e classificaram as mesmas através de scores discretos (com valores de 1 a 4) em relação a vários
quesitos, agrupados em duas categorias: factibilidade e impactos. Os quesitos de factibilidade das estratégias são (a) disponibilidade de recursos, (b) nível de aceitação por parte dos atores relevantes, (c) probabilidade de se beneficiar de fatores externos
(especialmente oportunidades), (d) probabilidade de ocorrência de riscos que podem afetar de forma adversa a eficácia da
estratégia, (e) possibilidade e recursos necessários para adaptar a estratégia diante de eventos imprevistos.
Já os quesitos ligados aos impactos das estratégias são (a) probabilidade de geração de conflitos entre atores envolvidos,
que possam afetar a área sob manejo (b) probabilidade de geração de novos riscos que aumentem a vulnerabilidade dos objetos
de conservação, (c) probabilidade de conflitos com outras estratégias implementadas na mesma área, (d) eficácia na redução
de ameaças, (e) probabilidade de sinergias com outras estratégias, (e) contribuição esperada para o aumento da funcionalidade
dos objetos de conservação, (f) nível de arrependimento potencial (probabilidade de que os recursos investidos em uma estratégia não tragam nenhum benefício colateral caso os impactos esperados não sejam atingidos).
A soma dos scores de cada uma das estratégias existentes para cada um dos quesitos acima é mostrada na Tabela 1. As
estratégias com os scores mais altos seriam as mais factíveis e teriam maior probabilidade de gerar impactos positivos, e menor
probabilidade de gerar impactos negativos, criar conflitos, etc.
A seguir, os participantes identificaram as relações sistêmicas (geração de impactos positivos e negativos, e o grau
destes impactos) entre as estratégias existentes e outros elementos do modelo conceitual: fatores contribuintes, ameaças, estres-
02: Sistemas de Gestão e Governança
161
ses e outras estratégias.
No passo seguinte da análise, os participantes identificaram os fatores contribuintes, ameaças e estresses de alta relevância estratégica que não são tratados adequadamente pelas estratégias existentes. Esta análise de “lacunas estratégicas” conduziu os participantes a formularem estratégias complementares (coluna da direita na Tabela 1), que foram classificadas utilizando
os mesmos scores discretos utilizados para as estratégias existentes; os scores totais são também apresentados na Tabela 1.
A relação entre cada uma das estratégias complementares propostas e outros elementos do modelo conceitual foi analisada como descrito anteriormente para as estratégias existentes.
O modelo conceitual complexo construído nos passos anteriores foi então revisado, e foi realizada uma análise espacial
da distribuição dos estresses e ameaças, a fim de visualizar onde cada estratégia deveria ser aplicada de forma a maximizar
a redução de ameaças e/ou restaurar o máximo possível a funcionalidade dos objetos de conservação. Finalmente, os participantes acrescentaram novos itens à visão inicial do manejo, considerando toda a análise realizada desde o início da oficina.
A visão final do manejo da área incluiu o fortalecimento de várias ações e programas estratégicos já presentes no plano de
manejo da RPPN Estação Veracel, e apontou novos objetivos e ações, incluindo (a) a utilização de medidas de adaptação baseada em ecossistemas (SEEHUSEN, 2014) para reduzir a vulnerabilidade e os riscos associados com os cenários projetados de
mudança do clima na região e (b) um maior envolvimento e conscientização da comunidade do entorno na promoção de ações
estratégicas que reduzam as ameaças e estresses que afetam os objetos de conservação da região, incluindo a inclusão de faixas
de vegetação natural nas áreas usadas para agropecuária e silvicultura, incrementando a conectividade entre os remanescentes
florestais, aumentando a permeabilidade da matriz da paisagem, e protegendo os serviços ecossistêmicos.
Os participantes recomendaram também o estabelecimento de um corredor ecológico conectando Santa Cruz Cabrália
ao Parque Nacional do Pau Brasil, como uma forma de tornar mais evidente a necessidade de uma gestão dos ecossistemas naturais da região que em uma escala mais ampla do que a RPPN Estação Veracel e demais unidades de conservação abrangidas
pelo escopo geográfico.
Em conclusão, esta oficina de capacitação mostrou ser plenamente viável a aplicação da metodologia MARISCO em
outras unidades de conservação no Brasil. O caráter participativo, sistêmico e adaptativo do método, e a inclusão explícita de
(a) um escopo geográfico que se estende além dos limites da unidade de conservação em foco, (b) vulnerabilidade e riscos
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
162
associados à mudança do clima e (c) não-conhecimento tornam o MARISCO uma ferramenta versátil e atual, aplicável em uma
grande variedade de situações. Espera-se que em breve seja possível realizar cursos de formação de formadores na aplicação
do método MARISCO, o que permitirá uma replicação mais eficiente da metodologia em diferentes regiões do Brasil.
Agradecimentos
Agradecemos às comunidades locais e colaboradores da RPPN que disponibilizaram seu tempo para serem entrevistados e conversarem com consultores sobre a região em que habitam. Somos também gratos a todos os participantes da oficina
de capacitação que contribuíram ativamente e de forma inspiradora durante todos os procedimentos, resultando no sucesso
da primeira oficina do método MARISCO no Brasil. O presente trabalho foi desenvolvido no âmbito do projeto Biodiversidade e
Mudanças Climáticas na Mata Atlântica. O projeto é uma realização do governo brasileiro, coordenado pelo Ministério do Meio
Ambiente (MMA), no contexto da Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável Brasil-Alemanha, no âmbito da Iniciativa Internacional de Proteção do Clima (IKI) do Ministério Federal do Meio Ambiente, Proteção da Natureza, Construção e Segurança
Nuclear (BMUB) da Alemanha. O projeto conta com apoio técnico da Deutsche Gesellschaft fur Internationale Zusammenarbeit
(GIZ) GmbH e apoio financeiro do KfW Banco de Fomento Alemão.
Referências
CARVALHO, G. M. Influência de processos estocásticos sobre a estruturação de comunidades em floresta de tabuleiros, Bahia, Brasil. 2011. 61f. Dissertação (Mestrado em Ecologia e Conservação da Biodiversidade) - Universidade Estadual
de Santa Cruz, Ilhéus, 2011.
CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL. Plano de Manejo: Reserva Particular do Patrimônio Natural Estação Veracel. Porto Seguro, 2007. 308 p.
FALCÃO, F.C.; GUANAES, D. H. A.; PAGLIA, A. “Medium and large-sized mammals of RPPN Estação Veracel, southernmost
Bahia, Brazil.” Check List, v.8, n.5, p. 929-934, 2012.
FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA; INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS. Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica: período 2013-2014. Relatório Técnico. São Paulo, 2015, 60 p.
GALINDO-LEAL, C; CÂMARA, I. G. Atlantic forest hotspot status: an overview. In: GALINDO-LEAL, C., Câmara, I. G. (Org.), The
Atlantic Forest of South America: biodiversity status, threats, and outlook. Island Press, Washington, DC, p. 3–11, 2003.
IBISCH, P.L., VEGA, A. E.; HERRMANN, T.M. (Org.). Interdependence of biodiversity and development under global
change. Secretariat of the Convention on Biological Diversity, Technical Series n. 54, Montreal (second corrected edition), 2010.
228p.
IBISCH, P. L.; HOBSON, P. R. (Org.). MARISCO. Adaptive MAnagement of vulnerability and RISk at COnservation sites.
A guidebook for risk-robust, adaptive and ecosystem-based conservation of biodiversity. Centre for Econics and Ecosystem Management, Eberswalde, 2014. 190 pp.
ICMBio (2009). Portaria Nº 38, DE 14/5/2009. Aprovação do Plano de Manejo da RPPN Estação Veracel.
PIMENTA, B.V.S., NUNES, I. & CRUZ, C.A.G. Notes on the poorly known phyllomedusine frog Hylomantis aspera Peters, 1872
(Anura, Hylidae). South Am. J. of Herpetol. v.2, n.3, p.206-214, 2007.
RIBEIRO, M. C.; METZGER, J. P.; MARTENSEN, A. C.; PONZONI, F.J.; HIROTA, M. M.. The Brazilian Atlantic Forest: how much
is left, and how is the remaining forest distributed? Implications for conservation. Biol. Conserv., v. 142, n. 6, p. 1141–1153, 2009.
RIBEIRO, M. C.; MARTENSEN, A. C.; METZGER, J. P.; TABARELLI, M.; SCARANO, F.; FORTIN, M.-J. The Brazilian Atlantic Forest: A Shrinking Biodiversity Hotspot. In: ZACHOS, F. E.; HABEL, J. C. (Org.). Biodiversity Hotspots: Distribution and Protection of Conservation Priority Areas, Springer-Verlag, Berlin e Heidelberg, 2011, p. 405-436.
02: Sistemas de Gestão e Governança
163
SCHIAVETTI, A.; MAGRO, T.C; SANTOS, M.S. Implementação das unidades de conservação do Corredor Central da Mata
Atlântica no Estado da Bahia: desafios e limites. Revista Árvore, Viçosa-MG, v.36, n.4, p.611-623, 2012.
SEEHUSEN, S. E. Serviços ecossistêmicos e áreas protegidas. In: BENSUSAN, N., PRATES, A.P. (Org.). A diversidade cabe na
unidade? Áreas protegidas no Brasil. Brasília, IEB. p. 436-451, 2014.
TABARELLI, M.; PINTO, L. P.; SILVA, J. M. C.; HIROTA, M.; BEDE, L. Challenges and opportunities for biodiversity conservation
in the Brazilian Atlantic forest. Conserv Biol., v. 19, n. 3, p. 695–700, 2005.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
164
03
1.
Desafios do desenvolvimento
e respostas da sociedade
Este eixo temático está voltado para as
discussões sobre os limites do
desenvolvimento, pressões e ameaças de
atividades impactantes sobre as
realidades locais; abordagens e experiências
de ecodesenvolvimento e ordenamento
territorial incluindo a gestão integrada,
mosaicos, corredores, planos diretores e
planos de manejo; conservação e gestão
marinho-costeira; atividades econômicas
sustentáveis; papel do setor privado nas
paisagens protegidas; e experiências
relacionadas a cenários conciliatórios e
propositivos para a resolução de conflitos.
IMPACTOS SOCIOECOLÓGICOS E ECOFORMAÇÃO EM AMBIENTES
PROTEGIDOS: O CASO DA COMUNIDADE DA BARRA DO TORNEIRO,
JAGUARUNA, SANTA CATARINA
Munari, Amanda Bellettini1,2 & Menezes, Carlyle Torres Bezerra de2,3
1. Mestranda do PPG em Ciências Ambientais, [email protected] 2. Universidade do Extremo Sul Catarinense/Laboratório
de Gestão Integrada de Ambientes Costeiros – LABGIAC; 3. PPG Ciências Ambientais
Resumo
A zona costeira brasileira tem enfrentado, nos últimos anos, um constante processo de degradação ambiental devido à ocupação
desordenada, com a destruição dos ecossistemas naturais e a perda da biodiversidade, dentre outros impactos ambientais. Este
trabalho buscou realizar um diagnóstico socioambiental na localidade de Barra do Torneiro, Jaguaruna, SC, com vistas à construção de instrumentos de gestão pública ambiental. Essa comunidade situa-se na interface entre a Área de Proteção Ambiental
da Baleia Franca e o estuário da Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga. Constatou-se que a área pesquisada encontra-se em um
estado de degradação bastante acentuado, tanto devido à poluição dos recursos hídricos, quanto pela ocupação desordenada
do território, e pelo desconhecimento por parte da comunidade do papel a ser exercido pela sociedade local na gestão do seu
território.
Palavras-chave: Unidades de Conservação, Gestão de Ambientes Costeiros, Qualidade de Vida.
Introdução
A zona costeira brasileira tem enfrentado nos últimos anos um constante processo de degradação ambiental, sobretudo
devido à ameaça de ocupação desordenada e sem planejamento, com a destruição dos ecossistemas naturais e a perda da
biodiversidade e qualidade de vida.
Criada no sentido de buscar conciliar visões muito distintas sobre áreas protegidas, a Lei nº 9.985 de 2000 significou
um avanço importante na construção de um sistema efetivo de áreas protegidas no país. Ela instituiu o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, e estabeleceu critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação (BRASIL, 2000a). O processo de elaboração e negociação desse Sistema durou mais de dez anos e gerou
amplos debates no contexto do movimento ambiental até a sua aprovação. Inserido no contexto de instrumentos regulatórios
territoriais, no entanto, ele caracteriza-se por se constituir em um avanço no que diz respeito às possibilidades abertas para uma
efetiva participação da sociedade na gestão dos recursos comuns, e repousa no uso responsável e na igualdade de acesso aos
recursos naturais por meio da participação efetiva da sociedade na gestão publica ambiental.
Em cada unidade de conservação são estabelecidas normas, dependendo da categoria da UC, limitando ou proibindo
a implantação atividades que ameacem extinguir na área protegida as espécies raras da biota regional, dentre outros aspectos.
Conforme definição estabelecida nesta lei (BRASIL, 2000a) a “Unidade de Conservação é o espaço territorial e seus
recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder
Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias
adequadas de proteção” (Art. 2º, Inciso I). Elas são definidas em duas categorias, aquelas de proteção integral, a exemplo dos
parques nacionais e reservas biológicas, e as de uso sustentável, a exemplo das reservas extrativistas e as área de proteção ambiental – APA, que será objeto do enfoque principal deste trabalho. Esse estudo buscou identificar e compreender os processos
de mobilização e participação de uma comunidade originalmente formada por pescadores artesanais, que no momento passa
por um rápido processo de desagregação e perda de identidade em função do atual processo socioeconômico de ocupação do
seu território.
No caso da área delimitada para a pesquisa, a comunidade da Barra do Torneiro, situada no município de Jaguaruna, possui também a particularidade de estar localizada na região do estuário da Bacia do Rio Urussanga, um recurso hídrico bastante
degradado por diversas atividades industriais, principalmente pela atividade de mineração de carvão, que causou ao longo de
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
167
muitos anos severos impactos ambientais na região.
Além destes impactos pela mineração e, a perda de identidade e desagregação de seu território a comunidade vivencia
um grande conflito, a revolta contra a APA da Baleia Franca e os Órgãos Públicos, em razão da extração de conchas calcárias e
ocupação desordenada na localidade, fato este relatado no primeiro contato com a comunidade por lideranças locais.
Este aspecto foi considerado relevante neste trabalho, por se constituir em outro importante desafio socioecologico,
considerando que a região estuarina onde está inserida a comunidade da Barra do Torneiro, encontra-se tanto no interior de
uma unidade de conservação, a APA da Baleia Franca, quanto faz parte da Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga, o que enseja e
justifica os esforços para a integração desses dois espaços no sentido de consolidar ações para a gestão integrada e participativa
dos recursos comuns.
No contexto das diretrizes e instrumentos previstos na gestão das áreas de proteção ambiental, está a sua gestão por meio
de um conselho a ser constituído de forma paritária por representantes dos vários segmentos da sociedade e a elaboração do
seu Plano de Manejo, onde serão definidos os critérios e condições de uso dos recursos naturais, que deve representar a concepção básica da construção coletiva de um zoneamento ecológico-econômico. Conforme disposto no art. 3º da Lei 9.433/1997
da Política e Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos (BRASIL, 1997), deve haver integração entre a gestão
das bacias hidrográficas e a gestão dos ecossistemas estuarinos e zonas costeiras.
A importância dessa integração deve-se à influência que os recursos hídricos exercem sobre a qualidade da zona costeira, sobretudo no que se refere ao transporte de sedimentos, poluentes e o regime de circulação, entre outros aspectos, o que
deverá ser também objeto de planejamento e gestão tanto no âmbito do comitê gestor dessa bacia hidrográfica, quanto do plano
de manejo em fase de discussão e elaboração por parte do Conselho Gestor da APA da Baleia Franca.
Neste estudo buscou-se, primeiramente, realizar um diagnóstico socioambiental preliminar, no sentido de obter informações tanto a partir de dados secundários, sobre as características principais da localidade da Barra do Torneiro, situada no
estuário do Rio Urussanga, e a partir dessas informações selecionar metodologias participativas e instrumentos de pesquisa
voltados à construção coletiva de um diagnóstico participativo.
Foi realizado um reconhecimento expedito preliminar das condições ambientais e características básicas do estuário
do Rio Urussanga, com a realização de uma campanha de coleta de dados do meio físico onde está inserida a comunidade,
utilizando em um primeiro momento a coleta de dados da qualidade da água e sedimento aquático, de maneira a identificar as
condições atuais da qualidade ambiental.
O enfoque teórico utilizado teve como referência os instrumentos de pesquisa (ação) formação, com base nos fundamentos necessárias á construção de políticas públicas ambientais e a metodologia DRP- Diagnóstico Rural Participativo, procurando
dar continuidade nos estudos realizado nesta comunidade formada em parte por pescadores artesanais (VOLPATO; FIGUEIREDO; MENEZES, 2011; VERDEJO, 2006). Com base neste diagnóstico preliminar, buscou-se identificar e selecionar metodologias
para o processo de criação de um programa de capacitação comunitária participativa, na perspectiva do ecodesenvolvimento
territorial, procurando resgatar o papel da universidade na construção de processos de gestão pública participativa, e o empoderamento da sociedade local.
Neste contexto buscou-se registrar os procedimentos e socializar os resultados obtidos, com a divulgação dos resultados,
de maneira que eles possam servir de subsidio, tanto na elaboração do plano de manejo no âmbito da APA da Baleia Franca,
quanto na gestão dos recursos hídricos no âmbito do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga, e de forma integrada com
o plano diretor municipal e o projeto Orla, que encontra-se em fase de construção no município de Jaguaruna. Esses objetivos
estariam desta forma, em consonância com promoção do desenvolvimento de capacidades coletivas e individuais na busca da
participação da comunidade na gestão do uso dos recursos naturais e nas decisões que afetam a qualidade de vida do ambiente,
seja ele físico-cultural ou construído (LIMONT et al., 2008).
Área de Estudo
A área delimitada para a construção deste trabalho está localizada no litoral do Estado de Santa Catarina, como pode ser
observado na Figura 1.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
168
Figura 1. Área de abrangência da Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca. Fonte: ICMBIO, (2014).
No caso da APA da Baleia Franca, a unidade de conservação foi criada em 2000, por um Decreto s/n° (BRASIL, 2000b),
com intuito de proteger a espécie Baleia Franca Austral (Eubalaena australis) que vem para o litoral sul do país para reproduzir.
Este tem por objetivo a aplicação de normas de conduta e manejo das atividades humanas a fim de preservar os recursos naturais e a qualidade de vida das comunidades.
A APA da Baleia Franca situa-se entre Florianópolis até Balneário Rincão, abrangendo nove municípios e, assim, abrigando a comunidade da Barra do Torneiro, tornando a comunidade parte da unidade de conservação e tendo por consequência
um regime especial de administração e aplicabilidade de garantias adequadas de proteção.
Resultados e Discussão
A comunidade de Barra do Torneiro está situada no estuário do Rio Urussanga, e está inserida em uma Unidade de Conservação, a APA da Baleia Franca. Esta região estuarina da Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga tem sido objeto de estudos com
vistas à realização de um diagnóstico ambiental, onde entre os vários estudos, foram realizadas amostragens para diagnosticar a
qualidade da água utilizada pela comunidade como fonte de abastecimento e renda (VOLPATO, 2013; SCHNACK, 2013).
No ano de 2014 foram realizadas As análises físico-químicas foram realizadas pelo IPARQUE no âmbito do projeto PIC
170/GP UNESC no contexto de um trabalho de conclusão de curso (MUNARI, 2014), juntamente com o reconhecimento e levantamento expedito das condições ambientais do estuário do Rio Urussanga, onde está inserida a comunidade de Barra do
Torneiro. Constatou-se que há uma concentração acentuada de algumas substâncias potencialmente nocivas dependendo da
sua concentração, tais como ferro, manganês e zinco, oriundas predominantemente dos movimentos lóticos e do processo de
descarte dos poluentes pela atividade extrativista de mineração de carvão.
Observou-se ainda, a diminuição de concentração de algumas substâncias, na coleta em uma ponte da comunidade,
devido a dissolução dos poluentes ao decorrer do rio, e o pH não teve mudança significativa em relação a outro ponto coletado,
sendo este a 50m da foz do rio; porém, a diferença é acentuada a 50 metros da confluência do Rio Carvão com o Rio Maior, local
este que recebe a maior carga de poluentes, onde se teve um nível de acidez crítico.
Tendo em vista os resultados obtidos através das análises, a comunidade é considerada impactada, considerando os
resultados obtidos para os parâmetros analisados, e que tem origem no transporte de poluentes gerados ao longo da Bacia
Hidrográfica que deságuam na região estuarina. As fontes principais dessa acentuada poluição são as atividades de lavra e
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
169
beneficiamento de carvão, ocorridas mais intensamente no passado, que no entanto, ainda hoje apresenta um grave passivo
ambiental na região formada pelos principais afluentes formadores da Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga, tais como o Rio
Carvão, Rio Deserto e Rio América, que encontram-se bastante poluídos devido aos rejeitos sólidos e efluentes ácidos oriundos
das atividades de mineração de carvão mineral.
As empresas mineradoras, durante muito tempo, descartaram as águas ácidas de mina no leito do rio e, devido à existência de áreas de passivos ambientais não recuperados, os resíduos e a drenagem ácida não tratada acabam por contaminar
grande parte da Bacia Hidrográfica. Consequentemente, a comunidade de Barra do Torneiro que se encontra à jusante, recebe
toda a carga poluidora proveniente desta atividade, pois está localizada às margens do rio Urussanga, no seu próprio estuário,
na divisa entre os municípios de Jaguaruna e Balneário Rincão.
Além da atividade de extração do minério, pode-se observar que o estuário recebe também carga de poluentes domésticos decorrentes do crescimento populacional, principalmente no verão, e ocupação urbana desordenada derivada da falta de
planejamento e de saneamento público ambiental na localidade. Há ainda várias outras atividades potencialmente poluidoras,
tais como as atividades de rizicultura com uso intensivo de agrotóxicos que resultam na contaminação do solo e os recursos
hídricos, além da extração de areia, que muitas vezes é realizada de forma inadequada ambientalmente.
Isto tudo, se deve, em grande parte, à deficiência na percepção e sensibilização de parte da comunidade sobre os
impactos socioambientais das atividades econômicas, além da deficiência na infraestrutura e de pessoal para a fiscalização e
controle por parte dos órgãos públicos, e conforme muito relatado em depoimentos de representantes da comunidade (VOLPATO; FIGUEIREDO; MENEZES, 2011), devido ao descaso de algumas instituições governamentais, que não tem cumprido o
seu papel no que diz respeito à adoção de políticas públicas para melhoria da qualidade de vida da comunidade, em todas as
suas dimensões.
A partir de pesquisa bibliográfica e conversas com lideranças da comunidade, bem como atas da reunião do Conselho Gestor da APA da Baleia Franca, identificou-se vários conflitos socioambientais nesta região, dentre os quais a questão
da proposição por parte de uma empresa mineradora para a extração de conchas calcárias no interior da Lagoa do Camacho,
situada no município de Jaguaruna e no interior desta unidade de conservação.
Ao longo dos debates que se seguiram na câmara técnica (CT) do Conselho Gestor da APA da Baleia Franca, e nas reuniões plenárias abertas a toda à sociedade, esse conflito ficou bastante aguçado. Representantes da comunidade e a maioria
dos conselheiros se colocaram contra essa atividade de mineração no interior da lagoa, e representante da empresa mineradora
e alguns moradores com visível interesse nesta atividade defendiam a sua realização neste local. A justificativa por parte desses
últimos seria que, a empresa mineradora ajudaria os pescadores no desassoreamento da lagoa do Camacho, abrindo o acesso
da lagoa ao mar. No entanto, os estudos realizados pela CT, com participação dos diversos seguimentos da sociedade local,
sobre as atividades e técnicas a serem utilizadas previstas no Projeto de Lavra e no EIA-RIMA, juntamente com o conhecimento
e o saber das populações locais de pescadores artesanais, apontaram para os riscos socioecológicos desta atividade, caso ela
fosse autorizada pelos órgãos ambientais com a anuência do CONAPA da Baleia Franca. Dentre estes riscos, a remoção dos
sedimentos de fundo da lagoa e os danos que poderia na biota aquática, em todos os seus níveis tróficos, considerando inclusive
em sua base as comunidades planctônicas.
Neste sentido, foi alertado o problema de dependência dos pescadores para com a empresa mineradora, que utilizou a
questão da abertura da Barra do Camacho como moeda de troca, no caso para o apoio de sua atividade de extração de conchas
no interior da lagoa, onde a empresa manteria a Barra do Camacho aberta, quando esta atribuição seria do poder público, a
abertura da barra atendendo a uma demanda dos pescadores, sem levar em consideração os riscos da possível inviabilidade na
atividade pesqueira no futuro, devido à perda da biodiversidade como conseqüência da alteração na base da cadeia alimentar,
dentre as suas causas, em função da remoção dos sedimentos aquáticos e a destruição das comunidades planctônicas.
Em audiência pública realizada para a apreciação do EIA-RIMA elaborado pela a empresa mineradora, que contou com
a participação de representantes de toda a sociedade local, o Conselho Gestor da APA da Baleia Franca se posicionou contra a
realização da atividade, diante dos riscos da degradação provinda da extração de conchas e o comprometimento das atividades
pesqueiras e da própria condição ambiental da lagoa após a realização da atividade de extração mineral.
Posteriormente as divergências surgidas neste processo de discussão gerou um conflito que se estendeu para além das
sessões do CONAPA da Baleia Franca, opondo localmente opositores e defensores desta atividade, e fez com que parte das pes-
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
170
soas que apoiavam a empresa mineradora passasse a se colocar contra a própria existência desta unidade de conservação, não
reconhecendo a importância do seu papel para a proteção e gestão dos recursos naturais da região. E, neste contexto, desconsiderando inclusive um dos seus objetivos na condição de uma unidade de conservação de uso sustentável, que é o de buscar
harmonizar a proteção ambiental com a realização de atividades econômicas no interior do seu território.
Esse primeiro grande conflito que ocorreu no início do processo de formação do Conselho Gestor da APA da Baleia
Franca, sobretudo no período de 2005 a 2010, foi seguido por outros conflitos no interior do seu território, tais como aqueles
resultantes da proposição para a criação de uma Reserva Extrativista (RESEX) para a pesca artesanal na região do Cabo de
Santa Marta em Laguna, e para a criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) na região localizada entre os
municípios de Imbituba e Garopaba.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que esta pesquisa constatou a existência do aumento do número de conflitos relacionados com o processo de criação da APA da Baleia Franca, notadamente no período inicial de constituição e consolidação
do Conselho Gestor, simultaneamente estava ocorrendo um processo gradual de fortalecimento das instâncias democráticas
de decisão e o empoderamento dos conselheiros. Neste processo, deve-se destacar a importante contribuição de um núcleo
de professores e acadêmicos vinculados ao Núcleo Transdisciplinar de Desenvolvimento e Meio Ambiente (NMD), da UFSC,
coordenado pelo prof. Paulo Freire Vieira, por meio dos processos de pesquisa (ação) formação, com a capacitação comunitária
e ecoformação.
Desta forma, neste processo de avanços e retrocessos em termos de sensibilização para as questões socioecológicas,
várias instituições conselheiras representantes da sociedade local se constituíram como parte atuante na condição de protagonistas e atores locais, onde os vários conflitos que afloraram foram sobretudo, decorrentes das diversas formas de apropriação e
uso dos recursos naturais, com implicações na geração de emprego e renda, entre elas as atividades de pesca, turismo, mineração e uso do território por meio da especulação imobiliária e da urbanização sem a construção de políticas públicas articuladas
e consistentes.
Neste contexto, a pressão resultante contra as ações realizadas com vistas à consolidação do Conselho Gestor da APA
da Baleia Franca foi resultante em grande parte, devido aos interesses políticos e econômicos contrários, tais como do setor
imobiliário, da mineração e da pesca industrial. Também deve-se creditar à esta dificuldade para a sua consolidação, à falta de
conhecimento por parte da comunidade no que diz respeito aos objetivos de criação de uma unidade de conservação de uso
sustentável, e do papel a ser exercido de forma participativa e cidadã por todos aqueles que fazem parte deste território especialmente protegido.
Considerando assim a fragilidade no que diz respeito à carência de conhecimento da população local quantos aos seus
direitos e deveres na gestão dos recursos comuns, parte da comunidade pode ser influenciada por informações distorcidas
disseminadas por aqueles que possuíam interesses estritamente econômicos sem uma visão de longo prazo na perspectiva de
outro modelo de desenvolvimento, que leve em consideração o uso de forma justa e prudente dos recursos comuns, tal como
proposta no processo de ecodesenvolvimento territorial solidário. No contexto da busca de alternativas ao atual modelo de
desenvolvimento atualmente hegemônico no sistema capitalista, a concepção do ecodesenvolvimento territorial aponta na perspectiva do planejamento e gestão de forma compartilhada, tendo como enfoque a participação da sociedade local, na condição
de protagonista das mudanças realizadas na perspectiva da gestão dos recursos naturais de forma justa, equitativa e solidária,
buscando construir um modelo de território sustentável sob as dimensões ecológica, social, política, econômica, ética e cultural
(SACHS, 1993).
Para uma melhor compreensão deste novo modelo de desenvolvimento, as instituições de ensino, dentre as quais se
destacam as universidades, são diretamente interpeladas e solicitadas a oferecerem sua contribuição ao fomento do bem-estar
das populações que vivem em seu entorno. Nessa perspectiva, estas assumem novas funções, que se materializam na forma de
serviços à coletividade ou à comunidade (TREMBLAY; VIEIRA, 2011).
Além de um compartilhamento, de uma visão sistêmica do mundo, de uma ética ecológica e do reconhecimento da
importância do diálogo de saberes nos espaços de planejamento e gestão, as estratégias integrativas conduzidas neste nível
refletem a adoção de um ponto de vista essencialmente operacional-pragmático. Elas retiram os pesquisadores de suas “torres
de marfim”, envolvendo-os ativamente no atendimento de demandas sociais urgentes, associadas à construção de saídas viáveis
para os atuais dilemas da civilização industrial-tecnológica (VIEIRA et al., 2010).
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
171
Os aspectos essenciais desta nova linha de reflexão – universidade/sociedade - contribuíram neste estudo de caso, na
perspectiva de possibilitar uma maior compreensão acerca das necessidades destes grupos sociais que compartilham o seu
território com instituições de ensino e pesquisa da região.
As comunidades colocam-se em evidência devido ao seu modo de produção autônomo (fortalecimento da capacidade
auto-organizadora de indivíduos, grupos e comunidades na busca de satisfação de suas necessidades básicas – materiais e
intangíveis) e heterônomo (fortalecimento do controle da gestão do patrimônio natural e dos serviços coletivos) (VIEIRA, 2011).
Neste contexto, emerge também o conceito de Racionalidade ambiental, diante da necessidade da construção de forma compartilhada de estratégias para a articulação das condições que estabeleçam novas relações e padrões de produção e consumo, por
meio de processos ecológicos, tecnológicos e culturais, com base em condições de sustentabilidade (LEFF, 2007).
A participação da universidade através dos pesquisadores como cidadãos bem informados, dotados de julgamento
crítico e cada vez mais capaz de negociar construtivamente significações, intenções e valores com outros atores munidos de
diferentes visões de mundo, motivações e experiências de relacionamento com o meio ambiente pode ser projeto de uma nova
sociedade baseada na preservação dos recursos naturais (VIEIRA, 2011). Sachs (1986), diz que é “em casa” que se constrói um
mundo aceitável para as gerações de hoje e de amanhã, compromissado com a eficiência econômica, a justiça social e a preservação dos serviços ecossistêmicos vitais.
Além disso, percebeu-se outro grande problema na pesquisa, que foi à deficiência no acesso ao conhecimento e o
domínio dos fundamentos básicos da legislação ambiental por parte da comunidade local. O acesso às informações relacionadas às questões ambientais e a construção do conhecimento de forma compartilhada são fundamentais para a resolução dos
conflitos vivenciados pela população local.
A capacitação da comunidade através de oficinas educativas baseadas em metodologias participativas seria de grande
utilidade para a compreensão e entendimento da comunidade quanto aos objetivos e estrutura organizacional de conselhos gestores de unidades de conservação, na perspectiva da gestão dos recursos naturais de forma compartilhada e solidária.
Neste sentido, a capacitação de lideranças locais com vistas a sua participação no processo de elaboração do plano de
manejo da APA da Baleia Franca constitui-se em um importante fator de inserção da comunidade no processo de gestão participativa dos recursos comuns, na perspectiva do ecodesenvolvimento territorial. Esse processo poderá ser conduzido por meio da
integração e do somatório dos esforços coordenados pelo Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga em articulação com
os esforços que vêm sendo realizado no contexto do processo de fortalecimento e consolidação do CONAPA da Baleia Franca.
Conclusão
Levando em consideração os resultados obtidos no presente trabalho, os dados preliminares obtidos no diagnóstico ambiental confirmaram a existência de carga de poluentes oriundos da atividade extrativista de mineração, bem como seu depósito
no sistema estuarino e consequentemente no ambiente marinho-costeiro. Dentre vários aspectos a serem melhor aprofundados,
alguns deles poderão contribuir para a reversão do atual processo de degradação da localidade pesquisada e que estão apresentadas a seguir:
a) A construção de espaços de ecoformação de maneira articulada entre as instancias já constituídas no território onde está inserida a comunidade da Barra do Torneiro, dentre as quais o Comitê
Gestor da Bacia do Rio Urussanga e o Conselho Gestor da APA da Baleia Franca, com a participação da universidade local no sentido entre capacitação da comunidade de promover a construção
de políticas públicas socioambientais para a gestão dos recursos naturais;
b) O acesso da comunidade ao conhecimento da legislação ambiental vigente, com vistas a uma
melhor compreensão dos processos de fiscalização e controle, dentre os quais os processos de
licenciamento por parte dos órgãos públicos, a obtenção dos alvarás e licenças para construção
de habitação;
c) A criação de espaços para a construção e socialização do através do conhecimento técnico - cientifico produzido pelas universidades na região, de forma compartilhada com os saberes das populações tradicionais, dentre eles os pescadores artesanais, possibilitando entre outros aspectos, dar suporte no processo iniciado de elaboração do Plano de Manejo da APA da Baleia Franca, bem como nos
processos de planejamento e gestão no contexto do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga;
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
172
d) A maior disponibilidade de espaços de socialização e apropriação do conhecimento por parte
da comunidade, na forma de oficinas de capacitação, com o uso de metodologias participativas,
possibilitando uma maior segurança e domínio de informação em audiências públicas e reuniões,
possibilitando uma maior compreensão sobre as atividades desenvolvidas nos processos de
gestão ambiental por parte da APA da Baleia Franca.
A comunidade atualmente encontra-se em processo de construção de um sistema de gestão ambiental, na busca da
reversão do atual processo de degradação, tendo sido iniciado um processo de regularização de habitações e atividades extrativistas, e neste contexto seria de fundamental importância tanto à apropriação por parte da comunidade local, do conhecimento
da importância de sua participação no processo de gestão pública ambiental de unidades de conservação, bem como nos
processo de gestão dos recursos hídricos em comitês de bacias hidrográficas. Estes dois últimos aspectos devem-se ao caráter
especial da localização da comunidade pesquisada, por ela estar situada ao mesmo tempo no interior do território da APA da
Baleia Franca, e no estuário da Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga, portanto, em uma região com características ecossistêmicas importantes.
Por fim, agradecemos a UNESC por todo o suporte em termos de recursos financeiros provenientes de projeto aprovado
no edital de fomento à consolidação de grupos de pesquisa interno, o GP UNESC (2014-2016), e ao Projeto Pró-Stricto do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais - PPGCA/UNESC, bem como aos moradores da localidade da Barra do Torneiro que deram todo o apoio na disponibilização de barcos para as coletas de água e sedimento na região do estuário.
Referências
BRASIL. Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o
Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/l9985.htm >. Acesso em 03 julho 2015.
BRASIL. Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001,
de 13 de março de 1990, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/L9433.htm>. Acesso em 05 julho 2015.
BRASIL. Decreto s/n, de 14 de setembro de 2000. Dispõe Sobre a Criação da Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca, no
Estado de Santa Catarina, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/DNN/2000/Dnn9027.
htm >. Acesso em 03 julho 2015.
LEFF, E. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
LIMONT, M. et al. Educação no processo de gestão pública: concepção e prática educativa na capacitação em gestão participativa de unidades de conservação no domínio sul da Mata Atlântica. In: IV ENCONTRO NACIONAL DA ANPPAS, 4., 2008, Brasília.
Anais... Brasília: ANPPAS, 2008.
MUNARI, A. B. Diagnóstico socioambiental participativo no contexto do ecodesenvolvimento territorial: estudo de
caso da comunidade de Barra do Torneiro, Jaguaruna, Santa Catarina. 2014. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Engenharia Ambiental) Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2014.
SACHS, I. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. São Paulo: Vértice, 1986.
SACHS, I. Estratégias de transição para o século XXI. In: BURSZTYN, M. (Org.), Para pensar o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Brasiliense, 1993.
SCHNACK, C. E. Análise integrada da qualidade do ecossistema aquático do estuário da bacia hidrográfica do Rio
Urussanga, Santa Catarina. 2013. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais) Programa de Pós-Graduação em Ciências
Ambientais, Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2013.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
173
TREMBLAY, G.; VIEIRA, P.F. (Orgs.). O papel da universidade no desenvolvimento local: experiências brasileiras e
canadenses. Florianópolis: APED/Secco, 2011.
VERDEJO, M. Diagnóstico Rural Participativo: Um guia prático. Brasília: MDA, 2006.
VIEIRA, P.; CAZELLA, A.; CERDAN, C.; CARRIÈRE, J.P. (Orgs.) Desenvolvimento territorial sustentável no Brasil. Subsídios
para uma política de fomento. Florianópolis: APED/Secco, 2010.
VIEIRA, P.F. Pesquisa-ação-formação em Regiões-laboratório de Desenvolvimento Territorial Sustentável: a experiência do Núcleo Transdisciplinar de Meio Ambiente & Desenvolvimento da Universidade Federal de Santa Catarina. In: TREMBLAY, G.;
VIEIRA, P.F. (Orgs.). O Papel das Universidades no Desenvolvimento Local: Experiências Brasileiras e Canadenses.
Florianópolis: APED/Secco, 2011. 288p.
VOLPATO, S. B. Recuperação ambiental de ecossistemas aquáticos em regiões estuarinas: estudos aplicados para o
tratamento e disposição de sedimentos contaminados pela drenagem ácida de mina na Bacia Hidrográfica do Rio
Urussanga, Santa Catarina. 2013. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais) Programa de Pós-Graduação em Ciências
Ambientais, Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2013.
VOLPATO, S.; FIGUEIREDO, J. V.; MENEZES, C. T. B. Relatório Final: Diagnóstico Socioambiental de Áreas Degradadas
pela Mineração de Carvão para a Gestão Integrada de Bacias Hidrográficas e Unidades de Conservação: Aplicação
na Interface Formada pela Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca e a Bacia Hidrografica do Rio Urussanga.
Projeto. Disponível em: <https://www.jfsc.jus.br/acpdocarvao/2011/GTA-Estudo-do-Papel-dos-Sedimentos/GTA-Estudo-do-Papel-dos-Sedimentos-pdf-Relatorio-Final-MPF.htm>. Acesso em 10 julho 2015.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
174
O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO NA PROMOÇÃO DO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL EM GAROPABA (SC)
Costa, Viegas Fernandes da1 & Reis, Clóvis2
1. Professor de História do IF-SC e Mestrando em Desenvolvimento Regional (PPGDR/FURB), [email protected];
2. Doutor em Comunicação. Professor do PPG em Desenvolvimento Regional (PPGDR/FURB).
Resumo
O artigo propõe o debate a respeito dos vestígios arqueológicos pré-coloniais remanescentes no município de Garopaba (SC),
que integra a APA da Baleia Franca, e suas possibilidades na promoção do desenvolvimento sustentável por meio do turismo
arqueológico. A partir de uma discussão teórica das dimensões política, ideológica e econômica dos processos de patrimonialização, e do entendimento das dimensões do desenvolvimento sustentável apresentadas por Sachs, compreende-se o patrimônio
cultural (e, por extensão, o arqueológico) enquanto componente fundamental para uma perspectiva de desenvolvimento que não
seja teleológica e economicista. É neste sentido que se apresenta a proposta do turismo arqueológico, potencialmente capaz de
contribuir para alternativas de trabalho e renda e para a proteção e preservação dos sítios arqueológicos existentes na região.
Palavras-Chave: Desenvolvimento Sustentável, Turismo Arqueológico, Patrimônio Arqueológico Pré-Colonial
Introdução
O objetivo deste trabalho é debater as possibilidades que os vestígios pré-coloniais apresentam para a promoção do
desenvolvimento sustentável no município de Garopaba, que integra a Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca.
A APA da Baleia Franca foi instituída através de Decreto assinado pela Presidência da República em 14 de setembro
de 2000. Abrange uma área de 156 mil hectares do litoral centro-sul de Santa Catarina, com uma extensão de 130 quilômetros
e envolvendo 9 municípios (do sul de Florianópolis a Balneário Rincão). Desta área, 80% é marinha e 20% costeira. Sua gestão
está sob responsabilidade do ICMBio, e conta com um Conselho Gestor (CONAPA) que congrega os diferentes atores do território. O propósito principal da APA é a preservação da Eubalaena australis, que utiliza esta faixa do litoral brasileiro para a sua
reprodução. Dentre o corpo de objetivos que buscam garantir a sustentabilidade do território está o de ordenar o uso turístico
e recreativo da região, a ser contemplado no Plano de Manejo, cuja elaboração está na fase da caracterização e diagnóstico
(ICMBIO, 2015).
Em 2015 o SEBRAE apresentou para a região o Projeto de Fortalecimento do Ecoturismo de Observação de Baleias,
para o qual foi organizado um comitê gestor que reúne diferentes atores territoriais. O projeto propõe articular os municípios de
Garopaba, Imbituba e Laguna em uma perspectiva de planejamento regionalizado do turismo, e tem como principal objetivo
posicionar a região da APA da Baleia Franca, até o ano de 2017, como destino turístico de excelência no segmento de ecoturismo,
obtendo a primeira indicação geográfica de turismo no Brasil1. Entre seus conceitos norteadores está o envolvimento dos atores
locais no desenvolvimento territorial, o que o coloca em diálogo com os propósitos da APA da Baleia Franca, e com as possibilidades de uma nova perspectiva para o turismo na região, até este momento centrado no estímulo ao turismo de massa.
Dos três municípios envolvidos no projeto do SEBRAE para a APA, Garopaba apresenta a maior dependência econômica
ao turismo, especialmente o de verão. Esta característica leva a população local a viver de empregos informais e concentrados
principalmente na temporada turística (dezembro a março). Essa sazonalidade implica em uma série de passivos ambientais,
sociais e urbanos.
Considerando os debates travados no contexto da APA da Baleia Franca, principalmente naquilo que diz respeito ao
planejamento de um turismo sustentável, tendo a observação de cetáceos como seu principal atrativo, torna-se oportuno considerar também o patrimônio arqueológico da região, especialmente no município de Garopaba, que apresenta grande diversidade
de sítios arqueológicos. Neste sentido, este trabalho discute o turismo arqueológico como estratégia potencialmente capaz de
1
Conforme apresentado pelo consultor Rafael Freytag ao Comitê Gestor do Projeto, em reunião realizada na Secretaria de Desenvolvimento Regional de Laguna em
julho de 2015.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
175
contribuir para novas perspectivas de desenvolvimento local que sejam sustentáveis, além de fomentar a proteção e preservação
dos sítios arqueológicos remanescentes.
O vestígio arqueológico enquanto patrimônio
Se, por um lado, o Brasil herdou a tradição latina de patrimônio, que “considera a propriedade privada sujeita a restrições,
derivadas dos direitos dos outros ou da coletividade em geral” (FUNARI; PELEGRINI, 2006, p. 17-18), por outro, seu reconhecimento estatal e sua proteção por meio de políticas de salvaguarda são regidas por interesses ideológicos, econômicos e identitários. Para ilustrar a questão, citamos aqui o caso apresentado pelo antropólogo Gilberto Velho, que em 1984 atuou como relator
do processo de tombamento do terreiro de Candomblé Casa Branca em Salvador (BA). A partir desta experiência, Velho (2006)
discutiu a preservação do patrimônio cultural enquanto ato político, antes mesmo de técnico, e mostrou os conflitos presentes
nos processos de tombamento e preservação patrimoniais especialmente, naquilo que chamou de negociação da realidade.
Para Velho (2006), o tombamento do terreiro Casa Branca representou o primeiro movimento pelo qual o Estado reconheceu oficialmente a tradição afro-brasileira. A situação era inédita, principalmente porque se tratava de um terreno sem
monumentalidade, mas que possuía sacralidade para a comunidade do candomblé. A falta de monumentalidade se somou às
dificuldades de ordem ideológica, política e econômica. O debate em torno do tema na sociedade baiana foi intenso, e na reunião
que definiu o tombamento estiveram presentes diversos atores locais, o que demonstra o interesse pela disputa dos lugares de
memória entre as diferentes esferas do Estado, a sociedade civil e a iniciativa privada. Por isso, o tombamento do terreiro Casa
Branca significou “a afirmação de uma visão de sociedade brasileira como multiétnica, constituída e caracterizada pelo pluralismo sociocultural” (VELHO, 2006, p. 240).
Tombar um patrimônio, ou reconhecê-lo como bem comum, implica atuar sobre o campo simbólico e econômico, conforme percebemos no caso apresentado por Velho. No simbólico, a construção e o reconhecimento de identidades; no econômico, o conflito entre interesses públicos e privados. A discussão é extensa, mas importa ressaltar que, no caso específico do
patrimônio arqueológico pré-colonial brasileiro, o problema é o mesmo. Primeiramente, sua negação. A tradição luso-brasileira
carrega em suas bases o catolicismo, que influencia no tipo de relação que estabelecemos com o patrimônio arqueológico précolonial. Especificamente no caso catarinense, se por um lado os jesuítas tiveram um papel importante no registro e nas pesquisas dos vestígios pré-coloniais, principalmente com o padre João Alfredo Rohr, que investigou uma grande quantidade de sítios
(ROHR, 1984); por outro, contribuíram para que o reconhecimento destas civilizações ficasse limitado ao aspecto da curiosidade
histórica exposta em museus, e não como elemento significativo de composição identitária contemporânea. Para exemplificar
este paradoxo, citamos o caso do “Santinho”:
Na Praia do Santinho, em Florianópolis, até o ano de 1946 os pescadores locais faziam oferendas
e rezavam, pedindo proteção e boa pescaria, em frente a uma arte rupestre com o formato de um
pequeno santo, que era a figura de um antropomorfo com a cabeça constituída por um círculo
concêntrico. Tal “Santinho”, que deu nome à praia, foi arrancado do lugar pelos padres que achavam que aquilo era um sacrilégio e nunca mais foi encontrado. É um caso raro em que um símbolo
sagrado pré-histórico continua sendo sagrado até os dias de hoje (LUCAS, 1996, p.16)
Lucas (1996) relata que após a remoção do “Santinho”, que teria sido levado ao Colégio Catarinense, dos jesuítas, a
comunidade local protestou, cercando a escola e exigindo a devolução da imagem, em claro exemplo de como um vestígio arqueológico pode ser reconhecido como patrimônio comum e elemento de identidade. Percebe-se que o tratamento dispensado
ao “Santinho” vai ao encontro do relato de Velho (2006) sobre o terreiro Casa Branca, já que em ambos os casos encontramos a
disputa pelo simbólico mediada por uma sacralidade considerada espúria pela tradição hegemônica. Tradição que é ideológica,
e que influenciará discursos e práticas de desvalorização do patrimônio arqueológico pré-colonial brasileiro, muitas vezes considerado menor e sem valor, como no caso de Garopaba, onde, em 1975, a prefeitura “mandou quebrar a marretadas os amoladores do Costão da Casqueira para aproveitar as pedrinhas negras no calçamento da praça central” (LUCAS, 1996, p. 109).
Ressalta-se que o patrimônio cultural e, neste, o arqueológico, não está dado em si, na medida em que resulta das relações de poder que o ressignificam. Assim, vestígios do passado, para serem considerados patrimônio, ficam sujeitos a um processo de “seleção consciente do que se deseja legar ao futuro, que mostra que algo é valioso individualmente ou socialmente”
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
176
(GUIMARÃES, 2012, p. 6). A patrimonialização como resultado das relações de poder ajuda a explicar, por exemplo, a pequena
quantidade de sítios arqueológicos tombados no Brasil, o baixo investimento na pesquisa e o abandono ao qual muitos sítios estão relegados. Vestígios arqueológicos passam à condição de patrimônio no momento em que são apropriados pela comunidade
e/ou pelo aparato burocrático-estatal como bens comuns aos quais são conferidos sentidos e, muitas vezes, funções. O tipo de
sentido e função conferidos ao patrimônio arqueológico resultam também das disputas em torno das diferentes perspectivas de
desenvolvimento. Najjar e Najjar (2006), ao discutirem o papel educativo do IPHAN, identificam neste o principal sujeito institucional na preservação do patrimônio arqueológico brasileiro. Entretanto, “apesar da Lei que cria o Instituto reconhecer a Arqueologia como produtora de uma memória da nação (...), ela, de fato, nunca foi apropriada como tal” (NAJJAR; NAJJAR, 2006, p. 179).
A razão disto, segundo os autores, está no fato da arqueologia brasileira dedicar-se principalmente às sociedades pré-coloniais, e
de que o reconhecimento da participação destas sociedades na constituição da cultural nacional não é prioridade dos órgãos de
cultura brasileiros. Ou seja, a política relega os sítios arqueológicos brasileiros à destruição, atendendo a interesses simbólicos
e econômicos restritos.
No Brasil, as discussões do patrimônio cultural e, de forma mais recente, do patrimônio arqueológico, reforçaram-se com
as possibilidades de renda que podem resultar do seu aproveitamento, principalmente por meio do turismo cultural. Daí a necessidade de se compreender o patrimônio arqueológico, sua valoração e sua apropriação pela comunidade enquanto patrimônio
cultural e a partir dos debates sobre as perspectivas de desenvolvimento, de modo que sua exploração (quando e onde esta for
estimulada) ocorra a partir das dimensões do desenvolvimento sustentável apresentadas por Sachs (2006a).
Patrimônio arqueológico e desenvolvimento.
Discutir a relação entre patrimônio arqueológico e desenvolvimento é tarefa complexa, principalmente porque não há
consenso a respeito do conceito de desenvolvimento, mesmo quando delimitado por categorias, como a de “sustentável”. Ortiz
(2008) alerta que o termo desenvolvimento pode encobrir realidades que se excluem, e, portanto, a primeira questão a ser colocada diz respeito a que tipo de desenvolvimento estamos nos referindo. A percepção de desenvolvimento cujo sentido filia-se à
noção de progresso econômico, tecnológico e de valores políticos, como o da democracia, por exemplo, é, segundo Ortiz, uma
invenção da modernidade ocidental. Ortiz argumenta ainda que há múltiplas modernidades, assim a preocupação passa a ser
propor uma reflexão diferente da teleológica, que concebe a ideia de desenvolvimento como algo que obedece a um sentido
único e a modernidade como uma categoria absoluta.
A partir da década de 1960, as alterações ambientais promovidas pela ação humana e os riscos de um conflito bélico
generalizado alertaram para a necessidade de se discutir o modelo hegemônico de desenvolvimento. Neste sentido, é possível
elencar três marcos internacionais para esta discussão no século XX: Conferência das Nações Unidas em Estocolmo (1972),
Relatório Brundtland (1987), Cúpula da Terra no Rio de Janeiro (1992). Nestes marcos a ideia de sustentabilidade começa a
ser apresentada como alternativa de desenvolvimento. No Relatório Brundtland, por exemplo, compreendeu-se por desenvolvimento sustentável aquele que atende as necessidades da geração presente, garantindo às gerações futuras dispor dos recursos
para atender as suas. Este mesmo documento, segundo Cooper et al. (2007), arrolou os princípios básicos da sustentabilidade,
dentre os quais está a proteção da herança cultural humana. Fazemos este destaque por integrar o patrimônio arqueológico a
esta herança cultural humana. Este mesmo princípio já estava presente na Conferência da Unesco de 1972, na qual foi adotada
a primeira convenção referente ao patrimônio mundial, cultural e natural.
Diante da possibilidade de esgotamento dos recursos naturais, se mantidos os hábitos de consumo e o crescimento demográfico, Sachs (2006a) propôs o conceito de ecodesenvolvimento, ou desenvolvimento sustentável. Nesta perspectiva, contestou um modelo de desenvolvimento ancorado exclusivamente no crescimento econômico, e propôs um novo modelo ancorado
sobre cinco dimensões: sustentabilidade social, sustentabilidade econômica, sustentabilidade ecológica, sustentabilidade espacial e sustentabilidade cultural. (SACHS, 2006a, p. 181-182). Argumentou que o crescimento econômico não promoveu equidade
social, pelo contrário, aprofundou índices de pobreza, e por isso insistiu na necessidade da dimensão ecológica como garantia
para a sobrevivência humana. Como forma de ação, defendeu que uma estratégia de desenvolvimento só tem sucesso se contar
com a participação da comunidade local, e que as estratégias de transição para este novo modelo de desenvolvimento devem
derivar de políticas públicas de planejamento capitaneadas pelo Estado.
Em 1995, Sachs (2006b) apontou a necessidade de um desenvolvimento com foco no ecológico e no social, e defendeu
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
177
a necessidade de se pactuar valores éticos capazes de assegurar a sustentabilidade da vida, o uso da ciência e da tecnologia
para garanti-la, e o papel do Estado como regulador e fomentador de políticas relacionadas ao desenvolvimento. As bases para
este paradigma de desenvolvimento, segundo Sachs, são a prudência ecológica, a solidariedade para a equidade, a eficiência
econômica e “o social no comando, o ecológico enquanto restrição assumida e o econômico recolocado em seu papel instrumental” (SACHS, 2006b, p. 266). Em síntese, as proposições de Sachs têm, como fim último, o princípio da sustentabilidade
baseada no protagonismo dos sujeitos a partir de seus territórios locais.
Segundo Mielke & Gandara (2009), no contexto de um mundo globalizado que gerou processos de flexibilização e descentralização, é possível perceber um movimento de endogeinização das perspectivas de desenvolvimento, no qual o território
começou a ser visto como agente de desenvolvimento. Neste debate, a atividade turística passa a ser compreendida “não somente como ator coadjuvante, mas também como ferramenta de fomento de geração de renda e emprego para as comunidades
locais. Ou seja, tem sido visto como instrumento estratégico de desenvolvimento econômico” (MIELKE; GANDARA, 2009, p. 86).
Esta relação entre turismo e desenvolvimento econômico endógeno é compartilhada por diversos autores, dentre estes Brenner
(2005), que ao discutir o turismo cultural, chama a atenção para a contribuição desta modalidade de turismo no desenvolvimento
endógeno de uma comunidade, não apenas porque valora economicamente o patrimônio cultural, seja ele material ou imaterial,
mas porque se apresenta como promotor da sustentabilidade no processo de desenvolvimento. Sustentabilidade relacionada
não apenas aos aspectos materiais, mas também aos simbólicos, dentre os quais a valorização da memória histórica como
importante elemento constituidor de identidade. Ressalta-se também que um turismo que parte do patrimônio cultural de determinado território, “representa um método de desenvolvimento turístico sustentável porque respeita o patrimônio de uma área e
habilita seus habitantes, gerando uma base verdadeira para o desenvolvimento” (BRENNER, 2005, p. 367).
A proposição de um turismo arqueológico convida para o debate travado no âmbito do saber arqueológico, de modo a
observarmos como seus profissionais estão compreendendo seu papel social, e de que modo a relação turismo – arqueologia
pode ser (ou/e é) recebida por estes. Neste sentido, recorremos a Bastos (2008) que, ao analisar as atividades desenvolvidas
pelos arqueólogos na Zona da Mata Mineira, tece interessantes observações a respeito da relação entre a arqueologia e o desenvolvimento regional.
Bastos (2008) chama atenta para uma “nova arqueologia brasileira”, preocupada em “modificar realidades locais através
da sua práxis educativa, participativa e inclusiva”. A gênese desta nova arqueologia estaria nos Estudos de Impacto Ambiental,
e hoje se estende amplamente, convocada que é, inclusive, pelos interesses do mercado e pelas necessidades da arqueologia
preventiva. Ao refletir sobre o papel a ser desempenhado pela arqueologia brasileira no desenvolvimento regional, compreende
este desenvolvimento como aquele que consiste no conjunto das “ações e atividades que geram oportunidades de engajamento
sociais, econômicas e culturais realizadas no âmbito do território envolvente e que dele tirem proveito de forma direta e/ou
indireta” (BASTOS, 2008, p.7). A partir da perspectiva da arqueologia e da prática profissional do arqueólogo considerando os
trabalhos desenvolvidos na Zona da Mata Mineira, constatou que a aproximação do trabalho do arqueólogo com os municípios
valorizou o poder local e fortaleceu ações decididas conjuntamente. Isto porque os atores locais, segundo Bastos, possuem
um sentimento de pertencimento, de ser e estar em um lugar, onde estabelecem suas relações sociais. Daí a necessidade de
se desenvolver um trabalho “interpessoal, interinstitucional, interdisciplinar, interétnico e transversal que possibilite o exercício
pleno dos direitos culturais” (BASTOS, 2008, p.10), avançando para aquilo que Santos (2007) chama de cidadania cultural. Este
trabalho deve ser anterior ao próprio uso turístico do patrimônio arqueológico, na medida em que este só “será instrumento de
desenvolvimento turístico após ter sido instrumento de Educação Patrimonial e inclusão social” (BASTOS, 2005, p. 65), de modo
a garantir a dimensão da sustentabilidade. É sob a ótica da cidadania cultural que a relação entre o patrimônio arqueológico e o
turismo concorre para uma perspectiva de desenvolvimento regional que ultrapassa a lógica trabalho e renda.
Neste sentido, Bastos (2008) chama a atenção para a necessidade da arqueologia trabalhar junto às comunidades locais
e, em especial, aos grupos vulneráveis, contribuindo com a inclusão social destas comunidades e grupos. Aqui estabelecemos
um ponto de convergência entre as proposições de Bastos para a arqueologia, e as premissas para o sucesso ou fracasso do
desenvolvimento local, apresentadas por Mielke & Gandara (2009). Segundo estes autores, são premissas para este tipo de desenvolvimento “o envolvimento dos atores locais, que têm importância fundamental como protagonistas dos processos (...) e as
questões organizativas, sociais e políticas dos mesmos, sejam institucionais, públicas ou privadas” (MIELKE; GANDARA, 2009,
p. 91-92).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
178
É nesta mesma lógica que Barretto (2009, p. 191), ao discutir o planejamento do turismo cultural/étnico, afirma que “no
ato de planejar turismo étnico, deve-se partir do princípio inerente aos direitos humanos de que, em primeiro lugar, quem precisa decidir sobre uma economia baseada no turismo ou não são os membros da comunidade.” Brenner (2005, p. 370) também
argumenta neste sentido, afirmando que “todos os esforços para promover o turismo cultural sustentável devem basear-se absolutamente em uma cooperação ativa com as culturas locais”. E Veloso e Cavalcanti, ao discutirem especificamente o turismo
arqueológico, escrevem que este:
(...) apresenta-se hoje como um importante veículo de desenvolvimento socioeconômico em diversas localidades além de ser um potencial campo de pesquisas para o conhecimento das populações humanas do passado. Constata-se também que esse pode ser aproveitado como fonte de
cidadania cultural (VELOSO; CAVALCANTI, 2007, p. 166)
Bastos (2008), portanto, defende a participação ativa da comunidade nas diferentes etapas do trabalho arqueológico,
entende o patrimônio arqueológico enquanto patrimônio cultural de uso comum e de alcance social, e acredita que as mudanças de paradigma da Arqueologia ajudam a explicar o interesse de outras atividades econômicas, dentre estas, o turismo, pelo
patrimônio arqueológico. Assim, para além de representar alternativa de renda às populações locais dos sítios arqueológicos, o
envolvimento destas no turismo arqueológico deve representar, em primeiro lugar, um processo educativo que a fará olhar para
o patrimônio arqueológico de modo a valorá-lo simbolicamente. Esta perspectiva remete às reflexões de Sachs (2006a), MaxNeef (2012) e Sampaio (2005), que defendem como condição para que uma estratégia de desenvolvimento sustentável possa ter
sucesso, a participação dos grupos e comunidades locais enquanto sujeitos do seu próprio desenvolvimento. Já Manzato (2013)
alerta para o fato de que, quando explorado exclusivamente em sua perspectiva econômica, o turismo em sítios arqueológicos
acaba promovendo desequilíbrios. Conforme Guimarães (2012, p. 54), “para o turismo arqueológico, a busca pela sustentabilidade deve ser no sentido mais amplo do termo, em todos os seus eixos: ambiental, social, econômico e cultural”.
Portanto, a valoração simbólica dos sítios arqueológicos, somada ao trabalho de educação patrimonial e à valoração
proveniente de sua potencialidade econômica enquanto atrativo turístico e aos produtos daí decorrentes, potencializará as possibilidades de preservação dos sítios como lugares de identidade e de renda. Assim, podemos partir do pressuposto de que um
projeto que proponha o investimento turístico tendo como atrativo também os vestígios arqueológicos pré-coloniais existentes
no município de Garopaba, necessita prever uma relação dialógica entre poder público (gestor local do turismo), ente federal
(IPHAN) e operadores do turismo principalmente com as populações locais, garantidoras da proteção dos sítios e dos valores
simbólico/identitários a estes relacionados.
A questão em Garopaba
O município de Garopaba, inserido na APA da Baleia Franca, possui uma população de 20.545 habitantes (IBGE, 2014) e
sua principal atividade econômica é o turismo de verão, compreendido entre os meses de dezembro a fevereiro, período em que
a cidade recebe grande fluxo de turistas.
Sua fundação remonta ao estabelecimento de uma armação baleeira em 1793. As armações baleeiras constituíram-se
como o principal empreendimento industrial do período colonial brasileiro no litoral catarinense. A esta armação transferiu-se a
força de trabalho escrava de origem africana, e a presença de seus descendentes é bastante significativa no município, resultando inclusive no reconhecimento de dois quilombos (Aldeia e Morro do Fortunato). É a partir da Armação Baleeira que se intensificou a ocupação de Garopaba, especialmente pelo elemento açoriano, que se dedicou às atividades pesqueiras e agrícolas.
No final da década de 1970 tem início a explosão demográfica de Garopaba, principalmente pela chegada de representantes da contracultura e surfistas, a maior parte provinda do Rio Grande do Sul. Este movimento migratório dobrou a população
local entre 1977 e 2014, alterando profundamente a paisagem. De pequena cidade dedicada à pesca artesanal, à agricultura e ao
extrativismo da madeira, transformou-se em importante balneário e polo de atração populacional. Sua malha urbana expandiu-se
horizontalmente, avançando sobre áreas até então ocupadas por pastagens e florestas, e seu centro histórico, antiga armação
baleeira em torno da qual se espraiou a antiga vila de pescadores com seu casario de arquitetura de base açoriana e ruas estreitas, é hoje alvo do processo de gentrificação.
Para além das transformações da paisagem urbana, estão as alterações da paisagem cultural. Saberes e fazeres ligados
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
179
à ocupação de base açoriana, e às respostas desta aos desafios locais, foram perdendo espaço. Práticas comunitárias como a
farinhada e a pesca artesanal da tainha, importantes elementos identitários, tornam-se cada vez menos comuns no cotidiano
garopabense. A forte imigração de pessoas, notadamente do Rio Grande do Sul, alterou radicalmente a dinâmica do sistema
cultural local.
Conforme apontado por Laraia (1986), a mudança cultural pode ser operada por dinâmicas internas e externas. No caso
de Garopaba, as dinâmicas externas, representadas pela explosão demográfica resultante não de um crescimento vegetativo,
mas do movimento migratório, promoveram uma rápida e intensa reconfiguração da paisagem cultural local a partir da década
de 1980, resultando em uma ruptura entre o cotidiano e as referências simbólicas dos moradores antigos para com as populações recentes, muito mais numerosas, provocando a desterritorialização da cultura tradicional.
Naquilo que tange ao patrimônio cultural de Garopaba, a intensa e recente alteração da paisagem humana local e o processo de gentrificação podem significar a destruição de importantes marcos paisagísticos e simbólicos, bem como a eliminação
de saberes, fazeres e sensibilidades tradicionais. Isto ocorre não tanto pela irrupção dos recentes elementos culturais exógenos,
mas principalmente pela ausência de uma política municipal que garanta o debate permanente e a preservação efetiva do patrimônio cultural local, bem como a inexistência de equipamentos públicos culturais, já que a cidade não possui um órgão específico para a cultura, arquivo histórico, museu ou qualquer outra instituição que discuta especificamente as questões pertinentes
ao patrimônio cultural, sendo que apenas recentemente teve início o debate em torno da criação do sistema municipal de cultura.
Para além dos seus atrativos naturais (praias, lagoas e trilhas), Garopaba dispõe também de interessantes e importantes
vestígios arqueológicos pré-coloniais, cuja presença humana pode remontar a datas anteriores aos 4 mil anos antes do presente.
No Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA/IPHAN) estão registrados cinco sítios arqueológicos dentro dos limites
municipais, dos quais um apresenta média relevância e dois alta relevância. Há também uma diversidade de tipos de sítios no
município: sambaquis, oficinas líticas, sítios ceramistas e um sítio com inscrições rupestres. Além destes cinco sítios registrados
junto ao CNSA/IPHAN, há uma grande variedade de vestígios arqueológicos pré-coloniais das culturas sambaquieira, itararé e
carijó distribuídas pelo território. É comum os moradores da região encontrarem objetos líticos e sepultamentos quando aram a
terra ou cavam o solo para construir os fundamentos das casas.
A região na qual Garopaba está inserida é resultado de múltiplas ocupações identitárias, desde os tempos pré-coloniais.
Estudos arqueológicos desenvolvidos por João Alfredo Rohr (1984) já apontavam para a presença humana no litoral centro-sul
desde aproximadamente 7 mil anos AP. Tradições como a Umbu e a Humaitá, assim como sociedades sambaquieiras e, mais
recentemente (1500 AP), povos ceramistas Itararé e Carijó, habitaram em diferentes tempos a região. Entretanto, não há proteção
nos sítios arqueológicos localizados no município de Garopaba, que estão expostos ao intemperismo, ao turismo desordenado,
à expansão urbana e às ações de vândalos, conforme já apontamos (COSTA, 2014a).
As oficinas líticas estão localizadas junto a praias de grande fluxo de pessoas, como as da Vigia e da Barra. Não há
atividade de interpretação das mesmas, tampouco atividades sistemáticas de educação patrimonial das comunidades locais.
O fluxo de turistas sobre os vestígios e os saques vêm promovendo seu desaparecimento. O mesmo ocorre com o sambaqui
da localidade denominada de Barra. Sambaquis são marcos arquitetônicos construídos pelos povos sambaquieiros há até mil
anos antes do presente, e depois ocupados por povos ceramistas. Edificados com conchas acumuladas sistematicamente por
diversas gerações, guardam em seu interior sepultamentos, utensílios líticos e ósseos e vestígios de vida cotidiana. O sambaqui
da Barra está bastante destruído e saqueado, e abriga trilhas utilizadas por turistas e moradores locais sem qualquer controle ou
estudo de impacto.
Já na Ponta do Galeão, importante paisagem turística da cidade, que apresenta monólitos esculpidos pela ação do intemperismo, trilhas e grandes paredões rochosos junto ao mar, encontra-se um sítio arqueológico classificado no IPHAN como
de alta relevância, e que apresenta inscrições rupestres. Este sítio integra uma área que se estende da Ilha de Santa Catarina a
Garopaba. Prous (1992), ao tratar dos sítios rupestres da tradição litorânea catarinense, encontrados nesta área, afirma que “esta
tradição, muito bem circunscrita, não pode ser comparada com nenhum outro conjunto rupestre conhecido atualmente; trata-se
certamente de uma criação local” (PROUS, 1992, p. 513). A constatação de Prous reforça a importância dos estudos destas inscrições rupestres, cujos autores e significados permanecem ainda indeterminados, bem como seu potencial de atrativo para o
turismo arqueológico na região. A despeito de sua importância, a ausência de fiscalização e controle do acesso ao sítio, torna-o
suscetível aos atos de vandalismo (COSTA, 2014a).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
180
Em pesquisa realizada com professores da rede municipal de ensino de Garopaba (COSTA, 2014b), verificou-se que
59% destes profissionais afirmam conhecer os vestígios arqueológicos existentes no município. Ainda que o percentual indique
a maioria dos professores, é alto o número que desconhece estes vestígios (41%), principalmente se consideramos o fato de que
alguns destes sítios, como as oficinas líticas e o sambaqui acima citados, estão localizadas em áreas de fácil acesso e em locais
de grande circulação de pessoas.
Considerações finais
Ainda que o patrimônio arqueológico deva ser estudado e preservado pelo seu valor intrínseco, é sabido que isto dificilmente ocorre. Para muitos, o argumento do turismo arqueológico enquanto promotor desta preservação pode soar como uma
espécie de desculpa para incrementar exclusivamente a economia do turismo no âmbito local. Barretto (2007) entretanto, demonstra, através de uma série de exemplos distribuídos no Brasil e em diversos países, como o turismo cultural contribuiu para o
fortalecimento e para a promoção de identidades locais e atividades tradicionais e para a preservação de patrimônios materiais
e imateriais em processo de destruição e desaparecimento, não fosse sua apropriação pelas comunidades locais a partir da
valoração destes patrimônios por meio da atividade turística. Embora muitas vezes o investimento no turismo cultural promova
a fetichização de manifestações culturais, quando planejado em diálogo com as comunidades locais, garante a preservação
do patrimônio cultural e fomenta, a partir das forças endógenas, a economia local e o próprio reconhecimento das identidades
locais.
Outro elemento importante a ser considerado está relacionado ao perfil do turista do turismo cultural, já que este, diferentemente do turista do turismo de massa (que atualmente representa o principal investimento da economia do turismo em
Garopaba) tende a impactar menos na realidade local naquilo que diz respeito aos aspectos da degradação da sociedade receptora e seus atrativos. É o que defendem Cooper et al. (2007, p. 280) quando afirmam que “(...) os turistas que pertencem a grupos
de charter ou de massa, provavelmente terão um impacto social e cultural maior que aqueles que pertencem às categorias de
turistas exploradores, aventureiros e étnicos.” Assim, considerando os aspectos teóricos e a caracterização do espaço e dos
vestígios arqueológicos remanescentes no município de Garopaba aqui apresentados, bem como o Projeto de Fortalecimento do
Ecoturismo de Observação de Baleias apresentado pelo SEBRAE a municípios que integram a APA da Baleia Franca, tornam-se
possíveis algumas proposições.
A primeira diz respeito à necessidade de se considerar a presença de importantes vestígios arqueológicos pré-coloniais
em Garopaba quando da discussão de um modelo de desenvolvimento sustentável. Estes vestígios integram o patrimônio paisagístico da cidade, que precisa ser preservado. O modelo de desenvolvimento econômico atual, entretanto, estruturado sobre
a sazonalidade do turismo “sol e mar” não assegura a sustentabilidade, promovendo impactos ambientais, sociais e identitários
significativos.
A segunda diz respeito ao intenso e não planejado crescimento populacional. A constatação implica, além de urgentes
estudos de planejamento urbano, a necessidade de trabalhos de educação patrimonial como meio de desenvolver a cidadania
cultural e o reconhecimento de uma identidade local capaz de dialogar com os elementos exógenos sem se destruir. Este trabalho de educação deve considerar os vestígios arqueológicos pré-coloniais, contribuindo para a sua patrimonialização, interpretação e incorporação às narrativas locais.
A terceira considera as possibilidades do turismo arqueológico. Esta segmentação de turismo, por se desenvolver em
espaços frágeis e únicos, exige planejamento, interpretação e participação de diferentes atores: poder público local, poder público federal, comunidades locais, entidades privadas e do terceiro setor. Como já apontaram Bastos (2005 e 2008), Guimarães
(2012) e Manzato (2013), o turismo arqueológico sustentável, se planejado em complementaridade a rotas e circuitos que envolvam diferentes segmentos turísticos, alguns já existentes em Garopaba e região (turismo, turismo de observação de baleias,
turismo cívico), e outros identificados potencialmente (turismo rural, turismo étnico, turismo comunitário de base local, turismo
gastronômico), pode contribuir para o desenvolvimento sustentável e, por consequência, na ressignificação e proteção dos atuais
vestígios arqueológicos, alçando-os à condição de patrimônio socialmente reconhecido. O turismo arqueológico em Garopaba
pode representar, também, uma alternativa para reduzir à dependência em relação à sazonalidade do turismo de verão e um
estímulo à fixação da população local, na medida em que signifique, também, oportunidade de trabalho e renda.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
181
Por fim, considerando a dimensão política e ideológica dos processos de patrimonialização, o debate a respeito dos vestígios arqueológicos pré-coloniais precisa necessariamente mobilizar as comunidades locais de Garopaba, por meio da articulação destas com os demais atores do território, como as instituições de ensino e de pesquisa com atuação na região, entidades
representativas das populações locais e das atividades econômicas tradicionais, organizações do terceiro setor e representantes
do trade turístico.
Planejar o turismo local para além da dependência de um turismo sazonal e de massas, considerando a existência de
vestígios arqueológicos pré-coloniais importantes no município e as proposições aqui apresentadas, pode criar as possibilidades
para um empoderamento da população local sobre seu território no sentido da construção de perspectivas de um desenvolvimento endógeno sustentável, atendendo assim aos objetivos da APA da Baleia Franca. Persistir na promoção do turismo “sol é
mar” como a principal estratégia de desenvolvimento no município, é persistir em uma estratégia que se comprova insustentável,
na medida em que, considerando as categorias apresentadas por Sachs, põe o econômico no comando, desconsidera o ecológico enquanto restrição assumida e coloca o social no papel instrumental, ou seja, não é ecologicamente prudente, socialmente
solidário e tampouco eficiente sob o aspecto econômico no longo prazo. A observação dos índices de desenvolvimento humano
do município, inferiores à média estadual, são um dos elementos que reforçam esta conclusão. Elementos que se somam à
descaracterização identitária, ao desaparecimento das atividades econômicas tradicionais, aos processos de gentrificação e à
degradação ambiental.
Referências
BARRETTO, M. Cultura e Turismo: discussões contemporâneas. Campinas: Papirus, 2007. 175p.
BARRETTO, M. A delicada tarefa de planejar turismo cultural. In: SOUSA, C.M.M., THEIS, I.M. Desenvolvimento Regional:
abordagens contemporâneas. Blumenau: Edifurb, 2009, p. 181-193.
BASTOS, R.L. Patrimônio cultural arqueológico: instrumento de desenvolvimento turístico. Cadernos do LEPAARQ, v. 2, n. 3, p
65-77, jan./jul. 2005.
BASTOS, R.L. O papel da arqueologia no desenvolvimento regional. In: OLIVEIRA, A.P.L. (Org.) Arqueologia e patrimônio da
Zona da Mata Mineira: Carangola. Juiz de Fora: MAEA/UFJF, p. 7-17, 2008.
BRENNER, E. Uma contribuição teórica para o turismo cultural. Habitus, v. 3, n. 2, p. 361-372, 2005.
COOPER, C. et al. Turismo: princípios e práticas. 3 ed. Porto Alegre: Bookman, 2007, 559p.
COSTA, V.F. A vandalização do patrimônio arqueológico de Santa Catarina. Expressão Universitária, v. 4, n. 44, p. 5, jul. 2014a.
COSTA, V.F. O Patrimônio Cultural de Garopaba (SC) na percepção dos professores da rede pública municipal de ensino. In: II
SEMINÁRIO INTERNACIONAL HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE, Florianópolis, 2014. Anais... Florianópolis: UDESC, 2014b.
p. 1-16.
FUNARI, P.P.; PELEGRINI, S.C.A. Patrimônio histórico e cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, 72p.
GUIMARÃES, A.M. Aproveitamento turístico do patrimônio arqueológico no município de Iranduba, Amazonas. 2012.
Tese (Doutorado em Arqueologia). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
IBGE. Diretoria de Pesquisas. Coordenação de População e Indicadores Socias. Indicadores sociais municipais: Garopaba.
Disponível em: <http://cidades.ibge.gov.br/> Acesso em 20 dezembro de 2014.
ICMBIO. Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca. História. Disponível em: < http://www.icmbio.gov.br/apabaleiafranca/
quem-somos/historia.html> Acesso em 07 agosto 2015.
LARAIA, R.B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1986, 117p.
LUCAS, K. Arte rupestre em Santa Catarina. Florianópolis: Rupestre, 1996, 125p.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
182
MANZATO, F. Socialização do patrimônio arqueológico no estado de São Paulo: proposta de plano de gestão, interpretação e visitação turística em áreas arqueológicas. 2013. Tese (Doutorado em Arqueologia). Museu de Arqueologia e
Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
MAX-NEEF, M. Desenvolvimento à escala humana: concepção, aplicação e reflexões posteriores. Tradução por Rede
Viva. Blumenau: Edifurb, 2012, 108p.
MIELKE, E.; GANDARA, J.M.. Das teorias “de cima para baixo” e desenvolvimemto regional: uma análise crítica no contexto
da organização da atividade turística. In: SOUSA, C.M.M.; THEIS, I.M. Desenvolvimento Regional: abordagens contemporâneas. Blumenau: Edifurb, 2009, p. 85-112.
NAJJAR, J.; NAJJAR, R. Reflexões sobre a relação entre educação e arqueologia: uma análise do papel do IPHAN como educador
coletivo. In: LIMA FILHO, M.F.; BEZERRA, M. (Orgs.). Os caminhos do patrimônio no Brasil. Goiânia: Alternativa, 2006, p.
171-181.
ORTIZ, R. Cultura e desenvolvimento. Políticas Culturais em Revista, v. 1, n. 1, 2008, p. 122-128.
PROUS, A. Arqueologia brasileira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1992, 605p.
ROHR, J.A. Sítios arqueológicos de Santa Catarina. Anais do Museu de Antropologia, n. 17, 1984, p. 77-168.
SACHS, I. Estratégias de transição para o século XXI. In: SACHS, I. Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2006a, p. 174-200.
SACHS, I. Em buscas de novas estratégias de desenvolvimento. In: SACHS, I. Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do
desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2006b, p. 247-284.
SAMPAIO, C.A.C. Turismo como fenômeno humano: princípios para se pensar a socioeconomia e sua prática sob a denominação do turismo comunitário. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2005, 146p.
SANTOS, C.H. Educação Patrimonial: uma ação institucional e educacional. In: IPHAN. Patrimônio: práticas e reflexões. v 1.
Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2007, p. 147-172.
VELHO, G. Patrimônio, negociação e conflito. Mana, v. 12, n. 1, p. 237-248, 2006.
VELOSO, T.P.G.; CAVALCANTI, J.E.A. O turismo em sítios arqueológicos: algumas modalidades de apresentação do patrimônio
arqueológico. Revista de Arqueologia, v. 20, n. 1, p. 155-168, 2007.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
183
CARBONO ESTOCADO NOS PLANTIOS DE RECUPERAÇÃO DE APP
E RL NOS IMÓVEIS DA AGRICULTURA FAMILIAR
Medeiros, João de Deus1; Stefani, Marcia Rosana2; Prochnow, Miriam3 & Schaffer, Wigold Bertoldo3
1. Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected]. 2. Grupo Pau-Campeche, [email protected]
3.Apremavi, [email protected]; [email protected]
Resumo
O estudo avalia reflorestamentos para recuperação de APP em pequenas propriedades da agricultura familiar situadas no Alto
Vale do Itajaí. Foram instaladas parcelas de 100 ou 200 m2, e todas as árvores com DAP a partir de 5 cm foram identificadas e
medidas. A partir dos dados coletados foi calculada a biomassa acima do solo com o uso de equações alométricas, uma regional
e a indicada pelo IPCC. O carbono estocado foi estimado pela multiplicação dos valores de biomassa pelo fator 0,47. Foram
avaliadas as diferenças entre as metodologias de quantificação de biomassa propostas pelo Painel Intergovernamental sobre
Mudanças do Clima (IPCC) e utilizando a equação regional. Os dados obtidos com as equações regional e do IPCC mostram,
respectivamente, biomassa de 371,2 e 371,4 Mg.ha-1 , e estoque de carbono de 155,8 e 155,9 Mg.ha-1 . Os resultados demonstram que a contribuição prestada com a manutenção ou recuperação das APP das pequenas propriedades da agricultura familiar
é bastante significativa.
Palavras-Chave: Carbono; Agricultura Familiar, Área de Preservação Permanente, Mata Atlântica.
Introdução
O território brasileiro possui cerca de 64% de sua extensão ocupada por florestas nativas (ABRAF, 2006). Desse percentual, 15% correspondem à área do bioma Mata Atlântica. Entretanto, neste bioma hoje restam 8,5 % de remanescentes florestais
acima de 100 hectares. Somados todos os fragmentos de florestas nativas acima de 3 hectares, temos atualmente 12,5% (SOS
MATA ATLÂNTICA, 2015). Apesar da devastação acentuada, a Mata Atlântica abriga enorme riqueza biológica e alto grau de
endemismo, características que contribuíram para torná-la um hotspot, áreas onde são encontradas grandes concentrações de
espécies endêmicas e altas taxas de perda de habitat (MYERS et al., 2000).
A Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CQNUMC) procura implementar a Redução de
Emissões do Desmatamento e Degradação (REDD), como uma forma de pagamento por serviços ambientais, em que o valor
de armazenamento de carbono pelas florestas ameaçadas por desmatamento e degradação é reconhecido financeiramente
(GHAZOUL et al., 2010). Para operacionalizar esse mecanismo é necessário realizar estimativas confiáveis da biomassa e do carbono das florestas. Para obter esta estimativa de biomassa em determinada floresta, são necessários um inventário da vegetação
por meio de parcelas, a aplicação de equações alométricas apropriadas e a extrapolação dos resultados (CHAVE et al., 2004;
HENRY et al., 2010).
Segundo Crow e Schlaegel (1988), as variáveis comumente utilizadas em equações de biomassa são o diâmetro à altura
do peito (DAP) e a altura total (h), podendo, em muitos casos, serem combinadas, gerando a variável (DAP2h). Com relação ao
número de variáveis independentes, Higuchi et al. (1998) citam que modelos de equações alométricas com apenas uma variável
independente (DAP), apresentam resultados tão consistentes quanto os modelos que utilizavam também a altura (h). No entanto,
Santos (1996) afirma que uma equação de biomassa que considera tanto o diâmetro quanto a altura deve produzir estimativas
melhores do que uma equação que utiliza apenas o diâmetro, por causa da informação adicional fornecida pelo conhecimento
da altura.
O carbono estocado por um ecossistema florestal está compartimentado em: 45-55% na biomassa acima do solo (fuste,
casca, galhos e folhas); 20-26% na biomassa abaixo do solo (raízes); 20% no próprio solo (respiração das raízes e respiração
heterotrófica dos micro-organismos edáficos) e 6-8% na serapilheira (MUUKKONEN, 2006; QURESHI et al., 2012). Estes valores,
no entanto, variam conforme o estágio de desenvolvimento da floresta. Segundo Ketterings et al. (2001), a estimativa de biomassa
acima do solo (AGB) é imprescindível aos estudos do balanço global de carbono.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
185
Diversos fatores afetam a biomassa e a produtividade nas formações florestais, dentre estes destaca-se a idade do povoamento, a variabilidade genética, a nutrição, a altitude, a umidade do solo e os desbastes ou tratos culturais. O total de biomassa
acima do solo também varia por região geográfica, tipo de região (úmida, encharcada ou seca), tipologia e estrutura florestal e o
grau de distúrbio da floresta (BROWN; GILLESPIE; LUGO, 1989).
As estimativas de volume e biomassa em diferentes partes das árvores e nos compartimentos das florestas, projetam as
quantidades de carbono pela utilização de fatores de conversão, ou seja, de forma indireta. Considerando que a biomassa seca
contem aproximadamente 50% de carbono, o IPCC admite que o carbono estocado na biomassa pode ser determinado por meio
da multiplicação das estimativas de biomassa obtidas pelo fator 0,5.
Apesar da grande importância biológica da Mata Atlântica, poucos estudos foram feitos com base em medições diretas
de biomassa para o desenvolvimento de modelos alométricos. Isso se deve, principalmente, pelo fato de a Mata Atlântica ser
protegida por lei, tornando restrita a estimativa de biomassa por métodos diretos (destrutivos). Adicionalmente, pouco tem sido
publicado acerca da restauração da Mata Atlântica, apesar de sua importância como bioma brasileiro e hotspot global para a
conservação. O presente trabalho procura quantificar a biomassa e o estoque de carbono em uma área de Floresta Ombrófila
Densa, localizada no Alto Vale do Itajaí, SC, contemplando avaliação de plantios de restauração de áreas de preservação permanente, em 10 pequenas propriedades de agricultores familiares, gerando subsídios para a avaliação da importância da contribuição das pequenas propriedades da agricultura familiar para a redução de emissões de gases de efeito estufa.
Metodologia
Foram selecionados 10 pequenas propriedades de agricultores familiares, localizadas em três municípios do Alto Vale
do Itajaí (Atalanta, Braço do Trombudo e Taió), onde plantios de restauração de áreas de preservação permanente haviam sido
implantados com apoio da entidade ambientalista Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida - APREMAVI. Na
área desses plantios de restauração foram instaladas parcelas de 100 ou 200 m2, onde se efetuou o levantamento propriamente,
com a medição in loco, adotando-se a metodologia consagrada em levantamentos fitossociológicos, registrando-se em todas as
parcelas amostradas dados de DAP e altura de todos os indivíduos, sua identificação taxonômica, seguida de dados qualitativos
da formação, com informações sobre serapilheira, epífitos, lianas e estratificação.
As espécies identificadas tiveram sua denominação em conformidade com a Lista de Espécies da Flora do Brasil (2015),
acessada através da pagina eletrônica do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
A estimativa da biomassa acima do solo foi realizada usando-se o método não destrutivo, considerando a biomassa do
fuste e dos compartimentos florestais de ramos e folhas. Foram adotadas duas equações alométricas para esse fim, sendo uma
delas aquela recomendada pelo IPCC e uma regional.
A Equação Regional adotada foi aquela ajustada por Amaro (2010):
BFcc = 0,024530*DAP2,443356*Ht0,423602
em que:
BFcc: biomassa do fuste com casca
A biomassa dos galhos (BGcc) foi estimada considerando que essa representa 25,96% da biomassa do fuste com casca:
BGcc = 0,2596*BFcc
A biomassa estocada nas folhas foi estimada com base em estudos realizados por Drumond (1996), que estabeleceu
que a biomassa das folhas (BFO) representa 4,45% da biomassa do fuste com casca:
BFO = 0,0445* BFcc
A biomassa acima do solo (AGB) foi obtida por meio do somatório da biomassa dos fustes, dos galhos e das folhas:
AGB = BFcc + BGcc + BFO
Adotando a equação recomendada pelo IPCC (2003) a biomassa acima do solo (AGB) foi estimada utilizando-se
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
186
a equação alométrica proposta por Brown, Gillespie e Lugo (1989):
AGB = 34,4703 - 8,0671*DAP + 0,6589*DAP2
em que:
AGB = biomassa acima do solo, em kg; e
DAP = diâmetro à altura do peito, em cm.
O carbono estocado na biomassa foi estimado por meio da multiplicação dos valores de biomassa pelo fator 0,47 para
espécies arbóreas, conforme recomendação do IPCC (2006).
Para análise das diferenças de estocagem de biomassa e carbono entre as distintas metodologias, utilizou-se a equação:
Df: [MIPCC - MREG / MIPCC]*100
em que:
Df = diferença entre as metodologias, em %;
MIPCC = estoque de biomassa e carbono pela metodologia do IPCC, em ton. ha-1; e
MREG = estoque de biomassa e carbono pela metodologia utilizando equações regionais, em ton. ha-1.
Resultados
Os dez plantios de restauração avaliados mostram idades variando de 7 a 28 anos, e a partir do inventário dos mesmos
obteve-se uma media de diâmetro a altura do peito de 15,1 cm, e uma altura média de 8,6 m (Tabela 1).
As principais espécies botânicas amostradas são apresentadas na Tabela 2, dentre as quais figuram a Araucaria
angustifolia, Euterpe edulis, Mimosa scabrella e Handroanthus chrysotrichus como as mais frequentes.
A partir dos dados obtidos nos inventários realizados os valores médios de biomassa e carbono obtidos foram, respectivamente, com a equação regional 371,2 Mg/ha e 155,8 MgC/ha , e com a metodologia do IPCC 371,4 Mg/ha e 155,9 MgC/ha.
A análise dos resultados indica que a diferença dos valores obtidos com as diferentes metodologias foi bastante pequena. Das
10 áreas avaliadas apenas duas apresentaram diferenças superiores a 5%, sendo que a maior diferença observada foi de 6,5%.
Os valores de biomassa variaram de 86,7 Mg/ha a 791,5 Mg/ha. O menor valor esta associado ao plantio mais recente (7 anos);
o valor mais elevado foi obtido num plantio com 12 anos. Dentre os plantios mais antigos (28 anos) o maior valor obtido foi de
404 Mg/ha.
A diferença entre as metodologias empregadas variou de 0,4 a 6,5 %. Apenas em duas áreas amostradas a diferença entre
as metodologias foi superior a 5% (Tabela 1).
Tabela 1 - Dados Quantitativos dos Plantios de Restauração
em pequenas propriedades de agricultores familiares
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
187
Tabela 2 - Principais Espécies Botânicas Amostradas em Plantios de Restauração em
pequenas propriedades de agricultores familiares
Discussão e Conclusões
O método indireto de quantificação de biomassa baseia-se no uso de relações empíricas entre a biomassa e outras
variáveis da árvore (DAP, altura total) (SALATI, 1994), relações essas expressas por meio de modelos estatísticos (SANQUETTA;
BALBINOT, 2004). Esse método é considerado alternativa mais precisa do que o método direto, visto que neste último as informações obtidas costumam vir de parcelas de pequeno tamanho, em pequeno número e selecionadas de forma intencional,
geralmente em áreas que sejam mais representativas do todo (BROWN; GILLESPIE; LUGO, 1989). Essa conduta pode introduzir
erros de tendência nas estimativas, o que pode levar a super ou subestimativas da biomassa média da floresta avaliada.
As estimativas de biomassa obtidas indiretamente, com a adoção de equações alométricas, é recomendada pelo IPCC,
que recomenda a adoção, sempre que possível, de equações regionais. Essa recomendação procura trazer maior precisão as
estimativas de biomassa e estoques de carbono.
O potencial de estoque de carbono para a região do Alto Vale do Itajaí é conhecido apenas por valores médios adotados
para toda a Mata Atlântica, criando assim generalizações que, em alguns casos, se afastam da realidade regional. A adoção da
equação alométrica regional atende a recomendação do IPCC, já que a mesma foi desenvolvida para uma condição florestal
mais próxima (área de Mata Atlântica), e com adoção de duas entradas, no caso as variáveis DAP e altura. Ao avaliarmos comparativamente a equação do IPCC, que adota apenas o DAP como variável, com a equação regional que emprega duas variáveis
(DAP e altura), observamos que os valores obtidos são muito próximos. A maior diferença observada ficou em 6,5%, mostrando-se
praticamente indiferente a escolha da equação. Assim, o emprego da equação do IPCC, pode ser adotado para estimativas de
estoque de carbono na região avaliada.
Os resultados obtidos mostram números bastante promissores, o que pode ser explicado pelo clima regional, os cui-
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
188
dados culturais e notadamente nos casos de APP de margem de curso d´água, a condição particularmente fértil dos solos e a
constante disponibilidade hídrica. As obrigações de restauração de áreas degradadas estabelecidas na legislação, especificamente na lei 12.651, de 25 de maio de 2012, para áreas de preservação permanente e reserva legal de propriedades rurais abrem
a possibilidade de incluir a restauração como uma das estratégias para conservação da Mata Atlântica, e para mitigação dos
efeitos das mudanças climáticas, ampliando assim a importância da função socioambiental das pequenas propriedades rurais
da agricultura familiar.
Já a partir dos 15 anos os plantios atingem valores de estoque de carbono próximo de 100 MgC/ha, destacando assim
o grande potencial dessa região, o que pode ser explicado pelas características típicas da região do Vale do Itajaí, onde as
condições para o desenvolvimento da vegetação florestal são excepcionalmente favoráveis.
Segundo Klein (1979) originalmente quase toda a área do Vale do Itajaí estava coberta por uma luxuriante vegetação
florestal densa e úmida, predominando a mata pluvial da encosta atlântica (Floresta Ombrófila Densa). Serras de pouca altitude
limitam do lado interior uma área caracterizada por florestas densas no interior das quais se desenvolve muitas epífitas e lianas.
Entre os rios da costa catarinense, o de maior vulto, é o Rio Itajaí-açu que banha as terras mais férteis desta região, originadas
por um complexo de rochas pertencentes às mais variadas formações. A pluviosidade na região é elevada, com valores acima
de 1500 mm por ano. As chuvas se distribuem por todos os meses do ano. Quanto à umidade relativa, esta é muito elevada, apresentando médias acima de 85%. O regime térmico mostra maior oscilação, com o mês de julho (o mais frio) apresentando médias
inferiores a 15° C, e com as temperaturas máximas (verão) podendo superar os 40°C. A área do vale do Itajaí é grandemente
resguardada contra os ventos frios do sudoeste, provenientes do planalto e por outro lado é beneficamente influenciada pelas
temperaturas moderadas do oceano. As serras situadas a oeste e sul agem no sentido de conservar mais elevada a temperatura
regional, enquanto o oceano apresenta influencia moderadora. A radiação solar atinge valores próximos a 1800 horas por ano,
enquanto a evaporação é bastante fraca, em virtude do elevado grau de umidade relativa do ar, raramente ultrapassando os
500mm anuais.
Ainda segundo Klein (1979) as características edafo-climáticas da região, altamente favoráveis ao desenvolvimento da
vegetação faz com que o retorno dos plantios de restauração seja altamente promissor, superando a média registrada em outras regiões ou formações da Mata Atlântica. A adoção de técnicas de condução dos plantios de restauração é outro elemento
importante. Com a adoção de técnicas de condução corretas são otimizados os resultados, tanto na seleção de espécies mais
promissoras como nos cuidados pós-plantio, resultando em ganhos de biomassa significativos. Os plantios de restauração conduzidos pela APREMAVI na região do Vale do Itajaí mostram isso, demonstrando de forma objetiva a grande contribuição que
representam para o enfrentamento das mudanças climáticas decorrentes da elevação de emissões antrópicas dos gases de
efeito estufa, notadamente do dióxido de carbono (CO2). Considerando a predominância de pequenas propriedades da agricultura familiar na região, os resultados obtidos indicam que a contribuição delas para a redução de emissões e mitigação dos
efeitos das mudanças climáticas é significativa, e a disseminação de metodologias acessíveis para a quantificação dos estoques
de carbono mostra-se como uma boa alternativa para qualificar as pequenas propriedades da agricultura familiar aos programas
de pagamento por serviços ambientais.
Referências
ABRAF. Anuário estatístico da ABRAF: ano base 2005. Brasília: ABRAF, 2006. 80p.
AMARO, M.A. Quantificação do estoque volumétrico, de biomassa e de carbono em uma Floresta Estacional Semidecidual no Município de Viçosa-MG. 2010. 168f. Tese (Doutorado em Ciência Florestal) – Universidade Federal de Viçosa,
Viçosa, MG, 2010.
BROWN, S.; GILLESPIE, A. J. R.; LUGO, A. E. Biomass estimation methods for tropical forests with applications to forest inventory
data. Forest Science, v.35, n.4, p.881-902, 1989.
CHAVE, J.; CONDIT, R.; AGUILAR, S.;HERNANDEZ, A.; LAO, S.; PEREZ, R. Error propagation and scaling for tropical forest
biomass estimates. Philosophical Transactions of the Royal Society, v. 359, n. 1443, p.409-420, 2004.
CROW, T. R.; SCHLAEGEL, B. E. A guide to using regression equations for estimating tree biomass. Northern Journal of
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
189
Applied Forestry, v. 5, n.1, p. 15-22, 1988.
DRUMOND, M. A. Alterações fitossociológicas e edáficas decorrentes de modificações da cobertura vegetal na
Mata Atlântica, região do Médio Rio Doce, MG. 1996. 73f. Tese (Doutorado em Ciência Florestal) Universidade Federal de
Viçosa, Viçosa, 1996.
GHAZOUL, J. ;BUTLER R.A.; MATEO-VEGA, J. REDD: a reckoning of environment and development implications. Trends in
Ecology and Evolution, v. 25, n. 7, p.396-402, 2010.
HENRY, M.; BESNARD, A.; ASANTE,W. A.; ESHUN, J.; ADU-BREDU, S.; VALENTINI, R.; BERNOUX, M.; SAINT-ANDRE, L. Wood
density, phytomass variations within and among trees, and allometric equations in a tropical rainforest of Africa. Forest Ecology
and Management, v. 260, n. 5, p.1375-1388, 2010.
HIGUCHI, N.; SANTOS, J. dos; RIBEIRO, R. J.; MINETTE, L.; BIOT,Y. Biomassa da parte aérea da vegetação da floresta tropical
úmida de terra-firme da Amazônia brasileira. Acta Amazônica, v. 28, n. 2, p.153-166, 1998.
IPCC. INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE. Good practice guidance for land use, land-use change
and forestry. Japan: Institute for Global Environmental Strategies (IGES), 2003.
IPCC. INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE. Guidelines for National Greenhouse Gas Inventories:
agriculture, forestry and other land use. Japan: Institute for Global Environmental Strategies (IGES), 2006. v.4.
KETTERINGS, Q. M.; COE, R.; NOORDWIJK, M. van.; AMBAGAU, Y.; PALM, C. A. Reducing uncertainty in the use of allometric
biomass equations for predicting above-ground tree biomass in mixed secondary forests. Forest Ecology and Management,
Amsterdam, v. 146, p. 199-209, 2001.
KLEIN, R. M. Ecologia da flora e vegetação do Vale do Itajaí. Sellowia, v. 31, p. 1-389, 1979.
LISTA DE ESPÉCIES DA FLORA DO BRASIL. Disponível em: <http://floradobrasil.jbrj.gov.br/jabot/listaBrasil/PrincipalUC/PrincipalUC.do>. Acesso em 14 de jul. 2015.
MYERS, N. MITTERMEIER, R. A.; MITTERMEIER C. G.; FONSECA, G. A. B.; KENT, J. Biodiversity hotspots for conservation
priorities. Nature, v. 403, p. 853-858, 2000.
MUUKKONEN, P. Forest inventory-based large-scale forest biomass and carbon budget assessment: new enhanced
methods and use of remote sensing for verification. 2006. 49p. Dissertation (Forestry Master’s) University of Helsinki, Helsinki, 2006.
QURESHI, A.; PARIVA.; BADOLA, R.; HUSSAIN, S. A. A review of protocols used for assessment of carbon stock in forested landscapes. Environmental Science & Policy, v. 16, p. 81-89, 2012.
SALATI, E. Emissão x seqüestro de CO2 - Uma nova oportunidade de negócios para o Brasil. Sumário Executivo. In: SEMINÁRIO EMISSÃO X SEQÜESTRO DE CO2: UMA NOVA OPORTUNIDADE DE NEGÓCIOS PARA O BRASIL, 1994, Rio de
Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: CVRD, 1994. p.15-37.
SANQUETTA, C. R.; BALBINOT, R. Metodologias para determinação de biomassa florestal. In: SANQUETTA, C. R.; BALBINOT,
R.; ZILLIOTTO, M. A. (Orgs.) SIMPÓSIO LATINO AMERICANO SOBRE FIXAÇÃO DE CARBONO, 2., 2004, Curitiba. Fixação
de carbono: atualidades, projetos e pesquisas. Curitiba, 2004. Parte 5, p.77-93.
SANTOS, J. R. Análise de modelos de regressão para estimar a fitomassa da floresta tropical úmida de terra-firme da
Amazônia brasileira. 121 p. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 1996.
SOS MATA ATLÂNTICA. Mata Atlântica. Disponível em: <http://www.sosma.org.br/nossa-causa/a-mata-atlantica/> Acesso
em 13 julho 2015.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
190
LA METODOLOGÍA DE GESTIÓN DEL PAISAJE APLICADA EN EL ÁREA DE
PROTECCIÓN AMBIENTAL DE LA BALLENA FRANCA – BRASIL, COMO
INSTRUMENTO DE GESTIÓN TERRITORIAL EN ÁREAS PROTEGIDAS
Delfino, Deisiane1 & Pèlachs Mañosa, Albért2
1. Doctoranda, becaria CAPES/Departamento de Geografía/Universidad Federal de Santa Catarina/Universidad Autónoma de
Barcelona, [email protected]; 2. Departamento de Geografía, Universidad Autónoma de Barcelona, [email protected]
Resumo
La creación de Áreas de Protección Ambiental (APA) en Brasil está ligada a la necesidad de planificación territorial en áreas de
características biológicas relevantes. Tiene el propósito de promover el uso sostenible de los recursos y organizar la ocupación
del suelo, de modo que se establezca un proceso de desarrollo territorial sostenible. Frente las APA, el APA de la Ballena Franca
(APABF), surge como una referencia en la concepción del nuevo paradigma de gestión territorial. El APABF convive con el desafío de conciliar la conservación de los recursos y los valores del territorio con el desarrollo económico y la urbanización. La
gestión del paisaje se presenta como una herramienta novedosa para la gestión en las APAs, a través de la identificación de los
valores y de la integración de las políticas, posibilitando la gestión más integrada y sistémica de los recursos y, especialmente,
de los valores que justifican la existencia y la conservación del área protegida.
Palabras clave: Áreas de Protección Ambiental, APA de la Ballena Franca, Gestión Territorial, Gestión del Paisaje, Valores.
Introdução
Las Áreas de Protección Ambiental (APA) - de acuerdo con el Sistema Nacional de Unidades de Conservación brasileño
(SNUC), ley 9985/2000 - son unidades de conservación ambiental de uso sostenible. La creación de las APA está ligada a la
necesidad de la institución de una planificación territorial en áreas que tengan características biológicas relevantes. Tiene el
propósito de conservar estas áreas, así como, promover el uso sostenible de los recursos y organizarla ocupación del suelo, de
modo que se establezca un proceso de desarrollo territorial - buscando conciliar la protección de los recursos naturales con el
desarrollo económico y social.
La gran mayoría de las APA federales brasileñas (78%) fueron creadas entre los años 80 y 90 y representa todos los biomas. El bioma más bien representado es el Marino, que sumado a la Foresta Atlántica, representa el 46,2% de las áreas protegidas del país (ICMBIO, 20141).
Desde su creación, las APA han sido fuente de conflictos con los agentes territoriales (propietarios de tierras, usos del
suelo, explotación de los recursos naturales, etc.). Pero, también, por malas practicas de gestión y porque se integra a una estructura administrativa muy cargada de figuras (CORTE, 1997; MACEDO, 2008; GRANJA, 2009; MARTINS, 2012; MARQUES;
OLIVEIRA, 2012).
En el caso de las APA en el contexto urbano, cuando su territorio abarca varios municipios, y estos tienen la obligación
de elaborar sus Planes Directores, existe el conflicto relacionado con la superposición de las políticas y herramientas de gestión
(GRANJA, 2009).
El APA de la Ballena Franca (APABF), ubicada en la zona costera marina, en el sur del Brasil, con área de 156.100 hectáreas, fue creada en 2000 con el objetivo de proteger la especie de la Ballena Franca (Eubalaena australis) – que frecuenta el
área entre los meses de julio y noviembre, sobretodo para reproducirse – y promover el ordenamiento territorial y marítimo en el
área, que implica directamente nueve municipios.
El territorio compuesto por el APABF ha tenido un significativo aumento poblacional desde la década de 1970, pasando
de 326.069 habitantes a 848.494 habitantes en 2010. Un crecimiento del 175%, en 40 años, de población rural (58%) a población
urbana (87%). (IBGE, 1970; 2010). Un proceso que ha comportado transformaciones considerables de los paisajes costeros marinos y la pérdida de algunos de los valores más singulares del territorio del APA de la Ballena Franca.
1
Disponible en www.icmbio.gov.br, acceso en 15/07/2014.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
191
Ante este contexto, se plantean algunas cuestiones: ¿Quiénes son los grupos de actores que promueven la transformación del paisaje en el territorio del APABF y como están representados en su consejo gestor? ¿Cuáles son las políticas de
gestión territorial y urbanística que inciden en el territorio del APABF? ¿Qué valores del paisaje los actores atribuyen al territorio
del APABF y cómo pueden contribuir a su ordenamiento y a su gestión territorial?
Así, el presente estudio tiene por objetivo presentar las políticas, los actores y los valores que inciden sobre el paisaje del
APA de la Ballena Franca y la gestión del paisaje como herramienta de ordenación y gestión territorial en las áreas protegidas.
Metodología
Para el desarrollo de la investigación se ha utilizado el marco teórico metodológico sobre la gestión del paisaje y los valores del paisaje europeo y catalán (NOGUÉ; SALA, 2006; 2009; BUSQUETS; CORTINA, 2009).
Para el análisis de la gestión en el territorio del APA de la Ballena Franca, se ha considerado más allá de sus límites
jurídico políticos. Lo que se ha determinado como territorio del APABF es el área compuesta por los nueve municipios que la
componen. El modelo de análisis se basa en el del GTP (Geossistema-Territorio-Paisaje) (BERTRAND, 2000).
Los actores seleccionados para el análisis han sido: a) Los consejeros del Consejo Gestor del APABF en el periodo 20122014; b) Entrevistas semiestructuradas con actores indicados según muestreo por bola de nieve (COLEMAN, 1958; GOODMAN,
1961); c) Entrevistas semiabiertas con el equipo gestor del APABF; d) Análisis de actas de las reuniones del consejo gestor en
el periodo 2006-2015. Es un trabajo de investigación participante y cualitativo. El análisis de los datos fue hecha a través de la
combinación del método cualitativo deductivo e inductivo, con el uso del software AtlasTi.
La Gestión del Paisaje como Herramienta de Gestión y Ordenación del
Territorio en Áreas Protegidas
El paisaje ha ganado importancia en los procesos de gestión en Europa en los años 1990, con la redacción del primer
proyecto del Convenio Europeo de Paisaje, firmado en 2000. El Convenio es resultado de la preocupación por la aceleración del
proceso de transformación del paisaje en función de la economía mundial y de la globalización. Reconoce que el paisaje es un
importante elemento que contribuye a la formación de las culturas locales, patrimonio natural y cultural, recurso económico; y
contribuye, además, a la consolidación de las identidades (CONSEJO DE EUROPA, 2000; ZOIDO, 2009).
El paisaje es un elemento importante de la calidad de vida de las poblaciones en todas partes y su protección, gestión
y ordenación implica derechos y responsabilidades para cada persona (CONSEJO DE EUROPA, 2000). Constituye un pilar en
la construcción del sentido colectivo, en la configuración de la identidad social, dotada de valores que posibilitan evaluar su
evolución y definir políticas para su gestión (NEL.LO, 2012). De acuerdo con esta visión sobre el paisaje, el Convenio Europeo
del Paisaje (CEP), la define como “cualquier parte del territorio, tal como es percibida por las poblaciones, cuyo carácter resulta
de la acción de factores naturales y/o humanos y sus interrelaciones”. Y, de este modo, ha determinado medidas de gestión y
ordenación del paisaje para todo el territorio (CONSEJO DE EUROPA, 2000).
Entre los puntos innovadores de la política de gestión del paisaje europea está la calificación del paisaje considerando
sus valores particulares atribuidos por los actores sociales y, la integración del paisaje a las políticas de ordenación del territorio,
urbanística, ambiental y otras políticas que puedan tener efectos directos o indirectos sobre el paisaje. El convenio se refiere al
paisaje, no solo en su dimensión natural o a las unidades geográficas del paisaje tradicionales, sino al paisaje en su totalidad,
configurando una visión sistémica, multidimensional e integradora.
En el ámbito de la aplicación del CEP y la elaboración de las políticas de gestión y ordenación del paisaje, la Comunidad
Autónoma de Cataluña (España), ha desarrollado una de las políticas más ambiciosas y pioneras en el contexto europeo (ZOIDO,
2009; NEL.LO, 2012). En 2005, se aprobó la ley 8/2005 del Paisaje de Cataluña que tenía por finalidad promover “el reconocimiento, la protección, la gestión y la ordenación del paisaje, a fin de preservar sus valores naturales, patrimoniales, culturales, sociales
y económicos en un marco de desarrollo sostenible” (GENERALITAT DE CATALUNYA, 2005).
La implementación de la política de gestión de paisaje en Cataluña ha sido posible con la creación del Observatorio del
Paisaje y la elaboración de los Catálogos del Paisaje, ambos previstos en la ley 8/2005. Los catálogos clasifican los valores del paisaje
desde todos los puntos de vista (material e inmaterial). De acuerdo con Nogué y Sala (2009), los catálogos son una importante herramienta de gestión del paisaje, y son la base de los objetivos de calidad paisajística que sirven para marcar directrices a la ley.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
192
La identificación de los valores es tenida como una de las etapas más importantes de todo el proceso, porque implica la participación de los ciudadanos. “[…] no todos los paisajes tienen el mismo significado para la población y, por otro lado, a cada paisaje se
le puede atribuir diferentes valores y en grados distintos, según el agente o individuo que lo percibe”. (NOGUÉ; SALA, 2009, p. 422).
De acuerdo con Nogué y Sala (2009) los valores pueden ser determinados de acuerdo con las siguientes características:
a) Valores estéticos: elementos estéticos ligados al sentimiento de belleza que el paisaje puede transmitir, en función de su significado cultural que ha adquirido a lo largo de la historia. b) Valores naturales y ecológicos: elementos que determinan la calidad del
medio ambiente natural, relacionados con las áreas de especial interese natural. c) Valores Productivos: elementos relacionados
con la capacidad de un paisaje de proporcionar beneficios económicos en los diferentes sectores, como el turístico, agrícola,
industrial, mineral, etc. d) Valores históricos: elementos materiales concretos producidos por el ser humano en el paisaje, las
construcciones más relevantes hechas por el hombre a lo largo de la historia. e) Valores de uso social: elementos relacionados
con el ocio, placer, práctica de deportes, terapias, etc. f) Valores religiosos y espirituales: relacionados con las prácticas y creencias religiosas. g) Valores simbólicos e identitários: elementos que poseen una fuerte carga simbólica o de identidad para las
poblaciones locales, teniendo en cuenta la relación de pertenencia.
De acuerdo con Nel.lo (2012) los valores del paisaje se encuentran en riesgo por el impacto de las dinámicas territoriales.
Por este motivo, la preservación de los valores es esencial para el bienestar, la calidad de vida y la cohesión social. Lo que implica
la elaboración de políticas específicas del paisaje, integradas con el planeamiento territorial y urbanístico.
De acurdo con Sala y Moles (2014), cada vez más, las instituciones locales, como los ayuntamientos, ven el paisaje como el
posible motor para su desarrollo: un atractivo local, una señal de civilidad y una vía para incrementar la identidad y la calidad de vida
de las personas. En el contexto de la globalización, la calidad del paisaje puede volverse un factor de diferenciación del territorio
y competitividad para los municipios y la singularización de los territorios, una manera de ser más fuerte frente al mundo global.
Las políticas del paisaje mejor desarrolladas en Europa son aquellas que disponen de estrategias articuladas entre sí y
que cuentan con la participación ciudadana y de los agentes públicos y privados del territorio (SALA; MOLES, 2014). Es decir,
que se acercan a los principios de la gobernanza.
En el contexto de este estudio la gobernanza2 adquiere un papel sustancial, una vez que, en Brasil, el SNUC, prevé que
la gestión de las áreas protegidas cuenta con la participación de la sociedad a través de la formación de un consejo gestor, que
contemple representantes de todos los sectores sociales.
Teniendo en cuenta el marco teórico metodológico de gestión del paisaje, cabe ahora presentar su relación con las APA
en Brasil. Los estudios y los datos sobre las APA, demuestran la importancia que estas unidades han asumido frente al campo de
las unidades de conservación ambiental brasileñas. Asimismo, las APA también poseen ciertas peculiaridades que les confieren
el carácter de territorios ambientales, en el sentido de territorio usado y vivido, material y simbólico.
Las APA son creadas con el objetivo de proteger las áreas de especial interés ecológico y los recursos naturales explotados por las poblaciones tradicionales – y no solo por estas. Estos territorios - en el sentido material concreto - son sobretodo,
territorios jurídico-políticos , controlados por el poder público. Al mismo tiempo, representan el territorio en su dimensión cultural
- en el sentido material, simbólico y de apropiación - a partir del momento en que existen grupos de actores, que pertenecen a
ese territorio, desenvuelven sus actividades y hacen diferentes usos de ellos y les atribuyen diferentes valores. No obstante, constituyen territorios económicos, una vez que sus recursos son aptos, no solo para las comunidades tradicionales, sino también,
para empresas e industrias.
Por lo tanto, el proceso de institución y gestión de áreas de protección, implica reconocer la existencia de los actores que
participan, su relación con el territorio, las territorialidades y los conflictos desencadenados en el uso de los recursos. A partir
del momento en que se reconoce una APA como un territorio, es posible avanzar en el proceso de gestión de la unidad, para el
proceso de gestión territorial. Este es el primer gran avance en el contexto del APA de la Ballena Franca.
El segundo punto de discusión en el presente estudio es la importancia de los valores territoriales, identificados a partir
Por gobernanza se entiende el proceso social de planteamiento e gestión de los recursos públicos, “en modo de interdependencia – asociación – coproducción –
corresponsabilidad entre el gobierno y las organizaciones privadas y sociales”. (AGUILAR, 2006 apud BARRAGAN, 2014). Teniendo en cuenta el contexto litoral del
APA de la Ballena Franca, aun considerase aquí el referencial de gobernanza para la gestión integrada de áreas litorales y para los ecosistemas costero marinos, que
además de presentar los principios específicos de la gobernanza, enfoca en el funcionamiento y los limites de este ecosistema (BARRAGAN, 2014).
3
Haesbaert (2013) agrupa la concepción de territorio a partir de tres vertientes: 1) jurídico-política donde el territorio es visto como un espacio delimitado y controlado
generalmente por la figura del Estado. 2) cultural, donde el territorio posee un sentido más subjetivo, producto de la apropiación de un determinado grupo sobre su
espacio. 3) económico, resultado de las relaciones económicas del choque entre las clases sociales.
2
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
193
de la metodología de valores del paisaje utilizada en la gestión del paisaje en Cataluña. El paisaje es un importante elemento en
la constitución de unidades de conservación. Sin embargo, es en el ámbito de las unidades de conservación de uso sostenible,
donde se revela en su sentido más amplio – el paisaje como resultado dinámico de la interfaz sociedad y naturaleza a lo largo del
tiempo. El paisaje se presenta como un elemento clave en la constitución de las APA, ya que uno de los mayores desafíos para
las APA es equiparar el uso de los recursos y la conservación de estos con el desarrollo económico.
Teniendo en cuenta la experiencia del APA de la Ballena Franca, se propone que el paisaje sea el elemento de enlace entre los municipios y el APA. Por lo tanto, es fundamental reconocer el paisaje como un instrumento de gestión territorial y avanzar
en el reconocimiento de los valores del paisaje, para contribuir en la consolidación de un proyecto de gestión territorial en el APA
a través de los valores comunes, de forma sostenible, integrada, sistémica y participativa.
Además, es importante destacar que entre las categorías de áreas protegidas del International Union for Conservation of
Nature (IUCN), las APA en Brasil aparecen como un ejemplo de aplicación de la categoría V, denominada de Paisaje terrestre/
marino protegido (PHILLIPS, 2002). De acuerdo con la IUCN los paisajes terrestre/marino corresponden a las áreas protegidas “en la que la interacción entre los seres humanos y la naturaleza ha producido un área de carácter distintivo con valores
ecológicos, biológicos, culturares y estéticos significativos” (DUDLEY, 2008, p. 25, grifo nuestro). Esta categoría es considerada única entre las demás categorías de áreas protegidas en el mundo, porque considera la intervención y la interacción humana, conjuntamente. Abarca paisajes más extensos y múltiples valores, paisajes valiosos por su biodiversidad y riqueza cultural.
La Gestión Territorial en el APA de la Ballena Franca, Santa Catarina, Brasil:
Políticas, Actores y Valores
El APA de la Ballena Franca fue creada en 2000 para proteger la especie de la Ballena Franca (Eubalaena australis),
frente la amenaza de extinción en el territorio brasileño. Sin embargo, este no es el único objetivo del APABF, entre sus objetivos
está la promoción de la ordenación territorial en su área de influencia, compuesta por nueve municipios del litoral centro sur
catarinense, en Brasil.
El paisaje del APABF es bastante diversificado y singular, resultado de una combinación de agentes y procesos naturales
específicos de la zona costera marino sur catarinense y de la actuación humana en diferentes periodos históricos – sobretodo,
de origen indígena, azoriana e italiana, ligada a las actividades culturales y económicas de cada época. Los tres grandes pilares
ecológicos del paisaje del APABF son la ballena, el mar, las dunas y la vegetación nativa. Pueden ser vistos en un área de cerca
de 130 km de playas con dunas, lagunas, estuarios de grandes ríos, marismas, selvas densas, vegetación de restinga y remanentes de manglares. Por otro lado, los pilares culturales del paisaje del APABF son las comunidades tradicionales y toda la cultura
ligada a la pesca artesana. Asimismo, su paisaje esta compuesto por concheros, centros históricos, paisajes rurales y urbanos;
infraestructuras como el puerto, el aeropuerto y las autopistas; las actividades turísticas de verano, agrícola, industrial y la pesca.
Entre las amenazas para la gestión del APABF, se destacan el crecimiento del mercado inmobiliario y de la urbanización
en las playas, la ocupación y degradación de áreas de dunas y vegetación de restinga, el crecimiento poblacional, el turismo de
masas estacional y la pérdida de valores singulares (DELFINO; BELTRAME, 2014a).
Además de promover la gestión de la unidad y de sus recursos, los gestores del APA han promovido la gestión territorial:
a) por la participación del Consejo Gestor en las decisiones pertinentes al territorio; b) por el diálogo con actores estratégicos
como los empresarios y los ayuntamientos, en el intento de influenciar en las políticas públicas locales y regionales; c) por
considerar los valores locales en la gestión de la unidad; d) promover la gestión integrada con otras unidades de conservación
ambiental (DELFINO; BELTRAME, 2014b).
La superposición de políticas y escalas de gestión
El SNUC es la política responsable para la creación, implementación y gestión de unidades de conservación ambiental
en Brasil. No obstante, en el contexto de un área protegida hay que considerar otras políticas de acuerdo con el contexto en que
está inserida. El APA de la Ballena Franca es un área protegida marino costera federal, ubicada en el bioma de la Foresta Atlántica
en el estado de Santa Catarina.
Para su efectiva gestión hay que considerar las políticas implicadas en este contexto en los tres diferentes niveles de
gestión gubernamental: federal, estadual (Santa Catarina) y municipal (Cuadro 1).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
194
Se ha constatado que la mayoría de estas políticas indican la promoción del desarrollo sostenible y la gestión democrática de los territorios, como medio para alcanzar sus objetivos. Aunque, los gestores del APABF se enfrentan al problema de la
creciente desarticulación y desintegración de los órganos gestores en relación a la ejecución de tales políticas - una vez que sus
objetivos y áreas de implementación se sobreponen.
Las escalas regionales de gestión
El APABF comprende nueve municipios (Figura 1), 156.100 hectáreas de área protegida y una costa de cerca de 130
kilómetros, comprendiendo cinco cuencas hidrográficas. Teniendo en cuenta este contexto, se ha buscado identificar cuáles
son las diferentes escalas de gestión que implican decisiones en el territorio y en los municipios del territorio del APA (Figura 1):
la gestión de unidades de conservación, gestión de cuencas hidrográficas, la gestión costera, las secretarias de desarrollo del
Estado, las asociaciones de municipios y la gestión urbanística municipal de cada uno de los nueve municipios.
Figura 1. Escalas de gestión en el territorio del APABF. Siglas: APA (Área de Protección Ambiental), PEST (Parque Estadual Serra Tabuleiro),
GERCO (Gestión Costera), CH (Cuenca Hidrográfica), SDR (Secretaria de Desarrollo Regional), AMREC (Asociación de Municipios de la
Región Carbonífera), AMUREL (Asociación de Municipios de la Región de Laguna), GRANFPOLIS
(Asociación de Municipios de la Grand Florianópolis). Fuente: elaborado por los autores.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
195
De los municipios que componen el APABF, ocho son costeros y tienen como característica común el paisaje litoral y los
ecosistemas costeros marinos. Tubarão, aunque sin ser costero, en él se encuentra el principal río que desagua directamente en
el complejo lagunar más grande e importante del territorio.
De acuerdo con las escalas de gestión presentadas (Figura 1), los municipios están distribuidos entre las diferentes instituciones de gestión regional, políticas, administrativas y ambientales - siendo el APABF la única que congrega todos. Aún así,
el APABF está subdividida en tres sectores para mejorar la gestión del territorio (norte, sur y central). Según el equipo gestor del
APA, esta división forma parte de una estrategia de gestión según las características de cada sector.
Los actores implicados
Entre los grupos de actores, se ha verificado que los principales conflictos giran en torno a los recursos y los valores del
paisaje de la zona costera marina. Entre ellos, se puede destacar el importante papel de los municipios, los agentes inmobiliarios,
los residentes nativos y sus descendientes, y los inmigrantes provenientes de otras regiones. Estos grupos de actores de alguna
manera compiten por el mismo objeto - el paisaje de las playas (cuadro 2), aunque lo hacen con diferentes estrategias, atribuyéndoles diferentes valores y generando diferentes conflictos (DELFINO; BELTRAME, 2015).
De acuerdo con los actores encuestados los principales conflictos pasan por la existencia de políticas urbanas municipales poco claras, o poco conocimiento sobre las políticas que inciden sobre el paisaje del APA. Algunos grupos de actores
presentan una visión distorsionada sobre el APABF, creyendo que esta es un obstáculo al desarrollo de los municipios.
El Consejo Gestor
El Consejo Gestor del APABF (CONAPABF) fue creado en 2005, con la participación de 42 instituciones de representación de los sectores público, económico y social. El CONAPABF tiene por objetivo garantizar la gestión participativa e integrada
del APABF, a través de acciones que aseguren la protección de la diversidad biológica y cultural, la regulación de la ocupación
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
196
del suelo y la sostenibilidad del uso de los recursos naturales (IBAMA, 2006). El consejo está compuesto 1/3 por instituciones del sector público, 1/3 por los usuarios de los recursos del territorio y 1/3 por ONGs ambientalistas (Figura 2).
Figura 2. Composición del Consejo Gestor por grupo de actores, entre 2006-2014. Fuente: elaborado por los autores.
La representación en el consejo ha variado de acuerdo con el grupo de actores y el periodo de gestión. Sin embargo, se
ha verificado que el sector de usuarios fue el único que siempre ha completado las plazas disponibles (1/3), puesto que, el sector
de las ONGs ambientalistas ha encontrado dificultades para completar 1/3 de las plazas en el CONAPABF.
Otro factor a ser considerado, es que el municipio de Imbituba fue el que siempre tuvo más representaciones en el consejo; y que los municipios de Paulo Lopes y Palhoça estuvieron sin representantes hasta 2014, cuando Palhoça ingresó con un representante en el sector de usuarios. Actualmente, de los nueve ayuntamientos, apenas cuatro tienen representación en el consejo.
Los valores del paisaje del APA
Los principales conflictos en el APABF giran en torno a la ordenación del uso del suelo y de los recursos naturales en el
paisaje costero. Las playas son un elemento común a ocho de los nueve municipios del APABF.
Los grupos de actores encuestados, aunque atribuyen diferentes valores al paisaje en el APABF, destacan el importante
papel del paisaje costero para la manutención de los valores y para el desarrollo del territorio (Cuadro 3). En la identificación
de los valores, los actores cuando son cuestionados, atribuyen al APABF los mismos valores que atribuyen a los municipios que
representan.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
197
Observaciones Finales
Teniendo en cuenta las dificultades de gestión sufridas por las unidades de conservación brasileñas, el Área de Protección Ambiental de la Ballena Franca, protagoniza un innovador modelo de gestión en el campo de las áreas protegidas. Los
gestores del APABF, la conciben como un territorio, dotado de valores singulares, donde hay distintos intereses, actuación de
múltiples grupos de actores, relaciones de poder y, consecuentemente, diferentes estrategias en torno al uso de los recursos
ambientales - los naturales y los culturales – y de apropiación de sus valores. Su actuación consiste en promover el diálogo con
los diferentes actores implicados y romper con el paradigma de que las áreas protegidas son un obstáculo para el desarrollo
económico. Sin embargo, aún se encuentran con muchas resistencias, sobretodo, por parte de los agentes económicos y los
gestores municipales.
Tales resistencias se materializan en la flexibilización de las leyes de uso y ocupación del suelo urbano litoral por los municipios, en el no cumplimento de las leyes ambientales, en la visión distorsionada de que las áreas protegidas son restrictivas
e impiden el desarrollo económico. Sin embargo, algunas iniciativas de diálogo han apostado en medidas de concertación que
beneficien a todos los actores implicados. Iniciativas estas en las que los agentes privados adecuarán sus emprendimientos a
una serie de sugerencias por parte de los gestores del APA, siendo más sostenible con los valores del territorio.
Teniendo en cuenta que: 1) el APABF es una área protegida que considera la interacción entre las comunidades y la naturaleza, y además, que de esta interacción resultan ciertos valores distintos y singulares a su territorio; 2) los conflictos de gestión que
enfrenta; 3) la necesidad de articulación y de integración entre las políticas y los actores en diferentes escalas; 4) el territorio del
APABF extrapola los límites político jurídicos utilizados para la elaboración del plan de manejo; esta investigación buscó un marco
teórico metodológico capaz de contribuir a la gestión territorial en el APA de la Ballena Franca, pautada en la gestión del paisaje y
en los valores del paisaje. Una herramienta útil en manos de los actores, aquellos que viven y sienten el paisaje a cada día.
El paisaje litoral es el que ha sufrido más transformaciones por el crecimiento poblacional y la urbanización de las playas.
Los agentes inmobiliarios, los agentes públicos municipales, la población nativa ligada a la cultura pesquera y los inmigrantes,
son considerados en este estudio como actores clave para la gestión del área.
Sobre la participación de los municipios en el consejo gestor, son los municipios del sector central del APABF los que
tienen la mayor participación desde el principio. Los ayuntamientos, en especial, demuestran poco interés en participar del
consejo, siendo su aportación esencial, una vez que son responsables por la implementación de las políticas urbanísticas municipales.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
198
Sobre las políticas, el territorio del APABF cuenta con una serie de políticas a diferentes escalas de gestión, que están desarticuladas entre sí y su superposición compromete la efectiva gestión de los recursos, una vez que, en algunos casos, como en
los planes directores municipales, presentan incoherencias en el uso y ocupación del suelo con la conservación de los recursos
y sus valores.
Entre los valores identificados, se ha verificado que los actores, en general, reconocen dos grandes ejes: uno, ligado a
los valores estéticos y los ecológicos; otro, ligado a los valores simbólicos y de identidad. Sin embargo, en sus discursos apuntan
otros valores y otras categorías mucho más específicas y propias del territorio, que pueden contribuir a la gestión del APABF.
La gestión del paisaje posee visión sistémica, integradora, más amplia, de mejora constante del paisaje y se presenta
como una importante herramienta de gestión de territorios en áreas de protección ambiental, porque presupone la concertación
entre los actores envueltos en la mejora de la calidad del paisaje y de la conservación de sus valores.
Referencias
BARRAGÁN, J.M. Política, Gestión y Litoral. Una nueva visión de la gestión integrada de áreas litorales. Madrid: Ed.
Tébar Flores, 2014.
BERTRAND, G. (1968) Le paysage et la géographie: un nouveaurendez-vous. Treballs de la Societat Catalana de Geografia,
v. XV, n. 50, p. 57-93, 2000.
BUSQUETS, J.; CORTINA, A. Gestión del Paisaje. Manual de protección, gestión y ordenación del paisaje. Barcelona:
Ed. Ariel, 2009.
COLEMAN, J.S. Snowball sampling: Problems and techniques of chain referral sampling. Human Organization, v. 17, p. 28-36,
1958.
CONSEJO DE EUROPA. Convenio Europeu del Paisaje. Florencia: 20/10/2000. Disponible en <http://www.catpaisatge.net>,
acceso en 01 julio 2015.
CÔRTE, D. Planejamento e gestão de APAs: enfoque institucional. Brasília: Edições Ibama, 1997.
DUDLEY, N. Directrices para la aplicación de las categorías de gestión de áreas protegidas. Gland, Suiza: UICN, 2008.
DELFINO, D.; BELTRAME, A. Áreas de Protección Ambiental en Brasil: desde la conservación de los recursos hacia la concepción del nuevo paradigma para la gestión territorial. En: AGAL (coord..) XV EGAL – Actas del Encuentro de Geógrafos da
América Latina. Por una América Latina unida y sustentable. Cuba: CD, 2015.
_________. Áreas de Protección Ambiental y los Valores Territoriales como la Posibilidad de Gestión en las Unidades de Conservación en Brasil. In: FUNDICOT - VII Congreso Internacional de Ordenación del Territorio: Patrimonio y planificación territorial
como instrumentos para otro Desarrollo, 2014, Madrid. Actas… Tomo II, Madrid, 2014a, pp. 461-476.
________. Gestão territorial participativa em unidade de conservação: análise da trajetória do Conselho Gestor da Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca. In: ENAPEGS - Gestão Social e Interdisciplinaridade: construindo novas pontes e expandindo
fronteiras, 8., 2014, Cachoeira. Anais… Cachoeira: ENAPEGS, 2014b.
GENERALITAT DE CATALUNYA. Lei 8/2005 i reglament de protección, gestió i ordenació del paisatge. Col.lecióQuaderns de
legislació, 65. Barcelona, 2006. Disponible en <http://www.catpaisatge.net>, acceso en 01 julio 2015.
GOODMAN, L.A. Snowball sampling. The Annals of Mathematical Statistics, v. 32, p. 148-170, 1961.
GRANJA, L.V.A.C. O papel das áreas de Proteção Ambiental – APAS na conservação dos recursos naturaisem áreas
urbanas. 2009. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade
de Brasília. Brasília, 2009.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
199
HAESBAERT, R. O Território e a Nova Desterritorialização do Estado. In: DIAS, L. C.; FERRARI, M. (Orgs). Territorialidades
Humanas e Redes Sociais. Florianópolis: Insular, 2. ed., 2013.
IBAMA. INSTITUTO BRASILEIRO DE RECURSOS RENOVÁVEIS E MEIO AMBIENTE. Decreto sn/2000. Decreto de Criação
do Conselho Gestor da Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca. Brasília: MMA, 2006.
IBGE. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico: 1970 e 2010.
MACEDO, H.S. Processos participativos na gestão de áreas protegida: Estudos de caso em unidades de conservação de uso sustentável da zona costeira do Sul do Brasil. 2008. Dissertação (Mestrado em Sociologia Política), Programa
de Pós-Graduação em Sociologia Política, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.
MARQUES, P.E.M.; OLIVEIRA, K. A. Áreas de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Territorial: Perspectivas em torno do Conselho Gestor da APA Corumbataí em São Paulo. Raízes, v. 32, p. 139-152, 1992.
MARTINS, A. Entre Terra e Mar. Interfaces no processo de transformação territorial na Área de Proteção Ambiental
da Baleia Franca. 2012. Dissertação (Mestrado em Geografia). Programa de Pós-graduação em Geografia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.
NEL.LO, O. Ordenar el Territorio. La experiencia de Barcelona y Cataluña. Valencia: Ed. Tirant Humanidades, 2012.
NOGUÉ, J.; SALA, P. Los Catálogos de paisaje. In: BUSQUETS, J.; CORTINA, A. Gestión del Paisaje. Manual de protección,
gestión y ordenación del paisaje. Barcelona: Ed. Ariel, 2009.
________. Prototipus de catàleg de paisatge. Bases conceptuals, metodològiques i procedimentals per elaborar els
catàlegs de paisatge de Catalunya. Olot i Barlcelona, 2006. Disponible en < http://www.catpaisatge.net>. Acceso en 01 julio
2015.
PHILLIPS, A. Management Guidelines for IUCN Category V Protected Areas: Protected Landscapes/Seascapes. World
Commission on protected Areas. Best Practice protected area guidelines series n. 9. Gland: IUCN, 2002.
SALA, P.; MOLES, A. La planificació del paisatge en l ‘àmbit local a Europa. Els casos d’Alemanya, França, Paisos Baixos, Regne
Unit, Suissa i la regió de Valònia, a Bèlgica. Olot i Andorra, 2014. Disponible en < http://www.catpaisatge.net>. Acceso en 01
julio 2015.
ZOIDO, F. El Convenio Europeo del Paisaje. In: BUSQUETS, J.; CORTINA, A. Gestión del Paisaje. Manual de protección,
gestión y ordenación del paisaje. Barcelona: Ed. Ariel, 2009.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
200
AS MULHERES EXTRATIVISTAS NA RESEX MARINHA DO PIRAJUBAÉ:
DESAFIOS E POSSIBILIDADES DE VALORIZAÇÃO DOS SABERES E
HABILIDADES FEMININAS NO DESENVOLVIMENTO DAS
ATIVIDADES DA PESCA ARTESANAL
Laci Santin, Laci1 & Horton, Emily Y.2
1. Analista Ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, Reserva Extrativista Marinha do
Pirajubaé. [email protected] 2. Doutoranda do PPG em Conservação Integrativa e Antropologia,
Universidade da Georgia - USA. [email protected]
Resumo
O objetivo deste artigo é refletir sobre as relações de gênero e o papel das mulheres na Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé
(RESEX Pirajubaé). Apesar da importância das contribuições das mulheres nas atividades da pesca, existem grandes lacunas de
informação sobre o papel das mulheres na RESEX Pirajubaé, bem como sobre sua participação pública, historicamente limitada.
Este artigo tem por finalidade destacar a necessidade de se aprofundar no entendimento das relações de gênero na pesca e
de promover uma maior inclusão e visibilidade das mulheres nesta área protegida. As autoras se propõem ainda, por meio de
uma troca colaborativa de conhecimentos, a sensibilizar sobre a necessidade de realizar estudos aprofundados sobre o papel
das mulheres na cadeia produtiva das atividades extrativistas e sua importância na reprodução da cultura e modo de vida das
populações pesqueiras.
Palavras-Chave: Relações de Gênero, Pesca, Reserva Extrativista Marinha, Gênero e Desenvolvimento, Inclusão Social.
Introdução
Reservas extrativistas: do terrestre à marinha
Ao longo das últimas três décadas as Reservas Extrativistas (RESEX), uma categoria de unidade de conservação de uso
sustentável, se espalharam por todo o Brasil. O objetivo das RESEX é salvaguardar os meios de subsistência e culturas das populações tradicionais e conservar os recursos naturais (DE MOURA et al., 2009, p. 618). Embora este modelo de área protegida
tenha se originado das lutas de grupos amazônicos para garantir o acesso aos territórios e o uso de recursos naturais essenciais
para o modo de vida e cultura dessas populações, especialmente dos seringueiros (GLASER & OLIVEIRA, 2004, p. 226; DE
MOURA et al., op. cit., p. 618), em tempos mais recentes, uma segunda geração de reservas extrativistas surgiu em ambientes
marinhos ao longo do litoral do Brasil. São as chamadas Reservas Extrativistas Marinhas ou Marinho-Costeiras, que hoje somam
aproximadamente 19 RESEX ao longo do litoral brasileiro, abrangendo cerca de 835 mil hectares (SANDERS; GREBOVAL;
HJORT, 2011, p.14). As RESEX marinhas representam um dos esforços mais significativos do governo federal para a proteção
dos recursos de uso comum dos pescadores artesanais, através da cogestão (DE MOURA et al., op. cit., p. 617), um processo
em que os governos e as comunidades partilham poder e responsabilidades (SILVA, 2004, p. 419).
Este artigo se centra na dinâmica do gênero na primeira reserva extrativista marinha criada no Brasil, a Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé (RESEX Pirajubaé), uma unidade de conservação urbana localizada no bairro da Costeira do Pirajubaé, junto à baía sul da ilha de Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina. O escopo deste trabalho se limita a fazer uma
introdução à questão de gênero na RESEX, discutindo gênero, desenvolvimento e inclusão social das populações tradicionais,
sem a pretensão de aprofundar nas discussões sobre teoria de gênero neste momento, o que requereria de estudos e pesquisas
mais abrangentes.
Gênero e mulheres
Embora o foco deste artigo seja sobre mulheres e gênero, deve-se enfatizar que sexo e gênero não é a mesma coisa
(BENNETT, 2005, p. 452), uma vez que sexo se refere a diferenças biológicas entre homens e mulheres e gênero se refere aos
papéis socialmente construídos e que são atribuídos a cada sexo. Assim, a análise de gênero considera os papeis de homens
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
201
e mulheres em diferentes sociedades e pode contribuir para o entendimento de como esses papeis podem afetar quem tem
influência, poder e capacidade de tomar decisões sobre como os recursos são distribuídos e usados(MATTHEWS; JAMIE;
EASKEY, 2012, p. 8).
As relações de gênero podem, assim, influenciar fortemente algumas variáveis, tais como, a forma de como as decisões
são tomada a nível individual e familiar, na divisão do trabalho, diferentes papéis dentro da família ou o uso do tempo (DI CIOMMO & SCHIAVETTI, 2012, p.17). Enquanto gênero e mulheres não são sinônimos, iniciativas que tentam incorporar questões
de gênero muitas vezes visam capacitar às mulheres por meio de engajamento mais equitativo com a tomada de decisão e outros
processos; este objetivo decorre do reconhecimento de que a dinâmica de gênero muitas vezes cria desigualdades, especialmente em termos de estatuto, posição social, e poder das mulheres (MATTHEWS; JAMIE; EASKEY, op. cit., p. 8).
Gênero e desenvolvimento
Desde a década de 1980, a questão de gênero dentro do contexto de desenvolvimento tem recebido cada vez mais atenção (BENNETT, 2005, p. 453). A inclusão da perspectiva de gênero é uma abordagem adotada por inúmeras entidades, tais como
o Banco Mundial, para garantir “que o gênero seja incorporado em todos os níveis do processo de desenvolvimento, em todos
os níveis da elaboração de políticas, planejamento orçamentário e de avaliação, de modo que ele seja integrado na forma como
o governo opera” (BENNETT, op. cit.).
Apesar de muitos elogiarem essa incorporação sistêmica das questões de gênero em programas formais, esta visão
não é isenta de críticas. Por exemplo, a tendência em se confundir gênero com mulheres traz como consequência que homens, igualmente em situação de vulnerabilidade social, são muitas vezes excluídos de programas de desenvolvimento com
foco em gênero (NYANCHAM-OKEMWA, 2000, p. 4). Algumas posições contrárias às políticas neoliberais argumentam que a
atenção do Banco Mundial à questão de gênero no desenvolvimento econômico é realmente uma maneira de incorporar mais
mulheres ao mercado e, portanto, coloca-as em risco de serem reduzidas à produtoras e comerciantes (BENNETT, op. cit., p.
453). Outros criticam as iniciativas de desenvolvimento focado no gênero por assumir que as mulheres são vítimas de estruturas
patriarcais, tratando-as como receptoras passivas do desenvolvimento focado no gênero, ao mesmo tempo em que assumem
que os membros das redes de mulheres são homogêneas e mutuamente preocupados com a abordagem de questões comuns
(NYANCHAM-OKEMWA, op. cit., p. 3). Finalmente, alguns destacam que o conceito de gênero é uma construção sociocultural
em grande parte baseada em tradições filosóficas ocidentais e europeias e que muitas vezes não se encaixa facilmente dentro
de outros contextos socioculturais, observando que seria uma falácia supor que a equidade de gênero e emancipação feminina
são verdades e objetivos universais (BENNETT, op. cit., p. 452).
Tais críticas podem ajudar profissionais e acadêmicos a serem mais cautelosos em relação a aceitação e propensão
enquanto ao aumento da sensibilidade nas inter-relações e interconexão entre os sexos masculinos e femininos (BENNETT, op.
cit., p. 453). No entanto, apesar dessas críticas, e devido às desigualdades observadas, é crescente a atenção dada a questão de
gênero e ao papel das mulheres na pesca.
Gênero e pesca
Embora o envolvimento das mulheres na captura, processamento, finanças e comercialização da pesca seja essencial, o
papel destas e as dinâmicas de gênero na gestão e políticas da pesca é frequentemente ignorado e pouco estudado (HARPER
et al., 2014, p. 56). Lacunas de informação podem ser agravadas pelo discurso acadêmico que repete narrativas dominantes (por
exemplo, pesca como masculino) e torna as perspectivas femininas silenciosas ou invisíveis (WOORTMANN, 1992, p. 2). Muitos
dos que trabalham em questões de gênero e de pesca ao longo da última década, quase por unanimidade, concordam que um
dos principais obstáculos para a melhoria da equidade de gênero é a falta de dados desagregados por gênero em atividades
relacionadas com a pesca (HARPER et al., op. cit., p. 57). Há também uma necessidade de compreender a relativa ausência de
mulheres nos processos de co-gestão costeira dos recursos marinhos e os fatores que encorajam (ou desencorajam) a participação das mulheres nesses processos, e potenciais conexões com as questões de gênero (DI CIOMMO & SCHIAVETTI, op.
cit., p. 16).
Como destacam Di Ciommo e Schiavetti (2012), quando a gestão dos recursos naturais nas comunidades pesqueiras
é baseada predominantemente na população masculina, é difícil entender a amplitude das ameaças de recursos, conflitos e
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
202
oportunidades disponíveis. A promoção da participação das mulheres nos processos de gestão pode ter implicações importantes para a redução da pobreza e melhoria da qualidade de vida das mulheres e suas famílias (HARPER et al., op. cit., p. 56; DI
CIOMMO & SCHIAVETTI, op. cit., p. 17). As mulheres têm muito a contribuir, inclusive em termos de conhecimentos, inovação,
perspectiva, experiência e habilidades. Além disso, incluir a sensibilidade de gênero nos processos de gestão é especialmente
importante considerando que, enquanto mulheres e homens muitas vezes têm desafios e necessidades semelhantes, algumas
questões são específicas para os homens e outras para as mulheres (DI CIOMMO & SCHIAVETTI, op. cit., p. 22).
A identidade como pescador, da mesma maneira como acontece na agricultura, historicamente é atribuída aos homens
pelas relações externas que estabelecem, em especial, financeiramente com o mercado. Já as relações internas na família e na
comunidade são fortalecidas e mantidas pelas mulheres. É a mãe e esposa que cuida da saúde, alimentação e religiosidade da
família (SANTIN, 2004, p. 235). O trabalho da mulher, mesmo sem contar a dupla jornada feminina, é tratado como “leve”, com remuneração inferior ao homem, no entanto, e considerando que ambos os trabalhos requeiram o mesmo número de horas, “o esforço
físico exigido por um tem como contraponto a habilidade, a paciência e a rapidez requeridas pelo outro” (PAULILO, 1987, p. 67).
Metodologia
Este trabalho foi elaborado a partir da experiência conjunta das autoras. A partir de estágio realizado por uma das autoras
junto à RESEX Pirajubaé/SC, nos meses de junho e julho de 2015, complementado com experiência em acompanhamento de
pesquisas de campo na RESEX Marinha de Cururupu/MA, no ano de 2014, e ampliado com a experiência profissional da outra
autora que trabalha como analista ambiental no ICMBio, sendo os últimos cinco anos junto a Reserva Extrativista Marinha do
Pirajubaé. Também foram realizadas análises de publicações e pesquisas sobre a RESEX Pirajubaé, artigos científicos sobre
gênero e pesca e dados secundários, como participação em reuniões e atividades em grupo com os(as) extrativistas, conversas
informais com extrativistas e suas famílias (homens e mulheres) e observação participante.
Resultados e Discussão
A Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé foi a primeira reserva extrativista marinha criada no Brasil, em junho de 1992,
mediante o Decreto Federal nº. 533 de 20 de maio de 1992. A RESEX Pirajubaé tem por finalidade assegurar o uso sustentável e
a conservação dos seus recursos naturais, protegendo os meios de vida e cultura das populações tradicionais que utilizam esses
recursos. Possui uma área real de 1.712 ha, composta por 759 ha de mangue e 953 ha de área marítima, onde pescadores artesanais e coletores do molusco bivalve conhecido como berbigão (Anomalocardia brasiliana) extraem os recursos que permitem
a manutenção do modo de vida e reprodução social dessas populações.
O mangue e os bancos de areia da RESEX oferecem condições para a reprodução, alimentação e crescimento de diversas espécies de peixes, moluscos e crustáceos que são capturados no interior e fora da unidade de conservação. Por dispor do
maior e o menos alterado manguezal na baía sul da ilha de Florianópolis, este ecossistema também contribui indiretamente na
manutenção dos estoques pesqueiros da região.
Considerações e desafios de gênero na RESEX Pirajubaé
Atualmente ainda é limitada a compreensão sobre a dinâmica de gênero e o papel das mulheres na pesca artesanal dentro da RESEX. No entanto, há interesse de parte de servidores do ICMBio, bem como de alguns pesquisadores, em ampliar a
participação e inclusão das mulheres nos processos de cogestão e tomada de decisão na RESEX, incorporando considerações
de gênero nos processos institucionais e de pesquisa. Este artigo é um reflexo desse interesse. Apesar de numerosos desafios,
existem oportunidades para essa inclusão.
Na RESEX Pirajubaé observam-se duas formas de trabalho em que as mulheres atuam nas atividades pesqueiras. Nas
atividades no mar, as mulheres operam somente na extração do berbigão nos bancos de areia, e em um número reduzido, em
função de ser uma atividade que requer grande resistência e esforço físico. A maior parte das trabalhadoras realiza trabalho em
terra, na atividade de cozimento e desconche do berbigão e junto aos ranchos, no recebimento e limpeza do pescado e atividades complementares da pesca.
Para identificar lacunas de informação e conhecimentos existentes sobre gênero e o papel das mulheres na RESEX Pirajubaé, foram revisados quatro publicações de pesquisa sobre a reserva. Cada documento foi analisado por seu compromisso
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
203
com as questões de gênero e o papel das mulheres no contexto da RESEX. Em todos os estudos a discussão relativa a esta
temática é muito limitada. A maioria das referências às mulheres nas publicações é em relação ao seu papel como descascadeiras ou desconchadeiras. Esta atividade compõe a cadeia produtiva do berbigão, desempenhando um papel importante na
atividade de processamento para venda do produto a nível local. A maioria dos entrevistados especificamente referenciados nas
publicações é do sexo masculino. Apresentamos a seguir uma breve revisão de cada publicação.
Seguindo uma ordem cronológica, o primeiro documento revisado foi publicado em 2009, como parte da primeira fase da
elaboração do Plano de Manejo Participativa da RESEX. Essa publicação é de especial importância, uma vez que é uma revisão
e síntese de 176 trabalhos científicos ou técnicos junto à RESEX (ICMBIO, 2009, p. 25), em sua maioria, trabalhos relacionados
à gestão ou às ciências biológicas. A autora enfatiza que há uma lacuna de informações referentes aos aspectos sociais, culturais
e econômicas de extração. Ela também acrescenta que há uma necessidade de compreender as relações de gênero em atividades de extração e de atuação em toda a cadeia produtiva, desde a extração inicial até o consumo final (ICMBIO, op. cit., p. 58).
Enquanto há uma discussão limitada de gênero no relatório, a autora menciona o envolvimento das mulheres nas atividades de
desconche e descreve as condições de trabalho como precárias e insalubres (ICMBIO, op. cit., p.14). Por exemplo, ela observa
que as mulheres utilizam madeira para cozinhar o berbigão antes de descascar, resultando em “uma fumaça insuportável no local” (ICMBIO, op. cit.).
O segundo documento é uma monografia para obtenção do grau de bacharel em geografia, publicada em 2013 e intitulada: A Gestão dos Recursos de Uso Comum na Área da Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé (TEBET, 2013). Neste estudo
foram realizadas entrevistas com quatro pessoas (TEBET, op. cit., p.14), que se presume sejam do sexo masculino. Semelhante
a outras publicações, há uma discussão limitada de gênero e mulheres. No entanto, o autor menciona que na área da reserva,
durante a década de 1950, a pesca foi realizada predominantemente por homens (TEBET, op. cit., p. 29), no entanto, fornece uma
breve descrição das “descascadeiras” de berbigão:
“em sua maioria mulheres dos extrativistas, as quais, embora não trabalhem no mar, estão intimamente relacionadas com a cadeira produtiva do berbigão, pois todo produto antes de ser comercializado tem que passar pelas mãos delas” (TEBET, 2013, p. 41).
Ao fornecer uma visão histórica da área da reserva, o autor menciona as famílias locais em diversas ocasiões, no entanto,
há uma discussão limitada sobre as funções específicas de mulheres e homens no contexto familiar.
O terceiro documento revisado foi um estudo antropológico encomendado pela RESEX Pirajubaé como requisito prévio
para o cumprimento de condicionante ambiental de educação ambiental integrante do “Processo de Autorização de Licenciamento Ambiental da Rodovia Diomício de Freitas e Acesso ao Novo Terminal de Passageiros do Aeroporto de Florianópolis”
(PROSUL, 2014, p.5). O documento foi elaborado pela empresa PROSUL e publicado em 2014. Os autores relatam que mais
de 100 pessoas foram entrevistadas para o estudo com base no cadastro dos extrativistas (em sua maioria do sexo masculino)
cedido pelo ICMBio (PROSUL, op. cit., p. 5 e 12).
Apesar de o estudo ter como objetivo “identificar e descrever as habilidades, saberes, agentes, gênero e gerações envolvidos na atividade extrativista local” (PROSUL, op. cit., p.5), a menção de gênero no documento é muito limitada Os autores
discutem brevemente o desconche de berbigão, que é comumente realizado pelas mulheres (PROSUL, op. cit., p. 33). Eles
também fornecem informações sobre a cadeia produtiva do berbigão e alguns desafios econômicos e laborais que famílias extrativistas enfrentam (PROSUL, op. cit., p. 35-36). Dentro deste contexto, um extrativista é citado desabafando sobre as dificuldades
que ele e sua esposa enfrentam:
“Aqui a gente trabalha como um escravo para o atravessador... ela descascava quinze, vinte, trinta
quilos de berbigão em um dia [referindo-se a esposa]. Começava as seis horas da manhã e ia até
as dez horas da noite. E o que foi que eu ganhei na vida? Problema na coluna” (PROSUL, op. cit.,
p. 35-36).
No documento também se faz uma referência explícita ao gênero em relação às tensões entre moradores “tradicionais”
e moradores que vivem há menos tempo na região e que usam a área de Reserva. Os autores atribuem os conflitos entre esses
grupos às diferenças em “características de valorização da unidade familiar, de gênero, e no exercício das atividades domésticas
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
204
e culturais” (PROSUL, op. cit., p. 41), no entanto, não existe uma análise mais profunda do tema.
Note-se que esse estudo não atingiu completamente seus objetivos declarados da investigação e no Termo de Referência proposto, não tendo sido, por este motivo, aceito como um estudo que atenda a demanda requerida pelo ICMBio/RESEX,
e a condicionante foi considerada não cumprida. Neste contexto, é relevante questionar a efetividade de se realizar um estudo
antropológico por uma empresa contratada que está diretamente ligada aos impactos socioambientais potencialmente negativos
sobre as populações locais estudadas.
A quarta publicação é um livro denominado “A Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé: sujeitos, memórias e saberes
etnobiológicos”, organizado pela professora Liz Ribas (RIBAS, 2014) como produto de pesquisa etnobiológica, escrito em coautoria e com a participação efetiva de dez extrativistas (7 homens e 3 mulheres) da RESEX. Esta publicação foi bem recebida
pelos autores participantes devido à inclusão dos atores locais e a valorização de seus conhecimentos e perspectivas. Assim, ele
pode servir como um modelo metodológico para futuras publicações de pesquisa colaborativa que incorporam explicitamente
considerações de gênero e mulheres.
De todas as publicações esta é a que tem mais informações sobre as descascadeiras. Quando o desconche de berbigão não é feito pela pessoa que o extrai (normalmente do sexo masculino), este é feito muitas vezes por outros membros da
família, especialmente mulheres (esposas, mães, tias) (RIBAS, 2014, p. 28). Ribas observa que, apesar do fato de os meios de
subsistência de muitas mulheres dependerem diretamente desse recurso, as descascadeiras normalmente não são cadastradas
e formalmente reconhecidas como extrativistas na reserva. O informante Nº 5 comenta sobre esta situação, bem como sobre o
contexto laboral de desconchamento:
“Assim, é uma polêmica bem grande, dentro da associação, reconhecer as descascadeiras como
extrativistas – eu acho que tem que reconhecer. Elas vivem (indiretamente) do extrativismo! [...] eu
sempre digo: “eu prefiro tirar (extrair) do que ficar aqui descascando”. Porque aqui [na atividade
de “desconchamento”] é mais psicológico a coisa, porque é muito repetitivo, e muito quietinho, né
[...]. Trabalham de segunda a sexta-feira e de sábado até meio dia. Então, é muito sofrido! O braço
não vai ficar apoiado – tem que ficar suspenso porque tem que trabalhar com a mão aqui: isso aí
cansa! Daí dói as costas, porque fica aqui (Informante Nº 5)” (RIBAS, 2014, p. 28-29).
Ribas (2014, p. 29) também observa que, embora a pesquisa sobre descascadeiras não foi feita para esta publicação,
são necessários mais estudos sobre as pessoas que participam desta atividade. Como os mercados locais têm preferência pelo
berbigão sem casca, as pessoas envolvidas no “desconchamento” desempenham um papel muito importante na cadeia produtiva. No entanto, a valorização do trabalho e a compensação financeira que as mulheres recebem para a realização desta tarefa
tediosa é notavelmente baixa. Por exemplo, um informante relatou que, em média, uma descascadeira ganha 150-200 reais por
semana, trabalhando o dia todo (RIBAS, op. cit., p. 73-74). Também, de acordo a mesma autora, é relevante considerar que, para
obter cerca de 1,2 kg de carne (berbigão sem casca) requer descascar aproximadamente 20 kg de berbigão.
Por sua vez, a publicação de Ribas (op. cit.), além de observar o papel das mulheres na produção de berbigão, também
menciona brevemente o envolvimento histórico das mulheres na extração deste molusco. Um informante descreve como, no passado, as mulheres iam para uma determinada praia para recolher manualmente o berbigão, cujas conchas eram então vendidas
a uma fábrica local de cal.
Acredita-se que em estudos futuros, uma reexploração da história das diversas perspectivas, incluindo as das mulheres,
poderia ajudar enriquecer a compreensão sobre o contexto atual da reserva.
Necessidade de maior reconhecimento e valorização das mulheres,
suas contribuições econômicas e socioculturais.
A maior parte da produção de berbigão vendida em Florianópolis e região é de produto descascado. No entanto, é importante notar que o valor da produção entregue aos compradores locais não leva em consideração o valor do trabalho e da mão
de obra feminina no desconche. Em média, o produto in natura, ou seja, o berbigão na concha é vendido ao preço de R$ 1,00
até R$ 2,00/kg. Considerando-se que para se produzir um quilo de carne de berbigão desconchado são necessários aproximadamente 18 kg de produto in natura, a priori, um quilo de carne de berbigão custaria minimamente entre R$ 18,00 a R$ 36,00/kg.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
205
No entanto, segundo relato dos próprios extrativistas, essa carne é entregue ao comprador local a um preço que varia entre
R$ 10,00 a R$ 12,00/kg e chegando ao consumidor final a um valor de R$ 18,00 a R$ 22,00/kg. Questionados sobre as evidentes
perdas nessa transação, os mesmos aludem à tradição cultural e a demanda do consumidor em Florianópolis, pois se subirem
os preços a valores reais, têm receios de não venderem toda a produção, em função de uma potencial retração do mercado.
Também manifestam temor de que poderiam perder seus compradores, uma vez que os extrativistas competem entre si pelo
acesso ao mercado, de maneira que outros poderiam continuar oferecendo o produto a preços mais baixos a seu comprador.
A partir de uma lente estritamente econômica e deixando de lado considerações socioculturais, este arranjo dos preços parece
inadequadamente baixo e insuficiente para compensar justamente o trabalho das mulheres. Este é apenas mais um elemento
que comprova a invisibilidade do esforço e das habilidades que o trabalho feminino representa nessa cadeia produtiva, em que
seu ganho é diluído e sacrificado junto a um conjunto de outros fatores.
A desvalorização econômica da contribuição das mulheres na cadeia produtiva dos produtos do mar, não é exclusiva da
RESEX Pirajubaé. Um estudo realizado na RESEX Marinha de Corumbau (Bahia) mostrou que, enquanto as mulheres agregam
valor aos produtos da pesca através de atividades de processamento (limpeza e salga) muitas vezes não são compensadas
financeiramente por seu trabalho porque as atividades são feitas em casa e são vistos como ajudando o marido (DI CIOMMO &
SCHIAVETTI, op. cit., p. 18).
Além de trabalhar no desconche do berbigão e no processamento do pescado, as mulheres também preparam e cozinham o alimento para a família, limpam a casa e desenvolvem todo tipo de atividade doméstica, cuidado dos filhos e de outros
membros da família, desenvolvendo cotidianamente uma dupla jornada laboral, além de, executarem outras atividades de subsistência que contribuem para a renda familiar, especialmente em trabalhos de faxina doméstica para terceiros.
As mulheres desconchadeiras de berbigão não são consideradas como extrativistas
Atualmente estão cadastrados na RESEX um total de 139 extrativistas, dos quais somente 13 são mulheres e, entre estas,
apenas quatro se auto identificam como pescadoras artesanais, se dedicando a coleta de berbigão. As demais mulheres cadastradas se identificam como desconchadeiras (ou descascadeiras) de berbigão e faxineiras.
No caso específico do berbigão, chama à atenção a ausência da auto identificação como extrativista para o restante das
mulheres cadastradas como desconchadeiras, assim como a ausência de cadastro de um número significativo de mulheres, que
se estima poderia chegar a mais de duas dezenas, que se dedicam a esta atividade junto com seus maridos e familiares, ou ainda, vendendo sua mão de obra a outro coletor para o desconche do berbigão, sem vínculos empregatícios e consequentemente,
sem direitos trabalhistas.
Igualmente não estão contabilizadas as demais mulheres, em geral esposas, filhas e parentes dos pescadores artesanais,
que em muitos casos auxiliam nas atividades junto aos ranchos no recebimento e limpeza do pescado e atividades complementares da pesca.
Esses dados por si só nos revelam a invisibilidade do trabalho feminino na pesca artesanal, esclarecendo que o termo
aqui inclui todas as demais atividades extrativistas no território da RESEX Pirajubaé. Esta invisibilidade é frequentemente reforçada institucionalmente em várias escalas, incluindo a familiar, local e federal. Por exemplo, dentro do contexto familiar na RESEX
Pirajubaé várias mulheres se auto identificam como “mulher de extrativista”, uma vez que seu trabalho é considerado apenas
como “ajuda”. De acordo com Paulilo (1987, p. 67), esta concepção está vinculada ao papel social do homem que tradicionalmente é de prover o sustento da casa, já que nesta visão a mulher “não precisa trabalhar o ano todo”, emprega-se apenas para
“ajudar em casa”, ganha só “um dinherinho a mais”. Este fato pode contribuir para que as mesmas não se vejam como sujeitas
de direito para se cadastrarem como pescadoras artesanais junto ao Ministério da Pesca e à RESEX.
Essa ênfase nas contribuições das mulheres dentro da pesca como “mulher de extrativista” ou apenas como ajuda também aparece em um estudo realizado pela antropóloga Rose Mary Gerber (2013) com pescadoras no litoral de Santa Catarina.
“A atividade não é vista como profissão, mas como obrigação de esposa de pescador”. A invisibilidade profissional das mulheres
também se manifesta na escala institucional local. Por exemplo, as mulheres extrativistas enfrentam obstáculos para ter seu ofício
reconhecido, até mesmo pela Associação Caminho do Berbigão, que apesar de reconhecer verbalmente a importância do trabalho das desconchadeiras, ainda não pode fazer as alterações necessárias no estatuto da organização para incluir as mulheres
que trabalham nessa atividade como extrativistas.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
206
Na escala federal, essa invisibilidade se manifesta na política de reconhecimento formal, o que tem implicações legais
importantes em termos de benefícios, proteção social, e acesso a recursos. De acordo a Gerber (op. cit.), “o Ministério da Pesca
e o INSS mal reconhecem a existência de mulheres pescadoras, essas profissionais são privadas de outros benefícios, como o
auxílio-maternidade e o seguro defeso”. A antropóloga também observa que para se aposentar, são consideradas ‘esposas de
pescadores’. Caso o marido não trabalhe com pesca elas têm dificuldade de acesso ao direito à aposentadoria.
Agregação de valor a produção extrativista
Uma alternativa para valorização da cadeia produtiva da atividade extrativista é a agregação de valor aos produtos obtidos
do mar. No entanto, por se tratar de produtos de origem animal, as exigências burocráticas e técnico-sanitárias estão muito distantes da realidade, habilidades e capacidades financeiras das extrativistas. Arranjos organizacionais vêm sendo feito neste sentido,
porém, a ausência de capital social dificulta a coletivização da produção, num curto prazo. Há necessidade de investimentos
produtivos e de capacitação de longo prazo, com vistas a aprimorar as experiências gastronômicas locais. Um fator que motiva
e gera interesse nos extrativistas é a classificação do berbigão junto à “arca do sabor” do movimento internacional Slow Food,
que busca valorizar produtos gastronômicos que possuem valor cultural e tradicionalidade e que estejam em risco de serem
esquecidos pelas novas gerações.
Espaços de tomada de decisões
Semelhante à RESEX da Ponta do Corumbau (Bahia), na RESEX Pirajubaé “as Associações de Pescadores ou reuniões
com os representantes da administração da RESEX são espaços políticos frequentados majoritariamente pelos homens” (DI
CIOMMO, 2007, p.159 -160). A RESEX Pirajubaé possui um Conselho Deliberativo composto com 31 membros, dos quais 17 são
representantes da população tradicional, no entanto, apenas três mulheres ocupam estas representações, e suas participações
nas reuniões e grupos de trabalhos são ainda incipientes. Assim, há necessidade de aumentar a participação e a representação
feminina nos processos de tomada de decisão.
Considerações Finais: Desafios e oportunidades na gestão da RESEX Pirajubaé
Diante do amplo desafio de promover a inclusão social desse grupo social, e em especial das mulheres extrativistas,
vislumbram-se algumas oportunidades e ações que vêm sendo desenvolvidas pela equipe gestora da unidade de conservação.
Inclusão das mulheres nas categorias extrativistas
A partir de 2009, a RESEX iniciou um amplo trabalho, fundamentado nos princípios da educação ambiental crítica, de formação em gestão ambiental participativa com a comunidade e que culminou, entre outros avanços, com a criação do Conselho
Deliberativo da UC, a reorganização dos extrativistas em uma associação, a Associação Caminho do Berbigão – ACB, hoje detentora do Contrato de Concessão de Direito Real de Uso – CCDRU e a definição das categorias e critérios para serem reconhecidos
como extrativistas e receberem a carteira de usuários e beneficiários da RESEX.
Por ser uma construção social, é um processo dinâmico construído com diferenças de poder e interesses, necessidades,
histórias e aspirações heterogêneas. Dentro dessa complexidade desafiadora, as dinâmicas de gênero e de mulheres podem
ser involuntariamente negligenciadas. Portanto, um dos aspectos em revisão é a inclusão das mulheres como extrativistas nas
categorias existentes. Este processo já está em andamento no processo participativo para a definição do novo perfil da família
beneficiária, revisando os critérios e categorias extrativistas existentes.
Valorização dos integrantes da cadeia produtiva do berbigão
Em Florianópolis e região o consumo de berbigão é uma tradicionalidade. Existe uma série de comidas tradicionais elaborados em base no berbigão, como é caso do pastel de berbigão, do ensopado de chuchu com berbigão e do lambre-lambe1.
Apesar de muito apreciados pela população, poucos conhecem os esforços e as ameaças dos integrantes da cadeia produtiva
desse molusco. Gestões vêm sendo feitas para, após a recuperação dos bancos de produção de berbigão, investir na capacitação técnica e operacional para que as mulheres extrativistas possam desenvolver atividades ligadas à produção de alimentos,
1
Lambe-lambe é um prato a base de arroz e berbigão na sua concha, semelhante a um risoto.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
207
gerando maior valorização e valor agregado à produção, de maneira a dar maior visibilidade a seu trabalho e aos elementos que
formam essa cadeia produtiva.
Diagnóstico Participativo com Enfoque de Gênero
Como mencionado no início deste trabalho, as reflexões de gênero aqui expostas são pouco aprofundadas devido as
grandes lacunas de informações existentes sobre o tema. A realização de um Diagnóstico Participativo com Enfoque de Gênero,
similar ao realizado na Reserva Extrativista Marinha da Ponta do Corumbau (Bahia) “com o objetivo do contribuir para a inclusão
dos diversos interesses das comunidades, em especial o ponto de vista feminino, no manejo da área protegida” (DI CIOMMO
2007, p.15) é uma das ações a ser desenvolvida na próxima fase do Plano de Manejo Participativo da RESEX Pirajubaé. Será uma
oportunidade para ouvir e incluir mais fortemente as mulheres e as questões de gênero no Plano de Manejo da RESEX, dando
maior visibilidade a esta categoria de extrativistas, com maior destaque às histórias, conhecimentos, importância, necessidades
e perspectivas dessas mulheres. Apesar da história complexa e do contexto da RESEX, uma lente de gênero representa uma
oportunidade de construção colaborativa de novas visões e significados de gestão dos recursos naturais.
Referências
BENNETT, E. Gender, fisheries and development. Marine policy, v. 29, n.5, p. 451-459, 2005.
DE MOURA, R.L. et al. Challenges and Prospects of Fisheries Co-Management under a Marine Extractive Reserve Framework in
Northeastern Brazil. Ocean and Coastal Management, v. 37, n. 6, p. 617-632, 2009.
DI CIOMMO, R. C. Pescadoras e pescadores: a questão da equidade de gênero em uma reserva extrativista marinha. Ambiente
& Sociedade, v. 10, n. 1, p. 151-163, 2007.
DI CIOMMO, R. C.; SCHIAVETTI, A. Women participation in the management of a Marine Protected Area in Brazil. Ocean and
Coastal Management, v. 62, p. 15-23, 2012.
GERBER, Rose Mary et al. Mulheres e o mar: uma etnografia sobre pescadoras embarcadas na pesca artesanal no litoral de
Santa Catarina, Brasil. 2013.
GLASER, M.; OLIVEIRA, R.S. Prospects for the co-management of mangrove ecosystems on the North Brazilian coast: Whose
rights, whose duties and whose priorities? Natural Resources Forum, v. 28, p. 224-233, 2004.
HARPER, S.; ZELLER, D.; HAUZER, M.; PAULY, D.; SUMAILA, U. R. Women and fisheries: Contribution to food security and local
economies. Marine Policy, v. 39, p. 56-63, 2013.
ICMBIO. INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE. Produto Número 2 - Relatório de
Caracterização da Unidade de Conservação com Indicação Preliminar das Lacunas e Estudos Complementares
da Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé/Apoio na Elaboração do Plano de Manejo Participativo - Fase 1 da
Reserva. Consultora Karen Follador Karam. Florianópolis, 2009.
MATTHEWS, E.; JAMIE B.; EASKEY B., MORRISON, K.; MCCLENNEN, C. A Gender Perspective on Securing Livelihoods
and Nutrition in Fish-dependent Coastal Communities. New York: Rockefeller Foundation from Wildlife Conservation Society, 2012.
NYANCHAM-OKEMWA, S. Enduring passions: The fallacies of gender-focused development in Kenya. APAD Bulletin, v. 20, p.
103-132, 2000.
PAULILO, M.I. O peso do trabalho leve. Ciência Hoje, v.5, n.28, p.64-70, 1987.
PROSUL. PROJETOS, SUPERVISÃO E PLANEJAMENTO LTDA. Relatório de Estudo Antropológico – condicionante autorização licenciamento ambiental DEINFRA. Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 2014.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
208
RIBAS, L.C.C. (Org.). A Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé: sujeitos, memórias e saberes etnobiológicos. Florianópolis: IFSC, 2014, 168p.
SANDERS, J.S.; GREBOVAL, D.; HJORT, A. Marine protected areas: country case studies on policy, governance and institutional
issues. In: FAO. Fisheries and Aquaculture Technical Paper. Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations
(FAO), 2011.
SANTIN, L. A produção familiar de plantas medicinais na região centro-oeste do Paraná: análise a partir da perspectiva de gênero. In: CORREA JUNIOR, C. et al. (Org.) Complexo agroindustrial de plantas medicinais, aromáticas e condimentares
no estado do Paraná: diagnóstico e perspectivas. Curitiba: Sociedade Paranaense de Plantas Medicinais/Emater-PR/Embrapa
Florestas, 2004, pp. 231-246.
SILVA, P. P. da. From common property to co-management: lessons from Brazil’s first maritime extractive reserve. Marine Policy,
v. 28, n. 5, p. 419-428, 2004.
TEBET, G.C.C. A Gestão dos Recursos de Uso Comum na Área da Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé. 2013.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Geografia). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013.
WOORTMANN, E. F. Da complementaridade à dependência: espaço, tempo e gênero em comunidades “pesqueiras” do nordeste. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 7, n. 18, p. 41-61, 1992.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
209
FORMAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DE CONDUTORES AMBIENTAIS LOCAIS:
ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO DO TURISMO SUSTENTÁVEL
EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO GAÚCHAS
Silva, Celson Roberto Canto1; Cunha, Aline Moraes2; Bazotti, Leandro dos Santos3 & Nascimento, Cristina Alves4
1. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, [email protected].
2. PLANTUR Consultoria em Turismo; Centro Universitário Metodista – IPA, [email protected]
3. Atlas Alpinismo; Associação Porto Alegrense de Escalada Canionismo e Alta Montanha (APECAM); Consultor da MINAS Outdoor
Sports, [email protected]. 4. Mestranda em Sustentabilidade na Gestão Ambiental,
Universidade de São Carlos, [email protected]
Resumo
O presente artigo faz a reflexão sobre uma experiência de formação e organização de condutores ambientais locais, realizada
a partir de 2012, pelo IFRS, Campus Porto Alegre, através do PRONATEC. Para a correta compreensão da construção teórica
e prática realizada, o artigo inicia pelo resgate conceitual e histórico do Turismo Sustentável e do Ecoturismo em Unidades de
Conservação, passando ao necessário esclarecimento sobre o papel dos condutores ambientais locais e o reconhecimento
da atividade. Em seguida, trata das metodologias empregadas nos cursos e os resultados alcançados. Com esta configuração
busca compartilhar uma experiência exitosa, colaborando na construção de novas alternativas de estruturação do Turismo Sustentável, que promovam a educação ambiental, a conservação da natureza e a geração de renda, agregando as comunidades do
entorno às Unidades de Conservação.
Palavras-chave: Turismo Sustentável, Unidades de Conservação, Condutores Ambientais Locais.
Turismo Sustentável
Na busca por um turismo que valorize a diversidade e proporcione experiências individualizadas, através da diferenciação de atrativos, produtos e serviços, valorizando e preservando os patrimônios naturais e culturais dos destinos, o turismo
é reconhecido como um conjunto de relações humanas que, amparado por um sistema, ultrapassa as fronteiras econômicas,
financeiras e industriais, situando-se numa dimensão que sintetiza o conhecimento científico e as aspirações dos indivíduos
(MOLINA, 2005).
O turismo figura o campo das ciências sociais através da sociologia e da antropologia. A primeira constrói um olhar externo, adquirindo seu papel na organização e no processo social como um todo. A segunda tenta avaliar a sua dinâmica interna,
considerando suas dimensões culturais e interculturais (STEIL, 2002).
Segundo Steil (2002), a formação de uma área de estudos sobre o turismo nas ciências sociais é antecedida por Veblen,
no livro The theory of the leisure class, lançado em 1889, e considerado o primeiro trabalho sociológico sobre o turismo. A
publicação refere-se à evolução do lazer no processo de constituição das classes sociais, estabelecendo uma associação entre
turismo e lazer. O autor constata que o lazer, o qual caracterizou a elite aristocrática pré-capitalista, também passa a ser assumido
pela nova elite, que também passa, em um mundo fundado sobre o valor absoluto do trabalho a ostentar como meio de distinção,
a sua inatividade em forma de lazer.
Na França, em 1950, ainda de acordo com Steil (2002), o sociólogo Friedmann destacou o lazer como uma experiência
de recomposição da personalidade do trabalhador, fragmentada pelo trabalho mecânico que se generalizou após a Segunda
Guerra Mundial, através do modelo fordista de produção industrial. Esta análise, em contraposição à tese do lazer alienado e ostentatório, apresenta pela primeira vez o lazer compensatório, tendo as férias como “cano de escape para as tensões produzidas
pela atividade produtiva” (STEIL, 2002, p. 54).
Seguindo na interpretação do turismo no campo da sociologia, Steil (2002) aponta três correntes, de relevante importância: a primeira é o “simulacro do real”, a segunda “os estudos da religião através da teoria dos rituais” e a terceira o “turismo e
consumo”. Tomamos aqui apenas a terceira corrente, apoiada por Campbell (1987) e Urry (1996) que, com a classificação das
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
211
atividades de lazer e turismo como objeto de status social, também passam a considerar o turismo como “objeto de consumo”
da sociedade moderna.
Conforme Campbell (1987, apud STEIL, 2002, p.65), inseridos no espírito do capitalismo, “os indivíduos não procuram a
satisfação nos produtos, mas através deles. A satisfação nasce da expectativa, da procura do prazer, que se situa na imaginação”.
Assim os turistas não consomem os lugares, mas através destes buscam a “realização de um desejo que povoa a sua imaginação”.
Urry (1996) considera que é difícil entender a natureza do turismo contemporâneo sem avaliar como suas atividades são
construídas em nossa imaginação pela mídia. Desta forma, o autor considera o “velho turismo” e o “novo turismo”. O primeiro estaria ligado ao “consumo de massa fordista” que “reflete, sobretudo o interesse dos produtores” e o segundo estaria relacionado
ao “consumo diferenciado pós-fordista”, que “caracteriza-se pela prevalência dos consumidores”. Sendo assim, o velho turismo
trabalhava com base em “empacotamentos e padronizações”, enquanto o novo turismo passa a trabalhar de forma mais flexível,
buscando melhor atender a demanda do mercado consumidor.
Frente a isso, Molina (2004) avalia que com a pós-modernidade, as descontinuidades do entorno, a mudança, a transformação e o estilo dinâmico passaram a ser estruturas da cultura e da sociedade de forma geral, impactando particularmente o
turismo. Bem como a instalação de sistemas mais personalizados tanto de produção como de consumo, reconhecendo a mobilidade e a mudança na busca pelo único. No turismo, tratando de destinos e de suas ofertas, o autor adverte quanto à “busca de
identidade - de uma ou várias identidades simultâneas – através das expectativas de demanda” e que esta “é altamente mutante,
dinâmica e volátil” (MOLINA, 2004, p.27).
Molina (2004) aponta o surgimento de um novo turista a partir dos novos modelos de consumo e destaca uma mudança
na atitude do mesmo, de passiva, que aceita o que lhe vendem, para uma atitude ativa, onde passa a selecionar as atividades de
seu interesse. Este novo turista quer mais do que belas paisagens e descanso, quer experiências únicas, quer o contato com os
saberes e fazeres típicos de cada lugar.
Abordando a construção de um novo turismo, de base local, Cavaco (2011) trata também do novo turista e nos traz uma
boa descrição quanto à suas expectativas. Para a autora, “o turista de hoje procura o novo, no sentido do diferente, do único,
básicos na atratividade turística” (CAVACO, 2011, p.147).
Porém, tratando do consumo turístico, Reis (2008, p.127) destaca que “para viajar, é necessária uma renda excedente,
devido aos custos que o turismo acarreta”. Afirma, assim, que o turismo se efetiva a partir do momento em que o “turista em potencial” se dispõe a realizar o consumo de todos os bens e serviços envolvidos na viagem. Deste modo, o autor define consumo
turístico como a “aquisição de bens e serviços que atendem às necessidades do turista” (REIS, 2008, p.129). Tais necessidades
podem surgir antes mesmo da viagem, assim “tudo o que for consumido antes, durante e depois da viagem, e que a ela estiver
relacionado, é considerado consumo turístico”; sendo bens e serviços diretamente relacionados ao turismo, transporte, hospedagem e atividades recreativas (consumo primário), ou bens e serviços consumidos tanto pelos visitantes quanto por qualquer outra
pessoa, como protetores solares, pilhas e cartões telefônicos (consumo secundário) (DIAS, 2005)
Com estas reflexões, Reis (2008) destaca também a importância econômica deste consumo para as comunidades receptoras, afirmando que “as trocas em dinheiro determinam, em parte, a dinâmica entre demanda e oferta turística. Isso porque,
quanto mais turistas visitam uma cidade, maiores são as receitas das empresas turísticas” (REIS, 2008, p. 127). Assim, aponta que
uma estratégia empregada pelos gestores do turismo é tentar elevar o nível de gastos dos turistas que frequentam uma localidade, entendendo que quanto mais se consome produtos locais, mais lucrativa será a atividade turística e mais chances de que
esta se torne economicamente viável e com menos impactos ambientais negativos. Essa ideia surge dos resultados observados
em destinos caracterizados pelo Turismo de Massa, em que os gastos diários dos turistas com produtos locais nas comunidades
são menores em comparação com outras modalidades de turismo (REIS, 2008).
Da mesma forma, o Ministério do Turismo - MTUR reconhece a geração e o aumento das compras locais, o aumento da
renda local e a melhoria dos padrões de conservação do ambiente natural como impactos econômicos positivos do turismo, visto
que este estimula a economia local e, com a consequente melhoria da qualidade de vida das comunidades receptoras, estas tendem a colaborar com a preservação e conservação dos espaços naturais, cada vez mais procurados pelos turistas (MTUR, 2007).
Assim, buscando um novo turismo, que considere as demandas e motivações trazidas pelo consumidor, ou pelo novo turista que apresenta e reflete uma mudança de comportamento e hábitos de consumo dos atores envolvidos na atividade turística
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
212
como um todo, passa-se a planejar no Brasil estratégias para o desenvolvimento do setor de forma sustentável. Desta forma, o
MTUR destacou como elemento norteador de suas ações, que a relação entre o turismo e a sustentabilidade deveria seguir os
princípios da sustentabilidade ambiental, econômica, sociocultural e político-institucional (MTUR, 2010).
Com o intuito de desenvolver produtos turísticos sustentáveis em harmonia com o meio ambiente e a cultura local, fazendo com que as comunidades deixem de ser apenas espectadoras do processo de estruturação do setor, foi adotado também
no Brasil o conceito de Turismo Sustentável, elaborado pela Organização Mundial do Turismo (OMT), que o define como:
[...] a atividade que satisfaz as necessidades dos turistas e as necessidades socioeconômicas
das regiões receptoras, enquanto a integridade cultural, a integridade dos ambientes naturais, e a
diversidade biológica são mantidas para o futuro (MTUR, 2010, p.30).
Com esta reflexão quanto ao turismo, suas interfaces conceituais e a delimitação de novos paradigmas na busca de um
“novo turismo” que o seja sustentável, passamos a considerar na próxima seção estratégias de aproximação entre visitantes e
visitados, que buscam proporcionar maior interação e valorização dos saberes e fazeres locais, ao mesmo tempo em que gerem
renda, melhoria de autoestima, oportunidades de equidade e autonomia.
Unidades de Conservação, Ecoturismo e as Atividades Ecoturísticas
De acordo com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC (BRASIL, 2000), as Unidades de Conservação
(UC) são:
[...] espaços territoriais e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder Publico, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias
adequadas de proteção (BRASIL, 2000).
Machado (2005) ressalva que as UC são áreas protegidas para manter espaços naturais de valor, evitando assim, a destruição de seus ecossistemas. Essas unidades buscam, entre outras coisas, meios que tornem propícia a interação do homem com
o meio ambiente.
As UC que integram o SNUC estão divididas em dois grupos com características próprias, denominadas: Unidades de
Proteção Integral e Unidades de Uso Sustentável (COSTA, 2002). As Unidades de Proteção Integral têm o objetivo de preservar a
natureza de forma a assegurar a manutenção dos ecossistemas, sendo permitido apenas o uso indireto de seus recursos naturais,
exceto os casos previstos na lei. São elas: Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural, e Refúgio
de Vida Silvestre (BRASIL, 2000). Irving (2002) acrescenta que a visitação é permitida apenas nas três últimas tipologias, porém
precisa estar sujeita às normas do Plano de Manejo.
Já as Unidades de Conservação de Uso Sustentável têm o objetivo de conservação da natureza, compatibilizado com o
uso sustentável de uma parcela dos seus recursos naturais. São elas: Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse
Ecológico, Floresta Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável, e Reserva Particular do Patrimônio Natural, categoria que permite visitação para recreação e lazer (BRASIL, 2000).
Segundo Bensusan (2006), a UC que serviu de exemplo para o Brasil e para o mundo foi o Parque Nacional de Yellowstone, criado em 1872, nos Estados Unidos, pois este foi o primeiro espaço legalmente protegido destinado à utilização pública
no mundo. No Brasil, segundo Machado (2005), o primeiro parque a ser criado, em 1937, no Rio de Janeiro, foi o Parque Nacional
de Itatiaia, com finalidades científicas e turísticas.
Em se tratando de segmento turístico em expansão no Brasil, que se apresenta como alternativa ampla e viável para a
promoção de processos de desenvolvimento em território nacional, Oliveira Junior (2010) destaca o entendimento quanto à essência conflituosa do Ecoturismo. Assim, aponta que parte dos autores e especialistas em Ecoturismo estudados por ele referese a uma mudança de percepção com relação à natureza, em que esta deixa de ser vista apenas como fornecedora de recursos
e passa a ser vista enquanto capital e reserva futura de valores, sendo influenciada também pelas novas tecnologias que através
de novas formas de utilização/exploração passam a considerar a natureza também como produto ou mercadoria. Partindo desta
reflexão, ressalta que “o ecoturismo é um fenômeno recente, cuja complexidade abrange questões socioeconômicas, políticas,
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
213
culturais e ambientais.” Desta forma é assunto destacado em cenário internacional e nacional por envolver interesses econômicos, ao mesmo tempo que possui dependência absoluta da natureza, fator que o diferencia dos demais segmentos de turismo
(OLIVEIRA JUNIOR, 2010, p.95)
Considera-se então, que diante da diversidade de segmentos com interface ao meio natural, o Ecoturismo enquanto
produto turístico distingue-se dos demais por agregar valor a sua matéria-prima, à natureza no contexto ambiental, econômico e
sociocultural, além de ser uma alternativa ao turismo de massa (WEARING; NEIL, 2001).
Para Ruschmann (2006), o Ecoturismo é um dos segmentos turísticos que mais tem respeito e compromisso para com a
natureza, e a conexão entre desenvolvimento econômico e conservação das áreas naturais deve estar presente, além de acarretar
responsabilidade social dos viajantes para com o meio visitado. Dias (2003) ressalta que o ecoturismo não é somente uma viagem
para a natureza para desfrutar e estudar sua paisagem e seus atrativos de flora e fauna, mas também uma concepção social e
econômica. Objetivando melhorar as condições de vida das populações locais, ao mesmo tempo em que preserva os recursos
e o meio ambiente, compatibiliza o meio natural e o cultural na prática turística.
Costa (2002), ressalta que todo local ecoturístico deve: contribuir para a proteção das áreas naturais; promover o uso
sustentável dos recursos; procurar reduzir ao mínimo os impactos negativos sobre o entorno natural e sociocultural; conter elementos educacionais e de interpretação; ser organizado para pequenos grupos, que tenham a motivação principal de apreciar
a natureza, bem como as culturas tradicionais que prevalecem nas áreas naturais; e envolver as populações locais no seu planejamento. Conforme Machado (2005), a definição de Ecoturismo desenvolvida no Brasil pelo Grupo de Trabalho Interministerial,
em 1994, assinada pelo então Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, e pelo Instituto
Brasileiro de Turismo – EMBRATUR, apontou que:
É um segmento da atividade turística que utiliza, de forma sustentável, o patrimônio natural e cultural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma consciência ambientalista através
da interpretação do ambiente, promovendo o bem-estar das populações envolvidas (MACHADO,
2005. p. 27).
Conceito este que posteriormente foi adotado pelo Ministério do Turismo brasileiro, como conceito oficial de ecoturismo
no Brasil, a ser norteador das políticas públicas direcionadas ao segmento (MTUR, 2010).
Quanto aos destinos de Ecoturismo no estado do Rio Grande do Sul, Machado (2005) afirma que as iniciativas concretas
de projetos ecológicos para o Turismo tiveram início em 1991, com a criação da Comissão Estadual de Turismo Ecológico CETE, que era integrada pela Companhia Rio-grandense de Turismo - CRTUR, IBAMA/RS, Departamento de Recursos Naturais
Renováveis, Secretaria Estadual da Agricultura e a Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul -FZB.
Considerando a relevância das UC como importantes ferramentas de conservação e manutenção da integridade da biodiversidade e dos processos naturais, elas têm se firmado como espaço ideal para as práticas de Ecoturismo e suas diversificadas atividades, em conformidade com o MTUR (MTUR, 2010), que observa a possibilidade de desenvolvimento de uma grande
variedade de atividades no âmbito do Ecoturismo, ressalvando que:
[...] as atividades ecoturísticas devem seguir premissas conservacionistas e ser estruturadas e
ofertadas de acordo com normas e certificações de qualidade e de segurança de padrões reconhecidos internacionalmente (MTUR, 2010, p. 26).
Ainda de acordo com este Ministério (MTUR, 2010), as atividades ecoturísticas mais frequentes e permitidas em UC são:
observação de fauna e flora; observação de formações geológicas, que consiste geralmente em caminhada por área com características geológicas peculiares e que oferecem condições para discussão da origem dos ambientes, sua idade e outros fatores;
mergulho livre no mar, rios, lagos ou cavernas; caminhadas de um ou mais dias; safáris fotográficos para registrar paisagens
singulares ou animais; trilhas interpretativas, com percursos autoguiados ou com acompanhamento de profissionais qualificados.
Segundo Vallejo (2013), a visitação representaria uma atividade de grande potencial para incrementar os recursos
econômicos em UC. Tratando-se dos benefícios econômicos, por exemplo, Medeiros e Young (2011) concluíram que um incremento da visitação nas UC federais e estaduais brasileiras poderia gerar o rendimento anual de cerca de R$ 2,2 bilhões.
Como o Ecoturismo e suas atividades utilizam os recursos naturais e culturais do local, é essencial que ele se desenvolva
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
214
com base nos princípios sustentáveis, estimulando o desenvolvimento em longo prazo, a preservação permanente da biodiversidade local e a justiça social com a população. Com este entendimento, passamos a tratar da somatória do ecoturismo ao
desenvolvimento sustentável.
Do Guia ao Condutor Ambiental Local
No sentido de desenvolver o turismo sustentável em todas as suas vertentes, colaborar na educação ambiental dos visitantes e na busca da efetivação da quebra de paradigmas excludentes, adotou-se a estratégia de agregar os saberes e fazeres
dos moradores das áreas de entorno das Unidades de Conservação, gerando oportunidades de trabalho e renda e, assim, colaborando no afastamento dos autóctones da vulnerabilidade social em que geralmente se encontram.
Dentre as possibilidades de atuação para condução ligadas a ambientes naturais e institucionalmente formalizadas,
existem três profissionais: o guia de turismo especializado em atrativos naturais, o condutor de turismo de aventura e o condutor
ambiental local. Dentre estes, na atividade turística, a atuação do guia de turismo foi a primeira a ser reconhecida, através da Lei
nº. 8.623/1993, que em seu Art. 5º constitui como atribuições do Guia de Turismo:
a) acompanhar, orientar e transmitir informações a pessoas ou grupos em visitas, excursões urbanas, municipais, estaduais, interestaduais ou especializadas dentro do território nacional;
b) acompanhar ao exterior pessoas ou grupos organizados no Brasil;
c) promover e orientar despachos e liberação de passageiros e respectivas bagagens, em terminais de embarque e desembarque aéreos, marítimos, fluviais, rodoviários e ferroviários;
d) ter acesso a todos os veículos de transporte, durante o embarque ou desembarque, para orientar as pessoas ou grupos sob sua responsabilidade, observadas as normas específicas do respectivo terminal;
e) ter acesso gratuito a museus, galerias de arte, exposições, feiras, bibliotecas e pontos de interesse turístico, quando estiver conduzindo ou não pessoas ou grupos, observadas as normas de
cada estabelecimento, desde que devidamente credenciado como Guia de Turismo;
f) portar, privativamente, o crachá de Guia de Turismo emitido pela Embratur. (BRASIL, 1993).
Quanto ao Condutor de Turismo de Aventura, foram atribuídas responsabilidades através de normas técnicas criadas através
de parceria firmada entre o MTUR e a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) através do Programa Aventura Segura
(PAS), que deu direcionamento ao segmento no Brasil, sendo reconhecido internacionalmente por esta iniciativa (ABETA, 2009).
De acordo com o Serviço de Apoio à Micro e Pequena Empresa (SEBRAE, 2014) “é apropriado que se estabeleçam
requisitos focalizados nas competências mínimas consideradas essenciais e necessárias aos profissionais que atuam como condutores de Turismo de Aventura”. Neste sentido, o MTUR também colaborou ao lançar o manual de boas práticas do condutor,
que aponta as competências e responsabilidades necessárias à atuação profissional destes.
Apesar da NBR 15285 “Competência de Pessoal”, que diz respeito às competências mínimas para o condutor de turismo
de aventura, não fazer parte do arcabouço legal brasileiro, assim como o condutor ambiental e o guia de turismo especializado
em atrativos naturais, ou ainda conforme a NBR 15331, referente ao sistema de gestão da segurança, que se tornou obrigatório
quando promulgado o Decreto de 2010 que regulamenta a Lei Geral do Turismo nº 11.771/2008, é oportuno os condutores ambientais se apropriarem dos procedimentos descritos neste manual, pois ele aborda relevantes competências pertinentes a todo o
profissional que atua em meio a natureza. No caso de algum sinistro, por exemplo, não havendo lei especifica, o aparato jurídico
pode fazer valer as normas técnicas existentes em áreas correlatas, ou seja, é de sua responsabilidade estar informado sobre as
recomendações presentes nas NBRs.
A formalização do condutor ambiental propriamente dita ocorreu através da Instrução Normativa do ICMBio nº 08/2008,
que estabelece “normas e procedimentos para a prestação de serviços vinculados à visitação e ao turismo em Unidades de Conservação Federais por condutores de visitantes” (ICMBIO, 2008), de forma a dar acesso às comunidades de entorno para que
atuem nestas UC, desde que atendam as demandas de qualificação estipuladas na normativa.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
215
Recentemente, a Portaria 27/2014 do MTUR, ao estabelecer requisitos e critérios para o exercício da atividade de Guia de
Turismo, reconheceu o condutor de visitantes em UC como:
[...] o profissional que recebe capacitação específica para atuar em determinada unidade, cadastrado no órgão gestor, e com a atribuição de conduzir visitantes em espaços naturais e/ou
áreas legalmente protegidas, apresentando conhecimentos ecológicos vivenciais, específicos da
localidade em que atua, estando permitido conduzir apenas nos limites desta área. (MTUR, 2014).
Partindo das reflexões teóricas abordadas, passamos ao relato da experiência realizada no Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul -IFRS, Campus Porto Alegre.
Formação e organização de Condutores Ambientais Locais pelo IFRS,
Campus Porto Alegre – Método e Prática
No intuito de contribuir para o fortalecimento da educação ambiental no âmbito do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação e promover a geração de emprego e renda através da formação de profissionais capacitados para atuarem na condução de grupos de visitantes, consequentemente fomentando o turismo sustentável, o Instituto Federal de Educação Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Porto Alegre, através do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e
Emprego (PRONATEC), ofertou a partir de 2012 os cursos de Monitor Ambiental e Condutor Ambiental Local.
No período de setembro de 2012 a junho de 2014 foram ofertadas três formações. As duas primeiras turmas, uma de
monitores e outra de condutores ambientais locais, não foram direcionadas à atuação em uma Unidade de Conservação específica, enquanto a terceira turma foi direcionada especificamente a formar condutores para atuarem no Parque Estadual de Itapuã,
localizada em Viamão, município da região metropolitana de Porto Alegre, RS.
Em conformidade com a Instrução Normativa do ICMBio nº 08/2008 (ICMBIO, 2008), os cursos de Monitor Ambiental e
Condutor Ambiental Local, oferecidos pelo IFRS, foram estruturados em 160 e 200 horas, respectivamente, divididos em cinco
módulos: Orientação Profissional e Cidadania; Meio Ambiente e Cultura (Técnicas de Observação e Identificação da Fauna e
Flora Regionais; Geografia do RS Aplicada ao Turismo; História Aplicada ao Turismo Regional); Turismo e Sustentabilidade; Trabalho do Condutor Ambiental Local e Segurança e Primeiros Socorros.
Os cursos foram ministrados por professores Especialistas, Mestres e Doutores, com aulas teórico-práticas, baseadas
na aplicação de metodologias e ferramentas participativas vivenciais em Unidades de Conservação. Desta forma, complementarmente às atividades em sala de aula, que faziam uso de ferramentas e equipamentos multimídia, bem como de dinâmicas e
atividades integrativas e cooperativas, também foram proporcionadas saídas de campo a UC do Rio Grande do Sul e de Santa
Catarina. Nestas visitas, inclusive, realizou-se uma atividade de integração com a Associação de Condutores UATAPI, formada a
partir de um curso de Condutores Ambientais ofertado pelo Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC), de forma a fomentar e colaborar na fundação de uma associação para os condutores de Porto Alegre.
Como forma de apoio e fomento à organização solidária de um espaço de trabalho para os condutores formados em Porto
Alegre, a Incubadora Tecno-Social do IFRS – Campus Porto Alegre passou a apoiar a formação de uma associação que congregasse os egressos dos cursos. Isto foi concretizado em 2014, quando foi criada a Associação Porto Alegrense de Condutores
Ambientais (APACA), uma instituição da sociedade civil, sem fins lucrativos, criada através da idealização de alunos egressos
destes cursos.
Em 2013, antes de sua fundação, a Associação iniciou sua trajetória firmando parceria com a Incubadora Tecno-Social
no intuito de organizar os condutores nos princípios da Economia Solidária. Neste período de organização, os profissionais engajados no empreendimento, junto com o governo do estado do Rio Grande do Sul, foram responsáveis pela proposição de uma
base legal que regulamentou a atividade de condução de visitantes nas Unidades de Conservação (UC) estaduais. Com isso, em
3 de janeiro de 2014, foi promulgada a Instrução Normativa SEMA nº 01/2014, que estabeleceu normas e procedimentos para a
prestação de serviços relacionados à visitação e ao turismo em UC de responsabilidade do estado por condutores ambientais
autônomos (RIO GRANDE DO SUL, 2014).
Após isto, a APACA trabalhou no reconhecimento da atividade frente as UC do município de Porto Alegre, realizando
encontros periódicos com representantes da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMAM) na perspectiva da criação de uma
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
216
legislação semelhante. A proposta foi elaborada, apresentada e encontra-se em processo de avaliação pelo órgão.
Entre 2013 e 2014, a Associação elaborou de maneira coletiva seu Estatuto Social, uma medida fundamental para sua
oficialização. Sendo assim, em 31 de março de 2014, ocorreu a Assembleia de Fundação da APACA, realizada no IFRS, Campus
Porto Alegre. A reunião contou com a participação de 15 pessoas, as quais se tornaram os associados fundadores da entidade.
Desde 2014, em parceria com a Incubadora Tecno-Social do IFRS – Campus Porto Alegre, a Associação participa de projeto de pesquisa e extensão desenvolvido junto ao Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas Populares (PRONINC),
realizado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Este projeto possibilitou o desenvolvimento de duas capacitações continuadas para os associados da APACA, em Parques Naturais Municipais de Porto Alegre,
focando nos conhecimentos práticos relacionados à área, como o histórico das UC, à avifauna e flora local, além de capacitação
em dinâmicas de grupo em áreas naturais e elaboração de projetos de educação vinculados às mesmas.
Além dos cursos supracitados, pode-se destacar a participação da APACA em um Nivelamento sobre Economia Solidária,
proposto pela UFRGS/IFRS, em Porto Alegre. Quanto à participação da entidade em eventos, destaca-se sua participação no
“The Ecotourism and Sustainable Tourism Conference” (ESTC), realizado em Bonito (MS), no qual foi apresentado o trabalho “Formation of Environmental Drivers such as Local Development Strategies through Ecotourism UC”; e na 15ª Mostra de
Pesquisa, Ensino e Extensão do IFRS (Mostratec), promovida pelo IFRS, Campus Porto Alegre, onde foi apresentado o relato
“Ecoturismo e Economia Solidária: a trajetória da Associação Porto Alegrense de Condutores Ambientais (APACA)” (RUMPEL;
CANTO-SILVA, 2014).
A Associação ainda divulgou seu trabalho em eventos locais, expondo as atividades desenvolvidas no I Dia de Economia Solidária do IFRS – Campus Porto Alegre, elaborado pelo IFRS, Campus Porto Alegre; na Feira Internacional de Economia
Solidária, realizado em Santa Maria, RS; dentre outros encontros.
Reflexões e desdobramentos desta experiência
Como principais resultados alcançados desta experiência inovadora no Rio Grande do Sul, até o momento podemos
destacar: a formação de 60 Monitores/Condutores Ambientais para atuarem nas UC de Porto Alegre e Região Metropolitana; a
criação da APACA e a publicação da normativa que estabeleceu normas e procedimentos para a prestação de serviços nas UC
do Estado do Rio Grande do Sul por condutores ambientais autônomos.
A realização das duas primeiras turmas, que não tinham sua formação direcionada a atuação em nenhuma Unidade de
Conservação especifica, proporcionou a agregação de diferentes públicos, responsáveis pela organização e fundação da APACA.
Na turma aberta especificamente aos moradores da comunidade de Itapuã, objetivando a formação de condutores ambientais que atuem no Parque Estadual de Itapuã, a adesão comunitária tem apontado como benefícios iniciais a articulação e
ordenamento dos serviços turísticos na comunidade, como a revitalização de associações locais ligadas ao turismo e/ou ao desenvolvimento local; assim como o surgimento de novas lideranças que possam fortalecer o turismo sustentável na região. Cabe
destacar que, apesar dos esforços dispensados para a formação de condutores ambientais locais, somente agora, passado um
ano da realização do processo formativo, está sendo viabilizada, por parte dos órgãos gestores da UC, a atuação comercial dos
mesmos nos espaços do Parque. Isso evidencia que muito ainda deve ser feito junto aos órgãos gestores dos sistemas de UC no
sentido de sensibilizá-los para a importância da inclusão social nessas áreas.
Com estes resultados, que consideramos iniciais, visto as primeiras articulações nos âmbitos municipais e regionais realizadas e os espaços já conquistados, apontamos como exitosa esta experiência de integrar a formação de Monitores/Condutores
Ambientais com o fomento à Economia Solidária e o desenvolvimento do turismo sustentável em áreas protegidas.
Referências
ABETA. ASSOCIAÇÃO DE EMPRESAS DE ECOTURISMO E TURISMO DE AVENTURA. Manual de boas práticas de rafting. Belo Horizonte: Editora dos autores, 2009. Disponível em: <http://www.aventurasegura.org.br/wp-content/uploads/2012/08/
Brasil_ABETA_Vol_10_-Rafting_Manual_Boas_Praticas.pdf> Acesso em 23 maio 2013.
BENSUSAN, N. Conservação da Biodiversidade em Áreas Protegidas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 176 p.
BRASIL. Lei nº. 8.623/93, de 28 de janeiro de 1993. Dispõe sobre a profissão de Guia de Turismo e dá outras providências. Brasília:
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
217
Diário Oficial da União 1993.
BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras
providências. Brasília: Diário Oficial da União, 2000.
CAMPBELL, C. The romantic ethic and the spirit of modern consumerism. Oxford: Blackwell, 1987.
CAVACO, C. Turismo Rural Comunitário (TRC) e Desenvolvimento Local na América Latina – Um olhar Europeu. In: SOUZA, M.;
ELESBÃO, I. (Orgs.) Turismo Rural: Iniciativas e inovações. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011, pp. 143-213.
COSTA, P. C. Unidades de Conservação: Matéria Prima do Ecoturismo. São Paulo: Aleph, 2002.
DIAS, R. Planejamento do turismo: política e desenvolvimento do turismo no Brasil. São Paulo: Atlas, 2005.
ICMBIO. INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE. Instrução Normativa nº 08, de 18 de
setembro de 2008. Estabelece normas e procedimentos para a prestação de serviços vinculados à visitação e ao turismo em
Unidades de Conservação Federais por condutores de visitantes. Brasília: Diário Oficial da União, 2008.
IRVING, M.A. Refletindo sobre o Ecoturismo em Áreas Protegidas: tendências no contexto brasileiro. In: IRVING, M.A.; AZEVEDO, J. Turismo: o desafio da sustentabilidade. São Paulo: Futura, 2002. pp. 47-68.
MACHADO, A. Ecoturismo: Um Produto Viável. Rio de Janeiro: SENAC, 2005.
MEDEIROS, R.; YOUNG, C. E. F. Contribuição das Unidades de Conservação brasileiras para a economia nacional:
Relatório Final. Brasília: UNEP-WCMC, 2011. 120 p.
MOLINA, S. Pós-Turismo: novas tecnologias e novos comportamentos sociais. In: GASTAL, S. A.; MOESCH, M.M. (Org.s). Um
Outro Turismo e Possível. São Paulo: Contexto, 2004, pp. 25-31.
MOLINA, S. Turismo, Metodologia e Planejamento. Bauru: EDUSC, 2005.
MTUR. MINISTÉRIO DO TURISMO. Caminhos do Futuro: Ecoturismo. Brasília: Ministério do Turismo, 2007.
MTUR. MINISTÉRIO DO TURISMO. Segmentação do Turismo e o Mercado. Brasília: Ministério do Turismo, 2010.
MTUR. MINISTÉRIO DO TURISMO. Portaria do Ministro de Estado do Turismo nº 27 de 30.01.2014. Estabelece requisitos e
critérios para o exercício da atividade de Guia de Turismo e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 2014.
OLIVEIRA JUNIOR, A. B. Ecoturismo: conflito entre teoria e prática. Salvador: ADUFBA, 2010.
REIS, J.R. “Lembrei-me de você”: o consumo de souvenires atribuindo significado à viagem turística. In: SEMINÁRIO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM TURISMO, 5., 2008, Belo Horizonte. Anais... Belo Horionte, 2008.
RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Instrução Normativa SEMA nº 01, de 3 de janeiro de 2014. Estabelece normas e procedimentos para a prestação de serviços relacionados à visitação e ao turismo em Unidades de Conservação
de responsabilidade do Estado do Rio Grande do Sul por condutores ambientais autônomos. Porto Alegre: Diário Oficial do
Estado do Rio Grande do Sul, 2014.
RUMPEL, D. B.; CANTO-SILVA, C. R. Ecoturismo e Economia Solidária: a trajetória da Associação Porto Alegrense de
Condutores Ambientais (APACA). 15ª Mostra de Pesquisa, Ensino e Extensão do IFRS, Porto Alegre, 2014. Disponível em:
<http://mostratec.poa.ifrs.edu.br/2014/site/arquivos/trabalhos/trab_108.pdf>. Acesso em 27 junho 2015.
RUSCHMANN, D. Turismo e planejamento sustentável: a proteção do meio ambiente. 13. ed. São Paulo: Papirus, 2006.
SEBRAE. SERVIÇO BRASILEIRO DE APOIO À MICRO E PEQUENA EMPRESA. Normas para os condutores de turismo
de aventura. Disponível em: <http://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/bis/O-condutor-de-turismo-deve-investir-no-conhe-
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
218
cimento-para-se-destacar>. Acesso em 8 maio 2014.
STEIL, C. A. O turismo como objeto de estudos no campo das ciências sociais. In: URRY, J. O Olhar do Turista: lazer e viagens
nas sociedades contemporâneas. São Paulo: Studio Nobel & SESC, 1996.
VALLEJO, L. R. Uso público em áreas protegidas: atores, impactos, diretrizes de planejamento e gestão. Anais Uso Público em
Unidades de Conservação, n. 1, v. 1, p. 13-26, 2013.
WEARING, S.; NEIL, J. Ecoturismo: impactos, potencialidades e possibilidades. Barueri: Editora Manole, 2001.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
219
ALTERNATIVAS PARA QUALIFICAÇÃO DO TURISMO NO PARQUE NACIONAL DE
SÃO JOAQUIM (PNSJ) - SANTA CATARINA - BRASIL
Omena, Michel Tadeu Rodrigues Nolasco de1; Schimalski, Marcos Benedito2 & Castilho, Pedro Volkmer de3
1. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Parque Nacional de São Joaquim,
[email protected] 2. Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Ciências Agroveterinárias de
Lages, [email protected]; 3. Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC Centro de Ciências Agroveterinárias de Lages, [email protected]
Resumo
O Parque Nacional de São Joaquim, localizado no estado de Santa Catarina - Brasil, é uma área protegida natural bastante visitada por conta de suas belezas naturais. A necessidade de uma estrutura física adequada e melhores mecanismos de interação
com os visitantes nos motivou a buscar soluções através de reuniões com diversos setores da sociedade. Das ideias sugeridas,
algumas foram submetidas a testes práticos: criação de página na internet para divulgação; instalação de outdoor na entrada
do parque; elaboração de um áudio-guia; e exposição interpretativa na sede. Tais ações aprimoraram a experiência turística e
sensibilizaram os visitantes acerca da importância ecológica do local. Sugerimos à administração do parque incluí-las na pauta
de elaboração de seu Plano de Manejo.
Palavras-chave: Morro da Igreja, Pedra Furada, Sustentabilidade, Unidade de Conservação.
Introdução
O desejo de estar em contato com a natureza e admirar as belezas naturais podem ser considerados algumas das mais
antigas preferências humanas, concretizada na realização de atividades recreativas tais como passeios ao ar livre, piqueniques e
até caçadas, em países onde esta prática é permitida (TAKAHASHI, 1998). Reforçando esta afirmação, Peccatiello (2007) declara
que há atualmente entre as pessoas uma tendência a buscar lugares que tenham características naturais significativas, ou maneiras de melhorar sua qualidade de vida, ou simplesmente condições de renovar suas energias. Em anos recentes, em quase
todo o mundo a preservação de parques naturais tem estado em conflito com o aumento do número de visitantes, que chegam
com interesses diversos: realização de experiências científicas, exploração de terrenos inóspitos, ou turismo de aventura. A partir
disso, Benayas e Muñoz-Santos (2012) desenvolveram uma proposta de metodologia para a gestão de áreas protegidas voltadas
ao uso público. No Brasil, embora a demanda turística por áreas silvestres seja crescente, ainda esbarramos em questões de viés
ultra-conservacionista ligadas ao uso controlado dessas áreas.
O conceito de parque natural no Brasil sempre resultou de uma visão técnico-científica focalizada na importância da
manutenção da biodiversidade. Esta abordagem criou problemas para usuários potenciais desses parques, particularmente
turistas (MAGRO; PIMENTEL, 2007). De fato, não é fácil para gestores de áreas protegidas descobrirem fórmulas que garantam
o equilíbrio entre o princípio ecológico e a necessidade social. Nos Parques Nacionais americanos, como o de Yellowstone,
considerado o mais antigo deste país (HAINES, 1996), não se discute mais a possibilidade de utilização, mas o tempo e a qualidade da visitação. A classificação das áreas está relacionada mais com tempo de permanência do turista do que a quantidade
de visitantes. Na América do Sul, a história dos parques nacionais inicia-se na Argentina com a criação, em 1922, do Parque
Nacional del Sud, atualmente Parque Nacional Nahuel Huapi, a partir da doação de terras do Sr. Francisco Pascasio Moreno ao
governo argentino, com o intuito de preservar diversos ecossistemas, tais como o ecossistema dos Andes Patagônicos (PARQUE
NACIONAL NAHUEL HUAPI, 2014). No Brasil, o Parque Nacional de Itatiaia, entre os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e
São Paulo, foi criado em 14/06/1937 e é considerado o nosso primeiro parque nacional (ICMBIO, 2014).
A lei brasileira estabeleceu, em 2000, que os parques devem promover a recreação em contato com a natureza e o turismo ecológico (BRASIL, 2000). Em 2006, o IBAMA formulou algumas questões que serviram como diretrizes para sua atuação
como órgão gestor das áreas de conservação. Por exemplo (BRASIL, 2006):
•quais iniciativas estão em andamento?
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
221
•as expectativas dos visitantes quanto à qualidade e variedade das experiências, sua segurança e necessidade de conhecimento estão sendo atendidas?
•o planejamento e a gestão da visitação estão de acordo com o manejo da área?
Em 2007 foi criado o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para responder pela gestão
das áreas protegidas brasileiras. Percebemos, no entanto, que falta realizar um planejamento mais abrangente e direcionado
para o uso público dos parques naturais, especialmente na esfera federal, que têm sido tratados, com raras exceções, como se
fossem Reservas Biológicas, uma categoria de área natural que é gerida segundo regras mais restritivas e até proibitivas no que
se refere à visitação pública (OMENA, 2014). Atualmente a visitação do Parque Nacional de São Joaquim (PNSJ) é disciplinada
pela Portaria n° 85, do ICMBio, publicada em 25/07/2012 (BRASIL, 2012), que estabelece as regras de visitação, válidas até a
elaboração e efetivação do Plano de Manejo da Unidade. Embora essa regulamentação tenha eliminado o caráter de ilegalidade
da visitação ao parque, há necessidade de se avançar na proposição de medidas que qualifiquem a visitação.
Quando se compara o número de veículos estipulado na Portaria n° 85 (200 veículos/dia) com a Capacidade de Carga
Efetiva do parque (146 veículos/dia), chega-se à conclusão que é necessário melhorar as condições de visitação. A Capacidade
de Carga Efetiva e outros dados de visitação estão discriminados no trabalho de Omena (2014) e serviram de base para a elaboração do presente documento.
Como exemplo, o Rocky Mountain National Park, um dos cinco parques mais visitados dos Estados Unidos, começou a
encontrar problemas em seu sistema de transporte de visitantes e está buscando alternativas para evitar a formação de longas
filas e congestionamentos (HUNT et al., 2011). Situação semelhante a que ocorre no PNSJ em ocasiões de grande movimentação
turística. O presente estudo experimentou alternativas para ordenar, aumentar e qualificar a visitação ao parque, de modo que
os visitantes reconheçam mais facilmente que se encontram em uma típica área protegida. Tais alternativas procuraram atender
ao que foi legalmente estabelecido para a eliminação ou minimização dos impactos que já ocorrem na área do mirante natural
do Morro da Igreja.
Materiais e Métodos
Localização do mirante do Morro da Igreja e do Parque Nacional
Chega-se ao mirante do Morro da Igreja (Figuras 1 e 2) por um acesso de 17 Km a partir da Rodovia SC-370, em Urubici
(bairro Esquina) até o portal do parque, e daí por mais 10 km até o local de visitação, que se encontra dentro da área de jurisdição
do Destacamento de Controle do Espaço Aéreo do Morro da Igreja (DTCEA – MDI), uma guarnição do Comando da Aeronáutica
ligada ao Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo II (CINDACTA II). Do local é possível avistar a Pedra
Furada, a principal atração do parque (Figuras 1 e 2).
Figura 1. Localização do mirante do Morro da Igreja e do Parque Nacional de São Joaquim.
Fonte: Os autores. Coordenadas de referência: 28° 7’ 34,2’’ S e 49° 28’ 45,5’’ O, DATUM WGS 84.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
222
Figura 2. Mirante natural do Morro da Igreja em dia de grande movimentação turística.
Fonte: Foto divulgada no Jornal Diário Catarinense e no programa de Televisão “Jornal do Almoço”, do grupo RBS/TV/SC, em 06/2010.
Entrevistas e período do trabalho
Durante 18 meses, de 01/01/2013 a 31/07/2014, realizamos diversas entrevistas individuais informais e reuniões, do tipo
brainstorming, para coletar ideias que pudessem ser aplicadas à gestão do uso público do parque. A participação nos grupos de
discussão foi registrada em listas de presença. Do conjunto de ações propostas, algumas foram posteriormente implementadas
e os resultados avaliados.
Resultados
As reuniões realizadas tiveram a seguinte participação e frequência:
1)autoridades municipais: Prefeito, Secretário de Turismo, Promotor, Polícia Militar e Civil, Assessor de Impressa da Prefeitura: 1 reunião;
2)membros do Conselho Municipal de Turismo de Urubici: 1 reunião;
3)condutores de visitantes: 2 reuniões;
4)vereadores e proprietários de meios de hospedagem: 3 reuniões;
5)Comandante da Aeronáutica local, servidores e funcionários do parque: várias reuniões;
6)Conselho Consultivo, formado por representantes dos quatro municípios abrangidos pelo parque: Urubici, Bom Jardim
da Serra, Orleans e Grão Pará: várias reuniões;
7)entidades ambientalistas e universidades públicas e particulares: várias reuniões.
Exceto as reuniões realizadas com o Comandante e a equipe do parque, todas foram convocadas por carta ou convite, e
a participação registrada em listas de presença e fotografias (Figura 3).
(a)
(b)
Figura 3. Reuniões propositivas: (a) Condutores Credenciados; (b) Conselho Consultivo do parque. Fonte: Os Autores.
As soluções propostas nas reuniões foram divididas em dois grupos: ações a serem implantadas e avaliadas; e ações
em estudo.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
223
Ações implantadas e avaliadas
Criação de página na internet e facilidade de agendamento de visitas
O primeiro passo foi aumentar a exposição do parque à percepção pública através da criação de um site (www.icmbio.
gov.br/parnasaojoaquim) contendo informações constantemente atualizadas sobre o local. Interessados poderão fazer reservas
para visitação através do e-mail [email protected] e garantir antecipadamente seu acesso, já que a Portaria n°
85 do ICMBio só permite a entrada de 200 veículos por dia.
Estacionamento para ônibus e micro-ônibus
Um dos problemas apontados pelos condutores de visitantes foi o longo tempo de espera na fila de veículos que aguardam liberação de entrada no parque e a necessidade de uma área exclusiva para estacionamento dos ônibus e micro-ônibus.
Esses veículos passaram então a ser dispensados de esperar na fila sempre que houver vaga de estacionamento. Na prática,
os ônibus e micro-ônibus devem deixar os passageiros no mirante e retornar ao estacionamento posicionado antes das vagas
destinadas aos carros de passeio. Tal medida descongestionou significativamente o espaço de movimentação dos turistas no
local de visitação.
Instalação de outdoor
Nos finais de semana e feriados, a fila de carros na portaria do parque (Figura 4a) é um fator de irritação, pois a espera
pode durar mais de 1 hora (se o estacionamento estiver lotado, a entrada de um carro está condicionada à saída de outro). A
instalação de um outdoor (Figura 4b) com a fotografia da Pedra Furada visou entreter o visitante e garantir que nos dias de baixa
visibilidade ele possa ao menos levar uma fotografia indireta do atrativo.
(a)
(b)
Figura 4. (a) Fila de veículos na entrada do parque; (b) Fotografia do outdoor (6m X 2,4m) ao lado do portal de entrada. Fonte: Os autores.
Áudio-guia e exposição interpretativa.
Ao longo dos 10 Km da estrada que se estende do portal até o mirante há diferentes paisagens, atrativos e belezas que o
visitante normalmente não percebe, talvez devido ao desejo de chegar rápido ao mirante e à falta de estímulos durante o trajeto.
Este fato levou à elaboração de um áudio-guia em parceria com o Núcleo de Pesquisas em Fauna Silvestre da Universidade
do Estado de Santa Catarina (NUPAS/UDESC/Lages/SC), com o objetivo de aumentar a capacidade de carga do local e aperfeiçoar a visitação. O áudio, disponibilizado em compact disc (CD), traz informações diversas (história do parque, velocidade
permitida, etc) e destaca certos pontos de parada ao longo do trajeto. Acreditamos que essa medida possa diminuir o risco de
acidentes, aumentar o tempo de deslocamento e enriquecer a experiência turística. De início, os pontos de parada foram marcados com postes amarelos e vermelhos e identificados segundo as faixas do CD. Para fins de avaliação, 59 veículos escolhidos
aleatoriamente receberam o CD e tiveram seus horários de entrada e saída anotados. Depois, alguns turistas foram entrevistados
informalmente para opinar sobre a sincronização do áudio-guia com os pontos de parada e também sobre seu conteúdo. Com
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
224
apoio do NUPAS/UDESC/Lages/SC, COMTUR e parceiros particulares, uma exposição sobre a fauna silvestre catarinense foi
instalada na sede do parque.
Ações em estudo (de provável implantação futura)
Instalação de webcam
Propõe-se uma parceria entre os meios de hospedagem, a Secretaria de Turismo de Urubici, a Rede de TV SBT e o DTCEA-MDI para a instalação de uma câmera de vídeo no Morro da Igreja que mostre a Pedra Furada em tempo real, pela internet
ou pela televisão: uma webcam de divulgação do parque que também permitirá conhecer as condições de visibilidade do local
(nevoeiros são frequentes antes de decidir visitá-lo.
Realização de eventos
A beleza cênica do local associada às condições de fácil acessibilidade frequentemente incentivam a prática de diversas atividades esportivas ou de lazer tais como maratonas, corridas de bicicleta, e encontros de motociclistas. Essas atividades
demandam uma estratégia diferenciada de atendimento e segurança para que sua realização não perturbe substancialmente
a visitação cotidiana. Percebemos que tais eventos devem se restringir ao horário vespertino, preferencialmente após as 16h,
quando o fluxo de turistas é reduzido.
Além disso, considerando que esses eventos são rotineiramente organizados e executados por associações e empresas
privadas com fins lucrativos - e portanto fogem ao padrão de visita de contemplação tradicional, um retorno financeiro em favor
do parque é uma possibilidade que deve ser analisada apropriadamente.
Infraestrutura
Salientamos que o Parque Nacional de São Joaquim não possui infraestrutura adequada para seu próprio funcionamento
e para o atendimento dos turistas. Dentre as necessidades de maior urgência (que requerem soluções de curtíssimo prazo),
apontamos a de uma reforma (ou readequação) completa do portal, incluindo a construção de sanitários para visitantes e outras
facilidades para funcionários e turistas.
Notamos também a necessidade de benfeitorias no mirante, tais como (1) construção de guarda-corpos, (2) construção
de passarelas para minimizar os impactos às turfeiras, e (3) ampliação da área de manobra de veículos. Além disso, será importante iniciar as tratativas para a construção de um centro de visitantes dentro do parque, pois atualmente o atendimento é
prestado fora do parque, na sede situada na área urbana de Urubici. Estudos devem ser realizados para detalhamento e objetivação desses problemas.
Transporte turístico
Da observação direta, dos dados de visitação fornecidos pela administração do parque (Tabelas 1 e 2), e também diante
da perspectiva de crescimento do fluxo de veículos (que está sempre limitado à capacidade do estacionamento), parece razoável
e ecológico recomendar o uso futuro de vans para transporte coletivo dos turistas até o mirante. Reuniões devem ser convocadas
para estudar com a comunidade estratégias e ações nessa direção.
O aumento substancial de turistas em 2012 e 2013 (Tabela 1) deveu-se à precipitação de neve, que costuma ter um forte
apelo estético.
O ano de 2013 acusou os maiores picos de visitação no intervalo de tempo considerado (Tabela 2), novamente devido a
ocorrência de neve.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
225
Visitação noturna
Resultados preliminares de alguns projetos de pesquisa indicam haver grande diversidade de espécies animais no
parque (estudos oficiais ainda não foram publicados). Visitas guiadas podem ser uma maneira de observar esses animais à noite,
pois se tornam mais ativos e se aproximam da estrada livre de tráfego. Análises técnicas são necessárias para avaliar o impacto
ecológico e a viabilidade dessa iniciativa.
Propõe-se também a realização de passeios noturnos para observação do céu. Embora não seja uma prática comum
na região, a atividade poderia interessar aos aficionados da astronomia, por exemplo. Pensamos que a área mais conveniente à
contemplação de estrelas seja a região de Santa Bárbara, ao sul do parque.
Discussão
A gestão de um parque ecológico sempre deverá assegurar a conservação das áreas protegidas, a satisfação dos visitantes, e, quando possível, retornos financeiros para a população local. Essas metas estão presentes, em diferentes níveis de
desenvolvimento, tanto em parques brasileiros como em parques estrangeiros (BENAYAS; MUÑOZ-SANTOS, 2012).
Estratégias que levem em conta as peculiaridades de cada local, minimizem ou eliminem as ameaças de depredação,
e valorizem o patrimônio natural são ações que aperfeiçoam a gestão do uso público e aumentam a qualidade da visitação em
parques nacionais. Planejar e testar alternativas são os primeiros passos na direção de uma experiência turística mais rica e
ecológica (OMENA, 2014).
A implantação de uma página na internet divulgando as regras de visitação do parque e oferecendo o serviço de agendamento de visitas por correio eletrônico mostraram-se ferramentas eficazes de comunicação com o visitante.
No Rocky Moutain National Park, no estado do Colorado, EUA, observou-se uma preferência dos visitantes em dirigir
seus veículos, porém em geral aceitam utilizar o transporte fornecido pela administração do parque, nos casos em que o excesso
de carros possa comprometer a comodidade do passeio (HUNT et al., 2011). Este fato demonstra que normalmente os turistas
são capazes de priorizar soluções coletivas em detrimento de soluções individualistas. De fato, observamos que a reserva de
uma área exclusiva para estacionamento de ônibus e micro-ônibus no Parque Nacional de São Joaquim teve fácil aceitação, pois
os visitantes entenderam que se tratava de algo vantajoso para todos.
Percebemos que diversos visitantes utilizaram o outdoor instalado na proximidade do portal do parque para tirar fotografias e sociabilizar enquanto aguardavam liberação de entrada. Portanto, o equipamento atendeu a finalidade pretendida.
O tempo médio de visitação de 29 minutos (OMENA, 2014) foi acrescido em 14 minutos (50%), em média, para os
59 veículos escolhidos que fizeram o trajeto com um áudio-guia. A sincronia do áudio com os pontos de parada necessita de
pequenos ajustes para os carros de passeio. Para os veículos mais lentos (ônibus e vans), a sincronia deve ser diferente. Para
motocicletas, o áudio-guia não se aplica. Sugerimos que as cores dos postes sejam padronizadas em vermelho e que indiquem
explicitamente a faixa do CD correspondente a cada ponto de parada. O recurso teve receptividade bastante positiva.
A exposição interpretativa na sede do parque agregou informações ao passeio e aumentou a percepção pública acerca
da importância da área que será visitada. Centros de interpretação ambiental e centros de visitantes são espaços de promoção
da vida selvagem e contribuem positivamente para a satisfação do turista (CURY, 2002). Futuramente, questionários e entrevistas
poderão confirmar a eficácia da iniciativa em sensibilizar os visitantes para as questões ecológicas locais.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
226
A necessidade de manutenção contínua de uma câmera de vídeo instalada no mirante (webcam) pareceu a principal
dificuldade para o funcionamento de um sistema de divulgação do local em tempo real, pois a alta umidade, os ventos fortes, e
outras intempéries são fatores que complicam sua implantação e funcionamento. Portanto, até julho de 2015 esta ação não tinha
sido implantada e seus resultados não puderam ser avaliados
Eventos de esporte e lazer ainda não geram retorno financeiro para o parque e a marca “Parque Nacional de São Joaquim” não tem sido divulgada satisfatoriamente. A situação começou a mudar, porém, depois da efetivação do controle de visitantes na estrada do Morro da Igreja. Na ausência de um Plano de Manejo, a administração do ICMBio e o Conselho Consultivo
deverão discutir o assunto mais detidamente.
O melhoramento da infraestrutura (banheiros, passarelas, e outras facilidades) agregará qualidade e segurança à visitação. O recente crescimento do turismo na região demanda providências urgentes nesse sentido. Sugerimos um levantamento de
necessidades e a elaboração de um projeto arquitetônico através de concurso público.
Os atrativos visuais da estrada de acesso ao mirante pode se tornar um forte motivo de interesse turístico. Segundo pesquisa feita no Acadia National Park, no estado americano do Maine, os turistas preferem trafegar por estradas que apresentem
diversidade de belezas cênicas (HALLO; MANNING, 2009).
A adoção de transporte coletivo para visitação é uma solução aceitável, mas deve ser discutida amplamente com a comunidade, pois provavelmente afetará a dinâmica turística do parque.
Considerando os dados da Tabela 2 e pensando em substituir a visitação de veículos particulares por vans credenciadas,
calculamos, a título de exemplo, que teriam sido necessárias cerca de 60 vans de 8 lugares, excluído o condutor, fazendo três
viagens por dia para atender o público que visitou o parque no dia 19 de julho de 2014 (1454 visitantes, a maior movimentação do
ano). Para os dez dias de maior movimento do mesmo ano (fins de semana de julho e feriados), o número de vans teria oscilado
entre 47 e 60, também fazendo três viagens por dia. Para atender, porém, a demanda média anual de visitação, o número de
viagens teria sido menor, cada van fazendo 2 viagens por dia. Em meses de baixa visitação (fevereiro e outubro, por exemplo) e
dias úteis, quando o fluxo de visitantes é pequeno, um número menor de vans pode funcionar em regime de rodízio permanente
(a estipulação de horários de visitação pode concentrar mais passageiros e otimizar as viagens). Liberar a entrada de veículos
particulares nessas ocasiões também é uma possibilidade.
A administração do parque poderá se encarregar do credenciamento e capacitação dos prestadores de serviço, além de
monitorar os preços das tarifas e a qualidade do serviço. Havendo disponibilidade de vans com mais de 8 lugares, o número de
credenciados diminui. Por exemplo, para veículos com 14 assentos, o cálculo anterior resultaria em 35 vans fazendo três viagens
por dia para atender aquela demanda. A legislação brasileira, porém, é mais exigente para a habilitação de motoristas de veículos grandes com passageiros.
O uso de ônibus e micro-ônibus não seria prático para o transporte diário dos visitantes, pois são grandes e sua dirigibilidade é mais difícil nas subidas e curvas. Podem servir como recurso adicional em dias de maior movimento, a fim de reduzir
o número de viagens e, consequentemente, o tráfego na estrada de acesso.
Na ocorrência de neve, que historicamente está associada aos maiores picos de visitação, esquemas especiais de
transporte devem ser elaborados. Supomos também que, no início, muitos visitantes podem não querer utilizar o serviço de
transporte, ou desistir do passeio se não puderem chegar ao mirante usando seus próprios veículos. Por outro lado, podemos
supor também o surgimento de estacionamentos particulares, lojas de souvenirs, e outros serviços agregados ao transporte que
fomentarão a economia local. Investimentos particulares são necessários. As vans têm custo elevado e a quantidade requerida
não é modesta. As considerações do presente estudo são preliminares e devem ser amplamente debatidas com a sociedade e o
órgão gestor do parque.
Visitação noturna guiada poderá ser uma atividade interessante, à semelhança dos parques africanos que sempre
atraíram turistas para safaris de observação de grandes animais: leões, rinocerontes, elefantes, etc. A fauna de áreas protegidas
é um chamariz importante. No Parque Nacional de Kibale, na Uganda, 90% dos visitantes são estrangeiros e vêm à procura de
chimpanzés (HARDING; OBUA, 1996). O turismo de avistamento de baleias é outro exemplo do interesse que certos animais
despertam nas pessoas. Entre os anos de 2005 e 2010, Corrêa e colaboradores (2011) pesquisaram 742 passeios embarcados na
Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca, no sul de Santa Catarina, aonde os turistas vêm anualmente avistar a Baleia Franca
(Eubalaena australis). Entretanto, não existem pesquisas específicas sobre a diversidade da fauna no Parque Nacional de São
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
227
Joaquim, particularmente sobre as possibilidades de conhecê-la em safáris noturnos. Há uma tendência a se privilegiar animais
do topo da cadeia alimentar e transformá-los em símbolos. A onça-parda (Puma concolor), espécie ameaçada de extinção e de
díficil avistamento, é o animal mais popular do parque. Acreditamos, porém, que outros carnívoros e cervídeos podem ser avistados com mais facilidade em roteiros ecológicos guiados.
Passeios para observação do céu, integrados aos safaris ou separados, podem também ser oferecidos como “turismo
astronômico” e atrair mais visitantes.
A implantação do ordenamento turístico na visitação do Morro da Igreja/Pedra Furada em novembro de 2013 exigiu
grandes esforços. Depois da implantação do sistema, outras ações se tornaram necessárias, principalmente as de qualificação
do turismo: melhorias diversas no atendimento ao público e conscientização dos visitantes acerca da importância e do valor do
patrimônio natural.
As ações que foram propostas aqui (implantadas ou não) podem ser reproduzidas em outras áreas protegidas, inclusive aquelas com pequena visitação. Estas podem promover safaris “ecológicos” ou “astronômicos”, estreitar a comunicação
com a sociedade pela internet, ou mesmo divulgar seus atrativos por imagens captadas por uma webcam para um telejornal
local. A aproximação entre sociedade e parques naturais é fundamental para a valorização dessas áreas. Sensibilizar a população
sobre sua importância é a chave para a conservação da biodiversidade que elas guardam.
Conclusão
O desafio que um gestor e sua equipe enfrentam para equilibrar todos os objetivos de uma área protegida natural,
tendo de conciliar turismo ecológico com preservação ambiental, requer a realização de diversas ações estratégicas. Nesse
contexto, as atividades implantadas e descritas no presente trabalho (criação de página de divulgação na internet; possibilidade
de agendamento por correio eletrônico; mudança da área de estacionamento de ônibus e micro-ônibus; instalação de outdoor
ao lado do portal; e reforma da sede do parque) tiveram boa receptividade e já começaram a gerar benefícios em termos de
qualidade de uso. A adoção de um áudio-guia para orientar a visitação também foi aprovada pelo público. Sua implantação definitiva depende de ajustes técnicos que estão em andamento. Sugerimos que as propostas que não foram colocadas em prática
por razões diversas sejam reapresentadas à comunidade a fim de serem implantadas com o apoio de parceiros. E que estas
propostas, mais as ações já implementadas, façam parte do Plano de Manejo do parque. Prevendo-se neste apoio financeiro
da União para implantação e manutenção destas. Ações de qualificação da experiência turística (melhoramentos em geral e
conscientização) poderão quebrar o paradigma dos “parques-fortalezas”: áreas de preservação fechadas à população em geral.
Observamos que, na prática, é possível tornar os visitantes mais conscientes da importância das áreas naturais protegidas,
especialmente os parques. Para isso, é indispensável conduzir a visitação de modo organizado e qualificado, executando ações
planejadas pelo órgão gestor e comunidade. Sem prejuízo dos objetivos de conservação, tais áreas podem ser transformadas
em áreas de referência em lazer de qualidade.
Referências
BENAYAS, J.; MUÑOZ-SANTOS, M. A Proposed Methodology to Assess the Quality of Public Use Management in Protected
Areas. Environmental Management, v. 50, n. 1, pp. 106-122, 2012.
BRASIL. Lei n° 9.985, de 18/07/2000. Institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC. Brasília, 2000.
BRASIL. Diretrizes para a Visitação em Unidades de Conservação. Brasília: Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis, 2006.
BRASIL. INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE/ICMBIO. Portaria n° 85 de 25/07/2012. Brasília, 2012.
CORRÊA, A.A.; GROCH, K.R.; MOREIRA, L.M. P.; ROCHA, M.E.C.; SERAFINI, P. P. Turismo de Observação de Baleias Embarcado (TOBE) na Área de proteção Ambiental da Baleia Franca/ICMBio - Gestão e Manejo através de uma Unidade de Conservação.
In: Congresso Latino Americano de Ciências do Mar, 14., Balneário Camboriu. Anais... Balneário Camboriú, 2011.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
228
CURY, M.J.F. Marketing Turístico do Parque Nacional do Iguaçú: vida selvagem e imagens de animais. Turismo em Análise, v.
13, n. 2, pp. 88-95, 2002.
HAINES, A.L. The Yellowstone Story - A History of our First National Park. Niwot: University of Colorado Press, 1996.
HALLO, J.C.; MANNING, R.E. Transportation and Recreation: a case study of visitors driving for pleasure at Acadia National Park.
Journal of Transport Geopgraphy, v. 17, pp. 491-499, 2009.
HARDING, D.M.; OBUA, J. Visitor characteristics and attitudes towards Kibale National Park, Uganda. Tourism Management, v.
17, n. 7, pp. 495-505, 1996.
HUNT, L.; LAWSON, S.R.; NEWMAN, P.; PETTEBONE, D.; ZWIEFKA, J.; Estimating visitors’ travel mode choices along the Bear
Lake Road in Rocky Mountain National Park. Journal of Transport Geography, v. 19, pp. 1210– 1221, 2011.
ICMBIO. INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE. Disponível em <www.icmbio.gov.br>,
Acesso em 20 setembro 2014.
MAGRO, T.C.; PIMENTEL, D.S. A Imagem Arranhada dos Parques. Uma Discussão Epistemológica. Áreas Protegidas e Inclusão Social, v. 3, pg. 19-21, 2007.
OMENA, M.T.R.N. Parque Nacional de São Joaquim: do papel à realidade. Uma proposta de gestão do uso público.
2014. Dissertação (Mestrado em Engenharia Florestal) Pós Graduação em Engenharia Florestal, UDESC. Lages, 2014.
PARQUE NACIONAL NAHUEL HUAPI. Disponível em < http://www.nahuelhuapi.gov.ar/>, acesso em 29 novembro 2014.
PECCATIELLO, A.F.O. Análise Ambiental da Capacidade de Carga Antrópica na Trilha Principal do Circuito Pico do
Pião – Parque Estadual do Ibitipoca, MG. 2007. Monografia (Especialização) Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de
Fora, 2007.
TAKAHASHI, L.Y. Caracterização dos Visitantes, suas Preferências e Percepções e Avaliação dos Impactos da Visitação Pública em duas Unidades de Conservação do Estado do Paraná. 1998. Tese (Doutorado em Ciências Florestais).
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1998.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
229
O TURISMO E OS DESAFIOS ESTRATÉGICOS PARA A CONSERVAÇÃO DA
BIODIVERSIDADE E INCLUSÃO SOCIAL NOS
PARQUES ESTADUAIS DO RIO DE JANEIRO
Irving, Marta de Azevedo1; Lima, Marcelo Augusto Gurgel de2; João, Cristina Gerber 3; Oliveira, Maria Elizabeth de4; Prado,
Mariana Oliveira5 & Abreu, Manuela Muzzi6
1. PPG em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social e PPG em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Universidade
Federal do Rio de Janeiro e INCT/PPED/CNPq. [email protected] 2. Doutorando em Psicossociologia de
Comunidades e Ecologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. [email protected] 3. Pós-doutoranda no PPG Eicos Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. [email protected] 4. Doutoranda em Políticas
Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio de Janeiro. [email protected] 5. Mestranda do PPG Eicos
Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. [email protected] 6.Mestre em
Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro e INCT/ PPED/CNPq. [email protected]
Resumo
Com o maior número de Unidades de Conservação federais do Brasil, o segundo estado em atividade econômica e porta de
entrada do turismo internacional no país, o Estado do Rio de Janeiro possui como um dos seus principais desafios estratégicos,
na perspectiva de sustentabilidade, o planejamento do turismo em áreas protegidas. Esse contexto gera tensões para a gestão
da biodiversidade e demanda esforços governamentais para a compatibilização de políticas públicas de desenvolvimento e de
proteção da natureza. Com base neste breve recorte, o artigo buscou investigar o “Estado da Arte” do desenvolvimento turístico
em parques do Rio de Janeiro, considerando a sua potencialidade para inclusão social e para a própria conservação da biodiversidade. Os resultados indicam que as ações em planejamento de projetos turísticos são ainda incipientes, muito embora, os
parques possuam elevado potencial para uso turístico.
Palavras-chave: Turismo, Parques, Políticas Públicas, Inclusão Social, Rio de Janeiro.
Introdução
A relação natureza e sociedade, assim como, as interfaces relacionadas às questões do desenvolvimento, da conservação da biodiversidade e da inclusão social vem sendo, atualmente, uma das principais reflexões no âmbito das políticas públicas
no Brasil e, especificamente no Estado do Rio de Janeiro devido à tendência de crescimento do uso turístico em parques, motivado também pela realização de importantes eventos internacionais que foram e estão sendo planejados para o Estado do Rio de
Janeiro. E, nesta perspectiva, o turismo vem sendo abordado, nos últimos anos, em planejamento turístico, como uma relevante
alternativa para a inclusão social no país. No plano nacional, torna-se importante destacar que este tema vem sendo um dos
principais objetivos do atual Plano Nacional de Turismo 2013-2016 - “O Turismo fazendo muito mais pelo Brasil” (Plano Nacional
do Turismo PNT 2013-2016, BRASIL, 2013). Isto porque, o Governo Federal, assim como, o Ministério do Turismo (MTUR) identificam no setor turístico uma “forte solução para o crescimento sustentado e sustentável do país, com redução de desigualdades
regionais, inclusão social e geração de emprego e renda” (BRASIL, 2013).
Para isso, entre outras ações estratégicas, insere-se no atual PNT (2013-2016) a ampliação do foco social e caracterizando
o momento como sendo de forte indução para uma nova fase do turismo no país. E, com isto, o fortalecimento das políticas
públicas de turismo deverá ser capaz de contribuir para a geração de novos empregos, visando proporcionar melhorias na distribuição de renda e na qualidade de vida das populações locais. Além disto, o PNT 2013-2016 objetiva ainda “valorizar, conservar
e promover o patrimônio cultural, natural e social com base no princípio da sustentabilidade” (BRASIL, 2013, p. 46). A finalidade
dessa ação, segundo o documento analisado, é garantir o apoio a eventos que fortaleçam o desenvolvimento do turismo, “de
caráter tradicional e de notório conhecimento popular, que comprovadamente contribuam para promoção, fomento e inovação
dos processos da atividade turística do destino” (BRASIL, 2013, p. 46).
No contexto estadual, é relevante enfatizar que o Rio de Janeiro representa a porta de entrada do turismo internacional
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
231
no Brasil e tem um grande potencial para a expansão do turismo nos próximos anos. Por sua vez, o Estado também contará com
limitações e riscos envolvidos neste processo que precisarão ser avaliados e equacionados em políticas públicas. Uma outra
questão que precisa ser considerada é o fato do Estado do Rio de Janeiro possuir a maior concentração de áreas protegidas do
bioma Mata Atlântica1 no Brasil e o segundo estado com o maior número de Unidades de Conservação (UC) do país. No entanto,
estas áreas encontram-se fortemente pressionadas pela ação antrópica, já que este Estado é o segundo em atividade econômica
do país (IRVING et al., 2013). Assim, além das crescentes pressões econômicas sobre a base de recursos naturais, influenciadas
pela expansão industrial e urbana e pelas transformações socioeconômicas impostas pela dinâmica em curso, o Estado poderá
ainda sofrer com os efeitos da realização de grandes eventos internacionais de alcance global que já tiveram e ainda terão o
Estado do Rio de Janeiro como sede.
Esse contexto gera tensões permanentes para a gestão da biodiversidade e demanda esforços governamentais sistemáticos para a compatibilização de políticas públicas de desenvolvimento e de proteção da natureza, principalmente no caso dos
parques, que tipificam como nenhuma outra categoria de manejo de áreas protegidas, a cisão histórica entre sociedade e natureza (IRVING; MATOS, 2007).
No entanto, são ainda limitados os estudos e pesquisas capazes de interpretar o “Estado da Arte”, com relação ao
desenvolvimento do turismo nos parques no Rio de Janeiro e seu entorno e, os desafios para a integração das políticas públicas
com este objetivo. Este tipo de informação é essencial em planejamento turístico e também para a consolidação de políticas de
proteção da natureza, historicamente dissociadas de uma perspectiva estratégica de desenvolvimento regional, a médio e longo
prazos.
Etapa metodológica
Com base neste recorte e nas premissas teóricas anteriormente mencionadas, este artigo buscou investigar o “estado da
arte” do desenvolvimento turístico em parques estaduais do Rio de Janeiro, considerando a sua potencialidade para inclusão social e para a própria conservação da biodiversidade. E para isto, tendo em vista os desafios de integração das principais políticas
públicas norteadoras de turismo e proteção da natureza: Diretrizes para uma Política de Ecoturismo (EMBRATUR/IBAMA, 1994),
Plano Nacional de Turismo 2013-2016 (BRASIL, 2013), que consolida a Política Nacional de Turismo, e de proteção da natureza
(Sistema Nacional de Unidades de Conservação (BRASIL, 2000) e Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (BRASIL,
2006) e seus desdobramentos.
Com base no objetivo realizou-se uma análise crítica e aplicada sobre o tema, tendo como insumos dados de campo
envolvendo a percepção das esferas gerenciais sobre o tema, para que se pudesse contribuir, efetivamente, para o planejamento
da gestão pública dirigida a este setor.
Para este artigo foram selecionados sete parques instituídos até 2002 (sendo, portanto os mais antigos) e sob a gestão
direta do INEA (Instituto do Ambiente do Rio de Janeiro), muito embora novos parques tenham sido criados em 2012/2013 e alguns estejam sob a gestão municipal.
O Quadro 1, a seguir, sistematiza os documentos legais de criação dos parques estudados no âmbito deste artigo:
O Estado do Rio de Janeiro abriga a maior concentração de áreas protegidas do bioma Mata Atlântica do país e compõe a Reserva da Biosfera, internacionalmente
reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO. No entanto, apesar de contar com 16,73% da Mata Atlântica
do país, em função dos diferentes ciclos econômicos baseados na exploração sistemática dos recursos naturais, restam hoje na área do Estado somente alguns fragmentos isolados do bioma que, somados, perfazem 7.346,29 km², cerca de apenas 17% da sua cobertura original (IRVING et al., 2013).
1
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
232
Com este entendimento, as etapas metodológicas que orientaram o artigo estão descritas a seguir:
•Análise de documentos norteadores de políticas públicas e/ou diretrizes internacionais, nacionais e estaduais sobre o
tema, envolvendo o período entre a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento - Rio 92 e ano
de 2013, ano final da etapa de pesquisa. No âmbito internacional, a presente análise considerou a Convenção da Diversidade Biológica e os seus desdobramentos nas Conferências das Partes (COPs), as resoluções da IUCN (International Union for the Conservation of Nature) e, os documentos oficiais da World Tourism Organization (UNWTO), no período. No plano nacional, foram
interpretados o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), a Política Nacional de Biodiversidade, o PNAP (Plano Estratégico Nacional de áreas Protegidas), os Planos/Políticas de Turismo 2003/2007 e 2007/2010 e os documentos recentes sobre as
bases da nova política de turismo e os seus desdobramentos aplicados ao tema em questão. Na esfera estadual, foram mapeados
os programas, atualmente, em implementação no âmbito da Secretaria de Turismo e do Instituto Estadual do Ambiente (INEA/RJ);
•Pesquisa bibliográfica e documental sobre o tema em foco envolvendo as pesquisas em curso registradas nos sistemas
de autorização do INEA, Banco de Teses da Capes e anais de eventos de referência sobre o tema, além de relatórios contendo a
sistematização de dados secundários sobre os parques do Rio de Janeiro, com ênfase no processo de desenvolvimento turístico,
incluindo relatórios técnicos, planos de manejo, atas de reuniões de conselhos, entre outros documentos. Esta etapa permitiu
contextualizar, em um plano estratégico, a temática de pesquisa;
•Elaboração de instrumentos de pesquisa de campo e identificação de interlocutores da gestão pública relacionados à
temática do turismo em parques;
•Realização e análise qualitativa das entrevistas com atores institucionais da gestão. Todas as entrevistas foram gravadas
e transcritas e os questionários dirigidos aos interlocutores institucionais, sistematizados em uma base de dados do projeto. As
entrevistas permitiram levantar, através da ótica do cotidiano da gestão dos principais parques estaduais, os problemas e desafios enfrentados para a consolidação do turismo nestas áreas, segundo o compromisso de sustentabilidade socioambiental;
•Elaboração de uma matriz-síntese sobre restrições e potencialidades para o desenvolvimento turístico nos parques do
Estado do Rio de Janeiro que, pedagogicamente, sintetiza os resultados aplicados da pesquisa e as principais recomendações
dirigidas às políticas públicas.
Síntese dos resultados obtidos
A metodologia foi desenhada de maneira a permitir que o objetivo do artigo pudesse ser alcançado tendo como premissa
a proposta de construção de conhecimento compartilhado entre a academia, a gestão pública e os demais setores da sociedade
envolvidos no debate.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
233
Com este balizamento, foi possível identificar que, em geral, a produção científica relacionada ao turismo em Parques no
Estado do Rio de Janeiro abordam, principalmente, temas como turismo em sua relação com a conservação da biodiversidade,
análise de políticas públicas de turismo, diagnóstico e monitoramento turísticos, além de estudos sobre o perfil de turistas. A
maior parte das pesquisas concentra-se nos Parques mais antigos, como Ilha Grande e Pedra Branca. Em tais parques foram encontradas, no levantamento realizado, respectivamente 124 e 114 produções científicas. No entanto parques mais recentes como
os Parques Estaduais do Cunhambebe e da Serra da Concórdia, foram foco de apenas 15 produções científicas, no período
compreendido da pesquisa. Além disso, a produção cientifica sobre a temática do turismo é, em geral, escassa, representando
menos que 7% do total de teses, dissertações e pesquisas registradas na Capes sobre os parques do Rio de Janeiro. E, no caso
de alguns parques estaduais, os únicos dados disponíveis estão sistematizados na presente pesquisa, apoiada pelo INEA, no
âmbito e executada pelo Grupo de Pesquisa Governança, Biodiversidade, Áreas Protegidas e Inclusão Social (GAPIS/IP), da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É também este grupo uma importante referência com relação a todos os Parques estudados,
com produções científicas em congressos, quanto em periódicos especializados, teses e dissertações.
Assim, embora este seja um tema estratégico para o desenvolvimento sustentável do Estado, em uma projeção de cenários de curto, médio e longo prazos, as pesquisas em curso estão ainda aquém das demandas de planejamento, o que tende a exigir dos órgãos públicos um esforço dirigido a este tema nos próximos anos, principalmente quando se considera a limitação de
informação qualificada para orientar as políticas públicas de proteção da natureza e de turismo em sua articulação nos parques
do Rio de Janeiro, focos privilegiados para o desenvolvimento turístico nos próximos anos.
É importante mencionar que na cronologia de criação dos parques analisados neste trabalho, o processo não foi contínuo
como ilustram a Quadro 2 e a Figura 1 a seguir. E, sendo assim, evidentemente que o conhecimento produzido reflete este processo.
Figura 1. Representação esquemática da cronologia do processo de criação de Parques no Rio de Janeiro, envolvendo também os
parques em gestão compartilhada com a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro; fonte: Irving et al. (2013).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
234
No plano da gestão, os conselhos são mais recentes e a sua instalação decorreu da criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), em 2000 (BRASIL, 2000). Esta afirmação está a seguir ilustrada na Quadro 3:
A maioria dos parques dispõe de Conselhos. Apenas os mais recentes estão ainda em processo de instalação desses
fóruns de gestão, observa-se, entretanto, que apenas dois parques possuem câmaras técnicas de turismo instaladas: Parque
Estadual do Desengano e o Parque Estadual Serra da Tiririca.
Com relação aos Planos de Manejo, instrumentos essenciais da gestão para orientar o planejamento turístico nas áreas
protegidas, apenas quatro parques estaduais tem planos de manejo: Parque Estadual do Desengano, Parque Estadual da Ilha
Grande, Parque Estadual da Serra da Concórdia e Parque Estadual Três Picos.
No caso dos Planos de Uso Público, embora sejam documentos técnicos essenciais para orientar o desenvolvimento do
turismo e demais usos do parque apenas os Parques estaduais do Desengano, da Serra da Concórdia, dos Três Picos e Cunhambebe possuem-no para orientar o planejamento de Uso Público.
Com relação ao levantamento de perfil de visitantes são poucos os parques que contam com essa informação para orientar o processo de planejamento turístico e as estratégias de gestão. São eles: Parque Estadual da Ilha Grande, Parque Estadual
de Pedra Branca, Parque Estadual Serra da Tiririca, Parque Estadual Três Picos e Parque Estadual de Cunhambebe. Além disso,
esse tipo de levantamento não é orientado por uma metodologia padronizada que permita a comparação de dados ou a projeção
de cenários para o planejamento integrado do turismo nos parques estaduais do Rio de Janeiro.
Considerando o panorama sobre o contexto dos parques do Rio de Janeiro, alguns obstáculos são reconhecidos para o
desenvolvimento do turismo e esses estão representados graficamente na Figura 2 a seguir:
Figura 2. Representação esquemática dos principais problemas identificados para o
desenvolvimento do turismo nos parques do Rio de Janeiro. Fonte: Irving et al. (2013).
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
235
Os principais obstáculos reconhecidos pelos gestores correspondem à comunicação deficiente e à limitação de iniciativas de educação ambiental essenciais no caso da categoria de manejo parque.
Reconhecidas estas limitações, algumas recomendações são também propostas para assegurar o desenvolvimento do
turismo nos parques, conforme representado esquematicamente na Figura 3:
Figura 3. Representação esquemática das principais recomendações identificadas para o desenvolvimento do turismo nos parques
do Rio de Janeiro, pela perspectiva dos gestores dos parques pesquisados no Estado do Rio de Janeiro. Fonte: Irving et al. (2013).
As principais recomendações identificadas para o aprimoramento do processo pela ótica da equipe de gestão são as
seguintes: desenvolvimento de estudos de capacidade de carga; investimento em capacitação profissional; melhoria nas estratégias de comunicação; desenvolvimento de ações de educação ambiental; realização de inventários turísticos; ações de ordenamento turístico e planejamento estratégico, com este objetivo.
Pela perspectiva dos conselheiros dos parques estudados (e entrevistados) as questões identificadas como problemáticas para o desenvolvimento do turismo incidem principalmente sobre: gestão inadequada do uso público; impactos da visitação
e dificuldades de acesso e infraestrutura (Figura 4).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
236
Figura 4. Representação esquemática das principais obstáculos identificados para o desenvolvimento do turismo nos
parques do Rio de Janeiro. Fonte: Irving et al. (2013).
Esses atores reconhecem que algumas ações seriam necessárias para superar alguns dos problemas identificados conforme esquematizado na Figura 5 a seguir:
Figura 5. Representação esquemática das principais obstáculos identificados para o desenvolvimento do turismo nos
parques do Rio de Janeiro. Fonte: Irving et al. (2013).
As principais recomendações dos conselheiros para o desenvolvimento do turismo nos parques objeto do trabalho se
referem à necessidade de planejamento de novos atrativos; melhores condições de trabalho para a gestão; limitação e controle
de visitação; aprimoramento da sinalização e orientações aos visitantes e fortalecimento do diálogo e parcerias com as populações do entorno.
Estas informações se completam com alguns resultados obtidos através de debates realizados durante o Seminário
“Desafios para o turismo em Parques do Rio de Janeiro”, O Seminário gerou uma série de recomendações concentradas nos
seguintes eixos: Comunicação, com destaque para a necessidade de divulgação da unidade de conservação para a sociedade e
a realização de atividades de educação ambiental; Fortalecimento da Segurança Pública, um problema que não atinge somente
os Parques situados na região metropolitana do Rio de Janeiro, mas é recorrente em todo o estado; Regularização Fundiária, como
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
237
condicionante para o estabelecimento de planos de uso público para os Parques. Além desses eixos, um elemento transversal
ressaltado no evento foi a importância da gestão participativa destas áreas, a partir da realização de diagnóstico e estratégias de
planejamento que incluam os diferentes atores sociais vinculados ao turismo em Parques o Rio de Janeiro.
Considerações finais
Conforme anteriormente mencionado, este artigo buscou estabelecer uma linha de base capaz de ilustrar o “Estado da
Arte” no desenvolvimento turístico nos parques do Rio de Janeiro no sentido de contribuir para o planejamento do setor mas também funcionar como registro para as iniciativas de monitoramento de alguns projetos em curso como o Projeto Fortalecimento
e Implantação da Gestão do Uso Público para o Incremento da Visitação nos Parques Estaduais do Rio de Janeiro (INEA, 2012),
além de ações de políticas públicas associadas à realização dos grandes eventos internacionais que já aconteceram e ainda
estão por acontecer no Rio de Janeiro nos próximos anos.
Os resultados desta pesquisa parecem indicar que as ações em planejamento e implementação de projetos turísticos são
ainda muito incipientes nos parques do Estado e embora tenham um elevado potencial para uso turístico, são pouco conhecidos
e dispõem de informações limitadas dirigidas ao público usuário, a infraestrutura disponível é ainda incipiente para as demandas
de visitação em caráter de rotina e apenas alguns parques dispõem de uma base de dados de pesquisa sobre a área protegida.
E também no caso das pesquisas registradas são ainda raras aquelas dirigidas ao turismo.
Um outro elemento crítico a ser considerado é a deficiência de estratégias de comunicação e difusão das áreas protegidas para a sociedade, aliada em alguns casos, à dificuldade de acesso, além de outros problemas críticos sob a ótica da gestão
como o funcionamento dos conselhos muitas vezes pouco conectado com a temática em foco, Planos de Manejo nem sempre
aplicáveis às demandas de planejamento turístico e inúmeros problemas relacionados a conflitos fundiários o que, em tese,
inviabilizaria ações mais consolidadas de desenvolvimento turístico em razão deste tipo de pendência jurídica com relação ao
próprio parque.
Por outro lado, embora projetos e programas estejam em desenvolvimento pelos Ministérios de Turismo e Meio Ambiente
e, no caso especifico do Rio de Janeiro também pelo INEA, em associação à projeção de aumento da visitação dos parques do
Estado do Rio de Janeiro (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2010; INEA, 2012), as ações parecem ainda desarticuladas, no plano estratégico, entre as esferas de governo e entre as diretrizes das políticas públicas de turismo e proteção da
natureza. Assim, os parques são objeto de programas governamentais, mas a gestão se concentra na implementações de ações
isoladas, o que pode significar que as ações em curso tenham apenas efeitos pontuais e com duração limitada. Isto porque todas
estas ações demandam salvaguardas em termos de garantia de continuidade e articulação do turismo em parques na lógica de
circuitos, envolvendo não apenas a questão de visitação de espaços naturais reservados mas também de sua articulação com a
cultura local e com a garantia de inclusão social segundo novas bases de planejamento.
Embora esta seja uma pesquisa exploratória e qualitativa, ela pode ilustrar o vasto campo de inovação para a geração de
conhecimento em turismo no Rio de Janeiro, campo este ainda em construção.
Referências
BRASIL. MINISTÉRIO DO TURISMO (MTUR). Plano Nacional de Turismo 2013-2016: O turismo fazendo muito mais pelo
Brasil. Brasília: MTUR, 2013.
BRASIL. Lei n 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, parágrafo 1, incisos I, II, III, VII da Constituição Federal,
institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC. Brasília, 2000.
BRASIL. Decreto n 5.758, de 13 de abril de 2006. Regulamenta o art. 84, incisos IV e VI da Constituição Federal, institui o Plano
Estratégico Nacional de Áreas Protegidas – PNAP. Brasília, 2006.
EMBRATUR/IBAMA. BRASIL. Diretrizes para uma Política Nacional de Ecoturismo. Brasília: EMBRATUR,1994.
GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (Estado). Decreto nº 42.483 de 27 de maio de 2010. Estabelece diretrizes para
o uso público nos parques estaduais administrados pelo Instituto Estadual do Ambiente – INEA e dá outras providências. 2010.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
238
INEA. INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE. RIO DE JANEIRO (Estado). Projeto Fortalecimento e Implantação da
Gestão do Uso Público para o Incremento da Visitação nos Parques Estaduais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: INEA,
2012.
IRVING, M. A. et al. Relatório Final do Projeto FAPERJ Turismo em Parques Estaduais do Rio de Janeiro: Desafios Estratégicos para a conservação da biodiversidade e inclusão social. 2013.
IRVING, M.A.; MATOS, K. 2007. Gestão de parques nacionais no Brasil: projetando desafios para a implementação do Plano
Nacional Estratégico de Áreas Protegidas. Floresta e Ambiente, v.13, n.2, p. 89-96, 2006.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
239
TRAVESSIA: ADENTRANDO OS GROTÕES DO ESPINHAÇO
Bulhões, Tainá Gonçalves1; Gontijo, Bernardo Machado & Silva, Gabrielly3
1. IGC/Universidade Federal de Minas Gerais, [email protected] 2. IGC/Universidade Federal de Minas Gerais,
[email protected] 3. IGC/niversidade Federal de Minas Gerais, [email protected]
Resumo
Sustentado em sua expressiva biodiversidade, a região mineira da Serra do Espinhaço, selecionada para realizarmos esse
estudo, por ela ser reconhecida como área prioritária para a conservação de seus biomas, como também, por sua grande
diversidade sociocultural, com suas comunidades tradicionais e tem despertado o desenvolvimento do turismo. Diante dessa
situação é possível apontar contradições na formação deste espaço, já que outras atividades de uso da terra são proibidas. Assim
propomos compreender de que forma a iniciativa de formatação do roteiro turístico Travessia dos Parques e Vilarejos, no âmbito
do Mosaico do Espinhaço, pode influenciar, nessa nova dinâmica territorial, as comunidades envolvidas. Observamos que esse
roteiro se pauta na valorização da cultura, já que tem as comunidades como atrativos, o que pode fortalecer a identidade local.
Palavras-chave: Turismo, Travessia, Unidades de Conservação, Mosaico do Espinhaço.
Introdução
Na modernidade, um dos marcos da temática ambiental se refere ao alerta do elevado grau de uso dos recursos naturais
e a destruição da biodiversidade, que levou à criação de áreas naturais protegidas, que visem a proteção e/ou conservação da
natureza e sua biodiversidade.
Entende-se aqui por biodiversidade o conceito que a considera não apenas por sua variabilidade genética e a diversidade de espécies e ecossistemas, como também a diversidade cultural humana. A diversidade cultural manifesta-se pela diversidade de linguagem, crenças religiosas, práticas de manejo da terra, arte, musica, estrutura social, seleção de cultivos agrícolas
e construção de territorialidades.
Sustentado em sua expressiva biodiversidade, foi feito um recorte na região mineira do Alto Jequitinhonha, que sobrepõe,
nesse caso, a Serra do Espinhaço, para realizarmos esse estudo, uma vez que essa última foi reconhecida como área prioritária
para a conservação de seus biomas. Neste sentido, cientistas e ONG ambientalistas, voltados a pesquisas de conservação da
biodiversidade, com o apoio de órgãos ambientais governamentais, “agruparam informações decorrentes de estudos sobre a
Serra do Espinhaço e chegaram a afirmar a existência de mais de seis mil espécies em sua biota” (GONTIJO, 2008), alertando,
nesse sentido, que
Se não tomarmos cuidados quanto à preservação do que ainda resta de biodiversidade na Cadeia do Espinhaço e em seus biomas adjacentes, estaremos na eminência de sofrer um grande
“terremoto ambiental” já que estamos, como mostra a geografia de nossa “tectônica ambiental”,
localizados bem em cima de seu hipotético epicentro (GONTIJO, 2008, p.13).
Bem como, observa-se nesse território, de acordo com Rodrigues & Miné (2012), sua grande vitalidade social (frente às
outras macrorregiões brasileiras) por suas comunidades tradicionais, sociedades indígenas e núcleos quilombolas que buscam,
hoje, resgatar suas identidades por meio de movimentos de resistência.
A Serra do Espinhaço meridional, na região de Diamantina-MG, passou por um processo diferenciado de ocupação humana. Levas de garimpeiros foram para essa região por volta do século XVIII à procura de ouro e posteriormente de diamantes (SANTOS, 1968). No auge da exploração diamantífera, haviam na região cerca de 5000 negros escravizados (MACHADO FILHO, 1985).
Com as fugas, o declínio da exploração dos diamantes e a abolição da escravatura, essa população negra foi se refugiando em
recantos isolados, desenvolvendo diversas formas de convivência com esses locais, com diferentes formas de reprodução sociocultural e produtiva. Formaram-se então, comunidades quilombolas, além de outras categorias de povos e comunidades tradicionais.
Diante do seu grande valor ambiental, diversas UC foram criadas, dentre algumas podemos citar o Parque Estadual do
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
241
Pico do Itambé, Parque Estadual do Rio Preto, Parque Estadual do Biribiri, Parque Nacional das Sempre-vivas, dentre outras categorias de UC que ocasionou na criação do Mosaico do Espinhaço: Alto Jequitinhonha – Serra do Cabral, o que gerou uma nova
dinâmica territorial que influencia diretamente o modo de uso da terra das comunidades tradicionais que vivem nesse território,
o que tem ameaçado diversas comunidades e gerado uma série de conflitos socioterritoriais. Alertamos que
Assim como a devastação das florestas destrói definitivamente espécies vegetais úteis, a devastação ou a mutilação de grupos sociais diferentes do nosso suprime modos de viver e de pensar,
bem como destrói saberes que representam um germe de alternativa para a desumanização acelerada que estamos vivendo (MARTINS, 1993, p.12).
Dessa forma propomos nesse artigo compreender de que forma a iniciativa de formatação do roteiro turístico Travessia
dos Parques e Vilarejos, no âmbito do Mosaico do Espinhaço, pode influenciar, nessa nova dinâmica territorial, as comunidades
envolvidas.
Para isso nosso percurso metodológico iniciou com a realização da caracterização da região estudada à luz de revisão
bibliográfica sobre a legislação de proteção da natureza. Seguido pela contextualização com o Mosaico de Unidades de Conservação do Espinhaço: Alto Jequitinhonha e Serra do Cabral. Foi realizada também uma revisão sobre o turismo convencional e
turismo pessoalizante, que nos orientou para compreendermos de que forma essa atividade incide nos “grotões do Espinhaço”.
E, por fim, a verificação da situação estudada por meio da pesquisa empírica, que se deu pela realização de parte da Travessia
dos Parques e Vilarejos, mais especificamente, o trecho de aproximadamente 60km que liga os Parques Estaduais do Pico do
Itambé e do Rio Preto e passa pela Comunidade Quilombola Mata dos Crioulos. Cabe ressaltar, que a escolha desse trecho foi
devido à acentuada relação conflitiva entre os Parques e a Comunidade, onde observamos que a atividade turística impulsionada
pela Travessia influencia uma nova situação em que o turismo oferece uma possibilidade de reduzir o conflito instaurado.
O Espinhaço natural
A Serra do Espinhaço, também conhecida como cordilheira e cadeia, que se inicia em Minas Gerais e adentra a Bahia até
a divisa com o Piauí, constitui um grande divisor entre as bacias hidrográficas do centro-leste brasileiro e a do Rio São Francisco
(COMIG & IGC/UFMG, 1997 apud MONTEIRO, 2011). Segundo Saadi (1995), a denominação “serra” esconde uma realidade
fisiográfica que é mais bem definida pelo termo “planalto”.
Acrescente-se, ainda, que a porção mineira da serra detém a maior parte dos estudos já realizados, sobretudo geológicos, nos quais se ressalta a importância de se fortalecer as compreensões acerca de sua biota e sua diversidade sociocultural.
Neste sentido, cientistas e ONGs ambientalistas, voltados a pesquisas de conservação da biodiversidade, com o apoio de órgãos
ambientais governamentais, “agruparam informações decorrentes de estudos sobre a Serra do Espinhaço e chegaram a afirmar
a existência de mais de seis mil espécies em sua biota” (GONTIJO, 2008).
Entretanto, para Gontijo (2008, p.13), a Cadeia do Espinhaço segue ainda “desconhecida em grande parte de sua extensão, especialmente se for considerado seu elevado grau de endemismos”. Mas não são apenas as características fisiográficas
que conservam todo valor do Espinhaço. Devemos atentar para as especificidades culturais que se desenvolverem e são mantidas ainda hoje. O sincretismo do sagrado ao profano, as diversas produções manuais e artesanais, as crenças e modos de vida
únicos e de estreita relação ao ambiente natural.
A presença marcante da Serra do Espinhaço na paisagem proporciona à região grande visibilidade para a atividade
turística, observando que a Serra do Espinhaço recebeu pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO), em 2005, o título de “Reserva da Biosfera”. Nesse contexto, pesam as raridades (LEFEBVRE, 1991), em que
os elementos da natureza passam, no âmbito do sistema capitalista de produção, a ter maior valor de troca.
Gontijo (2008) aponta que biólogos e ecologistas, em geral, tendem a reduzir a questão da conservação da serra à criação
de Unidades de Conservação (UC), se possível daquelas mais restritivas, como mecanismo que impediria os efeitos de uma
crescente pressão antrópica. Muitos desses profissionais são cientistas envolvidos na criação das UC já existentes na Serra do
Espinhaço. Defendendo a proteção integral para que determinadas espécies possam ser preservadas, e muitas vezes esquecendo ou não levando em consideração os diversos fatores sociais dispostos em seu entorno.
Diante da realidade formada pela concepção histórica desse território, a influência atual da criação de UC na região é
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
242
possível apontar contradições na formação deste espaço (BULHÕES, 2013). De um lado o contexto da ocupação do território de
Minas Gerais apresenta a manutenção de diversas comunidades tradicionais e induziu a repercussão de traços culturais ligado
ao rural tradicional e do outro a expansão de áreas destinadas a proteção e conservação da natureza que coíbem atividades
intrínsecas aqueles modos de vida.
Considerando, ainda, o modo de produção capitalista do espaço, temos que o elevado valor ambiental e sociocultural da
Serra do Espinhaço confronta sua alta relevância econômica, principalmente para a mineração, agroindústria e, atualmente, para
a silvicultura, atividades com impactos ambientais expressivos.
De acordo com Bulhões (2013) atenção para a proteção do Espinhaço por meio das UC vem desencadeando uma nova
dinâmica territorial. A concepção de UC introduziu não apenas um novo formato de produção do espaço como também o discurso da atividade turística como opção acessível e condizente para manutenção econômica desses territórios, já que outras
atividades de uso da terra são proibidas.
A lei nº 9.985 de julho de 2000 instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) com objetivos de contribuir para a manutenção da diversidade biológica, proteger as espécies ameaçadas de extinção, colaborar para a preservação e
a restauração de ecossistemas naturais, promover o desenvolvimento sustentável a partir dos recursos naturais e a utilização dos
princípios e práticas de conservação da natureza no processo de desenvolvimento, ajudar na gestão das áreas protegidas, entre
outros. O SNUC define Unidades de Conservação (UC) como
o espaço territorial com limites definidos, que possuam características naturais relevantes e importantes recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com objetivos de conservação,
legalmente instituído pelo Poder Público e sob regime especial de administração, apropriadas à
sua proteção (BRASIL, 2000).
Neste sentido, o turismo vem sendo tratado como uma das principais alternativas seja no âmbito social ou econômico,
para promover o desenvolvimento de diversas localidades (BULHÕES, 2013). Associado também a outras diversas atividades
integrando comunidades e Unidades de Conservação.
As Unidades de Conservação integrantes do SNUC dividem-se em dois grupos, com características específicas, as
UC de Uso Sustentável e de Proteção Integral. Segundo o SNUC (BRASIL, 2000) o grupo das UC de Uso Sustentável tem como
objetivo compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais. Já o grupo das
UC de Proteção Integral tem como objetivo básico preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos
naturais, e é neste último grupo que se enquadra o contexto desta pesquisa.
A definição das UC anterior a criação do SNUC se baseou pela oposição da natureza à cultura, logo pela dicotomia sociedade/natureza, resultando que temas como cidadania, participação e controle social ficassem, por muito tempo, ausentes na
discussão da “questão ambiental”.
Considerando que o processo de criação de UC está embasado nas ideias preservacionistas importadas dos países industrializados, o que não reflete as aspirações, e os conceitos sobre a relação homem/natureza dos países latino-americanos em desenvolvimento sendo criticado por alguns autores em relação à forma como foram adotados os procedimentos no Brasil (MONTEIRO, 2011).
O SNUC inclui os Parques Nacionais no grupo de Unidades de Proteção Integral, ou seja, eles admitem apenas o uso
indireto de seus recursos naturais, proibindo a comunidade e turistas, de coletarem, consumirem ou destruírem esses recursos.A
categoria dos Parques permite apenas a pesquisa cientifica e a visitação turística sujeitas a autorização e restrições, também
destinadas a zona de amortecimento.
Essa categoria tem sido amplamente implantada no estado, desconsiderando a sociobiodiversidade que apresenta. Essas
características deveriam implicar na criação de UC da categoria uso-sustentável, que consiga equilibrar a conservação ambiental
e os modos de vida locais. A teoria exposta por Monteiro (2011) atenta para a problemática das UC de proteção integral, que
Forjadas no imaginário urbano moderno, tendo como referência a dicotomia sociedade/natureza,
as UC de proteção integral, demandam a retirada de antigos moradores de seu interior para a
preservação da natureza. Comumente, essas unidades são materializadas em espaços rurais,
sobrepondo-se a territórios materiais e imateriais constituídos historicamente pelas comunidades
que ali habitam (MONTEIRO, 2011, p. 14).
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
243
Revelando as UC como marcos históricos que desencadeiam uma nova dinâmica e influenciam transformações socioespaciais. A se considerar Minas Gerais berço da ruralidade e das relações socioambientais resultantes dessa característica, cabe
ressaltar que essa transformação muitas vezes não ocorre de maneira gradual e pacifica, mas sim de forma impositiva e conflitante.
Observa-se, então, que a situação conflitiva entre comunidades tradicionais e projetos e estratégias hegemônicas de
domínio territorial é histórica e ainda permanece. As diversas restrições e limitações de uso do território ocasionada pela criação
de UC veio associada a promessa de uma nova complementação de renda através do turismo. Contudo esse ainda se apresenta
incipiente no que tange as comunidades localizadas em grotões distantes, em contraposição aos altos índices de visitação
turística que as UC do Mosaico do Espinhaço apresentam.
O Mosaico do Espinhaço
Os Mosaicos de áreas protegidas tem o intuito de fomentar uma melhor gestão das Unidades de Conservação, a fim
de buscar maior eficiência em relação aos recursos financeiros, participação social, com uma gestão integrada e participativa.
Quando existir um conjunto de unidades de conservação de categorias diferentes ou não, próximas, justapostas ou sobrepostas, e outras áreas protegidas públicas ou privadas, constituindo um
mosaico, a gestão do conjunto deverá ser feita de forma integrada e participativa, considerando-se
os seus distintos objetivos de conservação, de forma a compatibilizar a presença da biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável no contexto regional
(BRASIL, 2000).
O Mosaico do Espinhaço: Alto Jequitinhonha – Serra do Cabral (Figura 1) foi criado legalmente em 2010 abrangendo 24
municípios, com 19 Unidades de Conservação de responsabilidade, federal, estadual e municipal. São elas: Parque Nacional das
Sempre-Vivas, Monumento Natural Várzea do Lageado, Parques Estaduais Biribiri, Rio Preto, Pico do Itambé, da Serra Negra, da
Serra do Cabral e Estação Estadual da Mata dos Ausentes. Além das zonas de amortecimento, e as UC de uso sustentável APA
Estadual Água das Vertentes e APAs Municipais Felício dos Santos, Rio Manso, Serra do Gavião, Serra de Minas, Barão e Capivara, Serra do Cabral – Lassance, Serra do Cabral Augusto de Lima, Serra do Cabral de Buenópolis, Serra do Cabral de Joaquim
Felício, Serra do Cabral de Felício, Serra do Cabral Francisco Dumont.
Figura 1. Área do Mosaico do Espinhaço. Fonte: Mosaico do Espinhaço (2015).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
244
As Unidades de Conservação passam por dificuldades em conseguir recursos para manutenção, logística e equipe
das áreas. Com isso, várias atividades passam por ameaças como modificações no ecossistema, a má utilização dos recursos
biológicos e muitas UC não encontraram a melhor forma de manejo do fogo. Assim, as ações mais trabalhadas em Unidades de
Conservação são: prevenção de incêndios, mobilização e treinamento das equipes além de trabalhos relacionados com educação ambiental.
Os principais motivos de criação de mosaicos, segundo Pinheiro (2010), são o aumento da escala para conservação,
benefícios sociais e político-institucionais, ampliação na participação fortalecendo assim as UC; otimização de recursos e infraestrutura, redução dos conflitos; relação estimula a relação e integração dos moradores do entorno com a área protegida, além
de proporcionar melhor relacionamento e possibilitar até mesmo o desenvolvimento territorial.
Os 24 municípios que abrangem o Mosaico do Espinhaço, possuem características naturais do nordeste de Minas, com
domínios da Mata Atlântica, Campos Rupestres, Campos de Altitude do Espinhaço. Dentre várias singularidades, essas características vegetacionais da região faz com que o Mosaico do Espinhaço se destaque por suas transições. Para Azevedo (2009)
a visão do Mosaico do Espinhaço é “conservar e desenvolver de forma sustentável um segmento representativo da cadeia do
Espinhaço que integra cerrado, campos rupestres e mata atlântica”.
Um desafio muito grande para o funcionamento e gestão do Mosaico são as várias lacunas do aparato institucional, os
conflitos gerados muitas vezes por falta de comunicação, desde a falta de nivelamento e baixa apropriação até a linguagem
utilizada pouco acessível. É de grande interesse a participação efetiva tanto dos gestores e equipes, quando das comunidades
e sociedades envolvidas, para assim ser feita de forma beneficiária. Além disso, aumenta os atores envolvidos nos processos e
desafios enfrentados, fortalecendo assim laços de forma retroalimentar o mosaico. A partir do conselho consultivo do mosaico se
faz a principal forma de possível participação social na gestão das UC.
Caminhando no Espinhaço: do turismo convencional ao pessoalizante
Entende-se o turismo como uma atividade que se desenvolve no espaço, produzindo-o e reproduzindo-o e, também,
promovendo o movimento de pessoas para vários lugares, em busca de consumi-los (RODRIGUES, 1997 apud BEDIM, 2007).
As forças produtivas que envolvem o turismo não apenas intervém como recriam modos de organização socioespacial.
O turismo, enquanto esfera produtiva diferenciada, provoca a coexistência, a (des)integração ou a superposição de distintas formas de relações de produção, engendrando e acentuando desigualdades a partir dos diferenciados ritmos de desenvolvimento.
À articulação produtiva que define a prestação de serviços diretos ou indiretos ligados ao turismo, Bedim (2007) indica
que, agregam-se processos sociais, costumes, espaços, indivíduos e grupos humanos - os quais possuem ritmos diferenciados
de transformação na história, assim como a formação econômico-social que os envolve.
O turismo é, em si, um fenômeno social moderno nascido das contradições da própria maquinaria produtiva da modernidade. Assim Bedim (2007) o considera produto do processo histórico moderno, se inserindo entre as inúmeras concepções da
modernidade e suas tendências econômicas, políticas, culturais e ambientais a transformar o mundo.
Traz consigo a importância da era moderna na experiência ocidental; signo de um mundo sem
fronteiras, porém delimitado em si; a compressão tempo-espaço a produzir contradições ao reduzir as distâncias aparentes entre os homens e os últimos ‘refúgios naturais’ da Terra (BEDIM, 2007).
Portanto, para além de disseminar padrões globais a sociedade urbano-industrial globalizada tem apontado uma tendência de revalorização da cultura rural e de expressões arcaicas, mais simbólicas e de maior proximidade com a natureza. Devemos perceber que o turismo faz uso dessa tendência para vender experiências, podendo ocasionar em resultados positivos ou
negativos, tanto para turistas como para as localidades visitadas.
Com a evolução da consciência ecológica por parte da sociedade e a criação de Parques Nacionais em diversos países,
surgem as atividades turísticas focadas na visitação desse tipo de unidade de conservação.
A criação de Parques Nacionais e demais áreas naturais protegidas tem sido um dos principais elementos de estratégia para conservação da natureza, em particular nos países do terceiro mundo.
Desde seu início, os Parques Nacionais foram estabelecidos para fornecer às populações urbanas
meios de lazer e contemplação do mundo natural (DIEGUES, 1997, p. 85).
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
245
O ecoturismo também teve grande representatividade na pesquisa de demanda realizada pelo Estado. Isso se deve por
dois fator, o primeiro porque o Estado carrega a simbologia de ruralidade e portanto de maior proximidade com a natureza e por
outro lado pelo alto índice de visitação dos parques, esse movimento tem incentivado um outro olhar para o turismo de Minas
Gerais.
Contudo, mesmo sendo dois motivadores de viagem que tem potencial para aflorar uma atividade turística pessoalizante
não é isso que observamos em grande parte dos casos, já que a relação mantida entre turistas e os locais visitados é de sobreposição e superioridade, e não uma relação de assimilação, troca e aprendizagem mutua.
De acordo com Gontijo & Rego (2001) uma atividade turística pessoalizante abarca o desenvolvimento de uma atividade
ambientalmente integrada
que leve em conta as particularidade das paisagens humanas e naturais brasileiros. (...) Tal atividade turística, neste caso, deve ser entendida enquanto um processo de (re)descoberta desse
nosso patrimônio humano e natural, no qual diversos tesouros permanecem ocultados por uma
atitude administrativa totalizante.
De acordo com esses autores o conceito de uma atividade turística pessoalizante provocaria a percepção da paisagem
para além do primeiro olhar, limitado ao ISSO, o olhar apenas horizontal “e onde a maior parte do turismo convencional se restringe. A partir desse primeiro olhar, inicia-se uma busca tanto interior, na direção do EU de cada um, tanto exterior, na direção
do TU” (GONTIJO; REGO, 2001, p.10).
Compreende-se, assim que a relação, o menos distanciada possível, do turista com os nativos dos lugares visitados (EUTU), o permitiria ampliar sua percepção e experiência desse lugar (EU-ISSO), escapando assim da superficialidade do primeiro
olhar. De acordo com Buber (apud GONTIJO; REGO, 2001, p.10)
Para a pessoa, o EU-TU tem mais prevalência, anterioridade, e por isso, informa e atualiza o EUISSO. O mundo do ISSO – ao qual a pessoa não pode renunciar – deve ser legitimado e atualizado
pelo encontro. É dele que vem a inspiração dos limites para o domínio e a manipulação do mundo
do ISSO.
Turistas entram e saem de museus e parques, assistem representações da cultura, experimentam as receitas locais, tomam banho de cachoeira; registram tudo em vários gigabyte de fotografias, mas não se deixam abertos a relação EU-TU e criam
uma relação superficial com o EU-ISSO. Percebendo a paisagem de forma fragmentada, e nesse caso Gontijo & Rego (2001)
lembra que, “por mais fragmentada, e muitos turistas agem dessa forma, ela permanece como um todo indivisível no qual muito
mais elementos poderiam ser revelados se o olhar do observador fosse mais atento”.
Vemos aqui que o turismo, até então citado como uma possível substituição econômica às atividades que foram proibidas
às comunidade locais não tem alcançado esse objetivo, já que a atividade se restringe aos limites dos Parques.
Porém a proposta de roteiro Travessia dos Parques e Vilarejos propostas para o Mosaico de Unidades de Conservação
do alto Jequitinhonha Serra do Cabral pode alterar essa situação, desencadeando o movimento para uma atividade turística pessoalizante, que atinja positivamente as comunidades que ficaram à margem das UC e sujeitas as suas normas
Travessia: a caminho de outro turismo no Mosaico do Espinhaço
As travessias fogem desse conceito. Seu público é atraído pelo isolamento e tradicionalidade dos lugares que fazem
desse trajeto uma experiência e uma aprendizagem de vida, objetivo de uma travessia é o trajeto, o caminho nos leva de encontro
a natureza e ao estado natural do homem. Ignorar esse fato é também ignorar os perigos e experiências da vida. Situação narrada
em Grande Sertão Veredas
Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido com a ideia dos
lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa;
mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do que em primeiro se
pensou. Viver não é muito perigoso? (ROSA, 1986, p. 26)
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
246
Em Grande Sertão Veredas, Rosa (1986) se utiliza da metáfora travessia para sugerir que o “real” não se encontra no início
nem no fim das jagunçadas protagonizadas por Riobaldo Tatarana e Diadorim nos sertões de Minas e Goiás, mas sim durante o
percurso que medeia a passagem entre o “homem humano” e os anseios de seu espírito (SOETHE, 2007).
Travessia, não só no sentido de atravessar de um ponto a outro, mas no sentido de
sair do espaço urbano da região metropolitana, do lugar onde vivo e me sinto ‘confortável’, se sua
paisagem construída sobre o concreto e o asfalto [...], onde cada território é disputado para fins
econômicos, políticas e culturais...e chegar até o espaço rural de uma região que muitos ainda
consideram a ‘mais pobre’ de Minas Gerais (quiçá do Brasil), mas, na verdade, é o lugar de vivência de uma gente hospitaleira, solidária, humilde [...], situada em meio a paisagens de resquícios
dos cerrados, da mata atlântica, das veredas e, sobretudo, de extensos monocultivos de eucalipto,
onde os elementos da cosmovisão quilombola (capelas, rosários, cruzeiros, chifres de boi, etc.)
também se misturam ao “natural” e, assim, conformam o patrimônio histórico-cultural das comunidades (DINIZ, 2013, p. 25).
Observa-se assim que algumas comunidades no interior do Mosaico começam a serem atingidas por uma modalidade
de turismo que, ainda, se faz pouco impactante. Isso se dá porque ao longo da travessia nos deparamos com vários caminhos
possíveis, em que, as vezes, optamos pelo caminho mais fácil - ou que acreditamos ser o mais fácil – em outras nem tanto, algumas vezes erramos e noutras acertamos.
Mas essa é a condição da nossa existência e são os percalços do caminho, que cada um que está realizando a travessia,
avalia sua vida – nem se for somente pelo aspecto físico – e se “prepara” para uma aproximação diferenciada com as comunidades que recepcionarão nos pernoites da travessia. E o passo a passo, o andar sem saber quando chegar, principalmente aos
caminhos desconhecidos.
Travessia dos Parques e Vilarejos do Mosaico
A travessia dos Parques e Vilarejos parte do resgate de antigas rotas utilizadas por tropeiros no período colonial da extração de ouro e diamantes na região. Essa rota está inserida no Mosaico do Espinhaço passando pelo corredor ecológico que
busca a conexão de quatro UC de proteção integral, os Parques: Nacional das Sempre vivas, Estadual do Biribiri, estadual do Rio
Preto e Estadual do Pico do Itambé, já descritas.
Dentre as comunidades envolvidas destacamos as que detêm fortes características rurais como Mendanha, Abóboras,
Capivari, Pinheiro e São João da Chapada. A travessia passa, também, pela comunidade quilombola Mata dos Crioulos, mas especificamente nos povoados de Covão e Bica d’Agua, e nas comunidades quilombolas de Macacos e Quartel do Indaiá (Figuras 2 e 3).
Figuras 2 e 3. Caminhando na travessia e Povoado de Bica d’água. Fonte: Próprio autor.
A travessia possui aproximadamente 118 km e permite, além da possibilidade de aproximação e de maior conhecimento
da natureza da região, conhecer parte da história e da cultura nacional, que tem origem nessa região. Ao passar por comunidades tradicionais, dentre rurais e quilombolas é possível apreciar a culinária, o artesanato, manifestações culturais e religiosas,
além do modo de vida local.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
247
Conclusão
Observamos que o roteiro da Travessia de Parque e Vilarejos, ao integrar as comunidades tradicionais, que ate então não
estavam inseridas no turismo que as UC tem incentivado, pode reduzir os conflitos já que essa proposta oferece as comunidades
um incremento a sua renda, que havia sido comprometida devido as proibições de uso de recursos naturais, ressaltando pontos
positivos que as UC trazem as comunidades, em detrimentos dos pontos negativos.
Além disso esse roteiro se pauta na valorização da cultura local, já que tem as comunidades como atrativos, o que pode
fortalecer a identidade local e favorecer a manutenção de sua cultura. Esse fato foi observado durante a realização de um trecho
da Travessia dos Parques e Vilarejos, na Comunidade Quilombola Mata dos Crioulos, o aumento do numero de turistas que
realizam a travessia tem levado, alem do incremento econômico pela prestação de serviços dos moradores aos turistas, a reafirmação cultural da comunidade, já que os visitantes, ao se demonstrarem curiosos e interessados sobre a história desse lugar e
sobre o modo de vida dessas pessoas influenciam esse movimento.
Atentamos também que outro de tipo de turismo, que busca ressaltar as experiências de comer e dormir juntos, a necessidade de solidariedade e colaboração de quem caminha junto pode influenciar positivamente em outro olhar para o mundo, e
nossa relação com espaço, com a natureza e com as pessoas.
Referências
AZEVEDO, A.A. (Org.). Mosaico de Unidades de Conservação do Espinhaço: Alto Jequitinhonha – Serra do Cabral
Processo de criação e implantação. Diamantina: Instituto Biotrópicos, 2009.
BEDIM, B.P. O espaço capitalista da natureza e seu (contra) uso turístico: a dialética da visitação pública em áreas protegidas um ensaio teórico. Caderno Virtual de Turismo, v. 7, n. 3, pp. 75-89, 2007. Disponível em: <http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/
pdf/1154/115416285008.pdf> Acesso em 26 outubro 2012.
BRASIL. Lei n° 9.985, de 18 de julho de 2000. Institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e dá outras providências.
Brasília, 2000.
BULHÕES, T. G. Transformações Socioespaciais e Ruralidade no Entorno de Unidades De Conservação: um olhar
para Santo Antônio do Itambé/MG. Monografia. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013.
DIEGUES, A.C.S. As áreas naturais protegidas, o turismo e as populações naturais. In: SERRANO, C.M.S.; BRUHNS, H.T. (Orgs.)
Viagens à natureza: turismo, cultura e ambiente. 4 ed. Campinas: Papirus, 1997. pp. 85-102.
DINIZ, R. F. Agrossistemas & Sociobiodiversidade: territorialidades e temporalidades nos Quilombos do Alagadiço,
Minas Novas/MG. Dissertação. Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013.
GONTIJO, B. M.; REGO, J. F. Por uma atitude Turística Pessoalizante. In: FARIA, I.F. Turismo: sustentabilidade e novas territorialidades. Manaus: EDUA, 2001.
GONTIJO, B.M. Uma geografia para a Cadeia do Espinhaço. In: Megadiversidade - Cadeia do Espinhaço: avaliação do conhecimento científico e prioridades de conservação. Conservation International, v. 4, n. 12, p. 7-16, 2008.
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Ed. Moraes, 1991.
MACHADO FILHO, A.M. O Negro e o Garimpo. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1985.
MARTINS, J. de S. A Chegada do Estranho. São Paulo: HUCITEC, 1993.
MINÉ, G.O.; RODRIGUES, L.M. Associativismo Quilombola: a luta pelos múltiplos usos do território. In: Tubaldini, M.A.S.; Gianasi, L.M. (Orgs.). Agricultura familiar, cultura camponesa e novas territorialidades no Vale do Jequitinhonha: gênero,
biodiversidade, patrimônio rural, artesanato e agroecologia. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012.
MONTEIRO, F.T. Parque Nacional das Sempre-vivas (MG): travessias e contradições ambientais. UFMG: Belo
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
248
Horizonte, 2011.
MOSAICO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DO ESPINHAÇO. Disponível em <http://www.icmbio.gov.br/portal/images/
stories/mosaicos/mapa-espinhaco-jequitinhonha.jpg> Acesso em 10 junho 2015.
PINHEIRO, M. R (Org.). Recomendações para reconhecimento e implementação de mosaicos de áreas protegidas.
Brasília: GTZ, 2010. 82p.
ROSA, J. G. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
SAADI, A. A geomorfologia da Serra do Espinhaço em Minas Gerais e de suas margens. Geonomos, v. 3, n. 1, p. 41-63, 1995.
SANTOS, P. Formação de cidades no Brasil colonial. In: Separata de Colóquio Internacional de Estudos Luso-brasileiros, 5. Actas. Universidade de Coimbra, 1968.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
249
PRÁTICAS, SABERES E A CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE EM ANDRÉ DO
MATO DENTRO, SUBSÍDIO A PROPOSTA DO MOSAICO RDS E PARNA SERRA DO
GANDARELA EM MINAS GERAIS – POR QUE E PARA QUEM?
Dias, Janise Bruno Dias1 & Pena, Lucas Luiz Senhorine2
1. Departamento de Geografia, Universidade Federal de Minas Gerais, [email protected] 2. Bolsista de IC do CNPQ,
graduando em Geografia, Universidade Federal de Minas Gerais, [email protected]
Resumo
A Serra do Gandarela, Quadrilátero Ferrífero (MG), abriga comunidades rurais que vivenciam conflitos pela expansão da mineração e pela criação do PARNA da Serra do Gandarela. Partindo de uma reflexão sobre os conceitos de conservação/preservação
da biodiversidade, buscou-se estudar a comunidade de André do Mato Dentro, escolhida pelo seu protagonismo no processo
da proposta de uma RDS reivindicada na área, no intuito de verificar o favorecimento das práticas/saberes agrícolas locais para
a conservação da biodiversidade. Para isso identificou-se e mapeou-se tais práticas por meio de uma cartografia falada por agricultores locais. Os resultados mostraram que a comunidade local desenvolve um elevado número de práticas e técnicas baseada
em seus saberes e suas experiências sobre elementos oriundos da natureza, podendo, ao longo de anos, vir contribuindo de
forma distinta para a conservação da biodiversidade local.
Palavras-chave: Unidades de Conservação, Reserva de Desenvolvimento Sustentável, Conservação da Biodiversidade, Práticas/
Saberes Agrícolas.
Introdução
Em 13 de novembro de 2014 foi decretado pela presidência da república federativa do Brasil mais um Parque Nacional,
o Parque Nacional da Serra do Gandarela (PARNA Serra do Gandarela1). O Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela
(MPSG) recebeu com preocupação a notícia. A reação ao decreto se deu não pela notícia que colocaria um ponto final num
longo processo de mobilização e participação social que se iniciou em 2007 com o apoio de diversos grupos sociais que se
sensibilizaram e lutaram pela preservação e conservação da área da Serra e seu entorno. O que trouxe o estarrecimento foram
os limites da área da Unidade de Conservação federal, de proteção integral, decretada após um longo processo de negociações.
O PARNA aprovado não refletiu nem o processo social democrático que amparou o seu pleito, muito menos contemplou a proposta encaminhada pelo Instituto Chico Mendes de Proteção a Biodiversidade em 2010 (ICMBIO, 2010) e apoiada pelo MPSG,
após vários estudos de campo fundamentado em pesquisas científicas e intenso trabalho junto das comunidades envolvidas.
Além disso, negligenciava a proposta da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Alto Rio São João demandada pelas
comunidades locais e incorporava ao Parque parte da área proposta para a RDS deixando fora do limite do PARNA, ou seja, sem
proteção integral, áreas de ecossistemas singulares, importantes para proteção de espécies endêmicas, de floresta primária e
as mesmas áreas de cabeceira e recarga de aquíferos, que drenam tanto para a bacia do Rio das Velhas quanto para a bacia do
Rio Doce, do qual o rio São João é tributário. Com isso as atividades agrícolas e extrativistas praticadas pelos moradores locais
ficaram inviabilizadas pelas restrições impostas pela UC de proteção integral (ROJAS; PEREIRA; DIAS, 2015).
Segundo o ICMBio (2015), a proposta que apresentaram levou em consideração as necessidades das populações dos
municípios, numa região que há séculos tem na mineração a atividade que gera a maior parte de sua renda. Das negociações
resultou uma proposta que conciliou a criação do Parque Nacional com quase todos os empreendimentos de mineração que
estavam em licenciamento quando a proposta do Parque foi entregue, favorecendo os empreendedores que querem trabalhar,
gerar emprego e renda, mas reconhecem a importância ambiental da região, de suas águas e de sua biodiversidade. No entanto,
no limite decretado, grande parte da área da Serra com prioridade comprovada de preservação foi deixada sem proteção, área
essa cobiçada por licenciamentos de mineração desde o início do processo de reivindicação do Parque.
O Parque decretado, segundo o decreto (DOU, 2014), abrange uma área de 31.2840 hectares, ou seja, sete mil hectares a menos do que a proposta original e viabiliza
as atividades minerárias na região.
1
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
251
Diante desse fato, este trabalho tem por objetivo estudar a comunidade de André do Mato Dentro, escolhida pelo seu protagonismo no processo da construção e proposta da RDS, e como estudo empírico fundamentar uma reflexão sobre os conceitos
de conservação/preservação da biodiversidade e fornecer argumentos para a necessária implementação da RDS reivindicada
nessa área. Para isso identificou-se e mapeou-se as práticas/saberes agrícolas locais e analisou-se o favorecimento dessas à conservação da biodiversidade do ambiente local por meio de uma cartografia falada por agricultores locais. Os resultados foram
aqui sistematizados por meio de um croqui acompanhado por uma tabela síntese. A partir das análises verificadas, é possível
constatar que a comunidade local desempenha um elevado número de práticas, a sua própria maneira de organizar suas técnicas baseadas em seus saberes, experiências e nos elementos oferecidos pela natureza que podem contribuir de forma distinta
para a conservação da biodiversidade local.
O artigo está assim organizado: um texto introdutório que apresenta o contexto de criação do PARNA Serra do Gandarela,
no segundo item apresentou-se uma síntese da proposta da RDS Alto Rio São João e o protagonismo da Associação dos moradores de André do Mato Dentro, no terceiro item traçou-se a proposta dessa pesquisa para a comunidade de André do Mato
Dentro e sua inserção no contexto da criação do PARNA, no quarto item descreveu-se os caminhos da pesquisa, já no quinto item
expuseram-se então os resultados e reflexões sobre os dados empíricos encontrados e por fim em nossas considerações finais
discutimos a relação entre as práticas e saberes dos agricultores de André do Mato Dentro, a conservação da biodiversidade
local e a demanda pela RDS.
A proposta da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Alto Rio São João
Essa proposta teve como base a pesquisa de Lamounier et al. (2011) que sugeriram que uma área de 4.357 ha (porção
central da Serra), que inclui as comunidades de André do Mato Dentro, Cruz dos Peixoto, Conceição do Rio Acima e Galego se
insere perfeitamente nos objetivos de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável2, pelas atividades já desenvolvidas pelos
moradores e pela preocupação com as questões ambientais. Nessas áreas das comunidades “(...) já se desenvolvem práticas
agroecológicas, desenvolvimento de agricultura familiar e atividades de apicultura. A população conhece as características dos
ecossistemas locais e parece utilizar formas pouco impactantes de utilização e exploração de seus recursos. Além de incentivar
a conservação e a busca de práticas de exploração controlada (...) essa Reserva de Desenvolvimento sustentável poderia se
constituir como uma zona de amortecimento para as demais unidades de conservação próximas” (Lamounier et al., 2011, p.188).
Os autores apontam, baseado no SNUC e nas condições ambientais levantadas na pesquisa, que tendo em vista o alto grau de
preservação dos ecossistemas locais, sua diversidade e área de extensão, foi possível identificar e propor três categorias de
unidades de conservação mais apropriadas para a área: uma de proteção integral (Parque) e duas de uso sustentável (Reserva
de Desenvolvimento Sustentável e Área de Relevante Interesse Ecológico). Confirmando que “(...) esse mosaico de áreas protegidas poderá trazer grandes benefícios a esta parte do Quadrilátero Ferrífero, tanto do ponto de vista da conservação quanto
da promoção de novas atividades econômicas mais sustentáveis, como o turismo, além da possibilidade do desenvolvimento de
trabalhos científicos e projetos voltados para educação ambiental” (LAMOUNIER; CARVALHO; SALGADO, 2011, p. 189).
A RDS Alto Rio São João apareceu como resposta ao temor quanto ao impacto da criação de uma unidade de proteção
integral sobre atividades econômicas e de subsistência desenvolvidas pelas comunidades. Essa situação havia levado uma
parcela da população a posicionar-se contra a criação do Parque. A possibilidade de constituição de uma unidade conservação
de uso sustentável em parte da área, apresentada pelos analistas ambientais do ICMBio, gerou interesse na comunidade de
André do Mato Dentro, que solicitou uma nova reunião para esclarecimento referente às características, funcionamento e forma
de criação deste tipo de unidade. Partiu da Associação Comunitária Rural de André do Mato Dentro e Arredores (ACRAMDA) e
posteriormente outras dos arredores, a iniciativa de solicitar ao Instituto Chico Mendes para Conservação da Biodiversidade a
instauração de processo para criação da referida unidade de uso sustentável, fundamentado no objetivo básico da RDS previsto
no Art. 20, § 1o da lei No 9.985/2000, Lei do SNUC3, propondo o recorte para a reserva (ACRAMDA, 2011).
2
(...) no SNUC, essa categoria deve incluir áreas naturais que abrigam populações tradicionais, que utilizam os recursos naturais de forma sustentável, mantendo
as condições ecológicas ambientais, que possam valorizar, conservar e aperfeiçoar seus conhecimentos e técnicas de manejo do ambiente” (LAMOUNIER; CARVALHO; SALGADO, 2011).
3
“preservar a natureza e, ao mesmo tempo, assegurar as condições e os meios necessários para a reprodução e a melhoria dos modos e da qualidade de vida e
exploração dos recursos naturais das populações tradicionais, bem como valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo do ambiente,
desenvolvido por estas populações” (Art. 20, § 1o da lei No 9.985/2000, Lei do SNUC, BRASIL, 2000)
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
252
Esse movimento é apontado por Rojas, Pereira & Dias (2015) como “espaço de resistência” onde as comunidades locais
também se mobilizaram e reivindicaram seus “espaços”, frente ao comprometimento e inviabilização das suas atividades agrícolas e extrativistas. Essas comunidades se organizaram e mobilizaram frente a um modelo de área protegida considerado um
modelo de preservação da natureza dominante (ROJAS; PEREIRA, 2015; DIEGUES, 2001; COLCHESTER, 2000) encontrando na
categoria RDS uma proposta que inclui as populações humanas e seus direitos de uso/apropriação do território.
A proposta de criação de uma RDS, então surge para que os moradores locais pudessem dar continuidade a seus modos
de vida. Diante da reivindicação da comunidade de André do Mato Dentro, durante reunião com representantes do ICMBio sobre
a proposta de criação do PARNA Serra do Gandarela, os analistas ambientais reconduziram a proposição de Parque para Reserva de Desenvolvimento Sustentável compatibilizando a proteção integral do PARNA Serra do Gandarela com as demandas e
interesses dos moradores (Rojas, 2014). As duas propostas das sete comunidades locais foram unificadas pelo ICMBio em 2012,
vislumbrando a criação de uma única RDS com uma extensão de 9,165 hectares (ICMBIO, 2012). Essa proposta única tinha por
objetivo “ampliar as possibilidades de garantias à proteção ambiental de modo mais compatível às formas de uso sustentável das
comunidades de pequenos agricultores familiares da região” (ROJAS, 2014) e propor um “mosaico de unidades de conservação”
compondo a proposta do PARNA Serra do Gandarela e RDS para cumprir a função como zona de amortecimento de conservação
do entorno do PARNA promovendo novas atividades econômicas locais mais sustentáveis voltadas para desenvolvimento local,
conforme vislumbrado por Lamounier, Carvalho & Salgado (2011). Além disso, a proposta do mosaico de UC foi um importante
argumento para deter o avanço da mineração na região, por isso foi bem recebida pelos integrantes do MPSG (Figura 1).
Figura 1. Proposta do Mosaico PARNA e RDS da Serra do Gandarela apresentada pelo ICMBio (2012)
Com o pedido de criação da RDS, os moradores aparecem como atores políticos coletivos que se colocam como partícipes na distribuição do poder e nas decisões sobre a o destino da exploração dos potenciais naturais inseridos em seu território.
A visibilização política, social e cultural dessas comunidades alcançada pela reivindicação de suas necessidades territoriais, evidenciou a necessidade do debate sobre outras formas de conservação da natureza pautada na realidade local e na manutenção
da sociobiodiversidade (ROJAS, 2014).
Práticas, saberes e a conservação da biodiversidade em André do Mato Dentro
A pesquisa aqui presente se desenvolveu no subdistrito de André do Mato Dentro, bacia do córrego Maria Casimira, a
montante do rio São João, Bacia do Rio Doce, município de Santa Bárbara, MG. A ACRAMDA tem protagonizado todo o processo
político de resistência, tanto no que diz respeito a construção e encaminhamento da proposta da RDS como também como atores
políticos colocando questionamentos e fomentando discussões com os representantes do ICMBio responsáveis pela proposta
do PARNA. Por esse motivo a comunidade foi escolhida como objeto/área de estudo empírico para fundamentar uma reflexão
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
253
sobre o conceito de conservação/preservação da biodiversidade e fornecer argumentos para a necessária implementação da
RDS nessa área. Como base para nossa reflexão, estamos considerando o conceito de biodiversidade como parte de uma construção cultural e social, não incluindo apenas espécies e seu retorno econômico, mas também técnicas de cultivo e modos de
conservação que são utilizadas durante gerações e fazem parte da tradição de alguns povos e comunidades. O objetivo dessa
pesquisa pautou-se em identificar as práticas/saberes agrícolas locais e analisar o favorecimento dessas à conservação da biodiversidade do ambiente local. Possuindo uma paisagem singular, a área em que se localiza a comunidade estudada é uma região
de uma exuberante Floresta Estacional Semi-decidual que cresce sobre uma diversidade geológica, de formas de relevo e solos,
e abriga entorno de 34 famílias, e é reconhecida pela relevância ambiental e prioridade para conservação da biodiversidade. A
região conhecida pelas atividades minerárias que remontam do século XVI, coexistem com atividades agrícolas de subsistência
e o extrativismo vegetal.
As concepções clássicas adotadas inclusive pela CBD (Convenção da Diversidade Biológica) considera a biodiversidade
como a “variabilidade entre seres vivos de todas as origens, inter alia, a terrestre, a marinha e outros ecossistemas aquáticos e os
complexos ecológicos dos quais fazem parte: isso inclui a diversidade no interior das espécies entre as espécies e entre espécies e ecossistemas”. A WWF/IUCN, em 1980, definiu a conservação como “o manejo do uso humano de organismos e ecossistemas, com o fim de garantir a sustentabilidade desse uso. Além do uso sustentável, a conservação inclui proteção, manutenção,
reabilitação, restauração e melhoramento das populações (naturais) e ecossistemas.” Partindo do fato de que o homem tem uma
relação primordial com a terra, base de nossa existência e é daí que partimos para descobrir o mundo (DARDEL, 1956) e que
tem sido assim desde sempre, autores como Miranda (2004) e Gomez-Pompa & Kaus (1990), Posey (1986), Balée (1988, 1989,
1993) apud Diegues (2000) defendem enfoques alternativos como a Etnoconservação ou a sociobiodiversidade. Miranda (2004)
discute a conservação partindo do fato de que quando os colonizadores chegaram ao Brasil o continente já era ocupado por
outros povos há pelo menos 8.000 anos. E esses já haviam modificado essas paisagens em beneficio próprio.
Dessa forma, a hipótese investigada foi de que a manutenção das práticas agrícolas e socioculturais reproduzidas por
essas comunidades rurais, para sua subsistência, de alguma maneira deve contribuir para a sustentabilidade e manutenção dos
ecossistemas locais, mantendo a resiliência dos sistemas. E, amparados por essa abordagem, fizemos campos de experienciação visitando quintais, conversando com os moradores, mapeando algumas práticas/saberes que caracterizam a relação desses
com seu lugar de vida. Estes resultaram em impressões sobre a comunidade aqui apresentados. Como resultado produziu-se
uma cartografia falada das práticas, a partir das impressões dos moradores/agricultores de André do Mato Dentro, um dos objetos de reflexão de nossa hipótese. Por outro lado, esses resultados constituíram um banco de dados primários sobre a conservação da biodiversidade local e as práticas socioculturais ali construídas, já que este ainda não existe (DIAS; PENA, 2015). Aqui
será apresentado uma síntese das práticas e saberes levantados e um ensaio de espacialização dessa cartografia falada pelos
agricultores/moradores de André do Mato Dentro. Com isso esperamos, com dados empíricos, dar conhecimentos às práticas e
saberes tradicionais conservados por essas comunidades em sua contribuição na conservação da biodiversidade local, fortalecendo a necessidade da constituição da RDS reivindicadas por essas comunidades.
Os caminhos da pesquisa em André do Mato Dentro
A etapa inicial da pesquisa se deu por meio da leitura de obras relacionadas ao aporte teórico metodológico definido para
investigação pelo objetivo da pesquisa, com o intuito de construir uma linha de condução de estudo que subsidiasse a abordagem dos conceitos propostos para discussão no estudo, quais sejam: conservação e biodiversidade. Utilizou-se de estudiosos
adeptos do wilderness como Muir, Thoreau (apud DIEGUES, 2000) e Nash (apud DIEGUES, 2001), contrapondo-os a autores
da Etnoecologia4 e Agroecologia5 quais sejam, Ellen (1989) apud Diegues (2001), Diegues (2000) e Altieri (2009). Dessa forma
foi possível a construção de um arcabouço teórico-metodológico que permitisse a consolidação de definições e interpretações
conceituais. Num segundo momento, baseado em dados primários e secundários já produzidos sobre a área de estudo, foi
possível contextualizar e caracterizar a área de estudo no que concerne a seus atributos naturais e socioeconômicos, além do
4
Área do conhecimento oriunda da Etnociência que estuda a natureza segundo os conceitos e perspectivas linguísticas do homem (DIEGUES, p. 37, citando POSEY,
1987; GOMEZ POMPA, 1971; BALÉE, 1992; MARQUES, 1991).
5
Trata-se de uma nova abordagem que integra os princípios agronômicos, ecológicos e socioeconômicos à compreensão e avaliação dos efeitos das tecnologias sobre os sistemas agrícolas e a sociedade como um todo. Ela utiliza os agroecossistemas como unidade de estudo, ultrapassando a visão unidimensional (...)incluindo
dimensões ecológicas, sociais e culturais (ALTIERI, 2009, p.23)
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
254
reconhecimento da mesma (DIAS; PENA, 2015).
A partir disso, por meio de imagens de satélite fornecidas pela ferramenta Google Earth prosseguiu-se o reconhecimento da região e demarcação de áreas a serem mapeadas. Inclui-se também na etapa pré-campo a elaboração de um roteiro
de entrevistas fundamentado em questões referentes às técnicas de manejo e a biodiversidade locais. A adoção pelo roteiro de
entrevistas é válida, pois o mesmo permite interpretar as experiências do individuo e o contexto em que foram experimentadas
(GOLDENBERG, 2004, p.19), ademais, o roteiro de entrevista extrapola questões previamente elaboradas. Já que através das
histórias e experiencias individuais expostas pelo entrevistado é possível apreender a construção e o desenvolvimento da região
(GOLDENBERG, 2004, p. 21), dessa forma a comunicação com o habitante local favorece um intercâmbio de informações e idéias. O número de entrevistas não foi previamente delimitado, visto que há possibilidades de surgirem novas informações e diante
disso a pesquisa se torna passível de novas análises e interpretações (DUARTE, 2002, p. 143-144).
A sistematização dos dados foi direcionada, sobretudo aos aspectos qualitativos, mediante os dados coletados em campo
definimos uma tabela como a melhor forma de representar nossas informações. Uma vez que a população da comunidade é
caracterizada por exercer práticas diversas, que contribuem para o enriquecimento de nossa pesquisa. A opção por dados qualitativos beneficia a apreensão ao estudarmos as relações complexas, em detrimento de nos limitarmos a estudar apenas variáveis
expostas por dados isolados (GÜNTHER, 2006, p. 202; FLICK; COLS, 2000 apud DIAS; PENA, 2015). Diante da análise do roteiro
de entrevistas realizado no trabalho de campo, foi elaborada uma divisão dos 8 entrevistados - 8 famílias - segundo os atributos
das práticas desempenhadas pelos mesmos, as práticas foram divididas em duas categorias conforme sua participação na manutenção da biodiversidade6 local (DIAS; PENA, 2015).
A filtragem dos 8 entrevistados se deu devido à três princípios: a variação no que concerne ao tipo de práticas entre cada
um dos entrevistados (apesar de observadas algumas semelhanças entre os entrevistados). O vínculo e o tempo de ocupação na
comunidade de cada. E a disponibilidade para a realização de entrevistas e visitas às propriedades. Além disso, boa parcela dos
entrevistados (excetuam-se os entrevistados 4 e 3) participam frequentemente das reuniões entre os moradores da comunidade,
fato este que releva a relação entre os entrevistados e o universo total de famílias.
O diálogo com os entrevistados 1, 5 e 6 contribuiu para uma análise genérica das presumidas 34 famílias, devido ao conhecimento de tais entrevistados a respeito da população local e de seu ambiente. Desse modo, foi possível verificar a conjuntura
da comunidade, a partir da perspectiva dos entrevistados supracitados, constatou-se, por exemplo, o eucalipto como a maior
fonte de renda dos habitantes da comunidade durante a década de 1990. Ainda que o universo de 8 entrevistados corresponda
aproximadamente à cerca de 23,5% do total de famílias em André do Mato Dentro, o caráter mais preponderante foi a entrevista
com os entrevistados 1, 5 e 6 e o saber histórico local dos mesmos.
Categoria 1: Práticas que contribuem para a manutenção da biodiversidade - Formas de manejo e domesticação
das espécies envolvendo o aproveitamento de alguma forma da mata natural e dos produtos produzidos pela família (esse foi o
critério de maior relevância na delimitação das categorias). Diversidade de produção superior a três (excetuam-se as hortas7).
Percentual de mata preservada após a instituição das práticas igual ou superior a 50% (aproximadamente) na propriedade da
família. Família que realiza mais de três práticas. Categoria 2: Práticas que contribuem pouco ou em nada na manutenção
da biodiversidade - Formas de manejo e domesticação das espécies em que verificou-se a ausência do aproveitamento da
mata natural e dos produtos produzidos. Diversidade de produção inferior a três (excetuam-se as hortas). Percentual de mata
preservada após a instituição das práticas inferior a 50% (aproximadamente) na propriedade da família. Família que realiza um
número inferior a três práticas.
Considerou-se o número de práticas como um critério de seleção, já que o número de práticas pode ser um indicador
responsável pela manutenção da biodiversidade, entretanto a forma como a prática é desempenhada é muito mais decisiva no
que diz respeito à manutenção. Diante disso, o número de práticas é um fator complementar no critério estabelecido. A diversidade de produção é referente aos produtos agrícolas, plantados ou que brotaram de forma natural (sem a interferência antrópica
direta). O percentual de mata preservada está intimamente associado ao tipo de prática, porém foi identificado o mesmo tipo de
prática, abrangendo uma extensão de área diferente.
Biodiversidade nesse caso é definida quanto à variabilidade entre os seres vivos e a forma de domesticação e conhecimento das espécies, que permitem construir
e conservar a identidade cultural e social, sobretudo de comunidades e povos tradicionais (Diegues, 2000 p.1-3)
7
Visto que todas as famílias possuem horta, portanto foi necessário desconsiderar as hortas para estabelecer um critério mais rigoroso acerca das categorias definidas.
6
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
255
Para refletir: uma cartografia falada de práticas e saberes agrícolas
A comunidade apresentou diferentes tipos de práticas, entretanto, as práticas observadas são compartilhadas pela maioria das famílias entrevistadas. As práticas demonstraram uma variação de acordo, sobretudo, com o uso e ocupação do solo.
As práticas desenvolvidas pela comunidade estão relacionadas principalmente à agricultura8, plantio de eucalipto, apicultura,
piscicultura, criação de gado leiteiro. As práticas envolvidas na agricultura compreendem a adubação orgânica, a aplicação
de água de cinza, plantio conforme fases da lua e a limpeza do terreno através do uso de foice e enxada. O adubo orgânico é
produzido com o esterco do gado da própria família, ou de conhecidos, esse esterco é misturado com folhas e restos de frutos
já muito maduros, já a mistura de água e cinza é utilizada como um defensivo capaz de controlar pragas. Deve-se ressaltar que
devido à heterogeneidade das propriedades do solo algumas famílias demandam de uma freqüência menor ou maior desses
tipos de práticas. Alguns produtos são cultivados segundo as fases da lua, um exemplo que permite ilustrar essa prática, é o
plantio da mandioca, batata e banana, as duas primeiras são plantadas no período da lua minguante, pois nessa época o que “da
no chão míngua” (entrevistado 1), porém a banana tende a ser plantada na fase da lua crescente ou cheia, já que a lua exerce
uma influência positiva no solo.
A limpeza do terreno não acarreta na retirada de espécies nativas, é realizada somente a poda dessas espécies, nas plantações de eucalipto9 - atividade na região já desempenhada por grande parte das famílias. A poda é comum e feita pela demanda
de corredores de ar para permitir ao eucalipto “respirar”. As entrevistas confirmaram a relevância deste que é um dos elementos
de maior significância na composição da paisagem local. O eucalipto é um personagem fundamental na história da comunidade,
isso se deve a sua importância em um momento de transição, em que os habitantes da comunidade foram obrigados a interromper por questões de caráter legal o desmatamento da mata nativa que inclui um fragmento de Floresta Estacional Semidecidual.
Diante desse novo contexto as famílias da comunidade iniciaram o plantio do eucalipto como uma nova fonte de renda, porém as
siderúrgicas ainda permaneciam como o grande fator motivador que impulsionava a comercialização da madeira.
A tabela 1 atesta a participação do eucalipto na constituição da comunidade, contudo o entrevistado 8, foi o único a não
possuir uma plantação de eucalipto. O motivo é devido às elevadas multas impostas pelo corte de árvores, sobretudo de espécies nativas e o fato do eucalipto plantado na região favorecer a extinção de nascentes (entrevistado 8). Relevante parcela dos
entrevistados empenhou-se em retirar o mínimo necessário para estabelecer ali sua agricultura e pasto. O tamanho da área do
terreno não está sempre associado com uma variedade de produtos alta, visto que o entrevistado 1 e 5 apesar de não possuírem
a maior área, apresentaram uma diversidade de produtos10. Entretanto, o eucalipto além de comercializado como madeira de
escoramento destinada à construção civil, também é manipulado para a produção de mel local, durante a florada as abelhas espécie africanizada - são atraídas. A conservação de espécies nativas11 também contribuiu para a apicultura praticada na região,
e até mesmo a Brachiaria, espécie exótica, participa do processo de produção do mel.
O plantio de cana de açúcar também constitui a agricultura local, algumas famílias produzem garapa proveniente da
cana-de-açúcar, outra forma de aproveitar a cana de açúcar é misturar o que sobrou da cana após sua trituração com a ração
para o gado (o mais comum na região é o leiteiro), isso garante volume ao gado, assim como a Brachiaria plantada por algumas
famílias (entrevistado 2). Porém também foi possível observar pastos naturais, um dos entrevistados mantém sua criação, sobretudo para não permitir que o pasto fique muito alto (entrevistado 8).
8
A agricultura na comunidade é caracterizada pela produção de subsistência, em raras ocasiões quando há excedente de produção, os produtos são comercializados
com famílias da comunidade ou de comunidades no entorno.
9
As espécies de eucalipto identificadas são denominadas como grande, branco, clonado e Urophylla. (entrevistados 1, 5 e 6)
10
Milho, inúmeras espécies frutíferas, por exemplo, abacate, laranja, morango, açaí, lichia, banana, limão, abacaxi, graviola, mexerica. Espécies aplicadas na
produção de chás: Melissa (tratamento de insônia), Gravatá (curar bronquite) e Cana-de-Macaco (tratar de inflamações).
11
Varão de São José, Assa Peixe, Folha miúda, Cachorro Magro, Alecrim do campo, e outras.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
256
Três das famílias entrevistadas criam peixes, as espécies Piau, Tilapia, Cará, Matrinxã e Bagre foram observadas nos
tanques, são alimentadas com ração e frutas produzidas no terreno das famílias, por exemplo, abacate e amora. Porém a criação
de peixe não remete apenas como uma fonte de proteínas às famílias, também têm o hábito de pescar como forma de distrair e
relaxar após os trabalhos rotineiros. A “camaradagem” (entrevistados 4 e 3) é usual entre algumas famílias, seja na produção do
mel ou na utilização do pasto12 de outra família, o manejo e as demais práticas por vezes são exercidas coletivamente, a capina
é um exemplo desse fato.
A coleta de musgo é outra atividade efetuada na região, porém esse tipo de atividade se restringe a um número bem
menor de famílias (entrevistado 8). A coleta do musgo na comunidade é uma das atividades de menor degradação da natureza,
a vegetação é retirada apenas nos locais onde se pretende criar trilhas que levem até o musgo. A fauna local, como a anta, participa da construção das trilhas, pois esse tipo de animal na maioria dos casos procura por alimento em campos abertos, locais
onde comumente há musgo (entrevistado 8). A figura 2 mostra a localização da comunidade e das moradias dos entrevistados,
exibindo a classificação nas categorias propostas.
Diante da maneira como as famílias da comunidade fazem uso dos recursos disponíveis, do conhecimento que adquiriram com seus antepassados (entrevistados 1 e 6), a população local por meio das suas práticas e saberes tradicionais promove
a conservação da natureza. Apesar de algumas famílias adotarem ações mais depredatórias, em sua maioria a população local
manifesta preocupação com a conservação da natureza e as práticas empregadas refletem essa inquietação, a baixíssima aplicação de insumos químicos é um dos fatores que corroboram com a forte relação da comunidade com a natureza e a biodiversidade que a compõe.
Nesse caso é cobrada uma pequena quantia no valor de R$10,00 por cabeça de gado, entretanto segundo o entrevistado 4, o valor é muito abaixo do real valor a
comumente cobrado.
12
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
257
Figura 2. (a) Localização da comunidade de André do Mato Dentro na SG (MELO, 2014). (b) Localização das moradias e
categorias dos entrevistados na área da bacia do córrego Maria Casimira, SG (Fonte: PENA, 2015).
Considerações para o porvir
A conservação da biodiversidade local foi verificada na área estudada da comunidade de André do Mato Dentro, o grau
de conservação presente na região se dá, sobretudo devido ao manejo e práticas desempenhadas pelos moradores da comunidade. Entretanto, é evidente que alguns habitantes da comunidade contribuem com um maior número de práticas se comparados a outros. Nossa investigação foi pautada na conservação da biodiversidade pelos habitantes da comunidade. Deve-se ressaltar que o número de práticas efetuadas por uma família, a diversidade de tais práticas, leva em consideração diversos aspectos,
como o próprio objetivo do habitante com as práticas, as características do solo e seu conhecimento para manejar as espécies.
A transmissão e utilização desses saberes por gerações ajudam a definir e construir a cultura das comunidades, contudo,
é possível que alguns conhecimentos tradicionais se percam, devido a novos contextos e desafios impostos pelo meio onde habitam, ou caso haja alguma interferência sócioeconômica no local habitado pela comunidade como sustentado por autores como
Pereira & Diegues (2010). A preservação da natureza proporcionada por essas comunidades extrapola as técnicas desenvolvidas
durante gerações e empregadas no processo de manejo, considerando também os sentimentos produzidos pelos sujeitos que
podem variar de gratidão com a terra, sol, chuva e fauna, ou o próprio medo desses constituintes da natureza, mostrado em
estudos pelos autores citados.
Mas a própria postura política dessas populações protagonizando movimentos de reivindicação dos seus espaços de
vida e se apropriando dos instrumentos políticos disponibilizados pelas instancias de poder reforçam a sua relação com estes
lugares de vida que elas ajudaram a construir, proteger e preservar. Essa visibilização política alcançada por essas comunidades
reforçam e evidenciam a necessidade do debate sobre outras formas de conservação da natureza pautada na realidade local e na
manutenção da sociobiodiversidade. Formas essas que hoje, na Serra do Gandarela –MG, podem se concretizar na implementação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável reivindicada pelas comunidades rurais de seu entorno.
Referências
ALTIERI, M. Agroecologia a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. 5 ed. Porto Alegre: UFRGS, 2009. Disponível
em <https://www.socla.co/wp-content/uploads/2014/Agroecologia-Altieri-Portugues.pdf?iv=24> Acesso em 8 setembro 2014.
ACRAMDA. ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA RURAL DE ANDRÉ DO MATO DENTRO E ARREDORES. Proposta de criação da
Reserva de Desenvolvimento Sustentável Alto Rio São João. Santa Barbara: ACRAMDA, 2011. 16 p.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
258
BRASIL. Lei nº 9.985, de 13 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui
o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 2000.
COLCHESTER, M. Resgatando a natureza: comunidades tradicionais e áreas protegidas. In: DIEGUES, A.C. Etnoconservação: novos rumos para a conservação da natureza. São Paulo: Hucitec/NUPAUB-USP, 2000, pp. 225-252.
DARDEL, E. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011. 159 p.
DIAS, J. B.; PENA L. L. S., As práticas/saberes agrícolas, contribuição à conservação da biodiversidade local? O caso de André
do Mato Dentro, Santa Bárbara, MG. Revista Geosaberes da Universidade Federal do Ceará, 2015 [no prelo]
DIEGUES, A.C. Etnoconservação novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. 2 ed. São Paulo: Hucitec/
NUPAUB-USP, 2000.
DIEGUES, A.C. O mito moderno da natureza intocada. 3. ed. São Paulo: Ed. Hucitec, 2001.
DIEGUES, A. C. (org). et al. Biodiversidade e comunidades tradicionais no Brasil. Os saberes tradicionais e a biodiversidade no Brasil. NUPAUB-USP/PROBIO-MMA/CNPQ, 2000. Disponível em <http://www.mma.gov.br/estruturas/chm/ _arquivos/saberes.pdf>. Acesso em 26 outubro 2014
DOU. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Decreto de 13 de Outubro de 2014 – Cria o Parque Nacional da Serra do Gandarela. Brasília,
2014.
DUARTE, R. Pesquisa qualitativa: reflexões sobre o trabalho de campo. Cadernos de Pesquisa, n. 115, 2002. Disponível em: <
http://www.dominiopublico.gov.br/ pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=167170>. Acesso em 5 setembro
2014.
GOLDENBERG, M. A Arte de Pesquisar. Como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais. 8 ed. Rio de Janeiro-São
Paulo: Editora Record, 2004.
GÜNTHER, H. Pesquisa Qualitativa Versus Pesquisa Quantitativa: Esta É a Questão? Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 22 n. 2,
p. 201-210, 2006.
ICMBIO. INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE. Proposta de Criação do Parque Nacional da Serra do Gandarela, Brasília: ICMBIO, 2010.
ICMBIO. INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE. Mapa do Parque Nacional e da RDS
Serra do Gandarela, Brasília: ICMBIO, 2012.
ICMBIO. INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE. Folder consultas públicas proposta
do Parque Nacional da Serra do Gandarela. Disponível em <http://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/o-que-fazemos/
folder_consultas_PNGandarela_2.pdf> Acesso em 14 julho 2015.
LAMOUNIER, W.L.; CARVALHO, V.L.M.; SALGADO, A.A.R. Serra do Gandarela: Possibilidade de Ampliação das Unidades de
Conservação no Quadrilátero Ferrífero-MG, Revista do Departamento de Geografia – USP, v. 22, p. 171-192, 2011.
MELO; J. Extensão Universitária em Comunidades Rurais: O Caso de André do Mato Dentro-MG. 2014. Monografia
(Graduação em Turismo). Universidade Federal de Minas Gerais, Balo Horizonte, 2014.
MIRANDA, E.E. O descobrimento da biodiversidade a ecologia de índios, jesuítas e leigos no século XVI. São Paulo:
Edições Loyola, 2004.
PEREIRA, B. E.; DIEGUES, A.C. Conhecimento de populações tradicionais como possibilidade de conservação da natureza:
uma reflexão sobre a perspectiva da etnoconservação. Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 22, p. 37-50, 2010.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
259
ROJAS, C. M. Os conflitos ambientais na Serra do Gandarela na perspectiva das comunidades locais. 2014. 200 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2014.
ROJAS, C.M.; PEREIRA, D.B. Políticas e estratégias empresariais de controle territorial: a VALE S.A e os embates na
Serra do Gandarela/MG, 2015, 21p. [no prelo]
ROJAS, C.M.; PEREIRA, D.B.; DIAS, J.B. Tensões e conflitos no espaço metropolitano de Belo Horizonte-MG/Brasil:
Parque Nacional da Serra do Gandarela, como estão as comunidades metropolitanas após o decreto? IV COLLOQUE BIODIVERCITIES 2015, UPA – Marseille, França 10p. [no prelo]
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
260
O MOSAICO CARIOCA DE ÁREAS PROTEGIDAS E O MODELO DE
DESENVOLVIMENTO URBANO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
Pena, Ingrid Almeida de Barros1 & Rodrigues Camila Gonçalves de Oliveira2
1. Associação de Amigos do Mosaico Carioca; 2. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Resumo
O mosaico de áreas protegidas é um instrumento criado no âmbito da Lei 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema
Nacional de Unidades de Conservação, e tem sido discutido e implementado como um mecanismo de ordenamento e gestão do
território. O Mosaico Carioca é formado por 19 unidades de conservação, das três esferas governamentais. Possui a particularidade de estar inserido no contexto urbano, situado no município do Rio de Janeiro, uma cidade que vem sofrendo transformações
na sua configuração geradas a partir de interesses diferenciados que raramente contemplam a conservação da biodiversidade.
Por meio de uma abordagem qualitativa, o objetivo da pesquisa é apresentar a contextualização socioespacial da área que
compreende o Mosaico Carioca, com destaque para a sua inserção na malha urbana, mais especificamente numa metrópole
fortemente associada ao modelo de desenvolvimento urbano neoliberal.
Palavras-chaves: Áreas Protegidas, Desenvolvimento, Mosaico Carioca
Introdução
O mosaico de áreas protegidas é um instrumento criado no âmbito da Lei 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o
Sistema Nacional de Unidades de Conservação, e tem sido discutido e implementado como um mecanismo de ordenamento
e gestão do território. Os mosaicos são criados no caso da existência de um conjunto de unidades de conservação de categorias diferentes ou não e outras áreas protegidas públicas ou privadas, justapostas ou sobrepostas. Estes espaços, destinados à
preservação e utilização sustentável da natureza pressupõem a gestão integrada de todas as unidades de conservação e demais
áreas protegidas, que possuam características ecossistêmicas em comum, pertencentes a diferentes esferas de governo ou não
(BRASIL, 2000).
Dentre os mosaicos criados desde 2002, o Mosaico Carioca, situado em sua maior parte no município do Rio de Janeiro,
com pequenas partes nos municípios de Nova Iguaçu e Nilópolis, tem a particularidade de integrar diversas UC em meio ao
espaço urbano. Foi reconhecido oficialmente em 11 de julho de 2011 pelo MMA, através da portaria de Nº 245. Tem cerca de
35.000 hectares, e a gestão das UC é realizada pelas três esferas governamentais (federal, estadual e municipal).
Imerso em um contexto urbano, o Mosaico Carioca além de ter como finalidade a conservação da biodiversidade, também pretende funcionar como um instrumento de gestão do uso e ocupação do espaço, e neste sentido seus desafios são
acentuados por impactos diretos e indiretos de questões comuns às grandes metrópoles: segregação socioespacial, pressão e
especulação imobiliária, habitação, falta de saneamento básico, etc. Este trabalho visa apresentar a contextualização socioespacial da área que compreende o Mosaico Carioca, com destaque para a sua inserção na malha urbana, mais especificamente numa metrópole fortemente associada ao modelo de desenvolvimento urbano neoliberal, que busca facilitar a ação do mercado e abrir frentes de expansão do capital financeirizado, o que
influi nos usos e fluxos da cidade (ROLNICK, 2013).
O trabalho foi organizado em duas partes: a primeira consiste na caracterização do Mosaico Carioca, com a exposição
das UC que dele fazem parte e o processo de criação. Para a carcaterização deste mosaico foram utilizados como métodos pesquisa bibliográfica e análise de dados secundários. Para tratar do processo de criação, em virtude da inexistência de referências
bibliográficas para tal, utilizaram-se como fontes as informações coletadas em entrevistas realizadas na pesquisa de mestrado
de autoria de Pena (2015). A segunda parte compreende a análise da cidade do Rio de Janeiro na presente década (2010), num
cenário de “megaeventos, meganegócios, megaprotestos” (VAINER, 2013, p. 37), problematizando a forma como o modelo de
desenvolvimento urbano neoliberal adotado no âmbito da gestão pública municipal e estadual, vem acentuando a segregação e
viola os direitos à cidade. O método para esta parte foi pesquisa bibliográfica, a partir da contribuição principalmente de Sanchéz
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
261
(2012), Vainer (2013), Rolnick (2013) e Ferreira (2013).
A escolha por esta via teórica se deu por entender que os desafios (e potencialidades) na gestão das áreas protegidas
estão muitas vezes associados à interesses políticos em confluência com o modelo de desenvolvimento socioespacial instituído.
Caracterização do Mosaico Carioca
O Mosaico Carioca de Áreas Protegidas, como foi formalmente nomeado, abrange cerca de 30% do território municipal
do Rio de Janeiro de importantes fragmentos florestais da Mata Atlântica: ecossistemas de restinga, mangue e floresta ombrófila
densa. A sua gestão é compartilhada entre as três esferas, sendo a federal pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio), a estadual pelo Instituto Estadual do Ambiente (INEA/SEA), e a municipal pela Secretaria Municipal
de Meio Ambiente do Rio de Janeiro (SMAC). Conforme sua portaria de reconhecimento, o Mosaico Carioca é composto por 23
(vinte e três) UC, sendo 2 (duas) federais, 4 (quatro) estaduais e 17 (dezessete) municipais. Tal composição está representada
na Figura 1 e no Quadro 1.
Figura 1. Mosaico Carioca de Áreas Protegidas, conforme portaria de reconhecimento, n° 245, de 11 de julho de 2011.
Fonte: Gerência de Gestão de Unidades de Conservação, SMAC, 2013.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
262
No decorrer de 2013, algumas UC foram recategorizadas e criadas para compatibilizar sua gestão com a real dimensão
e função da área. Os principais exemplos são: as APAs dos Morros do Leme e Urubu e Babilônia e São João e o Parque Estadual
da Chacrinha foram recategorizados para Parque Natural Municipal da Paisagem Carioca em junho de 2013 e em agosto de 2013
foi criado o Parque Estadual do Mendanha, que abrange grande parte da APA Gericinó/Mendanha. Em junho de 2013 uma equipe do Ibase iniciou a execução do “Projeto Mosaicos da Mata Atlântica: Fortalecimento da
sociobiodiversidade da Mata Atlântica e apoio à gestão integrada de Mosaicos de Áreas Protegidas” (IBASE, 2013). Por intermédio desta iniciativa, foi realizado o processo de constituição do conselho consultivo do Mosaico Carioca, incluindo a elaboração
de seu regimento interno e desenvolvimento dos planos de ação (2014 - 2016). Tais ações contemplaram a participação de
instituições e atores interessados, por meio de oficinas e outras dinâmicas. Neste contexto, foi formulada uma proposta de uma
nova composição do conselho consultivo, ampliada e paritária entre entes governamentais e organizações da sociedade civil,
envolvendo setores representativos da realidade na qual o Mosaico Carioca se insere. As representações foram legitimamente
eleitas e a proposta aprovada consensualmente pelos participantes (LOUREIRO et al., 2014). Assim, a formação do conselho
consultivo apresentada na portaria de 2011 passou a ser desconsiderada. Segundo Loureiro (2014, p. 2) , o conselho atualmente
“atende aos pressupostos democráticos definidos pelo Estado brasileiro de participação social e política, em espaços públicos,
do cidadão organizado coletivamente”.
Ainda segundo Loureiro et al. (2014), também era consenso entre os participantes que a portaria de 2011 não contemplava adequadamente o quadro atual de UC existentes, pois algumas foram reagrupadas ou recategorizadas – como exposto
anteriormente -, e outras não estão adequadamente implementadas e não atendem a critérios básicos para estarem em um mosaico (por exemplo, ausência de gestor responsável). Deste modo, foi elaborada uma proposta de uma nova portaria ministerial
para o Mosaico Carioca, contemplando as mudanças em relação à composição das UC (representado na Figura 2 e Quadro 2)
e do conselho consultivo. O documento foi enviado ao MMA no primeiro semestre de 2014, e até o momento em que o presente
trabalho foi concluído não houve resposta.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
263
Figura 2. Mosaico Carioca de Áreas Protegidas, conforme proposta de portaria ministerial, elaborada em 2013.
Fonte: Elaborado Vivian Silva, outubro de 2014.
Atualmente a gestão do Mosaico Carioca está pautada na proposta de portaria, apesar desta não ter sido oficialmente
reconhecida pela MMA.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
264
O processo de criação
O Parque Nacional da Tijuca (PNT), inserido no Mosaico Carioca, é a UC mais visitada do Brasil, atingindo três milhões
de visitante em 2014 (PARQUE NACIONAL DA TIJUCA, 2015). Além disso, abarca um dos principais atrativos da cidade, e até
mesmo do país, o Corcovado. Nestas circunstâncias, para o cumprimento da adequação de infraestrutura turística e outras atividades de gestão da unidade, a gestão do parque vem realizando, desde 1999, Acordos de Cooperação de Gestão Compartilhada,
que consistem em instrumentos firmados entre esferas e órgãos governamentais para ações conjuntas no âmbito do Parque. Em
maio de 2009, o acordo supracitado, que já não havia sido renovado há quatro anos, foi assinado pelo então Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, e pelos representantes do Município do Rio de Janeiro, ICMBio, Governo do Estado do Rio de Janeiro, Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB), Empresa Municipal de Vigilância S/A, com interveniência do MMA. Segundo G11, a revitalização do acordo se deu num momento favorável de alinhamento político entre o Prefeito Eduardo Paes, o então
Governador do estado, Sérgio Cabral e o então presidente da República, Luiz Ignácio Lula da Silva (informação verbal).
Ainda segundo G1, nesta ocasião, por iniciativa do então representante da SMAC na Gestão Compartilhada do PNT,
G2 , juntamente com Secretário Municipal de Meio Ambiente, Carlos Alberto Vieira Muniz (PMDB), foi incluída uma cláusula no
2
documento referente ao apoio à criação do Mosaico Carioca. Essa iniciativa mobilizou outros gestores de UC (das três esferas
governamentais) e outros funcionários dos órgãos ambientais. Assim, G1 e G2 consideram que um dos fatores essenciais para a
criação deste Mosaico está relacionado ao aprendizado no âmbito dos acordos de gestão compartilhada do PNT. G2 e G33 destacam que a criação do Mosaico não foi uma demanda apenas política e institucional, pois a sua criação se deu muito em função
da vontade e disposição dos funcionários envolvidos na gestão das UC que compõem o mosaico (informação verbal).
Em 1° de março de 2010, durante as comemorações do aniversário do município do Rio de Janeiro, ocorreu na cidade o
lançamento do Mosaico Carioca, oficializado pelo então Ministro Carlos Minc. Entretanto, apesar da solenidade, a portaria do
Mosaico Carioca só foi reconhecida mais de um ano depois. Isto porque, a ideia inicial, manifestada na minuta de portaria, era inserir outras áreas protegidas urbanas4, e não apenas unidades de conservação. Assim, a primeira proposta elaborada pelo grupo
contemplava na composição do Mosaico o Jardim Botânico do Rio de Janeiro e a Reserva Florestal da Vista Chinesa. Contudo,
para G3, apesar do empenho do então Ministro do Meio Ambiente (informação verbal), a composição de áreas protegidas não
foi aceita pelo MMA.
G3 aponta que a restrição indicada pelo MMA se deu também em relação à composição do conselho consultivo, que foi
considerada inovadora por contemplar segmentos que a princípio não tinham uma ligação direta com as áreas protegidas do
Mosaico, mas com a gestão urbana como um todo. Após alterações na portaria, esta foi oficialmente reconhecida em 11 de julho de 2011, contando exclusivamente com
unidades de conservação na sua composição. O conselho consultivo somente foi oficialmente instituído em janeiro de 2014 e tem
se reunido com frequência. Tem como forma de organização e estrutura quatro instâncias: a plenária, o colegiado coordenador,
as câmaras temáticas e o núcleo de apoio. Com os recursos oriundos da emenda parlamentar, em 2014 o Mosaico Carioca adquiriu recursos humanos (um secretário executivo e dois estagiários), um veículo e mobiliário para escritório e equipamentos. Não foi obtido, entretando, o mesmo
valor das emendas de 2014 em 2015, e, atualmente (julho de 2015), o Mosaico Carioca busca novas fontes para manter sua
estrutura organizacional.
É certo que o Mosaico Carioca está sujeito as mais diversas apropriações, sobretudo relacionadas à interesses políticos
e econômicos. É uma área de visibilidade inquestionável no âmbito das políticas ambientais no país, sobretudo quando o assunto
é parques urbanos e mata atlântica. Por outro lado, está inserido em uma metrópole que cresceu sem o devido planejamento,
pautada em interesses econômicos que comumente negligenciam questões como mobilidade urbana, habitação, acesso aos
espaços de lazer. No próximo item serão apresentados alguns marcos no processo de uso e ocupação do espaço de áreas
caracterizados por contradições e privilégios em relação à determinadas escolhas. 1
Representante do Núcleo de Apoio ao Mosaico Carioca (SMAC). Depoimento [dezembro, 2014]. Entrevistadora: Ingrid Pena. Rio de Janeiro, 2014. 1 arquivo.mp3
(1h26min).
2
Ex Secretário Executivo do Mosaico Carioca. Depoimento [setembro, 2014]. Entrevistadora: Ingrid Pena. Rio de Janeiro, 2014. 1 arquivo.mp3 (24min).
3
Servidora INEA que participou do processo de criação do Mosaico Carioca. Depoimento [outubro, 2014]. Entrevistadora: Ingrid Pena. Rio de Janeiro, 2014. 1 arquivo.
mp3 (17min).
4
Foram mencionados nas entrevistas: Parque de Madureira, Quinta da Boa Vista, Aterro do Flamengo, Jardim Botânico, Parque Tom Jobim e Reserva Florestal da
Vista Chinesa.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
265
A cidade do Rio de Janeiro na década de 2010
No Brasil, a questão urbana, mais especificamente a agenda da reforma urbana, foi pauta importante das lutas sociais no
âmbito das esferas municipais nos anos 1980 e início dos anos 1990. Contudo, esta agenda foi abandonada pelo poder público
dominante (ROLNICK, 2013), e um novo ideário de cidade, que facilita a ação do mercado e abre frentes de expansão do capital
financeirizado, foi adotado por formuladores de políticas urbanas, sendo a cidade do Rio de Janeiro um dos principais modelos
no país.
A principal característica desta nova concepção de cidade e de governo urbano é a inspiração neoliberal, em que as
cidades passam a ser entendidas como empresas, tendo o seu planejamento privatizado, a execução de obras e a transferência
de bairros inteiros para o controle privado, a terra urbana como refém dos interesses do capital imobiliário (mesmo que para isso
leis tenham que ser flexibilizadas ou modificadas), e a concorrência entre as cidades pela atração de capitais e eventos (SANCHÉZ, 2012; VAINER, 2013). Neste contexto,
(...) o êxito do governo brasileiro, em especial, do Executivo municipal da cidade do Rio de Janeiro
em conquistar a condição de país-sede da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos Rio2016 pode ser tomado como exemplo da produção dessa política-espetáculo (SANCHÉZ, 2012).
Ferreira (2013) considera que estamos passando por um processo de banalização do espaço urbano, materializada em
uma urbanização banalizada (p. 29), centrada em modelos de sucesso internacional que abrangem propostas de revitalização5
de áreas centrais e portuárias, e a partir disto, investimentos em infraestrutura voltada para a atividade turística e para espaços
residenciais e de negócios para as classes alta e média. Para o autor, este formato se repete em várias cidades, inclusive no Rio
de Janeiro, e neste contexto indica ainda que as atuais decisões e investimentos governamentais, que geram grandes transformações socioespaciais, consolidam a segregação na cidade, pois são em sua maioria direcionadas ao favorecimento das classes
mais abastadas e aos turistas.
Vainer (2013) defende que este modelo de cidade
(...) aprofundou e agudizou os conhecidos problemas que nossas cidades herdaram de quarenta
anos de desenvolvimentismo excludente: favelização, informalidade, serviços precários ou inexistentes, desigualdades profundas, degradação ambiental, violência urbana, congestionamento
e custos crescentes de um transporte público precário e espaços urbanos segregados (p. 39).
No âmbito do município do Rio, tendo em vista a sua visibilidade turística nesta década de megaeventos esportivos,
alguns dos problemas citados pelo autor foram mais acentuados e evidenciados, tendo como destaque as remoções forçadas,
que consistem basicamente na mudança de famílias pobres que vivem em áreas centrais para a periferia, com oferta precária
de serviços básicos, como transporte, baixo valor de indenizações e forte pressão da especulação imobiliária, numa tentativa de
“maquiar” a cidade, buscando “esconder” a pobreza e a criminalidade (VAINER, 2013; COSENTINO, 2013). Além desta questão,
Vainer (2013) indica também como problema latente os monopólios para a concessão de prestação de serviços que ferem os
direitos do consumidor.
Neste cenário de megaeventos e meganegócios, em 2013, sucederam-se também os megaprotestos (VAINER, 2013),
não só no Rio de Janeiro, mas também em outras cidades cujas populações arcam com os custos da adoção do modelo de cidade
neoliberal. Para Rolnick (2013), as grandes manifestações que despontaram foram resultado de uma nova geração de movimentos urbanos descontentes com a mercantilização das cidades.
Segundo Ferreira (2013), alguns qualificaram as manifestações como uma festa, desprendida de consciência política,
enquanto outros chegaram a imaginar uma grande revolução. Entretanto, o autor aponta como indubitável a conexão das manifestações com a questão das relações de poder presentes nas cidades, isto é, o autoritarismo, a prepotência dos governantes e
o desrespeito à dignidade da população no que se refere a prestação de serviços (p.13). Vainer (2013) também associa os protestos ao contexto propiciado pelos maciços investimentos urbanos em obras relacionadas à Copa do Mundo (2014), e no caso
do Rio de Janeiro, também aos jogos olímpicos (p. 37).
5
Para o autor, “Revitalização e renovação sao palavras – e políticas - que produzem às vezes inquietações, ja que significam, frequentemente, destruir e reconstruir”
(FERREIRA, 2013, p. 24).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
266
No que tange à temática ambiental, segundo o dossiê elaborado pelo Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro (2013), os principais casos de degradação ambiental são a implantação dos corredores viários Transcarioca, Transolímpica
e Transoeste, os processos de remoção de comunidades sob a justificativa ambiental e a construção de um Campo de Golfe em
uma área protegida. Este artigo se limitará na explanação sobre o caso da construção do Campo de Golfe Olímpico, pois envolve
a flexibilização da base legal que deveriam contribuir para a consolidação de áreas protegidas e ilustra o posicionamento dos
governantes em relação às questões referentes à conservação da biodiversidade na cidade do Rio.
A construção do Campo de Golfe Olímpico
Pacote Olímpico é o nome dado ao conjunto de leis que mudaram expressivamente as normas urbanísticas da cidade em
2010 e 2012, em especial para hotéis e para a Zona Portuária. Dentre as transformações socioespaciais decorrentes da alteração
de leis anunciada no âmbito do Pacote Olímpico, tidas como necessárias pelo poder público, está a construção de um Campo
de Golfe Olímpico no bairro Barra da Tijuca, que acolherá esta atividade esportiva recém-incluída nos Jogos Olímpicos, e deverá
ser operado por meio de parceria público privada.
O grande problema desta construção é que maior parte do campo de golfe se encontra na Área de Proteção Ambiental
(APA) Marapendi, que abarca o Parque Natural Municipal de Marapendi, e é dividida pelo zoneamento ambiental, com locais
de grande restrição para ocupação mais próximos à Lagoa de Marapendi, que serve de abrigo para diversas espécies nativas,
e de restrição menor, gradativamente diminuídos até à Avenida das Américas, onde está sendo construído o campo. Como parte
do Pacote Olímpico, recentemente divulgado, o Projeto de Lei Complementar 113/2012 permitiu o aumento da área destinada ao
campo, alterando o zoneamento ambiental para zona com menor restrição de uso (FILIPO, 2014), isto é, alterou o Zoneamento
Ambiental da Área de Proteção Ambiental de Marapendi e alterou os limites do Parque Natural Municipal de Marapendi. A Figura
3 mostra construção do campo de golfe.
Figura 3. Campo de Golfe Olímpico em no final de 2014. Fonte: Coimbra (2015).
Nestas circunstâncias, um grupo organizado da sociedade civil, denominado “Golfe para Quem?” tem promovido o
debate acerca da situação e denunciado as irregularidades, através de redes sociais. O caso também envolve protestos e ocupações de ativistas que exigem o embargo das obras, respaldados pelo Ministério Público.
Além do descumprimento e de alterações de legislações ambientais, a implementação do campo de golfe envolveu
outras questões polêmicas, como a destinação dos recursos financeiros municipais6 e o fato de já haver um campo de golfe no
mesmo bairro, o Itanhangá Golg Club. Entretanto, não foi considerada na possibilidade deste ser o campo de golfe dos jogos
olímpicos, apesar de ser um dos dois campos de golfe com 18 buracos existentes no Rio, entre os 100 melhores campos de golfe
fora dos Estados Unidos, segundo a lista do Golf Digest (HODGES, 2014).
Os debates suscitados a respeito deste empreendimento também recaem sobre o fato de que o mesmo grupo - Prefeito
do Rio, o Secretário Municipal de Meio Ambiente e a bancada de vereadores – que apoiou a criação do campo, aprovou o Plano
6
R$60 milhões, investido pelo parceiro privado – Fiori Empreendimentos -, sendo que o custo médio de um campo de golfe com 18 buracos é menos que R$10 milhões
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
267
Diretor da Cidade em 2011, que condena quaisquer alterações de parâmetros urbanísticos nas UC da cidade. Assim, o Pacote
Olímpico e o Plano da Cidade são incompatíveis (REDONDO, 2014). Esta situação exemplifica a fragilidade da legislação urbana-ambiental. Nos últimos anos, a Barra da Tijuca tem experimentado um intenso crescimento populacional proporcionado por
investimentos para grandes empreendimentos imobiliários residenciais e comerciais, que não representam, em nada, o interesse
coletivo. Recentemente, alguns destes empreendimentos, em construção, têm como pano de fundo de marketing, o campo de
golfe. Um exemplo está ilustrado na propaganda abaixo (Figura 4):
Figura 4. Propaganda em um condomínio em construção próxima ao Campo de Golfe Olímpico Fonte: IMOVEISDELUXO (2015).
Assim, em vias de se tornar realidade, estando 60% da construção concluída (HODGES, 2014), o projeto tem, convenientemente, superado todos os potenciais bloqueios, desde os regulamentos sobre o uso da terra até as leis de proteção ambiental. Ferreira (2013) relembra que as transformações socioespaciais imprimidas na cidade justificadas pelos megaeventos
expressam e atualizam de forma intensa o ideário de cidade vigente.
Crê-se oportuno notar que este é apenas um dos casos, dentre muitos, que não contemplam a conservação das áreas
naturais da cidade, promovem a segregação socioespacial, afetam a dinâmica territorial e transformam a paisagem da cidade
em prol de interesses específicos do capital imobiliário.
Considerações finais
Este trabalho teve como finalidade apresentar o contexto socioespacial da área que compreende o Mosaico Carioca, com
destaque para a sua inserção na malha urbana. No atual contexto da cidade de alta atratividade de investimentos, coube analisar
sucintamente o caráter neoliberal de desenvolvimento presente nos projetos do Rio de Janeiro, na esfera de uma economia simbólica que afirma visões padronizadas de uma cidade competitiva.
O contexto urbano no qual o MC está inserido exerce influência no desenvolvimento das relações sociais e políticoinstitucionais que o sustentam, e também nos impactos ambientais sofridos (naturais e antrópicos). Especificamente na década
de 2010, num cenário de “megaeventos, meganegócios, megaprotestos” (VAINER, 2013, p. 37), os interesses e intervenções
espaciais que envolvem a cidade estão ainda mais conflituosos e impactantes. Vainer (2013) destaca o autoritarismo presente nas
relações instituídas entre os governantes e os cidadãos, repercutida no desrespeito à dignidade da população no que se refere
a prestação de serviços e nos maciços investimentos urbanos em obras relacionadas à Copa do Mundo (2014), e no caso do Rio
de Janeiro, também aos jogos olímpicos (2016), que resultam da segregação socioespacial na cidade.
Entendendo que na reprodução socioespacial da cidade estão representados interesses emanados de distintas instituições e organizações, expressos nas relações sociais em diferentes tempos históricos, infere-se que a reprodução espacial do
MC, inserido na cidade do Rio de Janeiro, em termos materiais e imateriais, perpassa por meandros da produção do espaço
urbano. Assim, sofre influência e controle socioespacial comuns a uma grande metrópole, que vão desde a pressão de grandes
empreiteiras até o avanço e pressão espacial de favelas.
Referências
BRASIL. Lei n° 9.985, de 18 de julho de 2000. Institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Brasília:
MMA, 2000.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
268
COIMBRA, C. Prefeitura prepara modelo de concessão do campo de golfe, na Barra, para depois da Olimpíada.
O Globo on line. Disponível em <http://oglobo.globo.com/rio/prefeitura-prepara-modelo-de-concessao-do-campo-de-golfe-nabarra-para-depois-da-olimpiada-14700383#ixzz3P8VVF7Lo> Acesso em 11 janeiro 2015.
COMITÊ POPULAR DA COPA E DAS OLIMPÍADAS DO RIO DE JANEIRO. Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos
no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em < https://comitepopulario.files.wordpress.com/2013/05/dossie_comitepopularcoparj_2013.pdf> Acesso em 03 janeiro 2015.
COSENTINO, R. A invisibilização da pobreza e dos pobres no Rio Olímpico. Justiça Global [internet]. 15/04/2014. Disponível em
<http://global.org.br/programas/a-invisibilizacao-da-pobreza-e-dos-pobres-no-rio-olimpico/> Acesso em 10 janeiro 2015.
FERREIRA, Á. A Cidade do Século XXI: Segregação e banalização do espaço. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Consequência, 2013.
FILIPO, L. Ministério Público pede suspensão de licença ambiental do campo de golfe. Globoesporte.globo [internet].
19/11/2014. Disponível em < http://globoesporte.globo.com/olimpiadas/noticia/2014/11/ministerio-publico-pede-suspensao-delicenca-ambiental-do-campo-de-golfe.html> Acesso em 16 janeiro 2015.
HODGES, E. O Campo de Golfe Olímpico do Rio Esmagará uma Preciosa Área Ecológica Protegida. RIOONWATCH
[internet]. 02/09/2014. Disponível em < http://rioonwatch.org.br/?p=12181> Acesso em 10 janeiro 2015.
IMOVEISDELUXO. Riserva Golf. Disponível em < http://www.imoveisdeluxo.com.br/riserva-golf-vista-mare-residenziale.asp>
Acesso em 15 janeiro 2015.
IBASE. INSTITUTO BRASILEIRO SE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS. Texto de Apoio sobre o Mosaico Carioca para
o Projeto Mosaicos da Mata Atlântica. Rio de Janeiro: IBASE, 2013.
LOUREIRO, C.F.B.; REZENDE, D.; CORRÊA, F.V.; PRAÇA, M.; VARGENS, M.; FRANCA, N. Mosaicos da Mata Atlântica:
caminhos e desafios a partir da experiência de um projeto. In: LOUREIRO, C.F.B.; FRANCA, N. (Orgs.). Mosaicos da Mata
Atlântica: caminhos e desafios a partir da experiência de um projeto. Rio de Janeiro: IBASE, 2014.
LOUREIRO, C.F.B. Repensando a gestão participativa no mosaico carioca. Folha do Mosaico Carioca [internet], Rio de
Janeiro, p. 2 - 2, 31/10/2014. Disponível em < http://mosaico-carioca.blogspot.com.br/p/revista-folha-do-mosaico-carioca.html>
Acesso em 01 novembro 2014.
PARQUE NACIONAL DA TIJUCA. Parque Nacional da Tijuca bate novo recorde de visitação. 16/01/2015. Disponível em
< http://www.parquedatijuca.com.br/noticia.php?id_noticia=329> Acesso em 16 janeiro 2015.
PENA, I.A.B. Mosaico Carioca de Áreas Protegidas e a perspectiva de gestão integrada do território no contexo
urbano. 2015. 152 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas), Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro, Seropédica, 2015.
REDONDO, A.A. Campo de Golfe rasga Plano Diretor do Rio. Urbe CaRioca [internet]. 20/02/2014. Disponível em < http://
urbecarioca.blogspot.com.br/2014/02/campo-de-golfe-rasga-plano-diretor-do.html> Acesso em 20 maio 2014.
ROLNICK, R. Apresentação – As vozes das ruas: as revoltas de junho e suas interpretações. In: HARVEY, D. et al. (Orgs.) Cidades
rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.
SANCHÉZ, F.A. A “cidade olímpica” e sua [in]sustentabilidade. Le Monde diplomatique Brasil [internet]. 04/05/2012. Disponível em < http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1174> Acesso em 18 agosto 2013.
VAINER, C.B. Quando a cidade vai às ruas. In: HARVEY, D. et al. (Orgs.) Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações
que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
269
DESAFIOS AMBIENTAIS AO DESENVOLVIMENTO: A EVOLUÇÃO DA GESTÃO
AMBIENTAL PÚBLICA NO AMAZONAS (2003-2015) E AS MUDANÇAS GLOBAIS
Pereira, Henrique dos Santos1 & Vasconcelos, Ademar Roberto Martins de2
1.Universidade Federal do Amazonas, [email protected] 2. Universidade Federal do
Amazonas, [email protected]
Resumo
Objetivou-se analisar a trajetória e a efetividade das políticas públicas estaduais de meio ambiente do Amazonas, a partir de 2003,
particularmente daquelas relacionadas aos setores de florestas e mudanças no uso do solo, de unidades de conservação e de
manejo de recursos pesqueiros. No período analisado, apesar do pouco investimento de recursos próprios, houve significativos
avanços nestes setores, com a criação de órgãos especializados e de marcos legais em âmbito estadual. No entanto, nos últimos
anos, a agenda ambiental foi perdendo o espaço político anteriormente conquistado, culminando com a reforma administrativa
em 2015. Atualmente, o aumento da frequência de eventos climáticos extremos vem desencadeando uma nova crise socioambiental e que requer a inovação de políticas públicas capazes de favorecer, no plano local, a adaptação das comunidades rurais e
urbanas a essas mudanças ambientais globais.
Palavras-chave: Política Pública, Gestão Ambiental, Governo Estadual, Mudanças Globais.
Introdução
Avaliação da efetividade e eficiência das políticas públicas (PPs) se justifica como parte da prestação de contas e da responsabilização dos agentes estatais, ou seja, como elemento central da accountability (FARIA, 2005). Trata-se, portanto, de uma
ação política essencial para a boa governança com impactos sobre a questão do controle e da inclusão social. Reconhecendo
que o avanço dos processos de descentralização da gestão ambiental no Brasil vem conferindo maior importância para as ações
em nível estadual, este estudo teve como objetivo avaliar o desempenho do governo do Amazonas na formulação e implantação
de políticas públicas ambientais no período que compreende as últimas quatro gestões. Em outras palavras, se busca o entendimento sobre “como e por que o governo faz ou deixa de fazer alguma ação que repercutirá na vida dos cidadãos” (SOUZA, 2006),
neste estudo, mais especificamente, as ações do governo estadual que visam promover a proteção e a qualidade ambiental no
Amazonas. Através de interpretações de estudos acadêmicos independentes e da análise de dados publicados pelos órgãos
governamentais, foram avaliadas a evolução das políticas e da estrutura de governo dedicada à área ambiental e a efetividade
das PPs dos setores de floresta e mudança do uso do solo, do manejo pesqueiro e de áreas protegidas. Discute-se ainda a participação do governo estadual no financiamento da implantação dessas políticas. Por fim, se faz um alerta sobre a necessidade
da formulação e efetivação de novas políticas que enfrentem m âmbito local, a emergente crise ambiental desencadeada pelas
mudanças climáticas.
Evolução das Políticas e gestão públicas ambientais no Amazonas
Com 98,6% de cobertura nativa e 55% do território em Áreas Protegidas, o Amazonas representa hoje a maior contribuição
(87,6 milhões de ha) para as salvaguardas ambientais do desenvolvimento econômico do país. Dessas áreas, 21,4% estão diretamente sob a gestão estadual. No entanto, foi somente a partir de 2003 que o Estado passou a formular suas políticas públicas
(PPs) para o setor ambiental. O governo eleito naquele ano passou a assumir um discurso público que claramente buscava
posicionar a questão ambiental associada à noção de desenvolvimento sustentável como tema principal das políticas públicas
de governo. Para expressar essa orientação política, o programa de governo foi denominado de “Zona Franca Verde” (ARAUJO;
PAULA, 2009; CEPAL; AMAZONAS, 2010). A nova política estadual de meio ambiente ganhou maior estatura com a criação da
Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SDS), criada pela lei delegada n° 66 de maio de 2007. O
novo órgão integrante da administração direta do poder executivo do Amazonas tinha como a finalidade de formular e coordenar
as políticas estaduais de meio ambiente e de recursos hídricos, visando à promoção do desenvolvimento sustentável.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
271
A SDS atuava em articulação com as suas autarquias vinculadas: Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM),
Agência de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (ADS), Companhia de Gás do Amazonas (CIGÁS) e com os conselhos:
Conselho Estadual de Meio Ambiente (CEMAAM), Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERH) e Conselho Estadual de
Geodiversidade do Amazonas. No âmbito do Sistema foi criada ainda a Unidade Gestora do Centro Estadual de Mudanças
Climáticas (CECLIMA) e do Centro Estadual de Unidades de Conservação (CEUC) (Lei nº 3244).
Objetivando desenvolver o setor florestal, o governo estadual buscou implantar uma política florestal baseada no desenvolvimento sustentável de produtos florestais. A Lei Estadual No. 3.527 de 2010 definiu as regras para concessões florestais nas
Unidades de Conservação de Uso Sustentável denominada Florestas Estaduais, com o objetivo de regulamentar o uso múltiplo
sustentável dos recursos florestais e serviços ambientais, pesquisa científica e o desenvolvimento sustentável de comunidades
tradicionais que vivem dessas áreas (SILVA; PEREIRA, 2015). Encontram-se inseridas no Cadastro Nacional de Florestas Públicas (CNFP) oito Florestas Estaduais, totalizando 2.881 milhões de hectares de Florestas Públicas Estaduais. Agência de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas – ADS , empresa pública criada em 18 de maio de 2007, através da Lei Delegada nº 118, era
vinculada a SDS, ficou sendo responsável pela parte de comercialização dos produtos florestais (madeireiros e não madeireiros).
No entanto, apesar do enorme potencial, até o presente, nenhuma iniciativa mais efetiva foi adotada pelo Estado no sentido de
implantar a política de concessões florestais.
Baseado nas peculiaridades locais, o governo estadual elaborou legislação própria para o uso dos recursos de suas florestas nativas. A IN SDS nº 005, de 26 de fevereiro de 2008 e a IN SDS nº 002, de 11 de fevereiro de 2008, definem três categorias
de manejo florestal: Plano de Manejo Florestal Sustentável - PMFS de Maior Impacto de Colheita, PMFS de Menor Impacto de
Colheita e PMFS em Pequena Escala (AMAZONAS, 2008; SILVA, 2014). Em termos regionais, o incentivo ao manejo de pequena
escala alcançou, no Amazonas, a sua maior expressividade, como será visto mais adiante.
Todavia, o tema florestal no Amazonas está disperso numa complicada estrutura administrativa que lida com vários outros
temas e com uma coordenação incipiente. Além disso, os núcleos temáticos responsáveis internamente pelo tema (formulação
de política, licenciamento, assistência técnica e extensão, implementação e manejo das unidades de conservação, efeitos climáticos etc.) constituem-se como órgãos fechados de um sistema que deveria atuar de forma aberta e interconectada. De acordo
com um estudo de proposições realizado pela própria Secretaria, constatou-se que existia escassa interação entre esses núcleos,
diluindo-se a visão sistêmica e impedindo-se uma atuação orgânica aberta, capaz de constituir a força e a identidade temática
no âmbito da instituição. Perdia-se, portanto, o foco no âmbito interno da Secretaria no processo de implementação e execução
da política de florestas, e, em consequência, não se alcançando a visibilidade que o extenso, volumoso e denso capital natural
florestal do Estado por só si representa (AMAZONAS, 2012).
Com a Lei Estadual 3.135 de 05 de junho de 2007 que criou a Política Estadual sobre Mudanças Climáticas, Conservação
Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, o Estado do Amazonas se antecipa à Política Nacional de Mudanças
Climáticas. A referida lei criou ainda o Fundo Estadual de Mudanças Climáticas, Conservação Ambiental e Desenvolvimento
Sustentável e o Centro Estadual de Mudanças Climáticas (CECLIMA) no âmbito da Secretaria do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SDS), considerado o primeiro centro governamental especializado em articular e implementar políticas
públicas sobre mudanças climáticas no país (AMAZONAS, 2009).
Nessa lei, foram definidas as bases legais do Programa Bolsa Floresta e o conceito de produtos e serviços ambientais.
Esse marco legal serviu também de base para a criação da Fundação Amazonas Sustentável (FAS) através de um inovador
arranjo institucional, em dezembro de 2007. A FAS tem o objetivo de fazer a gestão dos produtos e serviços ambientais das
unidades de conservação estaduais e a gestão do programa Bolsa Floresta (VIANA, 2008). Estes marcos legais fornecem uma
estrutura legal promissora para a implementação de iniciativas de REDD+1 dentro de UC estaduais no Amazonas. Além disso,
o Amazonas estabeleceu o seu Plano Estadual de Prevenção e Combate ao Desmatamento no Amazonas - PPCD-AM que prevê
medidas efetivas para a redução dos índices de desmatamento, mediante a criação de áreas protegidas, o ordenamento territorial, a fiscalização ambiental, a gestão de florestas públicas, entre outros. (CENAMO; CARRERO, 2011). No entanto, a política
estadual assim como política nacional ainda não dispõe de regulamentação quanto aos incentivos financeiros e tributários de
modo a ampliar e diversificar o alcance desses incentivos às práticas produtivas sustentáveis de modo a torná-las economicaA sigla para Redução de Emissões provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal (REDD). O sinal + inclui “o papel da conservação, do manejo sustentável
e do aumento de estoques de carbono nas florestas”.
1
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
272
mente mais vantajosas do que aquelas associadas ao desmatamento (SILVA, 2013).
A partir de 2011, com a mudança de governo, observou-se uma mudança significativa no discurso do Governo Estadual
quanto à temática do desenvolvimento sustentável e do enfrentamento das questões ambientais. O tema perdeu centralidade no
discurso oficial, tornando-se praticamente imperceptível, com repercussões na prática. Por exemplo, houve uma clara redução
no ritmo de ampliação das áreas protegidas estaduais, seguindo a mesma tendência obervada no âmbito do setor ambiental federal. Essa mudança se concretizou com a extinção da SDS, do CEUC e do CECLIMA pelo governo eleito em 2014, passando as
atribuições desses órgãos a serem exercidas diretamente pela nova Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA-AM), criada
em 09 de março de 2015.
Uso da Terra, Mudança no Uso da Terra e Florestas
O papel das atividades que envolvem mudanças no uso da terra na mitigação das mudanças climáticas tem sido amplamente reconhecido. A mitigação das mudanças climáticas pode ser conseguida através do incentivo de atividades neste setor
que aumentem as remoções de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera ou diminuam as emissões por fontes que conduzem
a um acúmulo de estoques de carbono. Uma característica importante dessas atividades, neste contexto, é a sua reversibilidade
potencial, portanto, não permanência dos estoques de carbono acumuladas. Os padrões de desmatamento (conversão do solo
florestal a outros usos que não mantenham a cobertura nativa) e do manejo florestal sustentável (que matem a floresta) no Estado
podem indicar as tendências de mudanças no uso do solo na região assim como a contribuição do setor agrícola e florestal para
as mudanças climáticas globais.
Desmatamento - O Amazonas é o quarto estado com a maior área desmatada. Ao analisarem-se os dados da estimativa
da taxa anual de desmatamento para o Amazonas e para total da região, entre o período de 2003 a 2014, período de vigência
do PPCDAM (BRASIL/MMA, 2015), observa-se que até 2009 o Amazonas acompanhava o ritmo contínuo de desaceleração do
desmatamento detectado para a região como um todo (Figura 1). Nos últimos seis anos, o desmatamento anual no Estado oscilou
entre 400 a 600 km2/ano, sem demonstrar sinais de que haveria uma retomada da tendência de desaceleração.
Segundo Fonseca et al. (2014), o desmatamento na Amazônia Legal acumulado no período de agosto de 2013 a maio de
2014, correspondendo aos dez primeiros meses do calendário atual de desmatamento, totalizou 846 quilômetros quadrados.
Houve redução do desmatamento acumulado de 49% em relação ao período anterior (agosto de 2012 a maio de 2013) quando o
desmatamento somou 1.654 quilômetros quadrados.
Figura 1. Evolução da taxa de desmatamento do Estado do Amazonas e da Amazônia Legal segundo dados do PRODES/INPE (2003-2014).
Esta mudança na dinâmica de queda do desmatamento no Estado está associada principalmente com o crescimento
do desmatamento nos municípios localizados na região sul, sob a influência das BR-230 (Transamazônica) e BR-319 (Figura 2).
Dentre estes municípios estão Lábrea e Boca do Acre, os únicos dois municípios amazonenses que consta da lista de municípios
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
273
prioritários do programa, ocupando a 51ª e 52ª posição no ranking de prioridades (BRASIL/MMA, 2015).
Figura 2. Evolução da área desmatada em Municípios do Amazonas com mais 1.000 km2 de desmatamento em área
de fronteira agropecuária em expansão.
De modo contrário, observa-se que dentre os municípios com mais 1.000 km2 de área desmatada, naqueles localizados
na região central do Estado (Itacoatiara, Maués, Autazes, Manaus e Careiro), há uma tendência de crescimento muito menos
acelerada da área desmatada acumulada. Essa região pode, então, ser considerada como uma região de fronteira agropecuária
consolidada.
Manejo Florestal (MF) - Os planos de manejo florestal sustentável de pequena escala (PMFSPE) diretamente incentivados pelo Governo do Amazonas começaram a ser implantados, em 2003, nos municípios da região do Alto Solimões e em Maués.
Até abril de 2007, mais de 50% dos municípios já haviam sido contemplados com PMFSPE. A política estadual de incentivo ao
manejo florestal de pequena escala no âmbito do Programa Zona Franca Verde, previa ações que iam desde a simplificação de
normas para o MF até o direcionamento de uma agência de assessoria técnica do estado ao apoio direto à elaboração de planos
de manejo florestal de pequena escala. Com esse enfoque, o estado do Amazonas elevou em 84% o número de iniciativas de MF,
passando de 422 planos de MF protocolados em 2007 a 775 planos de MF protocolados em 2009/2010. A grande maioria (80%)
desses planos de MF foi elaborada via órgão estadual de assessoria técnica – o Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e
Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (IDAM) (PINTO; AMARAL NETO, 2011).
No entanto, dos 692 pedidos de autorização de PMFSPE protocolados até 2007, apenas 263 (38%) foram licenciados e 97
(14%) foram explorados. Esta diferença entre os planos protocolados, licenciados e explorados se deve às várias dificuldades
que surgiram no processo de implantação do programa que se relacionavam principalmente ao fato do órgão de licenciamento
ambiental do Estado, o IPAAM, demorar a emitir as Licenças de Operação e as Autorizações para Transporte de Produtos Florestais, à falta de recurso dos produtores, à informalidade histórica do setor madeireiro no Estado e à própria adaptação dos
produtores às novas formas de trabalho exigidas para se fazer o Manejo Floresta Sustentável (PIRANI, 2007).
Em estudo recente realizado na RDS do Rio Negro por Silva (2014), os dados de produção e rendimento apontam que,
por safra, cada família chega a auferir uma renda líquida de R$4.320,00. Problemas na condução das atividades florestais ainda
existem, como baixo preço da madeira no mercado local, falta de transporte terrestre para retirar a madeira de dentro da área
de manejo, sazonalidade do rio, demora no processo de licenciamento ambiental, entre outros, mas que aos poucos, vem sendo
superados.
Takeda (2015) analisou 2.459 planos de manejo florestais autorizados pelos Estados na Amazônia Ocidental durante os
anos de 2007 a 2013. No Amazonas, foram registrados 833 planos, correspondendo a um total de 3.9993,40 mil m3 de volume de
madeira autorizados. Quanto aos tamanhos das propriedades ou posses rurais com manejo florestal autorizado, observou-se a
absoluta maioria (90,3%) era conformada por imóveis com área menor que 500 ha, indicando a forte influência da política florestal
estadual que incentiva a exploração florestal segundo a modalidade de pequena escala.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
274
Manejo sustentável da pesca - No âmbito do setor da pesca extrativa de águas interiores, o Amazonas é pioneiro no
desenvolvimento de políticas públicas. A principal espécie manejada é o pirarucu (Arapaima spp.), maior espécie de peixe
de escamas de águas doce, podendo atingir mais de dois metros de comprimento e pesar mais de 150 Kg. Apresenta ampla
distribuição na Bacia Amazônica, havendo registros no Brasil, Peru, Colômbia, Equador e Guiana. Alvos de intenso esforço de
pesca, as populações do pirarucu estão em declínio na maior parte da Amazônia. No ano de 1999, o IBAMA autorizou a comercialização de oriundo deste modelo de manejo. Em 2004 e 2005, o IBAMA publicou Instruções Normativas N°34/2004, ratificando
a proteção do período reprodutivo da espécie, e N°01/2005, que proibiu a pesca no estado do Amazonas e definiu os critérios
e procedimentos para o manejo dos pirarucus. Na esteira desta experiência de manejo inaugurada em Mamirauá, em outros
locais, foram criados sistemas de manejo nos mesmos moldes. Atualmente, existem 12 áreas de manejo de pirarucu no estado
do Amazonas. A produção de pirarucus neste sistema de manejo evoluiu de três toneladas em 1999, saltando para 727 toneladas
em 2009 (BESSA; LIMA, 2010).
Dentre os principais avanços alcançados estão: a regularização da pesca comercial de pirarucu, proibida no estado do
Amazonas a partir de 1996 (Portaria n° 8 de 2 de fevereiro de 1996); o aumento anual médio na população de pirarucu em 25%,
nas áreas de manejo; o aumento anual médio na renda gerada em 29%; e o reconhecimento conferido ao grupo de pescadores
pela prática de ações sustentáveis ecologicamente. Estudo recente aponta que a atividade gera uma receita média líquida de
R$ 1.402,30 por pescador para dois meses de trabalho. Esse retorno financeiro demonstra que o manejo de pirarucu tem trazido
uma contribuição significativa para a população diretamente envolvida nas atividades de pesca manejada. (FIGUEIREDO, 2013).
Áreas protegidas – Na Amazônia Legal, de acordo com os dados oficiais, até 2010, as áreas protegidas correspondiam
a 43,9% da região, sendo metade em Unidades de Conservação e metade em Terras Indígenas (VERÍSSIMO et al., 2011). Proporcionalmente, o Estado com mais áreas protegidas seria o Amapá e o com menor área seria o Estado do Mato Grosso. Em termos
absolutos, o Estado com maior área protegida é o Estado do Amazonas, seguido do Estado do Pará que juntos correspondem a
66,6% das áreas protegidas da região.
A Lei estadual Complementar N°. 53, de 05 de junho de 2007, regulamentou o inciso V do Artigo 230 e o §1. do Artigo
231 da Constituição Estadual, instituindo o Sistema Estadual de Unidades de Conservação (SEUC). Desde então os processos
de criação, implantação e gestão das Unidades de Conservação Estaduais passaram a ser executados pelo Centro Estadual
de Unidade de Conservação (CEUC) que fez parte do sistema da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável (SDS).
Por iniciativa do CEUC e suas instituições vinculadas, o Estado do Amazonas expandiu em aproximadamente 10 milhões
de hectares a área legalmente protegida na forma de unidades de conservação. Desde a criação da Secretaria em 2003, essa
modalidade de espaço territorial especialmente protegido no Amazonas aumentou de 7,4 para 18,8 milhões de hectares, quase
triplicando o número de UC, que aumentou de 12 para 41 em 2009, totalizando nove UC de proteção integral e 32 de uso sustentável. A preferência por UC do grupo de uso sustentável, especialmente as reservas de desenvolvimento sustentável (RDS),
é uma característica marcante da política de áreas protegidas estudais. Foi no Amazonas que surgiu a categoria e primeira RDS
do país, criada em 1996. Mais tarde, a categoria foi recepcionada na lei federal 9.985/2000 que institui o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação (SNUC).
Desde a criação da Secretaria em 2003, a área afetada por regimes especiais de proteção ambiental aumentou de 7,4
para 18,8 milhões de hectares. Este aumento triplicou o número de UC, que aumentou de 12 para 41 em 2009. Deste total, apenas nove são UC de proteção integral e 32 de uso sustentável. Atualmente, o estado do Amazonas conta com 87,6 milhões de
hectares de áreas protegidas que correspondem a 56% do território do Estado e 10,3% do território Nacional. A maior parte delas
consiste em Terras Indígenas.
Apesar do significativo avanço no número e na cobertura territorial das UC no Estado do Amazonas, o nível de implementação dessas áreas protegidas é considerado baixo. Estudo realizado em 34 UC estaduais no Amazonas indicou que a média da
efetividade de gestão dessas UC é de 43% (WWF-BRASIL, 2011). De todas as UC avaliadas, sete apresentaram efetividade alta,
sete, efetividade média e treze apresentaram efetividade baixa.
Instrumentos fundamentais para a implementação de uma UC são o conselho gestor (CG) e o plano de gestão (PG).
O Conselho Gestor é um importante instrumento de gestão de democracia e participativa nas UC, podendo contribuir para o
acesso de tomada de decisões, uma vez que este espaço pode assumir competências deliberativas, consultivas, fiscais e mobi-
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
275
lizadoras. Do total de 41 UC estaduais do Amazonas, apenas 25 possuem CG criado e em funcionamento (Figura 3). Em estudo
realizado com a participação dos representantes das organizações que compõem os conselhos gestores de oito UC, dos 30
indicadores de efetividade analisados, 14 foram considerados regulares ou pior e apenas dois foram considerados excelentes,
em média (SOUZA; PEREIRA, 2015).
Orçamento público estadual para a gestão ambiental
O orçamento previsto para a Secretaria de Meio Ambiente para o ano de 2015, corresponde a 72,5 milhões, ou seja, 0,46%
do orçamento estadual para o ano. Nota-se uma clara tendência de crescimento dos valores nominais no orçamento da Secretaria
(Figura 4). No entanto, se analisado em termos de percentual que o orçamento da secretaria representa em relação ao orçamento
do Estado, nota-se uma maior variação entre os anos e apenas uma ligeira tendência de aumento. O valor orçado para 2015 representa que o Estado do Amazonas investe dos seus recursos próprios apenas R$3,86 por hectare de área protegida.
Figura 3. Evolução da criação de conselhos gestores de Unidades de Conservação Estaduais no Amazonas.
Em 2009, somente para a implantação das UC da área de influência da BR-319, a SDS recebeu diretamente do DNIT/MT
um montante de 9,9 milhões (http://www3.transparencia.gov.br/TransparenciaPublica/). Somente este convênio aportou um valor
que representava 36% do orçamento próprio da secretaria naquele ano (Tabela 1).
Dentre os principais doadores está o programa ARPA - Programa Áreas Protegidas da Amazônia. O ARPA é um programa
do Governo Federal, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), gerenciado financeiramente pelo FUNBIO (Fundo
Brasileiro para a Biodiversidade) e financiado com recursos do Global Environment Facility (GEF) – Banco Mundial, do Banco
de Desenvolvimento da Alemanha (KfW), do WWF-Brasil e do Fundo Amazônia (http://programaarpa.gov.br/). Foi lançado no ano
de 2002 para ser executado em três fases independentes e contínuas. É o maior programa de conservação de florestas tropicais
do planeta e o mais expressivo ligado à temática das unidades de conservação no Brasil. Um pouco mais da metade do total, ou
seja, 23 UC estaduais do Amazonas já foram contempladas com recursos do programa ARPA.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
276
Figura 4. Evolução do orçamento da Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Amazonas (2009-2015).
Fonte: SEFAZ/AM (http://www.sefaz.am.gov.br/). Valores não atualizados
Mudanças climáticas – Impactos ambientais e vulnerabilidade social
Segundo Marengo et al. (2012), inundações e secas no rio Amazonas não estão apenas relacionadas com anomalias de
precipitação positivas ou negativas, mas principalmente com o momento em que esses eventos extremos de chuva ocorrem.
Uma vez que o tempo de deslocamento da contribuição de afluentes norte e sul do rio Amazonas é fundamental para amortecimento ondas de cheias na calha principal, a combinação de picos de descargas dos afluentes de ambas as margens num
mesmo período resulta em inundações extremas. A frequência e a intensidade dos eventos climáticos extremos na região são
perceptíveis quando se considera que houve secas extremas registradas nos anos de 1997, 2005 e 2010, bem como enchentes
severas nos anos de 2006, 2009 e 2015.
Não há consenso quanto à aceitação do fato de que os frequentes desastres naturais, tais como inundações e secas que
estão ocorrendo agora sejam produtos das mudanças climáticas. As secas severas em 2005 e 2010 se encaixavam nas projeções
futuras de alguns modelos climáticos, no sentido de que a floresta pode enfrentar maiores extremos climáticos neste século, com
secas mais intensas, tornando-se mais vulneráveis a incêndios, que por sua vez podem danificar a sua capacidade de recuperar.
No entanto, a ocorrência de episódios úmidos em 2009 e 2012 entre essas secas desafia este argumento. O que se pode concluir
é que os extremos na variabilidade climática podem tornar-se mais frequentes no futuro (MARENGO et al., 2013).
Eventos extremos de natureza hidrológica que resultam em enchentes ou vazantes anormais dos rios da região (OLIVEIRA et al., 2012) afetam diretamente as populações rurais e urbanas do Estado vez que a quase totalidade da população reside em
áreas ribeirinhas e dependem dos rios como fonte de recursos e via de transporte. De acordo com o Boletim de Alerta da Defesa
Civil do Estado do Amazonas, dados referentes à 1º. De Junho de 2015, 39 municípios estavam em situação de emergência e dois
(Boca do Acre, no rio Purus e Humaitá, no Rio Madeira) estavam em situação de calamidade. O número de pessoas atingidas
alcançava a ordem de mais de 317 mil e o de famílias superava os 63 mil (AMAZONAS/DEFESA CIVIL, 2015).
Os efeitos desses eventos extremos atingem mais intensa e diretamente as populações rurais que ocupam e exploram
tanto as áreas de várzea (planície de inundação) como de terra-firme (áreas não alagáveis) e também as populações urbanas
de baixa renda que ocupam áreas de risco, como vêm sendo obervado em outras regiões e países (MEARNS; NORTON, 2010).
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
277
Conclusões
Analisaram-se os desempenhos das principais PPs ambientais do Estado do Amazonas no período recente, notadamente
aquelas ligadas aos setores de uso do solo e floresta, manejo pesqueiro e áreas protegidas. Quanto à dinâmica do uso do solo,
foi observado que houve uma mudança no ritmo de desaceleração do desmatamento no Estado. Desde 2009, o desmatamento no
Amazonas deixou de acompanhar a tendência regional de desaceleração, sendo essa dinâmica causada pelo avanço da fronteira
agropecuária em municípios do sul do estado. Quanto ao manejo florestal, apesar das dificuldades, a atividade possui um futuro
promissor. Com a isenção de impostos, desburocratização do licenciamento, incentivos governamentais e não governamentais, o
manejo florestal sustentável tende a consolidar-se como atividade promissora em UC de uso sustentável. Para o setor de manejo
pesqueiro, o destaque foi o desenvolvimento das políticas públicas que permitiram a consolidação de um sistema de manejo do
pirarucu, que vem sendo implantado principalmente nas Unidades de Conservação de uso sustentável. Não houve incremento importante em áreas protegidas estaduais durante o período de 2009 a 2015, tendência esta
também observada no âmbito das UC criadas pelo governo federal. Essa tendência observada nos períodos dos últimos anos
parece indicar o fim de um ciclo de expansão das UC no Amazonas, em particular, e igualmente no restante da Amazônia. O
baixo investimento público na consolidação dessas áreas reflete-se nos seus igualmente reduzidos graus de implantação e efetividade de instrumentos de gestão. No período analisado, a Secretaria teria recebido em média, a cada ano, 0,35% do orçamento
estadual. De fato, a maior parte os recursos efetivamente empregados nas ações de proteção ambiental, especialmente nas UC,
provem de doadores ou de alguma forma de compensação ligada a projetos de desenvolvimento.
Ainda que o desmatamento e a invasão e grilagem de terras públicas sejam considerados como as faces mais visíveis da
insustentabilidade dos processos de desenvolvimento em curso no Estado, mudanças ambientais de outra ordem começam a se
tornar cada vez mais evidentes assim como os seus efeitos negativos para o bem-estar das populações locais e seus elevados
custos sociais. Modelos de previsão têm sido elaborados para antecipar as medidas de proteção social e assistência a essas
populações. No entanto, políticas públicas e programas de adaptação que visem aumentar a resiliência e reduzir a vulnerabilidade das populações ainda não foram planejados nem muito menos postas em prática pelo Estado.
Referências
AMAZONAS. Governo do Estado. Manejo florestal sustentável em pequena escala no Amazonas: orientações técnicas
e administrativas. Secretaria de Estado de Produção Rural; Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. - Manaus: IDAM/FLORESTA VIVA, 2008. 88p.
AMAZONAS. Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. A floresta amazônica e seu papel nas
mudanças climáticas. Manaus: SDS/CECLIMA, 2009. 36p. (Série Técnica Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, n. 18).
AMAZONAS. Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Modelo e estruturas organizacionais
de formulação e implementação de política e de gestão florestais do estado do Amazonas (estudo e proposição).
Manaus: SDS, 2012.
AMAZONAS. Defesa Civil. Boletins de Alerta. Disponível em < http://www.defesacivil.am.gov.br/pagina/boletins-de-alerta/>
Acesso em 28 junho 2015.
ARAUJO, J.J.C.N.; de PAULA, E.A. Novas formas de desenvolvimento do Amazonas: Uma leitura as ações do Programa Zona
Franca Verde. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, v. 5, n. 3, p. 140-154, 2009.
BESSA, J.D.O.; LIMA, A.C. Manejo de pesca do pirarucu (Arapaima gigas) no estado do Amazonas: erros, acertos e perspectivas
futuras. Seminário Internacional de Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, 1., Manaus, 2010. Anais... Manaus:
UFAM. 2010. Disponível em <http://www.seminariodoambiente.ufam.edu.br/2010/textos/anais.html>
BRASIL, Ministério do Meio Ambiente. PPCDAm - Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal. Disponível em <http://www.mma.gov.br/florestas/controle-e-prevenção-do-desmatamento/plano-de-açãoo-para-amazôniappcdam> Acesso em 28 junho 2015.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
278
CENAMO, M.C.; CARRERO, P.G.S. Redução de Emissões do Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+): Estudo
de Oportunidades para o Sul do Amazonas. Série Relatórios Técnicos vol.1 Manaus: Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas – IDESAM, 2011. 56p.
CEPAL/GOVERNO DO ESTADO DO AMAZONAS. Evolução das Políticas de Desenvolvimento Sustentável no Estado
do Amazonas 2006-2009: Avanços em direção às recomendações realizadas por ocasião da Análise Ambiental e de
Sustentabilidade do Estado do Amazonas. 2010. 121p. Disponível em < http://www.cepal.org/dmaah/publicaciones/sinsigla/
xml/1/43661/PUBLICACI%C3%93N_AMAZONAS_REV_FINAL.pdf> Acesso em 27 junho 2015.
FARIA, C.A.P. A política da avaliação de políticas públicas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20, n. 59, pp. 97-169, 2005.
FIGUEIREDO, E.S.A. (Org.) Biologia, conservação e manejo participativo de pirarucus na PanAmazônia. Tefé: IDSM,
2013. 278p. Disponível em <http://www.mamiraua.org.br/pt-br/publicacoes/publicacoes/2013/livros/> Acesso em 28 junho 2015.
FONSECA, A.; MARTINS, H.; SOUZA Jr., C.; VERÍSSIMO, A. Transparência Florestal. Belém: IMAZON, 2014. Disponível em < http://
imazon.org.br/PDFimazon/Portugues/transparencia_florestal/amazonia_legal/SAD-Maio2014.pdf> Acesso em 28 Junho 2015.
MARENGO, J.A.; BORNA, L. S.; RODRIGUEZ, D.A.; PINHO, P.; SOARES, W.R.; ALVES, L.M. Recent Extremes of Drought and
Flooding in Amazonia: Vulnerabilities and Human Adaptation. American Journal of Climate Change, v. 2, pp. 87-96, 2013.
MARENGO, J.A.; TOMASELLA, J.; SOARES, W.R.; ALVES, L.M.; NOBRE, C.A. Extreme climatic events in the Amazon basin Climatological and hydrological context of recent floods. Theor Appl Climatol, v. 107, pp. 73–85, 2012.
MEARNS, R.; NORTON, A. (Ed.). Social dimensions of climate change: equity and vulnerability in a warming world.
Washington: World Bank, 2010. 319p.
OLIVEIRA, V.P.; MAFRA, M.V.P.; SOARES, A.P.A. Eventos climáticos extremos na Amazônia e suas implicações no município de
Manaquiri (AM). Geonorte, v.1, n.5, pp. 977–987, 2012.
PINTO, A.P.; AMARAL NETO, M. Iniciativas de Manejo Florestal Comunitário e Familiar na Amazônia Brasileira
2009/2010. Belém/Brasília: Imazon e IEB, 2011.
PIRANI, A.M. Análise do Componente Manejo Florestal Madeireiro do Programa Zona Franca Verde: Da Intenção a
Ação. 2007. 84p. Dissertação (Mestrado em Manejo Florestal) INPA, Manaus, 2007.
SILVA, A.A.; PEREIRA, H.S. Concessão florestal no Amazonas: estudos de potencialidade da floresta estadual Tapauá.
In: PEREIRA, H.S.; SILVA, M.A.P. (Orgs.). Unidades de Conservação do Amazonas no interflúvio Purus-Madeira: instrumento de gestão participativa. 1ed. Manaus: EDUA, 2015, v. 1, p. 53-86.
SILVA, G.T. Análise da eficácia da política estadual de mudanças climáticas no Amazonas à luz da política nacional sobre mudanças do clima. Encontro da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica, 10., Vitória, 2013. Anais... Disponível em <http://www.
ecoeco.org.br/conteudo/publicacoes/encontros/x_en/GT9-2224-1607-20130630234820.pdf>
SILVA, P.A. Os desafios de implantação do manejo florestal nas comunidades da RDS do Rio Negro-AM. 2014. 71p. Dissertação (Mestrado em Gestão de Áreas Protegidas na Amazônia). INPA, Manaus, 2014.
SOUZA, C. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, v. 8, n.16, p. 20-45, 2006.
SOUZA, M.L.G.; PEREIRA, H.SS. Proposta metodológica para análise participativa de efetividade de conselhos gestores de unidades de conservação. In: PEREIRA, H.S.; SILVA, M.A.P. (Orgs.). Unidades de Conservação do Amazonas no
interflúvio Purus-Madeira: instrumento de gestão participativa. 1ed. Manaus: EDUA, 2015, v. 1, p. 87-110.
TAKEDA, W.M. Análise da exploração florestal de espécies nativas na Amazônia Ocidental. 2015. 120p. Dissertação
(Mestrado em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia). Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2015.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
279
VERÍSSIMO, A.; ROLLA, A.; VEDOVETO, M.; FUTADA, S.M. Protected areas in the Brazilian Amazon: challenges &
opportunities. Belém: Imazon; São Paulo: Instituto Sociambiental, 2011. 96 p.
VIANA, V.M. Bolsa Floresta: um instrumento inovador para a promoção da saúde em comunidades tradicionais na Amazônia.
Estudos Avançados, v. 22, n. 64, pp. 143-153, 2008.
WWF-BRASIL. Efetividade de gestão das unidades de conservação no Estado do Amazonas. Brasília: WWF-Brasil, Secretaria de Estado do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade, 2011. 72p.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
280
PARTICIPAÇÃO DE JOVENS NA GESTÃO DE BENS COMUNS:
A RESEX MARINHA DE CAETÉ-TAPERAÇU- PA
Lamarão, Maria Luiza Nobre1 & Maneschy, Maria Cristina
1. Universidade Federal do Pará, [email protected]
Resumo
As Reservas Extrativistas inauguram uma nova forma de gerir o território. Em que medida essa nova gestão tem, de fato, a participação efetiva dos jovens que são e serão os atores sociais que responderão pela sustentabilidade do território? Os dados
que orientam esta reflexão provêm de pesquisa em curso na RESEX Marinha Caeté-Taperaçu, no Estado do Pará. Os primeiros
achados mostram baixa participação de jovens na cogestão em um processo que transformou habitantes de comunidades agro
pesqueiras em usuários/beneficiários de uma política pública sem a adequada formação para essa nova gestão. Há, portanto,
a necessidade de investimentos em processos socializadores de jovens para a participação nas instâncias formais da gestão
fortalecendo a cooperação, sobretudo, para preservação dos meios de vida e da cultura.
Palavras-chave: RESEX, Gestão Compartilhada, Juventude, Participação, Amazônia.
Introdução
A compreensão da relação homem e natureza, como problema científico, é recente. Seu marco pode ser a criação de
uma nova disciplina – a ecologia, em 1870, por Ernest Haeckel que desenvolveu uma ideia de totalidade e interação entre
homem e natureza. Essa disciplina abriu portas para o avanço de diversas perspectivas para entender essa complexa relação,
desde uma ótica mais biológica até as mais humanistas, passando pelo antropocentrismo que já, há muito, colocava o homem no
centro da imensa rede que compõe o mundo natural. De modo mais concreto, surge o conservacionismo, movimento que atuou
com grande projeção mundial na proteção da natureza, responsável pela demanda de criação de áreas protegidas, sobretudo,
parques. Defende a ideia de “natureza intocada”, isto é, sem a presença do homem. No lado oposto, a partir de uma vertente mais
econômica que social, com a ideia de que o crescimento econômico não pode ocorrer sem a utilização dos recursos naturais e,
consequentemente, algum “dano ambiental” é inevitável. E, entre ambos, os defensores da relação histórica do homem com a
natureza e, portanto, passível de sua utilização racional, sustentável, modelo no qual o homem é também parte da natureza e, por
conseguinte, mantém uma lógica de interação sem degradação inexorável (FERNANDEZ, 2014).
Essa última perspectiva é também ressaltada por Maneschy ao afirmar que há “a progressiva superação de uma visão
dualista entre sociedade e natureza que esteve presente por muito tempo entre as ciências [...] O meio natural é também produto
social e, portanto, modificado pelas práticas sociais coletivas em um sentido não necessariamente predatório. Muitas vezes, o que
parece ser uma paisagem intocada é resultado de manejos de populações passadas e presentes” (MANESCHY, 2003, p. 138).
Este artigo busca refletir sobre essa nova forma de gerir o território, examinando, especialmente a participação dos jovens nas instâncias formais de gestão com suas contradições, acertos e desafios.
RESEX como instituição de gestão de recursos naturais comuns
Na complexa discussão sobre a relação do homem com os bens comuns da natureza como mares, oceanos, florestas,
campos naturais, lagos entre outros, tornaram-se referências teóricas três grandes estudiosos: Mancur Olson, Garret Hardin e
Elinor Ostrom. Diferentemente dos conservacionistas, esses três autores admitem o uso racional dos bens comuns da natureza,
na medida em que concebem que o homem é levado pelo interesse de satisfazer suas necessidades no modo como se relacionam com o meio natural. Partem, portanto, da perspectiva econômica da relação homem e natureza. Contudo, diferem entre si
pelos argumentos propostos para o uso racional desses recursos.
Para Olson, cientista político, a utilização dos bens comuns passa pela lógica da ação coletiva, que resulta da atuação dos
indivíduos organizados em grupos com objetivos em comum na defesa de seus interesses. A notar que os indivíduos não agem
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
281
espontaneamente em uma ação coletiva, o grupo alcança os objetivos mediante coerção, incentivos ou sanções sobre seus
membros (OLSON, 1998). Um desafio importante a toda ação coletiva é o problema do “free rider”, isto é, da tendência de cada
um de buscar primeiramente seu interesse individual, podendo evadir-se dessa ação embora venha a colher seus frutos. Adentrando pela linha sociológica e antropológica, seria pertinente acrescentar a essa abordagem o elemento da constituição social
do grupo, seus valores, costumes e cultura que dão sustentabilidade ao grupo. Contudo, a teoria de Olson contribui para análise
de processos em curso sobre a relação do homem e natureza na sociedade atual, processos que dependem em grande medida
de ações coletivas por parte de usuários e beneficiários dos recursos naturais. Traz subsídios às teorizações sobre a institucionalização de territórios protegidos com a formação compulsória de grupos para agirem coletivamente como é, no caso brasileiro,
a criação de Unidades de Conservação - UC, dentre elas as Reservas Extrativistas – RESEX.
Ainda nessa linha de raciocínio que parte da racionalidade individual contraposta à racionalidade do coletivo, o biólogo
Garret Hardin acrescentava que, diante do desafio de utilizar os recursos comuns, alvo de interesses conflitantes, são necessárias
medidas incisivas como a privatização desses bens e sua regulação pelo Estado, ou a gestão por uma autoridade central. Sem
isso, ocorreria uma tragédia, ou seja, os recursos seriam utilizados à exaustão.
Nessa ótica, como ressaltaram os seus críticos, notadamente a cientista política Elinor Ostrom, recursos comuns equivaleriam a recursos de livre acesso, desprovidos de instituições reguladoras. Esse teria sido o equívoco fundamental de Hardin,
daí o apelo que ele fez à intervenção de agentes coatores externos ou, então, ao estabelecimento de direitos de propriedade
privada, diante da impossibilidade de pessoas ou grupos utilizarem bens comuns livremente, regulando suas ações com vistas
à sustentabilidade a longo prazo. Ao contrário, em busca de ganhos individuais e na incerteza do comportamento de outros
usuários daquele bem que está aberto ao uso de muitos, eles tenderiam a sobreutilizá-los, até seu esgotamento.
Ostrom, seguindo a discussão de Olson e Garret, avança teorizando sobre uma terceira via - a gestão comunitária dos
bens comuns. Instituições locais de regulação, ou gestão, de lagos, de águas costeiras, de pastagens naturais, por exemplo,
muitas vezes foram confundidas com acesso livre pelo fato de serem próprias de comunidades sem poder ou visibilidade política
e, portanto, não eram reconhecidas por Estados ou elites locais. Nesses contextos, intervenções do tipo políticas de reforma
agrária, ocupações, programas de desenvolvimento e, sobretudo, políticas de conservação ambiental, puderam ser feitas sob o
pressuposto de que se tratava de recursos de livre acesso, sobre os quais não havia grupos que historicamente haviam instituído
direitos de uso e formas de gestão coletiva. E, portanto, sem consideração pelos direitos de comunidades tradicionais locais e
sem compreensão da lógica subjacente aos seus conhecimentos e práticas ambientais.
A perspectiva de Ostrom considera experiências bem sucedidas, de longa duração, com gestão comunitária baseadas na
institucionalização de regras que permitem que todos cooperem e se beneficiem dos bens comuns. Partidária do neoinstitucionalismo, Ostrom dedicou-se ao estudo de muitos casos de instituições locais de uso de recursos comuns, isto é, recursos cuja característica inviabiliza sua divisão em parcelas e a exclusão a priori de usuários, como é possível fazer por exemplo, na agricultura
ou na pecuária. Tal como definido por ela “Instituição é um conjunto de regras de trabalho que determinam, entre outros, os participantes, as ações permitidas ou proibidas, as informações necessárias e a distribuição de benefícios” (OSTROM, 1990, p. 51).
A autora mostrou que é possível criar novas instituições para gerir os bens comuns com a participação dos envolvidos.
Em seus estudos, analisa a gestão comunitária de pastos, florestas, terras não cultivadas, sistemas de irrigação e as trilhas e
estradas. A gestão comunitária exige regras definidas e conhecidas por todos e inclui também sanções para quem descumpre
essas regras e exige, acima de tudo, a discussão constante dos participantes para acompanhar, manter e aperfeiçoar o processo
da gestão. As instituições devem “fazer sentido” para os membros da coletividade, caso contrário os custos da adesão serão altos, ou seja, o monitoramento, a fiscalização e o controle, diante do perigo sempre presente do “free rider”. Daí que no “desenho
institucional”, conforme a expressão da autora, a participação e as instâncias de resolução de conflitos tenham grande relevância.
A institucionalização de territórios em Unidades de Conservação, em particular as Reservas Extrativistas, segue um modelo que pode ser identificado como híbrido ou conjugado dentre os três propostos pelos autores referidos. Contudo, estão mais
próximos da proposta de Ostrom pelos princípios de instituição de sistemas duradouros e da prevalência de uma compreensão
ampliada de direitos de propriedade, que dá relevo às formas comunais, ou comunitárias, de apropriação de recursos comuns.
No primeiro princípio considerado por Ostrom, que trata da “Definição clara do sistema de recursos e suas fronteiras,
assim como, dos participantes”, pode-se dizer que a RESEX se inclui, pois é juridicamente instituída, suas fronteiras são delimitadas e o sistema de uso dos recursos definido entre os usuários e beneficiários. O segundo princípio “Adequação entre condições
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
282
locais, regras de apropriação e regras de provisão do sistema de recursos” ocorre também na RESEX, particularmente com o
Plano de Manejo. O terceiro princípio “A possibilidade de determinar as regras para a sua própria gestão de bens comuns e da
participação da maioria dos indivíduos afetados” também é pertinente, pois se institui nova gestão formada pelo Conselho Deliberativo, cujos integrantes tem direito a voz e a voto. É paritário, com representantes do governo federal, do estado, do município,
da iniciativa privada, dos cientistas, e dos usuários e beneficiários, organizados necessariamente em associação. O quarto
princípio “Monitoramento regular através de monitores que são os próprios apropriadores ou lhes prestam conta” se aplica à RESEX e é executado principalmente pelo órgão gestor governamental, o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade - ICMBio, assim como pelos próprios moradores que encaminham denúncias de “desviantes” para as instâncias gestoras. O quinto princípio
“Sanções gradativas contra desviantes” está presente na RESEX na medida em que há sanções que são aplicadas aqueles que
violam as regras. O sexto princípio “Instâncias de fácil acesso e baixos custos para a resolução de conflitos”, o sétimo “Direito
de se organizar minimamente garantido e não contestado por autoridades governamentais externos” e o oitavo “Em caso de
sistemas maiores, organização dos participantes em vários níveis adequados, cada um com seus próprios arranjos institucionais
adequados” se efetivam na RESEX na organização política do território, constituído em Polos, que reúnem várias comunidades
representadas por comitês dos moradores/beneficiários/usuários no Conselho Deliberativo. Portanto, o acesso ao representante
comunitário no Comitê é fácil e com custo baixo. A participação na Associação é garantida e assegurada juridicamente. Esse
sistema, contudo, não garante a resolução fácil de conflitos, que podem envolver várias instâncias, dependendo de sua natureza.
Assim, consideramos que Reservas Extrativistas são instituições que representam respostas possíveis à “tragédia dos
bens comuns”, de Hardin. No caso das RESEX Marinhas, reconhecem às comunidades litorâneas, de pescadores artesanais,
seu papel no uso e na conservação dos recursos pesqueiros, que se encontram sob forte pressão de captura e, em muitos contextos, em condições próximas à da Tragédia, haja vista a proporção de espécies sob ameaça, como por exemplo, o caranguejo-uçá
nos manguezais. As RESEX situam-se entre as possibilidades apontadas por Olson e Ostrom para a gestão de recursos naturais
de uso comum, desde que se garanta efetivamente a participação da comunidade. Como se destaca neste texto, a garantia de
participação dos jovens.
A institucionalização de comunidades extrativistas em RESEX
Segundo Luis Henrique Cunha (2002) o “manejo comunitário de recursos naturais” não significa necessariamente que
haverá sustentabilidade, tampouco seu oposto, pois se trata de uma questão que requer a gerência de, pelo menos, três fatores
– “interações complexas entre as características do recurso, o regime de propriedade e outros arranjos institucionais, de um
lado e o contexto socioeconômico, de outro” (CUNHA, 2002, p.54). Portanto, além das características do desenho institucional do
manejo dos recursos, parte fundamental da gestão, o autor chama a atenção para a sensibilidade do arranjo institucional às características do ambiente, natural e social. No primeiro aspecto, sensibilidade às características do recurso, Ostrom valoriza um
elemento importante da instituição, que é a flexibilidade para ajustar e, mesmo, mudar as regras, dada a complexidade inerente
ao ambiente e a seus recursos.
Assim, na confluência de vários movimentos, e na perspectiva de proteger os recursos comuns, ao mesmo tempo promovendo a população que dele faz uso, criaram-se as Reservas Extrativistas, seguindo a linha do desenvolvimento sustentável
que se formou na perspectiva do uso sustentável conforme explica Diegues:
A grande aceitação desse enfoque reside na ideia de que se deve procurar o maior bem para
o benefício da maioria, incluindo as gerações futuras, mediante a redução dos dejetos e da ineficiência na explotação e consumo dos recursos naturais não-renováveis, assegurando a produção
máxima sustentável (DIEGUES, 2008, p. 31).
As Reservas Extrativistas foram criadas no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988, que define em seu Artigo 225
– Sobre o Meio Ambiente – o estabelecimento de condições para o meio ambiente ecologicamente equilibrado, exigindo por
parte do Estado sua defesa e preservação. A partir de então, inicia-se um longo processo para a instituição do Sistema Nacional
de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC aprovado pela Lei 9.985/2000. O SNUC define duas categorias de Unidades
de Conservação- UC: a) as de Proteção Integral e; b) as de Uso Sustentável. As Reservas Extrativistas encontram-se no segundo
grupo, asseguradas no Artigo 4º do SNUC, inciso XIII com o objetivo de “proteger os recursos naturais necessários à subsistên-
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
283
cia de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente”. Assim a Reserva Extrativista foi criada para promover “o desenvolvimento sustentável das populações tradicionais e a
conservação dos recursos naturais, isto é, desenvolvimento socioambiental” (MMA/SBF/GBA, 2010).
A criação de Reservas Extrativistas no Brasil é uma experiência recente que requer estudos, muito particularmente, para
a mudança de cultura política ao se pensar o território em bases sustentáveis. A produção de conhecimento nessa área tem sido
fértil em âmbito local, regional e nacional1. Almeida (2004, p.34) refere-se ao processo social da luta dos seringueiros que resultou
na criação das Reservas Extrativistas.
Esses estudos mostram que a RESEX é resultado de um processo de reivindicação da sociedade civil relacionada à proteção ambiental, mas não somente isso. É também consequência de um movimento mais global de ambientalização, que coloca
em seu cerne de debate a proposta de um novo modo de vida – o desenvolvimento sustentável. “A ambientalização dos movimentos sociais tem como efeito propor um novo esquema e análise da ação, preocupado com o impacto democrático desses
novos movimentos sobre as estruturas políticas” afirma Teisserenc (2010, p.159). A ambientalização permite não somente este
novo pensar, mas uma nova perspectiva de encarar o desenvolvimento a partir do território e dos atores sociais em processos
interdependentes de ambientalização e territorialização conforme discute Teisserenc (2010). A participação dos atores na ação
pública local é imprescindível para a formação dessa nova sociedade sustentável, em um processo de concertação que inclui
pluralidade, diversidade: Estado, Organizações Não-Governamentais, Organizações Sociais, Iniciativa Privada, Movimentos Sociais, Igrejas, entre outros.
Este processo foi se construindo na Amazônia brasileira na convergência de movimentos globais como as ações pela
preservação da natureza, lideradas principalmente por organizações internacionais como a WWF, Greenpeace, entre outros. E,
no âmbito interno, movimentos sociais dos seringueiros, agricultores, pescadores para a preservação de seu território em um
contexto de crescimento econômico sem o equivalente desenvolvimento social que caracterizou a fase do capitalismo industrial
tardio do Brasil, na primeira metade do século XX. Portanto, uma experiência forjada na luta de classes na tensão de um modelo
capitalista e o desejo emancipatório de classes subalternas (ALMEIDA, 2004).
Com efeito, a instituição das Reservas Extrativistas gera novos desafios para aliar a preservação ambiental e social respeitando os modos de vida, a cultura das comunidades envolvidas e a relação com as dinâmicas mais gerais da sociedade. Isso
implica em uma extraordinária mudança de paradigma de gestão do bem público, com a participação dos usuários e moradores
da RESEX nas várias instâncias da gestão do território e com o compartilhamento de poder entre os diversos atores sociais que
compõem o cenário político local. Instituem-se os instrumentos para a cogestão do território, que inclui o Plano de Manejo e as
demais regulamentações de uso sustentável.
A RESEX Marinha de Caeté-Taperaçu: de habitantes a “usuários/beneficiários”
Retomando a análise olsoniana, é possível compreender a complexidade da ação coletiva na preservação dos recursos comuns na institucionalização de comunidades em RESEX. Ele aponta uma das estratégias em processos dessa natureza
quando afirma que “existe, contudo, outra estratégia que os grupos poderão adotar e que é a de convencerem o governo da necessidade que este legisle no sentido de tornar a filiação na organização obrigatória [...] A filiação compulsória é apenas uma das
formas através das quais os governos podem levar ao incentivo da ação coletiva (OLSON, 1998, p. xiii). As Reservas Extrativistas
podem se constituir uma forma estimulada de realizar a ação coletiva no sentido de preservação dos recursos em comum e os
modos de vida das populações, associando a coerção legal advinda do reconhecimento de sua autoridade na jurisdição, com a
participação dos moradores e usuários.
Assim, criou-se, em 2005, a Reserva Extrativista Marinha de Caeté-Taperaçu, no município de Bragança, nordeste do Pará.
Abrange uma área de 42.489,17 hectares, com uma população de 8.000 (oito mil) famílias, das quais 3.000 (três mil) vivem do extrativismo e 5.000 (cinco mil) de atividades agrícolas, envolvendo 52 (cinquenta e duas) comunidades, distribuídas em 8 (oito) polos,
que agregam 42 (quarenta e dois) comitês comunitários2. É classificada como bioma marinho, contudo é constituída por uma floresta
de mangue da qual se extrai principalmente o caranguejo. É formada por comunidades que mantêm relações diversificadas com
os recursos naturais, praticando uma “economia polivalente baseada na agricultura, pesca e coleta” (MANESCHY, 2003, p.134).
1
Mauro Almeida, Alfredo Wagner, Walter Porto Gonçalves, Edna Castro, Maria José Silva-Teisserenc, Pierre Teisserenc, F. Pinton; Maria Cristina Maneschy, Heribert
Schmitz, Tânia Ribeiro, dentre outros.
2
Anotações em trabalho de campo – Reunião do Conselho deliberativo da RESEX.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
284
As comunidades praticam tanto a pesca quanto a agricultura de subsistência. A pesca se realiza nos rios e furos, mas principalmente no mar. A coleta de caranguejo é feita no mangue, de forma rudimentar, com o uso do braço para retirada do caranguejo.
Mesmo antes da instituição do território em RESEX - diante da crescente escassez do caranguejo no mangue - instituíram-se
medidas de ordenamento, na linha proposta por Olson e Ostrom, conforme explica Maneschy:
Ao longo da última década, assiste-se a uma crescente preocupação quanto à sustentabilidade
dos estoques de caranguejos, que estariam sendo comprometidos pela acentuada pressão. No
Pará, em resposta ao problema, instituiu-se desde o ano de 2003 um período de paralisação da
captura de caranguejos, o defeso. A efetiva aplicação dessa medida de ordenamento requer, de
um lado, que as várias categorias sociais envolvidas participem das discussões e proposições,
ou seja, desde os técnicos, pesquisadores, organizações profissionais e comunitárias, até os que
trabalham nos manguezais e nas atividades pré - e pós captura (MANESCHY, 2003, p. 136).
Com a instituição do território em RESEX, um novo conjunto de medidas de ordenamento passou a definir regras de
gestão. A mola mestra desse novo ordenamento é a cogestão envolvendo atores sociais em âmbito local, municipal, estadual
e federal. Usuários e moradores, ou seja, os habitantes tradicionais passam a ser beneficiários da política pública. Esse novo
estatuto lhes confere uma identidade de atores sociais que podem influenciar nos destinos do seu território. Assim, é imprescindível a participação nas instâncias de decisão da RESEX, tendo como referência o Plano de Manejo, que lhes garante o direito
de uso como pescadores artesanais, extrativistas, pequenos agricultores e criadores, processadores de produtos da pesca e
apicultores. Fazem parte também desse conjunto de atores da RESEX os cientistas, as ONGs, políticos e administradores governamentais, todos com assento no Conselho Deliberativo de Gestão.
Esse ordenamento passou a vigorar e influenciar o modo de vida dos habitantes que podem ter motivado a adesão ao
projeto de RESEX por vislumbrarem um meio de ter mais segurança, trabalho e garantia de sobrevivência em um momento de
forte pressão da pesca industrial na região que dificulta o trabalho da pesca no mar (MANESCHY, 2012). Nesse sentido, as reflexões teóricas de Ostrom são pertinentes no estudo da RESEX com a ótica institucionalista – apropriação de recursos comuns,
não privados, em regime de cogestão com comunidades viáveis (MANESCHY, 2011).
Nessa linha de interpretação, a relação se dá com as comunidades e não com indivíduos, comunidade entendida como
grupo em relação ao qual há “noção de pertencimento e identidade comum. Portanto, tende a gerar confiança, expectativas
recíprocas de comportamento e redução de incertezas” (MANESCHY, 2011). Dá-se também em uso restrito a essas comunidades devidamente identificadas em oposição ao acesso livre, acrescentando um elemento a mais para evitar a ocorrência da
“tragédia dos comuns”, de Hardin. A citação de Berkes (et al), a seguir, feita por Maneschy (2011) argumenta nesse sentido: “A
razão pela qual a literatura sobre recursos comuns se refere tanto a gestão baseada na comunidade é o fato de que, quando os
usuários se organizam como uma ‘comunidade’, há tendência a aumentar a probabilidade de sucesso na organização que visa à
ação coletiva” (BERKES et al., p. 250 apud MANESCHY, 2011).
Como recurso para evitar a “tragédia dos comuns” a institucionalização é uma alternativa viável e a transformação dos
habitantes em usuários e beneficiários da RESEX não significa, necessariamente, a mudança na sua identidade como habitante
da comunidade. Talvez essa identidade se torne até mais consciente, com a noção de apropriadores legítimos dos bens comuns,
com a responsabilidade por cuidar e utilizar racionalmente esses recursos comuns. Há, evidentemente, mudanças na forma de
se organizar para gerir o território, como um pescador que também se torna líder comunitário e representante da comunidade
no Conselho Deliberativo, por exemplo.
Atores sociais e ação coletiva na RESEX: relações de poder, conflito e cooperação
Olson compreende ação coletiva como “toda ação de um grupo para a produção ou obtenção de um bem público ou
coletivo”. Nesses termos a RESEX expressa uma ação coletiva.
Considerando que ação coletiva implica a existência de conflito, de relações de poder e de cooperação entre os atores,
esses elementos fazem parte do jogo na medida em que poder, na perspectiva de Crozier & Friedberg significa a possibilidade
disponível de indivíduos ou grupos de influenciar outros indivíduos ou grupos. O poder é uma relação mútua, mas não equilibrada que, no entanto, pode existir apenas se há algo para trocar. Assim, é relacionado a um processo de negociação. Permite
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
285
a um dos atores tirar mais vantagem que o outro, mas nunca entrega totalmente um ao outro (CROZIER; FRIEDBERG, 1993).
Para que haja cooperação é necessário medidas de ordenamento ou um elevado altruísmo muito difícil de ocorrer na prática.
(SABOURIN, 2006).
Na RESEX esse processo não é diferente, conforme observado nas diversas instâncias de poder entre seus atores, que,
com a institucionalização da RESEX, passaram de habitantes a usuários ou beneficiários. Essa nova identidade reflete diferenças
entre si talvez não existentes antes da institucionalização, por exemplo, o Sr. D. S. que antes da institucionalização era pescador,
atualmente é líder comunitário e, imbuído dessa nova identidade, tem relações mais estreitas com o ICMBio e com os próprios
moradores. Isso resulta em agregação de conflitos e simpatia entre os moradores de sua comunidade. Outro exemplo é o Sr. A.
L. que também era pescador e tornou-se funcionário do ICMBio. Nessa nova identidade, é visto por uns como “inimigo” e por
outros como um canal de acesso ao Instituto.
Conseguir que indivíduos cooperem é extremamente difícil, a menos que a própria cultura institucional sustente um tipo
de socialização para a cooperação. Assim, frente a recursos escassos, a cooperação tende a ocorrer por meio de pressão, com
a instituição de normas para a gestão.
A sustentabilidade do território e as gerações atuais: jovens e participação
Os dados disponíveis para identificar os principais atores sociais no território da RESEX em estudo mostram que há ambiguidades, conflitos, concorrências e orquestração nessa teia de relações. Isto porque, conforme Zhouri e Oliveira (2010, p. 444)
“Na sociedade, os sujeitos sociais apresentam-se como portadores de relações e interações diferenciadas com o meio ambiente,
considerado como uma construção ao mesmo tempo simbólica, social e material”. Esse processo envolve uma diversidade de
atores dentre os quais os jovens, destacados nos instrumentos legais3 no processo de assegurar a reprodução material e social
de seu território. Segundo o SNUC, a conservação da natureza implica em uma visão ampliada de preservação e proteção com:
o manejo do uso humano da natureza, compreendendo a preservação, a manutenção, a utilização
sustentável, a restauração e a recuperação do ambiente natural, para que possa produzir o maior
benefício, em bases sustentáveis, às atuais gerações, mantendo seu potencial de satisfazer as
necessidades e aspirações das gerações futuras, e garantindo a sobrevivência dos seres vivos em
geral (Lei 9.985, art. 2º).
Neste estudo identificamos na RESEX pelo menos três grupos de jovens participando de ações coletivas: a) jovens que
têm como objetivo principal a permanência e o avanço nos estudos formais, cujas estratégias são a frequência regular à escola;
b) Outro segmento de jovens se mantém na reprodução social do trabalho de seus pais, na pesca e na captura de caranguejo
notadamente; c) os jovens que participam de ações em projetos de sustentabilidades em curso na RESEX e de grupos ligados
às Igrejas, desenvolvendo ações de solidariedade e estudo religioso. Parte deste último grupo está mais envolvida em participação política, inscrita na Associação Comunitária em sua localidade, na Associação de Moradores e Usuários e no Conselho
Deliberativo.
Se por um lado o jovem é gregário, busca a contestação do estabelecido e a criação de novas práticas socioculturais,
por outro lado está mais vulnerável aos apelos de consumo, ao uso do dinheiro e a fluidez entre o que é mercantilizável ou não.
Segundo Ariès (2006), historicamente, os jovens destacavam-se por seu protagonismo nos processos sociais de seus territórios. Participavam das guerras, defendendo suas cidades e conquistando novos domínios. Já na modernidade, Janine Ribeiro
(2004) discute a emergência desse jovem representando uma força de mudança do estabelecido que nem sempre é canalizada
para um objetivo social e coletivo.
Mais recentemente, a juventude vem sendo representada socialmente por um viés da nossa “civilização dos descartáveis”. De um lado, a expressão engloba aqueles dos quais a sociedade quer se desvencilhar. Mas, tais representações também parecem contradizer a sobrevalorização do novo e, por conseguinte, do jovem, do ser aberto a mudanças, paralelamente
com a desvalorização do velho, do apegado ao passado etc. (MARTÍN-BARBERO, 2008). A partir do marco legal do Estatuto da
Juventude (2013), que garante aos jovens, entre outros, o direito a “valorização e promoção da participação social e política, de
forma direta e por meio de suas representações”, torna-se imprescindível teorizar sobre a participação desses jovens em seus
3
Constituição Federal (1988); SNUC (2000); Estatuto da Juventude (2013).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
286
territórios, e observar em que bases está fundamentada, se em relações horizontais ou, ao contrário, efetivadas em participações
meramente decorativas, enunciativas e manipuladoras conforme discute Giorgi Victor (2010).
Contudo, a partir de diversos estudos realizados na RESEX Marinha de Caeté-Taperaçu4, a baixa participação dos jovens
nas instâncias formais da cogestão não difere significativamente dos demais atores sociais, que dispendem maior parte de seu
tempo no trabalho – a pesca, a captura do caranguejo, a pequena agricultura. Isto significa que participação na cogestão é uma
construção social que deve ser estimulada de modo a garantir paritariamente o poder de influenciar nas decisões sobre a RESEX.
A questão de maior pertinência relacionada com a sustentabilidade e os jovens talvez seja na projeção que os pais e os
próprios jovens estão fazendo em relação as expectativas para o futuro no campo da formação educacional e profissional, conforme se expressa a mãe de um deles:
Eu tenho um filho com dezenove anos [...] O meu sonho é [...] que ele se formasse e vivesse uma
vida boa, sem tiver trabalhando no serviço pesado. Pra ele ter um futuro, um futuro, num é um
futuro do pai dele, como o pai dele teve” (M. J. M., Mulheres do Mangue)
É fato que as condições de trabalho dos pescadores e capturadores de caranguejo e mesmo a manutenção de um
pequeno roçado e o fabrico da farinha são atividades árduas que demandam um esforço físico grande. Para os mais velhos, essa
é uma atividade desafiadora a cada dia que se entra no mar, levando em conta, nos dias atuais, as dificuldades da pesca em alto
mar, demandando mais tempo para obter a mesma quantidade de pescado.
Contudo, para a geração atual, essa forma ainda rudimentar não se mostra atraente e o jovem busca novos caminhos de
sobrevivência seja por meio da escolarização para qualificação em uma profissão que possa lhes garantir sua manutenção, mais
precisamente, fora da RESEX, seja pela busca de emprego de nível médio que garanta um mínimo de sustentabilidade pessoal.
Para a Sra. T.L. dos seus dez filhos, apenas três encontram-se reproduzindo a atividade do pai – pescador. Os demais são
profissionais autônomos fora da RESEX: taxista, empregada doméstica e servente em Bragança e em Belém.
Portanto, é importante estudar a participação dos jovens na cogestão da RESEX de modo a clarificar o processo que
poderá garantir a sustentabilidade do modo de vida dos moradores e usuários na geração atual e nas futuras.
Considerações finais
A RESEX é uma experiência de governança em curso, de cooperação em atividades que reúnem baixos ganhos de
acumulação, mas que podem servir de rica experiência de economia solidária e de projetos autogeridos ou cogeridos. Pode ser
também analisada na perspectiva de projetos que aliam objetivos de rentabilidade com objetivos sociais que incluem a participação, a ajuda mútua, a identidade e o reconhecimento social.
A triangulação – participação, ação coletiva e agentes sociais-, é a essência desse tipo de experiência que inaugura um
novo pensar o território nas suas múltiplas formas de construir coletivamente a vida social frente aos atos de consumo, aos usos
do dinheiro, e as complexas relações da fronteira com o mundo mercantilizado da sociedade capitalista em seu estágio atual.
Nossa análise incide em pensar em um território instituído na sua relação com o exterior, com a forma mercantilizada de
todos os bens materiais. Como pensar uma estrutura de cogestão, de cooperação, de reciprocidade, de ajuda mútua em uma
sociedade que socializa suas crianças para o consumo, para um caminho cada vez mais curto entre o ser humano e a prateleira
dos shoppings? (BAUMAN, 2013). Como pensar a sustentabilidade da pequena agricultura diante do agronegócio em franca
expansão ?
É possível construir ações coletivas de sustentabilidade com a participação de jovens, mulheres, adultos, crianças desde
que se inicie um processo de socialização para a formação de hábitos de cooperação, com ações formativas.
Referências
ALMEIDA, M. W. B. de. Direitos à floresta e ambientalismo: seringueiros e suas lutas. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
v.19, n.55, 2004.
ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. 2ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
4
Cristina Maneschy, Tânia Ribeiro, Fernanda Nummer, Marcelo Vale, Vilson Ferreira, Sebastião Rodrigues, entre outros.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
287
BAUMAN, Z. Sobre educação e juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BERKES, F., et al. Gestão da pesca de pequena escala: diretrizes e métodos alternativos. Rio Grande: Editora FURG,
2006.
BRASIL. Constituição Federal (1988). Brasília, DF, Senado, 1998.
BRASIL. Lei 9.985.2000, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1º da Constituição Federal, institui o SNUC. D.O.U,
Brasília, de 19 de julho de 2000.
BRASIL. Lei 12.852/2013, de 5 de agosto de 2013. Institui o Estatuto da Juventude. D.O.U., Brasília, de 8 de agosto de 2013.
CUNHA, L. H. Manejo Comunitário de Recursos Naturais na Amazônia: arranjos institucionais e mediação externa. –
NAEA/UFPA, Belém, 2002.
DIEGUES, A. C. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: Hucitec. NUPAUB-USP/CEC, 2008.
FRIEDBERG, E. Organização. In: Boudon, R. (Dir.). Tratado de sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995, p.375-412.
FERNANDEZ, A. C. F. Conservacionismo e políticas de desenvolvimento: o legado dos parques. In: ESTERCI, N., SANT’ANA
Jr., H. A., TEISSERENC, M. J. (Orgs.) Territórios Socioambientais em construção na Amazônia brasileira. Rio de Janeiro:
7 Letras, 2014.
HARDIN, G. La tragédia de los bienes comunes. Edição revisada de “La tragédia de los espacios colectivos”, em H. E.
Daly (ed), Economía, ecologia y ética: ensayos hacia uma economia em estado estacionário, 1992, México, Fondo de Cultura
Econômica.
MMA/SBF/GBA-Brasil. Panorama da Conservação dos ecossistemas costeiros e marinhos no Brasil. SBF/GBARP – Brasília: MMA/SBF/GBA, 2010.
MANESCHY, M. C. Coletividades Locais e Usos dos Recursos Naturais: reflexões sobre comunidades pesqueiras. Colóquio
Coletividades Locais, Cultura e Natureza. 28 e 29 de abril de 2011. LEMAC-PPGEDAM/NUMA-UFPA.
MANESCHY, M. C. Socioeconomia: Trabalhadores e Trabalhadoras nos Manguezais. In: FERNANDES, M. E. B. (Orgs.) Os
Manguezais da Costa Norte Brasileira. Vol. II. Maranhão: Fundação Rio Bacanga, 2003.
MANESCHY, M. C., et al. Relatório da pesquisa: Dimensões sociológicas da gestão participativa em territórios de conservação ambiental: estudo de caso no Pará. Belém, nov, 2012.
MARTÍN-BARBERO, J. A mudança na percepção da juventude: sociabilidades, tecnicidades e subjetividades entre os jovens. In:
BORELLI, S. H. S.; FREIRE FILHO, J. Culturas Juvenis no século XXI. (orgs.) São Paulo: EDUC, 2008.
MCKEAN, M. E.; OSTROM, E. Regimes de propriedade comum em florestas: somente uma relíquia do passado? In: Diegues,
A. C.; MOREIRA, A. C. C. (orgs.). Espaços e recursos naturais de uso comum. São Paulo: NUPAUB/LASTROP-USP, 2001.
OLSON, M. A lógica da acção colectiva: bens públicos e teoria dos grupos. Trad. M.D.C. Guerreiro, Oeiras, Celta Editora.
1998. 168p. (original 1965).
SABOURIN, E.; OLIVEIRA, M. N. de.; XAVIER, J. H. V. Lógica familiar e lógica coletiva nos assentamentos de reforma
agrária: o caso do município de Unaí, MG. VII Congresso Latino Americano de Sociologia Rural, Alasru, Quito-Equador, 2006.
SIQUEIRA, D. et al. Mulheres do Mangue: Vida e Trabalho da Mulher em Comunidade da RESEX. Audiovisual. UFPA/PPGCS/
PPBA - Grupo de Estudos Socioambientais Costeiros. Secretaria Especial de Políticas para Mulheres. CNPq, 2013
RIBEIRO, R. J. Política e Juventude: o que fica de energia. In: NOVAES, R.; VANNUCHI, P. (Orgs) Juventude e Sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. Instituto Cidadania. São Paulo. Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
288
TEISSERENC, P. Ambientalização e territorialização: situando o debate no contexto da Amazônia brasileira. Revista Antropolítica, n. 29. Rio de Janeiro, 2010.
VICTOR, G. La participación de niños, niñas y adolescentes en las Américas. Instituto Interamericano del niño, la niña y
adolescentes – IIN/OEA. Montevideo, 2010.
ZHOURI, A.; OLIVEIRA, R. Quando o lugar resiste ao espaço: colonialidade, modernidade e processos de territorialização. In:
ZHOURI, A. & LASCHEFESKI, K. (Orgs). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
289
A CIÊNCIA E AS POPULAÇÕES DA ÁREA DE PROTEÇÃO
AMBIENTAL ILHA DO COMBU, PARÁ
Barros, Benedita da Silva1 & Jardim, Mário Augusto G2
1. Museu Paraense Emílio Goeldi, [email protected] 2. Museu Paraense Emílio Goeldi, [email protected]
Resumo
Este estudo teve como objetivos identificar as pesquisas acadêmicas e científicas realizadas por Instituições de Ensino Superior
(IES) e Instituições de Ciência e Tecnologia (ICT) na Área de Proteção Ambiental Ilha do Combu e avaliar suas contribuições
para as populações locais. A metodologia utilizada foi o levantamento da produção científica das IES e ICT registrada na Plataforma Lattes no período de janeiro/2004 a outubro/2014, analisando ainda a relação entre os pesquisadores e as comunidades
locais. Os resultados mostraram que as pesquisas atenderam aos interesses das IES e ICT que desenvolveram as pesquisas, e
favoreceram principalmente as famílias que vivem da produção e extração de açaí, pela introdução de novas técnicas de manejo
que contribuíram na melhoria da qualidade dos frutos, no aumento da produção na aceitação pelo mercado consumidor.
Palavras-chave: Pesquisa Científica, Ciência, População Local, Unidade de Conservação.
Introdução
De acordo com a lei no 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação
(SNUC) e as Unidades de Conservação (UC), principalmente nos aspectos relacionados às suas diretrizes e aos seus objetivos,
elas proporcionam uma relação interativa entre os cientistas e as populações residentes no interior ou no entorno dessas áreas
protegidas (BENSUSAN, 2006), que detêm os saberes que auxiliam o conhecimento dos ecossistemas (SANTANA et al., 2012).
Segundo Moreira (2007), “o conhecimento tradicional é a forma mais antiga de produção de teorias, experiências, regras e conceitos, isto é, a mais ancestral forma de produzir ciência”.
Neste sentido, Diegues (2010) enfatiza a importância dos saberes das populações locais, no processo de conservação
ambiental, tendo em vista que a biodiversidade não é simplesmente um produto da natureza, mas, em muitos casos, é um
produto da ação das sociedades tradicionais.
É consenso entre os mais diversos segmentos (político, econômico, científico, dentre outros), em vários países do mundo,
inclusive no Brasil, quanto à importância estratégica das áreas protegidas como instrumentos de conservação da biodiversidade
(PEREIRA; DIEGUES, 2010). Também há concordância no entendimento de que as populações tradicionais locais têm um papel
importante na proteção dessas áreas naturais protegidas porque mantêm seus modos de vida particulares de convivência em
equilíbrio com a natureza (PEREIRA; DIEGUES, 2010).
A Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) não só reconhece a relevância como recomenda a proteção dos
conhecimentos dessas populações para a conservação da diversidade biológica. Do mesmo modo, a Lei nº 9.985/2000, que
instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), constitui-se em um marco na valorização dos conhecimentos
das populações tradicionais e na conservação da biodiversidade, por duas razões: i) reconhece e admite a existência de populações tradicionais em várias UC, impondo o respeito aos seus direitos de cidadania e a percepção dessas comunidades como
possíveis e importantes aliadas para a conservação da natureza; ii) no processo de criação, planejamento e gestão das UC asseguram a efetiva participação das populações locais.
As UC constituem, portanto, um campo aberto para a ciência moderna, que ainda tem muito a desvendar sobre a biodiversidade, a partir da contribuição dos conhecimentos tradicionais e, por que não dizer, das ciências tradicionais1, tanto no
que diz respeito à conservação dos recursos naturais, quanto para o aproveitamento econômico desses recursos no campo da
biotecnologia (CUNHA, 2007; ZAMUDIO, 2007).
1
“Há pelo menos tantos regimes de conhecimento tradicional quanto existem povos. [...] Pois enquanto existe, por hipótese, um regime único para o conhecimento
científico, há uma legião de regimes de saberes tradicionais” (CUNHA, 2007).
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
291
Bezerra (2007), Santos (2014) e Souza et al. (2014) afirmam que a ciência produzida com base nas pesquisas realizadas
em UC pelas Instituições de Ensino Superior (IES) e Instituições de Ciência e Tecnologia (ICT), em sua grande maioria têm no
conhecimento tradicional das populações locais sua principal fonte de informação. As pesquisas realizadas pelos pesquisadores,
professores e estudantes vinculados às IES e ICT favorecem o estreitamento da relação entre a ciência e as populações locais
em Unidades de Conservação, na medida em que reconhecem nos conhecimentos tradicionais maiores possibilidades de esclarecimento da realidade estudada (SAYAGO; BURSZTYN, 2006). Essas informações são relevantes para a formação acadêmica e reconhecimento profissional dos pesquisadores, docentes e discentes, assim como para as Universidades, Instituições de
Pesquisa e, consequentemente, para a evolução da ciência moderna. Porém, em relação aos provedores e as populações locais,
essa regra não se aplica, visto que “os conhecimentos tradicionais são habitualmente transformados em objetos de pesquisa,
como realidades a serem entendidas e saberes a serem apreendidos”, não sendo reconhecidos nem validados como conhecimento científico (SAYAGO; BURSZTYN, 2006; CUNHA, 2007). Por outro lado, a produção acadêmica e científica realizada nas UC
também pode contribuir para embasar os formuladores de políticas públicas para o meio ambiente, com reflexos na conservação
e gestão da biodiversidade in situ, ou seja, em Unidades de Conservação (ROSA; CARNEIRO, 2010; CARNEIRO et al., 2014).
Dados do Ministério de Educação e Cultura (MEC) informam que o Estado conta com 41 IES (cinco federais, uma estadual e 35 privadas) e duas ICT federais (MEC, 2015). O estado do Pará sedia 78 Unidades de Conservação: 55 federais, 21
estaduais e suas municipais sem Plano de Manejo (MMA, 2015), o que configura um cenário bastante atrativo para a realização
de pesquisas científicas e acadêmicas pelas IES e ICT, principalmente as localizadas no estado do Pará.
Esta pesquisa teve como objetivo identificar as pesquisas acadêmicas e científicas produzidas pelas IES e ICT localizadas no estado do Pará, no período de 2004 a 2014, na Área de Proteção Ambiental Ilha do Combu, bem como avaliar as suas
contribuições para a população local, a partir da visão das próprias comunidades. A escolha desta APA, assim como o período
para a realização do estudo, deve-se à sua localização próxima às principais IES e ICT sediadas na cidade de Belém, capital do
estado do Pará, aspecto que favorece a realização de pesquisas acadêmicas e científicas por essas instituições. Muito embora
esta UC tenha sido criada em 1997, as pesquisas já eram realizadas nessa área, desde a década de 1980, especialmente pelo
Museu Paraense Emílio Goeldi. No entanto, a partir da instituição do Sistema de Unidades de Conservação (SNUC), em 2000, os
critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação foram uniformizados, além de incentivar e
orientar a pesquisa acadêmica e científica nessas áreas protegidas (CASTRO, 2004).
Material e Métodos
Área de estudo
A pesquisa foi realizada na Área de Proteção Ambiental (APA) Ilha do Combu, localizada a 1,5 km ao sul da cidade de
Belém, no estado do Pará, circundada ao norte pelas margens do rio Guamá, ao sul pelo furo São Benedito, a leste pelo Furo
da Paciência e a oeste pela baía do Guajará. Criada pela Lei Estadual nº 6.083, de 13 de novembro de 1997, com uma área de
aproximadamente 3.100,34 ha, essa UC tem o objetivo de “proteger e restaurar a diversidade biológica, os recursos genéticos e
as espécies ameaçadas de extinção, bem como promover o desenvolvimento sustentável, através do ordenamento dos recursos
naturais e da melhoria da qualidade de vida da comunidade local”. A APA é gerenciada por um Conselho Gestor, criado pela
Portaria 2.916, de junho de 2006, e o seu Plano de Manejo foi aprovado pela Portaria 2100, de 29 de agosto de 2012. Atualmente
a gestão desta UC é compartilhada com o Conselho Deliberativo da APA, criado pela Portaria nº 1.945, de 14 de outubro de 2008.
A população residente é de aproximadamente 200 famílias ribeirinhas, distribuídas em quatro comunidades: Combu,
Piriquitaquara, Beira Rio e São Benedito. As principais atividades econômicas dessas famílias são a pesca artesanal e o extrativismo dos recursos da floresta, como a pupunha (Bactris gasipaes Kunth), cacau (Theobroma cacao L.), cupuaçu (Theobroma
grandiflorum (Willd. ex Spreng.) K. Schum.), andiroba (Carapa guianensis Aubl.) e, principalmente, do açaizeiro (Euterpe
oleracea Mart.), além de algumas plantas medicinais. A predominância do açaizeiro é observada em toda a extensão da ilha
(JARDIM, 2009).
A APA é configurada por um “ecossistema típico de várzea de grande beleza cênica, com paisagem florestal exuberante,
formada por um mosaico peculiar de espécies florestais, além de seus cursos d’água, como os rios Bijogó, Guamá e Acará, o
furo da Paciência e os igarapés do Combu e do Piriquitaquara” e, devido a estas características, é propícia e procurada pela
população para atividades lazer nos finais de semana, incluindo a contemplação da natureza, geralmente realizada por meio de
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
292
caminhadas e passeios de barco (SEMMA, 2015).
Pelas características das habitações dos ribeirinhos, além da beleza e da riqueza dos recursos naturais, a APA é incluída
em roteiros turísticos fluviais de curta duração, ofertados por algumas agências de turismo de Belém. Diversos moradores da
APA também utilizam suas próprias embarcações para fazer a travessia de turistas ou mesmo moradores de Belém que pretendem visitar a ilha. Nas margens do rio encontram-se diversos restaurantes que oferecem aos visitantes pratos típicos da culinária
regional e outros atrativos como trilhas e produtos artesanais.
Levantamento da Produção científica pelas IES e ICT
Neste artigo apresenta-se o levantamento da produção científica realizada pelas IES e ICT na APA Ilha do Combu registrada na Plataforma Lattes no período de janeiro de 2004 a outubro de 2014. A escolha desta fonte decorre da sua importância
estratégica pela integração das bases de dados de Currículos, de Grupos de pesquisa e de Instituições em um único Sistema de
Informações e pelo padrão nacional no registro da vida acadêmica (pregressa e atual) dos estudantes e pesquisadores do país.
A coleta dos dados na Base Lattes do MCTI/CNPq teve como parâmetros os seguintes indicadores: 1) Nome da Unidade
de Conservação; 2: Nome do Pesquisador/Docente/Discente; e 3) Nome das Instituições de Ensino Superior (IES) e Instituições
de Ciência e Tecnologia (ICT) do estado do Pará. Os procedimentos para a obtenção dos dados foram os seguintes: 1) Seleção
da opção “buscar currículo” na Plataforma Lattes; 2) Feita a busca pelo nome da Unidade de Conservação, selecionando os
elementos “Assunto”, “Doutores” e “Demais pesquisadores (Mestres, Graduados, Estudantes, Técnicos, etc.)”, “Brasileira e Estrangeira” de “todos os países”; 3) Obtenção da produção acadêmica científica realizada em cada uma das UC pesquisadas; 4)
Triagem pelo nome do pesquisador, docente e discente e a respectiva vinculação da produção às IES e ICT.
Foi considerada somente a produção acadêmica e científica publicada em livros, capítulos de livros, artigos científicos,
teses, dissertações, monografias de especialização e monografias de graduação no período de janeiro de 2004 a outubro de
2014, realizada pelas IES e ICT na Unidades de Conservação, objeto do estudo. Os dados foram tabulados em planilhas do
Programa Excel, considerando cada uma das Unidades de Conservação, a vinculação institucional do(s) autor(es), a área do conhecimento (grande área, área e subárea), de acordo com a Coordenação de Aperfeiçoamento para o Ensino Superior (CAPES),
para posteriormente proceder à elaboração de tabelas e gráficos.
A relação dos pesquisadores com a UC e a contribuição das pesquisas
na visão da população local
Primeiramente foi solicitada a autorização para acesso à Unidade de Conservação junto a Secretaria Estadual de Meio
Ambiente (SEMA). Em seguida foi realizado o levantamento das comunidades residentes na APA, bem como a forma de organização comunitária para a definição dos locais e do número de entrevistados. A pesquisa foi esclarecida por meio da leitura dos
objetivos, informações adicionais e assinaturas do Termo de Consentimento Prévio com cada um dos entrevistados.
Os dados foram coletados no período de outubro a novembro de 2014, por meio da aplicação de questionários aos líderes
comunitários, presidentes de associações comunitárias, conselheiros e interlocutores-chave de todas as quatro comunidades
localizadas na APA. O questionário constou das seguintes perguntas: 1) Você sabe se são realizados projetos de pesquisa nesta
UC, desde quando, e de onde vêm os pesquisadores?; 2) Alguém da comunidade participa ou colabora com o pesquisador na
realização da pesquisa?; 3) As pesquisas têm trazido benefícios para a população da comunidade? Quais?; 4) O que mudou na
vida da população depois que as pesquisas começaram a ser realizadas na APA?; 5) Que outros benefícios as pesquisas feitas
na APA podem trazer para a sua população?
As respostas obtidas foram gravadas com a autorização dos entrevistados, e posteriormente transcritas e tabuladas em
planilhas Excel, e submetidas à análise descritiva, usando frequência absoluta para as respostas obtidas em cada uma das
questões. Para contextualizar e explicar os resultados, foram incluídos/transcritos alguns depoimentos dos entrevistados identificados com a função que representam na comunidade (presidente de associação/líder comunitário/interlocutor-chave).
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
293
Resultados
A Produção científica realizada pelas IES e ICT
Para esta pesquisa foram registradas, no estado do Pará, 41 Instituições de Ensino Superior e duas Instituições de Ciência
e Tecnologia. Porém, de acordo com o levantamento da produção acadêmica e científica encontrada no período de janeiro de
2004 a outubro de 2014, revela que somente sete realizaram pesquisas na Unidade de Conservação estudada. São elas: Museu
Paraense Emílio Goeldi (MPEG), Universidade Federal do Para (UFPA), Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), Centro
Universitário do Pará (CESUPA), Embrapa Amazônia Oriental, Universidade da Amazônia (UNAMA) e Instituto Federal do Pará
(IFPA).
No total, os pesquisadores, professores e alunos vinculados a essas 7 Instituições contabilizaram no período uma
produção acadêmica e científica composta por 41 registros divididos em: 1 livro, 13 capítulos de livros, 14 Artigos Científicos, 8
Dissertações de Mestrado, 5 Monografias (1 especialização e 4 trabalhos de conclusão de curso (Tabela 1).
A expressividade da produção acadêmica e científica contabilizada no ano de 2009 para a UC foi decorrente do lançamento do livro “Diversidade biológica das áreas de proteção ambiental ilhas do Combu e Algodoal-Maiandeua”, no mesmo ano,
com 13 (32%) trabalhos publicados em capítulos de livros, que correspondeu a 81% dos registros contabilizados no período (16).
Registre-se que os 13 trabalhos são de autoria de pesquisadores e estudantes do MPEG, CESUPA, UFRA e IFPA e estão relacionados a área de botânica, liderada, neste caso, pelo MPEG. Embora os autores sejam de instituições diferentes, predominam
os autores vinculados ao MPEG, sejam pesquisadores do quadro, bolsistas ou outros colaboradores. Do total de 41 autores, 25
são provenientes do CESUPA (22 estudantes de graduação e 03 Professores); 13 do MPEG (10 bolsistas de Pós-Graduação, 02
pesquisadores e 01 colaborador); 01 Professor do IFPA, 01 doutorando da UFRA e 01 técnico da EMATER.
Em 2013, o destaque foi para os artigos científicos com um registro de 6 trabalhos publicados, que correspondem a 45 %
dos 14 (34%) dos registros encontrados no período. Esses artigos são de autoria de pesquisadores, professores e alunos vinculados ao MPEG, UFRA, UFPA e EMBRAPA, e foram publicados em diversos periódicos científicos nacionais (12) e internacionais
(2), estando relacionados a linhas de pesquisa da área de botânica da Coordenação de Botânica do MPEG. Foram produzidas
oito (20%) Dissertações de Mestrado por discentes da UFPA (4) e da UFRA (4), com 50% cada; cinco (12%) monografias pela
UNAMA (1), UFRA (1), CESUPA (2) e (20%) pela UFPA (1).
A análise da produção científica e acadêmica realizada pelas IES e ICT, segundo a tabela de classificação por área do
conhecimento da CAPES, apresentou o seguinte resultado: A Grande Área Ciências da Vida, Área Ciências Biológicas e Subárea
Biodiversidade corresponderam, respectivamente, a 35 (85%) registros; Grande área Ciências Exatas, Tecnológicas e Multidisciplinares, Área Multidisciplinar e Ciências Ambientais corresponderam, respectivamente, a 5 (12%) registros; e, por fim, Grande
Área Humanidades, Área Ciências Sociais Aplicadas, Subárea Administração, Ciências Contábeis e Turismo, corresponderam,
respectivamente, a 1 (3%) (Tabela 2).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
294
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
295
Os moradores, os pesquisadores e as pesquisas
As quatro comunidades residentes na APA Ilha do Combu contam com lideranças comunitárias, mas somente três interagem com os pesquisadores e com o órgão gestor da APA, porque fazem parte do Conselho Gestor. Os interlocutores-chave são
os moradores que mais se aproximam ou se relacionam com os pesquisadores, pelo fato de conhecerem com mais riqueza de
detalhes as características e peculiaridades da biodiversidade e da população local e, por essa razão, colaboram/acompanham
os pesquisadores fornecendo informações de interesse para as suas pesquisas.
Foram aplicados questionários para 2 conselheiros, 4 líderes comunitários e 3interlocutores-chave, perfazendo um total
de 9 entrevistados representantes das comunidades do Combu (4), Piriquitaquara (2), Beira Rio (1) e São Benedito (2). Embora a
maioria dos entrevistados (8) tenha conhecimento que as pesquisas são realizadas por profissionais de Instituições como o MPEG,
a UFPA, a UFRA, a EMBRAPA e o ICMBio, não há consenso sobre o período em que as pesquisas foram iniciadas nessa Unidade
de Conservação. Como não há uma regra estabelecida pelos moradores nem pelo Conselho Deliberativo da APA sobre a quem
os pesquisadores devem se dirigir antes de iniciar suas pesquisas, visto que esses contatos são feitos por intermédio de diversas
interlocutores, tais como: líderes comunitários, moradores que disponham de informações que possam contribuir na pesquisa,
agentes comunitários de saúde; ou não procuram ninguém, e “vão entrando e fazendo a pesquisa sem dar satisfação”. Por esta
razão, alguns entrevistados se mostram insatisfeitos com as pesquisas na APA, inclusive porque poucos pesquisadores apresentam seus projetos para a comunidade antes de iniciar a pesquisa, como também são poucos os que retornam com os resultados,
deixando as comunidades desacreditadas. Em qualquer um dos casos, quando os pesquisadores retornam, procuram os seus
próprios interlocutores ou os líderes comunitários para entregar os livros, CDs com informações sobre o projeto de pesquisa
ou os seus resultados. No entanto, raramente são repassadas aos demais moradores, pela dificuldade de reunir a comunidade.
[...] muitas vezes o pesquisador até chega, ele quer fazer direito, quer procurar a comunidade,
quer esclarecer, mas muitas vezes a própria comunidade, ela se fecha a isso, [...] é a própria
dificuldade dela ir, ah não vai sair da casa dela por que vai perder tempo, então é um trabalho, é
uma coisa muito séria que a gente tem dentro da comunidade, infelizmente” (interlocutor chave
da comunidade do Combu).
Por outro lado, a maioria dos entrevistados (7) e alguns moradores são convidados a participar ou colaborar na pesquisa
prestando informações sobre a flora, fauna e outras de interesse do pesquisador. Segundo uma conselheira da APA Combu, os
moradores auxiliam o pesquisador
[...] mostrando o que tem, aquilo que ele tem vontade de conhecer ou desenvolver um trabalho
em cima daquilo que ele tá procurando. Como uma vez chegou umas pessoas pra procurar essas
mata fechada pra colher aquele limo, eles não sabiam o que significava aquele limo [...], então pra
ter esse limo tem que ter uma área fechada, onde fique meio a umidade, ne? Aí eles coletaram,
depois que fomos ver que daquele limo é que nasce o croto, aqueles crotozinho, não sei como
é que da o nome, que fica segurando na árvore” (Conselheira - comunidade de Piriquitaquara)
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
296
As pesquisas realizadas na APA abordam questões sobre o extrativismo e manejo de açaí e do cacau; botânica, água,
solo. Algumas estão relacionadas às atividades econômicas desenvolvidas pelos moradores, principalmente as que envolvem
manejo de recursos de interesse dos moradores. Alguns entrevistados (6) afirmam que essas pesquisas trouxeram benefícios
para algumas famílias, principalmente aquelas que participaram da pesquisa, porque introduziu novas técnicas para o manejo
do açaizeiro e do cacaueiro, contribuindo para a melhoria da qualidade dos frutos, aumento da produção e, consequentemente,
melhor aceitação no mercado. Porém, outros entrevistados se mostram insatisfeitos, mesmo assim, contam com os benefícios
das pesquisas, inclusive para valorizar a comunidade.
[...] as pesquisas deveriam ser feitas, mas retornar pra comunidade os resultados, né? e não só
isso, tentar implantar os resultados dentro da comunidade, né? Pra comunidade se sentir valorizada, né? Porque assim a comunidade se sente muito explorada, muito laboratório e nada concreto fica pra comunidade, poucas coisa concreta ficam pra comunidade. Então, eu acho que
não só deveria fazer a pesquisa, mas ver os resultados e, se forem benéficos os resultados, que
sejam implantados dentro da própria comunidade (Interlocutor chave - comunidade do Combu).
[...] eu acho que se fizesse um projeto de plantio [...] como tem na Embrapa, que o açaí dá baixinho [...] aí podia ser, que aqui o açaí é esse mesmo [...]. O resultado é esse aí, não tem, não
dá resultado nenhum por que é isso, só pesquisa pro trabalho deles mesmo. (Interlocutor chave
- comunidade do Combu)
A única pesquisa que teve efeito, que mudou da água pro vinho a questão dos ribeirinhos aqui,
pode até negarem, fazerem o que quiserem, mas foi a partir daí que começou a acontecer as situações, foi a pesquisa do Mário Jardim aqui, com a questão do manejo do açaí, só! Daí [...], não tem
mais nada que mudou, não muda mais nada. Só chegam, pesquisam lá, paga, entendeu? e pronto,
não tem resultado de nada, de nada não tem resultado (Conselheiro - comunidade de Beira Rio).
Mesmo diante dos conflitos e descrenças, esperam que as pesquisas sejam capazes de influenciar políticas públicas
que possibilite implantar projetos de melhoria da qualidade da água, extrativismo do açaí, cacau e outros que gerem emprego
e renda para a população, principalmente as mulheres, que encontram dificuldades para deixar suas residências e procurar
trabalho em Belém. Na APA ocorrem diversos problemas que comprometem a qualidade de vida da população. Dentre estes
se destacam os ambientais (assoreamento, poluição do solo e da água, ameaça de animais peçonhentos, lixo, dentre outros);
socioeconômicos (falta de oportunidade de emprego e de renda, transporte, uso de drogas, etc.); conflitos entre os moradores
por disputas de espaço e questões fundiárias; e ainda dificuldades de relacionamento com o órgão gestor da UC.
O levantamento da produção acadêmica e científica registrada na Base Lattes do CNPq revelou que na APA Ilha do
Combu foram realizados, dentre outros, estudos na área da etnobotânica, demonstrando a existência de uma grande variedade
de espécies de plantas utilizadas pelos moradores para fins alimentares, principalmente o açaí (Euterpe oleracea Mart.), o
cacau (Theobroma cacao L.), a bananeira (Musa paradisiaca L.); medicinais, tais como a arruda (Ruta graveolens L.), o elixir
paregórico (Piper calosum L.), dentre outras. Foram também publicados resultados de diversas pesquisas sobre a diversidade
biológica existente na APA, que permitem uma ampla avaliação sobre a riqueza florística disponível UC, inclusive sobre a variedade de espécies de bromélias, especialmente da família das epífitas.
Discussão
A produção acadêmica e científica da APA Ilha do Combu no período estudado envolveu o esforço individual em parcerias de IES públicas (UFPA, UFRA e IFPA) e privadas (UNAMA, CESUPA) e ICTs (MPEG e EMBRABA), que registrou um volume
de conhecimento materializado por meio de livros, capítulos de livros, artigos, dissertações e monografias que estão armazenados na base de dados Lattes do CNPq. Esse conhecimento pode ser acessado livremente por qualquer interessado, pessoas
físicas ou jurídicas de qualquer segmento público ou privado para objetivos variados, inclusive em favor da própria APA ou da
população nela residente. De acordo com Rosa & Carneiro (2010), “O acesso ao conhecimento científico é um meio importante
para informar e validar posições na formulação de políticas públicas”.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
297
A implementação de uma UC requer, além da criação do Conselho Gestor2, a operacionalizado do seu Plano de Manejo3,
tendo em vista tratar-se de um documento técnico que objetiva o cumprimento do objetivo da Unidade, a elaboração desse instrumento implica em dispor de conhecimentos técnicos e científicos sobre a UC. Nessa direção, o SNUC incentiva a realização de
pesquisa científica, estudos e monitoramento ambiental, e para dar efetividade a este propósito prevê que haja articulação entre
os executores das UC e a comunidade acadêmica e científica (CASTRO; PISCIOTTA, 2012), tendo em conta que as Unidades de
Conservação são componentes essenciais para a conservação da biodiversidade e desempenham um importante papel para o
bem-estar da sociedade (BANZATO et al., 2012).
Corroborando com esses autores, Medeiros (2006) orienta que o plano de gestão das UC deve estar alinhado com os objetivos almejados na Convenção Sobre a Diversidade Biológica, de conservar, usar de forma sustentável e repartir com justiça e
equidade os benefícios derivados da utilização dos recursos da biodiversidade, que envolve três dimensões: científica (conhecer
a biodiversidade), política (gerir a biodiversidade) e social (repartir os benefícios).
Os pesquisadores e professores das instituições que desenvolveram pesquisas na APA o fizeram para atender aos seus
próprios interesses, principalmente os programas de pós-graduação dos quais fazem parte. Os resultados beneficiam o corpo
docente e discentes dessas Instituições seja para efeito de titulação acadêmica, seja para alcançar metas de publicação ou orientação. As pesquisas ocorrem ao acaso, visto que as instituições não mantém qualquer relação de parceria com o órgão gestor
da APA que favoreça a realização de estudos com a intenção de desenvolver um plano de ação em favor da própria UC, que
não possui Plano de Manejo e, de acordo com Cirilo (2013), no seu interior ocorrem diversos problemas que comprometem a
qualidade de vida da população. Dentre estes, destacam-se os ambientais (assoreamento, poluição do solo e da água, ameaça
de animais peçonhentos, lixo, dentre outros); socioeconômicos (falta de oportunidade de emprego e de renda, transporte, uso
de drogas, etc.); os conflitos entre os moradores por disputas de espaço e questões fundiárias e ainda de dificuldade de relacionamento com o órgão gestor da UC (NASCIMENTO et al., 2010).
As pesquisas acadêmicas e científicas, principalmente sobre a temática da biodiversidade, são realizadas na área da APA
Ilha do Combu muito antes da sua criação, em 1997 (JARDIM et al., 2005). Estudos etnobotânicos revelam a existência de uma
enorme variedade de espécies de plantas bastante utilizadas pelos moradores para fins alimentares, medicinais, comerciais,
dentre outros (JARDIM et al., 2005). As pesquisas sobre a diversidade biológica da APA permitem uma ampla avaliação sobre a
riqueza florística existente nessa UC (JARDIM, 2009), inclusive sobre a variedade de espécies de bromélias, especialmente da
família das epífitas que, além de servirem de hábitat para outras espécies florísticas e faunísticas (QUARESMA; JARDIM, 2013),
têm grande aceitação no segmento do comércio ornamental. No entanto, afora os benefícios decorrentes do esforço direto dos
pesquisadores, como a introdução de novas técnicas de manejo do açaizeiro, que contribuíram para a melhoria da qualidade
dos frutos, aumento da produção e, consequentemente, melhor aceitação no mercado, beneficiando algumas famílias que vivem
da extração desse recurso, esse conhecimento não tem se voltado para o interesse das populações. Além da ausência do Plano
de Manejo, não há nenhum outro mecanismo de política pública que preveja o retorno do conhecimento produzido na APA em
benefício da população local, por meio de programas e projetos com reflexos diretos na gestão e conservação da biodiversidade.
Conclusão
A produção acadêmica e científica decorrente dos estudos e pesquisas realizadas pelas IES e ICT localizadas no estado
do Para na APA Ilha do Combu atendeu aos interesses das próprias instituições. Afora os benefícios decorrentes do esforço
direto dos pesquisadores que atingiu algumas famílias, principalmente as que vivem da produção e extração de açaí, como a introdução de novas técnicas de manejo que contribuíram para a melhoria da qualidade dos frutos, aumento da produção e melhor
aceitação no mercado, esse conhecimento não tem se voltado para o interesse das populações.
2
As categorias de Unidade de Conservação poderão ter, conforme a Lei nº 9.985, de 2000, Conselho Consultivo ou Deliberativo, que serão presididos pelo chefe da
Unidade de Conservação, o qual designará os demais conselheiros indicados pelos setores a serem representados (Decreto no 4.340/2002, Art. 17).
3 Documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma Unidade de Conservação, estabelece o seu zoneamento e as normas que devem
presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade (Lei no. 9.985/2000, art. 2º,
Inciso XVII).
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
298
Referências
BANZATO, B. M. et al. Análise ambiental de unidades de conservação através dos métodos swot e gut: O caso do parque estadual restinga de Bertioga. Revista Brasileira de Gestão Ambiental, v. 6, n.1, p. 38-49, 2012.
BENSUSAN, N. Conservação da Biodiversidade em áreas protegidas. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
BEZERRA, M.G.F. Cientistas, visitantes e guias nativos na construção das representações de ciência e paisagem na
Floresta Nacional de Caxiuanã. 2007. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Pará, Belém, 2007.
CARNEIRO, M.J. et al. Para quem fala a ciência? Limites e possibilidade da interface entre ciência e política. In: VIEIRA, I.C. et
al. (Orgs.). Ambiente e sociedade na Amazônia: uma abordagem interdisciplinar. 1 ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2014,
pp. 101-124.
CASTRO, P.F.D. Ciência e Gestão em Unidades de Conservação: o caso do Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira
(PETAR). 2004. Dissertação (Mestrado). UNICAMP, Campinas, 2004.
CASTRO, P.F.D; PISCIOTTA, K.R. Vocação entre a ciência e as áreas naturais protegidas no Brasil. In: LIMA, G.S. et al. (Org.)
Gestão, Pesquisa e Conservação em Áreas Protegidas. 1 Ed. Viçosa: Editora UFV, 2012.
CIRILO, B. A. O processo de criação e implementação de unidades de conservação e sua influência na gestão local:
o estudo de caso da Área de Proteção Ambiental da Ilha do Combu, em Belém/PA. 2013. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Pará, Belém, 2013.
CUNHA, M.C. Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico. Revista USP, n. 75, p.76-84, 2007
DIEGUES, A.C. A construção da Etno-Conservação no Brasil: o desafio de novos conhecimentos e novas práticas
para a conservação. 2010. Disponível em <http://www.usp.br/nupaub/manausetnocon.pdf> Acesso em 15 agosto 2014.
JARDIM, M.A.G. Diversidade biológica das áreas de proteção ambiental Ilha Combu e Algodoal-Maiandeua. 1 ed.
Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi - Coleção Adolpho Ducke, Belém, MPEG, 2009.
JARDIM M.A.G. et al. Levantamento etnobotânico de plantas medicinais, alimentares e tóxicas da Ilha do Combu, Município de
Belém, Estado do Pará, Brasil. Revista Brasileira de Farmácia, n. 86, v. 1, p. 21-30, 2005.
QUARESMA, A.; JARDIM, M.A.G. Fitossociologia e Distribuição Espacial de Bromélias epifíticas em uma Floresta de Várzea
Estuarina Amazônica. Revista Brasileira de Biociências, v. 11, n. 1, p. 1-6, 2013.
MEC. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/> Acesso em 15 junho 2015.
MEDEIROS, R. Evolução das tipologias e categorias de áreas protegidas no Brasil. Ambiente & Sociedade, v. 9, n.1, p. 41-64,
2006.
MOREIRA, E. Conhecimento Tradicional e a Proteção. T&C Amazônia, v. 5, n. 11, pp. 33-41, 2007.
MMA. MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Disponível em <http://www.mma.gov.br/areas-protegidas/cadastro-nacional-deUC> Acesso em 15 junho 2015.
NASCIMENTO, N.S. et al. I Congresso Brasileiro de Gestão Ambiental. Bauru: BEAS – Instituto Brasileiro de Estudos Ambientais, 2010.
PEREIRA, B.E.; DIEGUES, A.C. Conhecimento de populações tradicionais como possibilidade de conservação da natureza: uma
reflexão sobre a perspectiva da etnoconservação. Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 22, p.37-50, 2010.
ROSA, T.S.; CARNEIRO, M.J. O acesso livre à produção acadêmica como subsidio para políticas públicas: um exercício sobre o
Banco de Teses da Capes. História, Ciências, Saúde, v. 17, n. 4, p. 955-974, 2010.
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
299
SANTANA C.G.; SILVA, C.J; MODESTO, M.A. O Saber Local no Cenário da Conservação Ambiental. In: Conflitos Ambientais
e Territoriais: Pesca e Petróleo no litoral brasileiro. I Seminário Nacional e VI Regional do GEOPLAN – Grupo de Pesquisa
em Geoecologia e Planejamento Territorial, São Cristóvão, 2012.
SAYAGO, D.; BURSZTYN, M. A tradição da Ciência e a Ciência da Tradição: Relações entre Valor, Conhecimento e Ambiente. In:
GARAY, I.; BECKER, B.K. Dimensões Humanas da Biodiversidade: O desafio de novas relações sociedade-natureza no
século XXI. Petrópolis: Editora Vozes, 2006.
SANTOS, N.M. et al. Saberes tradicionais em uma unidade de conservação localizada em ambiente periurbano de várzea: etnobiologia e andirobeira (Carapa guianensis Aublet). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 9, n.1,
p. 93-108, 2014.
SOUZA, D. G. et al. Estrutura de uma população manejada de castanheira (Bertholltia excelsa) na Floresta Nacional de Caxiuanã,
Para. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Série Ciências Naturais, v.9, n.2, p.353-370, 2014.
SEMMA. SECRETARIA DE ESTADO DE MEIO AMBIENTE DO PARÁ. Disponível em <http://www.sema.pa.gov.br/diretorias/
areas-protegidas> Acesso em 4 julho 2014.
ZAMUDIO, T. Conhecimento Tradicional em El Ámbito Internacional. In: BARROS, B.S. et al. (Orgs.). Proteção aos conhecimentos das sociedades tradicionais: I Seminário Internacional de Proteção aos Conhecimentos das Sociedades Tradicionais.
Belém: MPEG-CESUPA, 2007
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
300
SOBRE A SUSTENTABILIDADE DA QUALIDADE DE VIDA: O QUÊ UMA
COMUNIDADE TRADICIONAL AÇORIANA, INSTITUÍDA EM UMA
ILHA DO SUL DO BRASIL, TEM A NOS DIZER SOBRE ISSO?
Wermuth, Gilvana da Silva Machado1 & Kuhnen, Ariane2
1. Doutoranda no PPGP Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected]; 2. PPGP
Universidade Federal de Santa Catarina, [email protected]
Resumo
A sustentabilidade da qualidade de vida envolve a sinergia entre as dimensões ambiental, social e econômica do desenvolvimento. Nos países em desenvolvimento, o ecossistema natural tem sido conservado por populações tradicionais. Em uma comunidade tradicional açoriana, se investigou a sustentabilidade da qualidade de vida no local. Foram acessadas individualmente
12 pessoas autóctones, provenientes de 4 subfamílias de uma família extensa, representantes de três gerações consecutivas,
que foram questionados sobre recursos naturais, práticas sociais e estilo de vida local a partir de mapeamento de transectos
dos caminhos percorridos no cotidiano. Como resultado obteve-se uma análise prospectiva da qualidade de vida no local que
aponta para a insustentabilidade relacionada às intervenções ambientais ocorridas no passado, em área de uso comunal, com
forte impacto social até os dias atuais.
Palavras-chave: Qualidade de Vida, Sustentabilidade, Comunidade Tradicional Açoriana.
Introdução
A qualidade de vida coletiva envolve vários aspectos que agem de maneira interativa, constituindo verdadeira rede de determinantes do tipo de vida que levam as pessoas. Estes aspectos envolvem diferentes domínios da vida, - como condição de moradia, educação, emprego, equilíbrio entre lazer e trabalho, acesso e interação com instituições e serviços públicos (COSTANZA
et al., 2007). Coerente com este ponto de vista, a conceituação de Qualidade de Vida do Glossário Temático sobre Promoção de
Saúde do Ministério da Saúde brasileiro (BRASIL/MS, 2012), acentua, como nota complementar, a necessidade de ser levar em
conta os aspectos: 1) Histórico (o parâmetro de qualidade de vida pode ser diferente na mesma sociedade em outro momento
histórico); 2) Cultural (valores e necessidades são construídos hierarquicamente diferentemente pelos povos, revelando suas
tradições) e; 3) Relacionados às classes sociais (em sociedades em que as desigualdades são muito fortes, as concepções de
bem-estar e qualidade de vida estão relacionadas ao bem-estar das camadas superiores e à passagem de um limiar ao outro).
Com efeito, o conceito de qualidade de vida pode ser entendido como a condição de vida humana real (não apenas possível),
existente num determinado contexto ambiental e temporal, e em conformidade com os desejos, sonhos ou aspirações relacionados às condições de vida idealizadas existentes num determinado lugar em um determinado momento histórico (VLEK, 2003).
Considerada como um fenômeno multidimensional a sustentabilidade da qualidade de vida envolve a sinergia entre
as dimensões ambiental, social e econômica do desenvolvimento (PUGLISI, 2006; FORATTINI, 1991; MASSAN, 2002; KELES,
2012; VLEK, 2003, COSTANZA et al., 2007; SCHALOCK, 2004). Sob tais dimensões, modos particulares, históricos e culturais,
de relações com os vários ecossistemas, e dos seres humanos entre si, interagem permanentemente conforme Diegues (1992),
Shafer, Koo Lee & Turner (2000), Sachs (1980) e Vieira (2009), dentre outros, apontam. Para Moser (2009), a sustentabilidade da
qualidade de vida ocorre somente quando as pessoas interagem com seus ambientes de forma respeitosa, o que conduz e é
resultado de uma situação de congruência, onde ocorre um relacionamento positivo entre qualidades objetivas do ambiente e a
expressão de satisfação em relação a este ambiente.
Sob esta concepção, observa-se que tanto na costa brasileira, como em outras áreas costeiras espalhadas por vários
países de diferentes continentes como: Tailândia, Hong-Kong, Austrália, Reino Unido, dentre outros (ver GREEN, 2005; ROGAN;
O’CONNOR; HORWITZ, 2005; NG; KAM; PONG, 2005; RADFORD; JAMES 2013), sob efeito das coletividades, as transformações
dos lugares foram mais rápidas que a mudança do entendimento do lugar ocupado por seus residentes, o que sugere uma crescente demanda de se avaliar a sustentabilidade da qualidade de vida ao longo de diferentes gerações nestas áreas. No Brasil,
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
301
sob o efeito do processo, denominado litoralização por Pereira (2007), entre 1970 e 2000 a população urbana se multiplicou em
2,64 vezes em média, sendo que apresentou os maiores índices de aumento demográfico na região sul. O estado de Santa Catarina, por exemplo, apresentou um aumento demográfico médio de 3,7 vezes neste período, sendo que em alguns municípios do
litoral multiplicou 4,6 vezes. Atrelado a este processo, a expansão urbana ocorreu sem planejamento efetivo e com a ocupação
irregular das encostas, dos mangues e das restingas, apesar da enorme importância destas áreas para a sustentabilidade das
atividades humanas e a própria sobrevivência das populações costeiras (SARTOR; SANTOS, 2005). Com efeito, mudanças ambientais, como degradação de componentes biofísicos, podem apresentar uma grande influência sobre o modo dos sujeitos estruturarem seus relacionamentos com seus entornos considerando que os lugares são muito mais que um mero pano de fundo para
experiências, pois podem representar a continuidade da família, servir de regulação emocional e ter significado espiritual, além
de servirem de veículos de aprendizagem e crescimento pessoal e favorecerem a manutenção de relações sociais. Para tanto
é fundamental que gestores públicos conheçam a consciência, a percepção e as expectativas das pessoas sobre as mudanças
na qualidade ambiental local visto a complexidade e amplitude das atitudes da comunidade em torno do ambiente (ROGAN;
O’CONNOR; HORWITZ, 2005).
Sendo assim, enquanto populações tradicionais1 tentam se adaptar ao recorrente surgimento de megaprojetos de alto
impacto ambiental, com investimento público, privado, nacional e internacional (LOPES; CARIONI; VAZ, 2014), nos países em
desenvolvimento, como o Brasil, são justamente estas populações, com fortes vínculos culturais com os ambientes, que tem
conservado os ecossistemas naturais (DIEGUES, 1992), sendo responsáveis pela manutenção da diversidade biológica da qual
dependem (e dependeram) a sobrevivência de diferentes gerações2(DIEGUES et al., 2000). As especificidades dos povos e
das comunidades tradicionais implicam em processos produtivos marcados pela economia de subsistência, onde a produção
é determinada por questões ligadas às necessidades versus possibilidades. Estas populações apresentam nas suas práticas
produtivas o respeito aos ciclos naturais e o conhecimento profundo do ecossistema no qual vivem devido ao uso que fazem dos
recursos renováveis e as práticas de uso comunitário dos mesmos. Utilizam tecnologias de baixo impacto ambiental e tem uma
organização social onde a família extensa tem um importante papel (SILVA, 2007).
A partir deste reconhecimento, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, decretada em 2007, especifica, dentre seus princípios balizadores, o desenvolvimento sustentável como promoção da
melhoria da qualidade de vida dos povos e comunidades tradicionais nas gerações atuais, garantindo as mesmas possibilidades
para as gerações futuras e respeitando os seus modos de vida e as suas tradições. Além disso, estabelece como objetivo no art.
3º, a garantia a estes povos e comunidades a manutenção de seus territórios e o acesso aos recursos naturais que tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural e econômica, assegurando seus direitos quando afetados direta ou indiretamente por projetos, obras e empreendimentos.
Conhecendo esta política pública e o processo de transformação antrópica que vem ocorrendo em áreas costeiras e implicações envolvidas, foi estudada a comunidade tradicional açoriana do “Morro do Jacinto3”, localizada na região sul do Brasil,
na costa leste da porção central da ilha de Santa Catarina, às margens de um canal, que liga um corpo lagunar ao mar, povoada
na sua maioria por moradores nascidos no local (autóctones) e que já esteve envolvida em debates e conflitos em torno da ligação da lagoa com o mar (por conta do assoreamento artificial e abertura definitiva do canal ocorrido na década de 80) e por planos de implantação de empreendimento de caráter náutico e habitacional que permanece sob impasse judicial4 por mais de 20
anos, conforme discutido em estudo de caso apresentado na tese de Villasbôas (2003). Com efeito, a dragagem e regularização
deste canal foi uma drástica mudança para esta região da ilha, que nos anos de 1954 e 1955 recebeu o seu primeiro processo de
dragagem e, em 1968 o segundo. Por ultimo, em 1982, a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina
(CIDASC) modificou o leito e a vazão do canal com a abertura, drenagem e construção de um molhe na sua entrada, que interDe acordo com o Decreto nº 6.040, que estabelece a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, povos e comunidades tradicionais são: “Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e
usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e
práticas gerados e transmitidos pela tradição”.
2
Como exemplo, a singularidade das paisagens naturais incidentes na orla marítima decorrentes de sua ocupação esparsa por assentamentos de pescadores artesanais, cujos modos de vida e práticas de manejo estão atrelados ao bom estado de conservação dos atributos naturais dessas paisagens.
3
Todos os nomes de sujeitos citados neste estudo são nomes fictícios para proteger privacidade e anonimato dos envolvidos.
4
Ação civil pública no. 970000001-0. Implantação do empreendimento Porto da Barra, Florianópolis, Santa Catarina. Ministério Público Federal e União Federal contra
FATMA e Portobello Ltda.
1
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
302
feriu na ecologia de todo o sistema lagunar. Antes desta intervenção, a cada seis meses, a ligação da lagoa com o mar se fechava
e abria, sendo que a salinidade da lagoa era bem menor antes da abertura permanente deste canal (BITTENCOURT, 2005).
Segundo Barbosa (2003), após esta intervenção, em vários lugares na bacia da lagoa “onde se pegava o peixe com a
mão”, o declínio da pesca se intensificou. Esta alteração ambiental repercutiu num impacto socioeconômico negativo visto que a
pesca de peixes e crustáceos na lagoa, que sempre teve uma grande relevância para a região - tainhas e camarões eram a base
da pesca artesanal das comunidades que circundam a lagoa -, sofreu drástico declínio sendo que a média anual de pesca entre
1964-1984 que era de 168 toneladas, de 1985 à 1997 foi reduzida drasticamente para 40 toneladas. O impacto relacionado ao aumento da salinidade da água da lagoa pode ter extinguido espécies dulcícolas e marinhas que nem chegaram a ser classificadas
considerando-se que a desova de peixes, crustáceos e moluscos na zona costeira se dá principalmente em desembocaduras
de canais, rios e lagoas. Por outro lado, essa regularização do canal coincidiu temporalmente com o crescimento do local, pois
desde então, nas comunidades do entorno, a economia passou a se alternar entre a atividade pesqueira, o turismo e a prestação de serviços, visto que no período entre as décadas de 70 e 80, com a diminuição dos estoques de pesca e a introdução do
turismo e das residencias secundárias, muitos dos pescadores transferiram-se para o setor de serviços para atender ao grande
contingente de turistas na temporada de verão (DIEGUES et al., 2000).
Todo o processo de transformação associado à abertura deste canal, no caso específico do local deste estudo, teve interferência também na acessibilidade aos locais de moradia dos indivíduos autóctones, pois o mesmo também passou a limitar
o acesso da comunidade do Morro do Jacinto de forma permanente, separando-o de uma área plana aterrada (local visado
para loteamento Porto da Barra conhecido como “campo da portobello” pelos moradores locais) surgida após a construção dos
molhes e abertura do canal, sendo que o material dragado foi depositado neste local segundo relatos dos integrantes desta comunidade. Esta área plana que antes era, conforme descrita pelos moradores mais antigos deste morro, “um mangue com canais
cheio de peixe e camarão”, consistia também de área de uso comunal para criação de animais e uso de fontes de água utilizadas
para lavar roupas e até mesmo para consumo em épocas de seca, quando não vertia água do morro.
Admitindo como verdadeiro o pressuposto de Moser (2009) de que a sustentabilidade da qualidade de vida ocorre somente quando as pessoas interagem com seus ambientes de forma respeitosa, o que conduz é resultado de uma situação de
congruência, buscou-se por uma descrição da interação de indivíduos autóctones desta comunidade tradicional açoriana com
seu entorno sócio-físico, envolvendo o uso de recursos naturais, práticas sociais e estilo de vida local, que possibilitasse uma
análise prospectiva da qualidade de vida desta comunidade localizada em área costeira. Para tanto, em um estudo de caráter
descritivo e exploratório, foram acessadas individualmente 12 pessoas, provenientes de 4 famílias, representantes de três gerações consecutivas, que foram observados e questionados sobre a importância do entorno, próximo as suas residências, para
sua qualidade de vida a partir da elaboração de Mapeamento de Transectos (VIEIRA; BERKES; SEIXAS, 2005; THOMPSON;
ASPINALL; BELL, 2010) – quando informações foram coletadas durante uma caminhada de uma dada área selecionada pelo
voluntário como caminho utilizado com maior freqüência no cotidiano, foram observados recursos e atividades humanas ali
existentes. Por meio de conversa informal obteu-se nomes de lugares, plantas, animais, atividades humanas, problemas sociais
e ambientais (aspectos relacionados à mudança da paisagem e possíveis soluções, entre outros). Toda conversa durante esta
caminhada foi filmada e transcrita.
Os voluntários para esta pesquisa assinaram um termo de consentimento que explicava objetivos e procedimentos assim
como assegurou o anonimato. Eles foram escolhidos sob o critério de facilidade de acesso e aceitação em participar e compuseram o seguinte perfil sócio-econômico: seis homens (DescA, DescB, DescC, Desc2B, Desc2C, Desc2D) e seis mulheres
(DA, DB, DC, DD, DescD, Desc2A). Em relação à faixa etária, as voluntárias participantes, da geração mais idosa, tinham em
média 74 anos, sendo que a mais velha tinha 83 anos e a mais nova 67. O grupo dos filhos destas idosas teve uma média de idade
de 45 anos, tendo o mais novo 35 anos e o mais velho 53. Quanto aos netos voluntários, foi observada uma média de idade de 19
anos, tendo o mais jovem 16 e o mais velho 27 anos. Oito deles declararam ter ensino fundamental incompleto (D.A; D.B; D.C;
D.D; DescA; DescB; DescC; Desc. D), um deles possui ensino fundamental completo (Desc2A), dois declararam estar cursando
o ensino médio (Desc2B; Desc2C) e um deles cursa graduação em história em universidade pública estadual (Desc2D).
Em relação à profissão informada pelos dos voluntários, duas idosas informaram trabalhar como domésticas (DA e DD),
três informaram ser “Do lar” (DB, DC, DescD), dois voluntários informaram ser pescadores (DescA, DescB), um informou ser
auxiliar operacional da COMCAP (DescC) e uma informou ser auxiliar de cozinha no verão e “Do lar” no inverno (Desc2A).
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
303
Os três indivíduos mais jovens da amostra declararam serem estudantes, dois de ensino médio e um da graduação. Quanto
à profissão de seus cônjuges, cinco informaram que o esposo (falecido ou vivo) é pescador (DA, DB, DC, DD, DescD), uma
delas informou que o esposo é vigilante terceirizado (Desc2B), um deles que a esposa é auxiliar de cozinha (DescB) e outro
que a esposa trabalha como doméstica (DescC), os demais são solteiros, dois deles informaram que seus pais tem a profissão
de pescador (Desc2B e Desc2D) e outro informou que o pai é motorista de ônibus (Desc2C) e suas mães: auxiliar de cozinha
(Desc2B), doméstica (Desc2C) e professora de ensino fundamental municipal (Desc2D). A renda familiar informada pelos voluntários resultou numa média mensal de R$1335 por pessoa ao longo do ano, sendo a renda média mensal individual mais baixa
de R$850 (DescC) e a mais alta informada foi de R$2000 (DescD). De todos participantes, oito deles informaram obter fonte de
renda familiar (complementar ou principal) proveniente do aluguel de casa, por diária na temporada de verão e mensal ao longo
do ano (DB; DC; DD; DescB; DescD; Desc2B; Desc2C; Desc2D).
Sob este perfil socioeconômico, observou-se que apesar dos entrevistados terem, em geral, baixo grau de instrução, os
indivíduos da geração mais jovem apresentam um aumento do nível de instrução em relação aos indivíduos das gerações anteriores. Outro aspecto interessante é que apesar do grau de instrução ser baixo (a maioria com ensino fundamental completo no
máximo), e terem informado estarem empregados em profissões de baixa remuneração, a renda per capita média é superior ao
salário mínimo. Vale ressaltar que isto está atrelado ao fato de que a maioria dos voluntários (oito deles) informaram dispor de
casas para alugar seja no verão, ou mesmo durante o ano, aumentando e melhorando consideravelmente, a renda familiar, o que
interfere positivamente na qualidade de vida dos autóctones em geral, segundo seus relatos.
O produto do uso da técnica de mapeamento de transectos foi uma representação gráfica de linhas que cortam uma parte
da área de estudo conforme pode ser visualizado na Figura 1. Ao ser tracejado na imagem por satélite o caminho percorrido com
maior frequência no cotidiano, ficou claro que o “campo da portobello” apesar de não ser mais um local de onde se tira alimentos e água para o consumo, ainda é um local de uso dos moradores para acessar elementos urbanos essenciais a vida no local
(escola, farmácia, ponto de ônibus, mercado) visto que todas as linhas tracejadas passa pela área plana na margem oposta do
canal (em relação as casas da comunidade) onde se propõe construção do empreendimento náutico-habitacional. A descrição
do caminho percorrido por parte dos voluntários também forneceu informações importantes sobre as práticas sociais habituais
do cotidiano da comunidade local. A partir desta descrição, as práticas mais comuns de cada geração são:
•Idosas – as idosas em sua rotina estão envolvidas basicamente com afazeres domésticos (lavar roupa, limpar a casa,
ir na padaria, no mercado) e na manutenção do quintal ou entorno da casa (limpando o porto, arrumando bateras), demonstram
estar sempre em frequente contato com plantas, com a terra e com animais, dos quais se beneficiam utilizando recursos do
entorno a partir da intervenção das mesmas sobre o local (plantas ornamentais e alimentícias selecionadas há varias gerações e
plantadas por elas– roseiras, banana, mandioca, abóbora, dentre outros). A interação e convivência com os filhos, ao longo dos
anos vividos neste local, também pode ser apontado como importante atributo da qualidade de vida destas mulheres a partir do
relato das mesmas. Somente uma delas atravessou o canal (DC) para me mostrar seu caminho rotineiro (a única que participa
de grupo de ginástica para idosos, promovido pela Prefeitura Municipal de Florianópolis), as demais permaneceram em torno
de suas casas, em seus quintais ou porto.
•Filhos – Os participantes voluntários da amostra, filhos destas idosas, em seus relatos sobre o que fazem nos caminhos
percorridos em seu cotidiano, em geral mencionaram nomes de plantas e falaram da sua relação com a terra e animais presentes
no local, principalmente quando relacionado à pesca. Neste grupo a maioria dos voluntários foram homens (3). A única mulher
participante mencionou seu hábito de plantar, mexer com a terra, interação com animais, cuidados com a filha adolescente,
atividades domésticas, semelhante ao que relataram as idosas. A mesma, em seu relato, evidencia a necessidade e os benefícios
de se plantar e colher no local com argumentos que envolvem segurança alimentar, benefícios da interação com a terra (“fuçar
na terra traz tranquilidade”), e aproveitamento de nutrientes para adubo (compostagem). Já os homens apresentaram um relato
mais focado nas atividades relacionadas ou envolvidas com a pesca (puxar rede, ir ao estaleiro, conversar com os pescadores).
Todos os filhos atravessaram o canal para me mostrar o caminho que percorrem em suas rotinas diárias.
•Netos – O relato dos netos das senhoras idosas apresentam como principal diferença, em relação ao relato dos indivíduos das gerações anteriores, a ausência de menção de práticas que envolvem o contato com plantas e/ou com a terra e animais, e com a pesca. Sendo três adolescentes do sexo masculino (16-18 anos) e uma mulher de 26 anos mãe três filhos, pode-se
dizer que apresentam uma rotina mais focada em práticas institucionalizadas (levar filho na creche, fazer compras, pegar ônibus,
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
304
ir para a escola ou faculdade) e menos localizadas nas proximidades do entorno de suas casas. Apesar de relatarem se sentirem
seguros no local, demonstram grande preocupação com o futuro do local, visto o aumento de construções irregulares e sem
saneamento básico. Assim como os indivíduos da geração anterior, todos os indivíduos participantes deste grupo atravessaram
o canal para apresentar seus caminhos cotidianos.
Figura 1. Caminhos percorridos pelos voluntários autóctones.
Apesar destas variações nos hábitos do cotidiano de acordo com a geração, todos voluntários afirmaram obter recursos
extraídos do seu entorno, principalmente para alimentação, sem a necessidade de utilizar o dinheiro em troca dos mesmos,
dentre eles foram citados espécimes vegetais (abóbora, acerola, aipim, alfavaca, bambu, banana, batata doce, cana, cebolinha
verde, chuchu, erva-cidreira, goiaba, hortelã, jaca, jiló, laranja, limão, madeira pra fazer trapiche (camboatá), mamão, mandioca, manjericão, maracujá, pimenta, pimentão, salsinha, tomate, tangerina) e animais (abrótea, anchova, arraia, badejo, cação,
camarão, carapeva, carapicú, cocoroca, corvina, espada, garopeta, garoupa, lagosta, linguado, lula, marisco, peixe, robalo,
sardinha, siri, tainha, tanhota). A partir destes dados verifica-se que o entorno tem importante papel nutricional para os indivíduos
desta comunidade tanto ao que se refere à obtenção de alimentos vegetais, assim como fonte de proteína animal, indicando ter
grande importância na manutenção da qualidade de vida no local.
Em relação às perspectivas de desenvolvimento futuro na região, todos os participantes, que atravessaram, ou não, o canal e o “campo da portobello”, disseram acreditar que o empreendimento será implementado e que já trouxe e trará ainda várias
consequências sobre o modo de vida no local relacionado à degradação ambiental, diminuição da quantidade e qualidade da
pesca e ao aumento do custo de vida no local semelhante ao que ocorre nos locais sob o processo denominado gentrificação5,
conforme relata DescA, exemplificando relatos dos autóctones referente a este assunto:
“Eu acho que não vai ser bom, porque eu não vou ter dinheiro pra comprar um iate, um apartamento, que eles vão querer que o iate chegue tudo na porta deles, da casa deles, os iate vão chegar
na entrada que nem chega um carro na garagem, entendeu?(...)Então esse campo aqui não vai
5
Ações articuladas que interferem na materialidade do espaço, incentivam a criação de novos pólos de atração e potencializam o interesse das classes mais abastadas provocando a exclusão da população devido, principalmente, à especulação imobiliária. Assim, formas de intervenções urbanas que elegem certos espaços
da cidade como centralidades e o transformam em áreas de investimento para consumo público e privado, tem como desdobramento a expulsão da população de
baixa renda, praticamente relegada dos programas de benfeitorias de reabilitação para elitização das áreas e apropriação dos imóveis para fins comerciais ou para
entretenimento das classes mais abastadas (SILVA; FERETTI; SETTE, 2008).
03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
305
ter futuro pra mim, né? O futuro aqui é praquele que tem dinheiro e eu não vou poder mais passar
aqui, né? Eu não vou ter mais chance de passar aqui, aqui só vai ter apartamento, hotel, os barco
que são os iate, como é que a gente vai passar, se vai ter segurança, vai ter guia, aí não tem mais
como nós passar, né? Vai ser particular, não tem mais como, já tão planejando pra isso aí”.
Motivos não faltam para acreditarem nisto, pois o mapa ilustrativo do projeto está afixado em uma guarita/escritório na entrada principal do terreno (por onde passaram a maioria dos voluntários durante o percurso do transecto) à vista dos transeuntes
(Figura 2), enquanto ocorre o aumento sucessivo e progressivo de uma área destinada à garagem de embarcações (lanchas e
iates) no local conforme pode ser observado na Figura 3.
Figura 2. Vista interna de escritório localizado na entrada do “campo da portobello”.
Figura 3. Área destinada à garagem de embarcações (lanchas e iates) à beira do canal
Para Moser (2009) o olhar conduzido sobre o ambiente residencial serve como proposta de uma análise estruturada de
condições de congruência a partir da avaliação objetiva e subjetiva de estressores ambientais na relação entre o indivíduo e
ambiente e na expressão social de bem-estar. Sendo assim, a análise prospectiva da qualidade de vida desta comunidade tradicional açoriana, constata, como um estressor ambiental, a possibilidade de implementação de empreendimento náutico habitacional, que, além do impacto ambiental, também vem implicando em impacto social. Uma incongruência ocorrida no passado
(leia-se assoreamento do canal e aterramento de mangue) incidiu e vem incidindo no rompimento do respeito aos ciclos ecossistêmicos, de forma que, o aumento do número de casas para fins de obtenção de renda proveniente de aluguéis tanto anuais
como de temporada, construídas pelos próprios indivíduos autóctones de forma irregular, sem preocupações com o saneamento
ambiental e infringindo o código ambiental brasileiro, acaba também contribuindo como estressor ambiental, realimentando assim a cadeia de degradação socioambiental que vem ocorrendo no local. Com efeito, atrelado a este processo, foi relatado que
muitos autóctones da comunidade estão deixando o local para morar em bairros próximos, como Rio Vermelho e Ingleses, onde
o custo de vida é mais baixo.
Sob este aspecto, cabe ressaltar que, num passado não muito distante, para as duas gerações mais velhas, ocorreu um
impacto ambiental de enorme proporção (que alterou o entorno que era fonte abundante de alimento - camarões, caranguejos,
siris e peixes) que resultou na migração para outras áreas de trabalho (que não as tradicionais, como a pesca e a lavagem de
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
306
roupas) integrando-os a um sistema de desenvolvimento econômico pautado na obtenção do lucro imediato que não se preocupa com as externalidades negativas6 deste feito. Isto possibilita que iniciativas privadas usufruam dos recursos naturais e
deixem sobre a coletividade a carga dos custos sociais e ecológicos deste usufruto, sendo que uma parte destes custos se traduz
em desigualdades diacrônicas, ou seja, afeta a qualidade dos recursos e do meio que terão as gerações futuras e as condena
a enfrentar os custos da exploração insustentável dos recursos (SACHS, 1980). Atrelado a isto, é evidente que a apropriação do
local: dirigida aos outros na conquista do espaço, e a si mesmo quando procura adaptar o espaço às próprias necessidades
(KUHNEN, 2002), tem desrespeitado várias leis de preservação ambiental, visto que a maioria das casas se encontra em área de
preservação permanente (APP7) e não possuem tratamento de efluentes sanitários.
De fato, a partir do relato dos voluntários durante o mapeamento de transecto, pode-se considerar que os autóctones
ainda tem uma forte relação de dependência de recursos naturais do entorno, entretanto ao vivenciarem as intervenções ambientais ocorridas no local no passado, que implicou em alteração no modo de vida, assumiram um tipo de apropriação, que não
respeita mais os ciclos naturais e só divide com o coletivo os custos ambientais, enquanto toma individualmente os benefícios
relacionados ao uso de recurso natural. Como exemplo, se divide os efeitos negativos da contaminação das águas do canal com
dejetos humanos, enquanto se lucra com os aluguéis de casas sem saneamento básico. Todavia, considera-se que neste caso
não há culpados e nem vítimas e sim uma população tradicional tentando se manter e se adaptar, apesar da grande interferência
no seu modo de vida, que permanecia em harmonia e respeitava o ecossistema do entorno, visto que dependia dele a sua sobrevivência. Sendo assim, sob o histórico do contexto socioambiental desta população, pode-se dizer que ocorreu uma quebra
drástica do respeito aos ecossistemas, que até então tinha sido passado de geração a geração, e que o mesmo foi aterrado junto
com o mangue que os alimentava e fazia parte da sua paisagem cotidiana.
Consistente e pertinentemente, a qualidade ambiental tem sido considerada um dos mais importantes componentes de
qualidade de vida (KELES, 2012) sendo que as mudanças envolvidas nos entornos têm sido vistas como uma ameaça, como
uma evolução negativa devido à perda de diversidade, coerência, identidade e de características das paisagens construídas por
culturas tradicionais que estão sendo rapidamente varridas do mapa (CARTER; DYER; SHARMA, 2007). Deste modo, considerase que a urbanização acaba implicando em mudanças no cenário físico, nos tipos de uso e nas ativid

Documentos relacionados