Revista Horizonte Teológico
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HORIZONTE TEOLÓGICO Ano VIII – 2009 Nº 15 – Janeiro/ Julho Revista Semestral do Instituto Santo Tomás de Aquino Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos dos Religiosos ISSN 1677-4400 Horizonte Teológico Revista Semestral do Instituto Santo Tomás de Aquino – Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos dos Religiosos – ISTA Diretor: Manoel José de Godoy Jornalista responsável: Purificacion Vega Garcia – MTB: 3039 Conselho Editorial: Antônio M. Pinheiro, Cleto Caliman, Flávio Luís Rodrigues de Sousa, José Carlos Aguiar de Souza, Manoel José de Godoy, Sílvia Contaldo, Wolfgang Gruen. Diagramação: Tiago Parreiras Capa: Patrícia Rocha As matérias assinadas são da responsabilidade dos respectivos autores. Aceitamos livros para recensões ou notas bibliográficas, reservando-nos a decisão de publicar ou não resenha sobre os mesmos. Aceitamos permuta com revistas congêneres. Administração / Redação: Rua: Itutinga, 300 Bairro Minas Brasil 30535-640 Belo Horizonte – MG Tel.: (0xx31) 3419-2800 – Telefax: (0xx31) 3419-2818 e-mail: [email protected] Tiragem deste número: 200 exemplares Impressão: Editora O Lutador Pça. Pe. Júlio Maria, nº 01 – Planalto 31740-240 Belo Horizonte – MG SUMÁRIO EDITORIAL ....................................................................................................... 5 ARTIGOS José Carlos Aguiar A atenção-plena metaxológica e a crítica ao conceito de consciência planetária ............................................................................................................ 9 Cristiano Andrade Teodoro O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré ....................................... 22 Valeriano dos Santos Costa Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II ................ 42 Solange do Carmo A boa-nova universal da salvação: Estudo bíblico-catequético a partir de At 10,1–11,18 .................................. 73 COMUNICAÇÕES Jeferson Almeida de Souza A relação entre clérigos e leigos no código de direito canônico ............. 101 Grupo de estudos teológicos Natureza humana e pecado ......................................................................... 106 Grupo de pesquisa teológica UT UNUM SINT: o diálogo como pressuposto para o ecumenismo .... 116 RECENSÃO .................................................................................................. 127 NORMAS PARA COLABORADORES ................................................... 131 ISTA Instituto Santo Tomás de Aquino Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos dos Religiosos GRADUAÇÃO: Filosofia (licenciatura) Teologia Curso Superior de Gestão Pastoral PÓS-GRADUAÇÃO (Lato Sensu): Especialização para Formadores de Presbíteros Diocesanos – 360 horas / aulas • Janeiro/ Julho/ Janeiro Especialização para Formadores da Vida Religiosa – 360 horas / aulas • Janeiro/ Julho/ Janeiro Para mais informações: Rua: Itutinga, 300 – Minas Brasil 30535-640 – Belo Horizonte – MG Telefax: (31) 3419-2800 [email protected] www.ista.edu.br EDITORIAL RESPEITANDO A ALTERIDADE, FOMENTANDO A TOLERÂNCIA Pe. Manoel Godoy Diretor Executivo do ISTA A Revista Horizonte Teológico está debutando. Chega com esse número à sua 15ª edição. Esse símbolo dos quinze anos reflete bem o momento da Revista: é uma adolescente buscando sua maturidade. Neste número, além de seus artigos que nos instigam à reflexão, temos a contribuição dos alunos do ISTA, que ensaiam seus primeiros passos na produção do pensamento teológico. Este é um dos objetivos da revista: abrir espaço para a criatividade daqueles que não estão somente repetindo a filosofia e a teologia oficiais, mas ousando pensar. Numa conjuntura que busca unificar tudo e todos, por meio da avalanche globalizadora, somos chamados a contemplar a possibilidade de um pensamento distinto, “cuidador” das diferenças. O artigo do professor Dr. José Carlos Aguiar nos leva a considerar a amplitude de possibilidades de afirmação da identidade da consciência sem que isso implique um aniquilamento da alteridade da natureza. Identidade e alteridade, temas correlatos na produção do pensar e na criação de novas relações. Aguiar abre perspectivas novas a partir do pensamento metaxológico, pois, como ele afirma, “O pensamento metaxológico permanece sempre aberto ao ser em sua alteridade ao conceber a origem como plenitude: um excesso que inspira espanto e admiração para além de todo sistema conceitual de inteligibilidade.” Assim, a metaxologia se apresenta como respeitosa da alteridade tão necessária em tempos de tão pouca tolerância. De outro ângulo, o teológico, o aluno Cristiano Teodoro afirma em seu artigo a atual necessidade de um pluralismo religioso. Passando pelas perspectivas mais marcantes no campo do diálogo inter-religioso – exclusivismo, inclusivismo e pluralismo –, Cristiano, inspirado pelo pensamento de Claude Geffré, toca num dos temais mais presentes no pensamento atual: a questão da hermenêutica. Com medo do relativismo, muitos terminam por se abster do árduo exercício hermenêutico, caindo numa posição perigosamente dogmática. Quem sabe o pensamento metaxológico possa aqui, mutates mutandis, se constituir numa abertura para novas considerações no seio do difícil diálogo respeitoso das alteridades. Valeriano dos Santos Costa nos leva a um passeio pela evolução semântica do termo mística, para nos ajudar a resgatá-la na dimensão orante e celebrativa da Igreja a partir do Concílio Vaticano II. Perceber Deus por meio de uma profunda experiência do Mistério de Cristo, que emerge com toda sua força na reforma conciliar, serve como trilha do pensamento desse artigo. Seguindo essa trilha, Valeriano nos conduz desde as experiências dos primeiros cristãos até as dos nossos dias. Fechando a sessão de artigos, temos a colaboração da Professora Solange, com o tema fascinante da abertura das primeiras comunidades aos gentios. Momento crucial para o futuro do cristianismo nascente. Rejeitados por aqueles que 6 se constituíam nos primeiros ouvintes da Palavra, os cristãos, por meio de seus expoentes máximos, sobretudo Paulo, reorientam a missão em direção aos que se abriam à novidade cristã. Quais seriam hoje os novos passos, tão audaciosos como os dos primeiros, necessários para sairmos da posição cômoda de conquistas passadas, que já mostram nítidos sinais de cansaço e de esgotamento? A sessão das comunicações quer servir de incentivo para a produção acadêmica de nossos alunos. Com muita alegria vemos os esforços daqueles que expressam sua recepção dos conteúdos ministrados pelo corpo docente. Orgulho para os mestres e todos os que apostam num exercício da missão evangelizadora com mais profundidade e qualidade. Não poderíamos terminar de apresentar esse número da Revista sem fazer um profundo agradecimento a Deus pelo dom da vida de nosso já saudoso Frei Prudente Nery (26/05/1952-19/06/2009). Creio que é sentimento de todos: como você foi cedo demais! Homem profundo e de não muitas palavras. Só as essenciais. Ouso dizer a Deus que é com muita dificuldade que vivenciamos a partida de um irmão tão querido e mestre tão competente. O problema que se repete a cada dia está na reposição de pessoas desse nível. Estamos assistindo à partida de muitos sem vislumbrar, de imediato, essa reposição. São buracos abertos que nos deixam em situação de petição diante do Pai: suscite, ó Deus, gente com a capacidade e o coração do Prudente para que vejamos com mais facilidade sua eterna bondade e misericórdia em vir em socorro dos que ficamos sedentos por entender melhor Sua Palavra. 7 ARTIGOS A ATENÇÃO-PLENA METAXOLÓGICA E A CRÍTICA AO CONCEITO DE CONSCIÊNCIA PLANETÁRIA José Carlos Aguiar Desmond e o sentido quádruplo do ser O objetivo central deste artigo é estabelecer uma crítica filosófica ao conceito de consciência na medida em que o termo é central para o simpósio que discute a questão da consciência planetária. Usaremos como matriz teórica para a nossa crítica a metaxologia de William Desmond. Um dos pontos centrais do pensamento desmondiano é o sentido quádruplo do ser, que se constitui como modos do pensar que nos permitem refletir sobre o ser: univocidade, equivocidade, dialética e metaxologia. O sentido unívoco expressa uma unidade não mediada entre ser e pensar1. Para a univocidade todo o ser é inteligível e toda inteligibilidade é determinada: ser é ser determinado2. Esse modo unívoco do pensar não faz justiça, segundo Desmond, à plurivocidade do pensamento que vai além da mera instrumentalidade do espírito geométrico cientifico3. O sentido unívoco se encontra associado às pretensões da ciência moderna de uma total inteligibilidade 1 2 3 DESMOND, 1995a, p.47-83. DESMOND, 1995a, p.16 DESMOND, 1995a, p.17. José Carlos Aguiar das coisas. O sentido equívoco acentua a diferença não mediada entre o pensamento e o que é outro ao pensamento. Tratase de uma pluralidade não mediada que não consegue em última instância pensar a totalidade respeitosa da diferença4. A dialética consegue assegurar a identicalidade (Sameness) através da mediação das diferenças. O sentido dialético converte a mediação do self e do outro em duas faces de uma mesma moeda: o processo singular e abarcador de total automediação do pensamento consigo mesmo. Segundo Desmond, o processo final do movimento dialético estabelece uma espécie de univocidade dialética. A redução dialética dos outros modos do ser e do pensar à auto-mediação última do pensamento filosófico não faz jus à experiência fundamental da alteridade que Desmond concebe como a admiração agápica5. Desmond propõe o sentido metaxológico do ser como uma alternativa que melhor responda à questão do ser do pensar, da identidade e da diferença, do self e do outro. Derivado do termo grego metaxu, metaxologia é o discurso do “entre”, um pensamento entre a total ignorância e o total conhecimento6. O sentido metaxológico leva a sério a afirmação de Aristóteles de que o ser é dito de muitos modos e tenta incluir os outros modos do pensar na prática da filosofia, para além do pensamento sistemático. A metaxologia é respeitosa da alteridade que não pode ser compreendida apenas como um processo sistemático de inteligibilidade categorial. O pensamento tem que reconhecer o excesso da plenitude do ser que não poderá nunca ser totalmente mediado pela razão lógica7. Trata-se do reconhecimento da comunidade do ser recalcitrante a toda redução unívoca ou dialética e que ao mesmo tempo não se dissipa numa fragmentação equívoca. 4 5 6 7 10 DESMOND, 1995a, p.85-130. DESMOND, 1995a, p.32. DESMOND, 1995a, p 6. DESMOND, 1995a, p.177. A atenção-plena metaxológica e a crítica ao conceito de consciência planetária O pensamento metaxológico permanece sempre aberto ao ser em sua alteridade ao conceber a origem como plenitude: um excesso que inspira espanto e admiração para além de todo sistema conceitual de inteligibilidade. O espanto ou maravilhar-se agápico é o inverso da intencionalidade da razão no sentido moderno do termo. A origem agápica é o fundamento de uma pluralidade genuína não redutiva8. Trata-se de uma plenitude dinâmica presente desde o início e não o fruto de um processo dialético a ser constituído no final. O absoluto agápico, diferentemente do absoluto erótico do processo dialético, que oferece um senso de eternidade no processo de se constituir a si mesmo, é o absoluto original e aponta para o outro radical que resiste às pretensões do pensamento de atingir uma completa e absoluta automediação. Aqui se encontra o ponto central da crítica feita ao conceito moderno de consciência entendida em termos do cogito cartesiano do eu penso kantiano9. De fato, desde que Platão estabeleceu um elo intrínseco e ontológico entre a atividade do intelecto humano e constituição da verdade última do ser, o pensamento ocidental tem buscado modos cada vez mais precisos de determinação ou domesticação conceitual do ser. A razão encontra-se de tal modo incorporada à ordem do ser 8 DESMOND, 1995b, p.221. 9 A palavra “consciência” vem do latim “con” (com) e “scire” (conhecer ou saber). O termo grego equivalente é “syneidesis”. Sócrates identifica a consciência com a voz interior de alerta sobre o certo e errado, que para ele possui a sua origem em Deus. Ou seja, a consciência é a voz universal da razão capaz de guiar o homem na sua vida. Na Idade Média o termo deixa de se referir apenas à consciência que o homem tem das regras universais de conduta, passando a ser empregado no sentido mais circunscrito de aplicação das regras universais às situações específicas. A consciência foi vista como a voz de Deus presente no ser humano. No sentido sociológico e antropológico, o termo “consciência” possui o significado literal de se possuir um saber ou ter conhecimento de algo: “com-ciência”. O ser humano, diferentemente do animal, se posiciona no mundo com saber. Isso faz com o que o homem não seja apenas o seu mundo, como é o caso dos animais, mas ele tem o seu mundo. O ser humano não é a sua existência, mas tem a sua existência como tarefa a ser construída. Sartre estabelece essa diferença usando os termos “em-si” (en soi) e “para-si” (pour soi) como tentativa de diferenciar o estar no mundo dos animais e o nosso modo de estarmos jogados na existência e no próprio mundo. Assim sendo, o ser humano é sapiens sapiens, ou seja, um ser que sabe que sabe. O animal sabe, mas ele não tem essa abertura fundamental de saber que sabe. Neste sentido sociológico e antropológico a consciência planetária significa um estar atento aos destinos do planeta que é a nossa casa comum conscientes dos problemas que o afetam. 11 José Carlos Aguiar que em última instância ser e pensar se tornam a mesma coisa. Ou seja, o ser só é se puder ser totalmente determinado pela atividade do intelecto. O ser sem a determinação do pensar é o mesmo que o nada. Um dos problemas fundamentais com este modo do pensar fundado por Platão e que encontra em Hegel o seu ápice é que toda determinação é negação e toda negação tem que ser negada e assim sucessivamente. O advento da modernidade não rompe com o elo estabelecido por Platão entre o intelecto e a verdade. De fato, a primeira certeza da razão é encontrada no cogito cartesiano. Descartes estabelece uma ruptura clara entre a res cogitans e a res extensa. Juntamente com essa distinção ele estabelece um projeto de senhorio e domínio do cogito sobre a natureza: maître et possesseur de la nature. Para se afirmar o cogito tem que efetuar um processo de negação na medida em que o mundo é visto como um grande vazio (um grande nada) a ser moldado segundo a imagem e a semelhança da razão. A ciência moderna ofereceu os meios para que o self pudesse estabelecer seu domínio sobre a natureza. A consciência moderna e a matematização da natureza Com o advento da Idade Moderna o termo “consciência” passa a ser empregado no sentido do autoconhecimento advindo da capacidade da mente humana de refletir sobre si mesma. O termo foi utilizado também no sentido mais amplo da propriedade geral dos estados mentais. A modernidade traz consigo o ideal de uma razão autônoma, ou seja, a fundamentação da verdade passa a ser buscada nas próprias estruturas autônomas da razão e não mais numa matrix teológica ou heteronômica de fundamentação. A consciência autônoma tenta um controle objetivo do mundo que desde a mecânica de Newton é concebido como um grande mecanismo a ser autocompreendido e dominado. O século XVII inaugura um novo modelo de ciência caracterizado pela recusa em aceitar o mundo como nós 12 A atenção-plena metaxológica e a crítica ao conceito de consciência planetária normalmente o percebemos. A pressuposição básica da nova ciência é que o mundo possui uma estrutura matemática por detrás de sua aparência perceptiva. O conhecimento objetivo e científico da natureza só é possível através do uso do método matemático. Para Galileu, um dos precursores da ciência moderna, o grande livro do universo se encontra aberto ao nosso olhar. Contudo, o livro só pode ser lido se aprendermos a compreender, em primeiro lugar, a linguagem em que foi escrito e sermos capazes de ler o alfabeto que o compõe. O universo foi escrito na linguagem matemática e os seus caracteres são os triângulos, os círculos e todas as outras figuras geométricas, sem as quais se torna humanamente impossível entender uma única palavra do que se encontra revelado na natureza. Sem a matemática e a geometria estaremos vagando por um labirinto escuro10. Descobrir essa estrutura matemática se torna a tarefa principal da ciência de Galileu e de todo o desenvolvimento subsequente da ciência moderna. A ciência moderna herdou da Grécia antiga duas importantes características: o modelo de conhecimento científico e a técnica de medição do espaço, ou seja, a geometria. A ciência moderna empenhou todos os seus esforços para obter o conhecimento científico e objetivo do mundo. O mundo que aparece para nós é o mundo da experiência comum, ou seja, um mundo para nós. Nós o aceitamos como algo válido e existente. Entretanto, nós sabemos que esse mundo aparece de modo diferente para diferentes pessoas. Na nossa experiência do dia a dia o mundo nos é dado de modo relativo e subjetivo. Cada um de nós tem a sua visão do mundo, muito embora nós saibamos que existe apenas um mundo que é o mesmo para todos nós. A ciência moderna concebe que para além das aparências mutáveis tem de existir um mundo constante e real como substrato para todas as diferentes aparências que cada um de nós possui. Esse conteúdo constante é a verdadeira natureza11. 10 11 BUCKLEY, 1992, p.46. HUSSERL, 1970, p.23-24. 13 José Carlos Aguiar No mundo de nossa percepção imediata nós encontramos figuras empíricas como formas de matéria da nossa experiência sensitiva. Essas formas são dadas com outras qualidades como cor, cheiro, som etc... Essas qualidades são características reais das coisas percebidas. Estas não podem ser as qualidades primárias das coisas, mas são qualidades secundárias. O caráter espaço-temporal e as características secundárias dependem de nós enquanto sujeitos de percepção. A ciência moderna buscou arduamente compreender a causalidade universal da nossa experiência do mundo de modo determinado. Existia a convicção de uma possível aplicabilidade universal da matemática, que pudesse ser transcrito em um método em que cada quantificação se aproximasse do ideal: a idealidade matemática definitiva. A ideia básica que norteou o caminho da ciência moderna é que muito embora a quantificação atual contenha limitações, ainda assim é possível conceber uma melhora progressiva até atingirmos a idealidade que se encontra no infinito. Em outras palavras, as inter-relações causais dos dados da nossa experiência comum podem ser expressas matematicamente em fórmulas, e uma vez que as entidades matemáticas ideais possam ser descobertas para cada experiência é possível projetar regularidades empíricas esperadas para o mundo experienciado por cada um de nós em todos os seus aspectos. O método da matemática possui uma aplicabilidade universal. Em todo processo de quantificação nós trabalhamos com aspectos individuais e particulares. Cada aspecto individual é uma instância ou tipo. Existe uma variedade imensa de instâncias e o mundo é a totalidade dos diferentes tipos de instâncias. O conhecimento obtido acerca de uma instância pode ser aplicado a todas as instâncias do mesmo tipo. Assim, a ciência moderna descobriu as possibilidades de conhecer o universo completa e objetivamente através do método matemático. A hipótese de entidades idealizadas efetuadas através 14 A atenção-plena metaxológica e a crítica ao conceito de consciência planetária da formalização e idealização da quantificação da natureza produziu um efeito tal que passou a ser vista como algo independente e autossuficiente. Os objetivos práticos desta hipótese de compreender o mundo pouco a pouco passaram a ser vistos como o modo como o mundo de fato é constituído: a verdadeira realidade do mundo12. O mundo que aparece através da nossa percepção imediata é relegado pela ciência moderna ao reino da mera subjetividade. A ciência é a única capaz de revelar a realidade verdadeira. As nossas experiências de cor, tons, frio e calor se tornam vibrações, meros eventos no reino das formas. A matematização da natureza foi um passo decisivo para a ciência, que se dedicou ao aperfeiçoamento do método de compreensão do mundo. A consciência moderna cartesiana se torna muito eficaz ao aplicar os procedimentos metódicos no domínio da natureza. O conhecimento da natureza se torna uma questão meramente técnica: o universo consiste de entidades que são meramente definidas e definíveis em termos matemáticos. Todas as atividades do sujeito humano são descartadas nesse processo. Em outras palavras, o mundo em que vivemos é relegado a um segundo plano e a natureza é projetada em termos meramente fisicistas, em contraste com a natureza da vida perceptiva de nossa experiência comum. A ciência se torna uma atividade meramente técnica e o objetivismo teórico da ciência se torna o único conhecimento verdadeiro da realidade. O conhecimento é o resultado da quantificação. A ciência se torna um instrumento de domínio técnico da natureza13. Trata-se da vitória do “espírito geométrico” sobre o “espírito de sutileza”. O serviço agápico como resposta à soberania erótica da consciência Na soberania erótica, a consciência retorna a si mesma 12 13 GURWITSCH, 1974, p.45. HEELAN, 1988, p.398. 15 José Carlos Aguiar através da alteridade. A consciência se percebe a si mesma em relação à alteridade e retorna a si como uma força dinâmica. Nesse retorno à sua própria identidade, porém, a tensão entre a identidade e a alteridade se torna um indicativo da natureza dinâmica do ser, percebida no início e que não pode ser afetada por nenhuma forma de mediação fechada. A equivocidade volta à cena novamente, só que, desta vez, seu relacionamento com a identidade ocorre no espaço do “entre” (between). Esse espaço intermediário do “entre” é o terreno comum onde a identidade e a alteridade podem se encontrar e juntas habitar e conviver numa mesma comunidade. Entretanto, para manter a soberania do sujeito sobre a sua própria identidade, a ipseidade busca se apropriar da alteridade14. Desse modo, a plena-atenção metafísica termina por perceber a identidade orientada para si mesma. Este ethos filosófico levou ao domínio da natureza e estabeleceu a consciência como “maître et possesseur de la nature”. Trata-se aqui da soberania erótica. Ela é erótica porque a consciência parte de sua própria carência para o autopreenchimento; ela é soberana porque a consciência termina retornando a si e sendo reafirmada em sua própria identidade bem como em seus próprios poderes de domínio da natureza15. A comunidade da soberania erótica faz com que a consciência retorne a si mesma como consciência autônoma16. Para Desmond, a afirmação da identidade da consciência não implica um aniquilamento da alteridade da natureza. A soberania não pode ser confundida com uma supremacia absoluta. A consciência soberana é livre (autônoma), mas essa autonomia não significa submissão. Para Desmond, um verdadeiro soberano é alguém livre para uma camaradagem e comunhão com a alteridade da natureza17. Numa verdadeira comunidade de soberania erótica, cada 14 15 16 17 16 DESMOND, 1995a, p.440. DESMOND, 1995a, p.439. DESMOND, 1995a, p.441. DESMOND, 1995a, p.443. A atenção-plena metaxológica e a crítica ao conceito de consciência planetária soberano é uma totalidade individual aberta para a alteridade e todos se unem na comunidade do ser. Para Hegel, a soberania erótica é fruto da luta pelo reconhecimento, da qual a dicotomia ou dialética do senhor e do escravo é uma manifestação. Tal dicotomia, contudo, nunca atinge uma verdadeira soberania, já que tanto o senhor como o escravo se encontram numa posição de total dependência um do outro para a constituição e afirmação de sua própria identidade. A consciência autônoma moderna é a absolutização de um sujeito que tudo abarca, já que, em seu retorno dialético para a identidade, a alteridade é apropriada pelo sujeito. Consequentemente, o soberano erótico nada mais é do que a caricatura de uma verdadeira e original soberania. Esse falso soberano subordina a tensão dinâmica entre a identidade e a alteridade à primazia da autorrelação. O amor erótico é um amor auto-orientado, através do qual o sujeito busca suprassumir tudo que lhe é outro. O soberano erótico termina por tornar-se prisioneiro de um amor narcisista, de um amor de si mesmo. Contudo, para que seja verdadeiramente autônoma, a plena-atenção metafísica tem de se libertar do movimento erótico e retornar ao movimento agápico caracterizado por uma abertura fundamental à alteridade. Desse modo, a plena-atenção metafísica será capaz de entrar numa submissão mais fundamental e que se encontra além de qualquer aniquilação da diferença, no amor pela alteridade18. Somente quando a plena-atenção retornar à liberdade do amor agápico, onde a identidade e a alteridade participam de uma “comunivocidade” de respeito mútuo e reconhecimento, onde o amor se constitui como um elo de união, o pleno significado da tensão entre a identidade e a alteridade iluminará a verdadeira natureza do ser. A relevância do serviço, enquanto meio para se estabelecer o reconhecimento entre a identidade e a alteridade, é de 18 DESMOND, 1987, p.130. 17 José Carlos Aguiar fundamental importância. Somente quando o serviço é realizado no movimento agápico da plena-atenção é que a verdadeira autoconsciência se torna possível. Desmond é categórico ao afirmar que é um erro conceber a soberania erótica como um fim em si mesma. Do mesmo modo como foi importante para a consciência se mover de uma plenaatenção dialética para uma plena-atenção metaxológica, a fim de capturar o caráter dinâmico do ser de uma forma mais rica e plena, assim também a soberania erótica da autoidentidade tem de se elevar ao nível de um serviço agápico. No serviço agápico ocorre a passagem de uma plenaatenção dialética da soberania erótica para uma intermediação aberta da plena-atenção metaxológica, através de uma percepção da identidade e da alteridade, habitando o espaço de mútua complementaridade oferecida pelo espaço do inter da intermediação, no qual todos são participantes na comunidade do ser. A palavra inter vem do latim e significa literalmente estar ou situar-se entre, no meio dos outros, em comunidade. Ser em comunidade, entretanto, não significa nenhum tipo de redução ou cerceamento. A comunidade é um estar-junto, cada qual a partir de sua própria diferença, numa relação que tem por base um interesse comum. A comunidade enquanto tal não implica necessariamente uma dissolução das diferenças entre os seus diferentes participantes. Conceber a comunidade como dissolução da diferença significa deixar de reconhecer a alteridade como realmente outra. Consequentemente, ser um participante dessa complementaridade do inter é colocarse aberto e voluntariamente entre os outros participantes da plena-atenção metafísica. Se alguém participa voluntariamente no entre, essa pessoa demonstra um interesse pessoal que excede o interesse próprio. Quando o sujeito (self) se lança além da determinação segura e previsível da identidade para a indeterminação dinâmica e imprevisível da alteridade, ele está, de fato, abrindo-se para 18 A atenção-plena metaxológica e a crítica ao conceito de consciência planetária alteridade de um modo livre e despojado. A consciência moderna deixa de reconhecer o aspecto positivo e criativo do ser tomado e entendido enquanto plenitude originária. Nesse sentido, o seu interesse é desinteressado. Segundo Desmond, todo interesse genuíno é um inter-esse, que, em muito, se distancia do que nós normalmente concebemos como interesse próprio19. Nesse sentido, o verdadeiro interesse é um contentamento com o ser no espaço intermediário do entre (being in the between). Existe aqui uma verdadeira motivação para se ir além da identidade mediada da plena-atenção dialética na direção de uma abertura irrestrita à alteridade. Esse movimento não pode ser concebido como erótico, mas tem de ser visto como um movimento agápico, no qual o sujeito não espera receber qualquer tipo de benefício próprio de seu relacionamento com o outro. Em outras palavras, o movimento de transcendência que se inicia nesse momento agápico é motivado por um espírito de integridade genuinamente altruísta, em que o sujeito se dá livremente, apesar de todos os riscos que ele corre com essa atitude. Trata-se aqui de uma atitude inicial não centrada em si. Os benefícios porventura recebidos não constituem a determinação principal iniciadora do próprio movimento. Quando o sujeito se dá a si mesmo livremente, existe sempre a oportunidade de que alguém possa se aproveitar da natureza generosa do seu ser. Dedicando-se ao serviço agápico, porém, o sujeito corre o risco de ver o seu próprio ser reduzido por um soberano erótico, alguém que ainda não tenha se movido para além de uma plena-atenção dialética. Segundo Desmond, esse risco é parte constitutiva do modo de ser de um serviço agápico20. Somente quando o sujeito retorna para o inter da comunidade, verdadeiramente terá transcendido a si mesmo e, enquanto tal, poderá reconhecer a 19 20 DESMOND, 1995a, p.452. DESMOND, 1995a, p.457-458. 19 José Carlos Aguiar alteridade nos outros através dessa transcendência. Porque o movimento agápico de transcendência traz consigo um desejo de arriscar a certeza e a segurança da autoidentidade, o serviço agápico pode ser visto como uma espécie de sacrifício. A palavra “sacrifício” tem aqui a conotação de tornar sagrado, sacer facere, através do serviço divino21. A atenção-plena planetária e o serviço agápico O sacrifico agápico significa um dar-se ao outro por causa da alteridade e não por causa de um retorno à identidade. Somente assim pode o sujeito superar a oposição dualista entre identidade e alteridade. Em outras palavras, o que está em jogo aqui é um verdadeiro entendimento do ser que ultrapasse uma plena-atenção que almeje o completo domínio da natureza. Trata-se de se cultivar outro modo de atenção-plena que se aventure para além da soberania erótica da consciência moderna e se arrisque na insegurança de um serviço agápico metaxológico. Uma abertura genuína à natureza e um verdadeiro conhecimento do mundo pedem que se corra o risco de ir além do que já é conhecido e revelado pela linguagem neutra da matemática. Consequentemente num só movimento uma nova consciência plenamente atenta se encontra genuinamente presente tanto a si mesma quanto à alteridade da natureza. Aqui não existe mais a pretensão do domínio erótico, mas uma nova soberania forjada no serviço agápico que oxalá nos conduza a uma nova consciência planetária22. Referências BUCKLEY, Philip R. Husserl, Heidegger and the Crisis of Philosophical Reponsability. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1992. 21 22 20 DESMOND, 1995a, p.453. Ver DESMOND, 1990. Ver também DESMOND, 1992. A atenção-plena metaxológica e a crítica ao conceito de consciência planetária DESMOND, William. Being and the between. New York: University Press, 1995a. DESMOND, William. Beyond Hegel and Dialectic: Speculation, Cult and Comedy. Albany: State University of New York Press, 1992. DESMOND, William. Desire Dialectic and Otherness: An Essay on Origins. New Haven: Yale University Press, 1987. DESMOND, William. Perplexity and Ultimacy. New York: University Press, 1995b. DESMOND, William. Philosophy and Its Others: Ways of Being and Mind. Albany: State University of New York Press, 1990. GURWITSCH, Aron. Phenomenology and the Theory of Science. Evanston: Northwestern University Press, 1974. HEELAN, Patrick A. “Husserl´s Philosophy of Science”. Husserl´s Phenomenology: A Textbook. Washington: Catholic University of America Press, 1988. HUSSERL, Edmund. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology an introduction to phenomenological philosophy. Evanston: Northwestern University Press, 1970. ______________________________________________________ José Carlos Aguiar [email protected] 21 O PLURALISMO RELIGIOSO A PARTIR DE CLAUDE GEFFRÉ Cristiano Andrade Teodoro Introdução O trabalho aqui elaborado será fundamentado no pensamento teológico do francês Claude Geffré1. Este traz para o centro da reflexão teológica atual a necessidade de um pluralismo religioso. Torna-se evidente, ao depararmos com a obra aqui analisada, “Crer e Interpretar: a virada hermenêutica da teologia”, que o teólogo propõe um olhar novo para o pluralismo religioso. Este é posto como novo paradigma para as religiões. As linhas metodológicas do texto se dividirão em dois grandes blocos. O primeiro, “A hermenêutica como princípio teológico em Claude Geffré”, buscará na hermenêutica proposta por ele luzes que clareiem a reflexão. No segundo bloco, “Pluralismo religioso em Claude Geffré”, realizaremos uma aproximação específica nas diretrizes alcançadas pelo teólogo no que diz respeito ao tema levantado. Portanto, o pequeno artigo confeccionado não está acabado, pois o tema é amplo e merece mais aprofundamento. Assim, trabalharemos com Claude Geffré como força 1 Claude Geffré, nascido em Niort, França, em 1926, é padre da Ordem dos Pregadores, mais conhecidos por Dominicanos. Dedicou-se ao ensino de teologia na Faculdade Dominicana de Saulchoir e no Instituto Católico de Paris. Também esteve na direção da Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém; colabora na revista internacional de teologia Concilium. O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré iluminadora das linhas que se seguem. Entretanto, no desenvolvimento do texto dialogar-se-á com outros autores que poderão ajudar na busca incansável de um diálogo fecundo e promissor do debate, a saber: Faustino Teixeira, Roberlei Panasiewicz, José Maria Vigil, Leonardo Boff e André Torres Queiruga. Portanto, colocar-se-á o tema do pluralismo religioso no cerne da reflexão teológica. 1 A hermenêutica como princípio teológico em Claude Geffré No caminho por buscar uma aproximação hermenêutica na sua reflexão teológica, Claude Geffré formula, como teólogo católico no universo cristão, suas reflexões e inovações diante de uma teologia dogmática por vezes considerada como a maneira certa de fazer teologia. É importante ressaltar que para Geffré a razão teológica baseia-se numa compreensão histórica e não numa mera especulação. Portanto, a hermenêutica toma o lugar de prioridade absoluta no pensamento do francês e é o primado de sua teologia2. O capítulo se dividirá em duas grandes partes. A primeira buscará esclarecer a hermenêutica como novo paradigma de fazer teologia. A segunda, quais as consequências trazidas por esse modelo. 1.1 Fazer teologia: busca hermenêutica No início do primeiro capítulo do livro de Geffré, o autor salienta que teologia como hermenêutica entende-se como forte e crítica3. Com efeito, o autor busca uma dimensão no interior da razão que coloque a hermenêutica como pano de fundo da sua reflexão teológica. A questão em foco é, segundo o autor: o que vem a ser a razão teológica quando a 2 3 PANASIEWICZ, 2004, p.75. GEFFRÉ, 2004, p.29. 23 Cristiano Andrade Teodoro teologia se dá conta não apenas de uma ruptura com a antiga metafísica, em particular a metafísica da substância, mas também uma ruptura com as filosofias do sujeito, enquanto que a filosofia moderna tende a tornar-se cada vez mais uma filosofia da linguagem4? Geffré elucida que durante séculos a razão teológica foi identificada com a razão especulativa, a chamada Ratio. Entretanto, na atual conjuntura é necessário que façamos um distanciamento pedagógico da metafísica e nos aproximemos de um “compreender histórico no sentido de Heidegger e de Gadamer [...] com Paul Ricouer da hermenêutica filosófica contemporânea”5. Assim, verifica-se que uma tentativa de colocar a teologia nos princípios da ciência moderna é um risco constante, pois a noção de ordem estabelecida na modernidade exige transformação axiomática para uma compreensão empírica e histórica da ciência. É necessário perceber a teologia como linguagem. Não é um mero discurso, porém um incansável esforço interpretativo sobre Deus. Enfaticamente, Geffré escreve que “não existe saber direto da realidade fora da linguagem e a linguagem é sempre uma interpretação”6. A partir disso, se elenca no pensamento de Claude que “a teologia vai justamente levantar a questão da relação do teólogo hermeneuta com o seu texto”7. É nesse itinerário que o hermeneuta coloca no seu horizonte os textos fundadores do cristianismo que transmitem, em linguagem humana, Deus. A hermenêutica dos textos fundadores se volta, portanto, “de um lado, à positividade de uma revelação e, de outro lado, à intencionalidade da fé do sujeito que crê”8. Aqui cabe distinguir que um texto fundador resiste a uma interpretação definitiva. 4 5 6 7 8 24 GEFFRÉ, 2004, p.30. GEFFRÉ, 2004, p.32. GEFFRÉ, 2004, p.33. GEFFRÉ, 2004, p.34. GEFFRÉ, 2004, p.34. O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré O texto ganha um caráter universal pela sua abrangência na comunidade e seus interlocutores. Na realidade de cada pessoa o texto se configura em uma nova forma e se equaciona num movimento aspiral crescente e aberto. A universalização nesse aspecto não significa dogmatizar, mas abertura ao novo sempre contagiante. Nas palavras de Leonardo Boff, o cristianismo não é um fóssil petrificado em suas fórmulas doutrinárias e em suas expressões históricas. Ele possui a natureza de um organismo vivo que cresce e se enriquece como fazem todos os organismos vivos: trocando valores e verdades a partir de sua identidade básica.9 Contudo, a teologia católica, sobretudo no que diz respeito à interpretação dos textos fundadores, defende a ideia de que o saber é definido pela autoridade10. Com a reforma protestante levantada a partir de Martinho Lutero, elucidando as 96 teses sobre o valor e a eficácia das indulgências e outros temas como penitência, culpa, pena, purgatório, primado, e acrescido a isto, as mudanças sociais, o fim da Idade Média e as revoluções oriundas da ciência, política e filosofia, provoca-se um processo de fechamento contínuo. Cresce o reforço da identidade sugerindo cada vez mais uma teologia dogmática ou Escolástica Pós Tridentina11. Há uma ausência total de diálogo da teologia católica com as tendências novas. Preferiu-se “o caminho de defesa, buscando a proteção nas afirmações doutrinárias da teologia patrística (séculos I a VII) e, sobretudo, da teologia escolástica (séculos VIII a XV)”12. O ponto de partida dessa teologia é o ensinamento do magistério e a Tradição ulterior. Geffré ilumina a questão escrevendo 9 p.61. 10 11 12 Boff, Leonardo. É o Cristo cósmico maior que Jesus de Nazaré. In: Concilium, n.319, PANASIEWICZ, 2004, p.76. PANASIEWICZ, 2004, p.76. PANASIEWICZ, 2004, p.76. 25 Cristiano Andrade Teodoro que: O discurso teológico que é, no fundo, o reflexo da igreja institucional, tende a tornar-se um sistema irrefutável no sentido de Popper, correndo, além disso, o risco de degradar-se em ideologia, isto é, um ensinamento oficial que justifica as decisões do magistério seja qual for a resistência dos textos escriturísticos e das tradições interpretativas destes textos13. O grande ganho de uma teologia dogmática é a segurança do magistério e de fé no que diz respeito às verdades da mesma. O risco dessa postura é a perda de autonomia reflexiva, transformando o pensamento numa ideologia a serviço, meramente, do poder institucional. Com isso, perdese a dimensão criativa e irradiadora do novo que o ser humano é capaz na sua inteligibilidade. Torna-se necessário dizer que o hermeneuta deve estar inscrito na tradição que o texto lido está sendo interpretado, pois só assim, a partir de sua realidade, forjam-se novos conceitos. A linguagem adquire um mecanismo neutro e maleável. Com efeito, novos conceitos surgem da tensão entre o texto, a realidade onde se encontra o sujeito e o próprio interlocutor. Nas palavras de Geffré, é fundamentalmente importante “discernir os elementos fundamentais da experiência cristã e dissociá-los das linguagens nas quais esta experiência foi traduzida”14. Portanto, levanta-se a boa situação hermenêutica elencada por Geffré. A relação se estabelece entre a experiência cristã das primeiras comunidades e a experiência atual. A atualidade da experiência cristã se faz quando nesse encontro olha-se para trás e projeta-se para frente. Assim, cabe perguntar sempre qual o texto que faz vislumbrar o acontecimento de Cristo 13 14 26 GEFFRÉ, 2004, p.36. GEFFRÉ, 2004, p.37. O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré sempre contemporâneo. “E possibilitar o discernimento dos elementos fundamentais e da experiência cristã será tarefa da hermenêutica”15. 1.2 O modelo hermenêutico e suas consequências numa virada teológica Na busca por um novo modelo de fazer teologia, Geffré estabelece a hermenêutica como fundamento. Com efeito, a partir disso, representa-se um momento novo da reflexão teológica, pois traz possibilidades de “descobertas, articulações, perspectivas e, sobretudo, um diálogo com a cultura moderna”16. Já no Concílio Vaticano II17, se percebem tensões no interior da Igreja diante das propostas elaboradas, pois a consciência cristã sempre esteve marcada pelo axioma “extra ecclesiam nulla salus” (fora da Igreja não há salvação). A irradiação desse imperativo provoca uma conclusão: o “máximo que se concede às outras religiões é a presença de uma ‘ânsia’ de conhecer a Deus”18. Portanto, o autor busca um distanciamento dessa postura neo-fundamentalista e serão, as consequências de sua proposta, luzes para redefinir o pluralismo religioso como paradigma para as religiões. São três consequências aqui desenvolvidas: 1) A Escritura: uma abordagem nova. 2) Re-criar a Tradição. 3) Uma nova prática eclesial a partir da hermenêutica. 1.2.1 A Escritura: uma abordagem nova 15 16 PANASIEWICZ, 2004, p.82. PANASIEWICZ, 2004, p.84-85. 17 Conferir, especificamente, a constituição pastoral Gaudium et Spes, bem como os decretos Unitatis Redentegratio e Orientalium Ecclesiarum e as declarações Dignitatis Humanae e Nostra Aetate. 18 TEIXEIRA, Faustino. O pluralismo religioso como novo paradigma para as religiões. In: Concilium, n.319, p.25. Ver João Paulo II, Redemptoris missio. Petrópolis: Vozes,1991, n.45. 27 Cristiano Andrade Teodoro Geffré utiliza como pano de fundo a hermenêutica textual proposta por Paul Ricouer. Esse estudo interessa para o teólogo em duas faces. A primeira diz respeito ao distanciamento aos preconceitos ou ilusões positivistas de uma objetividade textual. Já a segunda, à ilusão romântica de uma congenialidade entre o leitor de hoje e o autor de um texto passado19. É importante destacar que o texto escapa ao seu autor. Quando escrito ou falado já não é mais do autor. O discurso ganha uma vida própria e fecunda-se nos ouvidos dos interlocutores. Nas palavras de Ricouer: “Compreender-se é compreender-se diante do texto e receber dele as condições de um outro eu que aquele vem a leitura”20. Sendo assim, quando a leitura adquire um significado para o leitor esta o transformará. A sagrada escritura narra a história de fé do povo de Israel. A questão é como entender que uma construção histórica particular tenha alcance universal. Aqui se projetam dois riscos. O primeiro diz respeito a “uma hermenêutica que se prende ao mundo do texto e não à idéia de um sentido já existente”21. Quer se chegar das palavras do autor ao querer de Deus. Nas palavras de Geffré é o que se pode “chamar ao mesmo tempo uma teoria da generalidade e também uma certa concepção do profetismo”22. Já o segundo risco torna-se claro quando o hermeneuta não tem consciência de que está diante de um texto no qual a escrita já é uma interpretação do fenômeno, isto é, do fato em si. Segundo o autor, “portanto, o trabalho do hermeneuta é interpretar uma interpretação. E essa interpretação nos remete a uma experiência de que ela própria já é uma experiência interpretante do evento”23. 1.2.2 Re-significar a tradição 19 20 21 22 23 28 GEFFRÉ, 2004, p.44. RICOUER apud GEFFRÉ, 2004, p.45. GEFFRÉ, 2004, p.45. GEFFRÉ, 2004, p.45. GEFFRÉ, 2004, p. 48. O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré Uma leitura nova da escritura nos faz pensar em uma resignificação da tradição. Nesse sentido está no horizonte do pensamento de Geffré que “re-criar” a tradição não simboliza apenas uma “adaptação atualizada de uma afirmação da tradição, mas sim para re-situar e re-interpretar a verdade de fé”24. Existe aqui um conflito emergente entre teólogos e magistério da Igreja. É uma oposição entre leitura histórica e leitura dogmática. Nas palavras do autor, a teologia dogmática elucida as verdades de fé de maneira autoritária, como garantidas unicamente pela autoridade do magistério ou da bíblia, sem nenhuma preocupação com a verificação crítica concernente à verdade testemunhada pela Igreja25. Não obstante, a teologia hermenêutica é contrária a todo fechamento em certezas pré-estabelecidas. Enquanto uma teologia dogmática se diz portadora da revelação, uma teologia hermenêutica é aberta ao risco de interpretação, tanto da escritura quanto da Tradição. Portanto, para Geffré, “uma leitura que busque a reinterpretação da tradição ou de um enunciado dogmático pode conduzir a reformulações”26. 1.2.3 Uma nova prática eclesial a partir da hermenêutica A releitura da tradição e uma nova abordagem escriturística provocam uma prática eclesial diferente e, consequentemente, aberta. Entende-se eclesial como comunhão entre irmãos. O conceito de ecclesia não poderá ser fechado. Ele está circunscrito na prática cristã27. Nessa perspectiva, a teologia se baseia em uma lógica indutiva, ou seja, parte da realidade até 24 25 26 PANASIEWICZ, 2004, p.87. GEFFRÉ, 1989, p.63. PANASIEWICZ, 2004, p.86. 27 GEFFRÉ, 1989, p.28. Na elaboração teológica no contexto latino-americano o “primado da práxis” tem seu lugar assegurado. Para aprofundar essa reflexão cf. BOFF, Clodovis. Teologia e prática: teologia do político e suas mediações. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1982. p.273-289. 29 Cristiano Andrade Teodoro a conceituação. Diferentemente desse método temos o método dedutivo: a aplicação na realidade de conceitos de antemão já organizados. Neste, perde-se a dimensão da novidade que poderia ser vislumbrada no contato com o real e suas manifestações diversas. Geffré adota o método indutivo. Ele norteia-se no seguinte princípio: “não existe teologia cristã sem prática eclesial de fé”. Com isso, Deus manifesta-se na atuação da comunidade de fé, pois “a liberdade humana é a porta para a novidade da interpretação divina no mundo”28. Um novo lugar de fazer teologia proporciona uma abertura a um pluralismo de teologias. Valorizam-se as interpretações e as realidades culturais adversas. Não se trata de um relativismo da identidade cristã. Porém, um reforço originário na busca por uma percepção da identidade sempre em construção. Para Geffré um bom exemplo de teologia baseada na hermenêutica prática é a Teologia da libertação: Nela há uma reinterpretação da salvação cristã a partir da situação de opressão, e a mensagem dos textos bíblicos é interpretada a partir desse contexto. O lugar teológico de fazer hermenêutica, para a teologia da libertação, é a história compreendida como história dos oprimidos e dos empobrecidos29. Por fim, nas palavras de Geffré percebe-se que “prática não é apenas a aplicação de um discurso teórico: a prática é em si mesma uma matriz de sentido”30. 28 29 QUEIRUGA, 1999b, p.135. PANASIEWICZ, 2004, p.88. 30 GEFFRÉ, 2004, p.55. A Teologia da Libertação tem por mística a percepção de que Deus sofre no rosto do empobrecido e está gritando por libertação. Para reparar tal opressão, ela dá atenção especial à prática, entretanto não é prática isolada, mas inserida num método. Este possui três mediações: mediação socioanalítica (ver), mediação hermenêutica (julgar) e mediação prático-pastoral ou dialética teoria-práxis (agir). Para aprofundamento: BOFF, Clodovis. Teologia e prática: teologia do político e suas mediações. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1982. 407p. 30 O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré 2 Pluralismo religioso em Claude Geffré: “Jesus como universal concreto” O norte de nosso estudo sobre o pensamento de Claude Geffré é a dimensão cristológica. Esta deve sofrer uma modificação a partir do momento em que fixamos a universalidade no Cristo e não no cristianismo. A reflexão nesse âmbito exige uma atitude kenótica. Esvaziar-se dos velhos paradigmas para se iluminar de outros. Com efeito, oriundo de um paradigma cristocêntrico, Geffré sistematizou seu pensamento sobre o pluralismo religioso a partir do conceito de “Jesus como universal concreto”. Posto a hermenêutica como princípio teológico e a mesma como novo paradigma de fazer teologia, urge abordar a dimensão cristológica e alguns desdobramentos que se seguem. 2.1 Jesus Cristo: Filho encarnado de Deus A encarnação ocupa lugar especial no diálogo salvífico de Deus31. Deus se auto-oferta (revela-se) ao ser humano. É uma oferta gratuita, sem nenhuma relação mercantil da fé. Assim a graça não pode ser cobrada e a princípio é dada a todos. Nota-se que a encarnação é ato salvífico de diálogo entre Deus e seu povo; a partir disso algumas questões poderão ser levantadas: um Deus que se encarna contribui ou atrapalha no diálogo interreligioso? A encarnação de Jesus o torna, para o cristianismo, mediador do Pai. Nesse âmbito seria somente através de Jesus Cristo que alcançaríamos a salvação? Nunca se buscou tanto em nosso tempo o sagrado e suas diferentes formas para alcançar a salvação ou ainda uma relação com o transcendente. Houve momentos de profundo ateísmo bem como o retorno ao sagrado. Nas palavras de Geffré, percebe-se que, para 31 Para aprofundamento: cf. MIRANDA, Mario de França. A salvação de Jesus Cristo: a doutrina da graça. São Paulo: Loyola, 2004. 244p. 31 Cristiano Andrade Teodoro fazer um diagnóstico sobre a nossa experiência histórica contemporânea, deve-se conciliar ao mesmo tempo o que nem sempre é evidente, a permanência da secularização, o ateísmo, a indiferença religiosa e o que se chama retorno do religioso, o retorno do sagrado32. Claude Geffré, aprofundando essa temática, afirma que o evento Jesus é o dado novo do cristianismo. Jesus, no que tange a relação com Deus, propõe uma maneira nova de estabelecêla. Segundo o autor, “essa novidade se traduz especialmente no espírito novo com o qual são assumidos um universo de pensamento, uma visão do mundo e do homem, um estilo de vida e categorias éticas, que podem ser antigos”33. A novidade não se equaciona com um relativismo, pelo contrário, ela fará que o cristianismo pense com criatividade e elegância o relacionamento com essa realidade emergente, o pluralismo religioso34. Por conseguinte, essa maneira nova de Geffré pensar a teologia está submersa nas reflexões tipológicas abordadas35 no ponto posterior. 2.2 Debate tipológico: exclusivismo, inclusivismo e pluralismo A nomenclatura utilizada e os teóricos que a defendem não são homogêneas. Na tentativa de responder ao debate sobre o pluralismo religioso, os teólogos fundamentaram suas posturas a partir de exclusivismo, inclusivismo e 32 GEFFRÉ, 2004, p.134. Para aprofundamento: cf. OTTO, Rudolf. O Sagrado. Petrópolis: Vozes, 2007. 33 GEFFRÉ, 1989, p.220. 34 Na reflexão sobre o pluralismo religioso Geffré irá assumir um pluralismo de princípio como possibilitador no desenvolvimento progressivo da teologia. 35 Seguem as reflexões a partir do pensamento de Panasiewicz sobre as tipologias. Para compreender melhor as tipologias ou paradigmas, ou, ainda, correntes da teologia das religiões com os respectivos representantes, ver: TEIXEIRA, Faustino. Teologia das religiões: uma visão panorâmica. São Paulo: Paulinas, 1985. p.37-114; DUPUIS, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p.251-294; HAIGHT, Roger. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003. p.459-464. 32 O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré pluralismo. Sistematicamente, aproximemo-nos do significado dessas três vias do estudo sobre o pluralismo religioso e, consequentemente, adota-se nesse trabalho uma delas como norte da reflexão sugerida por nós. Os exclusivistas são aqueles que se apoiam no famoso axioma “extra ecclesiam nulla salus”. Estes, como pano de fundo de suas reflexões, colocam a Igreja como ponto de partida. Em outras palavras, são eclesiocentristas. A fórmula dita em um contexto particular adquire caráter universal à medida que é sujeitada para todos. Essa formulação tem como objetivo guardar o depositum fidei. A maneira de participação desse espaço é através da Igreja Católica. Aqui o batismo é exaltado, pois, assim, deixa-se de ser meramente criatura e se torna filho de Deus36. O segundo modelo é extremamente forte em nossa cultura atual. Todas as igrejas, e também por que não dizer algumas religiões, realizam propagandas sobre a salvação. A salvação se dá em todos os meios. Até aqui a premissa está correta. O problema é o neo-fundamentalismo cristão que emerge de uma postura cristocêntrica. Não se permite pensar a salvação a partir de outra fundação religiosa a não ser a partir de Jesus, o Cristo. Subjacentes a esse paradigma consolidam-se duas teorias: a teoria do acabamento ou da realização (cumprimento) e a teoria de Cristo presente nas religiões. Na primeira, constatase que Deus é sobrenatural, por isso, inacessível. Com efeito, as religiões seriam formas naturais para acessar o sagrado. Porém, elas não o fazem, pois a “única” religião sobrenatural é a cristã. Essa tem em Jesus a mediação para a salvação. Ele sendo o Filho de Deus já está ao lado do mesmo. Assim, as religiões terão seu acabamento ou realização ou o cumprimento no cristianismo. Já a segunda teoria baseia-se na ideia de que “só Jesus salva”. O teólogo que fundamenta com maestria esse enfoque é Karl Rahner: “a antropologia transcendental (ou 36 Cf. LG 11, AG 7. 33 Cristiano Andrade Teodoro antropologia teológica) caracteriza a teologia rahneriana”37. Nessa perspectiva, ele cunhou a expressão “existencial sobrenatural”. “Significa que todo ser humano, pelo fato da criação, tem um existencial (natural) como referência originária ao mistério do absoluto”. Porém o homem/mulher por livre decisão e gratuidade de Deus é elevado ao nível de comunhão. Existe uma abertura ao transcendente como força constitutiva (sobrenatural). O ser humano é chamado à intimidade com Deus. Nas palavras de Rahner, “este existencial não se torna merecido ou devido e, nesta acepção, natural, pelo fato de estar dado a todos os homens como elemento permanente de sua existência concreta e pelo fato de estar previamente dado à sua liberdade, à sua autocompreensão e à sua experiência”38. Com efeito, dessa categoria do pensamento de Karl Rahner surge a nomenclatura de “cristãos anônimos”. Aqui se pode entender a salvação dos crentes de outras denominações religiosas e mesmo dos ateus. A postura existencial do homem/ mulher encontra em Jesus sua máxima realização. Em outras palavras, aquele que em suas práticas diárias exalta os valores evangélicos, mesmo sem conhecer, é um cristão anônimo. Não abraça a fé por algum motivo, seja ele de ordem pessoal, institucional ou, ainda, por não conhecer Jesus. Porém, o que nos interessa é o avanço na forma de entender a salvação proposta por Rahner. Já o terceiro modelo tem sua origem no pensamento de John Hick. Uma expressão por ele usada para compreender o pluralismo diz do seu pensamento. Ele propõe fazer “uma revolução copernicana na teologia”. Nota-se aqui a tentativa de Hick na reestruturação do lugar ocupado por Cristo. Ele afirma que não deve ser Jesus o centro para o qual tudo converge, mas Deus. Assim, Jesus é um mediador e não o mediador. Na mesma direção se pode afirmar que “cada tradição religiosa 34 37 PANASIEWICZ, 2004, p.130. 38 RAHNER, 1989, p.158. O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré possui vias próprias de salvação”39. No interior do debate entre inclusivismo (cristocêntrico) e pluralismo (teocêntrico) articula-se o inclusivismo aberto. Desse modo, surgem duas categorias interessantes para elucidar a tensão existente: Jesus Cristo é normativo ou constitutivo para a salvação? Normativo é quando Jesus é postado como revelador, ou seja, lei e referência de um caminho; constitutivo significa ser o único caminho e causa de salvação de todo ser humano. O autor escolhido, Claude Geffré, propõe um jeito novo de fazer teologia. Baseia-se nas suas convicções e na elaboração conceitual, categorias que explicitem seu lugar na reflexão. Não se trata da dissociação entre cristocentrismo e teocentrismo. Ele configura-se como inclusivista, à medida que todas as religiões são mediações de salvação pela mediação escondida de Cristo, e ao mesmo tempo pluralista, no sentido de levar a sério o valor intrínseco das religiões nas suas próprias diferenças. Nas diversas religiões existem elementos que podem favorecer a salvação de seus membros. Assim, ele trabalhará os valores crísticos e valores implicitamente cristãos. 2.3 Mediação: valores crísticos e valores implicitamente cristãos A questão de fundo pendente no momento é como incluir o cristocentrismo na medida em que este se abra às verdades presentes em outras religiões. Claude Geffré tenta “distinguir entre valores crísticos, ou universalidade do Cristo, de valores implicitamente cristãos ou universalidade do cristianismo”40. Paralela à pergunta fundante existe outra questão. Será que Jesus Cristo abarcou em sua vida toda a irradiação de Deus? Consequentemente a isso, o cristianismo seria capaz, mesmo em suas contingências históricas, de captar todo o mistério? Geffré, desse modo, deseja encontrar um fundamento 39 PANASIEWICZ, 2004, p.133. 40 PANASIEWICZ, 2004, p.135. 35 Cristiano Andrade Teodoro teológico para o julgamento positivo das tradições religiosas da humanidade. É preciso dizer que, segundo o desígnio de Deus, o mistério salvador de Cristo está presente e atua nas grandes religiões do mundo. Nesta perspectiva, o cristianismo poderá beber de outras fontes religiosas. Poderse-ia dizer de um processo pelo qual, por meio da maiêutica, extraem-se novas facetas do mistério de Cristo irradiadas na experiência (contato) com as demais formulações religiosas. Assim, segundo o autor, a “superabundância do mistério de Cristo, não encontrou sua tradução adequada no cristianismo histórico que conhecemos, e assim, outras tradições religiosas podem misteriosamente encarnar certos valores crísticos”41. Os valores crísticos configuram-se em três ordens: ordem do conhecimento, ordem do culto e ordem da ética. A primeira diz respeito a uma tradição religiosa possuidora de textos sagrados que tentam demonstrar as descobertas do verdadeiro Deus. Já a segunda, a ordem do culto, elucida os ricos como aprendizagem e caminho da verdade na tentativa do homem de se encontrar com Deus. Por último, a ordem da ética equaciona-se na práxis. Aqui se valoriza a prática de justiça, compaixão, hospitalidade, fraternidade, cortesia e a relativização de si para uma abertura ao grande-outro. Essas atitudes podem ser antecipações do Reino de Deus. Portanto, Claude Geffré aponta seu pensamento para os valores crísticos deixando de lado os valores implicitamente cristãos. Estes universalizam o cristianismo e com isso suas práticas dogmáticas. Os dogmas já são orientações prévias sobre a fé e não permitem que a mesma possa se abrir a formulações de estruturas religiosas adversas. A partir de valores implicitamente cristãos, assimilados e difundidos pelo cristianismo histórico, percebe-se a vivência implícita destes por outras religiões. Com efeito, assumindo-se os valores crísticos, Geffré deseja trilhar outro caminho. Dá-se ênfase à universalidade de Cristo, enquanto verbo encarnado, e não ao 41 36 GEFFRÉ, 2004, p.160. O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré processo universalizante do cristianismo. Nessa perspectiva, pode-se responder aos questionamentos cavados no início deste tópico. Jesus abarcou uma realidade de Deus. Isso não impede que Deus continue se revelando através de outras pessoas de bom coração (fundadores das grandes religiões). “A tradução de Cristo em milhares de outros Cristos explicita virtualidades contidas na pessoa paradigmática de Jesus Cristo como homem perfeito”42. Em relação à outra questão, o cristianismo não é capaz de captar todo mistério. As demais religiões também podem ser espaços iluminadores de Deus. Em outras palavras, as religiões encontrarão sua realização última em Jesus Cristo, mas elas não encontrarão sua explicação verificável no cristianismo. Assim, emerge dessas tensões uma pergunta: o que fazemos com a encarnação? 2.4 Encarnação: Cristo como universal concreto Agora provém da encarnação o conceito de Cristo como universal concreto. Claude Geffré recorrerá a essa expressão cunhada por Nicolau de Cusa para se aproximar do mistério da encarnação. Argumenta Geffré: em vez de recorrer a um teocentrismo geral, acho que é um aprofundamento do mistério da encarnação que deve permitir-nos compreender como se pode manter a singularidade do mistério de Cristo, sua unicidade, sem fazer com que essa unicidade conduza a uma espécie de imperialismo e de hegemonia do cristianismo em relação às outras religiões43. No interior do cristianismo desenvolvem-se duas percepções do verbo (logos). O verbo encarnado eterno e encarnado. Não se trata de olhá-los distintamente, mas sempre inseparáveis. Aqui está a originalidade dessa religião. 42 GEFFRÉ, 2004, p.160. 43 GEFFRÉ, 2004, p.163. 37 Cristiano Andrade Teodoro Pensa-se “Deus como realidade transcendente a partir da humanidade concreta de Jesus de Nazaré”. Jesus torna-se o ícone de Deus. Contudo, é preciso resguardar essa colocação, pois equacionaria o elemento histórico e contingente de Jesus com seu elemento crístico e divino, isto é, a encarnação de Deus pela mediação humana. Assim, a encarnação de Deus permite uma identificação com ele. Mas esta remete a um Deus inacessível que escapa a toda identificação. Jesus manifesta concretamente o logos. Isso permite realizar uma reflexão entre o absoluto concreto e o absoluto universal. Encontra-se aqui um paradoxo. Deus se rebaixa para assumir a condição humana. Assumindo essa condição humana, ou seja, limitada, contingente, fraca, instintiva, cheia de desejos, Deus deixa de ser absoluto nessa experiência. Entretanto, enquanto Cristo permanece o caráter de universalidade. A imagem da cruz adquire força. Ela é o ápice do rebaixamento e do amor de Deus pela humanidade, “é o símbolo de uma universalidade sempre ligada ao sacrifício de uma particularidade”44. Ao morrer, Jesus de Nazaré emerge, universalmente, o Cristo. É fácil entender isso quando se nota que, na história do cristianismo, o evento Jesus de Nazaré foi particular de um povo. Contudo, à medida que Jesus de Nazaré vai se configurando como o Cristo, a abrangência de seu testemunho é universalizada na prática dos cristãos, seguidores dos seus ensinamentos. Segundo o autor: Se quisermos manter no diálogo inter-religioso uma identidade cristã, não podemos definir esta singularidade cristã fora da cruz de Cristo como figura do amor absoluto de Deus. É por isso que é impossível no cristianismo opor cristocentrismo e teocentrismo. No cristianismo não há teocentrismo sem uma referência a Jesus Cristo como figura do Absoluto45. 38 44 GEFFRÉ, 2004, p.167. 45 GEFFRÉ, 2004, p.169. O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré Em suma, cabe dizer que não resta dúvida de que Jesus e Cristo são a mesma pessoa. Entretanto, destaca-se no pensamento cristológico de Geffré a cruz como instrumento mediador para a universalidade de Cristo. Por meio dela confirma-se a ideia de que Jesus é o elemento concreto através do qual o homem tem acesso a Deus. Ao olhar a particularidade de Jesus Cristo se revela a dimensão universalizadora do próprio Deus. Conclusão Há de se fazer uma retomada da reflexão sobre o caminho aqui percorrido. Primeiro trabalhamos a hermenêutica como pano de fundo para o pensamento teológico de Claude Geffré. O processo hermenêutico provoca suas consequências. A partir desse fundamento explicitamos o caminho percorrido por Geffré a fim de promover categorias que possam auxiliar no diálogo inter-religioso. Claude resgata o conceito de “Cristo como universal concreto” do cardeal Nicolau de Cusa. Aqui se pensa a encarnação em outra perspectiva. Surge a necessidade de levantar algumas implicações para o diálogo. São critérios de um ecumenismo interreligioso, a saber: o respeito do outro em sua identidade própria, a fidelidade no que diz respeito à sua identidade, a igualdade entre os parceiros para que haja diálogo e um ecumenismo planetário. Primeiro, para qualquer tipo de diálogo devemos ir ao encontro do outro respeitando a sua identidade. Não existe conversa, reflexão em um monólogo. Respeitar o outro é se desfazer dos preconceitos em relação a outrem. É olhálo na sua alteridade. Perceber que na diferença pode morar o complemento. Assim no respeito criamos ternura, afeto e relação fraterna. Segundo, no diálogo é preciso saber de antemão a identidade própria. Trata-se de relativizar aquilo que é 39 Cristiano Andrade Teodoro supérfluo e expressar o fundamento. Com essa atitude, experimentar-se-á uma máxima da Igreja: “aquilo que nos separa não pode ser maior do que aquilo que nos une”. Terceiro, é necessário a igualdade no diálogo. As vozes serão equacionadas. Não é o número de fiéis que poderá dar uma escuta maior. Todos participarão do debate com voz e vez. Assim, facilitará a escuta (percepção) de novas manifestações pelo Sagrado em todas as direções. Quarto, a busca por ecumenismo planetário urge. É necessidade vital. O retorno ao sagrado nos fará ter uma percepção do pluralismo como vitalidade global, isto é, planetária. Isso trará à tona o cuidado para com as criaturas. A compaixão como sentimento oriundo da luta contra os processos destrutivos em nosso planeta, sobretudo no que diz respeito à natureza. Portanto, o caminho é longo. As reflexões não estão fechadas. Quanto mais se mexe, maiores são os abismos. É preciso uma postura de discípulo tentando captar o mistério, o que o pluralismo quer nos dizer. Referências: BOFF, Clodovis. Teologia e prática: teologia do político e suas mediações. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1982. GEFFRÉ, Claude. Pluralidade das teologias e unidade da fé. In: LAURET, B. e Refoulé, F. (orgs). Iniciação à prática da teologia I. São Paulo: Loyola, 1992. Geffré, Claude. Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004. GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa 40 O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré sobre as origens da mudança cultural. 12. ed. São Paulo: Loyola, 2003. HORTAL, J. “A Igreja e os novos grupos religiosos”. Estudos da CNBB, São Paulo, n. 68, 1993. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 9.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. MIRANDA, Mario de França. A salvação de Jesus Cristo: a doutrina da graça. São Paulo: Loyola, 2004. Panasiewicz, Roberlei. Pluralismo religioso contemporâneo: diálogo inter-religioso na teologia de Claude Geffré. São Paulo: Paulinas, 2007. QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar a cristologia: sondagens para um novo paradigma. São Paulo: Paulinas, 1999a. QUEIRUGA, André Torres. Recuperar a criação: por uma religião humanizadora. São Paulo: Paulus, 1999b. RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulus, 1989. Teixeira, faustino. Teologia das religiões: uma visão panorâmica. São Paulo: Paulinas, 1995. TEIXEIRA, Faustino. O pluralismo religioso como novo paradigma para as religiões. Concilium, n.319. ______________________________________________________ 41 RESGATE DA MÍSTICA NA LITURGIA A PARTIR DO CONCÍLIO VATICANO II 1 Valeriano dos Santos Costa Introdução A Igreja Católica vive sob impacto de um dos maiores eventos de sua história, que é o Concílio Vaticano II. No bojo desse evento está a reforma geral da liturgia, realizada logo no início, abrindo assim um caminho que marcou todo o trajeto conciliar. Mais de quatro décadas passadas, é necessário buscarmos nas fontes da própria reforma as luzes que nos ajudam a compreender a grandeza dos avanços e o porquê das falhas em algumas aplicações conciliares. Isso, para que nos projetemos de forma lúcida e perspicaz na aplicação do sonho que o Concílio representa. Esse sonho, com certeza, aponta para a mística, que na liturgia tem seu espaço mais natural. A mística na liturgia foi espetacularmente resgatada pela Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, mas não posta em prática como se esperava. O futuro está em nossas mãos e, como profetizou Karl Rhaner, “o cristão do futuro ou será místico ou não será nada”2. Jesus 1 Este texto foi preparado em vista de dois dias de conferência que o autor realizou sobre o tema, no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA), em Belo Horizonte, em 09 e 10 de junho de 2009. 2 Citado por COSTA, Valeriano Santos. Viver a ritualidade litúrgica como momento Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II Cristo é a presença de Deus, que deixou o cimo da montanha para habitar conosco no vale da história, tornando-se Palavra para ser ouvida, Pão para ser comido, Sangue para ser bebido, enfim, um Deus para ser conhecido, amado, assimilado, seguido e cultuado na intimidade. Em outras palavras, um Deus com o qual mantemos relações amorosas. Só um místico percebe o alcance disso. Este estudo é desenvolvido em quatro partes. A primeira parte define o que é mística, enquanto experiência pascal que extasiava as comunidades primitivas e que, de certa forma, se alojou nas apologias e bênçãos da Idade Média. A segunda parte trata da rígida uniformidade que se instalou na liturgia a partir do Concílio de Trento, prejudicando a entrega ritual que a mística extática exige. A terceira aborda o Movimento Litúrgico como a fonte do resgate da mística na liturgia. A quarta, por fim, trata do resgate da mística a partir do Concílio Vaticano II, mostrando que é uma mística que leva à participação litúrgica ativa porque é de cunho extático. O que é mística Antes de falarmos em resgate da mística a partir do Concílio Vaticano II, convém definir o que é mística, pois, como diz Paul Tillich, “é indesculpável se um teólogo usa termos sem tê-los definido ou circunscrito”3. É bom lembrar que “durante séculos foi impossível separar o conceito e o campo da mística do conjunto da teologia”4. Somente a partir de Bernardo de Claraval (1091-1153) é que o tratado da mística começa a ter vida própria. Alguns séculos mais tarde, porém, o conceito de mística perde toda a precisão desde que Rousseau (1712-1778) e os românticos entenderam a mística como a dimensão irracional do fenômeno religioso. histórico da salvação: a participação litúrgica segundo a Sacrosanctum Concilium. São Paulo: Paulinas, 2004. p.14. 3 TILLICH, Paul. Teologia sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 2000. p.68. 4 HUOT DE LONGCHAMP, Max. Mística. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004. p.1161. 43 Valeriano dos Santos Costa Aí vemos a vertente iluminista da filosofia, que aprisionará a mística no porão da ignorância. Nessa linha, a definição de religião por Schleiermacher como “sentimento de dependência absoluta” levou os seus discípulos a situá-la no reino do sentimento, como uma função psicológica qualquer. Isso provocou o banimento da religião para a margem irracional das emoções subjetivas. Tillich considera tal banimento uma inaceitável pena de morte para a religião5. Usaremos, então, o sentido mais clássico da mística cristã, que consiste numa nítida percepção de Deus por meio de uma profunda experiência do Mistério de Cristo6. As três palavraschave para a compreensão do fenômeno místico são, portanto: “experiência”, “mistério” e “Cristo”. Nesse trinômio, o que diferencia a mística do discurso teológico, por exemplo, é a “experiência”. Então, para facilitar, usaremos o termo mística significando a “experiência” da participação no mistério de Deus revelado em Jesus Cristo ou teologia primeira, e o vocábulo teologia com o significado de “discurso metodológico sobre esta experiência” ou teologia segunda. Segundo O peregrino querúbico, obra prima de Angelus Silesius (1624-1677)7, podemos também dizer que a mística 5 TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p.23. 6 1162. HUOT DE LONGCHAMP, Max. Mística. In: LACOSTE, Jean-Yves. Op. Cit., p. 7 Angelus Silesius (o Anjo da Silésia) é o nome com o qual Johannes Scheffer assina a sua obra prima, O peregrino querúbico. Nasceu em 1624, em Breslau, na Polônia. Nascido em uma família luterana de posses, recebeu uma formação clássica. Estudou medicina em Strasbourg, Leyde e Pádua. Doutor em filosofia e medicina, tornou-se médico do príncipe de Öls, frequentando círculos místicos e ligando-se a Abraham von Franckenberg, discípulo de Jacob Boehme. Foi luterano fervoroso até os 29 anos. Um ano após a morte de seu mestre, Scheffler converteu-se ao catolicismo em 1653, tomando o nome de Angelus Silesius. Passou a viver em retiro e silêncio durante três anos, e publicando vários poemas. Ordenou-se padre em 1661, com 37 anos [...] Herdeiro da grande tradição de Eckhart e Tauler, mas também de Boehme, Angelus Silesius lhes deu uma expressão poética ímpar, além de qualquer formulação confessional. Deus é indefinível, ao mesmo tempo Tudo e Nada, Ser e Nada. Diante de seu Criador, o homem não é nada e no entanto nele somente, que é “à imagem de Deus”, este pode se contemplar. O homem deve assim abandonar-se totalmente, esvaziar-se de si-mesmo, para tornar-se aquilo que verdadeiramente é, um reflexo divino e deste modo eterno. O peregrino querúbico influenciou muitos filósofos alemães, sendo reconhecido como uma das formulações mais notáveis de uma mística que supera toda e qualquer convenção. Cf. RIBEIRO e SILVA, Gilberto. Angelus Silesius (1624-1676). In: Coração místico, 14 dez. 44 Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II é a capacidade de ver Deus agora: “Tu dizes que verás a Deus e a sua luz, estulto nunca o verás se não o vês agora”8. Então a mística é a experiência da visão de Deus que se dá na contingência da história, fundindo o sobrenatural e o mais íntimo do ser humano nas profundezas misteriosas da intimidade homem-Deus, onde o encontro se dá. Encontro que Agostinho afirma ser inútil buscar fora do íntimo do homem, pois é lá que somos arrebatados e nos deixamos possuir pela beleza divina. Daí brota a experiência da graça de forma sensível e indizível, produzindo na alma a festa do encontro com Cristo9. Essa experiência se dá, então, no âmbito do sagrado, mas não de um sagrado em oposição ao profano e sim de um sagrado na perspectiva de A. Vergote, como a experiência da dimensão mais profunda da existência, onde aparecem o valor e o destino quase religiosos da existência humana e do universo10. Isso significa que todo ser humano tem uma propensão mística natural. Dessa forma, Karl Rahner entende pessoa humana como homo mysticus, ser extático criado para confiar-se voluntária e amorosamente ao Mistério, que se doa inteiramente e abraça a todos11. A mística das comunidades primitivas Para resgatar a mística que brota da reforma conciliar, convém resgatar a mística das comunidades primitivas, onde o Concílio Vaticano II buscou suas inspirações. Podemos destacar três características relevantes da mística vivida, sobretudo, 2007. Disponível em: <http://coracaomistico.blogspot.com/2007/12/angelus-silesius.html>. Acesso em: 01 set. 2009; VANNINI, M. Silesio, Ângelo. In: BORRIELO, L. et al. Dicionário de mística. São Paulo: Loyola/Paulus, 2003. p.970-971. 8 SILESIO, A. Il pelegrino cherubico. VI, 115, citado por DEL GENIO, M.R. mística. In: BORRIELO, L. et al. Dicionário de mística. São Paulo: Loyola/Paulus, 2003. p.706. 9 p.1162. Cf. HUOT DE LONGCHAMP, Max. Mística. In: LACOSTE, Jean-Yves. Op. cit. 10 Cf. VERGOTE, A. Equivoques et ariticulations du sacré. In: CASTELLE, E (ed.). Le care. Études et recerches: Actes du Colloque internactionel de Rome. Paris, 1974. p.471-492. 11 Cf. EGAN, H.D. Rahner Carl. In: BORRIELO, L. et al. Dicionário de mística. São Paulo: Loyola/Paulus, 2003. p.907. 45 Valeriano dos Santos Costa na liturgia das comunidades primitivas: era realmente uma teologia primeira, tinha caráter extático e comunitário. Era uma teologia primeira porque o dado experiencial da fé já traz em si uma compreensão da revelação antes de ser articulado metodologicamente num discurso (teologia segunda). E, justamente, só é possível fazê-lo porque se trata de uma compreensão nítida e luminosa, e não enigmática como o sorriso da Mona Lisa. Conforme Cesare Giraudo, isso faz parte de uma metodologia que marcou o primeiro milênio, quando os teólogos “primeiro rezavam e depois criam, rezavam para poder crer, rezavam para saber como e o que deviam crer”.12 Por isso, mais do que explicar, a Igreja primitiva se preocupava em celebrar a fé e aí perceber essa presença luminosa de Deus clareando os caminhos da vida. Era algo tão central, que podemos situá-lo no que Tillich chama de preocupação última, aquilo que determina nosso ser ou não ser. O termo “ser” neste contexto não designa a existência no tempo e no espaço [...] mas a totalidade da realidade humana, a estrutura, o sentido e o alvo da existência. Tudo isso está ameaçado, pode ser perdido ou salvo [....] O homem está incondicionalmente preocupado por aquilo que condiciona o ser para além de todas as condições nele e ao redor dele. O homem está de forma última preocupado por aquilo que determina o seu destino último para além de todas as necessidades e acidentes preliminares13. Nesta dinâmica da articulação entre teologia primeira e teologia segunda, a experiência de Deus em sua particular dinâmica celebrativa e o discurso inerente são entrelaçados. O exemplo mais claro vem dos Santos Padres, que falavam de Deus com uma intelecção acurada de quem tinha uma profunda experiência de Deus na dimensão celebrativa do Mistério. Porém, a partir do segundo milênio, quando a teologia se torna 46 12 GIRAUDO, Cesare. Redescobrindo a eucaristia. São Paulo: Loyola. 2003. p.10. 13 TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p.22. Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II uma obra da escola, e a oração uma atividade circunscrita à igreja ou ao foro íntimo, também houve a separação entre teologia e mística, de tal forma que o teólogo, salvo honrosas exceções, foi para as universidades pesquisar e postular seus discursos teológicos, enquanto o místico foi para o seu oratório rezar e buscar caminhos de aplicar a santidade no dia a dia. Essa dicotomia causa um enorme mal na Igreja, pois a fé, de cujo conteúdo a teologia constitui uma explanação metódica14, é, antes de tudo, o deslumbramento diante de Deus, a quem o crente se entrega confiantemente. Como diz Paul Tillich, o teólogo, ao contrário de outros pesquisadores, não pode se distanciar do seu objeto pesquisado, está envolvida nele numa atitude de comprometimento com o conteúdo que expõe. O teólogo é determinado por sua fé15. Então o discurso teológico sem mística fica sem chão, e a mística sem o discurso teológico fica sem ar. A mística das comunidades primitivas tinha também um profundo cunho extático, pois, como diz M. R. Del Genio, “a mística cristã originariamente não era esotérica, mas extática, e tem como fundamento Cristo morto e ressuscitado”16. Portanto, a mística não era uma experiência reservada a uns poucos iluminados, mas a todos os que se deixavam extasiar pelo mistério de Cristo. O encontro com Jesus arrebatou gente de todas as camadas sociais do império romano e forjou uma situação que o império teve de assimilar. Mas era na reunião litúrgica dominical que a mística manifestava o seu auge. Era aí que se vivia o êxtase, isto é, o encantamento experimentado no mergulho do mistério pascal propiciado por uma liturgia que tinha sinais da liturgia celestial. Por isso é muito provável que, diante dos tormentos do martírio, os que estavam para ser sacrificados pela causa de Cristo encontrassem força 14 Cf. TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p.33. 15 Cf. Ibidem, p.28-29. 16 DEL GENIO, M.R. Mística. In: BORRIELO, L. et al. Dicionário de mística. São Paulo: Loyola/Paulus, 2003. p.708. 47 Valeriano dos Santos Costa sobrenatural cantando hinos litúrgicos. E também podemos afirmar que os que viviam esta experiência extática na liturgia jamais deixaram de celebrar sua fé regularmente, ao passo que os que a perdiam desestimulavam-se e, daí, a necessidade da insistência pastoral em relação à frequência na liturgia, o que já aparece na Carta aos Hebreus: “Empenhemo-nos, portanto, por entrar nesse repouso, para que este exemplo de indocilidade não leve ninguém a cair” (Hb 4, 11). Cabe já antecipar que este caráter da mística na liturgia foi resgatado pelo Concílio Vaticano II. Por fim, a mística das comunidades primitivas tinha também um intenso caráter comunitário, pois, “além disso, desde o início ela assume a conotação eclesial, expressa principalmente pelo monaquismo”17. Na primeira hora, o fato mais contundente e documentado se deu no início do século IV, lá pelo ano 304, quando mais ou menos 40 cristãos da Abitínia (Tunísia), enquanto celebravam a Eucaristia, foram presos pelos soldados do imperador Dioclesiano. Resistindo ao interrogatório, foram todos martirizados, legando-nos uma das páginas mais belas do testemunho cristão, que vale como um testamento místico: O primeiro dos mártires torturados, Télica, gritou: “Somos cristãos. Por isso, nos reunimos” [....] Vitória, uma das cristãs, declarou: - “tudo o que eu fiz, eu o fiz espontaneamente e por minha própria vontade. Sim eu participei da reunião e celebrei os mistérios do Senhor com meus irmãos, porque sou cristã”. O presbítero Saturnino, experimentando as torturas em seu corpo foi levado diante do procônsul, que lhe disse: “você agiu contra as ordens dos imperadores, reunindo esta gente”. Saturnino, cheio do Espírito, respondeu ao procônsul: “simplesmente celebramos o dia do Senhor, porque a celebração do dia do Senhor não pode ser omitida” [....] Um outro cristão, de nome Emérito, levantouse dizendo: “eu sou o responsável, porque as reuniões foram 17 48 Ibidem. Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II celebradas em minha casa. E o fizemos porque o dia do Senhor não pode ser omitido [...] O procônsul perguntou-lhe: “em sua casa fizeram essas reuniões? Por que você os deixou entrar? Porque são meus irmãos e não podia proibi-los” [....] “pois nós não podemos viver sem celebrar o mistério do Senhor”18. Os mártires da Abitínia preferiram morrer a renunciar ao direito e dever de participar das reuniões litúrgicas, porque sabiam que não podiam viver de forma isolada a mística que lhes dava o sentido desta vida e a garantia da vida eterna. Em outras palavras, não existe mística na liturgia sem identidade eclesial. Era essa mística que o Vaticano II precisava resgatar na liturgia: uma mística que funciona como a primeira leitura teológica da revelação e que proporciona o êxtase diante do Mistério celebrado, engajando solidamente o fiel na comunidade eclesial. Uma mística assim não aplica os esforços pastorais em obrigar os fiéis a participarem da liturgia, mas inicia-lhes na fé, de tal forma que se encantem com a liturgia e amadureçam para a participação ativa e autodeterminativa, tornando-se eles mesmos missionários que envolvem os outros nessa mesma experiência fundante da fé. É, portanto, uma mística que faz da celebração da fé uma resposta ao Cristo, que, quando se reuniu com seus Apóstolos para a ceia, disselhes: desejei ardentemente comer esta páscoa convosco, antes de sofrer (Lc 22,15). O antes de sofrer tem um sentido testemunhal que representa o desafio da missão. Isso descarta totalmente uma teologia da prosperidade que faz da liturgia um trampolim para o enriquecimento material ou qualquer tipo de “oba-oba”. Jesus Cristo foi muito claro com os Apóstolos a esse respeito e não deixou de dizer em forma de experiência mística ao Apóstolo Paulo quanto ele devia sofrer em sua missão: Eu mesmo lhe mostrarei quanto lhe é preciso sofrer em favor do meu nome (At 9, 15). Portanto, só é capaz de enfrentar os desafios da missão, o 18 Cf. ACTA de los martires, p.75. BAC 75. 49 Valeriano dos Santos Costa que muitas vezes se traduz em sofrimentos e angústias, quem sabe se maravilhar diante da contemplação do Mistério que a liturgia celebra. Para falar do resgate dessa mística pelo Concílio Vaticano II, convém ir à fonte onde ele começou, que é o Movimento litúrgico. Mas antes vamos dizer umas palavras sobre a herança litúrgica da Idade Média, pois entre a riqueza da criatividade litúrgica da Idade Média e o advento do Movimento Litúrgico situa-se o Concílio de Trento e a consequente uniformização da liturgia. Mística da Idade Média: apologia e bênçãos A Idade Média é o período da história da Europa situado entre a segunda metade do século V e a segunda metade do século XV. Passado o primeiro impacto da Boa Nova de Jesus e constituindo-se a Igreja uma sociedade reguladora no mundo, o encantamento provocado pelo encontro com o Salvador perde o seu vigor original. A liturgia continua sendo um lugar criativo para se intuir essa relação mística empalidecida por estruturas eclesiásticas que funcionavam mais de acordo com a segurança temporal do que com a ousadia mística da fé. Foi uma época de muita liberdade e grande variedade no campo religioso e litúrgico, um período de intensa atividade criadora no domínio eucológico19. Essa criatividade se expande em duas vertentes: a vertente das apologias e a das bênçãos. Vemos aí, embora com certo desvio, uma tentativa de se viver o encantamento com o mistério celebrado. O que caracteriza uma apologia é principalmente a confissão ou acusação de pecados, em reconhecimento à própria indignidade, sobretudo do sacerdote, diante do mistério divino20. Pelo lado bom, as apologias manifestam a humildade humana frente à misericórdia de Deus. No entanto, 19 BRAGANÇA. Joaquim O. Liturgia e espiritualidade na Idade Média. Lisboa: Universidade Católica, 2008. p.109. 20 50 Cf. Ibidem, p.62-63. Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II elas caíram numa espécie de “niilismo” onde parece que o pobre do padre que está a dizer a Missa é o mais miserável de todos os pecadores. De fato algumas composições há, onde o sacerdote explicitamente se declara ‘o mais celerado de todos os cristãos’, ‘o mais miserável de todos os servos de Deus’21. O texto mais famoso chama-se Suscipe confessionem meam. Aparece num livro litúrgico no século IX, em Tours, e permanece em outros livros até o século XV: Acolhe, Senhor, meu Deus, esperança única da minha salvação, esta minha confissão. Sinto-me perdido pela gula, embriaguez, luxúria, sensualidade, tristeza, preguiça, sonolência, negligência, ira, inveja, malícia, ódio, maledicência, perjúrio, duplicidade, mentira, vanglória, leviandade, orgulho, inteiramente morto por pensamentos, palavras e ações, bem como por todos os meus sentidos. Mas, Tu, que justificas os ímpios e dás vida aos mortos, justifica-me e ressuscita-me, Senhor, meu Deus. Apesar de um movimento de oposição, que surge no século XII, as apologias chegaram até nós, como é o caso do Confiteor da Missa atual. Já as bênçãos representam a dimensão religiosa mais característica da Idade Média e constituem uma tendência de universalizar o sagrado em todas as coisas. A relação medieval com o sagrado era muito forte. Até pode-se dizer que foi o período áureo da sacralização da vida. Florescem aí muitos ritos com esse objetivo, os quais visam à santificação das pessoas e das coisas, como o Ordo benedicendi regi, as bênçãos dos novos abades, abadessas e, no âmbito da família, as bênçãos das alianças, da mulher grávida, da jovem mãe, dos recém-nascidos, como também as bênçãos dos doentes, 21 Ibidem, p.26. 51 Valeriano dos Santos Costa peregrinos, dos campos, dos frutos, dos animais, etc22 . Enfim, foi uma época preciosa, porém a relação com o Mistério pautada pela culpa gera o desejo de refugiar-se no reino do sagrado, em oposição ao profano. Isso dominou a cultura e a fé dos cristãos e contaminou a liturgia, que, por natureza, é por si mesma a expressão sagrada do reconhecimento da grandeza de Deus e dos limites humanos, lugar mais natural de se bendizer a Deus e de acolher a sua bênção. Por outro lado, graves corrosões sofridas pela liturgia geraram intoleráveis abusos. Trento e a mística da uniformidade? Sabemos que quando Lutero, no século XVI, pôs à luz questões fundamentais sobre a Igreja e sua liturgia, havia um ambiente desfavorável ao diálogo, tanto na Igreja como na sociedade politicamente fragmentada. Nesse clima, uma discussão sensata pode facilmente degenerar em anarquia. Era preciso um Concilio forte que o impedisse. Esse concílio foi o Concílio de Trento. A reação do Concílio de Trento, na sua grandeza histórica, foi demasiadamente preocupada com o controle de tal anarquia e a universalidade dogmática da Igreja e, por isso, instaurou e universalizou um formalismo litúrgico rígido para a celebração dos sacramentos da fé. Desta feita, a Liturgia era essencialmente pautada pela uniformidade ritual, que acabou sendo mais importante do que a experiência do Mistério. O presbítero que celebrava “direitinho” e, por isso, era considerado piedoso, era aquele que cumpria todas as rubricas com perfeição. Como consequência, surgiu, então, a rubricística, que era a disciplina teológica que ensinava de modo científico as rubricas. Foi essa disciplina que dominou a formação litúrgica do clero. Perguntamo-nos como se situaria São Felipe Neri (15151595), que viveu a maior parte do seu ministério antes da 22 52 Cf. Ibidem, p.28. Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II reforma de Trento. São Felipe Neri, quando celebrava a Missa, tinha frequentes êxtases. Conforme o tempo que dispunha para a Missa sem povo, às vezes uma manhã inteira, combinava com o sacristão que num determinado horário o tirasse do êxtase para terminar a Missa. Quando celebrava com a comunidade, o sacristão colocava ao lado do missal um livro de histórias cômicas que aconteceram com um tal padre Arlotto. Ao sentir que o êxtase se aproximava, Filipe Neri lia algumas pequenas histórias, ria, saía do estado místico que o levaria ao êxtase e terminava a celebração. As pessoas nem se davam conta, pois a missa, antes do Concílio Vaticano II, não era versus populum. Conta-se também que era comum que dois coroinhas puxassem-no para baixo, para continuar a Missa. Portanto, a uniformidade rígida que conhecemos hoje na liturgia romana é um fenômeno relativamente recente, pois data do século XVI, tendo como causas próximas a descoberta da imprensa e a reforma do Concílio de Trento. Em toda a Idade Média há uma imensa variedade nas cerimônias religiosas, de tal modo que não é fácil encontrar dois livros litúrgicos exatamente iguais, a não ser evidentemente dentro da mesma tradição local23. Movimento Litúrgico e o resgate da mística Querendo ou não, a rubricística transfere o foco da celebração litúrgica para a validade jurídica da administração dos sacramentos e força a liturgia a se acomodar mais no campo da técnica do que da mística. Então, a liturgia perde o seu encantamento e passa a ser uma tarefa de obrigação religiosa, que, uma vez cumprida, libera o fiel para aquelas tarefas que lhe dão prazer e alegria. Essa perda de alegria pascal que só a liturgia pode oferecer era um elemento fundamental que precisava ser resgatado. Aí, então, começa a ser gestado 23 BRAGANÇA, Joaquim O. Liturgia e espiritualidade na Idade Média. Lisboa: Universidade Católica, 2008. p.62. 53 Valeriano dos Santos Costa o Movimento Litúrgico, com a grandiosa figura de Abade Próspero Guéranger (1805-1875). Este homem apaixonado por Deus e pela liturgia da Igreja foi um farol que brilhou na noite escura de sua Abadia, Solesmes, que, por sua vez, representava a decadência da liturgia da Igreja. Solesmes estava ruindo por fora e por dentro, pois tanto o prédio como a comunidade estavam caindo. A reforma que Dom Guéranger empreendeu teria parecido um ato de loucura se não fosse um ato de fé24. Foi a descoberta das riquezas espirituais e teológicas da liturgia romana que o ajudou a encontrar um novo horizonte na Igreja e na vida monástica. O abade Guéranger fez um copioso trabalho literário para mostrar sua descoberta em torno das riquezas espirituais e teológicas da liturgia romana. Isso está estampado em sua obra científica: Institutions liturgiques25 e no seu precioso trabalho de cunho menos científico e mais de divulgação, L’Année liturgique26. Mostrando a grandeza espiritual dessa liturgia, Guéranger propõe a volta à liturgia romana pura como fonte de espiritualidade e de experiência de Deus. Propõe, na verdade, uma “restauração” da liturgia romana dos séculos IV a VII, ainda não ainda uma reforma. Ao descobrir as riquezas teológicas e espirituais da liturgia romana, Guéranger descobriu as riquezas da liturgia da Igreja. Isso foi também a “descoberta do mistério da Igreja, por meio da experiência espiritual desta mesma liturgia e da leitura assídua dos padres, artífices das primeiras formas litúrgicas romanas”27. 24 “Nul ne peut se douter qu’une grande oeuvre commence. Tout est humble et misérable: les bâtiments délabrés, la petite communauté sans argent, sans éclat pour attirer les vocations et surtout sans expérience de la vie monastique. Son supérieur de vingt-huit ans n’en a lui-même qu’une connaissance théorique. L’entreprise paraît un acte de folie, si elle n’est un acte de foi”. Disponível em: <http:/www.abbaeydesolesme.fr/FRhistoire/ queranger.php?js=1>. Acesso em: 10 maio 2009. 25 Institutions liturgiques. IV. Paris, 1878-1885. 26 L’Année ligurgique. IV. Burgos, 1954-1956. 27 GOENAGA, José Antonio. Vida litúrgico-sacramental da Igreja e sua evolução histórica. In: BOROBIO, Dionísio. A celebração na Igreja, V. 1. Liturgia e sacramentologia fundamental. São Paulo: Loyola, 1990. p.127. 54 Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II O mais importante em tudo isso é que Guéranger aprendeu também, com a própria liturgia e com os próprios padres, o que considerou a chave da compreensão dos textos bíblicos e ações simbólicas do culto da Igreja: a leitura cristã do Antigo Testamento e do Novo Testamento com o apoio do Antigo28. Como consequência, a Abadia de Solesmes passou a apresentar a liturgia mais rica da França, atraindo centenas de pessoas frequentemente. Era uma liturgia esteticamente perfeita, uma lição de beleza e fé. Até hoje os CDs da liturgia gregoriana de Solesmes são cobiçados. Paralelamente a isso, a comunidade adquiriu um vigor que perdura até hoje. Dá para imaginar como os meios financeiros foram aparecendo para se restaurar o prédio, que estava ruindo. As críticas a Guéranger de ter instaurado um esteticismo litúrgico em Solesmes são injustas, pois a beleza é fundamental para se fazer o aporte para Deus, e a experiência de cunho místico que uma liturgia assim proporciona desqualificada a crítica. Tratava-se antes de tudo da interiorização do culto da Igreja, que não vivia seu melhor momento naquela época. A segunda grande figura do Movimento Litúrgico foi Dom Lambert Beauduin (1873-1960), monge beneditino da Abadia de Mont-César, Leuven. Foi homem de ação e não um pesquisador. Escritor famoso que deu continuidade à obra iniciada por Dom Guéranger, ao mesmo tempo em que a desenvolveu. A característica da sua cria é direcionar a pastoral litúrgica nas paróquias. Quis inspirar a piedade e a vida cristã no culto da Igreja, promoveu a participação dos batizados na liturgia. Com Dom Lambert começa já um movimento de reforma litúrgica e não simplesmente de restauração. Porém, a ciência litúrgica conquista seu lugar e a reflexão da mística na liturgia ganha o seu status com os albores da Abadia de Maria Laach, sobretudo com a grande figura de Odo Casel (1886-1948). Segundo o abade Salvatore Marsili, OSB, (1910-1983), “O mistério pascal ocupou e dirigiu toda 28 Ibidem, p.127. 55 Valeriano dos Santos Costa a sua pesquisa e toda a sua vida, até marcar também a sua morte. Com efeito, ele morreu na Páscoa de 1948, quando entoava o ‘precônio pascal' Exultent divina misericórdia”29. No entanto, Juan Javier Flores afirma: “No dia 28 de março de 1948 sofreu um infarto enquanto estava entoando o Lumen Christi da vigília pascal, e morreu na manhã de Páscoa”30. Foi a teologia do mistério que envolveu a vida deste grande homem dedicado totalmente à pesquisa da liturgia da Igreja e descobriu nela o “mistério” que faz das nossas celebrações uma experiência profundamente mística. O privilégio de morrer na Páscoa sela de forma especial nosso nascimento para Deus e nos configura ao Ressuscitado, que nos preenche com sua presença e seu amor já na liturgia terrena. Odo Casel31 recupera aquilo que na Igreja antiga era natural, isto é, a presença memorial da obra salvífica de Cristo em seus mistérios32. É justamente daí que o Vaticano II vai recuperar a mística na liturgia, mediante a qual sentimos e somos de fato atingidos pela mesma salvação que se manifestava na comunidade apostólica. É essa mística que nos faz perceber a presença viva do Ressuscitado interagindo com a assembleia e com cada participante do começo ao fim da liturgia, como interagiu na liturgia dos discípulos de Emaús. Naquela Eucaristia dominical narrada por Lucas, o relato é tão plástico que nos faz sentir caminhando com eles e sentados à mesa para a fração do pão. Isso nos leva a pensar também que na mística da comunidade primitiva, auxiliada por uma liturgia onde reinavam a fé e o essencial, e nada faltava desse essencial, todos em volta da mesa sagrada, olhando-se como irmãos, depois que terminava a celebração, era possível que um 29 MARSILI, S. Teologia da celebração da eucaristia. In: AA.VV. A. A eucaristia, teologia e história da celebração. São Paulo: Paulinas, 1986. p.60. nota de rodapé nº 60. 30 p.162. FLORES, Xavier. Introdução à teologia litúrgica. São Paulo: Paulinas, 2006. 31 Está para ser lançado o livro O mistério do culto no cristianismo, pela Loyola. 32 Cf. MARSILI, S. Teologia da celebração da eucaristia. Op. Cit. p.61, citando à p.61 BETZ, J. Die Eucharistie in der griechischen Väter, I/1, Friburgo, 1955. p.247. 56 Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II perguntasse ao outro: “você sentiu o mesmo que eu senti?”. O outro respondia: “se você está falando da presença dele aqui entre nós, confesso que senti. Sim, a senti tão intensa como nos velhos tempos”. Mais uma grande contribuição para a compreensão e a vivência da mística litúrgica vem de Romano Guardini (18851968). Em sua obra O espírito da liturgia33, publicada no Brasil em 1942, Guardini mostra a dimensão lúdica da liturgia, baseada em Pv 8, 31-31: “Eu estava junto com ele como o mestrede-obras, eu era o seu encanto todos os dias, todo o tempo brincava em sua presença: brincava na superfície da terra, e me alegrava com os homens”. A intuição genial de Guardini foi ver nessas palavras, justamente, a ação da liturgia, uma liturgia que encanta a Deus e alegra o coração dos homens. A partir daí, Guardini vai mais longe: compara a liturgia com a brincadeira de meninos, que brincam pelo prazer de brincar34. Uma liturgia que dá prazer a Deus e ao coração humano não pode ser uma ação rígida. Toda ação pedagógica que não tenha como finalidade a liturgia em si desqualifica nossas celebrações, porque indica motivações que transformam a liturgia numa espécie de trabalho em vista de algum interesse específico. Uma liturgia assim não tem êxtase nem pentecostes. Diz Guardini: Tal é a magnífica realização que a liturgia nos oferece: arte e realidade unidas na infância sobrenatural diante da face de Deus. Aquilo que até agora só encontrávamos {....} no mundo da representação artística, a saber, as formas da arte como expressão da vida humana plenamente consciente, tornou-se aqui realidade. Mas esta vida tem algo de comum com a da criança e a da arte: é livre de finalidade, embora plena do mais profundo sentido. Não é trabalho, mas jogo35. Então, com Romano Guardini está recuperada a ideia de 33 34 35 GUARDINI, Romano, O espírito da liturgia. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1942. Ibidem, p.82. Ibidem, p.83-84. 57 Valeriano dos Santos Costa liturgia como um ato que dá prazer e nos envolve na alegria que o mistério pascal trouxe para a humanidade. Esse também deveria ser o espírito que norteasse um Concílio que viesse a ser celebrado na Igreja. Justamente foi este espírito que João XXIII imprimiu ao Concílio Ecumênico Vaticano II: espírito de aprofundamento tanto da doutrina cristã católica como da forma de enunciá-la em nosso tempo, mas com o uso da misericórdia em vez da severidade, frente ao erro. Para isso, convinha mostrar a validez da doutrina em vez de renovar condenações36. Por isso a Igreja Católica deveria “mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade...”37. O resgate da mística na liturgia a partir do Vaticano II Coube por desígnio de Deus que o primeiro texto discutido e aprovado pelo Concílio Vaticano II fosse a Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. E quem lê o discurso de abertura de João XXIII e, em seguida, o proêmio da Sacrosanctum Concilium, parece estar lendo um texto em continuação, como o Evangelho de Lucas e os Atos dos Apóstolos: “O sagrado Concílio, propondo-se fomentar sempre mais a vida cristã entre os fiéis, [....] julga ser sua obrigação ocupar-se de modo particular também da reforma e do incremento da liturgia”38. A mística, enquanto nítida percepção de Deus por meio de uma particular experiência do Mistério de Cristo, é resgatada pelo Concílio Vaticano II e por documentos posteriores em duas vertentes. A primeira é a assimilação das teses centrais do Movimento Litúrgico, e a segunda, a assimilação do espírito que João XXIII imprimiu ao Concílio. As teses centrais do Movimento Litúrgico são encontradas na volta à liturgia com sua beleza essencial (Guéranger), na 36 Cf. JOÃO XXIII, Discurso na abertura solene do Concílio. In: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). São Paulo: Paulus, 1997. p.28. 37 Ibidem, p.29. 38 SC 1. 58 Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II teologia do Mistério que opera a redenção (Odo Casel), no espírito lúdico que conduz a ação litúrgica à contemplação do Mistério (Guardini) e no enfoque teológico da pastoral litúrgica (Beauduin). A postura de João XXIII abre possibilidade para a mística renascer na liturgia, na medida em que intui uma concepção de Igreja que a Sacrosanctum Concilium chama de “Corpo místico de Cristo”39 e “Sacramento de Salvação”40, expressões que depois a Lumen Gentium vai aprofundar. Pelo fato mesmo de, no capítulo áureo, que é o primeiro, onde se explicita a natureza da liturgia, antes de dizer o que é liturgia, a SC procura dizer o que é Igreja, são estabelecidas as bases para o renascimento da mística na liturgia, pois ecclesia, no seu sentido primitivo, era um conceito litúrgico, já que tinha a ver a com a reunião litúrgica da comunidade. Os mártires da Abitínia preferiram morrer a renunciar ao direito e dever de participar de tais reuniões porque bem sabiam que, se o fizessem, perderiam a identidade eclesial, tamanha é a importância do lugar que a liturgia ocupa na Igreja. Lugar que é definido como “cume para o qual se dirige a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte donde emana a sua força”41. Então a Igreja, que é uma comunidade mística, porque nela tudo está orientado para o transcendente, “de tal modo que nela o humano é orientado ao divino, o visível ao invisível, a ação à contemplação, a realidade presente à futura cidade para a qual estamos caminhando”42, enquanto Sacramento que brota do lado de Cristo perfurado na cruz, dá continuidade à obra da redenção, “especialmente pelo mistério pascal de sua sagrada paixão, ressurreição dos mortos e gloriosa ascensão”43, mistério que é essencialmente celebrado na liturgia. O Concílio deveria, portanto, mostrar a profundidade 39 40 41 42 43 SC 7; LG 7. SC 2. SC 10. SC 2. SC 7. 59 Valeriano dos Santos Costa da liturgia e sua importância como obra salvífica aplicada ao nosso tempo, em vez de emitir normas rígidas44 e renovar condenações. Já era hora de mostrar que se participa da liturgia não por obrigação, mas pelo prazer do encontro com o Ressuscitado, que nos diz hoje: Desejei ardentemente comer esta páscoa antes de sofrer (Lc 22, 15). Então, por meio da liturgia, a Igreja generosamente oferece o que ela tem de melhor, que é a salvação em Cristo: Eu não tenho ouro nem prata, mas dou-te aquilo que tenho: em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda (At 3,6). Neste ponto, a SC faz uma fantástica recuperação da sacramentalidade da liturgia, quando afirma sem rodeios a presença de Cristo nas ações litúrgicas45. Isso significa que do início ao fim da liturgia o Cristo é o Ator invisível que dá vida a todos os sinais sensíveis com os quais a liturgia simboliza e exerce a função sacerdotal de Jesus, envolvendo todo o corpo místico, isto é, o Cristo Cabeça e a assembleia litúrgica46. Aí acontece a comunhão entre a liturgia celeste, protagonizada por Cristo, e a liturgia terrestre, celebrada sacramentalmente pela humanidade, cabendo sempre a iniciativa à Cabeça, que é Cristo, e não a nós47. Esta imagem da liturgia celeste realizando-se na liturgia terrestre coroa a sacramentalidade da liturgia, pois permite em todos os sinais simbólicos da liturgia terrestre uma leitura transcendente, além de mostrar o todo da liturgia. Por exemplo, a oração eucarística, que é um todo, no segundo milênio, foi dissecada em suas partes e, por isso, se deu tal destaque ao seu miolo, a consagração, que este parece separado do resto. Segundo Cesare Giraudo, essa mudança de metodologia pode ser comparada a “um relojoeiro desajeitado que, querendo descobrir o funcionamento de um relógio perfeito, desmonta-o peça por peça e não repara que, 44 45 46 SC 37. SC 5. SC 7. 47 Isso recorda o livro de Jean CORBON, Liturgia fundamental: misterio – celebración – vida. Madri: Palabra, 2001. 60 Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II pelo desejo ardente de compreender, imobilizou o mecanismo que revela seus segredos”48. A mística da participação ativa Na metáfora do “Corpo místico” está colocada a base teológica da participação litúrgica. Conceituando a Igreja como um corpo místico que celebra a ação sacerdotal de Cristo, é um pecado não envolver toda a assembleia como num corpo físico, onde cada membro responde ao conjunto de todos os estímulos corporais, sejam de dor ou de alegria. Então, a partir de um conceito litúrgico que compreende a Igreja como “Corpo Místico de Cristo”, o Concílio aprofunda a relação entre a liturgia e a vida do dia a dia. Em outras palavras, o que a liturgia celebra deve ser expresso também no testemunho da fé. Isso representa o resgate da dimensão social e transformadora da liturgia da Igreja. Ao conduzir o culto, Cristo, o Sumo Sacerdote, traz para a terra a experiência de uma vida sem males que estimula o compromisso dos seus seguidores de lutar e dar suas próprias vidas por essa causa aqui na terra, combatendo o mal, que gera injustiças e violências. Se o corpo não fizer isso, não está em comunhão com a Cabeça. Essa dimensão eclesial, no seu sentido pastoral, vai ser aprofundada na Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje. Não pode haver, portanto, na liturgia uma cabeça ativa e um corpo passivo. Daí a necessidade também, além da eterna disposição de Cristo, das disposições pessoais dos fiéis para o envolvimento no mistério celebrado49 e vivido cotidianamente. Em consequência das afirmações anteriores, que são básicas para o resgate da mística na liturgia, surge a imperiosa necessidade de se promover a formação litúrgica em vista da participação ativa em todos os níveis, para que todos sejam 48 49 GIRAUDO, Cesare. Redescobrindo a eucaristia. São Paulo: Loyola. 2003. p.8. SC 11. 61 Valeriano dos Santos Costa imbuídos do “espírito da liturgia”50. Para isso, a reforma geral da liturgia é uma proposta de restauração da “nobre simplicidade” do rito litúrgico (as cerimônias resplandeçam de nobre simplicidade)51 e de adaptação do culto da Igreja aos nossos tempos, de modo a favorecer a participação ativa de todos os fiéis no mistério celebrado. No primeiro objetivo, vemos o sonho de Dom Guéranger, que certamente terá aplaudido do céu. No segundo, o desafio da inculturação litúrgica a favor da participação mística, pois, como já dissemos, a mística é a experiência do Mistério pela via da participação. E isso se faz pelo caminho simbólico, que é necessariamente cultural. Uma mística extática e não esotérica Se os textos e as ações litúrgicas não são acessíveis à maioria da assembleia celebrante, então se pode falar de uma mística esotérica, experimentada por um grupo seleto que participa ativamente, deixando a maioria numa assistência passiva. Não era assim que a Igreja primitiva vivia a experiência de Deus por meio da liturgia. Sua mística não tinha nenhum caráter esotérico, mas sim extático. A palavra êxtase significa em primeiro plano: arrebatamento íntimo, enlevo, encanto. Então, era uma liturgia que extasiava, isto é, enlevava e encantava, porque conduzia ao Mistério. A mística extática engaja o místico em todos os significados da liturgia e o leva à difícil missão de comunicar o “indizível”. Apesar de usar o vocabulário da teologia apofática, que tem na sua essência o caráter negativo (Deus é indizível, inefável, inacessível, etc.), a mística extática, aceitando que Deus se dá, ousa aventurar-se em busca de uma linguagem que o comunique, considerando que essa linguagem na liturgia é um fenômeno pentecostal (At 2, 1-11), pois é uma linguagem divina, expressa pela semelhança de línguas de fogo provindas do Céu, que se apoderam da 50 51 62 SC 14;16. SC 34. Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II linguagem humana criando a comunicação horizontal. O caso mais ilustrativo é a visão mística que Teresa d’Ávila teve das três pessoas da Santíssima Trindade, durante a liturgia. A partir daí, ela passou a exercitar com mais propriedade o discurso sobre o dogma trinitário. Uma experiência mística de tal ordem provoca também uma iluminação no intelecto e produz uma linguagem que resgata o Todo nos fragmentos da linguagem humana. Então, podemos dizer que, desde o início, a SC busca uma liturgia que resgate todo o potencial místico das nossas celebrações. Para isso há de ser uma liturgia que focalize mais a obra da redenção do que a miséria do pecador. Em outras palavras, uma liturgia que trate da “preocupação última” do ser humano e não das preocupações preliminares52, focalizando a totalidade da realidade humana, a estrutura, o sentido e o alvo da existência, ou seja, aquilo que determina o seu destino último para além de todas as necessidades e acidentes preliminares. É uma liturgia, enfim, que mergulha no mistério da salvação e engaja o homem que luta entre o ser e o não ser numa vida sem ambiguidades, que embora seja promessa escatológica, pode ser experimentada como antecipação na celebração do Mistério de Cristo. Assim, os primeiros capítulos da SC são basilares para a compreensão do resgate na mística na liturgia. Se, no dizer de Silesius, a mística é a capacidade de ver Deus agora, a liturgia é o lugar por excelência da mística. Ela expressa de forma plena o mistério de Cristo e leva os fiéis a expressálo na vida. O místico é por excelência aquele que vive como se visse o “Invisível”. Outra coisa não se busca na Liturgia senão, por meio dos seus sinais sensíveis, o encontro com o Ressuscitado, que desde o evento da Ascensão não se comunica 52 Por preocupações preliminares, podemos entender aqui aquilo que Guardini chama de “ações pedagógicas” introduzidas na liturgia para chegar a outros fins que não a própria liturgia. Em grupos de engajamento político mais consciente, a liturgia pode ser usada pedagogicamente para conscientização política; nos grupos pastorais acontece o mesmo, como por exemplo, a pastoral do dízimo, etc. 63 Valeriano dos Santos Costa aos Apóstolos diretamente pelos sentidos do corpo, pois “uma nuvem o ocultou de seus olhos” (At 1, 9). No entanto, ele está tão presente em nosso meio como a nossa própria respiração. É na liturgia que a sua presença se faz notável, como bem o expressou São Leão Magno: tudo o que era visível do nosso Redentor passou para os sacramentos da Igreja53. Se outros documentos posteriores ao Concílio foram necessários para se clarear o sentido da reforma litúrgica54, é porque os capítulos finais da SC não têm a densidade dos iniciais. E como eles são as propostas práticas do que foi exposto no início e, não contendo uma teologia à altura, podemse esperar os problemas que enfrentamos até hoje em nossas práticas litúrgicas. José Antonio Goenaga, que, junto com Xavier Basurko, escreve um excelente texto intitulado “a vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica”, faz a seguinte avaliação dos números finais da SC: Nos capítulos da música e da arte, devemos lamentar a ausência de uma teologia da expressão artística. Os membros das comissões e os padres sinodais talvez não tenham dado o devido destaque à música, ao canto e à arte como atividades simbólicas fundamentais na ação simbólica por excelência que é a liturgia. Desse ponto de vista, esses capítulos não são apêndices à constituição, mas partes desta. 53 Sermo 2 De Ascencione. PL 54, 398, citado por COSTA, Valeriano Santos. Viver a ritualidade litúrgica como momento histórico da salvação: a participação litúrgica segundo a Sacrosanctum Concilium. São Paulo: Paulinas, 2005. p.93. 54 PAULO VI. Motu próprio Sacram Liturgiam (1964). In:DOCUMENTOS do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). São Paulo: Paulus, 1997. p.82-88; PAULO VI. Carta Encíclica Mysterium Fidei sobre o culto da Sagrada Eucaristia (1965). São Paulo: Paulinas, 1965. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. A liturgia romana e a inculturação: IV instrução para uma correta aplicação da constituição conciliar sobre a liturgia. São Paulo: Paulinas, 1994; JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Ecclesia de Eucaharistia sobre a Eucaristia na sua relação com a Igreja (2003). 5. ed. São Paulo: Paulinas, 2003; CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Instrução Redemptionis sacramentum sobre alguns aspectos que se de deve observar e evitar acerca da santíssima Eucaristia (2004). São Paulo: Paulinas, 2004; BENTO XVI. Exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis sobre a Eucaristia fonte e ápice da vida e da missão da Igreja (2007). São Paulo: Paulinas, 2007. 64 Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II Lembramos aqui, ademais, que no capítulo VI pouco se diz acerca do conteúdo daquilo que se deve cantar nas celebrações. Aqui entra em jogo, de uma ou de outra maneira, o princípio lex orandi lex credendi, talvez, com mais vigor do que em outras partes da liturgia, visto que o canto é uma das mais profundas expressões do homem. Hoje se monta com frequência “outra liturgia” sobre a liturgia da Igreja, com os cantos incluídos em profusão. Paulo VI afirmava, depois do concílio: o tema da música sacra “requer uma ampla reflexão” 55. Essas colocações nos lembram que na liturgia russa o canto é considerado elemento indispensável. Ele comove profundamente o povo. Sua função é fazer do nosso coração o Templo do Senhor e do nosso espírito o seu altar. Assim, a beleza litúrgica é uma preparação para a oração superior do coração56. É notório que a delicadeza e a leveza do rito reformado, em muitas circunstâncias, não foram levadas em consideração. Por exemplo, as rubricas da narração eucarística da Missa manifestam claramente esta leveza a respeito do comportamento ritual do presbítero celebrante: inclina-se levemente, toma o pão, mantendo-o um pouco elevado sobre o altar, toma o cálice nas mãos, mantendo-o um pouco elevado sobre o altar57. O que está em jogo aqui não é superficial: é a mística da entrega e não do domínio sobre o rito por meio da perfeita aplicação das rubricas. São duas posturas antagônicas. A postura da entrega ritual implica vivência mística do rito envolvendo corpo mente e espírito, o conhecimento profundo do seu sentido teológico, que saberá também não marginalizar as rubricas, uma atitude tranquila e serena nos gestos e palavras. Já a atitude de controle rubricístico denota muito mais uma tendência nervosa de controlar o rito, como que a “pegar o boi pelo chifre”. Isso remonta à 55 GOENAGA, Jose Antonio. A vida litúrgico-sacramental da Igreja. Op. Cit. p.145. 56 Cf. ŜPIDLÍK, T Mística russa. In: BORRIELO, L. et al. Dicionário de mística. São Paulo: Loyola/Paulus, 2003. p.748. 57 Missal Romano, narração eucarística dos onze formulários de missa presente no missal brasileiro. 65 Valeriano dos Santos Costa dificuldade do ser humano em confiar em Deus (atitude de fé) e deixar-se envolver inteiramente pelo seu mistério (atitude de entrega). O pecado original constitui a competição entre a bondade do homem e a bondade do Criador, porém a bondade humana é essencialmente ambígua. Somente a entrega a Deus, que é a bondade sem ambiguidade, pode nos libertar da ambiguidade. A dificuldade é atingir uma fé que represente “o estado de ser possuído pela Presença Espiritual e aberto à unidade transcendente da vida sem ambiguidade”58. Paul Tillich traduz isto como “a coragem da fé”, na qual o homem desiste da própria bondade e mergulha na bondade de Deus: A coragem de entregar nossa própria bondade a Deus é o elemento central na coragem da fé. Nela o paradoxo do Novo Ser é experienciado, é vencida a ambigüidade de bom e mau, e a vida sem ambigüidade terá se apoderado do homem através do impacto da Presença Espiritual. Tudo isso é manifestado através da imagem de Jesus, o Crucificado59. Então a fé não é resultado de nenhuma função mental humana. “Não pode ser criada pelos processos do intelecto ou por esforços da vontade ou por movimentos emocionais”60. Tudo isso está incluído na fé, mas ela mesma é o resultado transcendente da nossa entrega a Deus, que se entregou livremente por nós na cruz, para que nós nos entregássemos livremente a ele aos pés da cruz. Por fim, poderíamos dizer que a metáfora da liturgia como cume e fonte da vida Igreja61 ressalta três virtudes que não poderiam faltar para o resgate da mística na liturgia: o silêncio, a beleza, a autoentrega. Tanto na fonte como no cimo da montanha, o silêncio, a beleza e a autoentrega são 58 59 60 61 66 TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p.485. Ibidem, p.557. Ibidem, p.487. SC 10. Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II paradigmáticos. É uma forma de mostrar que o ato litúrgico por excelência é a sua própria comunicação. Tem de falar por si mesmo. Essa é a intuição mais fecunda da reforma do Concílio Vaticano II. É nessa perspectiva que podemos entender a recomendação que faz o missal romano a respeito do silêncio62. No filme “Antes de partir”63 há um diálogo entre o ator protagonista, Carter, e uma mulher, que ilustra e evoca de uma forma plástica a natureza do silêncio do cume da montanha. O tema do diálogo é a experiência no topo do Himalaia: ─ Eu já estive lá em cima. ─ É mesmo? ─ Durante o dia o céu é mais negro que azul. Não tem ar suficiente para refletir a luz do sol. Mas à noite fica salpicado de estrelas. Parecem tão próximas e brilhantes! É como se o firmamento fosse um chão de estrelas. ─ Você ouviu? ─ Ouviu o quê? ─ Li o relato de um homem que chegou ao cume, e lá em cima do topo do mundo vivenciou um silêncio profundo, como se todo o som tivesse desaparecido. E foi quando ele ouviu o som da montanha. Ele disse que foi como ouvir a voz de Deus. Conclusão Então, já concluindo, vamos retomar o discurso sobre o resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II. A oração litúrgica deve refletir esta postura de entrega, 62 A liturgia da palavra deve ser celebrada de tal modo que favoreça a meditação; por isso deve ser de todo evitada qualquer pressa que impeça o recolhimento. Integram-na também breves momentos de silêncio, de acordo com a assembleia reunida, pelos quais, sob a ação do Espírito Santo, se acolhe no coração a Palavra de Deus e se prepara a resposta pela oração. Convém que tais momentos de silêncio sejam observados, por exemplo, antes de se iniciar a própria liturgia da palavra, após a primeira e a segunda leituras, como também após o término da homilia [...]. Terminada a distribuição da Comunhão, se for oportuno, o sacerdote e os fiéis oram por algum tempo em silêncio (IGMR 88). 63 The bucked list, capítulo 17. 67 Valeriano dos Santos Costa motivando-nos tal confiança que quebramos as nossas resistências e, de coração alquebrado, nos deixamos pousar nas mãos de Deus. Para isso, o rito tem de ser claro, fácil, leve, belo e profundo. Tem de ser um convite à entrega e não à disputa agressiva de controle, como um ato desesperado de mostrar a bondade humana, o que impede de sermos completamente dominados pela beleza divina que o rito expressa. Não somos nós que devemos controlar o rito, mas ele sim deve nos possuir e nos conduzir ao coração do mistério. Portanto não se trata tanto de saber fazer o rito, mas de vivêlo em todo o seu potencial extático. Como diz Paul Tillich, “O Espírito Divino aparece no êxtase do espírito humano...”64. Sem êxtase não há transcendência, sem transcendência não há autêntica imanência. E também não há engajamento social e transformador a partir da fé. Sobra somente o cansaço. Aí está o cerne do que a Sacrosanctum Concilium chama de “participação litúrgica”65. E esse aspecto, infelizmente, abandonou a liturgia por séculos e, graças a Deus, passou a habitar as manifestações da piedade popular. Quando equivocadamente, no pósconcílio, foram marginalizadas as manifestações da piedade popular e as pessoas sentiam enorme saudade, foram os santuários que acolheram as multidões sedentas de Deus. O Concílio bem disse que a piedade popular não perdia o seu espaço na fé da Igreja66, mas desejava que a liturgia da Igreja fosse sua principal fonte. Acabou que nem a liturgia renovada conseguiu manifestar sua mística extática, nem a piedade popular conseguiu reconquistar o seu espaço e trazer o elo da transcendência. E o perigo está na volta ao rubricismo, senão ao próprio rito anterior à reforma como uma forma de chorar as 64 TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p.594. 65 A esse respeito ler COSTA, Valeriano Santos. Viver a ritualidade litúrgica como momento histórico da salvação: a participação litúrgica segundo a Sacrosanctum Concilium. São Paulo: Paulinas, 2005. 66 SC 9. GOENAGA, José Antonio. Vida litúrgico-sacramental da Igreja e sua evolução histórica. In: BOROBIO, Dionísio. A celebração na Igreja, V. 1. Liturgia e sacramentologia fundamental. São Paulo: Loyola, 1990. p.138. 68 Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II cebolas do Egito. Há também o perigo de se substituir o êxtase da liturgia por uma espécie de show ou outros modismos. A partir dos anos 80 autores apontam falhas na interpretação da SC, sobretudo em relação a dois textos que mais provocaram equívocos de compreensão: O texto e as cerimônias devem ordenar-se de tal modo, que de fato exprimam mais claramente as coisas santas que eles significam e o povo cristão possa compreendê-los facilmente na medida do possível (SC 21). As cerimônias resplandeçam de nobre simplicidade, sejam transparentes por sua brevidade ... acomodadas à compreensão dos fiéis e, em geral, não careçam de muitas explicações (SC 34). Goenaga faz uma avaliação muito consciente desta questão, afirmando que houve um enfoque exagerado ou até equivocado na leitura desses dois textos: As instruções conciliares de simplificação ritual eram necessárias, para revisar uma liturgia anquilosada há séculos. Mas as fórmulas empregadas não foram felizes ou foram objeto de malentendidos no ambiente dessacralizador do primeiro decênio do pós-concílio. Os textos ensejaram “celebrações” descuidadas de sua riqueza ritual, com pretensões de clareza, fácil compreensão, adaptadas, como se dizia à capacidade intelectual dos fiéis, didáticas em termos de fé (temáticas) e moralizantes no tocante ao sinal religioso e humanista. Os textos citados facilitaram a interpretação racionalista da liturgia, que prejudicou a esta consideravelmente. Porque a liturgia é antes de tudo simbólica; por isso, não se entende ou se explica tanto como se percebe; ela não é tanto didática e moralizantes quanto celebrativa67. 67 p.127. 69 Valeriano dos Santos Costa Referências BENTO XVI. Exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis sobre a Eucaristia fonte e ápice da vida e da missão da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2007. BRAGANÇA, Joaquim O. Liturgia e espiritualidade na Idade Média. Lisboa: Universidade Católica, 2008. CONCÍLIO Ecumênico Vaticano II, Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a sagrada liturgia. 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Redescobrindo a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2003. 70 Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II GOENAGA, José Antonio. Vida litúrgico-sacramental da Igreja e sua evolução histórica. In: BOROBIO, Dionísio. A celebração na Igreja. V.1: liturgia e sacramentologia fundamental. São Paulo: Loyola, 1990. GUARDINI, Romano. O espírito da liturgia. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1942. HUOT DE LONGCHAMP, Max. Mística. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Paulinas/ Loyola, 2004. p.1161-1169. JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Ecclesia de Eucaharistia sobre a Eucaristia na sua relação com a Igreja. 5.ed. São Paulo: Paulinas, 2003. JOÃO XXIII. Discurso na abertura solene do Concílio. In: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). São Paulo: Paulus, 1997. p.21-32. MARSILI, S. Teologia da celebração da eucaristia. In: AA.VV. A. A eucaristia, teologia e história da celebração. São Paulo: Paulinas, 1986. PAULO VI. 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Études et recerches: Actes du Colloque internactionel de Rome, Paris, 1974. ______________________________________________________ Valeriano dos Santos Costa [email protected] 72 A BOA-NOVA UNIVERSAL DA SALVAÇÃO: ESTUDO BÍBLICOCATEQUÉTICO A PARTIR DE AT 10,1–11,18 Solange do Carmo Introdução O episódio de Cornélio ocupa lugar de destaque no livro dos Atos dos Apóstolos. O redator lhe deu significado ímpar, singular. Isso não é difícil de perceber, uma vez que o texto está propositalmente colocado numa posição de destaque, praticamente no meio do conjunto da obra. Está claro que, aos olhos de Lucas, a conversão do centurião Cornélio, dado o realce com que o conta (10,1–11,18), não é um fato isolado, mas sim um fato de alcance universal, intimamente ligado à entrada dos gentios na Igreja, como se afirmará de modo explícito no Concílio de Jerusalém (cf. 15,7.14)1. Não é difícil perceber que esse texto é um divisor de águas do livro dos Atos dos Apóstolos: prepara para a grande missão de Paulo na reunião de Jerusalém. Fica nítida essa intenção lucana: antes da reunião, atos de Pedro; depois, atos 1 TURRADO, 1965, p.94. Solange do Carmo de Paulo. Lucas mostra que Pedro abriu as portas para Paulo e legitimou sua evangelização junto aos gentios. Paulo tem razão na fundação de comunidades mistas. Nelas, judeus e pagãos comem juntos o mesmo pão e partilham a mesma fé em Cristo. Pedro e Paulo estão de acordo na obra missionária. Não há divisão entre eles. A Palavra de Deus, que age por meio de ambos, prossegue firme sua trajetória, conquistando os corações para o Ressuscitado. Além da quase-centralidade do texto (que prepara At 13–15), a extensão da perícope fala muito. São dedicados a este episódio sessenta e seis versículos (setenta e três se forem contadas também as referências no discurso de Jerusalém em At 15,7-9.14-18): um número bem maior que o dedicado ao relato de Pentecostes (quarenta e um versículos) e ao da conversão de Paulo (cinquenta e oito versículos). Do ponto de vista da extensão da narrativa, esse relato ultrapassa em relevância todos os outros descritos em Atos, lembrando ainda outro dado fundamental: “A importância da história de Cornélio na economia do livro dos Atos (10,1–11,18) se revela pela extensão que Lucas lhe concede e pela relação estreita a uni-la ao Concílio de Jerusalém”2. Tamanha é a importância que Lucas dá ao texto que ele consegue, deliberadamente, fazer de Cornélio o primeiro gentio recebido na comunidade. Sacrificou, com isso, o eunuco, batizado por Felipe (cf. At 8,26-40). Este não recebe realce. Tem características mais de prosélito que de pagão: vai a Jerusalém adorar, lê o profeta Isaías. De qualquer modo, Lucas deixa a abertura aos pagãos para Pedro. É em Pedro que recai a responsabilidade da iniciativa de introduzir os pagãos na Igreja. E isso se dá no episódio de Cornélio. É bem verdade que essa abertura já havia sido sinalizada também em Samaria (cf. At 8,4-25), mas os samaritanos, ainda que inimigos dos judeus, têm laços estreitos com eles devido às suas origens, e, além disso, vangloriam-se de serem seguidores de Moisés. 2 74 DUPONT, 1974, p.78. A boa-nova universal da salvação Neste relato da conversão de Cornélio, porém, abre-se “uma nova fase na história da Igreja, de amplitude muito mais universal. Judeus e gentios, sem necessidade da circuncisão, podem sentar-se na mesma mesa e participar juntos das bênçãos messiânicas. Cornélio será o ponto de partida”3. 1 Composição do texto O relato de Pedro na casa de Cornélio é uma obra tecida com extremo cuidado. Mostra a habilidade literária de Lucas, que é exímio narrador, apresentando Jesus de acordo com as necessidades de sua comunidade. O relato lucano encontrado em At 10,1–11,18 traz uma marca de seu autor: a alternância de relatos e discursos. Os discursos constituem um artifício literário por meio do qual o autor manifesta suas idéias, desenvolve seu ensinamento, fortalece a fé do leitor. Distribuídos harmonicamente no texto, representam um momento de pausa e de reflexão no desenvolvimento dos acontecimentos, ajudando o leitor a aprofundar o conteúdo das partes narrativas4 . O texto é um relato com quadros vivos que facilmente se fixam na memória do leitor. Uma narrativa é magistralmente montada com epifanias – em que um anjo do Senhor, uma voz vinda do céu e o Espírito atuam abundantemente, mostrando que Deus irrompe na história, tomando a iniciativa do processo de acolhida dos pagãos –, com encontros inusitados – em que pagãos e gentios vão ao encontro um do outro –, com relatos de acontecimentos – em que os expositores sintetizam a ação de Deus – e com discursos teológicos elaborados. Cada parte tem sua função e seu lugar no conjunto da narrativa. Não há indícios de historicidade. Tudo indica que o texto foi literariamente construído por Lucas com a intenção de 3 4 TURRADO, 1965, p.94. CASALEGNO, 2005, p.56. 75 Solange do Carmo legitimar a ação evangelizadora de Paulo entre os gentios (a recepção dos pagãos na Igreja e a convivência com eles: participação na mesma mesa), que vai ser tema da reunião de Jerusalém (At 15). É notável a semelhança entre o discurso presente em At 10,34-43 e os demais discursos de Atos, o que confirma ainda mais a tese de que o texto é uma elaboração caprichosa de Lucas. O traço redacional do autor transparece claramente em toda a narrativa. A origem do texto vem, provavelmente, de duas tradições separadas. No começo, pode ter havido uma lenda sobre a conversão de um centurião romano qualquer, chamado Cornélio, pagão piedoso, provavelmente um temente a Deus, que é aceito na comunidade por força do Espírito. Um caso isolado, sem maiores consequências. Essa narrativa não incluía obrigatoriamente a visão dos animais impuros. Paralelamente, havia a convicção de que a conversão e a recepção dos pagãos na Igreja eram obra do Espírito (cf. Felipe com o eunuco), mas esses temas ainda não estavam atrelados à questão dos animais impuros. Mais tarde, a problemática dos animais impuros é incorporada à tradição para justificar a convivência de judeus e gentios na mesma mesa. A origem das duas narrativas seria uma coleção de ditos e fatos sobre Pedro. Passa-se daí para uma etiologia atribuída a Pedro, até chegar ao texto final, com traços claramente lucanos. Dos relatos iniciais, Lucas compõe sua obra, mostrando seu interesse teológico. Assim, a forma atual do relato é vista como legítima, inteira, completa, sem necessidade de maiores preocupações com as diversas camadas que o compõem. Quando sabemos que o texto não é um mosaico casual, mas provém das mãos de Lucas que lhe deu o seu léxico, lhe imprimiu seu estilo e a expressão de suas idéias, a riqueza da coerência literária e temática da forma atual se torna 76 A boa-nova universal da salvação legítima5. Lucas, com seu trabalho redacional, costurou textos e informações com seu estilo próprio, a tal ponto que esses textos parecem ser notas redigidas por ele com sua linguagem característica. Esse modo lucano de escrever pode ser visto também no seu Evangelho, que tem pelo menos duas fontes – Marcos e Q. Lucas se mostra, mais uma vez, um historiador ao modo de seu tempo. Segundo Luciano de Samósata – escritor do século II -, um bom historiador deve reunir a documentação e tomar notas, mas sem grandes preocupações com a maneira de ordenar este material. Essa preocupação é posterior, quando se vai zelar pela unidade da narrativa e pela qualidade de seu estilo. Tecendo a trama de sua literatura, Lucas revestiu de adornos relatos antigos sobre a conversão de um gentio e sobre a convicção da entrada dos pagãos na comunidade, tornando esse episódio uma obra do Espírito, com significado inovador. Assim, o relato serve agora para ilustrar uma tese teológica, isto é, em conseqüência de uma manifestação expressa da vontade divina, e não por iniciativa humana, os gentios foram recebidos na Igreja sem serem submetidos às prescrições da lei judaica. O caso de Cornélio, puramente individual, adquire assim um alcance universal6. Desse modo, unindo, com fins teológicos, dois relatos distintos, Lucas provoca uma revolução religiosa: por meio de atos de Pedro, “legitimou a recepção de pagãos na Igreja nascente e impôs a convivência com eles e a participação de todos na mesma mesa, sobretudo na eucaristia”7. 5 6 7 LUKASZ, 1993, p.28. DUPONT, 1974, p.79. COMBLIN, 1988, p.194. 77 Solange do Carmo 2 Recursos literários Para melhor compreensão de sua mensagem, Lucas usa diversos recursos interessantes. Estes estão presentes em seus escritos, ou em um deles, de forma macro visível. Nas perícopes, eles são minimizados, mas continuam ali, anunciando a presença do escritor. O primeiro recurso não é estranho a Lucas. Vez por outra, ele aparece em seus escritos. Lucas faz um relato ordenado e sucessivo em fase distinta. É a “assincronia de episódios sincrônicos”8. Os fatos estão acontecendo ao mesmo tempo, mas Lucas relata-os um após o outro, dando a cada um deles um tempo especial. É o caso da atividade missionária de Pedro e Paulo, que se desenvolve nos mesmos anos, mas a de Paulo só é narrada depois de Pedro sair de cena. Quem conhece minimamente o Evangelho lucano percebe isso no relato da missão de João Batista e de Jesus. Lá também, Jesus só entra em cena depois que João foi decapitado e saiu definitivamente do cenário da pregação. Na narrativa de Cornélio e Pedro, essa técnica pode ser percebida, mas com uma particularidade. Lucas intercala relatos que envolvem Cornélio ou Pedro, cada um por sua vez, mas entrelaçando-os com um fio narrativo sincrônico, que dá ao episódio uma tessitura bem confeccionada, revelada definitivamente na trama final. O segundo recurso é a alternância de relatos e discursos. Todo o livro dos Atos está marcado por essa alternância. São duas formas literárias distintas, mas bem conhecidas das composições históricas. Por meio dos relatos, Lucas apresenta o fio condutor do seu livro; com os discursos, faz entender seu pensamento teológico. Casalegno afirma que “os discursos constituem um artifício literário por meio do qual o autor manifesta suas idéias, desenvolve seu ensinamento, fortalece 8 78 CASALEGNO, 2005, p.49-50. A boa-nova universal da salvação a fé do leitor”9. Lucas conta um episódio e, logo em seguida, reforça o tema central com o discurso que põe na boca do personagem principal. No caso da perícope estudada, essa alternância não se dá necessariamente só com discursos, mas também com pequenos resumos do episódio relatado anteriormente. Cada cena é de novo recontada pelos personagens: Pedro, Cornélio, seus enviados, etc. são minidiscursos narrativos10, usados para “amarrar a história”, concatenar os dados, fixar o conteúdo. É importante perceber que Lucas não acumula cenas soltas: concatena-as de forma lógica, interpreta-as, dando-lhes novos significados, compondo, ao final, uma história ordenada e coesa, sem entraves que possam impedir sua fluidez. O terceiro recurso são as interrupções intencionais, que deixam sempre algo em suspense, motivando o leitor a ir um pouco mais além, no desejo de ver solucionada a questão que ficou pendente. “Uma cena fica suspensa ou põe um problema que só será resolvido na cena seguinte"11. Isso pode ser observado quando, em At 8,4, Lucas afirma que os cristãos se dispersaram, exceto os apóstolos. Mais à frente, ele retoma o texto (cf. At 11,19) dizendo que aqueles que haviam se dispersado avançaram até diversas cidades, uma delas Antioquia, onde vai ser fundada uma importante comunidade. Esse recurso é percebido também no episódio de Cornélio, que fica em suspenso ao seu final. O evento será retomado no Concílio de Jerusalém (cf. At 15,8). Na perícope estudada, esse recurso reaparece. O que era 9 CASALEGNO, 2005, p.56. 10 Segundo Barthes, o resumo é uma citação sem a letra, ou seja, uma citação de conteúdo (não de forma), um enunciado que remete a outro, mas cuja referência implica em um trabalho de estruturação, já que não é literal. E ainda, multiplicar os resumos quer dizer multiplicar as finalidades da linguagem. Por exemplo: a mesma ordem que foi dada pelo anjo a Cornélio está dita de quatro formas diferentes: enquanto ordem dada, enquanto ordem executada, enquanto relato de sua execução, enquanto resumo do relato de sua execução. Logo, os destinatários são alterados: O Espírito comunica a Pedro e a Cornélio, Pedro comunica a Cornélio, Cornélio comunica a Pedro, Pedro comunica à comunidade de Jerusalém (e a nós leitores). Cf. BARTHES apud DUFOUR, 1976, p.143-163. 11 FABRIS, 1991, p.205. 79 Solange do Carmo macro no conjunto do livro torna-se um micro recurso, um detalhe – um zoom em menor escala – que pode ser percebido no texto. Cada cena que se desenrola parece um capítulo de novela. Deixa algo para o próximo capítulo. Estimula a curiosidade do leitor, intriga-o com uma cena incompleta que pede necessariamente outra. É a arte do bom escritor que não deixa que o leitor lhe escape por falta de interesse em sua obra. 3 O discurso de Pedro na casa de Cornélio: At 10,34-43 A perícope de Pedro na casa de Cornélio tem duplo objetivo: descrever a evangelização dos primeiros pagãos, na dinâmica da difusão universal da Palavra, por meio do testemunho de Pedro, e demonstrar que os obstáculos que estavam no caminho da missão dos gentios e de sua integração plena na Igreja foram eliminados; logo, nada mais impede o sadio convívio entre os cristãos de origem judaica e os de origem gentílica. Por causa desse duplo objetivo, o discurso de Pedro na casa de Cornélio aparece no conjunto da perícope como o foco das atenções. Não é à toa que ele é a parte mais estudada do texto. É por meio dele que Lucas pretende convencer o leitor. Por isso, já começa nos versículos 34-35 afirmando que Deus não faz acepção de pessoas, ao contrário, a salvação que ele oferece é para todos, qualquer que seja a nação a que pertençam. É bom observar a posição do discurso no todo da perícope. a) Visão de Cornélio em Cesareia: At 10,1-8 Logo de começo, um fato surpreende o leitor. Deus aparece primeiro a Cornélio, só depois a Pedro. Cornélio – um pagão – é o personagem principal da cena, “o primeiro destinatário da revelação divina”12. 12 80 FABRIS, 1991, p.208. A boa-nova universal da salvação Alguns códigos importantes são apresentados sobre ele: Quem era esse homem? Onde vivia? Quais suas relações sociais, políticas, etc? Quais os seus laços com o judaísmo? Como era sua relação e de sua casa com Deus? É uma característica lucana introduzir seus personagens dando algumas informações importantes sobre eles. Isso está presente no seu Evangelho e continua em Atos (cf. Lc 19,2; At 13,6; 19,24; 27,1 – ocupação; At 9,33 – estado físico; At 16,1; 18,2 – origem, localização; Lc 2,25; At 18,7 – piedade). Apesar de essa ser uma característica de Lucas, nenhum dos personagens citados acima é descrito com a riqueza dos elementos presentes na apresentação de Cornélio, conforme segue abaixo: • Cesareia: esse é o lugar onde ele reside. É a segunda cidade mais importante da Palestina para Lucas (aparece 15 vezes nos Atos); considerada “cidade dos gentios”, logo, um ambiente “geograficamente” e etnicamente estranho ao judaísmo. • Cornélio: esse é seu nome. Dois outros centuriões foram lembrados no Evangelho de Lucas, mas seus nomes não são referidos (cf. Lc 7, 1-10; 23,47). Em Atos, Lucas se lembrou do “tribuno” Cláudio Lísias (cf. At 23,26; 24,22). Nomear é tirar do anonimato, criar familiaridade, tornar próximo. • Piedade de Cornélio: ele é religioso e temente a Deus. Ao contrário da impiedade dos pagãos, Cornélio é reto diante de Deus e dos homens, contradizendo a primeira ideia que se tinha dos gentios. • Sua casa: mulher, filhos, escravos, livres. Sua fé é difusiva: estende-se a todos os da sua casa, que também seguem sua devoção e piedade. A comunidade doméstica de Cornélio mostra que o que se dá com ele não é história de um homem só, mas de um grupo. Características religiosas: piedoso, temente a Deus, dava 81 Solange do Carmo esmolas, fazia orações. Cornélio é apresentado de forma positiva, com palavras elogiosas, ressaltando sua fisionomia espiritual, por meio de quatro características morais e religiosas. “Era um gentio que simpatizava com a religião judaica, mas que não aceita a circuncisão e a conseqüente obrigação da lei”13. Temia a Deus, fazia orações, dava esmolas, etc. Deus escolhe Cornélio para indicar-lhe o caminho da salvação e, por isso, quando este orava, o anjo do Senhor lhe aparece. Lucas segue o esquema de aparições: entrada do mensageiro de Deus, saudação-convite-resposta-mensagem, desaparecimento da visão. É importante notar que, antes mesmo que Pedro se meta em casa de incircuncisos, o anjo de Deus já se pôs no meio deles, quando veio até Cornélio. Isso já indica que para Deus não existe esta separação entre judeus e pagãos. O anjo de Deus entra em contato com um pagão, contrariando o costume separatista. Deus viola a lei judaica. No diálogo do anjo com Cornélio, este é chamado pelo nome próprio, assim como Saulo (cf. At 9,4) e o judeu-cristão Ananias (cf. At 9,10). Deus conhece Cornélio. O centurião reage com surpresa, afinal é inaudito que o anjo do Senhor venha até um pagão, mas, em 10,4, ele reconhece logo que é o Senhor (kúrie). O ponto central é a mensagem ou ordem divina. Cornélio deve enviar mensageiros para trazer Pedro à sua casa, ainda que nenhuma explicação lhe tenha sido dada sobre o objetivo dessa visita. Mesmo ignorando esse detalhe fundamental, Cornélio obedece prontamente a Deus e envia mensageiros atrás de Pedro. Já na primeira cena, fica eliminada a imagem negativa que os judeus tinham dos pagãos. Nem todos os incircuncisos são idólatras e perversos. Lucas quer equiparar circuncisos e incircuncisos. b) Visão de Pedro em Jope: At 10,9-16 13 82 RICHARD, 1999, p.96. A boa-nova universal da salvação Uma nova intervenção divina se dá. Agora, o destinatário da mensagem de Deus é Pedro, que está em Jope, mais ou menos a cinquenta quilômetros de Cesareia. Lucas amarra uma cena à outra com traços cronológicos e espaciais: no dia seguinte... enquanto se aproximavam da cidade. A hora, o lugar da visão, o motivo de subir ao terraço (oração) fazem a ambientação da visão (que, num primeiro momento, é chamada de êxtase). Pedro também estava rezando, por volta do meio-dia, quando Deus se manifesta. Não fora um sonho. Era dia pleno: hora da clareza total. Pedro sobe ao terraço para rezar14 e tem fome. O texto realça que ele quis comer e, enquanto preparavam o alimento, teve um êxtase. Tudo ajuda a criar a cena, no intuito de mostrar que a ordem que Pedro recebe de matar e comer era bem oportuna. Pedro vê o céu aberto e a toalha com animais puros e impuros. Esse é o pano de fundo da mensagem de Deus. O céu aberto indica revelação divina (cf. Lc 3,21 – batismo de Jesus; At 7,56 – martírio de Estevão). Vale lembrar que a visão de Pedro tem muitos elementos em comum com o batismo de Jesus: a oração, o céu aberto, um elemento visível, a voz. Cada um desses eventos indica o início de uma nova atividade. No batismo, tem início a vida pública de Jesus: Deus anuncia que Jesus é seu filho amado, em quem põe todo seu agrado. Na visão de Pedro, tem início a missão universal: Deus declara a superação da lei puro-impuro, que impedia a missão aos pagãos. Quanto aos animais da toalha, a lista lembra a tradição legal. Assemelha-se a Gn 1,24 (sexto dia da criação: quadrúpedes, répteis, feras), complementado por Gn 1,20-22 (segundo dia da criação: aves)15. Lembra também a tradição narrativa da 14 Como era costume entre os judeus. Cf. 2Rs 23,12; Jr 19,13; Sf 1,5. 15 Esta semelhança poderia ser uma forma lucana de apelar para algo que supera a lei mosaica: a criação que é bem anterior a ela. É preciso voltar ao começo para evocar a novidade e a credibilidade do fato. Essa prática não é estranha à Escritura. Os evangelistas Mateus e Marcos já tinham usado esse argumento quando trataram da questão do divórcio. 83 Solange do Carmo arca de Noé que abrigou animais puros e impuros (cf. Gn 6–9). O relato da arca, porém, não traz listas, o que faz pensar um conhecimento prévio de Lv 11 e Dt 14. Esta semelhança com a narrativa da arca apresenta dados interessantes: a toalha (que é um hapax do NT) era também a vela dos navios; a ordem dada a Pedro lembra a frase dita a Noé sobre seus alimentos em Gn 9,3; e, além disso, a aliança universal de Deus com Noé, abrigado na arca, faz pensar a humanidade nova (judeus e pagãos), abrigada na toalha da Igreja nascente. À ordem divina, Pedro reage bem diferente de Cornélio. Não obedece; ao contrário, protesta veementemente. “Pedro recusa-se a comer tais alimentos, como se não conhecesse a tradição de Jesus conservada em Mc 7,17-23, que declara puros todos os alimentos. Pedro reage como um judeu de estrita observância”16. A docilidade de Cornélio fica realçada diante da obstinação de Pedro. Não é Cornélio quem deve se converter, mas Pedro, que tem dificuldades para obedecer ao Senhor. O protesto de Pedro faz pensar um conhecimento prévio das leis mosaicas descritas em Lv 11 e Dt 14. Todo judeu conhecia essas prescrições e abominava a ideia de se tornar impuro. Gesto louvável e conhecido por todos era o de Eleazar e dos sete irmãos Macabeus, que preferiram morrer a desobedecer a lei mosaica (cf. 2Mc 6,18–7,42). Além do problema da impureza, outra questão se impõe: para comer a carne, Pedro devia matar os animais como mandava o ritual judaico. Porém, em caso de fome, uma exceção era prevista (cf. Dt 12,15-27). Lucas parece ter em mente esse texto, o que coloca seu relato em comunhão com a tradição religiosa e com o costume do povo. À reação de recusa de Pedro – que lembra o protesto de Ezequiel (cf. Ez 4,14) –, a voz lembra que ele não deve chamar de impuro o que Deus já purificou. Deus é a última instância; Cf. Mt 19,3-9; Mc 10,2-12. 16 84 RICHARD, 1999, p.97. A boa-nova universal da salvação ele é o argumento mais forte. Objetivamente, não há puro e impuro; subjetivamente, Pedro ainda faz um juízo. Pedro é convidado a sintonizar a lei judaica à nova situação que se apresenta. O que é proposto a Pedro na visão serve de parábola para convidá-lo a superar algo ainda mais decisivo. O tabu alimentar é sinal do tabu social e cultual que impede o judeu de entrar em contato com os pagãos. c) Encontro de Pedro com os enviados de Cornélio: At 10,17-23a A chegada da delegação de Cornélio parece se dar enquanto Pedro ainda está matutando o significado da visão que acabara de ter. Com detalhes como esse, Lucas mostra a sincronia dos fatos, que tem Deus como único mentor. Mas, se para Cornélio a visão é clara, apesar de a manifestação ser à noite, para Pedro a visão é obscura, mesmo sua manifestação tendo sido em pleno dia. Pedro fica embaraçado, desconcertado diante de ordem tão inusitada, e se põe a perguntar o que significava o acontecido. Os mensageiros de Cornélio já chegaram e estão à porta. Não ousam ultrapassá-la. Não são dignos de entrar na morada de um judeu. Mas um novo agente entra em cena para eliminar os temores de Pedro e anular o abismo que separava mentalidades tão distintas. O Espírito – que é mencionado sete vezes na perícope – tem sua primeira atuação: tirar o temor de Pedro para que vá com os representantes de Cornélio. Pedro ainda não sabe o que vai fazer lá. Por ação do Espírito, ele só obedece. Mais tarde lhe será dito qual a finalidade de sua viagem a Cesareia. No resumo feito pelos enviados de Cornélio, Lucas realça mais uma vez as virtudes do centurião, afinal Pedro deve ser persuadido a ir com eles. Só agora é revelado o que ele vai fazer: irá à casa de Cornélio para anunciar a Palavra de Deus aos pagãos. Este elemento novo que aparece na ordem do anjo já sinaliza que Lucas quer chamar a atenção sobre o discurso 85 Solange do Carmo de Pedro. A compreensão dessa missão, porém, é gradativa. Lucas não desvela tudo de uma vez. Cada coisa a seu tempo. Pedro já sabe o suficiente. Mais à frente saberá que os gentios devem ser batizados e acolhidos na comunidade cristã. Como sinal de acolhida da ordem divina, Pedro hospeda os enviados pagãos na casa onde estava. É natural, pois, que ante a ordem do Espírito Santo, Pedro não somente receba os mensageiros, mas também que se atreva a hospedá-los na mesma casa (v. 23), não obstante tratasse de incircuncisos, com os quais não era lícito a nenhum judeu estabelecer convivência17. É a primeira aproximação entre judeus e pagãos. Pedro toma a iniciativa de hospedar incircuncisos. Inicia-se uma conversão social. Abrem-se as portas para a comensalidade entre judeus e pagãos, que será efetivada na casa de Cornélio. A ordem do Espírito para que Pedro fosse com eles sem hesitar parece tê-lo convencido também a acolher seus visitantes. O medo desapareceu. A superação de um temor levou à superação de outros. Daqui pra frente, Pedro se mostra resoluto e convencido de suas atitudes. d) Encontro de Pedro com Cornélio: At 10,23b-33 O encontro dos dois personagens principais é a cenachave da perícope. Entrecruzam-se dois caminhos distintos por iniciativa de Deus, que elimina distâncias espirituais, sociais e geográficas. Nada é dito sobre a viagem. Percorrer o caminho juntos durante todo um dia é mais que percorrer espaços geográficos entre Jope e Cesareia: é eliminar distâncias interpessoais entre judeus e gentios. Pedro não vai sozinho. Leva uma delegação judeu-cristã que servirá de testemunha dos acontecimentos, “em previsão das censuras que seu modo de proceder poderia provocar, 17 86 TURRADO, 1965, p.96. A boa-nova universal da salvação como de fato sucederá (cf. 11,1-3)”18. Pedro e os seus caminham juntos com a delegação de Cornélio. Está prefigurada a comunidade mista, composta por cristãos de origem judaica e gentílica, que de ora em diante será uma constante na vida da Igreja nascente. Cornélio não estava só à espera de Pedro. Com ele, sua família, parentes e amigos mais próximos – Lucas prefere a dimensão pessoal das relações mais íntimas que a dimensão espacial de vizinhança – estavam na expectativa da chegada daquele que lhes anunciaria a Palavra do Senhor (10,33 – kuri,ou). Cornélio corre ao encontro de Pedro. Lucas demonstra ter pressa de aproximar os dois grupos. Cornélio se prostra19 diante de Pedro, revelando admiração e encantamento, pois vê nele mais que um homem: um mensageiro de Deus, um enviado para trazer a Palavra tão esperada. Pedro não quer saber de prostração a seus pés. Sabe que é um ser falível como os outros. Mostra que já sabe que o fato de ser judeu não lhe garante proximidade maior de Deus. E vai entrando pela casa de um gentio. Agora tem motivos para fazê-lo. Encontrou aqueles a quem deve anunciar a boa-nova. Parece já familiarizado com o público. Vai logo conversando com Cornélio e dirigindo a palavra ao público pagão. Pedro começa logo se justificando. Percebe-se a passagem do que ele viu para o que ele concluiu. Mesmo sabendo que a um judeu é proibido relacionar-se com um estrangeiro, ele obedeceu, pois compreendeu que foi Deus (10,28 – ’o qeo.j) quem lhe mostrou por meio da imagem dos animais que a separação de povo puro e impuro estava superada. A iniciativa da superação é de Deus. Ele eliminou as barreiras; só resta obedecer ao Senhor. A partir desse momento, não é possível mais distinguir entre as pessoas presentes: todos são 18 TURRADO, 1965, p.97. 19 O gesto de Cornélio, devido à sua piedade e ao seu temor a Deus, não parece indicar uma atitude idólatra, mas consonância com um costume hebreu, um sinal de veneração e respeito. Cf. Gn 33,3; Est 3,2. 87 Solange do Carmo apenas ouvintes da Palavra. Colocando na boca de Pedro tal declaração, Lucas faz ver à comunidade judaica que “o que era antigo passou, agora tudo é novo” (2Cor 5,17). e) Discurso de Pedro em Cesareia: At 10,34-43 O discurso é introduzido mostrando a importância daquele momento. Pedro abre a boca e anuncia. Faz, finalmente, o que foi fazer: anunciar a Palavra de Deus àqueles que a esperam sedentos. O começo da pregação de Pedro já diz o tema central do discurso. Pedro reconhece que não há mais separação entre judeus e pagãos, pois Deus mesmo eliminou essa distinção. Deus não faz acepção de pessoas como Pedro pensava antes. Mas essa declaração de que todos são aceitáveis para Deus ainda não significa que todos são salvos. A salvação vem por meio de Jesus Cristo, a quem Cornélio e sua família vão abraçar, depois de acolher o querigma que Pedro lhes anuncia. À afirmação da imparcialidade universal de Deus20, seguese necessariamente a oferta universal da salvação em Jesus Cristo. Pedro compreendeu não só que Deus é imparcial, mas que ele anunciou sua imparcialidade por meio da boa-nova da paz que Jesus veio trazer para todos. Essa paz entre os homens e Deus, e entre um povo e outro, foi selada na morte e ressurreição de Jesus, que é Senhor de todos. Fica aberto o caminho para o querigma21, um minievangelho que está 20 A compreensão de Pedro acerca da imparcialidade de Deus se dá graças à misteriosa visão da toalha com os animais, em Jope (10,11-16), aclarada pelo relato do acontecido a Cornélio (10,20-23). Isso não quer dizer que antes Pedro estivesse convicto de que Deus faz acepção de pessoas, afinal, como bom judeu, ele era conhecedor de Dt 10,17: “O Senhor vosso Deus é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus grande, forte e terrível, que não faz acepção de pessoas nem aceita suborno”. Acontece, porém, que, como todos os judeus, Pedro participava da crença de que Deus, Senhor de todos os senhores, preferia a nação judia a todas as outras, pois assim ele havia determinado por meio de uma aliança com este povo (cf. Gn 17,7; Ex 19,4-6; Eclo 36,14). 21 O termo querigma, que quer dizer anúncio, diz respeito à experiência primeira que as comunidades cristãs fizeram do evento Jesus Cristo, reconhecendo sua presença viva e atuante no meio dos crentes. 88 A boa-nova universal da salvação dividido em quatro partes: batismo na Judeia, ministério na Galileia, subida a Jerusalém, mistério pascal. Pedro cativa seu público envolvendo-o na pregação: “vocês sabem...”. Essa não é uma novidade lucana. Em outras ocasiões, o evangelista também usa este recurso de envolver os ouvintes (cf. At 2,22; 26,26; Lc 24,18). Certamente os gentios tinham contato com os judeus e a notícia sobre a vida, morte e – quem sabe! – até a ressurreição era já conhecida por eles. Pedro parte do pressuposto de que seu público já ouviu falar de Jesus, de que ele não é de todo um desconhecido dos gentios. Eles já conhecem a Palavra, pois ela se difundiu na região, mas, provavelmente, ainda não a aceitaram como Palavra que Deus pronunciou desde o princípio. É preciso, no entanto, deixar claro que esta Palavra é Jesus, o ungido de Deus. Prova disso é que Deus esteve com ele durante toda sua vida pública e, depois de sua morte, tomou seu partido, ressuscitando-o dentre os mortos e exaltando-o como juiz universal. Logo, toda a vida de Jesus é obra de Deus. Jesus de Nazaré foi ungido pelo Espírito Santo, por isso ele andou fazendo o bem e curando a todos. Funda-se uma nova economia da salvação – totalmente cristocêntrica –, cuja exigência agora é aceitar o senhorio de Jesus. Cornélio e os seus são chamados a crer no Deus de Jesus Cristo, não só no Deus monoteísta dos judeus. O Deus dos judeus que Cornélio já temia e adorava se apresenta com nova face: Jesus Cristo, o Nazareno ungido por Deus, a Palavra dantes desconhecida. Nota-se aqui uma passagem fundamental da fé monoteísta de Cornélio para a novidade cristã, que é Jesus Cristo. Afinal, é ele quem elimina o obstáculo entre judeus e gentios. “Ele fez de dois povos um só” (Ef 2,14). Assim, “não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Pedro passa da narrativa da vida de Jesus para a proclamação de seu senhorio, como juiz de vivos e mortos, e para a afirmação de que por meio da fé é que se recebe 89 Solange do Carmo o perdão dos pecados (cf. 10,42-43). Explicitamente está ausente o apelo à conversão, mas o contexto leva a crer que a afirmação tem esse tom de convite, já que a fé e a conversão andam juntas na Escritura, especialmente em Atos (cf. 2,3741). Os discursos são anúncio do perdão. Terminam sempre com o apelo à conversão e a oferta do dom do Espírito Santo. Não obstante Cornélio e os demais ouvintes serem tementes a Deus, piedosos, e praticarem a justiça, a conversão continua sendo uma necessidade para todos. Mas a ausência explícita do apelo pode significar que esse passo já foi dado. Resta agora aderir a Jesus por meio da acolhida do seu Espírito. É o próximo passo. f) Descida do Espírito Santo e batismo dos pagãos: At 10,44-48 Nem bem Pedro terminara de falar aquelas palavras, o Espírito, causando espanto geral nos judeus-cristãos que acompanhavam Pedro, desceu sobre todos os que acolheram a Palavra anunciada. Alguns estudiosos vão entender essa descida do Espírito como uma interrupção do discurso petrino22. Ao analisar o discurso, essa ideia, no entanto, não prevalece, uma vez que – como já foi visto – Lucas dá começo e fim à mensagem que queria pôr na boca de Pedro. Uma coisa, porém, é certa: “Foi perdendo a palavra de verdade que Pedro encontra a verdade da palavra”23. Ao perceber a descida do Espírito sobre os pagãos, Pedro, de fato, compreende a verdade da mensagem que ele próprio acabara de anunciar: “Deus não apresenta parcialidade”. A vida de Jesus entregue por todos é prova disso. 22 Fabris diz: “O relato de Lucas leva a entender que a irrupção do Espírito sobre os pagãos que escutam a Palavra acontece de modo inesperado, truncando até o discurso de Pedro” (FABRIS, 1991, p.215). Saout afirma: “O discurso de Pedro foi interrompido pela ação de Deus” (SAOUT, 1991, p.247). Storniolo escreve: “Pedro é interrompido. Novamente a iniciativa de Deus: o Espírito desce sobre os que ouvem a Palavra” (STORNIOLO, 1993, p.101). 23 MARIN apud. SAOUT, 1991, p.247. 90 A boa-nova universal da salvação A presença do Espírito, derramado em Cornélio e nos seus, é um argumento irrefutável. Todo o grupo de Cornélio foi impregnado pelo Espírito. O grupo que acompanhava Pedro percebe a profundidade desse acontecimento. A primeira reação é de espanto, susto. Aos pagãos, sem necessidade de passar antes por Moisés, é concedido o dom de Deus: eles falam línguas estranhas – como os discípulos no dia de Pentecostes (cf. 10,44; 11,15) – e glorificam a Deus. Pedro não sabe mais o que fazer a não ser admitir que o Espírito é superior a ele e às normas que ele segue. “Não há dúvidas de que esta nova intervenção do Espírito foi também para Pedro um claro sinal de qual era a vontade divina, obrigando-o mais e mais a dar o grande passo em relação aos gentios”24. Pedro não está disposto a ser atrevido. Ao contrário, prefere a submissão da fé. Então manda batizar os que já haviam sido plenificados pelo Espírito, como sinal da pertença destes à comunidade cristã. “Cornélio não é praticamente mais que um objeto que Deus toma para convencer Pedro da idéia fundamental... o convertido não é Cornélio, mas Pedro”25. A partir dessa mudança, Pedro é convidado a se hospedar com os pagãos. Agora, todos são irmãos, batizados em Cristo Jesus, selados por seu Espírito. Não há mais nada que os separa. Nada é mais forte que o laço fraterno que o próprio Deus criou entre eles. Com a ação decisiva de Deus na história, Lucas atinge seu objetivo: a introdução oficial dos pagãos na Igreja, eliminando todo obstáculo que separava judeus e gentios. 18 g) Encontro e discurso de Pedro em Jerusalém: At 11,1- Mais um encontro no episódio de Cornélio. Já é o terceiro que Lucas narra. Este, porém, tem um teor diferente. Quer mostrar que o conflito entre judeus e pagãos achou uma solução definitiva em Jerusalém. 24 25 TURRADO, 1965, p.101. DIAS MATEOS, 1992, p.162. 91 Solange do Carmo Os problemas e as interrogações surgidas nas cenas precedentes são resumidos e resolvidos de forma oficial. Isso só poderia acontecer em Jerusalém, na Igreja central, de onde partiu a missão de Pedro, onde residem os apóstolos, isto é, os representantes autorizados e o núcleo histórico originário da comunidade cristã26. O capítulo 11 começa dando pistas de que, depois do evento na casa de Cornélio, a Palavra de Deus (11,1) se difunde entre os pagãos. Mas a notícia chega a Jerusalém e, quando Pedro vai até lá, os cristãos de origem judaica se põem a questioná-lo a respeito do evento acontecido na casa de Cornélio, especialmente acerca de sua entrada na casa dos pagãos e do fato de Pedro ter comido com eles (cf. Lc 15, 2). É natural essa reação da comunidade cristã de Jerusalém (v. 1-3). O que fora realizado por Pedro era algo totalmente diferente da prática evangélica assumida até então. Explicitamente, o que se reprova é a entrada na casa de incircuncisos e o fato de comer com eles. Mas, nesta objeção colocada pelos irmãos de Jerusalém, está implícita a evangelização dos pagãos e seu batismo27. Afinal, a entrada de Pedro na casa de Cornélio não teve outro fim a não ser o de anunciar para aqueles que o aguardavam a boa-nova que Deus lhe ordenara. E, como consequência desse anúncio, só se podia esperar a conversão, a fé e o batismo, que é o sinal da adesão a Cristo. Pedro começa sua defesa com a recordação de sua visão dos animais puros e impuros, e não com a visão de Cornélio. Logo no início introduz o tema da pureza legal no intento de quebrar as barreiras que se impõem sobre o tema no judaísmo. A visão é recordada com detalhes. Nada pode ficar esquecido. Tudo deve ser dito minuciosamente para que seus opositores 26 FABRIS, 1991, p.216. 27 É bom lembrar que nem todo exegeta concorda com esta afirmação. Cf. LUKASZ, 1993, p.186, nota 44. 92 A boa-nova universal da salvação percebam que esta foi uma iniciativa de Deus e que ele fora mero instrumento do Espírito neste processo da acolhida dos pagãos. Afinal, “Pedro havia sido guiado a cada passo por Deus, e não ter batizado Cornélio e os seus teria sido desobedecer a Deus”28. Era preciso deixar isso bem claro para seus ouvintes. Uma vez narrado o episódio, Pedro evoca o testemunho dos seus companheiros de viagem. Ele tem álibis a seu favor. Não estava sozinho na aventura de acreditar na ordem do Espírito que o impulsionava a acolher os pagãos. Só depois de expor todo o acontecido em Jope e do seu encontro com o centurião, ele se reporta à visão de Cornélio, que também recebera um enviado divino – um anjo. Narradas as visões, Pedro parte para o acontecimento apoteótico que se deu em Cesareia: a descida do Espírito sobre os pagãos, logo após eles terem acolhido o querigma. E de novo a pergunta retórica acerca da oposição possível à ação de Deus. Lucas quer reafirmar que, uma vez que Deus decidiu acolher os pagãos e dar-lhes o dom do Espírito, nada mais resta a fazer a não ser aceitar a decisão divina. Ao ouvirem a argumentação de Pedro, os irmãos se aquietam: sossegam seus corações, apaziguam seus temores, deixam Deus conduzir a história. E são até capazes de se alegrar porque “Deus concedeu também aos pagãos a conversão que leva à vida” (11,18). Cornélio e os seus são “primícias” dos gentios (cf. Rm 16,5; 1Cor 16,15). Estão definitivamente abertas as portas da Igreja para os pagãos. Está justificada a prática paulina de evangelizar e acolher os pagãos, formando com eles uma comunidade fraterna, sem distinções baseadas numa antiga lei, que, por obra de Deus, já foi superada. 4 Temas principais De um exame preliminar, saltam aos olhos alguns temas relevantes que terminam desembocando no mais importante 28 TURRADO, 1965, p.103. 93 Solange do Carmo e central deles: Jesus Cristo29. a) Deus não apresenta parcialidade Desde o começo, ênfase especial é dada a esse tema. Ao descrever o transe de Pedro, Lucas afirma que ele ouviu uma voz – identificada imediatamente em At 10,14 como voz de Deus (ku,rie) – que lhe dá uma ordem de matar e comer os animais que ele vê em êxtase. Imediatamente, Pedro responde mostrando que ele reconhece a imparcialidade de Deus, pois, em qualquer nação, qualquer um que o teme e faz o que é reto é aceitável para ele (10,34-35). Mais à frente, no versículo 36, Jesus é dito como Senhor de todos e, no versículo 42b, Pedro declara que ele foi nomeado por Deus como juiz de vivos e mortos. A universalidade da salvação é mais uma vez enfocada no versículo 43b, na afirmação contundente de que todo aquele que crê em Jesus recebe o perdão dos pecados por meio de seu nome. No versículo 45, nova alusão à imparcialidade de Deus: ele derramou o dom do Espírito Santo também sobre os gentios. b) Deus tem a total iniciativa Em todo o texto, salta aos olhos a iniciativa de Deus, especialmente nas duas teofanias iniciais. Na visão de Pedro, essa iniciativa divina é ressaltada no versículo 20, com o perfeito do verbo enviar (avpe,stalka), que não deixa dúvida alguma quanto à definitividade da decisão. Deus mesmo enviou aqueles homens a Jope para levar Pedro até Cesareia. No v. 33, o perfeito volta dando de novo o mesmo sentido. Desta vez, com o verbo ordenar (prostetagme,na). Pedro deve proclamar a todos que o aguardavam na casa de Cornélio tudo aquilo que o Senhor ordenou que ele dissesse. Não há dúvidas de que se trata de uma ordem de Deus. Algo definitivamente decidido e que não tem volta. Resta a Pedro obedecer ao Senhor, que vai à sua frente tomando a iniciativa. 29 94 LAMBRECHT, 2003, p.133-137. A boa-nova universal da salvação No discurso, isso também fica claro. Deus toma a iniciativa sempre: ele enviou a mensagem ao povo de Israel, ele ungiu Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com poder, ele esteve sempre com Jesus, ele ressuscitou Jesus ao terceiro dia, ele permitiu que Jesus aparecesse aos apóstolos e – quem sabe! – foi ele quem ordenou aos apóstolos que pregassem ao povo e dessem testemunho de Jesus Cristo. No evento da descida do Espírito, um novo perfeito vem realçar a iniciativa divina. No versículo 45, os fiéis circuncidados ficam admirados, pois Deus derramou o Espírito sobre os gentios. Um belo indicativo perfeito passivo do verbo derramar (’ekke,cutai) mostra que a descida do Espírito Santo é iniciativa de Deus e não esforço dos pagãos ou merecimento deles por sua piedade. Algo que não tem mais volta foi realizado. Pedro não tem como discutir com Deus. Não tem como voltar ao passado. Afinal, “agindo Deus, quem impedirá?” (Is 43,10). Iniciado o processo da parte do Senhor, ele realizará tudo que pertence ao roteiro de acolhida dos pagãos. Os pagãos já foram ungidos, escolhidos. Agora, é só aderir ao projeto divino. Por meio desses três perfeitos, é possível traçar uma linha definitiva de ação divina: Deus enviou a delegação de Cornélio até Pedro Deus ordenou a Pedro anunciar a Palavra para Cornélio e os seus Deus derramou o Espírito sobre os pagãos Deus age no tempo presente: nos pagãos, em Pedro, na Igreja que acolhe seu Espírito. Sim, Deus transcende o tempo. No passado, inspirou Isaías e os profetas, escolhendo antecipadamente os apóstolos para serem testemunhas. No presente, continua agindo na Igreja. E, para o futuro, designou 95 Solange do Carmo Cristo como juiz de vivos e mortos no final dos tempos. Passado, presente e futuro são colocados no mesmo nível sob a tutela de Deus, que toma sempre a iniciativa. c) Pedro e os apóstolos são testemunhas Nem todos recebem a aparição do Senhor ressuscitado, mas somente aqueles que Deus escolheu de antemão como testemunhas. Essa escolha de Deus é realçada com a expressão prokeceirotonhme,vnoij: um particípio perfeito passivo que não deixa dúvidas sobre quem escolhe e, muito menos, sobre o fato de que essa escolha é plena de radicalidade. Quem são esses escolhidos? Que status lhes é conferido? Os escolhidos são aqueles que comeram e beberam com Jesus, e receberam a função de testemunhar tudo o que ele fez. E, sendo duplamente testemunhas – do Jesus terrestre (10,39a) e do Cristo ressuscitado (10,41a) –, agora, são eles que atestam: O enviado de Deus é juiz de vivos e mortos (10,42a). Este é o status dos escolhidos: são designados para anunciar o que viveram, de forma que a boa-nova chegue a todos. d) Jesus Cristo é a boa-nova universal de Deus Sem dúvida alguma, Jesus Cristo é o foco principal do discurso de Pedro. Isso é tão notório que Lambrecht30 chega a dizer que a centralidade de Jesus no discurso afeta a linguagem, a sintaxe e o estilo do texto. No começo do discurso, logo após Pedro declarar a imparcialidade de Deus (10,34: Em verdade reconheço que Deus não faz acepção de pessoas. Ao contrário, em todas as nações, aquele que o teme e pratica [a] justiça é aceitável para ele), Jesus Cristo é mencionado. Poderia parecer atrevido, mas é possível pensar que até mesmo essa declaração só acontece por causa do que vem em seguida no versículo 36: “[Deus] enviou a palavra aos filhos de Israel, anunciando uma boa notícia de paz por meio de Jesus Cristo, este [que] é Senhor de 30 96 LAMBRECHT, 2003, p.135. A boa-nova universal da salvação todos”. A imparcialidade de Deus se revela em Jesus Cristo, Palavra de Deus31, que é Senhor de todos. Nessa Palavra, Deus não faz distinção entre as nações. Estando sob o senhorio de Jesus – Palavra de Deus –, não há mais espaço para divisões e separações: todos são um em Cristo. Por ele é que vem a boanova da paz, pois ele é a paz (cf. Ef 2,14). Esta Palavra de Deus é o divisor de águas. Só há dois povos: aqueles que a conhecem e a aceitam, e aqueles que ainda não a conhecem, pois não lhes foi anunciada. Para fazer esta Palavra conhecida é que os filhos de Israel foram escolhidos. Para isso é que Deus escolheu antecipadamente suas testemunhas. A Palavra de Deus não é completamente ignorada pelos pagãos. Ela se divulgou por toda a Judeia. A vida pública de Jesus – seus feitos – não ficou no anonimato. Esta palavra, que a princípio desponta apenas como uma notícia da qual se ouviu falar, é personificada no versículo 37. A partir daí, fala-se dela como alguém concreto. Ela tem um nome: Jesus de Nazaré. Jesus começou sua vida pública na Galileia, depois do batismo de João. Uma vez ungido por Deus no batismo, realizou grandes obras e sua vida mostrava que o Senhor estava com ele. Disso, Pedro e os demais apóstolos são testemunhas. Eles viveram com Jesus pela terra dos judeus e experimentaram essa unção em seu ministério. Mas não foi só isso: eles também foram com ele a Jerusalém e, assim, são testemunhas de sua morte de cruz. Eles atestam que Deus tomou o partido de Jesus e não deixou que seu ungido fosse aniquilado pela morte. Deus o ressuscitou e o fez aparecer depois de sua ressurreição aos seus, que conviveram com o Ressuscitado e fizeram a experiência da ressurreição. 31 A expressão Palavra de Deus, neste caso, não se refere aqui ao logos pré-existente como é dito em Jo 1, com referência somente a Jesus Cristo. É certamente algo mais amplo: a Palavra de Deus anunciada pelos profetas, visibilizada no Filho, divulgada pelos discípulos. Palavra que em todos os tempos interpela e exige resposta. Mas, mesmo não tendo identificação com o logos joanino, essa Palavra não deixa de ter relação estreita com o logos. Em Cristo, “ela se tornou audível e visível ao mesmo tempo; foi um diá-‘logo’ todo especial” (VOLKMAN, 1992, p.43). 97 Solange do Carmo Tendo presenciado tudo isso, os apóstolos foram enviados a pregar e a testemunhar que ele é juiz de vivos e mortos32. Todos estão sob seu senhorio. Até mesmo os profetas, que o antecederam, dão testemunho dele, pois era ele o esperado. Assim, todos que nele creem – vivos e mortos, pessoas do passado, do presente e do futuro, pessoas de todas as nações – recebem nele, e por ele, o perdão dos pecados que vem de Deus. Ele é o penhor de toda redenção. Conclusão O texto de At 10,1–11,18 está em conformidade com a linha geral traçada por Lucas, no conjunto de sua obra. Depois de ter mostrado que Jesus é o evangelizador esperado desde os tempos mais antigos e que ele faz o efetivo anúncio do reino de Deus com sua própria vida doada, Lucas inverte os fatos: o evangelizador será o evangelho anunciado. Ele é o próprio reino de Deus por ele anunciado e, para participar desse reino, a condição fundamental é acolher a ele, Palavra viva do Pai. Essa Palavra sai da Galileia dos pagãos e vai para Jerusalém, o centro da fé e da piedade judaica (Evangelho). De lá, ela vai voltar aos pagãos, por meio da missão de Paulo, o apóstolo dos gentios (Atos). Mas Paulo não está autorizado a anunciar essa Palavra, sem que antes essa prática seja legitimada pelo líder da comunidade cristã: Pedro. É a ele que deve ser atribuída a iniciativa de se abrir aos pagãos. O episódio na casa de Cornélio mostra como a Igreja se abre aos gentios, precisando rever sua prática evangelizadora. Baseando-se em Jesus, boa-nova universal de Deus, toda superação é possível. Por isso, o querigma cristão é o centro da pregação de Pedro. Em Jesus, o velho e o novo encontram outro sentido. O Filho é o ponto de unidade entre todos os homens33 e o motivo da superação de todo costume para se 32 Presente também em outros textos da Escritura (cf. 2Tm 4,1; 1Pd 4,5), esta expressão logo passará para o Símbolo dos Apóstolos, expressão da fé cristã, sintetizada nos primeiros Concílios da Igreja. 33 98 Melo lembra que “quando este Filho se faz homem, nele o Pai se revela aos homens A boa-nova universal da salvação acolher com firmeza a universalidade dos povos, já anunciada desde tempos mais antigos pelos profetas. Assim, ao descrever uma série de eventos concatenados que se sucedem pela iniciativa absoluta de Deus, Lucas possibilita à Igreja nascente compreender que é tempo de ruptura com as antigas leis e de superação de práticas milenares. Afinal, o impedimento que a Palavra encontrava para ir até os gentios era meramente cultural e não tinha causas teológicas. Era baseado em uma interpretação da lei e não na lei em si mesma. Mas, em Jesus, tudo se faz novo: o conteúdo da pregação e as práticas eclesiais. Não só o teor da pregação – cujo foco era a lei judaica e agora coloca as lentes sobre Jesus de Nazaré – deve ser repensado. Uma mudança estrutural é exigida para que a Palavra de Deus continue sendo anunciada. A Igreja nascente terá, a partir de então, de repensar não só sua catequese, seu discurso evangelizador, mas também sua prática pastoral. Essa é a proposta de Lucas. Referências bibliográficas BARTHES, Roland. El analysis estructural del relato a propósito de Hechos 10-11. In: LEÓN DUFOUR. Exegesis y hermeneutica. Madrid: Cristandad, 1976. p.143-163. COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos. São Paulo: Vozes/ Metodista/Sinodal, 1988. v.1. DIAS MATEOS, M. Lucas: evangelizar la Iglesia. In: DIAS MATEOS, M. Tudo lo hago nuevo: aportes bíblicos a la evangelización. Lima: CEP, 1992. p.113-131. DUPONT, Jaques. Estudos sobre os Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1974. FABRIS, Rinaldo. Os Atos dos Apóstolos. São Paulo: Loyola, como Amor (1Jo 4,16) a oferecer um dom destinado a todos, o Reino. [Deus] Demonstra o caráter universal deste dom mediante a ‘parcialidade’ de seu amor preferencial pelos pobres e pecadores” (MELO, 1996, p.116). 99 Solange do Carmo 1991. LAMBRECHT, J. Jesus Christ is the lord of all. Acts 10,34-43. In: LAMBRECHT, J. Understanding what one reads – New Testament Essays. Leuven: Peeters, 2003. p.133-137. LUKASZ, Czeslaw. Evangelizzacione e conflito: indagine sulla coerenza letteraria e temática della perícope di Cornélio (Atti 10,1-11,18). Frankfurt: Peter Lang, 1993. MELO, Antônio Alves de. A evangelização no Brasil. Dimensões teológicas e desafios pastorais: o debate teológico e eclesial (1952-1995). Roma: Pontificia Università Gregoriana, 1996. RICHARD, Pablo. O movimento de Jesus depois da ressurreição: uma interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1999. SAOUT, Y. Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1991. STORNIOLO, Ivo. Como ler os Atos dos Apóstolos: o caminho do evangelho. São Paulo: Paulus, 1993. TURRADO, Lorenzo. Biblia comentada: Hechos de los Apóstolos y Epístolas paulinas. Madri: La editorial catolica, 1965. v.6. VOLKMAN, Martin. Hebreus 4,12-13: a palavra de Deus, viva e eficaz. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n.34, p.43, 1992. ______________________________________________________ Solange do Carmo [email protected] 100 COMUNICAÇÕES A RELAÇÃO ENTRE CLÉRIGOS E LEIGOS NO CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO Jeferson Almeida de Souza O Código de Direito Canônico promulgado em 1983 busca apresentar uma imagem da Igreja descrita pela doutrina conciliar. Ele é um esforço de transferir para a linguagem canônica a eclesiologia do Vaticano II. A relação íntima entre o Concílio e o Código é algo que remonta à origem. Pois a intuição de reformar o Corpus vigente das leis canônicas promulgado em 1917 e a de convocar um Concílio Ecumênico nasceram juntas e foram anunciadas no dia 25 de janeiro de 1959 pelo Papa João XXIII. A mente arejada de João XXIII, percebendo os sinais dos novos tempos, abre as janelas da Igreja com o Concílio Vaticano II e deixa entrar a brisa suave da primavera. Embora tenham sido simultâneos, o anúncio do Concílio e o da revisão do Código, o trabalho desse somente foi levado a cabo tempos depois uma vez que, para haurir as novas normas e orientações, era necessária a conclusão do Concílio. Dos traços marcantes da eclesiologia conciliar presentes no Código podemos destacar: Jeferson Almeida de Souza - a doutrina que descreve e entende a Igreja como Povo de Deus (LG1 2); - a autoridade hierárquica como serviço (LG 3); - a doutrina que apresenta a Igreja como comunhão e estabelece as relações que deve haver entre a Igreja particular e a Igreja universal, e entre a colegialidade e o primado; - a doutrina segundo a qual todos os membros do Povo de Deus participam, a seu modo, do tríplice múnus de Cristo: sacerdotal, profético e régio; - o esforço que a Igreja deve consagrar ao ecumenismo2. Desse esboço geral podemos entrever como o Código concebe a relação entre o clero e o laicato. Ela deixa de ter o negativo aspecto de dominadores e súditos, como anteriormente era vista, e passa a ser harmoniosa e fecunda. O livro II do CIC3 intitulado “Do Povo de Deus”, nos cc. 204-207, que pretendem sintetizar os pontos centrais da eclesiologia do Vaticano II, inicia falando não da hierarquia, como comumente era praxe, mas dos fiéis. Antes do Vaticano II, a Igreja era compreendida como estrutura composta por sujeitos distintos e desiguais. A nova eclesiologia recupera o sentido profundo do batismo e destaca a igualdade fundamental de todos os fiéis. Os clérigos e os leigos não constituem duas classes separadas (de dominadores e súditos, como antes se dizia), mas são estritamente ligados entre si. Enquanto os ministros sagrados estão a serviço dos outros batizados que são chamados a uma colaboração ativa, todos os fiéis, no exercício das diversas funções que lhes são confiadas, contribuem, eficazmente, para manifestar e incrementar a unidade do Povo de Deus. A distinção entre clérigos e leigos é, pois, de caráter 102 1 Constituição Dogmática Lumen Gentium. 2 p.11-12. 3 Cf. Constituição Apostólica de Promulgação do Código de Direito Canônico. CIC Sigla correspondente a versão latina Codex Iuris Canonici. A relação entre clérigos e leigos no código de direito canônico exclusivamente funcional que nada acrescenta ou diminui à dignidade e à liberdade comum a todos os membros da Igreja4. Assim sendo, a Igreja recupera a sua imagem original delineada no NT, na qual a comunhão precede as funções e os cargos: “Como o corpo é um, embora tenha muitos membros, e como todos os membros do corpo, assim também acontece com Cristo. (...) fomos batizados num só Espírito, para formarmos um só corpo, e nós bebemos de um único Espírito” (1 Cor 12,12-13). Ao falar das obrigações e direitos de todos os fiéis nos cc. 208-223, o CIC destaca a igualdade entre os clérigos e os leigos: “Entre todos os fiéis, por sua regeneração em Cristo, vigora, no que se refere à dignidade, uma verdadeira igualdade, pela qual todos, segundo a condição e os múnus de cada um, cooperam na construção do Corpo de Cristo” (c.208). Os cânones seguintes vão na mesma linha, e o destaque é para a comum responsabilidade pelo bem da Igreja. Unidos pela vocação batismal clérigos e leigos devem trabalhar juntos “a fim de que o anúncio divino da salvação chegue sempre mais a todos os homens de todos os tempos e de todo o mundo” (c.211). Os cc. 224-231 tratam das obrigações e direitos dos fiéis leigos. Tendo como pano de fundo o cap. IV da LG e o Decreto Apostolicam Actuositatem, o Código supera aquela eclesiologia que atribuía aos leigos uma posição passiva frente ao clero. O CIC de 1917 dedicava aos leigos, com título próprio, apenas dois cânones: o primeiro para declarar o direito dos leigos de receber do clero, segundo a norma da disciplina eclesiástica, os bens espirituais e sobretudo os auxílios necessários para a salvação (c 682 CIC/17); 4 METTLER, Peter. Apostila de Direito Canônico I e II. Belo Horizonte: ISTA, 2009. (digit. p.25). 103 Jeferson Almeida de Souza o segundo, para lhes proibir o uso do hábito eclesiástico (c 683 CIC/17). Os leigos tinham uma posição de absoluta subordinação ao clero e suas tarefas eclesiais eram muito limitadas. Mais do que “sujeitos” de responsabilidade e de ação, eles eram considerados “objetos” da atividade ministerial dos clérigos5. Na nova eclesiologia conciliar o leigo não mais é visto, dentro da Igreja, como pertencente a uma segunda classe, inferior aos presbíteros, aos diáconos e aos religiosos. Ele é reconhecido e valorizado em sua idiossincrasia, em sua condição peculiar de estar na “secularidade”. Assim diz a Lumen Gentium: É própria e peculiar dos leigos a característica secular. (...) Por vocação própria, compete aos leigos procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é, em toda e qualquer ocupação e atividade terrena, e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as quais é como que tecida a sua existência. São chamados por Deus para que, aí, exercendo o seu próprio ofício, guiados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de mais pelo testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade6. A ação pastoral dos leigos na cotidianidade não é uma delegação da Hierarquia. Eles não são intermediários entre a Igreja e o mundo, eles são parte integrante da Igreja e a missão deles brota da comum vocação batismal. No c. 228, ao falar da cooperação dos leigos junto aos 5 6 104 Ibid., p.28. LG 31. A relação entre clérigos e leigos no código de direito canônico Pastores, a motivação não é suprir a falta de ministros ordenados. Essa é uma cooperação de cunho eminentemente teológico, pois a edificação do Corpo de Cristo é responsabilidade de todo batizado. Além da ampla participação e colaboração dos leigos nas ações litúrgicas, catequese, missão..., a eles cabe também, segundo o c. 129§2, a colaboração no exercício do poder de governo. E essa possibilidade não se restringe aos homens, mas também se estende às mulheres. Elas, segundo o Código, podem exercer os cargos de notário, chanceler, juiz auditor, etc., que implicam uma efetiva participação no poder de governo da Igreja. Do exposto, concluímos que superada a eclesiologia que via a Igreja como sociedade desigual na qual o clero era senhor e o laicato súdito, o Direito Canônico, alicerçado na eclesiologia do Vaticano II, apresenta uma relação harmoniosa e fecunda entre os leigos e os ministros ordenados. A hierarquia presta um serviço a Igreja que é Povo de Deus. Nela a grande dignidade se fundamenta no batismo, ele nos iguala a todos perante Deus. ______________________________________________________ Jeferson Almeida de Souza, Sch.P. [email protected] 105 NATUREZA HUMANA E PECADO Artigo desenvolvido pelo Grupo de estudos teológicos: Ismail Lisboa de Miranda, Jonathan Alex da Costa, Luiz Antônio Maciel, Rodrigo Alves Ferreira e Wander de Oliveira Souza, sob a orientação do Prof. Dr. Josimar Avezedo Introdução O comportamento humano é avaliado em pontos positivos e negativos. Os pontos denominados negativos são chamados de pecado na concepção cristã. Sempre o pecado foi visto e tratado de várias formas. Na filosofia antiga, o fatalismo e o dualismo impediram o aparecimento de uma profunda consciência ética do pecado e da culpa moral no mundo antigo. Na avaliação da existência, a tragédia grega não considera a culpa no sentido moral e teológico, mas como uma fatal necessidade fundada sobre a limitação da existência humana1. Para as religiões sobrenaturais, o pecado tem o caráter de uma transgressão contra os poderes do mundo superior, que reagem punindo até as perturbações involuntárias da ordem e impondo ritos externos de expiação. Para as religiões mágiconaturais, o pecado é entendido como transgressão às regras mágicas ou como infração à ordem da comunidade. Quanto às religiões politeístas, o pecado é uma ofensa aos deuses e requer uma expiação cultural2. 1 2 Cf. FRIES, 1970, p.181. Cf. FRIES, 1970, p.183-185. Natureza humana e pecado O primeiro testamento não fala teoricamente sobre a natureza do pecado; antes, mostra-o de modo concreto, como uma força que opera na história do povo eleito e de toda a comunidade. A essência do pecado, para a comunidade do primeiro testamento, está no pecado original que vem de Adão e que consiste na falsa autoafirmação do homem e na desobediência a Deus. Os profetas consideram como pecado as faltas interiores de orgulho, desobediência e ingratidão, se bem que no primeiro plano apareça claramente o caráter exterior da ação em favor do caráter subjetivo e interior de pecado; também a formação de um claro conceito de culpa, o qual não pode ser separado do conceito de pecado. A visão teológica do pecado em relação a Deus corresponde à fragilidade humana. As religiões monoteístas complementam dizendo: vê-se no pecado mais uma transgressão e uma falta objetiva quanto à ordem estabelecida do que a má disposição subjetiva3. Jesus Cristo e a comunidade primitiva não ofereceram nenhuma dissertação sobre a natureza do pecado. Já o cristianismo o define como um comportamento humano, fundamentalmente negativo. Pecar é dar as costas a Deus, criador, afastar-se da fonte da vida e, por conseguinte, colocarse num estado de carência. A escolástica diz que a natureza do pecado está constituída pelo afastamento da lei divina e pela perda de um bem maior. Em linhas pastorais, o pecado está na raiz do comportamento, no núcleo central da pessoa, naquilo que a Bíblia chama de coração e não podemos esquecer que o pecado tem uma natureza religiosa. Podemos dizer que pecar é violar a aliança, trair o amor e afastar-se da comunidade dos irmãos. Em última instância, o pecado é o contrário do amor4. 1 Conceito de Natureza Humana Sobre o conceito de natureza humana existem duas posições 3 4 Cf. FRIES, 1970, p.186-188. Cf. FRIES, 1970, p.190-194. 107 Grupo de estudos teológicos clássicas. De um lado encontramos autores como Rousseau e Kant, que postulam uma possível natureza humana, e de outro lado autores como Sartre, que a negam. Provar empiricamente a existência da natureza humana é uma empreitada espinhosa e árdua que dificilmente se conseguirá demonstrar5. Contudo, assim como Hobbes e Locke, Rousseau se enquadra entre os filósofos modernos no grupo de esteira contratualista. Isso significa que esses autores negam a sociabilidade natural dos homens e fundam o Estado em bases contratuais e convencionais. Em uma palavra, o Estado surge pela vontade humana6. O ponto de partida para chegarmos à condição social é o estado de natureza, onde podemos encontrar o homem vivendo de maneira simples, ingênua e errante pelas florestas7. Dessa maneira, Rousseau nos apresenta uma natureza humana boa, ainda não corrompida pela vida em sociedade. Para o filósofo, a natureza se deteriora na medida em que os relacionamentos vão acontecendo. Sartre, por sua vez, nega toda essa construção hipotética. Segundo o filósofo, o homem existe depois ele é. Não existe um antes e um depois, apenas o momento presente8. Utilizando um jargão de Dostoievski, Sartre nos diz que: “se Deus não existisse tudo seria permitido”. O autor dessa maneira condiciona a moral à existência de um Deus que seria um critério para validá-la. Entretanto, Kant fundamenta a moral no conceito de homem como ser livre9. Dessa maneira, a moral não precisa de nenhum móbil externo para justificá-la. O imperativo categórico se impõe como uma máxima de ação que basta por si mesma. Portanto, na formulação kantiana a moral não carece de um Deus que a justifique. Logo, o jargão utilizado 5 6 7 8 9 108 Cf. ROUSSEAU, 1999, p.160. Cf. ROUSSEAU, 1999, p.176. Cf. ROUSSEAU, 1999, p.166. Cf. SARTRE, 1978, p.6. Cf. SARTRE, 1992, p.11-12. Natureza humana e pecado por Sartre cai por terra diante do ser moral de Kant, que age por determinações internas que se transformam em uma máxima de ação. Voltemos à hipótese rousseauniana. O homem vivia em um estado primitivo; como ocorreu a saída dessa condição? Rousseau postula uma natureza humana dinâmica, não determinada. Há na natureza humana um elemento que possibilita a mudança – a perfectibilidade. Ela é um mecanismo inato que só se manifestará quando surgir a necessidade. Sendo assim, Rousseau coloca em parênteses o testemunho bíblico do pecado original e confere à natureza humana uma mudança gradual que marca a diferença entre os homens e os animais. Além de não haver nenhum determinismo na natureza humana10, o homem vivendo em sociedade é um agente livre, ou seja, a sua ação moral é movida pela sua possibilidade de poder escolher. Portanto, a vida social oferece por um lado enormes benefícios, mas por outro ela colabora para que o homem se torne vicioso e doente. Voltar à condição inicial não é permitido; de agora em diante o homem altera significantemente a sua natureza e transforma a sua existência separada de um todo social. Dessa maneira, pode-se falar em pecado, mas, na concepção histórica rousseauniana, o pecado é histórico e aparece somente quando surgirem os relacionamentos humanos. 2 O perdão como resposta humana ao pecado O pecado é uma ação humana. O pecado só existe se está ligado a uma pessoa que em determinado momento faz uma escolha. A noção de pecado se traduz como a tomada de posição consciente e livre da pessoa. Mas se o pecado só existe relacionado a uma pessoa e a uma determinada escolha, então 10 Cf. SARTRE, 1992, p.11-12. Esse conceito fica mais explícito quando percorremos as várias obras de Rousseau. Nessa perspectiva pode-se intercalar o Discurso sobre as Ciências e as Artes com o Discurso Sobre a Desigualdade e depois passar ao Emílio intercalando-o com o Contrato Social e com o Discurso Sobre a Economia Política. 109 Grupo de estudos teológicos o pecado não existe. O que existe é a pessoa, capaz de fazer escolhas, de decidir, tomar posições. Assim o pecado pode ser o modo de traduzir a existência de uma pessoa, pois é a revelação do seu agir, da sua escolha, da forma como escolheu levar sua vida11. O homem de fato tem a missão de construir a sua existência, a sua vida. E esta é construída não por momentos isolados, mas como um todo. E no momento em que o homem assume plenamente essa sua existência faz escolhas e projeta sua existência. Surge aí o comportamento moral, que tende a unificar a pessoa e a colocá-la em uma direção12. O pecado é a ação humana impregnada pela maldade. É a experiência de no processo de autoconstrução se fazer existir, livremente, de forma má. Dois aspectos importantes na construção dessa estrutura de pecado são: a intenção e a liberdade; só com esses dois elementos se é possível emitir algum juízo sobre a responsabilidade com a qual a pessoa desenvolve seu projeto fundamental da vida13. Todo pecado, seja ele particular ou social, exige uma resposta por suas consequências. Na pregação de Jesus encontramos a penitência e a conversão como respostas ao pecado. A penitência é uma forma radical de se separar do pecado. Já a conversão, um modo de voltar-se para Deus, exige grande esforço pessoal e é também Dom de Deus. Enfim é a mudança radical de direção da vida, uma mudança profunda e definitiva14. A parábola do filho pródigo (Lc 15, 11-32) nos mostra a atitude de um pai diante do pecado do filho. É Deus na condição de Pai do pecador. Deus é Pai que respeita a liberdade do filho de ir embora, porém fica a esperá-lo e o acolhe de braços abertos. A resposta de Deus ao pecado é o perdão e a misericórdia. A parábola é apresentada no Evangelho como resposta de Jesus 11 12 13 14 110 RAMOS-REGIDOR, 1989, p.92. RAMOS-REGIDOR, 1989, p.93. RAMOS-REGIDOR, 1989, p.92. RAMOS-REGIDOR, 1989, p.125. Natureza humana e pecado aos Fariseus que o repreendiam por acolher os pecadores15. 3 O pecado enquanto categoria sócio-antropológica: desafios à espiritualidade cristã O perdão segue sendo um dos grandes desafios da atualidade. A violência em seus vários desdobramentos somada à crescente onda de intolerância tem constituído um cenário social onde os sinais de morte são evidentes, ainda que, muitas vezes, ignorado ou camuflado. Mais que atenuar os indícios do pecado, o cristão é desafiado, à imagem de Jesus, a fazer-se solidário tanto com o pecador quanto com a realidade marcada pelas ações daquele que ofende e empreender um itinerário de conversão. Após séculos de exploração externa, a América Latina, ainda hoje, não conseguiu superar os estigmas do colonialismo. A desigualdade social identifica o pecado objetivado que as Conferências de Medellín e Puebla já haviam apontado e reclama o reavivamento da espiritualidade cristã do perdão. A realidade do pecado, para além de quem o pratica, dissemina inúmeros males na sociedade em geral. Neste contexto é válida a questão: e quando os males não são originados propriamente pela ação maldosa de um indivíduo, mas causados pelo individualismo, omissão, apatia generalizados? Sobrino anuncia: “redescobrir a essência do pecado comunitário ajudou também a redescobrir a essência e a finalidade do perdão”16. Viver a fé com autenticidade, dentre outras atitudes, requer amor gratuito, gerador de liberdade e um árduo exercício de ultrapassar o mal, ou seja, coibir as tendências a um agir vicioso e criar espaços, situações humanizadoras capazes de aproximar o ofendido e o pecador, reinserindo este último. Sendo assim, não há como considerar espiritualidade cristã se esta não for sinalizada pelo amor. A perda da amizade no 15 16 Cf. RAMOS-REGIDOR, 1989, p.125-126. SOBRINO, 1986, p.56. 111 Grupo de estudos teológicos mundo moderno – o rompimento do ideário de comunidade que tem concebido relações humanas voláteis, débeis, permissíveis à intransigência – tem desafiado não só cristãos, mas toda a sociedade a resgatar o amor na perspectiva da gratuidade. Diante do caos moderno, ausência de uma compreensão honesta do mundo, restabelecer a ordem por meio do perdão integral pode figurar uma alternativa. Sobrino apresenta três dimensões da espiritualidade do perdão: confrontar-se com o pecado visando à libertação; erradicá-lo; admitir que o processo de libertação significa destruir potencialmente o opressor. Pode-se somar a essa tríade uma conversão sócio-humana estrutural. Tanto o opressor deve pensar os seus atos e ser readmitido ao convívio fraterno como a sociedade é desafiada a reestruturar-se e promover relações mais equitativas, verdadeiros programas de assistência aos crucificados do nosso tempo. Não há outro tempo para a prática do amor a não ser o cotidiano. Sobrino afirma: “a espiritualidade do perdão tem de exercitar-se não só ao nível estrutural, mas na vida cotidiana, onde a ofensa é mais imediata e o perdão mais ardoroso”17. Sanar os males exige algo de que carece a modernidade: conhecimento profundo do mundo. Sem a devida apropriação do pecado e a lúcida inserção nos meios onde ele se manifesta, torna-se meramente formal o perdão; dificilmente veiculará um processo de conversão, muito menos será suficiente enquanto indicador de solidariedade. Mergulhar no universo do pecador e exercitar-se na superação dos sentimentos de ódio e vingança é possibilitar novas perspectivas, ou seja, assegurar por meio da reconciliação o projeto de um futuro melhor, solidário e fraterno, em que as pessoas sejam livres; enfim, é lançar bases para a edificação do Reino de Deus. Medellín e Puebla detectam no coração humano as raízes do pecado. A pobreza, angústias e frustrações ilustram 17 112 SOBRINO, 1986, p.56. Natureza humana e pecado uma realidade impregnada de pecado18. O crescimento populacional e o exacerbado desenvolvimento tecnoeconômico são causa dos danos ambientais; a banalização da vida humana, corrupção e roubos são situações prementes no atual contexto latino-americano. Como intervir? Soluções paliativas talvez possam atenuar o problema, contudo são insuficientes. Só comoção e admiração, tampouco, bastam. Também seria reducionismo apelar unicamente para a “conversão” dos países europeus e norte-americano. “Lutar contra o pecado significa denunciá-lo, dar voz ao clamor dos ofendidos; desmascarar o pecado, denunciando que existe a morte e a destruição de povos inteiros”19, argumenta Sobrino, reforçando a convicção da necessidade de perdoar a realidade, quer dizer, reavivar a “utopia na esperança”20 e adotar ações concretas que concorram para a realidade do Reino. Enfim, após este trajeto, é considerável o status de liberdade conferido ao ser humano, a responsabilidade que isso implica, seja na predisposição às virtudes ou ao vício/pecado e seu papel enquanto agente de transformação social, expresso na denúncia do mal e acolhimento do pecador. “Converter o pecador com amor supõe crer que o amor é realmente eficaz para transformar o pecado e o pecador”21. Conclusão De acordo com o documento de Puebla, podemos perceber o mal e o pecado diante da reflexão de angústias e frustrações em que vive o ser humano. “As angústias e frustrações, se as consideramos à luz da fé, têm por causa o pecado, cujas dimensões pessoais e sociais são muito amplas. As esperanças e expectativas de nosso povo nascem de seu profundo sentido 18 19 20 21 Cf. SOBRINO, 1986, p.47-48. SOBRINO, 1986, p.49. SOBRINO, 1986, p.50. SOBRINO, 1986, p.52-53. 113 Grupo de estudos teológicos religioso e de sua riqueza humana”22. Portanto, a angústia e o pecado são fenômenos que marcam a existência humana. Tanto a contemplação do mundo quanto a angústia proveniente da natureza fragilizada pelo “pecado original” podem levar o indivíduo a uma intensa autocrítica. Frequentemente o ser humano se nega a reconhecer Deus como sua origem. Volta e meia as circunstâncias sociais adversas o desviam do bem e o impulsionam para o mal. Assim, os conflitos sociais procedem da cisão dos pecadores; os desequilíbrios de que padece o mundo atual estão relacionados ao desequilíbrio mais básico que sofre o ser humano; a escravidão causada pelo pecado social tem sua origem no orgulho e no egoísmo. O que valeu para Adão tem de valer para todo indivíduo. A angústia é a condição necessária, mas não suficiente para a possibilidade do pecado. A relação é de semelhança de função; o que aconteceu a Adão também acontece ao indivíduo e a reflexão da angústia e do pecado, bem como o seu aumento quantitativo, não deve afetar o ser humano e instaurar uma ordem social afastada de Deus. O ser humano se vê imerso em uma espécie de angústia ao perceber o modo como se está inserido no processo do mal que assola o mundo. Cada indivíduo se insere nesse contexto independente da posição social, cultura ou nacionalidade a que pertence. Por um lado o pecado social afeta a todos na sociedade e a cada um em particular, por outro se percebe a fragilidade da natureza humana diante do pecado. A vida humana, preciosa a todos por ser um dom de Deus, se torna pesada, angustiante e cansativa. O colorido próprio da natureza humana perde o brilho diante da realidade penosa em que são obrigados a “sobreviver” povos inteiros, alheios a qualquer tipo de esperança. É preciso uma forte reação a essa realidade na qual estamos mergulhados. Uma reação que só é possível pela fé 22 114 Doc. Puebla, nº 73. Natureza humana e pecado e pelo empenho em construir um novo modelo de sociedade, capaz de valorizar a natureza humana e romper com o mal. Assim o mal já não poderá destruir povos inteiros: a paz teria mais espaço no coração humano e a liberdade já não seria um sonho. Referências CONCLUSÕES da III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Puebla: Paulinas, 1979. FRIES, Henrich. Dicionário de teologia: conceitos fundamentais da teologia. 2.ed. São Paulo: Atual-Loyola, 1970. p.185-198. v.4. KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. Lisboa: Edição 70, 1992. RAMOS-REGIDOR, J. Teologia do sacramento da penitência. Paulinas: São Paulo, 1989. ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1978. SOBRINO, Jon. América Latina: lugar de pecado, lugar de perdão. Concilium, Petrópolis, n. 204, p.46-58, 1986/2. 115 UT UNUM SINT: o diálogo como pressuposto para o ecumenismo Trabalho elaborado pelo grupo de pesquisa teológica composto por Glecimar Guilherme da Silva, Raúl Villalba Maylin, Rodrigo Naves Batista, Victor Manuel Torales e Wagner Aparecido Ferreira, e orientado pelo Prof. Dr. Josimar Azevedo Introdução Atualmente a ideia do ecumenismo está sendo muito discutida, buscando uma maior união entre as distintas religiões cristãs, aquelas que professam seu credo em Jesus como o Salvador e Filho de Deus. A unidade cristã não é puramente uma tarefa humana, mas é um dom divino e se revela mais como mistério do que como um problema a ser resolvido. O próprio Vaticano II afirma que a alma do ecumenismo é a oração. Uma atitude de humildade entre as distintas religiões e a conscientização de que a graça não é “propriedade privada” de nenhuma delas é essencial para o ecumenismo1. Definindo a etimologia de ecumenismo, a palavra vem do grego oikomene, que significa casa, estirpe, habitar... Oikomene é a terra habitada e o mundo conhecido e civilizado. Esse termo, a princípio, é utilizado para se referir ao império romano2. Com o passar do tempo, vai ganhando novos significados. 1 2 Cf. BOSCH, 1999, p.214. BOSCH, 1999, p.213-214. UT UNUM SINT: o diálogo como pressuposto para o ecumenismo No Concílio de Constantinopla, em 381, é utilizado pela primeira vez pela Igreja Católica sendo chamado de Concílio Ecumênico. Em 1846, em Londres, o pastor francês Adolphe Monod, na primeira reunião da Aliança Evangélica, utiliza o termo de forma mais ampla ao agradecer a iniciativa de formar o grupo: “(...) o espírito verdadeiramente ecumênico que haviam demonstrado (...)”3. Mas foi no século XX que se deu novamente uma nova acepção ao termo, quando as Igrejas divididas buscam uma relação amistosa entre si para superar a rivalidade teológica e uma aproximação entre cristãos4. O objetivo do presente artigo é fazer uma abordagem sobre o diálogo ecumênico como premissa para a concretização do ecumenismo, partindo da necessidade de busca de unidade que está incutida na história desde o início do cristianismo. Uma unidade que não leve a uma perda de identidade, mas que ajude a estabelecer pontos de contatos através do diálogo. O primeiro capítulo, intitulado “Que todos sejam um, grito de ontem e de hoje”, busca tratar o ecumenismo a partir de uma perspectiva bíblica; para ser mais preciso, em Paulo e João, deste último nas cartas e no evangelho. Ambos demonstram que desde o início houve uma busca de manter a unidade entre as comunidades e seus dirigentes, procurando superar as diferenças e servir ao mesmo Senhor. O segundo capítulo, intitulado “Ecumenismo, dom para estabelecer pontes”, aborda o ecumenismo como um dom de Deus que ultrapassa a esfera humana. Ele não representa uma renúncia de identidade, mas sim a união em Cristo a partir dos dons particulares da Igreja. A função do ecumenismo é ser criador de pontes entre os cristãos. Finalmente, o terceiro capítulo, intitulado “A necessidade do diálogo ecumênico”, trata da necessidade deste como importante fator para o desenvolvimento de movimentos ecumênicos, visando à unidade como objetivo último. 3 4 BOSCH, 1999, p.214. BOSCH, 1999, p.214. 117 Grupo de pesquisa teológica Na conclusão, buscando-se a visão da Igreja Católica sobre o tema, procurou-se confrontar as reflexões com o documento Unitatis Redintegratio, do Concílio Vaticano II. 1 Que todos sejam um, um grito de ontem e de hoje O problema de divisão entre os cristãos remonta às primeiras comunidades cristãs, o que nos leva a afirmar que o ecumenismo não é uma questão que se resolva de um dia para o outro. Tanto as cartas de João como as de Paulo nos apresentam comunidades bem humanas, que têm seus conflitos principalmente entre judeus e pagãos sobre a questão do batismo e a circuncisão. Com a intenção de dar uma solução a esse problema, foi convocado o primeiro concílio, o de Jerusalém. A partir desses conflitos começaram os escritos apelando à unidade. Entre eles temos a carta de João, que tem como finalidade manter a comunhão da comunidade com seus dirigentes e de todos com o Pai e o Filho5. Neste contexto de conflito, segundo Pereira (1999), aparecem o batismo e a eucaristia. Estes seriam ritos comunitários socialmente visíveis que comprometeriam publicamente os discípulos com Jesus e com a comunidade, coisa que os cristãos inconsequentes evitavam por medo aos judeus e para não serem expulsos da sinagoga6. João, inspirado pelo Espírito Santo, critica esses cristãos inconsequentes colocando claramente o que implica ser seguidor de Jesus. Ao invés de chegar à unidade surgiram pontos de divergências mais profundos. Já não se tratava de brigas entre judeus e pagãos, de circuncisão ou não; agora entram problemas como a cristologia, já que os dissidentes apoiados no quarto evangelho acentuavam a divindade de Jesus e davam pouco valor à sua humanidade; por isso, a carta insiste em que é preciso crer “no nome” do Filho de Deus, que é Jesus 5 6 118 PEREIRA, 1999, p.44. Cf. PEREIRA, 1999, p.49. UT UNUM SINT: o diálogo como pressuposto para o ecumenismo vindo da carne, encarnado. Os dissidentes se consideravam perfeitos e sem pecados; surge aí outro ponto de conflito, que é a questão ética, por isso João acentua o amor mútuo, a abertura ao irmão, principalmente o necessitado (1 Jo 3, 17)7. É diante dessa realidade conflitiva que João sentiu intensamente o anseio da unidade e o expressou de uma maneira excepcional no seu Evangelho, na oração testamentária de Jesus8. Esse anseio pela comunhão se resume em três capítulos (Jo 17,20-27) onde João, colocando na boca de Jesus, expressa quatro vezes o pedido para que todos sejam um. João colocou um modelo de unidade para a sua comunidade que é a unidade do Pai e do Filho, mas ele tem consciência de que a unidade só se consegue com a ação divina, mas sem deixar de lado o esforço humano. Essa unidade que João pede não se reduz ao místico relacionamento com Deus. A unidade dos discípulos deve ser suficientemente visível para levar o mundo a crer em Jesus. “Que todos sejam um” não é necessariamente em direção a uma unidade institucional de todas as igrejas fundindo-se numa só, mas o que se pede é que, apesar das diferenças, não sejam divergências tais que contraponham entre si os que verdadeiramente creem no mesmo Senhor. Como somos seres humanos, e o ser humano é o mesmo através das gerações com diferentes experiências históricas, a situação de hoje não é muito diversa da realidade vivida por João e sua comunidade primitiva. Neste mundo globalizado e individualista onde cada qual vive no seu universo particular, urge a necessidade da unidade, centrada na pessoa do Senhor Jesus à semelhança da unidade entre Ele e o Pai. O grito pela unidade entre os cristãos expressado na oração testamentária de Jesus segue atual e necessário. Para que o mundo creia é urgente uma verdadeira união. 7 8 PEREIRA, 1999, p.51. Cf. PEREIRA, 1999, p.49. 119 Grupo de pesquisa teológica Para que de fato aconteça o ecumenismo, existem ainda barreiras a serem superadas, a serem contempladas com mais clareza nos seguintes capítulos. 2 Ecumenismo: dom para estabelecer pontes O “Ecumenismo” em si mesmo é de cunho teológico, e sob esse caráter deve se resguardar, de maneira que está fora de contexto banalizar e atribuir a qualquer comunhão humana o título ecumênico. Dessa maneira, torna-se utópica a pretensão da absorção de uma instituição por outra. Ademais, o Ecumenismo não se implantaria por meio de sincretismos, descartando a necessidade de negar as diferenças com intuito de reconciliação9. A grande barreira para que de fato o Ecumenismo aconteça está nas exigências de cunho evangélico propostas por ele às Igrejas, de corrigirem-se a si mesmas e sujeitarem-se às legitimidades de fé que isso implicaria. Nisso estaria o caráter de Comunhão que sugere o Ecumenismo: deter o foco de atenção na conversão, não do outro, senão que em primazia, de cada Igreja em particular. Seria uma proposta para que, de fato, as instituições compreendessem o mistério de serem membros de um único Corpo e, com isso, sepultariam de vez a pretensão de serem tão somente o corpo místico de Cristo10. Ser Igreja em Cristo significa o transcender de cada “comumunião particular”. A “Nova Comunhão” proporcionaria às Igrejas a capacidade de cooperar para com o Ecumenismo sem renunciar à sua identidade própria, cada qual se utilizando dos dons particulares que receberam como caminho para chegar ao Dom Maior: a Unidade em Cristo, Dom de Deus “ex nihilo”... É bom termos consciência de que a proposta ecumênica com pressupostos de comunhão de maneira alguma pretende a uniformidade, senão que segue a premissa apresentada acima: 9 10 120 Cf. BRAKEMEIER, 2001, p.208. Cf. BRAKEMEIER, 2001, p.209. UT UNUM SINT: o diálogo como pressuposto para o ecumenismo a Diversidade de Dons num mesmo Corpo11. Comunhão implica reconhecimento mútuo de dons e também de fraquezas, dos outros e de si mesmo. Para sustentar esse argumento nos reportamos ao Novo Testamento, modelo instrutivo de Ecumenismo e nas comunidades primeiras, ou melhor, na primeira comunidade cristã, Igreja que exemplifica de modo singular a “Comunhão de Igrejas”. Como vimos expondo, o Ecumenismo é obra mestra de Deus, é dom e, por isso, ultrapassa a esfera humana e eclesiástica. Dizendo assim, temos plena consciência de que, justamente por sua limitação teológica, o Ecumenismo adquire extraordinária abrangência12. Esse amplo caráter, intrínseco do Ecumenismo, lhe delega a incapacidade de exclusão e ao mesmo tempo o postulado de ser criador de pontes, não exclusivamente a cristãos que comungam de mesma tradição eclesiástica, senão que também se abra ao diálogo entre pessoas de outros credos. Essa afirmativa final sacramenta de fato que a pretensão de comunhão é a priori as iniciativas humanas e que o Ecumenismo abarca as tentativas de diálogo inter-religioso. O Ecumenismo sugere também a koinonia extramuros, de maneira que pretende fazer com que se conheçam os parentes mais próximos e aqueles mais distantes. Essa perspectiva, além de reforçar o caráter de inclusão do Ecumenismo, inevitavelmente o graduaria, fazendo-nos pensar que podem existir inúmeros graus de “comunhão ecumênica”. Ademais, seguindo por essas sendas, vislumbramos a possibilidade de o Ecumenismo colaborar com a construção da paz, não somente no âmbito inter-eclesial, senão que também a nível mundial13. O Ecumenismo, se orientado em Deus, poderá sem encargo de consciência e sem correr o risco de transformarse em um pseudomarxismo, adentrar nos corredores sociais e políticos. Essa premissa nos reconduz a pensar o Ecumenismo 11 12 13 Cf. BRAKEMEIER, 2001, p.209-210. Cf. BRAKEMEIER, 2001, p.211. Cf. BRAKEMEIER, 2001, p.212. 121 Grupo de pesquisa teológica “extra muros”. Faz-se pertinente recordar, uma vez mais, que Ecumenismo busca a comunhão e a paz, mediante a reconciliação e a acolhida de diferenças. A verdade deverá ser sempre única: a Unidade; e o fundamento seguro para a execução do Ecumenismo é a Fé. No universo ecumênico está em voga o discurso sobre uma teologia que busca encontrar pontos de encontro, de koinonia, e estabelecer pontes entre os mais distantes e os mais próximos. Não se trata única e basicamente de estabelecer um diálogo entre justos e pecadores, entre fariseus e publicanos. A tentativa deve pautar-se, sobretudo, na autocompreensão, no reconhecimento da fragilidade do conhecimento humano e na inoperância e impotência da criatura frente ao Criador. Em suma, trata-se de que cada um se desfaça da pretensão de ocupar o lugar de Deus na história da humanidade14. O Ecumenismo acontece por Amor. O anti-Ecumenismo, por sua vez, peca pela falta de compaixão e misericórdia. O Ecumenismo de comunhão somente se dará pelo reconhecimento e perdão mútuo dos pecados. Em outras palavras, o Ecumenismo com pressupostos de comunhão é, todavia, uma realidade de Esperança Escatológica. Contudo, a acomodação não é análoga à espera da Plenitude. O Ecumenismo possui nuances de advento, de espera, de preparação por algo que está por vir. Ecumenismo em si mesmo é algo ainda mais além do diálogo ecumênico. Contudo, reconhecemos, sim, a importância de se criarem possibilidades, proporcionar e estabelecer um ambiente para que germine o diálogo ecumênico e, consequentemente, frutifique enfim o Ecumenismo15 3 A necessidade do diálogo ecumênico Como foi apresentado nos capítulos anteriores, a busca pela unidade sempre esteve presente nas comunidades 14 15 122 Cf. BRAKEMEIER, 2001, p.215. Cf. BRAKEMEIER, 2001, p.216. UT UNUM SINT: o diálogo como pressuposto para o ecumenismo cristãs, tanto nos primórdios do cristianismo como nos tempos modernos. É necessária agora uma reflexão mais profunda sobre a importância do diálogo nessa busca de unidade. A abordagem sobre o diálogo ecumênico pressupõe uma gama de interrogantes e possibilidades. Poderíamos dizer que, devido ao drástico crescimento de inúmeras igrejas cristãs neste novo milênio, o diálogo ecumênico é extremamente necessário para que os movimentos ecumênicos alcancem seus objetivos. Diálogo ecumênico não são os movimentos ecumênicos. O diálogo é uma premissa vital para a concretização dos movimentos ecumênicos. É sabido de todos que a época moderna mergulhou o homem, ou melhor, a sociedade num vasto oceano de subjetivismo e individualismo. Há uma predominância da tendência do não diálogo. Traçar o caminho do diálogo ecumênico é como andar num campo minado. A qualquer equívoco o percurso já feito até os tempos hodiernos por inúmeras discussões é descartado. Estamos na época do “laissez-faire”, por isso, no que se refere aos diálogos ecumênicos, várias são as posturas tomadas. “[...] hoje em dia esse caminho parece a alguns como coisa do passado, e a outros até mesmo como um caminho que nao deveria continuar a ser trilhado [...]”16. Nota-se, então, que o espírito do “laissez-faire” predomina em muitas camadas das diversas igrejas cristãs. Porém, surge um interrogante: Por que há tanta indiferença num assunto que moralmente e evangelicamente seria o melhor caminho para todos? Não nos esqueçamos do objetivo dos diálogos ecumênicos: “O objetivo último dos diálogos é a unidade da igreja”17. Por muito tempo, esse objetivo foi perseguido pelas diversas igrejas espalhadas pelos confins do planeta. Porém, nota-se um declínio na qualidade do diálogo ao longo da trajetória traçada até nosso tempo moderno. Podemos dizer que, nos primórdios do movimento ecumênico, o objetivo do 16 MEYER, 2003, p.46. 17 MEYER, 2003, p.50. 123 Grupo de pesquisa teológica diálogo era trazer à tona e defender o que era comum para todos, ou seja, a fé em Jesus Cristo e a apostolicidade. “[...] O objetivo era, portanto, uma forma eminentemente aberta de falar e lidar uns com os outros”18. Portanto, todos os diálogos partiam dos elementos comuns da fé cristã. Entretanto, como dizíamos, se nota que ao longo das décadas o diálogo ecumênico foi se desgastando, os elementos comuns haviam se evidenciado na história como insuficientes para conservar a unidade da Igreja19. O que entra em cena já não eram os elementos comuns, senão as discrepâncias na compreensão da fé20. É urgente a necessidade de retomar as origens e buscar a comunhão na fé. Da discrepância ao consenso. Esse é o caminho que deveria ser traçado pelos diálogos ecumênicos. O elemento central para a unidade da igreja é a visibilidade. A unidade da igreja é em sua essência comunhão na fé. “[...] Também e justamente esses aspectos comuns na fé precisam tornar-se visíveis, onde quer que se busque a unidade visível”21. É indispensável o diálogo sobre a fé. Deve-se prosseguir na busca de um consenso com confiança. Ante toda a indiferença, ante todo espírito “laissez-faire” social e de algumas alas prosélitas das diversas igrejas, “o esforço das igrejas visando à unidade precisa continuar sempre que e na medida em que essa comunhão não existe ou está ameaçada, pois a divisão da igreja contradiz a confissão de fé comum”22. Portanto, é necessário que o esforço em superar divisões de fé ainda existentes continue. O objetivo desse esforço só será alcançado quando a comunhão na fé apostólica tiver encontrado sua expressão visível em seus consensos formulais. É necessário crescer na qualidade dos diálogos, visto que estes são o aspecto vital para a visibilidade 18 19 20 21 22 124 MEYER, 2003, p.47. MEYER, 2003, p.47. MEYER, 2003, p.47. MEYER, 2003, p.48. MEYER, 2003, p.55. UT UNUM SINT: o diálogo como pressuposto para o ecumenismo dos movimentos ecumênicos. Conclusão Este artigo teve como objetivo a abordagem do diálogo ecumênico que conduz a uma busca da unidade cristã. Na primeira parte vimos no exemplo das comunidades cristãs que a união não é uma realidade que acontece de um dia para o outro, e sim um acontecimento que se constrói progressivamente com a ajuda do Espírito Santo, apesar das diferenças das instituições. Já na segunda parte, abordamos o tema da pluralidade das igrejas e os obstáculos que abarcam o Ecumenismo como proposta de ser Igreja em Cristo. Por seu caráter teológico, o Ecumenismo implica reconhecimento mútuo de dons e também de fraquezas, ou seja, transcender de cada comunhão particular sem perder a identidade própria, para ser pontes de unidade, tendo como meio o diálogo. Finalmente, na terceira parte, analisamos o Diálogo Ecumênico como premissa vital para que as Igrejas cristãs tracem o caminho do ecumenismo neste tempo marcado por uma sociedade subjetiva e individualista, o que contradiz a proposta evangélica. O diálogo é uma maneira de confrontar e buscar o que vivifica a unidade da Igreja, que tem como essência a comunhão da fé. Na perspectiva do Documento Unitatis Redintegratio, observa-se que os temas propostos nas três partes estão em comunhão com o Magistério. O Sínodo do Vaticano II, na sua pretensão de dialogar com a modernidade, tem como um dos principais objetivos a reintegração da unidade entre os cristãos23. Ou seja, o Ecumenismo é uma busca de unidade entre os cristãos que procuram viver e celebrar a herança de Cristo. Aquela herança explícita nas palavras do Salvador e que, para os cristãos, tem um significado profundo: “Que 23 Compêndio do Vaticano II - Constituições, decretos e declarações. 19.ed. Petrópolis: Vozes, 1987. nº 751. 125 Grupo de pesquisa teológica todos sejam um”24. Segundo o documento, as comunidades cristãs compartilham mediante o diálogo profundo a doutrina da sua comunhão apresentando perspicuamente as suas características25. É a dinâmica da fé que deve contribuir para o diálogo e não ser um obstáculo. Conclui-se, portanto, que, a partir do confronto entre o que foi apresentado e o documento conciliar Unitatis Redintegratio, o diálogo ecumênico é premissa vital para a concretização do ecumenismo como proposta de unidade tendo a conversão e a santidade como alma da dinâmica do ecumenismo26. Referências BÍBLIA de Jerusalém. Nova edição revisada e ampliada. São Paulo: Paulus, 2003. BOSCH, Juan. Ecumenismo. In: SAMANES, Cássio Floristan; TAMOYO-ACOSTA, Juan-José. Dicionário de conceitos fundamentais do Cristianismo. Trad.: Isabel Fontes Leal Ferreira; Ivone de Jesus Barreto. São Paulo: Paulus, 1999. BRAKEMEIER, Gottfried. Ecumenismo: repensando o significado e a abrangência de um termo. Perspectiva Teológica, São Paulo, n.33, 2001. Compêndio do Vaticano II - Constituições, decretos e declarações. 19.ed. Petrópolis: Vozes, 1987. MEYER, Harding. Diversidade reconciliada: o projeto ecumênico. Trad.: Luís Marcos Sander. São Leopoldo: Sinodal, 2003. PEREIRA, Ney Brasil. Que todos sejam um: a unidade dos discípulos segundo João. Encontros Teológicos, Florianópolis, 27, 1999. 24 Bíblia de Jerusalém. Nova edição revisada e ampliada. São Paulo: Paulus, 2003. Jo. 17,21. 25 Compêndio do Vaticano II - Constituições, decretos e declarações. 19.ed. Petrópolis: Vozes, 1987. nº 766. 26 Compêndio do Vaticano II - Constituições, decretos e declarações. 19.ed. Petrópolis: Vozes, 1987. nº 182. 126 RECENSÃO FARIA, Jacir de Freitas. Apócrifos aberrantes, complementares e cristianismos alternativos – Poder e heresias!: introdução crítica e histórica à Bíblia apócrifa do Segundo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2009. 254p. (Comentários aos apócrifos). Depois de várias publicações sobre a literatura apócrifa, este novo livro de Frei Jacir, o quinto sobre os apócrifos, é o resultado de uma longa pesquisa sobre a trajetória histórica do cristianismo em seus sete primeiros séculos, a partir dos 88 apócrifos do Segundo Testamento. O livro pretende ser uma introdução histórica e crítica a esses apócrifos, que ele mesmo chama de aberrantes, complementares e alternativos em relação ao cristianismo que se tornou hegemônico1. O objetivo do autor, professor de exegese bíblica no Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA, é mostrar que os apócrifos do Segundo Testamento são todos eles formas de cristianismo – textos de experiências de fé – que não se consolidaram naquele que se tornou hegemônico, mas que de alguma maneira influíram, complementaram ou discordaram da versão oficial do cristianismo, que até o século terceiro conviveu com diversas teorias e teologias. Algumas delas exageraram na criatividade dos textos ou práticas como liturgia sexual; outras simplesmente complementaram a versão oficial; outras, por serem tão alternativas, foram relegadas ao ostracismo. ____________ 1 Segundo o autor, “hegemônico” significa oficial. Isabel Pomar Bonnín O livro inicia com uma breve introdução geral à Bíblia, para que o leitor visualize os apócrifos no cenário bíblico canônico dos livros inspirados. Após a definição e classificação da Bíblia apócrifa, o autor lança a seguinte pergunta: Como ler os apócrifos do Segundo Testamento?. É preciso, segundo o autor, lê-los dentro do seu contexto histórico, considerando as disputas teológicas e de poder que marcaram seu surgimento. Tais disputas aconteceram entre o cristianismo que se tornou hegemônico e o cristianismo de outros grupos e movimentos dissidentes, sobretudo dos gnósticos. O corpo-coração da obra do Frei Jacir se encontra nos capítulos 5 e 6 do livro. Num total de 11 capítulos, são esses dois mais de 75% do conteúdo da obra. Nesses dois capítulos, cada um dos sete primeiros séculos da nossa era é apresentado com seus respectivos cristianismos, o oficial e os chamados aberrantes, complementares e alternativos, relacionando-os entre si. O conteúdo da literatura apócrifa é apresentado nesta linha de tempo no seu contexto histórico, político e eclesial. O autor parte do pressuposto de que entre os muitos cristianismos de origem, o cristianismo vencedor das disputas teológicas foi aquele que afirmou e comprovou a historicidade de Jesus, morto e ressuscitado, como realização das promessas do Primeiro Testamento, de fato, assim ganhou credibilidade ao provar ao império romano a sua antiguidade a partir do judaísmo. Mas também devemos reconhecer que o cristianismo vencedor, aquele que hoje professamos e vivenciamos, é sólido por ser aquele que mais se aproximou do evento histórico Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado, e salvaguardou, de fato, a essência da fé em Jesus Cristo, em um só credo e em uma igreja universal. Para finalizar, o autor apresenta no livro algumas temáticas relevantes que foram aprofundadas a partir dos apócrifos, tais como: a questão de gênero, a virgindade, a não-reprodução, a traição de Judas e a história de Maria. O livro provoca os leitores a reconstituir ecumenicamente 128 Recensão Cristo nos vários modos de descrevê-lo, seja de forma piedosa, aberrante, complementar ou alternativa. Neste sentido, a literatura apócrifa tem sua atualidade e pertinência para a nossa tradição de fé. Livros que antes se recomendava que não fossem lidos por serem catalogados como escritos heréticos e até foram proibidos pela Igreja, hoje sabemos que fizeram parte do imaginário das teologias de alguns padres da Igreja e estão presentes nas raízes do cristianismo oficial, católico e romano. Na luta com os outros modos de conceber o cristianismo, o cristianismo hegemônico foi vencedor, mas também se deve reconhecer que ele “utilizou tradições apócrifas complementares em seus dogmas de fé” (p.248), como afirma Frei Jacir. Portanto, para muitos, as obras sobre os apócrifos escritas por este autor, em especial esta última, são uma forma de dialogar com as formas de cristianismo dos nossos antepassados. O livro, de fato, é uma contribuição atual para situar os apócrifos na história da igreja, bem como relê-los de forma crítica e pastoral, o que coloca esta literatura na pauta do dia desde a perspectiva de um pensador católico. Vale a pena ler essa obra e refletir sobre o que ela nos provoca. ______________________________________________________ Prof. Isabel Pomar Bonnín [email protected] 129 NORMAS PARA COLABORADORES 1 - A Horizonte Teológico recebe contribuições para suas seções de artigos e recensões, sendo que os artigos devem ser inéditos, reservando-se à Horizonte Teológico a prioridade de sua publicação. 2 - As contribuições devem ser enviadas ao Conselho Editorial pelo e-mail [email protected]; ou para o ISTA, em arquivo digital. 3 - Apresentação dos Originais: a) DIGITAÇÃO: – Quanto à formatação de caracteres (“Font”): os caracteres sejam formatados em fonte Times New Roman, tamanho 12. – A folha deve respeitar o estilo mais comum, ou seja, a do processador MSWord ou equivalente. – Não deve ser feita a hifenização. b) DIMENSÕES: Deve-se fazer o cálculo de um arquivo aberto no processador de textos MSWord, através do Menu “Arquivo/Propriedades”; clicar sobre o guia “Estatística”; a cada “item” corresponde um número; procurar “Caracteres com espaços”, onde está o número de caracteres correspondentes ao arquivo aberto. 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Valência: Siquem Ediciones, 2002. 175 p. 4 - As revisões serão aceitas até 15 dias depois de enviada a 1º versão ou do prazo indicado pela revista. Dados Pessoais: Para informação da Administração e dos leitores são pedidos os dados seguintes, que na íntegra ou parcialmente podem ser utilizados: 1. Nome. 2. Opcional: sendo religioso, indicar o nome do Instituto. 3. Títulos universitários: a) Graduação: área, local e faculdade; b) Mestrado: área, data, local e faculdade; c) Doutorado: área, data, local, faculdade e Título da Tese. 4. Atividade que desempenha atualmente: local e instituições. 5. Últimas obras publicadas: título, cidade, editora, data e edição. 6. Endereço atual completo. Os autores devem autorizar a publicação de seus números de telefones ou e-mail. Todo artigo será examinado pelo Conselho Editorial, que aceita ou recusa os originais apresentados; disto os autores receberão notificação e sobre a data previsível de sua publicação. 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