Revista Horizonte Teológico

Transcrição

Revista Horizonte Teológico
HORIZONTE
TEOLÓGICO
Ano VIII – 2009
Nº 15 – Janeiro/ Julho
Revista Semestral do Instituto Santo Tomás de Aquino
Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos dos Religiosos
ISSN 1677-4400
Horizonte Teológico
Revista Semestral do Instituto Santo Tomás de Aquino – Centro de
Estudos Filosóficos e Teológicos dos Religiosos – ISTA
Diretor: Manoel José de Godoy
Jornalista responsável: Purificacion Vega Garcia – MTB: 3039
Conselho Editorial: Antônio M. Pinheiro, Cleto Caliman, Flávio Luís
Rodrigues de Sousa, José Carlos Aguiar de Souza, Manoel José de Godoy,
Sílvia Contaldo, Wolfgang Gruen.
Diagramação: Tiago Parreiras
Capa: Patrícia Rocha
As matérias assinadas são da responsabilidade dos respectivos autores.
Aceitamos livros para recensões ou notas bibliográficas, reservando-nos a
decisão de publicar ou não resenha sobre os mesmos. Aceitamos permuta
com revistas congêneres.
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Tiragem deste número: 200 exemplares
Impressão:
Editora O Lutador
Pça. Pe. Júlio Maria, nº 01 – Planalto
31740-240 Belo Horizonte – MG
SUMÁRIO
EDITORIAL ....................................................................................................... 5
ARTIGOS
José Carlos Aguiar
A atenção-plena metaxológica e a crítica ao conceito de consciência
planetária ............................................................................................................ 9
Cristiano Andrade Teodoro
O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré ....................................... 22
Valeriano dos Santos Costa
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II ................ 42
Solange do Carmo
A boa-nova universal da salvação:
Estudo bíblico-catequético a partir de At 10,1–11,18 .................................. 73
COMUNICAÇÕES
Jeferson Almeida de Souza
A relação entre clérigos e leigos no código de direito canônico ............. 101
Grupo de estudos teológicos
Natureza humana e pecado ......................................................................... 106
Grupo de pesquisa teológica
UT UNUM SINT: o diálogo como pressuposto para o ecumenismo .... 116
RECENSÃO .................................................................................................. 127
NORMAS PARA COLABORADORES ................................................... 131
ISTA
Instituto Santo Tomás de Aquino
Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos dos Religiosos
GRADUAÇÃO:
Filosofia (licenciatura)
Teologia
Curso Superior de Gestão Pastoral
PÓS-GRADUAÇÃO (Lato Sensu):
Especialização para Formadores de Presbíteros Diocesanos – 360 horas /
aulas
• Janeiro/ Julho/ Janeiro
Especialização para Formadores da Vida Religiosa – 360 horas / aulas
• Janeiro/ Julho/ Janeiro
Para mais informações:
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EDITORIAL
RESPEITANDO A ALTERIDADE, FOMENTANDO A TOLERÂNCIA
Pe. Manoel Godoy
Diretor Executivo do ISTA
A Revista Horizonte Teológico está debutando. Chega
com esse número à sua 15ª edição. Esse símbolo dos quinze
anos reflete bem o momento da Revista: é uma adolescente
buscando sua maturidade.
Neste número, além de seus artigos que nos instigam
à reflexão, temos a contribuição dos alunos do ISTA, que
ensaiam seus primeiros passos na produção do pensamento
teológico. Este é um dos objetivos da revista: abrir espaço para
a criatividade daqueles que não estão somente repetindo a
filosofia e a teologia oficiais, mas ousando pensar.
Numa conjuntura que busca unificar tudo e todos,
por meio da avalanche globalizadora, somos chamados a
contemplar a possibilidade de um pensamento distinto,
“cuidador” das diferenças. O artigo do professor Dr. José Carlos
Aguiar nos leva a considerar a amplitude de possibilidades de
afirmação da identidade da consciência sem que isso implique
um aniquilamento da alteridade da natureza. Identidade
e alteridade, temas correlatos na produção do pensar e na
criação de novas relações. Aguiar abre perspectivas novas a
partir do pensamento metaxológico, pois, como ele afirma, “O
pensamento metaxológico permanece sempre aberto ao ser
em sua alteridade ao conceber a origem como plenitude: um
excesso que inspira espanto e admiração para além de todo
sistema conceitual de inteligibilidade.” Assim, a metaxologia
se apresenta como respeitosa da alteridade tão necessária em
tempos de tão pouca tolerância.
De outro ângulo, o teológico, o aluno Cristiano Teodoro
afirma em seu artigo a atual necessidade de um pluralismo
religioso. Passando pelas perspectivas mais marcantes no
campo do diálogo inter-religioso – exclusivismo, inclusivismo
e pluralismo –, Cristiano, inspirado pelo pensamento de
Claude Geffré, toca num dos temais mais presentes no
pensamento atual: a questão da hermenêutica. Com medo
do relativismo, muitos terminam por se abster do árduo
exercício hermenêutico, caindo numa posição perigosamente
dogmática. Quem sabe o pensamento metaxológico possa
aqui, mutates mutandis, se constituir numa abertura para
novas considerações no seio do difícil diálogo respeitoso das
alteridades.
Valeriano dos Santos Costa nos leva a um passeio
pela evolução semântica do termo mística, para nos ajudar a
resgatá-la na dimensão orante e celebrativa da Igreja a partir
do Concílio Vaticano II. Perceber Deus por meio de uma
profunda experiência do Mistério de Cristo, que emerge com
toda sua força na reforma conciliar, serve como trilha do
pensamento desse artigo. Seguindo essa trilha, Valeriano nos
conduz desde as experiências dos primeiros cristãos até as dos
nossos dias.
Fechando a sessão de artigos, temos a colaboração da
Professora Solange, com o tema fascinante da abertura das
primeiras comunidades aos gentios. Momento crucial para o
futuro do cristianismo nascente. Rejeitados por aqueles que
6
se constituíam nos primeiros ouvintes da Palavra, os cristãos,
por meio de seus expoentes máximos, sobretudo Paulo, reorientam a missão em direção aos que se abriam à novidade
cristã. Quais seriam hoje os novos passos, tão audaciosos
como os dos primeiros, necessários para sairmos da posição
cômoda de conquistas passadas, que já mostram nítidos sinais
de cansaço e de esgotamento?
A sessão das comunicações quer servir de incentivo para
a produção acadêmica de nossos alunos. Com muita alegria
vemos os esforços daqueles que expressam sua recepção dos
conteúdos ministrados pelo corpo docente. Orgulho para
os mestres e todos os que apostam num exercício da missão
evangelizadora com mais profundidade e qualidade.
Não poderíamos terminar de apresentar esse número
da Revista sem fazer um profundo agradecimento a Deus
pelo dom da vida de nosso já saudoso Frei Prudente Nery
(26/05/1952-19/06/2009). Creio que é sentimento de todos:
como você foi cedo demais! Homem profundo e de não
muitas palavras. Só as essenciais. Ouso dizer a Deus que é
com muita dificuldade que vivenciamos a partida de um
irmão tão querido e mestre tão competente. O problema que
se repete a cada dia está na reposição de pessoas desse nível.
Estamos assistindo à partida de muitos sem vislumbrar, de
imediato, essa reposição. São buracos abertos que nos deixam
em situação de petição diante do Pai: suscite, ó Deus, gente
com a capacidade e o coração do Prudente para que vejamos
com mais facilidade sua eterna bondade e misericórdia em
vir em socorro dos que ficamos sedentos por entender melhor
Sua Palavra.
7
ARTIGOS
A ATENÇÃO-PLENA
METAXOLÓGICA E A CRÍTICA
AO CONCEITO DE CONSCIÊNCIA
PLANETÁRIA
José Carlos Aguiar
Desmond e o sentido quádruplo do ser
O objetivo central deste artigo é estabelecer uma crítica
filosófica ao conceito de consciência na medida em que o termo
é central para o simpósio que discute a questão da consciência
planetária. Usaremos como matriz teórica para a nossa crítica
a metaxologia de William Desmond. Um dos pontos centrais
do pensamento desmondiano é o sentido quádruplo do ser,
que se constitui como modos do pensar que nos permitem
refletir sobre o ser: univocidade, equivocidade, dialética e
metaxologia. O sentido unívoco expressa uma unidade não
mediada entre ser e pensar1. Para a univocidade todo o ser
é inteligível e toda inteligibilidade é determinada: ser é ser
determinado2. Esse modo unívoco do pensar não faz justiça,
segundo Desmond, à plurivocidade do pensamento que
vai além da mera instrumentalidade do espírito geométrico
cientifico3. O sentido unívoco se encontra associado às
pretensões da ciência moderna de uma total inteligibilidade
1
2
3
DESMOND, 1995a, p.47-83.
DESMOND, 1995a, p.16
DESMOND, 1995a, p.17.
José Carlos Aguiar
das coisas.
O sentido equívoco acentua a diferença não mediada
entre o pensamento e o que é outro ao pensamento. Tratase de uma pluralidade não mediada que não consegue em
última instância pensar a totalidade respeitosa da diferença4.
A dialética consegue assegurar a identicalidade (Sameness)
através da mediação das diferenças. O sentido dialético
converte a mediação do self e do outro em duas faces de
uma mesma moeda: o processo singular e abarcador de total
automediação do pensamento consigo mesmo. Segundo
Desmond, o processo final do movimento dialético estabelece
uma espécie de univocidade dialética. A redução dialética dos
outros modos do ser e do pensar à auto-mediação última do
pensamento filosófico não faz jus à experiência fundamental
da alteridade que Desmond concebe como a admiração
agápica5.
Desmond propõe o sentido metaxológico do ser como uma
alternativa que melhor responda à questão do ser do pensar,
da identidade e da diferença, do self e do outro. Derivado do
termo grego metaxu, metaxologia é o discurso do “entre”, um
pensamento entre a total ignorância e o total conhecimento6. O
sentido metaxológico leva a sério a afirmação de Aristóteles de
que o ser é dito de muitos modos e tenta incluir os outros modos
do pensar na prática da filosofia, para além do pensamento
sistemático. A metaxologia é respeitosa da alteridade que
não pode ser compreendida apenas como um processo
sistemático de inteligibilidade categorial. O pensamento tem
que reconhecer o excesso da plenitude do ser que não poderá
nunca ser totalmente mediado pela razão lógica7. Trata-se do
reconhecimento da comunidade do ser recalcitrante a toda
redução unívoca ou dialética e que ao mesmo tempo não se
dissipa numa fragmentação equívoca.
4
5
6
7
10
DESMOND, 1995a, p.85-130.
DESMOND, 1995a, p.32.
DESMOND, 1995a, p 6.
DESMOND, 1995a, p.177.
A atenção-plena metaxológica e a crítica ao conceito de consciência planetária
O pensamento metaxológico permanece sempre aberto ao
ser em sua alteridade ao conceber a origem como plenitude:
um excesso que inspira espanto e admiração para além de
todo sistema conceitual de inteligibilidade. O espanto ou
maravilhar-se agápico é o inverso da intencionalidade da
razão no sentido moderno do termo. A origem agápica é o
fundamento de uma pluralidade genuína não redutiva8.
Trata-se de uma plenitude dinâmica presente desde o início
e não o fruto de um processo dialético a ser constituído no
final. O absoluto agápico, diferentemente do absoluto erótico
do processo dialético, que oferece um senso de eternidade
no processo de se constituir a si mesmo, é o absoluto original
e aponta para o outro radical que resiste às pretensões do
pensamento de atingir uma completa e absoluta automediação.
Aqui se encontra o ponto central da crítica feita ao conceito
moderno de consciência entendida em termos do cogito
cartesiano do eu penso kantiano9. De fato, desde que Platão
estabeleceu um elo intrínseco e ontológico entre a atividade
do intelecto humano e constituição da verdade última do ser,
o pensamento ocidental tem buscado modos cada vez mais
precisos de determinação ou domesticação conceitual do ser.
A razão encontra-se de tal modo incorporada à ordem do ser
8
DESMOND, 1995b, p.221.
9
A palavra “consciência” vem do latim “con” (com) e “scire” (conhecer ou saber). O
termo grego equivalente é “syneidesis”. Sócrates identifica a consciência com a voz interior de
alerta sobre o certo e errado, que para ele possui a sua origem em Deus. Ou seja, a consciência
é a voz universal da razão capaz de guiar o homem na sua vida. Na Idade Média o termo
deixa de se referir apenas à consciência que o homem tem das regras universais de conduta,
passando a ser empregado no sentido mais circunscrito de aplicação das regras universais às
situações específicas. A consciência foi vista como a voz de Deus presente no ser humano. No
sentido sociológico e antropológico, o termo “consciência” possui o significado literal de se
possuir um saber ou ter conhecimento de algo: “com-ciência”. O ser humano, diferentemente
do animal, se posiciona no mundo com saber. Isso faz com o que o homem não seja apenas
o seu mundo, como é o caso dos animais, mas ele tem o seu mundo. O ser humano não é a
sua existência, mas tem a sua existência como tarefa a ser construída. Sartre estabelece essa
diferença usando os termos “em-si” (en soi) e “para-si” (pour soi) como tentativa de diferenciar
o estar no mundo dos animais e o nosso modo de estarmos jogados na existência e no próprio
mundo. Assim sendo, o ser humano é sapiens sapiens, ou seja, um ser que sabe que sabe. O
animal sabe, mas ele não tem essa abertura fundamental de saber que sabe. Neste sentido
sociológico e antropológico a consciência planetária significa um estar atento aos destinos do
planeta que é a nossa casa comum conscientes dos problemas que o afetam.
11
José Carlos Aguiar
que em última instância ser e pensar se tornam a mesma coisa.
Ou seja, o ser só é se puder ser totalmente determinado pela
atividade do intelecto. O ser sem a determinação do pensar é
o mesmo que o nada. Um dos problemas fundamentais com
este modo do pensar fundado por Platão e que encontra em
Hegel o seu ápice é que toda determinação é negação e toda
negação tem que ser negada e assim sucessivamente.
O advento da modernidade não rompe com o elo
estabelecido por Platão entre o intelecto e a verdade. De fato,
a primeira certeza da razão é encontrada no cogito cartesiano.
Descartes estabelece uma ruptura clara entre a res cogitans
e a res extensa. Juntamente com essa distinção ele estabelece
um projeto de senhorio e domínio do cogito sobre a natureza:
maître et possesseur de la nature. Para se afirmar o cogito tem
que efetuar um processo de negação na medida em que o
mundo é visto como um grande vazio (um grande nada) a
ser moldado segundo a imagem e a semelhança da razão. A
ciência moderna ofereceu os meios para que o self pudesse
estabelecer seu domínio sobre a natureza.
A consciência moderna e a matematização da natureza
Com o advento da Idade Moderna o termo “consciência”
passa a ser empregado no sentido do autoconhecimento
advindo da capacidade da mente humana de refletir sobre si
mesma. O termo foi utilizado também no sentido mais amplo
da propriedade geral dos estados mentais. A modernidade
traz consigo o ideal de uma razão autônoma, ou seja, a
fundamentação da verdade passa a ser buscada nas próprias
estruturas autônomas da razão e não mais numa matrix
teológica ou heteronômica de fundamentação. A consciência
autônoma tenta um controle objetivo do mundo que desde a
mecânica de Newton é concebido como um grande mecanismo
a ser autocompreendido e dominado.
O século XVII inaugura um novo modelo de ciência
caracterizado pela recusa em aceitar o mundo como nós
12
A atenção-plena metaxológica e a crítica ao conceito de consciência planetária
normalmente o percebemos. A pressuposição básica da nova
ciência é que o mundo possui uma estrutura matemática por
detrás de sua aparência perceptiva. O conhecimento objetivo e
científico da natureza só é possível através do uso do método
matemático. Para Galileu, um dos precursores da ciência
moderna, o grande livro do universo se encontra aberto ao
nosso olhar. Contudo, o livro só pode ser lido se aprendermos
a compreender, em primeiro lugar, a linguagem em que foi
escrito e sermos capazes de ler o alfabeto que o compõe. O
universo foi escrito na linguagem matemática e os seus
caracteres são os triângulos, os círculos e todas as outras figuras
geométricas, sem as quais se torna humanamente impossível
entender uma única palavra do que se encontra revelado na
natureza. Sem a matemática e a geometria estaremos vagando
por um labirinto escuro10. Descobrir essa estrutura matemática
se torna a tarefa principal da ciência de Galileu e de todo o
desenvolvimento subsequente da ciência moderna.
A ciência moderna herdou da Grécia antiga duas importantes
características: o modelo de conhecimento científico e a técnica
de medição do espaço, ou seja, a geometria. A ciência moderna
empenhou todos os seus esforços para obter o conhecimento
científico e objetivo do mundo. O mundo que aparece para nós
é o mundo da experiência comum, ou seja, um mundo para
nós. Nós o aceitamos como algo válido e existente. Entretanto,
nós sabemos que esse mundo aparece de modo diferente para
diferentes pessoas. Na nossa experiência do dia a dia o mundo
nos é dado de modo relativo e subjetivo. Cada um de nós tem
a sua visão do mundo, muito embora nós saibamos que existe
apenas um mundo que é o mesmo para todos nós. A ciência
moderna concebe que para além das aparências mutáveis tem
de existir um mundo constante e real como substrato para
todas as diferentes aparências que cada um de nós possui.
Esse conteúdo constante é a verdadeira natureza11.
10
11
BUCKLEY, 1992, p.46.
HUSSERL, 1970, p.23-24.
13
José Carlos Aguiar
No mundo de nossa percepção imediata nós encontramos
figuras empíricas como formas de matéria da nossa experiência
sensitiva. Essas formas são dadas com outras qualidades como
cor, cheiro, som etc... Essas qualidades são características reais
das coisas percebidas. Estas não podem ser as qualidades
primárias das coisas, mas são qualidades secundárias. O caráter
espaço-temporal e as características secundárias dependem de
nós enquanto sujeitos de percepção.
A ciência moderna buscou arduamente compreender
a causalidade universal da nossa experiência do mundo de
modo determinado. Existia a convicção de uma possível
aplicabilidade universal da matemática, que pudesse ser
transcrito em um método em que cada quantificação se
aproximasse do ideal: a idealidade matemática definitiva.
A ideia básica que norteou o caminho da ciência moderna é
que muito embora a quantificação atual contenha limitações,
ainda assim é possível conceber uma melhora progressiva
até atingirmos a idealidade que se encontra no infinito. Em
outras palavras, as inter-relações causais dos dados da nossa
experiência comum podem ser expressas matematicamente
em fórmulas, e uma vez que as entidades matemáticas ideais
possam ser descobertas para cada experiência é possível
projetar regularidades empíricas esperadas para o mundo
experienciado por cada um de nós em todos os seus aspectos.
O método da matemática possui uma aplicabilidade
universal. Em todo processo de quantificação nós trabalhamos
com aspectos individuais e particulares. Cada aspecto
individual é uma instância ou tipo. Existe uma variedade
imensa de instâncias e o mundo é a totalidade dos diferentes
tipos de instâncias. O conhecimento obtido acerca de uma
instância pode ser aplicado a todas as instâncias do mesmo
tipo. Assim, a ciência moderna descobriu as possibilidades
de conhecer o universo completa e objetivamente através do
método matemático.
A hipótese de entidades idealizadas efetuadas através
14
A atenção-plena metaxológica e a crítica ao conceito de consciência planetária
da formalização e idealização da quantificação da natureza
produziu um efeito tal que passou a ser vista como algo
independente e autossuficiente. Os objetivos práticos desta
hipótese de compreender o mundo pouco a pouco passaram a
ser vistos como o modo como o mundo de fato é constituído:
a verdadeira realidade do mundo12. O mundo que aparece
através da nossa percepção imediata é relegado pela ciência
moderna ao reino da mera subjetividade. A ciência é a única
capaz de revelar a realidade verdadeira. As nossas experiências
de cor, tons, frio e calor se tornam vibrações, meros eventos no
reino das formas. A matematização da natureza foi um passo
decisivo para a ciência, que se dedicou ao aperfeiçoamento do
método de compreensão do mundo.
A consciência moderna cartesiana se torna muito eficaz ao
aplicar os procedimentos metódicos no domínio da natureza.
O conhecimento da natureza se torna uma questão meramente
técnica: o universo consiste de entidades que são meramente
definidas e definíveis em termos matemáticos. Todas as
atividades do sujeito humano são descartadas nesse processo.
Em outras palavras, o mundo em que vivemos é relegado a um
segundo plano e a natureza é projetada em termos meramente
fisicistas, em contraste com a natureza da vida perceptiva de
nossa experiência comum.
A ciência se torna uma atividade meramente técnica e o
objetivismo teórico da ciência se torna o único conhecimento
verdadeiro da realidade. O conhecimento é o resultado
da quantificação. A ciência se torna um instrumento de
domínio técnico da natureza13. Trata-se da vitória do “espírito
geométrico” sobre o “espírito de sutileza”.
O serviço agápico como resposta à soberania erótica da
consciência
Na soberania erótica, a consciência retorna a si mesma
12
13
GURWITSCH, 1974, p.45.
HEELAN, 1988, p.398.
15
José Carlos Aguiar
através da alteridade. A consciência se percebe a si mesma em
relação à alteridade e retorna a si como uma força dinâmica.
Nesse retorno à sua própria identidade, porém, a tensão entre
a identidade e a alteridade se torna um indicativo da natureza
dinâmica do ser, percebida no início e que não pode ser afetada
por nenhuma forma de mediação fechada. A equivocidade
volta à cena novamente, só que, desta vez, seu relacionamento
com a identidade ocorre no espaço do “entre” (between). Esse
espaço intermediário do “entre” é o terreno comum onde a
identidade e a alteridade podem se encontrar e juntas habitar
e conviver numa mesma comunidade. Entretanto, para
manter a soberania do sujeito sobre a sua própria identidade,
a ipseidade busca se apropriar da alteridade14.
Desse modo, a plena-atenção metafísica termina por
perceber a identidade orientada para si mesma. Este ethos
filosófico levou ao domínio da natureza e estabeleceu a
consciência como “maître et possesseur de la nature”. Trata-se
aqui da soberania erótica. Ela é erótica porque a consciência
parte de sua própria carência para o autopreenchimento; ela é
soberana porque a consciência termina retornando a si e sendo
reafirmada em sua própria identidade bem como em seus
próprios poderes de domínio da natureza15. A comunidade da
soberania erótica faz com que a consciência retorne a si mesma
como consciência autônoma16.
Para Desmond, a afirmação da identidade da consciência
não implica um aniquilamento da alteridade da natureza.
A soberania não pode ser confundida com uma supremacia
absoluta. A consciência soberana é livre (autônoma), mas
essa autonomia não significa submissão. Para Desmond, um
verdadeiro soberano é alguém livre para uma camaradagem e
comunhão com a alteridade da natureza17.
Numa verdadeira comunidade de soberania erótica, cada
14
15
16
17
16
DESMOND, 1995a, p.440.
DESMOND, 1995a, p.439.
DESMOND, 1995a, p.441.
DESMOND, 1995a, p.443.
A atenção-plena metaxológica e a crítica ao conceito de consciência planetária
soberano é uma totalidade individual aberta para a alteridade
e todos se unem na comunidade do ser. Para Hegel, a soberania
erótica é fruto da luta pelo reconhecimento, da qual a dicotomia
ou dialética do senhor e do escravo é uma manifestação. Tal
dicotomia, contudo, nunca atinge uma verdadeira soberania,
já que tanto o senhor como o escravo se encontram numa
posição de total dependência um do outro para a constituição
e afirmação de sua própria identidade.
A consciência autônoma moderna é a absolutização de
um sujeito que tudo abarca, já que, em seu retorno dialético
para a identidade, a alteridade é apropriada pelo sujeito.
Consequentemente, o soberano erótico nada mais é do que a
caricatura de uma verdadeira e original soberania. Esse falso
soberano subordina a tensão dinâmica entre a identidade e a
alteridade à primazia da autorrelação.
O amor erótico é um amor auto-orientado, através do
qual o sujeito busca suprassumir tudo que lhe é outro. O
soberano erótico termina por tornar-se prisioneiro de um amor
narcisista, de um amor de si mesmo. Contudo, para que seja
verdadeiramente autônoma, a plena-atenção metafísica tem
de se libertar do movimento erótico e retornar ao movimento
agápico caracterizado por uma abertura fundamental à
alteridade. Desse modo, a plena-atenção metafísica será
capaz de entrar numa submissão mais fundamental e que se
encontra além de qualquer aniquilação da diferença, no amor
pela alteridade18.
Somente quando a plena-atenção retornar à liberdade do
amor agápico, onde a identidade e a alteridade participam de
uma “comunivocidade” de respeito mútuo e reconhecimento,
onde o amor se constitui como um elo de união, o pleno
significado da tensão entre a identidade e a alteridade
iluminará a verdadeira natureza do ser.
A relevância do serviço, enquanto meio para se estabelecer
o reconhecimento entre a identidade e a alteridade, é de
18
DESMOND, 1987, p.130.
17
José Carlos Aguiar
fundamental importância. Somente quando o serviço é
realizado no movimento agápico da plena-atenção é que
a verdadeira autoconsciência se torna possível. Desmond
é categórico ao afirmar que é um erro conceber a soberania
erótica como um fim em si mesma. Do mesmo modo como
foi importante para a consciência se mover de uma plenaatenção dialética para uma plena-atenção metaxológica, a fim
de capturar o caráter dinâmico do ser de uma forma mais rica
e plena, assim também a soberania erótica da autoidentidade
tem de se elevar ao nível de um serviço agápico.
No serviço agápico ocorre a passagem de uma plenaatenção dialética da soberania erótica para uma intermediação
aberta da plena-atenção metaxológica, através de uma
percepção da identidade e da alteridade, habitando o espaço
de mútua complementaridade oferecida pelo espaço do
inter da intermediação, no qual todos são participantes na
comunidade do ser. A palavra inter vem do latim e significa
literalmente estar ou situar-se entre, no meio dos outros, em
comunidade. Ser em comunidade, entretanto, não significa
nenhum tipo de redução ou cerceamento.
A comunidade é um estar-junto, cada qual a partir de
sua própria diferença, numa relação que tem por base um
interesse comum. A comunidade enquanto tal não implica
necessariamente uma dissolução das diferenças entre os
seus diferentes participantes. Conceber a comunidade como
dissolução da diferença significa deixar de reconhecer a
alteridade como realmente outra. Consequentemente, ser
um participante dessa complementaridade do inter é colocarse aberto e voluntariamente entre os outros participantes da
plena-atenção metafísica.
Se alguém participa voluntariamente no entre, essa pessoa
demonstra um interesse pessoal que excede o interesse próprio.
Quando o sujeito (self) se lança além da determinação segura
e previsível da identidade para a indeterminação dinâmica e
imprevisível da alteridade, ele está, de fato, abrindo-se para
18
A atenção-plena metaxológica e a crítica ao conceito de consciência planetária
alteridade de um modo livre e despojado.
A consciência moderna deixa de reconhecer o aspecto
positivo e criativo do ser tomado e entendido enquanto
plenitude originária. Nesse sentido, o seu interesse é
desinteressado. Segundo Desmond, todo interesse genuíno
é um inter-esse, que, em muito, se distancia do que nós
normalmente concebemos como interesse próprio19. Nesse
sentido, o verdadeiro interesse é um contentamento com o
ser no espaço intermediário do entre (being in the between).
Existe aqui uma verdadeira motivação para se ir além da
identidade mediada da plena-atenção dialética na direção
de uma abertura irrestrita à alteridade. Esse movimento não
pode ser concebido como erótico, mas tem de ser visto como
um movimento agápico, no qual o sujeito não espera receber
qualquer tipo de benefício próprio de seu relacionamento com
o outro. Em outras palavras, o movimento de transcendência
que se inicia nesse momento agápico é motivado por um
espírito de integridade genuinamente altruísta, em que o
sujeito se dá livremente, apesar de todos os riscos que ele
corre com essa atitude. Trata-se aqui de uma atitude inicial
não centrada em si. Os benefícios porventura recebidos não
constituem a determinação principal iniciadora do próprio
movimento.
Quando o sujeito se dá a si mesmo livremente, existe
sempre a oportunidade de que alguém possa se aproveitar
da natureza generosa do seu ser. Dedicando-se ao serviço
agápico, porém, o sujeito corre o risco de ver o seu próprio
ser reduzido por um soberano erótico, alguém que ainda não
tenha se movido para além de uma plena-atenção dialética.
Segundo Desmond, esse risco é parte constitutiva do modo
de ser de um serviço agápico20. Somente quando o sujeito
retorna para o inter da comunidade, verdadeiramente terá
transcendido a si mesmo e, enquanto tal, poderá reconhecer a
19
20
DESMOND, 1995a, p.452.
DESMOND, 1995a, p.457-458.
19
José Carlos Aguiar
alteridade nos outros através dessa transcendência.
Porque o movimento agápico de transcendência traz
consigo um desejo de arriscar a certeza e a segurança da
autoidentidade, o serviço agápico pode ser visto como
uma espécie de sacrifício. A palavra “sacrifício” tem aqui a
conotação de tornar sagrado, sacer facere, através do serviço
divino21.
A atenção-plena planetária e o serviço agápico
O sacrifico agápico significa um dar-se ao outro por causa
da alteridade e não por causa de um retorno à identidade.
Somente assim pode o sujeito superar a oposição dualista
entre identidade e alteridade. Em outras palavras, o que
está em jogo aqui é um verdadeiro entendimento do ser
que ultrapasse uma plena-atenção que almeje o completo
domínio da natureza. Trata-se de se cultivar outro modo
de atenção-plena que se aventure para além da soberania
erótica da consciência moderna e se arrisque na insegurança
de um serviço agápico metaxológico. Uma abertura genuína
à natureza e um verdadeiro conhecimento do mundo pedem
que se corra o risco de ir além do que já é conhecido e revelado
pela linguagem neutra da matemática. Consequentemente
num só movimento uma nova consciência plenamente atenta
se encontra genuinamente presente tanto a si mesma quanto
à alteridade da natureza. Aqui não existe mais a pretensão do
domínio erótico, mas uma nova soberania forjada no serviço
agápico que oxalá nos conduza a uma nova consciência
planetária22.
Referências
BUCKLEY, Philip R. Husserl, Heidegger and the Crisis of
Philosophical Reponsability. Dordrecht: Kluwer Academic
Publishers, 1992.
21
22
20
DESMOND, 1995a, p.453.
Ver DESMOND, 1990. Ver também DESMOND, 1992.
A atenção-plena metaxológica e a crítica ao conceito de consciência planetária
DESMOND, William. Being and the between. New York:
University Press, 1995a.
DESMOND, William. Beyond Hegel and Dialectic: Speculation,
Cult and Comedy. Albany: State University of New York
Press, 1992.
DESMOND, William. Desire Dialectic and Otherness: An
Essay on Origins. New Haven: Yale University Press, 1987.
DESMOND, William. Perplexity and Ultimacy. New York:
University Press, 1995b.
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Patrick
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Husserl´s
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A
Textbook.
Washington: Catholic University of America Press, 1988.
HUSSERL, Edmund. The Crisis of European Sciences
and Transcendental Phenomenology an introduction to
phenomenological philosophy. Evanston: Northwestern
University Press, 1970.
______________________________________________________
José Carlos Aguiar
[email protected]
21
O PLURALISMO RELIGIOSO A
PARTIR DE CLAUDE GEFFRÉ
Cristiano Andrade Teodoro
Introdução
O trabalho aqui elaborado será fundamentado no
pensamento teológico do francês Claude Geffré1. Este traz
para o centro da reflexão teológica atual a necessidade de um
pluralismo religioso. Torna-se evidente, ao depararmos com a
obra aqui analisada, “Crer e Interpretar: a virada hermenêutica
da teologia”, que o teólogo propõe um olhar novo para o
pluralismo religioso. Este é posto como novo paradigma para
as religiões.
As linhas metodológicas do texto se dividirão em dois
grandes blocos. O primeiro, “A hermenêutica como princípio
teológico em Claude Geffré”, buscará na hermenêutica proposta
por ele luzes que clareiem a reflexão. No segundo bloco,
“Pluralismo religioso em Claude Geffré”, realizaremos uma
aproximação específica nas diretrizes alcançadas pelo teólogo
no que diz respeito ao tema levantado. Portanto, o pequeno
artigo confeccionado não está acabado, pois o tema é amplo e
merece mais aprofundamento.
Assim, trabalharemos com Claude Geffré como força
1 Claude Geffré, nascido em Niort, França, em 1926, é padre da Ordem dos Pregadores, mais
conhecidos por Dominicanos. Dedicou-se ao ensino de teologia na Faculdade Dominicana
de Saulchoir e no Instituto Católico de Paris. Também esteve na direção da Escola Bíblica e
Arqueológica de Jerusalém; colabora na revista internacional de teologia Concilium.
O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré
iluminadora das linhas que se seguem. Entretanto, no
desenvolvimento do texto dialogar-se-á com outros autores
que poderão ajudar na busca incansável de um diálogo
fecundo e promissor do debate, a saber: Faustino Teixeira,
Roberlei Panasiewicz, José Maria Vigil, Leonardo Boff e André
Torres Queiruga. Portanto, colocar-se-á o tema do pluralismo
religioso no cerne da reflexão teológica.
1 A hermenêutica como princípio teológico em Claude
Geffré
No caminho por buscar uma aproximação hermenêutica
na sua reflexão teológica, Claude Geffré formula, como teólogo
católico no universo cristão, suas reflexões e inovações diante
de uma teologia dogmática por vezes considerada como a
maneira certa de fazer teologia. É importante ressaltar que para
Geffré a razão teológica baseia-se numa compreensão histórica
e não numa mera especulação. Portanto, a hermenêutica toma
o lugar de prioridade absoluta no pensamento do francês e é o
primado de sua teologia2.
O capítulo se dividirá em duas grandes partes. A primeira
buscará esclarecer a hermenêutica como novo paradigma de
fazer teologia. A segunda, quais as consequências trazidas por
esse modelo.
1.1 Fazer teologia: busca hermenêutica
No início do primeiro capítulo do livro de Geffré, o autor
salienta que teologia como hermenêutica entende-se como
forte e crítica3. Com efeito, o autor busca uma dimensão no
interior da razão que coloque a hermenêutica como pano de
fundo da sua reflexão teológica. A questão em foco é, segundo
o autor:
o que vem a ser a razão teológica quando a
2
3
PANASIEWICZ, 2004, p.75.
GEFFRÉ, 2004, p.29.
23
Cristiano Andrade Teodoro
teologia se dá conta não apenas de uma ruptura
com a antiga metafísica, em particular a metafísica
da substância, mas também uma ruptura com
as filosofias do sujeito, enquanto que a filosofia
moderna tende a tornar-se cada vez mais uma
filosofia da linguagem4?
Geffré elucida que durante séculos a razão teológica foi
identificada com a razão especulativa, a chamada Ratio.
Entretanto, na atual conjuntura é necessário que façamos um
distanciamento pedagógico da metafísica e nos aproximemos
de um “compreender histórico no sentido de Heidegger e de
Gadamer [...] com Paul Ricouer da hermenêutica filosófica
contemporânea”5. Assim, verifica-se que uma tentativa de
colocar a teologia nos princípios da ciência moderna é um risco
constante, pois a noção de ordem estabelecida na modernidade
exige transformação axiomática para uma compreensão
empírica e histórica da ciência. É necessário perceber a
teologia como linguagem. Não é um mero discurso, porém um
incansável esforço interpretativo sobre Deus. Enfaticamente,
Geffré escreve que “não existe saber direto da realidade fora
da linguagem e a linguagem é sempre uma interpretação”6.
A partir disso, se elenca no pensamento de Claude que
“a teologia vai justamente levantar a questão da relação do
teólogo hermeneuta com o seu texto”7. É nesse itinerário que o
hermeneuta coloca no seu horizonte os textos fundadores do
cristianismo que transmitem, em linguagem humana, Deus.
A hermenêutica dos textos fundadores se volta, portanto, “de
um lado, à positividade de uma revelação e, de outro lado, à
intencionalidade da fé do sujeito que crê”8. Aqui cabe distinguir
que um texto fundador resiste a uma interpretação definitiva.
4
5
6
7
8
24
GEFFRÉ, 2004, p.30.
GEFFRÉ, 2004, p.32.
GEFFRÉ, 2004, p.33.
GEFFRÉ, 2004, p.34.
GEFFRÉ, 2004, p.34.
O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré
O texto ganha um caráter universal pela sua abrangência
na comunidade e seus interlocutores. Na realidade de cada
pessoa o texto se configura em uma nova forma e se equaciona
num movimento aspiral crescente e aberto. A universalização
nesse aspecto não significa dogmatizar, mas abertura ao novo
sempre contagiante. Nas palavras de Leonardo Boff,
o cristianismo não é um fóssil petrificado em
suas fórmulas doutrinárias e em suas expressões
históricas. Ele possui a natureza de um organismo
vivo que cresce e se enriquece como fazem todos
os organismos vivos: trocando valores e verdades a
partir de sua identidade básica.9
Contudo, a teologia católica, sobretudo no que diz respeito
à interpretação dos textos fundadores, defende a ideia de
que o saber é definido pela autoridade10. Com a reforma
protestante levantada a partir de Martinho Lutero, elucidando
as 96 teses sobre o valor e a eficácia das indulgências e outros
temas como penitência, culpa, pena, purgatório, primado, e
acrescido a isto, as mudanças sociais, o fim da Idade Média
e as revoluções oriundas da ciência, política e filosofia,
provoca-se um processo de fechamento contínuo. Cresce o
reforço da identidade sugerindo cada vez mais uma teologia
dogmática ou Escolástica Pós Tridentina11. Há uma ausência
total de diálogo da teologia católica com as tendências novas.
Preferiu-se “o caminho de defesa, buscando a proteção nas
afirmações doutrinárias da teologia patrística (séculos I a VII)
e, sobretudo, da teologia escolástica (séculos VIII a XV)”12. O
ponto de partida dessa teologia é o ensinamento do magistério
e a Tradição ulterior. Geffré ilumina a questão escrevendo
9
p.61.
10
11
12
Boff, Leonardo. É o Cristo cósmico maior que Jesus de Nazaré. In: Concilium, n.319,
PANASIEWICZ, 2004, p.76.
PANASIEWICZ, 2004, p.76.
PANASIEWICZ, 2004, p.76.
25
Cristiano Andrade Teodoro
que:
O discurso teológico que é, no fundo, o reflexo da igreja
institucional, tende a tornar-se um sistema irrefutável
no sentido de Popper, correndo, além disso, o risco
de degradar-se em ideologia, isto é, um ensinamento
oficial que justifica as decisões do magistério seja qual
for a resistência dos textos escriturísticos e das tradições
interpretativas destes textos13.
O grande ganho de uma teologia dogmática é a segurança
do magistério e de fé no que diz respeito às verdades da
mesma. O risco dessa postura é a perda de autonomia
reflexiva, transformando o pensamento numa ideologia a
serviço, meramente, do poder institucional. Com isso, perdese a dimensão criativa e irradiadora do novo que o ser humano
é capaz na sua inteligibilidade.
Torna-se necessário dizer que o hermeneuta deve estar
inscrito na tradição que o texto lido está sendo interpretado, pois
só assim, a partir de sua realidade, forjam-se novos conceitos.
A linguagem adquire um mecanismo neutro e maleável.
Com efeito, novos conceitos surgem da tensão entre o texto, a
realidade onde se encontra o sujeito e o próprio interlocutor.
Nas palavras de Geffré, é fundamentalmente importante
“discernir os elementos fundamentais da experiência cristã
e dissociá-los das linguagens nas quais esta experiência foi
traduzida”14.
Portanto, levanta-se a boa situação hermenêutica elencada
por Geffré. A relação se estabelece entre a experiência cristã das
primeiras comunidades e a experiência atual. A atualidade da
experiência cristã se faz quando nesse encontro olha-se para
trás e projeta-se para frente. Assim, cabe perguntar sempre
qual o texto que faz vislumbrar o acontecimento de Cristo
13
14
26
GEFFRÉ, 2004, p.36.
GEFFRÉ, 2004, p.37.
O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré
sempre contemporâneo. “E possibilitar o discernimento dos
elementos fundamentais e da experiência cristã será tarefa da
hermenêutica”15.
1.2 O modelo hermenêutico e suas consequências numa
virada teológica
Na busca por um novo modelo de fazer teologia,
Geffré estabelece a hermenêutica como fundamento. Com
efeito, a partir disso, representa-se um momento novo da
reflexão teológica, pois traz possibilidades de “descobertas,
articulações, perspectivas e, sobretudo, um diálogo com a
cultura moderna”16. Já no Concílio Vaticano II17, se percebem
tensões no interior da Igreja diante das propostas elaboradas,
pois a consciência cristã sempre esteve marcada pelo axioma
“extra ecclesiam nulla salus” (fora da Igreja não há salvação).
A irradiação desse imperativo provoca uma conclusão: o
“máximo que se concede às outras religiões é a presença de
uma ‘ânsia’ de conhecer a Deus”18. Portanto, o autor busca
um distanciamento dessa postura neo-fundamentalista e
serão, as consequências de sua proposta, luzes para redefinir
o pluralismo religioso como paradigma para as religiões. São
três consequências aqui desenvolvidas:
1) A Escritura: uma abordagem nova.
2) Re-criar a Tradição.
3) Uma nova prática eclesial a partir da
hermenêutica.
1.2.1 A Escritura: uma abordagem nova
15
16
PANASIEWICZ, 2004, p.82.
PANASIEWICZ, 2004, p.84-85.
17
Conferir, especificamente, a constituição pastoral Gaudium et Spes, bem como os
decretos Unitatis Redentegratio e Orientalium Ecclesiarum e as declarações Dignitatis Humanae e
Nostra Aetate.
18
TEIXEIRA, Faustino. O pluralismo religioso como novo paradigma para as religiões.
In: Concilium, n.319, p.25. Ver João Paulo II, Redemptoris missio. Petrópolis: Vozes,1991, n.45.
27
Cristiano Andrade Teodoro
Geffré utiliza como pano de fundo a hermenêutica
textual proposta por Paul Ricouer. Esse estudo interessa
para o teólogo em duas faces. A primeira diz respeito ao
distanciamento aos preconceitos ou ilusões positivistas de
uma objetividade textual. Já a segunda, à ilusão romântica de
uma congenialidade entre o leitor de hoje e o autor de um
texto passado19. É importante destacar que o texto escapa ao
seu autor. Quando escrito ou falado já não é mais do autor. O
discurso ganha uma vida própria e fecunda-se nos ouvidos
dos interlocutores. Nas palavras de Ricouer: “Compreender-se
é compreender-se diante do texto e receber dele as condições
de um outro eu que aquele vem a leitura”20. Sendo assim,
quando a leitura adquire um significado para o leitor esta o
transformará.
A sagrada escritura narra a história de fé do povo de
Israel. A questão é como entender que uma construção
histórica particular tenha alcance universal. Aqui se projetam
dois riscos. O primeiro diz respeito a “uma hermenêutica que
se prende ao mundo do texto e não à idéia de um sentido já
existente”21. Quer se chegar das palavras do autor ao querer
de Deus. Nas palavras de Geffré é o que se pode “chamar ao
mesmo tempo uma teoria da generalidade e também uma
certa concepção do profetismo”22. Já o segundo risco torna-se
claro quando o hermeneuta não tem consciência de que está
diante de um texto no qual a escrita já é uma interpretação do
fenômeno, isto é, do fato em si. Segundo o autor, “portanto,
o trabalho do hermeneuta é interpretar uma interpretação. E
essa interpretação nos remete a uma experiência de que ela
própria já é uma experiência interpretante do evento”23.
1.2.2 Re-significar a tradição
19
20
21
22
23
28
GEFFRÉ, 2004, p.44.
RICOUER apud GEFFRÉ, 2004, p.45.
GEFFRÉ, 2004, p.45.
GEFFRÉ, 2004, p.45.
GEFFRÉ, 2004, p. 48.
O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré
Uma leitura nova da escritura nos faz pensar em uma resignificação da tradição. Nesse sentido está no horizonte do
pensamento de Geffré que “re-criar” a tradição não simboliza
apenas uma “adaptação atualizada de uma afirmação da
tradição, mas sim para re-situar e re-interpretar a verdade
de fé”24. Existe aqui um conflito emergente entre teólogos e
magistério da Igreja. É uma oposição entre leitura histórica e
leitura dogmática. Nas palavras do autor, a teologia dogmática
elucida
as verdades de fé de maneira autoritária, como
garantidas unicamente pela autoridade do
magistério ou da bíblia, sem nenhuma preocupação
com a verificação crítica concernente à verdade
testemunhada pela Igreja25.
Não obstante, a teologia hermenêutica é contrária a
todo fechamento em certezas pré-estabelecidas. Enquanto
uma teologia dogmática se diz portadora da revelação, uma
teologia hermenêutica é aberta ao risco de interpretação, tanto
da escritura quanto da Tradição. Portanto, para Geffré, “uma
leitura que busque a reinterpretação da tradição ou de um
enunciado dogmático pode conduzir a reformulações”26.
1.2.3 Uma nova prática eclesial a partir da hermenêutica
A releitura da tradição e uma nova abordagem escriturística
provocam uma prática eclesial diferente e, consequentemente,
aberta. Entende-se eclesial como comunhão entre irmãos.
O conceito de ecclesia não poderá ser fechado. Ele está
circunscrito na prática cristã27. Nessa perspectiva, a teologia se
baseia em uma lógica indutiva, ou seja, parte da realidade até
24
25
26
PANASIEWICZ, 2004, p.87.
GEFFRÉ, 1989, p.63.
PANASIEWICZ, 2004, p.86.
27
GEFFRÉ, 1989, p.28. Na elaboração teológica no contexto latino-americano o
“primado da práxis” tem seu lugar assegurado. Para aprofundar essa reflexão cf. BOFF,
Clodovis. Teologia e prática: teologia do político e suas mediações. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
1982. p.273-289.
29
Cristiano Andrade Teodoro
a conceituação. Diferentemente desse método temos o método
dedutivo: a aplicação na realidade de conceitos de antemão
já organizados. Neste, perde-se a dimensão da novidade
que poderia ser vislumbrada no contato com o real e suas
manifestações diversas. Geffré adota o método indutivo. Ele
norteia-se no seguinte princípio: “não existe teologia cristã
sem prática eclesial de fé”. Com isso, Deus manifesta-se na
atuação da comunidade de fé, pois “a liberdade humana é a
porta para a novidade da interpretação divina no mundo”28.
Um novo lugar de fazer teologia proporciona uma abertura
a um pluralismo de teologias. Valorizam-se as interpretações e
as realidades culturais adversas. Não se trata de um relativismo
da identidade cristã. Porém, um reforço originário na busca
por uma percepção da identidade sempre em construção. Para
Geffré um bom exemplo de teologia baseada na hermenêutica
prática é a Teologia da libertação:
Nela há uma reinterpretação da salvação cristã a partir da
situação de opressão, e a mensagem dos textos bíblicos
é interpretada a partir desse contexto. O lugar teológico
de fazer hermenêutica, para a teologia da libertação, é a
história compreendida como história dos oprimidos e
dos empobrecidos29.
Por fim, nas palavras de Geffré percebe-se que “prática
não é apenas a aplicação de um discurso teórico: a prática é
em si mesma uma matriz de sentido”30.
28
29
QUEIRUGA, 1999b, p.135.
PANASIEWICZ, 2004, p.88.
30
GEFFRÉ, 2004, p.55. A Teologia da Libertação tem por mística a percepção de que
Deus sofre no rosto do empobrecido e está gritando por libertação. Para reparar tal opressão,
ela dá atenção especial à prática, entretanto não é prática isolada, mas inserida num método.
Este possui três mediações: mediação socioanalítica (ver), mediação hermenêutica (julgar)
e mediação prático-pastoral ou dialética teoria-práxis (agir). Para aprofundamento: BOFF,
Clodovis. Teologia e prática: teologia do político e suas mediações. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
1982. 407p.
30
O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré
2 Pluralismo religioso em Claude Geffré: “Jesus como
universal concreto”
O norte de nosso estudo sobre o pensamento de
Claude Geffré é a dimensão cristológica. Esta deve sofrer
uma modificação a partir do momento em que fixamos a
universalidade no Cristo e não no cristianismo. A reflexão
nesse âmbito exige uma atitude kenótica. Esvaziar-se dos
velhos paradigmas para se iluminar de outros.
Com efeito, oriundo de um paradigma cristocêntrico, Geffré
sistematizou seu pensamento sobre o pluralismo religioso
a partir do conceito de “Jesus como universal concreto”. Posto
a hermenêutica como princípio teológico e a mesma como
novo paradigma de fazer teologia, urge abordar a dimensão
cristológica e alguns desdobramentos que se seguem.
2.1 Jesus Cristo: Filho encarnado de Deus
A encarnação ocupa lugar especial no diálogo salvífico de
Deus31. Deus se auto-oferta (revela-se) ao ser humano. É uma
oferta gratuita, sem nenhuma relação mercantil da fé. Assim
a graça não pode ser cobrada e a princípio é dada a todos.
Nota-se que a encarnação é ato salvífico de diálogo entre
Deus e seu povo; a partir disso algumas questões poderão ser
levantadas: um Deus que se encarna contribui ou atrapalha
no diálogo interreligioso? A encarnação de Jesus o torna, para
o cristianismo, mediador do Pai. Nesse âmbito seria somente
através de Jesus Cristo que alcançaríamos a salvação?
Nunca se buscou tanto em nosso tempo o sagrado e suas
diferentes formas para alcançar a salvação ou ainda uma
relação com o transcendente. Houve momentos de profundo
ateísmo bem como o retorno ao sagrado. Nas palavras de
Geffré, percebe-se que, para
31
Para aprofundamento: cf. MIRANDA, Mario de França. A salvação de Jesus Cristo:
a doutrina da graça. São Paulo: Loyola, 2004. 244p.
31
Cristiano Andrade Teodoro
fazer um diagnóstico sobre a nossa experiência
histórica contemporânea, deve-se conciliar ao
mesmo tempo o que nem sempre é evidente,
a permanência da secularização, o ateísmo, a
indiferença religiosa e o que se chama retorno do
religioso, o retorno do sagrado32.
Claude Geffré, aprofundando essa temática, afirma que o
evento Jesus é o dado novo do cristianismo. Jesus, no que tange
a relação com Deus, propõe uma maneira nova de estabelecêla. Segundo o autor, “essa novidade se traduz especialmente
no espírito novo com o qual são assumidos um universo de
pensamento, uma visão do mundo e do homem, um estilo de
vida e categorias éticas, que podem ser antigos”33. A novidade
não se equaciona com um relativismo, pelo contrário, ela
fará que o cristianismo pense com criatividade e elegância o
relacionamento com essa realidade emergente, o pluralismo
religioso34. Por conseguinte, essa maneira nova de Geffré
pensar a teologia está submersa nas reflexões tipológicas
abordadas35 no ponto posterior.
2.2 Debate tipológico: exclusivismo, inclusivismo e
pluralismo
A nomenclatura utilizada e os teóricos que a defendem
não são homogêneas. Na tentativa de responder ao debate
sobre o pluralismo religioso, os teólogos fundamentaram
suas posturas a partir de exclusivismo, inclusivismo e
32
GEFFRÉ, 2004, p.134. Para aprofundamento: cf. OTTO, Rudolf. O Sagrado.
Petrópolis: Vozes, 2007.
33
GEFFRÉ, 1989, p.220.
34
Na reflexão sobre o pluralismo religioso Geffré irá assumir um pluralismo de
princípio como possibilitador no desenvolvimento progressivo da teologia.
35
Seguem as reflexões a partir do pensamento de Panasiewicz sobre as tipologias.
Para compreender melhor as tipologias ou paradigmas, ou, ainda, correntes da teologia das
religiões com os respectivos representantes, ver: TEIXEIRA, Faustino. Teologia das religiões:
uma visão panorâmica. São Paulo: Paulinas, 1985. p.37-114; DUPUIS, Rumo a uma teologia
cristã do pluralismo religioso, p.251-294; HAIGHT, Roger. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo:
Paulinas, 2003. p.459-464.
32
O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré
pluralismo. Sistematicamente, aproximemo-nos do significado
dessas três vias do estudo sobre o pluralismo religioso e,
consequentemente, adota-se nesse trabalho uma delas como
norte da reflexão sugerida por nós.
Os exclusivistas são aqueles que se apoiam no famoso
axioma “extra ecclesiam nulla salus”. Estes, como pano de fundo
de suas reflexões, colocam a Igreja como ponto de partida. Em
outras palavras, são eclesiocentristas. A fórmula dita em um
contexto particular adquire caráter universal à medida que
é sujeitada para todos. Essa formulação tem como objetivo
guardar o depositum fidei. A maneira de participação desse
espaço é através da Igreja Católica. Aqui o batismo é exaltado,
pois, assim, deixa-se de ser meramente criatura e se torna filho
de Deus36.
O segundo modelo é extremamente forte em nossa cultura
atual. Todas as igrejas, e também por que não dizer algumas
religiões, realizam propagandas sobre a salvação. A salvação
se dá em todos os meios. Até aqui a premissa está correta.
O problema é o neo-fundamentalismo cristão que emerge de
uma postura cristocêntrica. Não se permite pensar a salvação
a partir de outra fundação religiosa a não ser a partir de Jesus,
o Cristo. Subjacentes a esse paradigma consolidam-se duas
teorias: a teoria do acabamento ou da realização (cumprimento) e
a teoria de Cristo presente nas religiões. Na primeira, constatase que Deus é sobrenatural, por isso, inacessível. Com efeito,
as religiões seriam formas naturais para acessar o sagrado.
Porém, elas não o fazem, pois a “única” religião sobrenatural
é a cristã. Essa tem em Jesus a mediação para a salvação. Ele
sendo o Filho de Deus já está ao lado do mesmo. Assim, as
religiões terão seu acabamento ou realização ou o cumprimento
no cristianismo. Já a segunda teoria baseia-se na ideia de que
“só Jesus salva”. O teólogo que fundamenta com maestria esse
enfoque é Karl Rahner: “a antropologia transcendental (ou
36
Cf. LG 11, AG 7.
33
Cristiano Andrade Teodoro
antropologia teológica) caracteriza a teologia rahneriana”37.
Nessa perspectiva, ele cunhou a expressão “existencial
sobrenatural”. “Significa que todo ser humano, pelo fato da
criação, tem um existencial (natural) como referência originária
ao mistério do absoluto”. Porém o homem/mulher por livre
decisão e gratuidade de Deus é elevado ao nível de comunhão.
Existe uma abertura ao transcendente como força constitutiva
(sobrenatural). O ser humano é chamado à intimidade com
Deus. Nas palavras de Rahner, “este existencial não se torna
merecido ou devido e, nesta acepção, natural, pelo fato de estar dado
a todos os homens como elemento permanente de sua existência
concreta e pelo fato de estar previamente dado à sua liberdade, à
sua autocompreensão e à sua experiência”38.
Com efeito, dessa categoria do pensamento de Karl
Rahner surge a nomenclatura de “cristãos anônimos”. Aqui se
pode entender a salvação dos crentes de outras denominações
religiosas e mesmo dos ateus. A postura existencial do homem/
mulher encontra em Jesus sua máxima realização. Em outras
palavras, aquele que em suas práticas diárias exalta os valores
evangélicos, mesmo sem conhecer, é um cristão anônimo.
Não abraça a fé por algum motivo, seja ele de ordem pessoal,
institucional ou, ainda, por não conhecer Jesus. Porém, o que
nos interessa é o avanço na forma de entender a salvação
proposta por Rahner.
Já o terceiro modelo tem sua origem no pensamento de
John Hick. Uma expressão por ele usada para compreender
o pluralismo diz do seu pensamento. Ele propõe fazer “uma
revolução copernicana na teologia”. Nota-se aqui a tentativa de
Hick na reestruturação do lugar ocupado por Cristo. Ele afirma
que não deve ser Jesus o centro para o qual tudo converge,
mas Deus. Assim, Jesus é um mediador e não o mediador. Na
mesma direção se pode afirmar que “cada tradição religiosa
34
37
PANASIEWICZ, 2004, p.130.
38
RAHNER, 1989, p.158.
O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré
possui vias próprias de salvação”39.
No interior do debate entre inclusivismo (cristocêntrico)
e pluralismo (teocêntrico) articula-se o inclusivismo aberto.
Desse modo, surgem duas categorias interessantes para
elucidar a tensão existente: Jesus Cristo é normativo ou
constitutivo para a salvação? Normativo é quando Jesus
é postado como revelador, ou seja, lei e referência de um
caminho; constitutivo significa ser o único caminho e causa de
salvação de todo ser humano.
O autor escolhido, Claude Geffré, propõe um jeito novo de
fazer teologia. Baseia-se nas suas convicções e na elaboração
conceitual, categorias que explicitem seu lugar na reflexão. Não
se trata da dissociação entre cristocentrismo e teocentrismo. Ele
configura-se como inclusivista, à medida que todas as religiões
são mediações de salvação pela mediação escondida de Cristo,
e ao mesmo tempo pluralista, no sentido de levar a sério o
valor intrínseco das religiões nas suas próprias diferenças. Nas
diversas religiões existem elementos que podem favorecer a
salvação de seus membros. Assim, ele trabalhará os valores
crísticos e valores implicitamente cristãos.
2.3 Mediação: valores crísticos e valores implicitamente
cristãos
A questão de fundo pendente no momento é como incluir
o cristocentrismo na medida em que este se abra às verdades
presentes em outras religiões. Claude Geffré tenta “distinguir
entre valores crísticos, ou universalidade do Cristo, de valores
implicitamente cristãos ou universalidade do cristianismo”40.
Paralela à pergunta fundante existe outra questão. Será que
Jesus Cristo abarcou em sua vida toda a irradiação de Deus?
Consequentemente a isso, o cristianismo seria capaz, mesmo
em suas contingências históricas, de captar todo o mistério?
Geffré, desse modo, deseja encontrar um fundamento
39
PANASIEWICZ, 2004, p.133.
40
PANASIEWICZ, 2004, p.135.
35
Cristiano Andrade Teodoro
teológico para o julgamento positivo das tradições religiosas
da humanidade. É preciso dizer que, segundo o desígnio
de Deus, o mistério salvador de Cristo está presente e atua
nas grandes religiões do mundo. Nesta perspectiva, o
cristianismo poderá beber de outras fontes religiosas. Poderse-ia dizer de um processo pelo qual, por meio da maiêutica,
extraem-se novas facetas do mistério de Cristo irradiadas na
experiência (contato) com as demais formulações religiosas.
Assim, segundo o autor, a “superabundância do mistério de
Cristo, não encontrou sua tradução adequada no cristianismo
histórico que conhecemos, e assim, outras tradições religiosas
podem misteriosamente encarnar certos valores crísticos”41.
Os valores crísticos configuram-se em três ordens:
ordem do conhecimento, ordem do culto e ordem da ética.
A primeira diz respeito a uma tradição religiosa possuidora
de textos sagrados que tentam demonstrar as descobertas do
verdadeiro Deus. Já a segunda, a ordem do culto, elucida os
ricos como aprendizagem e caminho da verdade na tentativa
do homem de se encontrar com Deus. Por último, a ordem
da ética equaciona-se na práxis. Aqui se valoriza a prática de
justiça, compaixão, hospitalidade, fraternidade, cortesia e a
relativização de si para uma abertura ao grande-outro. Essas
atitudes podem ser antecipações do Reino de Deus.
Portanto, Claude Geffré aponta seu pensamento para os
valores crísticos deixando de lado os valores implicitamente
cristãos. Estes universalizam o cristianismo e com isso suas
práticas dogmáticas. Os dogmas já são orientações prévias
sobre a fé e não permitem que a mesma possa se abrir a
formulações de estruturas religiosas adversas. A partir de
valores implicitamente cristãos, assimilados e difundidos pelo
cristianismo histórico, percebe-se a vivência implícita destes
por outras religiões. Com efeito, assumindo-se os valores
crísticos, Geffré deseja trilhar outro caminho. Dá-se ênfase à
universalidade de Cristo, enquanto verbo encarnado, e não ao
41
36
GEFFRÉ, 2004, p.160.
O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré
processo universalizante do cristianismo. Nessa perspectiva,
pode-se responder aos questionamentos cavados no início
deste tópico. Jesus abarcou uma realidade de Deus. Isso não
impede que Deus continue se revelando através de outras
pessoas de bom coração (fundadores das grandes religiões).
“A tradução de Cristo em milhares de outros Cristos explicita
virtualidades contidas na pessoa paradigmática de Jesus
Cristo como homem perfeito”42. Em relação à outra questão,
o cristianismo não é capaz de captar todo mistério. As demais
religiões também podem ser espaços iluminadores de Deus.
Em outras palavras, as religiões encontrarão sua realização
última em Jesus Cristo, mas elas não encontrarão sua explicação
verificável no cristianismo. Assim, emerge dessas tensões uma
pergunta: o que fazemos com a encarnação?
2.4 Encarnação: Cristo como universal concreto
Agora provém da encarnação o conceito de Cristo como
universal concreto. Claude Geffré recorrerá a essa expressão
cunhada por Nicolau de Cusa para se aproximar do mistério
da encarnação. Argumenta Geffré:
em vez de recorrer a um teocentrismo geral, acho que
é um aprofundamento do mistério da encarnação que
deve permitir-nos compreender como se pode manter a
singularidade do mistério de Cristo, sua unicidade, sem
fazer com que essa unicidade conduza a uma espécie
de imperialismo e de hegemonia do cristianismo em
relação às outras religiões43.
No interior do cristianismo desenvolvem-se duas
percepções do verbo (logos). O verbo encarnado eterno
e encarnado. Não se trata de olhá-los distintamente, mas
sempre inseparáveis. Aqui está a originalidade dessa religião.
42
GEFFRÉ, 2004, p.160.
43
GEFFRÉ, 2004, p.163.
37
Cristiano Andrade Teodoro
Pensa-se “Deus como realidade transcendente a partir da
humanidade concreta de Jesus de Nazaré”. Jesus torna-se o
ícone de Deus. Contudo, é preciso resguardar essa colocação,
pois equacionaria o elemento histórico e contingente de Jesus
com seu elemento crístico e divino, isto é, a encarnação de
Deus pela mediação humana. Assim, a encarnação de Deus
permite uma identificação com ele. Mas esta remete a um
Deus inacessível que escapa a toda identificação.
Jesus manifesta concretamente o logos. Isso permite
realizar uma reflexão entre o absoluto concreto e o absoluto
universal. Encontra-se aqui um paradoxo. Deus se rebaixa
para assumir a condição humana. Assumindo essa condição
humana, ou seja, limitada, contingente, fraca, instintiva, cheia
de desejos, Deus deixa de ser absoluto nessa experiência.
Entretanto, enquanto Cristo permanece o caráter de
universalidade. A imagem da cruz adquire força. Ela é o ápice
do rebaixamento e do amor de Deus pela humanidade, “é o
símbolo de uma universalidade sempre ligada ao sacrifício de
uma particularidade”44. Ao morrer, Jesus de Nazaré emerge,
universalmente, o Cristo. É fácil entender isso quando se nota
que, na história do cristianismo, o evento Jesus de Nazaré
foi particular de um povo. Contudo, à medida que Jesus de
Nazaré vai se configurando como o Cristo, a abrangência
de seu testemunho é universalizada na prática dos cristãos,
seguidores dos seus ensinamentos. Segundo o autor:
Se quisermos manter no diálogo inter-religioso
uma identidade cristã, não podemos definir esta
singularidade cristã fora da cruz de Cristo como figura
do amor absoluto de Deus. É por isso que é impossível
no cristianismo opor cristocentrismo e teocentrismo. No
cristianismo não há teocentrismo sem uma referência a
Jesus Cristo como figura do Absoluto45.
38
44
GEFFRÉ, 2004, p.167.
45
GEFFRÉ, 2004, p.169.
O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré
Em suma, cabe dizer que não resta dúvida de que Jesus
e Cristo são a mesma pessoa. Entretanto, destaca-se no
pensamento cristológico de Geffré a cruz como instrumento
mediador para a universalidade de Cristo. Por meio dela
confirma-se a ideia de que Jesus é o elemento concreto através
do qual o homem tem acesso a Deus. Ao olhar a particularidade
de Jesus Cristo se revela a dimensão universalizadora do
próprio Deus.
Conclusão
Há de se fazer uma retomada da reflexão sobre o caminho
aqui percorrido. Primeiro trabalhamos a hermenêutica como
pano de fundo para o pensamento teológico de Claude Geffré.
O processo hermenêutico provoca suas consequências. A
partir desse fundamento explicitamos o caminho percorrido
por Geffré a fim de promover categorias que possam auxiliar
no diálogo inter-religioso. Claude resgata o conceito de “Cristo
como universal concreto” do cardeal Nicolau de Cusa. Aqui
se pensa a encarnação em outra perspectiva.
Surge a necessidade de levantar algumas implicações para
o diálogo. São critérios de um ecumenismo interreligioso,
a saber: o respeito do outro em sua identidade própria, a
fidelidade no que diz respeito à sua identidade, a igualdade
entre os parceiros para que haja diálogo e um ecumenismo
planetário.
Primeiro, para qualquer tipo de diálogo devemos ir ao
encontro do outro respeitando a sua identidade. Não existe
conversa, reflexão em um monólogo. Respeitar o outro é
se desfazer dos preconceitos em relação a outrem. É olhálo na sua alteridade. Perceber que na diferença pode morar
o complemento. Assim no respeito criamos ternura, afeto e
relação fraterna.
Segundo, no diálogo é preciso saber de antemão a
identidade própria. Trata-se de relativizar aquilo que é
39
Cristiano Andrade Teodoro
supérfluo e expressar o fundamento. Com essa atitude,
experimentar-se-á uma máxima da Igreja: “aquilo que nos
separa não pode ser maior do que aquilo que nos une”.
Terceiro, é necessário a igualdade no diálogo. As vozes
serão equacionadas. Não é o número de fiéis que poderá dar
uma escuta maior. Todos participarão do debate com voz e vez.
Assim, facilitará a escuta (percepção) de novas manifestações
pelo Sagrado em todas as direções.
Quarto, a busca por ecumenismo planetário urge. É
necessidade vital. O retorno ao sagrado nos fará ter uma
percepção do pluralismo como vitalidade global, isto é,
planetária. Isso trará à tona o cuidado para com as criaturas.
A compaixão como sentimento oriundo da luta contra os
processos destrutivos em nosso planeta, sobretudo no que diz
respeito à natureza.
Portanto, o caminho é longo. As reflexões não estão
fechadas. Quanto mais se mexe, maiores são os abismos. É
preciso uma postura de discípulo tentando captar o mistério,
o que o pluralismo quer nos dizer.
Referências:
BOFF, Clodovis. Teologia e prática: teologia do político e suas
mediações. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1982.
GEFFRÉ, Claude. Pluralidade das teologias e unidade da fé.
In: LAURET, B. e Refoulé, F. (orgs). Iniciação à prática da
teologia I. São Paulo: Loyola, 1992.
Geffré, Claude. Crer e interpretar: a virada hermenêutica
da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004.
GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje: hermenêutica
teológica. São Paulo: Paulinas, 1989.
HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa
40
O pluralismo religioso a partir de Claude Geffré
sobre as origens da mudança cultural. 12. ed. São Paulo:
Loyola, 2003.
HORTAL, J. “A Igreja e os novos grupos religiosos”. Estudos
da CNBB, São Paulo, n. 68, 1993.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 9.ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
MIRANDA, Mario de França. A salvação de Jesus Cristo: a
doutrina da graça. São Paulo: Loyola, 2004.
Panasiewicz,
Roberlei.
Pluralismo
religioso
contemporâneo: diálogo inter-religioso na teologia de Claude
Geffré. São Paulo: Paulinas, 2007.
QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar a cristologia: sondagens
para um novo paradigma. São Paulo: Paulinas, 1999a.
QUEIRUGA, André Torres. Recuperar a criação: por uma
religião humanizadora. São Paulo: Paulus, 1999b.
RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulus,
1989.
Teixeira, faustino. Teologia das religiões: uma visão
panorâmica. São Paulo: Paulinas, 1995.
TEIXEIRA, Faustino. O pluralismo religioso como novo
paradigma para as religiões. Concilium, n.319.
______________________________________________________
41
RESGATE DA MÍSTICA NA
LITURGIA A PARTIR DO CONCÍLIO
VATICANO II
1
Valeriano dos Santos Costa
Introdução
A Igreja Católica vive sob impacto de um dos maiores
eventos de sua história, que é o Concílio Vaticano II. No bojo
desse evento está a reforma geral da liturgia, realizada logo no
início, abrindo assim um caminho que marcou todo o trajeto
conciliar. Mais de quatro décadas passadas, é necessário
buscarmos nas fontes da própria reforma as luzes que nos
ajudam a compreender a grandeza dos avanços e o porquê
das falhas em algumas aplicações conciliares. Isso, para que
nos projetemos de forma lúcida e perspicaz na aplicação do
sonho que o Concílio representa. Esse sonho, com certeza,
aponta para a mística, que na liturgia tem seu espaço mais
natural. A mística na liturgia foi espetacularmente resgatada
pela Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada
Liturgia, mas não posta em prática como se esperava. O
futuro está em nossas mãos e, como profetizou Karl Rhaner,
“o cristão do futuro ou será místico ou não será nada”2. Jesus
1
Este texto foi preparado em vista de dois dias de conferência que o autor realizou
sobre o tema, no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA), em Belo Horizonte, em 09 e 10 de
junho de 2009.
2
Citado por COSTA, Valeriano Santos. Viver a ritualidade litúrgica como momento
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
Cristo é a presença de Deus, que deixou o cimo da montanha
para habitar conosco no vale da história, tornando-se Palavra
para ser ouvida, Pão para ser comido, Sangue para ser bebido,
enfim, um Deus para ser conhecido, amado, assimilado,
seguido e cultuado na intimidade. Em outras palavras, um
Deus com o qual mantemos relações amorosas. Só um místico
percebe o alcance disso.
Este estudo é desenvolvido em quatro partes. A primeira
parte define o que é mística, enquanto experiência pascal que
extasiava as comunidades primitivas e que, de certa forma,
se alojou nas apologias e bênçãos da Idade Média. A segunda
parte trata da rígida uniformidade que se instalou na liturgia
a partir do Concílio de Trento, prejudicando a entrega ritual
que a mística extática exige. A terceira aborda o Movimento
Litúrgico como a fonte do resgate da mística na liturgia.
A quarta, por fim, trata do resgate da mística a partir do
Concílio Vaticano II, mostrando que é uma mística que leva à
participação litúrgica ativa porque é de cunho extático.
O que é mística
Antes de falarmos em resgate da mística a partir do Concílio
Vaticano II, convém definir o que é mística, pois, como diz
Paul Tillich, “é indesculpável se um teólogo usa termos sem
tê-los definido ou circunscrito”3.
É bom lembrar que “durante séculos foi impossível separar
o conceito e o campo da mística do conjunto da teologia”4.
Somente a partir de Bernardo de Claraval (1091-1153) é que o
tratado da mística começa a ter vida própria. Alguns séculos
mais tarde, porém, o conceito de mística perde toda a precisão
desde que Rousseau (1712-1778) e os românticos entenderam
a mística como a dimensão irracional do fenômeno religioso.
histórico da salvação: a participação litúrgica segundo a Sacrosanctum Concilium. São Paulo:
Paulinas, 2004. p.14.
3
TILLICH, Paul. Teologia sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 2000. p.68.
4
HUOT DE LONGCHAMP, Max. Mística. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário
crítico de teologia. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004. p.1161.
43
Valeriano dos Santos Costa
Aí vemos a vertente iluminista da filosofia, que aprisionará
a mística no porão da ignorância. Nessa linha, a definição de
religião por Schleiermacher como “sentimento de dependência
absoluta” levou os seus discípulos a situá-la no reino do
sentimento, como uma função psicológica qualquer. Isso
provocou o banimento da religião para a margem irracional
das emoções subjetivas. Tillich considera tal banimento uma
inaceitável pena de morte para a religião5.
Usaremos, então, o sentido mais clássico da mística cristã,
que consiste numa nítida percepção de Deus por meio de uma
profunda experiência do Mistério de Cristo6. As três palavraschave para a compreensão do fenômeno místico são, portanto:
“experiência”, “mistério” e “Cristo”. Nesse trinômio, o que
diferencia a mística do discurso teológico, por exemplo, é a
“experiência”. Então, para facilitar, usaremos o termo mística
significando a “experiência” da participação no mistério
de Deus revelado em Jesus Cristo ou teologia primeira, e o
vocábulo teologia com o significado de “discurso metodológico
sobre esta experiência” ou teologia segunda.
Segundo O peregrino querúbico, obra prima de Angelus
Silesius (1624-1677)7, podemos também dizer que a mística
5
TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p.23.
6
1162.
HUOT DE LONGCHAMP, Max. Mística. In: LACOSTE, Jean-Yves. Op. Cit., p.
7
Angelus Silesius (o Anjo da Silésia) é o nome com o qual Johannes Scheffer assina
a sua obra prima, O peregrino querúbico. Nasceu em 1624, em Breslau, na Polônia. Nascido
em uma família luterana de posses, recebeu uma formação clássica. Estudou medicina em
Strasbourg, Leyde e Pádua. Doutor em filosofia e medicina, tornou-se médico do príncipe
de Öls, frequentando círculos místicos e ligando-se a Abraham von Franckenberg, discípulo
de Jacob Boehme. Foi luterano fervoroso até os 29 anos. Um ano após a morte de seu mestre,
Scheffler converteu-se ao catolicismo em 1653, tomando o nome de Angelus Silesius. Passou
a viver em retiro e silêncio durante três anos, e publicando vários poemas. Ordenou-se padre
em 1661, com 37 anos [...] Herdeiro da grande tradição de Eckhart e Tauler, mas também
de Boehme, Angelus Silesius lhes deu uma expressão poética ímpar, além de qualquer
formulação confessional. Deus é indefinível, ao mesmo tempo Tudo e Nada, Ser e Nada.
Diante de seu Criador, o homem não é nada e no entanto nele somente, que é “à imagem de
Deus”, este pode se contemplar. O homem deve assim abandonar-se totalmente, esvaziar-se
de si-mesmo, para tornar-se aquilo que verdadeiramente é, um reflexo divino e deste modo
eterno. O peregrino querúbico influenciou muitos filósofos alemães, sendo reconhecido como
uma das formulações mais notáveis de uma mística que supera toda e qualquer convenção.
Cf. RIBEIRO e SILVA, Gilberto. Angelus Silesius (1624-1676). In: Coração místico, 14 dez.
44
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
é a capacidade de ver Deus agora: “Tu dizes que verás a
Deus e a sua luz, estulto nunca o verás se não o vês agora”8.
Então a mística é a experiência da visão de Deus que se dá
na contingência da história, fundindo o sobrenatural e o
mais íntimo do ser humano nas profundezas misteriosas da
intimidade homem-Deus, onde o encontro se dá. Encontro
que Agostinho afirma ser inútil buscar fora do íntimo do
homem, pois é lá que somos arrebatados e nos deixamos
possuir pela beleza divina. Daí brota a experiência da graça
de forma sensível e indizível, produzindo na alma a festa do
encontro com Cristo9. Essa experiência se dá, então, no âmbito
do sagrado, mas não de um sagrado em oposição ao profano
e sim de um sagrado na perspectiva de A. Vergote, como a
experiência da dimensão mais profunda da existência, onde
aparecem o valor e o destino quase religiosos da existência
humana e do universo10. Isso significa que todo ser humano
tem uma propensão mística natural. Dessa forma, Karl Rahner
entende pessoa humana como homo mysticus, ser extático
criado para confiar-se voluntária e amorosamente ao Mistério,
que se doa inteiramente e abraça a todos11.
A mística das comunidades primitivas
Para resgatar a mística que brota da reforma conciliar,
convém resgatar a mística das comunidades primitivas, onde o
Concílio Vaticano II buscou suas inspirações. Podemos destacar
três características relevantes da mística vivida, sobretudo,
2007. Disponível em: <http://coracaomistico.blogspot.com/2007/12/angelus-silesius.html>.
Acesso em: 01 set. 2009; VANNINI, M. Silesio, Ângelo. In: BORRIELO, L. et al. Dicionário de
mística. São Paulo: Loyola/Paulus, 2003. p.970-971.
8
SILESIO, A. Il pelegrino cherubico. VI, 115, citado por DEL GENIO, M.R. mística. In:
BORRIELO, L. et al. Dicionário de mística. São Paulo: Loyola/Paulus, 2003. p.706.
9
p.1162.
Cf. HUOT DE LONGCHAMP, Max. Mística. In: LACOSTE, Jean-Yves. Op. cit.
10
Cf. VERGOTE, A. Equivoques et ariticulations du sacré. In: CASTELLE, E (ed.). Le
care. Études et recerches: Actes du Colloque internactionel de Rome. Paris, 1974. p.471-492.
11
Cf. EGAN, H.D. Rahner Carl. In: BORRIELO, L. et al. Dicionário de mística. São
Paulo: Loyola/Paulus, 2003. p.907.
45
Valeriano dos Santos Costa
na liturgia das comunidades primitivas: era realmente uma
teologia primeira, tinha caráter extático e comunitário.
Era uma teologia primeira porque o dado experiencial
da fé já traz em si uma compreensão da revelação antes de
ser articulado metodologicamente num discurso (teologia
segunda). E, justamente, só é possível fazê-lo porque se trata de
uma compreensão nítida e luminosa, e não enigmática como o
sorriso da Mona Lisa. Conforme Cesare Giraudo, isso faz parte
de uma metodologia que marcou o primeiro milênio, quando
os teólogos “primeiro rezavam e depois criam, rezavam para poder
crer, rezavam para saber como e o que deviam crer”.12 Por isso, mais
do que explicar, a Igreja primitiva se preocupava em celebrar
a fé e aí perceber essa presença luminosa de Deus clareando os
caminhos da vida. Era algo tão central, que podemos situá-lo
no que Tillich chama de preocupação última, aquilo que determina
nosso ser ou não ser.
O termo “ser” neste contexto não designa a existência no tempo e
no espaço [...] mas a totalidade da realidade humana, a estrutura,
o sentido e o alvo da existência. Tudo isso está ameaçado, pode
ser perdido ou salvo [....] O homem está incondicionalmente
preocupado por aquilo que condiciona o ser para além de todas
as condições nele e ao redor dele. O homem está de forma última
preocupado por aquilo que determina o seu destino último para
além de todas as necessidades e acidentes preliminares13.
Nesta dinâmica da articulação entre teologia primeira e
teologia segunda, a experiência de Deus em sua particular
dinâmica celebrativa e o discurso inerente são entrelaçados.
O exemplo mais claro vem dos Santos Padres, que falavam de
Deus com uma intelecção acurada de quem tinha uma profunda
experiência de Deus na dimensão celebrativa do Mistério.
Porém, a partir do segundo milênio, quando a teologia se torna
46
12
GIRAUDO, Cesare. Redescobrindo a eucaristia. São Paulo: Loyola. 2003. p.10.
13
TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p.22.
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
uma obra da escola, e a oração uma atividade circunscrita
à igreja ou ao foro íntimo, também houve a separação entre
teologia e mística, de tal forma que o teólogo, salvo honrosas
exceções, foi para as universidades pesquisar e postular seus
discursos teológicos, enquanto o místico foi para o seu oratório
rezar e buscar caminhos de aplicar a santidade no dia a dia.
Essa dicotomia causa um enorme mal na Igreja, pois a fé, de
cujo conteúdo a teologia constitui uma explanação metódica14,
é, antes de tudo, o deslumbramento diante de Deus, a quem
o crente se entrega confiantemente. Como diz Paul Tillich, o
teólogo, ao contrário de outros pesquisadores, não pode se
distanciar do seu objeto pesquisado, está envolvida nele numa
atitude de comprometimento com o conteúdo que expõe. O
teólogo é determinado por sua fé15. Então o discurso teológico
sem mística fica sem chão, e a mística sem o discurso teológico
fica sem ar.
A mística das comunidades primitivas tinha também um
profundo cunho extático, pois, como diz M. R. Del Genio, “a
mística cristã originariamente não era esotérica, mas extática,
e tem como fundamento Cristo morto e ressuscitado”16.
Portanto, a mística não era uma experiência reservada a uns
poucos iluminados, mas a todos os que se deixavam extasiar
pelo mistério de Cristo. O encontro com Jesus arrebatou gente
de todas as camadas sociais do império romano e forjou uma
situação que o império teve de assimilar. Mas era na reunião
litúrgica dominical que a mística manifestava o seu auge. Era
aí que se vivia o êxtase, isto é, o encantamento experimentado
no mergulho do mistério pascal propiciado por uma liturgia
que tinha sinais da liturgia celestial. Por isso é muito provável
que, diante dos tormentos do martírio, os que estavam para
ser sacrificados pela causa de Cristo encontrassem força
14
Cf. TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p.33.
15
Cf. Ibidem, p.28-29.
16
DEL GENIO, M.R. Mística. In: BORRIELO, L. et al. Dicionário de mística. São
Paulo: Loyola/Paulus, 2003. p.708.
47
Valeriano dos Santos Costa
sobrenatural cantando hinos litúrgicos. E também podemos
afirmar que os que viviam esta experiência extática na liturgia
jamais deixaram de celebrar sua fé regularmente, ao passo que
os que a perdiam desestimulavam-se e, daí, a necessidade da
insistência pastoral em relação à frequência na liturgia, o que
já aparece na Carta aos Hebreus: “Empenhemo-nos, portanto,
por entrar nesse repouso, para que este exemplo de indocilidade
não leve ninguém a cair” (Hb 4, 11). Cabe já antecipar que
este caráter da mística na liturgia foi resgatado pelo Concílio
Vaticano II.
Por fim, a mística das comunidades primitivas tinha
também um intenso caráter comunitário, pois, “além disso,
desde o início ela assume a conotação eclesial, expressa
principalmente pelo monaquismo”17. Na primeira hora, o fato
mais contundente e documentado se deu no início do século
IV, lá pelo ano 304, quando mais ou menos 40 cristãos da
Abitínia (Tunísia), enquanto celebravam a Eucaristia, foram
presos pelos soldados do imperador Dioclesiano. Resistindo
ao interrogatório, foram todos martirizados, legando-nos uma
das páginas mais belas do testemunho cristão, que vale como
um testamento místico:
O primeiro dos mártires torturados, Télica, gritou: “Somos
cristãos. Por isso, nos reunimos” [....] Vitória, uma das cristãs,
declarou: - “tudo o que eu fiz, eu o fiz espontaneamente e por
minha própria vontade. Sim eu participei da reunião e celebrei
os mistérios do Senhor com meus irmãos, porque sou cristã”. O
presbítero Saturnino, experimentando as torturas em seu corpo
foi levado diante do procônsul, que lhe disse: “você agiu contra as
ordens dos imperadores, reunindo esta gente”. Saturnino, cheio
do Espírito, respondeu ao procônsul: “simplesmente celebramos
o dia do Senhor, porque a celebração do dia do Senhor não pode
ser omitida” [....] Um outro cristão, de nome Emérito, levantouse dizendo: “eu sou o responsável, porque as reuniões foram
17
48
Ibidem.
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
celebradas em minha casa. E o fizemos porque o dia do Senhor
não pode ser omitido [...] O procônsul perguntou-lhe: “em sua
casa fizeram essas reuniões? Por que você os deixou entrar?
Porque são meus irmãos e não podia proibi-los” [....] “pois nós
não podemos viver sem celebrar o mistério do Senhor”18.
Os mártires da Abitínia preferiram morrer a renunciar ao
direito e dever de participar das reuniões litúrgicas, porque
sabiam que não podiam viver de forma isolada a mística que
lhes dava o sentido desta vida e a garantia da vida eterna. Em
outras palavras, não existe mística na liturgia sem identidade
eclesial.
Era essa mística que o Vaticano II precisava resgatar na
liturgia: uma mística que funciona como a primeira leitura
teológica da revelação e que proporciona o êxtase diante
do Mistério celebrado, engajando solidamente o fiel na
comunidade eclesial. Uma mística assim não aplica os esforços
pastorais em obrigar os fiéis a participarem da liturgia, mas
inicia-lhes na fé, de tal forma que se encantem com a liturgia
e amadureçam para a participação ativa e autodeterminativa,
tornando-se eles mesmos missionários que envolvem os outros
nessa mesma experiência fundante da fé. É, portanto, uma
mística que faz da celebração da fé uma resposta ao Cristo,
que, quando se reuniu com seus Apóstolos para a ceia, disselhes: desejei ardentemente comer esta páscoa convosco, antes de sofrer
(Lc 22,15). O antes de sofrer tem um sentido testemunhal que
representa o desafio da missão. Isso descarta totalmente uma
teologia da prosperidade que faz da liturgia um trampolim para o
enriquecimento material ou qualquer tipo de “oba-oba”. Jesus
Cristo foi muito claro com os Apóstolos a esse respeito e não
deixou de dizer em forma de experiência mística ao Apóstolo
Paulo quanto ele devia sofrer em sua missão: Eu mesmo lhe
mostrarei quanto lhe é preciso sofrer em favor do meu nome (At 9,
15). Portanto, só é capaz de enfrentar os desafios da missão, o
18
Cf. ACTA de los martires, p.75. BAC 75.
49
Valeriano dos Santos Costa
que muitas vezes se traduz em sofrimentos e angústias, quem
sabe se maravilhar diante da contemplação do Mistério que a
liturgia celebra.
Para falar do resgate dessa mística pelo Concílio Vaticano
II, convém ir à fonte onde ele começou, que é o Movimento
litúrgico. Mas antes vamos dizer umas palavras sobre a herança
litúrgica da Idade Média, pois entre a riqueza da criatividade
litúrgica da Idade Média e o advento do Movimento Litúrgico
situa-se o Concílio de Trento e a consequente uniformização
da liturgia.
Mística da Idade Média: apologia e bênçãos
A Idade Média é o período da história da Europa situado
entre a segunda metade do século V e a segunda metade do
século XV. Passado o primeiro impacto da Boa Nova de Jesus e
constituindo-se a Igreja uma sociedade reguladora no mundo,
o encantamento provocado pelo encontro com o Salvador
perde o seu vigor original. A liturgia continua sendo um lugar
criativo para se intuir essa relação mística empalidecida por
estruturas eclesiásticas que funcionavam mais de acordo com
a segurança temporal do que com a ousadia mística da fé. Foi
uma época de muita liberdade e grande variedade no campo
religioso e litúrgico, um período de intensa atividade criadora
no domínio eucológico19. Essa criatividade se expande em
duas vertentes: a vertente das apologias e a das bênçãos.
Vemos aí, embora com certo desvio, uma tentativa de se viver
o encantamento com o mistério celebrado.
O que caracteriza uma apologia é principalmente a
confissão ou acusação de pecados, em reconhecimento à
própria indignidade, sobretudo do sacerdote, diante do
mistério divino20. Pelo lado bom, as apologias manifestam a
humildade humana frente à misericórdia de Deus. No entanto,
19
BRAGANÇA. Joaquim O. Liturgia e espiritualidade na Idade Média. Lisboa:
Universidade Católica, 2008. p.109.
20
50
Cf. Ibidem, p.62-63.
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
elas caíram numa espécie de “niilismo” onde parece
que o pobre do padre que está a dizer a Missa é o mais miserável
de todos os pecadores. De fato algumas composições há, onde o
sacerdote explicitamente se declara ‘o mais celerado de todos os
cristãos’, ‘o mais miserável de todos os servos de Deus’21.
O texto mais famoso chama-se Suscipe confessionem
meam. Aparece num livro litúrgico no século IX, em Tours, e
permanece em outros livros até o século XV:
Acolhe, Senhor, meu Deus, esperança única da minha salvação,
esta minha confissão. Sinto-me perdido pela gula, embriaguez,
luxúria, sensualidade, tristeza, preguiça, sonolência, negligência,
ira, inveja, malícia, ódio, maledicência, perjúrio, duplicidade,
mentira, vanglória, leviandade, orgulho, inteiramente morto por
pensamentos, palavras e ações, bem como por todos os meus
sentidos. Mas, Tu, que justificas os ímpios e dás vida aos mortos,
justifica-me e ressuscita-me, Senhor, meu Deus.
Apesar de um movimento de oposição, que surge no
século XII, as apologias chegaram até nós, como é o caso do
Confiteor da Missa atual.
Já as bênçãos representam a dimensão religiosa mais
característica da Idade Média e constituem uma tendência
de universalizar o sagrado em todas as coisas. A relação
medieval com o sagrado era muito forte. Até pode-se dizer
que foi o período áureo da sacralização da vida. Florescem aí
muitos ritos com esse objetivo, os quais visam à santificação
das pessoas e das coisas, como o Ordo benedicendi regi, as
bênçãos dos novos abades, abadessas e, no âmbito da família,
as bênçãos das alianças, da mulher grávida, da jovem mãe,
dos recém-nascidos, como também as bênçãos dos doentes,
21
Ibidem, p.26.
51
Valeriano dos Santos Costa
peregrinos, dos campos, dos frutos, dos animais, etc22 .
Enfim, foi uma época preciosa, porém a relação com o
Mistério pautada pela culpa gera o desejo de refugiar-se no
reino do sagrado, em oposição ao profano. Isso dominou
a cultura e a fé dos cristãos e contaminou a liturgia, que,
por natureza, é por si mesma a expressão sagrada do
reconhecimento da grandeza de Deus e dos limites humanos,
lugar mais natural de se bendizer a Deus e de acolher a sua
bênção. Por outro lado, graves corrosões sofridas pela liturgia
geraram intoleráveis abusos.
Trento e a mística da uniformidade?
Sabemos que quando Lutero, no século XVI, pôs à luz
questões fundamentais sobre a Igreja e sua liturgia, havia
um ambiente desfavorável ao diálogo, tanto na Igreja como
na sociedade politicamente fragmentada. Nesse clima, uma
discussão sensata pode facilmente degenerar em anarquia.
Era preciso um Concilio forte que o impedisse. Esse concílio
foi o Concílio de Trento.
A reação do Concílio de Trento, na sua grandeza
histórica, foi demasiadamente preocupada com o controle
de tal anarquia e a universalidade dogmática da Igreja e,
por isso, instaurou e universalizou um formalismo litúrgico
rígido para a celebração dos sacramentos da fé. Desta feita, a
Liturgia era essencialmente pautada pela uniformidade ritual,
que acabou sendo mais importante do que a experiência do
Mistério. O presbítero que celebrava “direitinho” e, por isso,
era considerado piedoso, era aquele que cumpria todas as
rubricas com perfeição. Como consequência, surgiu, então,
a rubricística, que era a disciplina teológica que ensinava de
modo científico as rubricas. Foi essa disciplina que dominou a
formação litúrgica do clero.
Perguntamo-nos como se situaria São Felipe Neri (15151595), que viveu a maior parte do seu ministério antes da
22
52
Cf. Ibidem, p.28.
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
reforma de Trento. São Felipe Neri, quando celebrava a
Missa, tinha frequentes êxtases. Conforme o tempo que
dispunha para a Missa sem povo, às vezes uma manhã inteira,
combinava com o sacristão que num determinado horário o
tirasse do êxtase para terminar a Missa. Quando celebrava
com a comunidade, o sacristão colocava ao lado do missal um
livro de histórias cômicas que aconteceram com um tal padre
Arlotto. Ao sentir que o êxtase se aproximava, Filipe Neri lia
algumas pequenas histórias, ria, saía do estado místico que o
levaria ao êxtase e terminava a celebração. As pessoas nem se
davam conta, pois a missa, antes do Concílio Vaticano II, não
era versus populum. Conta-se também que era comum que dois
coroinhas puxassem-no para baixo, para continuar a Missa.
Portanto,
a uniformidade rígida que conhecemos hoje na liturgia romana
é um fenômeno relativamente recente, pois data do século XVI,
tendo como causas próximas a descoberta da imprensa e a
reforma do Concílio de Trento. Em toda a Idade Média há uma
imensa variedade nas cerimônias religiosas, de tal modo que não
é fácil encontrar dois livros litúrgicos exatamente iguais, a não
ser evidentemente dentro da mesma tradição local23.
Movimento Litúrgico e o resgate da mística
Querendo ou não, a rubricística transfere o foco da
celebração litúrgica para a validade jurídica da administração
dos sacramentos e força a liturgia a se acomodar mais no
campo da técnica do que da mística. Então, a liturgia perde
o seu encantamento e passa a ser uma tarefa de obrigação
religiosa, que, uma vez cumprida, libera o fiel para aquelas
tarefas que lhe dão prazer e alegria. Essa perda de alegria pascal
que só a liturgia pode oferecer era um elemento fundamental
que precisava ser resgatado. Aí, então, começa a ser gestado
23
BRAGANÇA, Joaquim O. Liturgia e espiritualidade na Idade Média. Lisboa:
Universidade Católica, 2008. p.62.
53
Valeriano dos Santos Costa
o Movimento Litúrgico, com a grandiosa figura de Abade
Próspero Guéranger (1805-1875). Este homem apaixonado por
Deus e pela liturgia da Igreja foi um farol que brilhou na noite
escura de sua Abadia, Solesmes, que, por sua vez, representava
a decadência da liturgia da Igreja. Solesmes estava ruindo por
fora e por dentro, pois tanto o prédio como a comunidade
estavam caindo. A reforma que Dom Guéranger empreendeu
teria parecido um ato de loucura se não fosse um ato de fé24. Foi
a descoberta das riquezas espirituais e teológicas da liturgia
romana que o ajudou a encontrar um novo horizonte na Igreja
e na vida monástica.
O abade Guéranger fez um copioso trabalho literário para
mostrar sua descoberta em torno das riquezas espirituais e
teológicas da liturgia romana. Isso está estampado em sua obra
científica: Institutions liturgiques25 e no seu precioso trabalho
de cunho menos científico e mais de divulgação, L’Année
liturgique26. Mostrando a grandeza espiritual dessa liturgia,
Guéranger propõe a volta à liturgia romana pura como fonte
de espiritualidade e de experiência de Deus. Propõe, na
verdade, uma “restauração” da liturgia romana dos séculos
IV a VII, ainda não ainda uma reforma.
Ao descobrir as riquezas teológicas e espirituais da liturgia
romana, Guéranger descobriu as riquezas da liturgia da Igreja.
Isso foi também a “descoberta do mistério da Igreja, por meio
da experiência espiritual desta mesma liturgia e da leitura
assídua dos padres, artífices das primeiras formas litúrgicas
romanas”27.
24
“Nul ne peut se douter qu’une grande oeuvre commence. Tout est humble et
misérable: les bâtiments délabrés, la petite communauté sans argent, sans éclat pour attirer
les vocations et surtout sans expérience de la vie monastique. Son supérieur de vingt-huit
ans n’en a lui-même qu’une connaissance théorique. L’entreprise paraît un acte de folie,
si elle n’est un acte de foi”. Disponível em: <http:/www.abbaeydesolesme.fr/FRhistoire/
queranger.php?js=1>. Acesso em: 10 maio 2009.
25
Institutions liturgiques. IV. Paris, 1878-1885.
26
L’Année ligurgique. IV. Burgos, 1954-1956.
27
GOENAGA, José Antonio. Vida litúrgico-sacramental da Igreja e sua evolução
histórica. In: BOROBIO, Dionísio. A celebração na Igreja, V. 1. Liturgia e sacramentologia
fundamental. São Paulo: Loyola, 1990. p.127.
54
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
O mais importante em tudo isso é que Guéranger aprendeu
também, com a própria liturgia e com os próprios padres, o que
considerou a chave da compreensão dos textos bíblicos e ações
simbólicas do culto da Igreja: a leitura cristã do Antigo Testamento
e do Novo Testamento com o apoio do Antigo28.
Como consequência, a Abadia de Solesmes passou a
apresentar a liturgia mais rica da França, atraindo centenas
de pessoas frequentemente. Era uma liturgia esteticamente
perfeita, uma lição de beleza e fé. Até hoje os CDs da liturgia
gregoriana de Solesmes são cobiçados. Paralelamente a isso, a
comunidade adquiriu um vigor que perdura até hoje. Dá para
imaginar como os meios financeiros foram aparecendo para se
restaurar o prédio, que estava ruindo.
As críticas a Guéranger de ter instaurado um esteticismo
litúrgico em Solesmes são injustas, pois a beleza é fundamental
para se fazer o aporte para Deus, e a experiência de cunho
místico que uma liturgia assim proporciona desqualificada a
crítica. Tratava-se antes de tudo da interiorização do culto da
Igreja, que não vivia seu melhor momento naquela época.
A segunda grande figura do Movimento Litúrgico foi
Dom Lambert Beauduin (1873-1960), monge beneditino da
Abadia de Mont-César, Leuven. Foi homem de ação e não
um pesquisador. Escritor famoso que deu continuidade à
obra iniciada por Dom Guéranger, ao mesmo tempo em que a
desenvolveu. A característica da sua cria é direcionar a pastoral
litúrgica nas paróquias. Quis inspirar a piedade e a vida cristã
no culto da Igreja, promoveu a participação dos batizados
na liturgia. Com Dom Lambert começa já um movimento de
reforma litúrgica e não simplesmente de restauração.
Porém, a ciência litúrgica conquista seu lugar e a reflexão
da mística na liturgia ganha o seu status com os albores da
Abadia de Maria Laach, sobretudo com a grande figura de
Odo Casel (1886-1948). Segundo o abade Salvatore Marsili,
OSB, (1910-1983), “O mistério pascal ocupou e dirigiu toda
28
Ibidem, p.127.
55
Valeriano dos Santos Costa
a sua pesquisa e toda a sua vida, até marcar também a sua
morte. Com efeito, ele morreu na Páscoa de 1948, quando
entoava o ‘precônio pascal' Exultent divina misericórdia”29. No
entanto, Juan Javier Flores afirma: “No dia 28 de março de
1948 sofreu um infarto enquanto estava entoando o Lumen
Christi da vigília pascal, e morreu na manhã de Páscoa”30.
Foi a teologia do mistério que envolveu a vida deste grande
homem dedicado totalmente à pesquisa da liturgia da Igreja
e descobriu nela o “mistério” que faz das nossas celebrações
uma experiência profundamente mística. O privilégio de
morrer na Páscoa sela de forma especial nosso nascimento
para Deus e nos configura ao Ressuscitado, que nos preenche
com sua presença e seu amor já na liturgia terrena. Odo
Casel31 recupera aquilo que na Igreja antiga era natural, isto
é, a presença memorial da obra salvífica de Cristo em seus
mistérios32. É justamente daí que o Vaticano II vai recuperar
a mística na liturgia, mediante a qual sentimos e somos de
fato atingidos pela mesma salvação que se manifestava na
comunidade apostólica. É essa mística que nos faz perceber a
presença viva do Ressuscitado interagindo com a assembleia
e com cada participante do começo ao fim da liturgia, como
interagiu na liturgia dos discípulos de Emaús. Naquela
Eucaristia dominical narrada por Lucas, o relato é tão plástico
que nos faz sentir caminhando com eles e sentados à mesa
para a fração do pão. Isso nos leva a pensar também que na
mística da comunidade primitiva, auxiliada por uma liturgia
onde reinavam a fé e o essencial, e nada faltava desse essencial,
todos em volta da mesa sagrada, olhando-se como irmãos,
depois que terminava a celebração, era possível que um
29
MARSILI, S. Teologia da celebração da eucaristia. In: AA.VV. A. A eucaristia,
teologia e história da celebração. São Paulo: Paulinas, 1986. p.60. nota de rodapé nº 60.
30
p.162.
FLORES, Xavier. Introdução à teologia litúrgica. São Paulo: Paulinas, 2006.
31
Está para ser lançado o livro O mistério do culto no cristianismo, pela Loyola.
32
Cf. MARSILI, S. Teologia da celebração da eucaristia. Op. Cit. p.61, citando à p.61
BETZ, J. Die Eucharistie in der griechischen Väter, I/1, Friburgo, 1955. p.247.
56
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
perguntasse ao outro: “você sentiu o mesmo que eu senti?”. O
outro respondia: “se você está falando da presença dele aqui
entre nós, confesso que senti. Sim, a senti tão intensa como nos
velhos tempos”.
Mais uma grande contribuição para a compreensão e a
vivência da mística litúrgica vem de Romano Guardini (18851968). Em sua obra O espírito da liturgia33, publicada no Brasil
em 1942, Guardini mostra a dimensão lúdica da liturgia,
baseada em Pv 8, 31-31: “Eu estava junto com ele como o mestrede-obras, eu era o seu encanto todos os dias, todo o tempo brincava em
sua presença: brincava na superfície da terra, e me alegrava com os
homens”. A intuição genial de Guardini foi ver nessas palavras,
justamente, a ação da liturgia, uma liturgia que encanta a Deus
e alegra o coração dos homens. A partir daí, Guardini vai mais
longe: compara a liturgia com a brincadeira de meninos, que
brincam pelo prazer de brincar34. Uma liturgia que dá prazer a
Deus e ao coração humano não pode ser uma ação rígida. Toda
ação pedagógica que não tenha como finalidade a liturgia em
si desqualifica nossas celebrações, porque indica motivações
que transformam a liturgia numa espécie de trabalho em vista
de algum interesse específico. Uma liturgia assim não tem
êxtase nem pentecostes. Diz Guardini:
Tal é a magnífica realização que a liturgia nos oferece: arte e
realidade unidas na infância sobrenatural diante da face de
Deus. Aquilo que até agora só encontrávamos {....} no mundo da
representação artística, a saber, as formas da arte como expressão
da vida humana plenamente consciente, tornou-se aqui realidade.
Mas esta vida tem algo de comum com a da criança e a da arte: é
livre de finalidade, embora plena do mais profundo sentido. Não
é trabalho, mas jogo35.
Então, com Romano Guardini está recuperada a ideia de
33
34
35
GUARDINI, Romano, O espírito da liturgia. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1942.
Ibidem, p.82.
Ibidem, p.83-84.
57
Valeriano dos Santos Costa
liturgia como um ato que dá prazer e nos envolve na alegria
que o mistério pascal trouxe para a humanidade.
Esse também deveria ser o espírito que norteasse um
Concílio que viesse a ser celebrado na Igreja. Justamente foi
este espírito que João XXIII imprimiu ao Concílio Ecumênico
Vaticano II: espírito de aprofundamento tanto da doutrina
cristã católica como da forma de enunciá-la em nosso tempo,
mas com o uso da misericórdia em vez da severidade, frente
ao erro. Para isso, convinha mostrar a validez da doutrina
em vez de renovar condenações36. Por isso a Igreja Católica
deveria “mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente,
cheia de misericórdia e bondade...”37.
O resgate da mística na liturgia a partir do Vaticano II
Coube por desígnio de Deus que o primeiro texto discutido
e aprovado pelo Concílio Vaticano II fosse a Constituição
Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. E quem
lê o discurso de abertura de João XXIII e, em seguida, o
proêmio da Sacrosanctum Concilium, parece estar lendo um
texto em continuação, como o Evangelho de Lucas e os Atos
dos Apóstolos: “O sagrado Concílio, propondo-se fomentar
sempre mais a vida cristã entre os fiéis, [....] julga ser sua
obrigação ocupar-se de modo particular também da reforma e
do incremento da liturgia”38.
A mística, enquanto nítida percepção de Deus por meio de
uma particular experiência do Mistério de Cristo, é resgatada
pelo Concílio Vaticano II e por documentos posteriores em
duas vertentes. A primeira é a assimilação das teses centrais do
Movimento Litúrgico, e a segunda, a assimilação do espírito
que João XXIII imprimiu ao Concílio.
As teses centrais do Movimento Litúrgico são encontradas
na volta à liturgia com sua beleza essencial (Guéranger), na
36
Cf. JOÃO XXIII, Discurso na abertura solene do Concílio. In: Documentos do
Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). São Paulo: Paulus, 1997. p.28.
37
Ibidem, p.29.
38
SC 1.
58
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
teologia do Mistério que opera a redenção (Odo Casel), no
espírito lúdico que conduz a ação litúrgica à contemplação
do Mistério (Guardini) e no enfoque teológico da pastoral
litúrgica (Beauduin).
A postura de João XXIII abre possibilidade para a mística
renascer na liturgia, na medida em que intui uma concepção de
Igreja que a Sacrosanctum Concilium chama de “Corpo místico
de Cristo”39 e “Sacramento de Salvação”40, expressões que
depois a Lumen Gentium vai aprofundar. Pelo fato mesmo de,
no capítulo áureo, que é o primeiro, onde se explicita a natureza
da liturgia, antes de dizer o que é liturgia, a SC procura dizer
o que é Igreja, são estabelecidas as bases para o renascimento
da mística na liturgia, pois ecclesia, no seu sentido primitivo,
era um conceito litúrgico, já que tinha a ver a com a reunião
litúrgica da comunidade. Os mártires da Abitínia preferiram
morrer a renunciar ao direito e dever de participar de tais
reuniões porque bem sabiam que, se o fizessem, perderiam
a identidade eclesial, tamanha é a importância do lugar que
a liturgia ocupa na Igreja. Lugar que é definido como “cume
para o qual se dirige a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a
fonte donde emana a sua força”41. Então a Igreja, que é uma
comunidade mística, porque nela tudo está orientado para o
transcendente, “de tal modo que nela o humano é orientado ao
divino, o visível ao invisível, a ação à contemplação, a realidade
presente à futura cidade para a qual estamos caminhando”42,
enquanto Sacramento que brota do lado de Cristo perfurado
na cruz, dá continuidade à obra da redenção, “especialmente
pelo mistério pascal de sua sagrada paixão, ressurreição dos
mortos e gloriosa ascensão”43, mistério que é essencialmente
celebrado na liturgia.
O Concílio deveria, portanto, mostrar a profundidade
39
40
41
42
43
SC 7; LG 7.
SC 2.
SC 10.
SC 2.
SC 7.
59
Valeriano dos Santos Costa
da liturgia e sua importância como obra salvífica aplicada
ao nosso tempo, em vez de emitir normas rígidas44 e renovar
condenações. Já era hora de mostrar que se participa da
liturgia não por obrigação, mas pelo prazer do encontro com o
Ressuscitado, que nos diz hoje: Desejei ardentemente comer esta
páscoa antes de sofrer (Lc 22, 15). Então, por meio da liturgia, a
Igreja generosamente oferece o que ela tem de melhor, que é
a salvação em Cristo: Eu não tenho ouro nem prata, mas dou-te
aquilo que tenho: em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e
anda (At 3,6).
Neste ponto, a SC faz uma fantástica recuperação da
sacramentalidade da liturgia, quando afirma sem rodeios a
presença de Cristo nas ações litúrgicas45. Isso significa que do
início ao fim da liturgia o Cristo é o Ator invisível que dá vida
a todos os sinais sensíveis com os quais a liturgia simboliza e
exerce a função sacerdotal de Jesus, envolvendo todo o corpo
místico, isto é, o Cristo Cabeça e a assembleia litúrgica46. Aí
acontece a comunhão entre a liturgia celeste, protagonizada
por Cristo, e a liturgia terrestre, celebrada sacramentalmente
pela humanidade, cabendo sempre a iniciativa à Cabeça,
que é Cristo, e não a nós47. Esta imagem da liturgia celeste
realizando-se na liturgia terrestre coroa a sacramentalidade
da liturgia, pois permite em todos os sinais simbólicos da
liturgia terrestre uma leitura transcendente, além de mostrar
o todo da liturgia. Por exemplo, a oração eucarística, que é
um todo, no segundo milênio, foi dissecada em suas partes e,
por isso, se deu tal destaque ao seu miolo, a consagração, que
este parece separado do resto. Segundo Cesare Giraudo, essa
mudança de metodologia pode ser comparada a “um relojoeiro
desajeitado que, querendo descobrir o funcionamento de um
relógio perfeito, desmonta-o peça por peça e não repara que,
44
45
46
SC 37.
SC 5.
SC 7.
47
Isso recorda o livro de Jean CORBON, Liturgia fundamental: misterio – celebración
– vida. Madri: Palabra, 2001.
60
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
pelo desejo ardente de compreender, imobilizou o mecanismo
que revela seus segredos”48.
A mística da participação ativa
Na metáfora do “Corpo místico” está colocada a base
teológica da participação litúrgica. Conceituando a Igreja
como um corpo místico que celebra a ação sacerdotal de
Cristo, é um pecado não envolver toda a assembleia como
num corpo físico, onde cada membro responde ao conjunto
de todos os estímulos corporais, sejam de dor ou de alegria.
Então, a partir de um conceito litúrgico que compreende a
Igreja como “Corpo Místico de Cristo”, o Concílio aprofunda
a relação entre a liturgia e a vida do dia a dia. Em outras
palavras, o que a liturgia celebra deve ser expresso também
no testemunho da fé. Isso representa o resgate da dimensão
social e transformadora da liturgia da Igreja. Ao conduzir o
culto, Cristo, o Sumo Sacerdote, traz para a terra a experiência
de uma vida sem males que estimula o compromisso dos
seus seguidores de lutar e dar suas próprias vidas por essa
causa aqui na terra, combatendo o mal, que gera injustiças e
violências. Se o corpo não fizer isso, não está em comunhão
com a Cabeça. Essa dimensão eclesial, no seu sentido pastoral,
vai ser aprofundada na Constituição Pastoral Gaudium et Spes
sobre a Igreja no mundo de hoje. Não pode haver, portanto, na
liturgia uma cabeça ativa e um corpo passivo. Daí a necessidade
também, além da eterna disposição de Cristo, das disposições
pessoais dos fiéis para o envolvimento no mistério celebrado49
e vivido cotidianamente.
Em consequência das afirmações anteriores, que são
básicas para o resgate da mística na liturgia, surge a imperiosa
necessidade de se promover a formação litúrgica em vista da
participação ativa em todos os níveis, para que todos sejam
48
49
GIRAUDO, Cesare. Redescobrindo a eucaristia. São Paulo: Loyola. 2003. p.8.
SC 11.
61
Valeriano dos Santos Costa
imbuídos do “espírito da liturgia”50. Para isso, a reforma
geral da liturgia é uma proposta de restauração da “nobre
simplicidade” do rito litúrgico (as cerimônias resplandeçam
de nobre simplicidade)51 e de adaptação do culto da Igreja
aos nossos tempos, de modo a favorecer a participação ativa
de todos os fiéis no mistério celebrado. No primeiro objetivo,
vemos o sonho de Dom Guéranger, que certamente terá
aplaudido do céu. No segundo, o desafio da inculturação
litúrgica a favor da participação mística, pois, como já dissemos,
a mística é a experiência do Mistério pela via da participação.
E isso se faz pelo caminho simbólico, que é necessariamente
cultural.
Uma mística extática e não esotérica
Se os textos e as ações litúrgicas não são acessíveis à maioria
da assembleia celebrante, então se pode falar de uma mística
esotérica, experimentada por um grupo seleto que participa
ativamente, deixando a maioria numa assistência passiva. Não
era assim que a Igreja primitiva vivia a experiência de Deus
por meio da liturgia. Sua mística não tinha nenhum caráter
esotérico, mas sim extático. A palavra êxtase significa em
primeiro plano: arrebatamento íntimo, enlevo, encanto. Então, era
uma liturgia que extasiava, isto é, enlevava e encantava, porque
conduzia ao Mistério. A mística extática engaja o místico em
todos os significados da liturgia e o leva à difícil missão de
comunicar o “indizível”. Apesar de usar o vocabulário da
teologia apofática, que tem na sua essência o caráter negativo
(Deus é indizível, inefável, inacessível, etc.), a mística extática,
aceitando que Deus se dá, ousa aventurar-se em busca de
uma linguagem que o comunique, considerando que essa
linguagem na liturgia é um fenômeno pentecostal (At 2, 1-11),
pois é uma linguagem divina, expressa pela semelhança
de línguas de fogo provindas do Céu, que se apoderam da
50
51
62
SC 14;16.
SC 34.
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
linguagem humana criando a comunicação horizontal. O
caso mais ilustrativo é a visão mística que Teresa d’Ávila teve
das três pessoas da Santíssima Trindade, durante a liturgia.
A partir daí, ela passou a exercitar com mais propriedade o
discurso sobre o dogma trinitário. Uma experiência mística
de tal ordem provoca também uma iluminação no intelecto e
produz uma linguagem que resgata o Todo nos fragmentos da
linguagem humana.
Então, podemos dizer que, desde o início, a SC busca
uma liturgia que resgate todo o potencial místico das nossas
celebrações. Para isso há de ser uma liturgia que focalize mais
a obra da redenção do que a miséria do pecador. Em outras
palavras, uma liturgia que trate da “preocupação última” do
ser humano e não das preocupações preliminares52, focalizando
a totalidade da realidade humana, a estrutura, o sentido
e o alvo da existência, ou seja, aquilo que determina o seu
destino último para além de todas as necessidades e acidentes
preliminares. É uma liturgia, enfim, que mergulha no mistério
da salvação e engaja o homem que luta entre o ser e o não
ser numa vida sem ambiguidades, que embora seja promessa
escatológica, pode ser experimentada como antecipação na
celebração do Mistério de Cristo.
Assim, os primeiros capítulos da SC são basilares para a
compreensão do resgate na mística na liturgia. Se, no dizer
de Silesius, a mística é a capacidade de ver Deus agora, a
liturgia é o lugar por excelência da mística. Ela expressa de
forma plena o mistério de Cristo e leva os fiéis a expressálo na vida. O místico é por excelência aquele que vive como
se visse o “Invisível”. Outra coisa não se busca na Liturgia
senão, por meio dos seus sinais sensíveis, o encontro com o
Ressuscitado, que desde o evento da Ascensão não se comunica
52
Por preocupações preliminares, podemos entender aqui aquilo que Guardini
chama de “ações pedagógicas” introduzidas na liturgia para chegar a outros fins que não
a própria liturgia. Em grupos de engajamento político mais consciente, a liturgia pode ser
usada pedagogicamente para conscientização política; nos grupos pastorais acontece o
mesmo, como por exemplo, a pastoral do dízimo, etc.
63
Valeriano dos Santos Costa
aos Apóstolos diretamente pelos sentidos do corpo, pois “uma
nuvem o ocultou de seus olhos” (At 1, 9). No entanto, ele está
tão presente em nosso meio como a nossa própria respiração.
É na liturgia que a sua presença se faz notável, como bem
o expressou São Leão Magno: tudo o que era visível do nosso
Redentor passou para os sacramentos da Igreja53.
Se outros documentos posteriores ao Concílio foram
necessários para se clarear o sentido da reforma litúrgica54,
é porque os capítulos finais da SC não têm a densidade dos
iniciais. E como eles são as propostas práticas do que foi
exposto no início e, não contendo uma teologia à altura, podemse esperar os problemas que enfrentamos até hoje em nossas
práticas litúrgicas. José Antonio Goenaga, que, junto com
Xavier Basurko, escreve um excelente texto intitulado “a vida
litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica”, faz
a seguinte avaliação dos números finais da SC:
Nos capítulos da música e da arte, devemos lamentar a
ausência de uma teologia da expressão artística. Os membros
das comissões e os padres sinodais talvez não tenham dado o
devido destaque à música, ao canto e à arte como atividades
simbólicas fundamentais na ação simbólica por excelência
que é a liturgia. Desse ponto de vista, esses capítulos não são
apêndices à constituição, mas partes desta.
53
Sermo 2 De Ascencione. PL 54, 398, citado por COSTA, Valeriano Santos. Viver a
ritualidade litúrgica como momento histórico da salvação: a participação litúrgica segundo
a Sacrosanctum Concilium. São Paulo: Paulinas, 2005. p.93.
54
PAULO VI. Motu próprio Sacram Liturgiam (1964). In:DOCUMENTOS do Concílio
Ecumênico Vaticano II (1962-1965). São Paulo: Paulus, 1997. p.82-88; PAULO VI. Carta
Encíclica Mysterium Fidei sobre o culto da Sagrada Eucaristia (1965). São Paulo: Paulinas, 1965.
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. A liturgia romana e a inculturação: IV instrução
para uma correta aplicação da constituição conciliar sobre a liturgia. São Paulo: Paulinas, 1994;
JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Ecclesia de Eucaharistia sobre a Eucaristia na sua relação com
a Igreja (2003). 5. ed. São Paulo: Paulinas, 2003; CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO
E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Instrução Redemptionis sacramentum sobre alguns
aspectos que se de deve observar e evitar acerca da santíssima Eucaristia (2004). São Paulo: Paulinas,
2004; BENTO XVI. Exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis sobre a Eucaristia
fonte e ápice da vida e da missão da Igreja (2007). São Paulo: Paulinas, 2007.
64
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
Lembramos aqui, ademais, que no capítulo VI pouco se diz
acerca do conteúdo daquilo que se deve cantar nas celebrações.
Aqui entra em jogo, de uma ou de outra maneira, o princípio lex
orandi lex credendi, talvez, com mais vigor do que em outras partes
da liturgia, visto que o canto é uma das mais profundas expressões
do homem. Hoje se monta com frequência “outra liturgia” sobre a
liturgia da Igreja, com os cantos incluídos em profusão. Paulo VI
afirmava, depois do concílio: o tema da música sacra “requer uma
ampla reflexão” 55.
Essas colocações nos lembram que na liturgia russa o
canto é considerado elemento indispensável. Ele comove
profundamente o povo. Sua função é fazer do nosso coração
o Templo do Senhor e do nosso espírito o seu altar. Assim, a
beleza litúrgica é uma preparação para a oração superior do
coração56.
É notório que a delicadeza e a leveza do rito reformado,
em muitas circunstâncias, não foram levadas em consideração.
Por exemplo, as rubricas da narração eucarística da Missa
manifestam claramente esta leveza a respeito do comportamento
ritual do presbítero celebrante: inclina-se levemente, toma o pão,
mantendo-o um pouco elevado sobre o altar, toma o cálice nas mãos,
mantendo-o um pouco elevado sobre o altar57. O que está em jogo
aqui não é superficial: é a mística da entrega e não do domínio
sobre o rito por meio da perfeita aplicação das rubricas. São
duas posturas antagônicas. A postura da entrega ritual implica
vivência mística do rito envolvendo corpo mente e espírito, o
conhecimento profundo do seu sentido teológico, que saberá
também não marginalizar as rubricas, uma atitude tranquila e
serena nos gestos e palavras. Já a atitude de controle rubricístico
denota muito mais uma tendência nervosa de controlar o
rito, como que a “pegar o boi pelo chifre”. Isso remonta à
55
GOENAGA, Jose Antonio. A vida litúrgico-sacramental da Igreja. Op. Cit. p.145.
56
Cf. ŜPIDLÍK, T Mística russa. In: BORRIELO, L. et al. Dicionário de mística. São
Paulo: Loyola/Paulus, 2003. p.748.
57
Missal Romano, narração eucarística dos onze formulários de missa presente no
missal brasileiro.
65
Valeriano dos Santos Costa
dificuldade do ser humano em confiar em Deus (atitude de fé)
e deixar-se envolver inteiramente pelo seu mistério (atitude
de entrega). O pecado original constitui a competição entre a
bondade do homem e a bondade do Criador, porém a bondade
humana é essencialmente ambígua. Somente a entrega a
Deus, que é a bondade sem ambiguidade, pode nos libertar da
ambiguidade. A dificuldade é atingir uma fé que represente
“o estado de ser possuído pela Presença Espiritual e aberto
à unidade transcendente da vida sem ambiguidade”58. Paul
Tillich traduz isto como “a coragem da fé”, na qual o homem
desiste da própria bondade e mergulha na bondade de Deus:
A coragem de entregar nossa própria bondade a Deus é o
elemento central na coragem da fé. Nela o paradoxo do Novo
Ser é experienciado, é vencida a ambigüidade de bom e mau, e
a vida sem ambigüidade terá se apoderado do homem através
do impacto da Presença Espiritual. Tudo isso é manifestado
através da imagem de Jesus, o Crucificado59.
Então a fé não é resultado de nenhuma função mental
humana. “Não pode ser criada pelos processos do intelecto ou
por esforços da vontade ou por movimentos emocionais”60.
Tudo isso está incluído na fé, mas ela mesma é o resultado
transcendente da nossa entrega a Deus, que se entregou
livremente por nós na cruz, para que nós nos entregássemos
livremente a ele aos pés da cruz.
Por fim, poderíamos dizer que a metáfora da liturgia
como cume e fonte da vida Igreja61 ressalta três virtudes que
não poderiam faltar para o resgate da mística na liturgia:
o silêncio, a beleza, a autoentrega. Tanto na fonte como no
cimo da montanha, o silêncio, a beleza e a autoentrega são
58
59
60
61
66
TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p.485.
Ibidem, p.557.
Ibidem, p.487.
SC 10.
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
paradigmáticos. É uma forma de mostrar que o ato litúrgico
por excelência é a sua própria comunicação. Tem de falar
por si mesmo. Essa é a intuição mais fecunda da reforma
do Concílio Vaticano II. É nessa perspectiva que podemos
entender a recomendação que faz o missal romano a respeito
do silêncio62. No filme “Antes de partir”63 há um diálogo entre
o ator protagonista, Carter, e uma mulher, que ilustra e evoca
de uma forma plástica a natureza do silêncio do cume da
montanha. O tema do diálogo é a experiência no topo do
Himalaia:
─ Eu já estive lá em cima.
─ É mesmo?
─ Durante o dia o céu é mais negro que azul. Não tem ar
suficiente para refletir a luz do sol. Mas à noite fica salpicado
de estrelas. Parecem tão próximas e brilhantes! É como se o
firmamento fosse um chão de estrelas.
─ Você ouviu?
─ Ouviu o quê?
─ Li o relato de um homem que chegou ao cume, e lá em
cima do topo do mundo vivenciou um silêncio profundo, como
se todo o som tivesse desaparecido. E foi quando ele ouviu o som
da montanha. Ele disse que foi como ouvir a voz de Deus.
Conclusão
Então, já concluindo, vamos retomar o discurso sobre o
resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano
II. A oração litúrgica deve refletir esta postura de entrega,
62
A liturgia da palavra deve ser celebrada de tal modo que favoreça a meditação;
por isso deve ser de todo evitada qualquer pressa que impeça o recolhimento. Integram-na
também breves momentos de silêncio, de acordo com a assembleia reunida, pelos quais, sob
a ação do Espírito Santo, se acolhe no coração a Palavra de Deus e se prepara a resposta pela
oração. Convém que tais momentos de silêncio sejam observados, por exemplo, antes de
se iniciar a própria liturgia da palavra, após a primeira e a segunda leituras, como também
após o término da homilia [...]. Terminada a distribuição da Comunhão, se for oportuno, o
sacerdote e os fiéis oram por algum tempo em silêncio (IGMR 88).
63
The bucked list, capítulo 17.
67
Valeriano dos Santos Costa
motivando-nos tal confiança que quebramos as nossas
resistências e, de coração alquebrado, nos deixamos pousar
nas mãos de Deus. Para isso, o rito tem de ser claro, fácil,
leve, belo e profundo. Tem de ser um convite à entrega e não
à disputa agressiva de controle, como um ato desesperado
de mostrar a bondade humana, o que impede de sermos
completamente dominados pela beleza divina que o rito
expressa. Não somos nós que devemos controlar o rito, mas ele
sim deve nos possuir e nos conduzir ao coração do mistério.
Portanto não se trata tanto de saber fazer o rito, mas de vivêlo em todo o seu potencial extático. Como diz Paul Tillich, “O
Espírito Divino aparece no êxtase do espírito humano...”64.
Sem êxtase não há transcendência, sem transcendência não há
autêntica imanência. E também não há engajamento social e
transformador a partir da fé. Sobra somente o cansaço. Aí está o
cerne do que a Sacrosanctum Concilium chama de “participação
litúrgica”65. E esse aspecto, infelizmente, abandonou a liturgia
por séculos e, graças a Deus, passou a habitar as manifestações
da piedade popular. Quando equivocadamente, no pósconcílio, foram marginalizadas as manifestações da piedade
popular e as pessoas sentiam enorme saudade, foram os
santuários que acolheram as multidões sedentas de Deus. O
Concílio bem disse que a piedade popular não perdia o seu
espaço na fé da Igreja66, mas desejava que a liturgia da Igreja
fosse sua principal fonte. Acabou que nem a liturgia renovada
conseguiu manifestar sua mística extática, nem a piedade
popular conseguiu reconquistar o seu espaço e trazer o elo da
transcendência. E o perigo está na volta ao rubricismo, senão
ao próprio rito anterior à reforma como uma forma de chorar as
64
TILLICH, Paul. Teologia sistemática, p.594.
65
A esse respeito ler COSTA, Valeriano Santos. Viver a ritualidade litúrgica como
momento histórico da salvação: a participação litúrgica segundo a Sacrosanctum Concilium.
São Paulo: Paulinas, 2005.
66
SC 9. GOENAGA, José Antonio. Vida litúrgico-sacramental da Igreja e sua
evolução histórica. In: BOROBIO, Dionísio. A celebração na Igreja, V. 1. Liturgia e
sacramentologia fundamental. São Paulo: Loyola, 1990. p.138.
68
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
cebolas do Egito. Há também o perigo de se substituir o êxtase
da liturgia por uma espécie de show ou outros modismos.
A partir dos anos 80 autores apontam falhas na
interpretação da SC, sobretudo em relação a dois textos que
mais provocaram equívocos de compreensão:
O texto e as cerimônias devem ordenar-se de tal modo, que de fato
exprimam mais claramente as coisas santas que eles significam
e o povo cristão possa compreendê-los facilmente na medida do
possível (SC 21).
As cerimônias resplandeçam de nobre simplicidade, sejam
transparentes por sua brevidade ... acomodadas à compreensão
dos fiéis e, em geral, não careçam de muitas explicações (SC 34).
Goenaga faz uma avaliação muito consciente desta
questão, afirmando que houve um enfoque exagerado ou até
equivocado na leitura desses dois textos:
As instruções conciliares de simplificação ritual eram necessárias,
para revisar uma liturgia anquilosada há séculos. Mas as
fórmulas empregadas não foram felizes ou foram objeto de malentendidos no ambiente dessacralizador do primeiro decênio do
pós-concílio. Os textos ensejaram “celebrações” descuidadas de
sua riqueza ritual, com pretensões de clareza, fácil compreensão,
adaptadas, como se dizia à capacidade intelectual dos fiéis,
didáticas em termos de fé (temáticas) e moralizantes no tocante
ao sinal religioso e humanista. Os textos citados facilitaram
a interpretação racionalista da liturgia, que prejudicou a esta
consideravelmente. Porque a liturgia é antes de tudo simbólica;
por isso, não se entende ou se explica tanto como se percebe; ela
não é tanto didática e moralizantes quanto celebrativa67.
67
p.127.
69
Valeriano dos Santos Costa
Referências
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Sacramentum Caritatis sobre a Eucaristia fonte e ápice da
vida e da missão da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2007.
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alguns aspectos que se deve observar e evitar acerca da
santíssima Eucaristia. São Paulo: Paulinas, 2004.
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e a inculturação: IV instrução para uma correta aplicação da
constituição conciliar sobre a liturgia. São Paulo: Paulinas,
1994.
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GIRAUDO, Cesare. Redescobrindo a eucaristia. São
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70
Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II
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da Igreja e sua evolução histórica. In: BOROBIO, Dionísio.
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p.907.
71
Valeriano dos Santos Costa
VERGOTE, A. Equivoques et ariticulations du sacré. In:
CASTELLE, E (ed.). Le care. Études et recerches: Actes du
Colloque internactionel de Rome, Paris, 1974.
______________________________________________________
Valeriano dos Santos Costa
[email protected]
72
A BOA-NOVA UNIVERSAL DA
SALVAÇÃO: ESTUDO BÍBLICOCATEQUÉTICO A PARTIR DE AT
10,1–11,18
Solange do Carmo
Introdução
O episódio de Cornélio ocupa lugar de destaque no livro
dos Atos dos Apóstolos. O redator lhe deu significado ímpar,
singular. Isso não é difícil de perceber, uma vez que o texto
está propositalmente colocado numa posição de destaque,
praticamente no meio do conjunto da obra.
Está claro que, aos olhos de Lucas, a conversão do centurião
Cornélio, dado o realce com que o conta (10,1–11,18), não
é um fato isolado, mas sim um fato de alcance universal,
intimamente ligado à entrada dos gentios na Igreja, como
se afirmará de modo explícito no Concílio de Jerusalém (cf.
15,7.14)1.
Não é difícil perceber que esse texto é um divisor de
águas do livro dos Atos dos Apóstolos: prepara para a grande
missão de Paulo na reunião de Jerusalém. Fica nítida essa
intenção lucana: antes da reunião, atos de Pedro; depois, atos
1 TURRADO, 1965, p.94.
Solange do Carmo
de Paulo. Lucas mostra que Pedro abriu as portas para Paulo
e legitimou sua evangelização junto aos gentios. Paulo tem
razão na fundação de comunidades mistas. Nelas, judeus e
pagãos comem juntos o mesmo pão e partilham a mesma fé
em Cristo. Pedro e Paulo estão de acordo na obra missionária.
Não há divisão entre eles. A Palavra de Deus, que age por
meio de ambos, prossegue firme sua trajetória, conquistando
os corações para o Ressuscitado.
Além da quase-centralidade do texto (que prepara At
13–15), a extensão da perícope fala muito. São dedicados a
este episódio sessenta e seis versículos (setenta e três se forem
contadas também as referências no discurso de Jerusalém
em At 15,7-9.14-18): um número bem maior que o dedicado
ao relato de Pentecostes (quarenta e um versículos) e ao da
conversão de Paulo (cinquenta e oito versículos). Do ponto
de vista da extensão da narrativa, esse relato ultrapassa em
relevância todos os outros descritos em Atos, lembrando
ainda outro dado fundamental: “A importância da história de
Cornélio na economia do livro dos Atos (10,1–11,18) se revela
pela extensão que Lucas lhe concede e pela relação estreita a
uni-la ao Concílio de Jerusalém”2.
Tamanha é a importância que Lucas dá ao texto que ele
consegue, deliberadamente, fazer de Cornélio o primeiro
gentio recebido na comunidade. Sacrificou, com isso, o
eunuco, batizado por Felipe (cf. At 8,26-40). Este não recebe
realce. Tem características mais de prosélito que de pagão:
vai a Jerusalém adorar, lê o profeta Isaías. De qualquer modo,
Lucas deixa a abertura aos pagãos para Pedro. É em Pedro que
recai a responsabilidade da iniciativa de introduzir os pagãos
na Igreja. E isso se dá no episódio de Cornélio. É bem verdade
que essa abertura já havia sido sinalizada também em Samaria
(cf. At 8,4-25), mas os samaritanos, ainda que inimigos dos
judeus, têm laços estreitos com eles devido às suas origens,
e, além disso, vangloriam-se de serem seguidores de Moisés.
2
74
DUPONT, 1974, p.78.
A boa-nova universal da salvação
Neste relato da conversão de Cornélio, porém, abre-se “uma
nova fase na história da Igreja, de amplitude muito mais
universal. Judeus e gentios, sem necessidade da circuncisão,
podem sentar-se na mesma mesa e participar juntos das
bênçãos messiânicas. Cornélio será o ponto de partida”3.
1 Composição do texto
O relato de Pedro na casa de Cornélio é uma obra tecida
com extremo cuidado. Mostra a habilidade literária de Lucas,
que é exímio narrador, apresentando Jesus de acordo com as
necessidades de sua comunidade.
O relato lucano encontrado em At 10,1–11,18 traz uma
marca de seu autor: a alternância de relatos e discursos.
Os discursos constituem um artifício literário por meio do qual
o autor manifesta suas idéias, desenvolve seu ensinamento,
fortalece a fé do leitor. Distribuídos harmonicamente no
texto, representam um momento de pausa e de reflexão no
desenvolvimento dos acontecimentos, ajudando o leitor a
aprofundar o conteúdo das partes narrativas4 .
O texto é um relato com quadros vivos que facilmente se
fixam na memória do leitor. Uma narrativa é magistralmente
montada com epifanias – em que um anjo do Senhor, uma voz
vinda do céu e o Espírito atuam abundantemente, mostrando
que Deus irrompe na história, tomando a iniciativa do processo
de acolhida dos pagãos –, com encontros inusitados – em que
pagãos e gentios vão ao encontro um do outro –, com relatos
de acontecimentos – em que os expositores sintetizam a ação
de Deus – e com discursos teológicos elaborados. Cada parte
tem sua função e seu lugar no conjunto da narrativa.
Não há indícios de historicidade. Tudo indica que o texto
foi literariamente construído por Lucas com a intenção de
3
4
TURRADO, 1965, p.94.
CASALEGNO, 2005, p.56.
75
Solange do Carmo
legitimar a ação evangelizadora de Paulo entre os gentios
(a recepção dos pagãos na Igreja e a convivência com eles:
participação na mesma mesa), que vai ser tema da reunião
de Jerusalém (At 15). É notável a semelhança entre o discurso
presente em At 10,34-43 e os demais discursos de Atos, o que
confirma ainda mais a tese de que o texto é uma elaboração
caprichosa de Lucas. O traço redacional do autor transparece
claramente em toda a narrativa.
A origem do texto vem, provavelmente, de duas tradições
separadas. No começo, pode ter havido uma lenda sobre
a conversão de um centurião romano qualquer, chamado
Cornélio, pagão piedoso, provavelmente um temente a Deus,
que é aceito na comunidade por força do Espírito. Um caso
isolado, sem maiores consequências. Essa narrativa não incluía
obrigatoriamente a visão dos animais impuros.
Paralelamente, havia a convicção de que a conversão e a
recepção dos pagãos na Igreja eram obra do Espírito (cf. Felipe
com o eunuco), mas esses temas ainda não estavam atrelados
à questão dos animais impuros. Mais tarde, a problemática
dos animais impuros é incorporada à tradição para justificar a
convivência de judeus e gentios na mesma mesa.
A origem das duas narrativas seria uma coleção de ditos
e fatos sobre Pedro. Passa-se daí para uma etiologia atribuída
a Pedro, até chegar ao texto final, com traços claramente
lucanos.
Dos relatos iniciais, Lucas compõe sua obra, mostrando
seu interesse teológico. Assim, a forma atual do relato é vista
como legítima, inteira, completa, sem necessidade de maiores
preocupações com as diversas camadas que o compõem.
Quando sabemos que o texto não é um mosaico casual, mas
provém das mãos de Lucas que lhe deu o seu léxico, lhe
imprimiu seu estilo e a expressão de suas idéias, a riqueza
da coerência literária e temática da forma atual se torna
76
A boa-nova universal da salvação
legítima5.
Lucas, com seu trabalho redacional, costurou textos e
informações com seu estilo próprio, a tal ponto que esses
textos parecem ser notas redigidas por ele com sua linguagem
característica. Esse modo lucano de escrever pode ser visto
também no seu Evangelho, que tem pelo menos duas fontes –
Marcos e Q. Lucas se mostra, mais uma vez, um historiador ao
modo de seu tempo. Segundo Luciano de Samósata – escritor
do século II -, um bom historiador deve reunir a documentação
e tomar notas, mas sem grandes preocupações com a maneira
de ordenar este material. Essa preocupação é posterior, quando
se vai zelar pela unidade da narrativa e pela qualidade de seu
estilo.
Tecendo a trama de sua literatura, Lucas revestiu de
adornos relatos antigos sobre a conversão de um gentio e sobre
a convicção da entrada dos pagãos na comunidade, tornando
esse episódio uma obra do Espírito, com significado inovador.
Assim,
o relato serve agora para ilustrar uma tese teológica, isto é,
em conseqüência de uma manifestação expressa da vontade
divina, e não por iniciativa humana, os gentios foram recebidos
na Igreja sem serem submetidos às prescrições da lei judaica.
O caso de Cornélio, puramente individual, adquire assim um
alcance universal6.
Desse modo, unindo, com fins teológicos, dois relatos
distintos, Lucas provoca uma revolução religiosa: por meio
de atos de Pedro, “legitimou a recepção de pagãos na Igreja
nascente e impôs a convivência com eles e a participação de
todos na mesma mesa, sobretudo na eucaristia”7.
5
6
7
LUKASZ, 1993, p.28.
DUPONT, 1974, p.79.
COMBLIN, 1988, p.194.
77
Solange do Carmo
2 Recursos literários
Para melhor compreensão de sua mensagem, Lucas
usa diversos recursos interessantes. Estes estão presentes
em seus escritos, ou em um deles, de forma macro visível.
Nas perícopes, eles são minimizados, mas continuam ali,
anunciando a presença do escritor.
O primeiro recurso não é estranho a Lucas. Vez por outra,
ele aparece em seus escritos. Lucas faz um relato ordenado
e sucessivo em fase distinta. É a “assincronia de episódios
sincrônicos”8. Os fatos estão acontecendo ao mesmo tempo,
mas Lucas relata-os um após o outro, dando a cada um deles
um tempo especial. É o caso da atividade missionária de Pedro
e Paulo, que se desenvolve nos mesmos anos, mas a de Paulo
só é narrada depois de Pedro sair de cena. Quem conhece
minimamente o Evangelho lucano percebe isso no relato da
missão de João Batista e de Jesus. Lá também, Jesus só entra
em cena depois que João foi decapitado e saiu definitivamente
do cenário da pregação.
Na narrativa de Cornélio e Pedro, essa técnica pode ser
percebida, mas com uma particularidade. Lucas intercala
relatos que envolvem Cornélio ou Pedro, cada um por sua
vez, mas entrelaçando-os com um fio narrativo sincrônico,
que dá ao episódio uma tessitura bem confeccionada, revelada
definitivamente na trama final.
O segundo recurso é a alternância de relatos e discursos.
Todo o livro dos Atos está marcado por essa alternância. São
duas formas literárias distintas, mas bem conhecidas das
composições históricas. Por meio dos relatos, Lucas apresenta
o fio condutor do seu livro; com os discursos, faz entender seu
pensamento teológico. Casalegno afirma que “os discursos
constituem um artifício literário por meio do qual o autor
manifesta suas idéias, desenvolve seu ensinamento, fortalece
8
78
CASALEGNO, 2005, p.49-50.
A boa-nova universal da salvação
a fé do leitor”9. Lucas conta um episódio e, logo em seguida,
reforça o tema central com o discurso que põe na boca do
personagem principal.
No caso da perícope estudada, essa alternância não se
dá necessariamente só com discursos, mas também com
pequenos resumos do episódio relatado anteriormente. Cada
cena é de novo recontada pelos personagens: Pedro, Cornélio,
seus enviados, etc. são minidiscursos narrativos10, usados para
“amarrar a história”, concatenar os dados, fixar o conteúdo.
É importante perceber que Lucas não acumula cenas soltas:
concatena-as de forma lógica, interpreta-as, dando-lhes novos
significados, compondo, ao final, uma história ordenada e
coesa, sem entraves que possam impedir sua fluidez.
O terceiro recurso são as interrupções intencionais, que
deixam sempre algo em suspense, motivando o leitor a ir
um pouco mais além, no desejo de ver solucionada a questão
que ficou pendente. “Uma cena fica suspensa ou põe um
problema que só será resolvido na cena seguinte"11. Isso
pode ser observado quando, em At 8,4, Lucas afirma que os
cristãos se dispersaram, exceto os apóstolos. Mais à frente, ele
retoma o texto (cf. At 11,19) dizendo que aqueles que haviam
se dispersado avançaram até diversas cidades, uma delas
Antioquia, onde vai ser fundada uma importante comunidade.
Esse recurso é percebido também no episódio de Cornélio,
que fica em suspenso ao seu final. O evento será retomado no
Concílio de Jerusalém (cf. At 15,8).
Na perícope estudada, esse recurso reaparece. O que era
9
CASALEGNO, 2005, p.56.
10
Segundo Barthes, o resumo é uma citação sem a letra, ou seja, uma citação de
conteúdo (não de forma), um enunciado que remete a outro, mas cuja referência implica
em um trabalho de estruturação, já que não é literal. E ainda, multiplicar os resumos quer
dizer multiplicar as finalidades da linguagem. Por exemplo: a mesma ordem que foi dada
pelo anjo a Cornélio está dita de quatro formas diferentes: enquanto ordem dada, enquanto
ordem executada, enquanto relato de sua execução, enquanto resumo do relato de sua
execução. Logo, os destinatários são alterados: O Espírito comunica a Pedro e a Cornélio,
Pedro comunica a Cornélio, Cornélio comunica a Pedro, Pedro comunica à comunidade de
Jerusalém (e a nós leitores). Cf. BARTHES apud DUFOUR, 1976, p.143-163.
11
FABRIS, 1991, p.205.
79
Solange do Carmo
macro no conjunto do livro torna-se um micro recurso, um
detalhe – um zoom em menor escala – que pode ser percebido
no texto. Cada cena que se desenrola parece um capítulo
de novela. Deixa algo para o próximo capítulo. Estimula a
curiosidade do leitor, intriga-o com uma cena incompleta
que pede necessariamente outra. É a arte do bom escritor que
não deixa que o leitor lhe escape por falta de interesse em sua
obra.
3 O discurso de Pedro na casa de Cornélio: At 10,34-43
A perícope de Pedro na casa de Cornélio tem duplo
objetivo: descrever a evangelização dos primeiros pagãos,
na dinâmica da difusão universal da Palavra, por meio do
testemunho de Pedro, e demonstrar que os obstáculos que
estavam no caminho da missão dos gentios e de sua integração
plena na Igreja foram eliminados; logo, nada mais impede
o sadio convívio entre os cristãos de origem judaica e os de
origem gentílica.
Por causa desse duplo objetivo, o discurso de Pedro na casa
de Cornélio aparece no conjunto da perícope como o foco das
atenções. Não é à toa que ele é a parte mais estudada do texto.
É por meio dele que Lucas pretende convencer o leitor. Por
isso, já começa nos versículos 34-35 afirmando que Deus não
faz acepção de pessoas, ao contrário, a salvação que ele oferece
é para todos, qualquer que seja a nação a que pertençam.
É bom observar a posição do discurso no todo da
perícope.
a) Visão de Cornélio em Cesareia: At 10,1-8
Logo de começo, um fato surpreende o leitor. Deus aparece
primeiro a Cornélio, só depois a Pedro. Cornélio – um pagão
– é o personagem principal da cena, “o primeiro destinatário
da revelação divina”12.
12
80
FABRIS, 1991, p.208.
A boa-nova universal da salvação
Alguns códigos importantes são apresentados sobre ele:
Quem era esse homem? Onde vivia? Quais suas relações
sociais, políticas, etc? Quais os seus laços com o judaísmo?
Como era sua relação e de sua casa com Deus?
É uma característica lucana introduzir seus personagens
dando algumas informações importantes sobre eles. Isso está
presente no seu Evangelho e continua em Atos (cf. Lc 19,2; At
13,6; 19,24; 27,1 – ocupação; At 9,33 – estado físico; At 16,1; 18,2
– origem, localização; Lc 2,25; At 18,7 – piedade). Apesar de
essa ser uma característica de Lucas, nenhum dos personagens
citados acima é descrito com a riqueza dos elementos presentes
na apresentação de Cornélio, conforme segue abaixo:
•
Cesareia: esse é o lugar onde ele reside. É
a segunda cidade mais importante da Palestina para
Lucas (aparece 15 vezes nos Atos); considerada “cidade
dos gentios”, logo, um ambiente “geograficamente” e
etnicamente estranho ao judaísmo.
•
Cornélio: esse é seu nome. Dois outros centuriões
foram lembrados no Evangelho de Lucas, mas seus nomes
não são referidos (cf. Lc 7, 1-10; 23,47). Em Atos, Lucas se
lembrou do “tribuno” Cláudio Lísias (cf. At 23,26; 24,22).
Nomear é tirar do anonimato, criar familiaridade, tornar
próximo.
•
Piedade de Cornélio: ele é religioso e temente a
Deus. Ao contrário da impiedade dos pagãos, Cornélio é
reto diante de Deus e dos homens, contradizendo a primeira
ideia que se tinha dos gentios.
•
Sua casa: mulher, filhos, escravos, livres. Sua fé
é difusiva: estende-se a todos os da sua casa, que também
seguem sua devoção e piedade. A comunidade doméstica
de Cornélio mostra que o que se dá com ele não é história
de um homem só, mas de um grupo.
Características religiosas: piedoso, temente a Deus, dava
81
Solange do Carmo
esmolas, fazia orações. Cornélio é apresentado de forma
positiva, com palavras elogiosas, ressaltando sua fisionomia
espiritual, por meio de quatro características morais e religiosas.
“Era um gentio que simpatizava com a religião judaica, mas
que não aceita a circuncisão e a conseqüente obrigação da
lei”13. Temia a Deus, fazia orações, dava esmolas, etc.
Deus escolhe Cornélio para indicar-lhe o caminho da
salvação e, por isso, quando este orava, o anjo do Senhor lhe
aparece. Lucas segue o esquema de aparições: entrada do
mensageiro de Deus, saudação-convite-resposta-mensagem,
desaparecimento da visão. É importante notar que, antes
mesmo que Pedro se meta em casa de incircuncisos, o anjo de
Deus já se pôs no meio deles, quando veio até Cornélio. Isso
já indica que para Deus não existe esta separação entre judeus
e pagãos. O anjo de Deus entra em contato com um pagão,
contrariando o costume separatista. Deus viola a lei judaica.
No diálogo do anjo com Cornélio, este é chamado pelo
nome próprio, assim como Saulo (cf. At 9,4) e o judeu-cristão
Ananias (cf. At 9,10). Deus conhece Cornélio. O centurião
reage com surpresa, afinal é inaudito que o anjo do Senhor
venha até um pagão, mas, em 10,4, ele reconhece logo que é o
Senhor (kúrie).
O ponto central é a mensagem ou ordem divina. Cornélio
deve enviar mensageiros para trazer Pedro à sua casa, ainda
que nenhuma explicação lhe tenha sido dada sobre o objetivo
dessa visita. Mesmo ignorando esse detalhe fundamental,
Cornélio obedece prontamente a Deus e envia mensageiros
atrás de Pedro.
Já na primeira cena, fica eliminada a imagem negativa
que os judeus tinham dos pagãos. Nem todos os incircuncisos
são idólatras e perversos. Lucas quer equiparar circuncisos e
incircuncisos.
b) Visão de Pedro em Jope: At 10,9-16
13
82
RICHARD, 1999, p.96.
A boa-nova universal da salvação
Uma nova intervenção divina se dá. Agora, o destinatário
da mensagem de Deus é Pedro, que está em Jope, mais ou menos
a cinquenta quilômetros de Cesareia. Lucas amarra uma cena
à outra com traços cronológicos e espaciais: no dia seguinte...
enquanto se aproximavam da cidade. A hora, o lugar da visão,
o motivo de subir ao terraço (oração) fazem a ambientação
da visão (que, num primeiro momento, é chamada de êxtase).
Pedro também estava rezando, por volta do meio-dia, quando
Deus se manifesta. Não fora um sonho. Era dia pleno: hora da
clareza total.
Pedro sobe ao terraço para rezar14 e tem fome. O texto
realça que ele quis comer e, enquanto preparavam o alimento,
teve um êxtase. Tudo ajuda a criar a cena, no intuito de
mostrar que a ordem que Pedro recebe de matar e comer era
bem oportuna.
Pedro vê o céu aberto e a toalha com animais puros e
impuros. Esse é o pano de fundo da mensagem de Deus. O
céu aberto indica revelação divina (cf. Lc 3,21 – batismo de
Jesus; At 7,56 – martírio de Estevão). Vale lembrar que a visão
de Pedro tem muitos elementos em comum com o batismo de
Jesus: a oração, o céu aberto, um elemento visível, a voz. Cada
um desses eventos indica o início de uma nova atividade. No
batismo, tem início a vida pública de Jesus: Deus anuncia que
Jesus é seu filho amado, em quem põe todo seu agrado. Na
visão de Pedro, tem início a missão universal: Deus declara
a superação da lei puro-impuro, que impedia a missão aos
pagãos.
Quanto aos animais da toalha, a lista lembra a tradição legal.
Assemelha-se a Gn 1,24 (sexto dia da criação: quadrúpedes,
répteis, feras), complementado por Gn 1,20-22 (segundo dia
da criação: aves)15. Lembra também a tradição narrativa da
14
Como era costume entre os judeus. Cf. 2Rs 23,12; Jr 19,13; Sf 1,5.
15
Esta semelhança poderia ser uma forma lucana de apelar para algo que supera
a lei mosaica: a criação que é bem anterior a ela. É preciso voltar ao começo para evocar a
novidade e a credibilidade do fato. Essa prática não é estranha à Escritura. Os evangelistas
Mateus e Marcos já tinham usado esse argumento quando trataram da questão do divórcio.
83
Solange do Carmo
arca de Noé que abrigou animais puros e impuros (cf. Gn 6–9).
O relato da arca, porém, não traz listas, o que faz pensar um
conhecimento prévio de Lv 11 e Dt 14. Esta semelhança com a
narrativa da arca apresenta dados interessantes: a toalha (que
é um hapax do NT) era também a vela dos navios; a ordem
dada a Pedro lembra a frase dita a Noé sobre seus alimentos
em Gn 9,3; e, além disso, a aliança universal de Deus com Noé,
abrigado na arca, faz pensar a humanidade nova (judeus e
pagãos), abrigada na toalha da Igreja nascente.
À ordem divina, Pedro reage bem diferente de Cornélio.
Não obedece; ao contrário, protesta veementemente. “Pedro
recusa-se a comer tais alimentos, como se não conhecesse a
tradição de Jesus conservada em Mc 7,17-23, que declara
puros todos os alimentos. Pedro reage como um judeu de
estrita observância”16. A docilidade de Cornélio fica realçada
diante da obstinação de Pedro. Não é Cornélio quem deve se
converter, mas Pedro, que tem dificuldades para obedecer ao
Senhor.
O protesto de Pedro faz pensar um conhecimento prévio
das leis mosaicas descritas em Lv 11 e Dt 14. Todo judeu
conhecia essas prescrições e abominava a ideia de se tornar
impuro. Gesto louvável e conhecido por todos era o de
Eleazar e dos sete irmãos Macabeus, que preferiram morrer
a desobedecer a lei mosaica (cf. 2Mc 6,18–7,42). Além do
problema da impureza, outra questão se impõe: para comer a
carne, Pedro devia matar os animais como mandava o ritual
judaico. Porém, em caso de fome, uma exceção era prevista
(cf. Dt 12,15-27). Lucas parece ter em mente esse texto, o que
coloca seu relato em comunhão com a tradição religiosa e com
o costume do povo.
À reação de recusa de Pedro – que lembra o protesto de
Ezequiel (cf. Ez 4,14) –, a voz lembra que ele não deve chamar
de impuro o que Deus já purificou. Deus é a última instância;
Cf. Mt 19,3-9; Mc 10,2-12.
16
84
RICHARD, 1999, p.97.
A boa-nova universal da salvação
ele é o argumento mais forte. Objetivamente, não há puro e
impuro; subjetivamente, Pedro ainda faz um juízo. Pedro é
convidado a sintonizar a lei judaica à nova situação que se
apresenta. O que é proposto a Pedro na visão serve de parábola
para convidá-lo a superar algo ainda mais decisivo. O tabu
alimentar é sinal do tabu social e cultual que impede o judeu
de entrar em contato com os pagãos.
c) Encontro de Pedro com os enviados de Cornélio: At
10,17-23a
A chegada da delegação de Cornélio parece se dar enquanto
Pedro ainda está matutando o significado da visão que acabara
de ter. Com detalhes como esse, Lucas mostra a sincronia dos
fatos, que tem Deus como único mentor. Mas, se para Cornélio
a visão é clara, apesar de a manifestação ser à noite, para
Pedro a visão é obscura, mesmo sua manifestação tendo sido
em pleno dia. Pedro fica embaraçado, desconcertado diante
de ordem tão inusitada, e se põe a perguntar o que significava
o acontecido.
Os mensageiros de Cornélio já chegaram e estão à porta.
Não ousam ultrapassá-la. Não são dignos de entrar na
morada de um judeu. Mas um novo agente entra em cena para
eliminar os temores de Pedro e anular o abismo que separava
mentalidades tão distintas. O Espírito – que é mencionado sete
vezes na perícope – tem sua primeira atuação: tirar o temor de
Pedro para que vá com os representantes de Cornélio. Pedro
ainda não sabe o que vai fazer lá. Por ação do Espírito, ele
só obedece. Mais tarde lhe será dito qual a finalidade de sua
viagem a Cesareia.
No resumo feito pelos enviados de Cornélio, Lucas realça
mais uma vez as virtudes do centurião, afinal Pedro deve ser
persuadido a ir com eles. Só agora é revelado o que ele vai
fazer: irá à casa de Cornélio para anunciar a Palavra de Deus
aos pagãos. Este elemento novo que aparece na ordem do anjo
já sinaliza que Lucas quer chamar a atenção sobre o discurso
85
Solange do Carmo
de Pedro. A compreensão dessa missão, porém, é gradativa.
Lucas não desvela tudo de uma vez. Cada coisa a seu tempo.
Pedro já sabe o suficiente. Mais à frente saberá que os gentios
devem ser batizados e acolhidos na comunidade cristã.
Como sinal de acolhida da ordem divina, Pedro hospeda
os enviados pagãos na casa onde estava.
É natural, pois, que ante a ordem do Espírito Santo, Pedro não
somente receba os mensageiros, mas também que se atreva
a hospedá-los na mesma casa (v. 23), não obstante tratasse de
incircuncisos, com os quais não era lícito a nenhum judeu
estabelecer convivência17.
É a primeira aproximação entre judeus e pagãos. Pedro
toma a iniciativa de hospedar incircuncisos. Inicia-se uma
conversão social. Abrem-se as portas para a comensalidade
entre judeus e pagãos, que será efetivada na casa de Cornélio.
A ordem do Espírito para que Pedro fosse com eles sem hesitar
parece tê-lo convencido também a acolher seus visitantes.
O medo desapareceu. A superação de um temor levou à
superação de outros. Daqui pra frente, Pedro se mostra
resoluto e convencido de suas atitudes.
d) Encontro de Pedro com Cornélio: At 10,23b-33
O encontro dos dois personagens principais é a cenachave da perícope. Entrecruzam-se dois caminhos distintos
por iniciativa de Deus, que elimina distâncias espirituais,
sociais e geográficas. Nada é dito sobre a viagem. Percorrer
o caminho juntos durante todo um dia é mais que percorrer
espaços geográficos entre Jope e Cesareia: é eliminar distâncias
interpessoais entre judeus e gentios.
Pedro não vai sozinho. Leva uma delegação judeu-cristã
que servirá de testemunha dos acontecimentos, “em previsão
das censuras que seu modo de proceder poderia provocar,
17
86
TURRADO, 1965, p.96.
A boa-nova universal da salvação
como de fato sucederá (cf. 11,1-3)”18. Pedro e os seus caminham
juntos com a delegação de Cornélio. Está prefigurada a
comunidade mista, composta por cristãos de origem judaica e
gentílica, que de ora em diante será uma constante na vida da
Igreja nascente.
Cornélio não estava só à espera de Pedro. Com ele, sua
família, parentes e amigos mais próximos – Lucas prefere a
dimensão pessoal das relações mais íntimas que a dimensão
espacial de vizinhança – estavam na expectativa da chegada
daquele que lhes anunciaria a Palavra do Senhor (10,33 –
kuri,ou).
Cornélio corre ao encontro de Pedro. Lucas demonstra
ter pressa de aproximar os dois grupos. Cornélio se prostra19
diante de Pedro, revelando admiração e encantamento, pois
vê nele mais que um homem: um mensageiro de Deus, um
enviado para trazer a Palavra tão esperada.
Pedro não quer saber de prostração a seus pés. Sabe que
é um ser falível como os outros. Mostra que já sabe que o fato
de ser judeu não lhe garante proximidade maior de Deus. E
vai entrando pela casa de um gentio. Agora tem motivos para
fazê-lo. Encontrou aqueles a quem deve anunciar a boa-nova.
Parece já familiarizado com o público. Vai logo conversando
com Cornélio e dirigindo a palavra ao público pagão.
Pedro começa logo se justificando. Percebe-se a passagem
do que ele viu para o que ele concluiu. Mesmo sabendo que
a um judeu é proibido relacionar-se com um estrangeiro,
ele obedeceu, pois compreendeu que foi Deus (10,28 – ’o
qeo.j) quem lhe mostrou por meio da imagem dos animais
que a separação de povo puro e impuro estava superada. A
iniciativa da superação é de Deus. Ele eliminou as barreiras;
só resta obedecer ao Senhor. A partir desse momento, não é
possível mais distinguir entre as pessoas presentes: todos são
18
TURRADO, 1965, p.97.
19
O gesto de Cornélio, devido à sua piedade e ao seu temor a Deus, não parece indicar
uma atitude idólatra, mas consonância com um costume hebreu, um sinal de veneração e
respeito. Cf. Gn 33,3; Est 3,2.
87
Solange do Carmo
apenas ouvintes da Palavra. Colocando na boca de Pedro tal
declaração, Lucas faz ver à comunidade judaica que “o que
era antigo passou, agora tudo é novo” (2Cor 5,17).
e) Discurso de Pedro em Cesareia: At 10,34-43
O discurso é introduzido mostrando a importância daquele
momento. Pedro abre a boca e anuncia. Faz, finalmente, o que
foi fazer: anunciar a Palavra de Deus àqueles que a esperam
sedentos.
O começo da pregação de Pedro já diz o tema central do
discurso. Pedro reconhece que não há mais separação entre
judeus e pagãos, pois Deus mesmo eliminou essa distinção.
Deus não faz acepção de pessoas como Pedro pensava antes.
Mas essa declaração de que todos são aceitáveis para Deus
ainda não significa que todos são salvos. A salvação vem
por meio de Jesus Cristo, a quem Cornélio e sua família vão
abraçar, depois de acolher o querigma que Pedro lhes anuncia.
À afirmação da imparcialidade universal de Deus20, seguese necessariamente a oferta universal da salvação em Jesus
Cristo.
Pedro compreendeu não só que Deus é imparcial, mas
que ele anunciou sua imparcialidade por meio da boa-nova
da paz que Jesus veio trazer para todos. Essa paz entre os
homens e Deus, e entre um povo e outro, foi selada na morte
e ressurreição de Jesus, que é Senhor de todos. Fica aberto
o caminho para o querigma21, um minievangelho que está
20
A compreensão de Pedro acerca da imparcialidade de Deus se dá graças à misteriosa
visão da toalha com os animais, em Jope (10,11-16), aclarada pelo relato do acontecido a
Cornélio (10,20-23). Isso não quer dizer que antes Pedro estivesse convicto de que Deus faz
acepção de pessoas, afinal, como bom judeu, ele era conhecedor de Dt 10,17: “O Senhor vosso
Deus é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus grande, forte e terrível, que não
faz acepção de pessoas nem aceita suborno”. Acontece, porém, que, como todos os judeus,
Pedro participava da crença de que Deus, Senhor de todos os senhores, preferia a nação judia
a todas as outras, pois assim ele havia determinado por meio de uma aliança com este povo
(cf. Gn 17,7; Ex 19,4-6; Eclo 36,14).
21
O termo querigma, que quer dizer anúncio, diz respeito à experiência primeira que
as comunidades cristãs fizeram do evento Jesus Cristo, reconhecendo sua presença viva e
atuante no meio dos crentes.
88
A boa-nova universal da salvação
dividido em quatro partes: batismo na Judeia, ministério na
Galileia, subida a Jerusalém, mistério pascal.
Pedro cativa seu público envolvendo-o na pregação:
“vocês sabem...”. Essa não é uma novidade lucana. Em outras
ocasiões, o evangelista também usa este recurso de envolver
os ouvintes (cf. At 2,22; 26,26; Lc 24,18). Certamente os gentios
tinham contato com os judeus e a notícia sobre a vida, morte
e – quem sabe! – até a ressurreição era já conhecida por eles.
Pedro parte do pressuposto de que seu público já ouviu falar
de Jesus, de que ele não é de todo um desconhecido dos
gentios. Eles já conhecem a Palavra, pois ela se difundiu na
região, mas, provavelmente, ainda não a aceitaram como
Palavra que Deus pronunciou desde o princípio. É preciso,
no entanto, deixar claro que esta Palavra é Jesus, o ungido de
Deus. Prova disso é que Deus esteve com ele durante toda
sua vida pública e, depois de sua morte, tomou seu partido,
ressuscitando-o dentre os mortos e exaltando-o como juiz
universal. Logo, toda a vida de Jesus é obra de Deus. Jesus
de Nazaré foi ungido pelo Espírito Santo, por isso ele andou
fazendo o bem e curando a todos. Funda-se uma nova economia
da salvação – totalmente cristocêntrica –, cuja exigência agora
é aceitar o senhorio de Jesus. Cornélio e os seus são chamados
a crer no Deus de Jesus Cristo, não só no Deus monoteísta dos
judeus. O Deus dos judeus que Cornélio já temia e adorava
se apresenta com nova face: Jesus Cristo, o Nazareno ungido
por Deus, a Palavra dantes desconhecida. Nota-se aqui uma
passagem fundamental da fé monoteísta de Cornélio para a
novidade cristã, que é Jesus Cristo. Afinal, é ele quem elimina
o obstáculo entre judeus e gentios. “Ele fez de dois povos um
só” (Ef 2,14). Assim, “não há mais judeu ou grego, escravo ou
livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo
Jesus” (Gl 3,28).
Pedro passa da narrativa da vida de Jesus para a
proclamação de seu senhorio, como juiz de vivos e mortos,
e para a afirmação de que por meio da fé é que se recebe
89
Solange do Carmo
o perdão dos pecados (cf. 10,42-43). Explicitamente está
ausente o apelo à conversão, mas o contexto leva a crer que a
afirmação tem esse tom de convite, já que a fé e a conversão
andam juntas na Escritura, especialmente em Atos (cf. 2,3741). Os discursos são anúncio do perdão. Terminam sempre
com o apelo à conversão e a oferta do dom do Espírito Santo.
Não obstante Cornélio e os demais ouvintes serem tementes
a Deus, piedosos, e praticarem a justiça, a conversão continua
sendo uma necessidade para todos. Mas a ausência explícita
do apelo pode significar que esse passo já foi dado. Resta
agora aderir a Jesus por meio da acolhida do seu Espírito. É o
próximo passo.
f) Descida do Espírito Santo e batismo dos pagãos: At
10,44-48
Nem bem Pedro terminara de falar aquelas palavras,
o Espírito, causando espanto geral nos judeus-cristãos que
acompanhavam Pedro, desceu sobre todos os que acolheram
a Palavra anunciada.
Alguns estudiosos vão entender essa descida do Espírito
como uma interrupção do discurso petrino22. Ao analisar o
discurso, essa ideia, no entanto, não prevalece, uma vez que
– como já foi visto – Lucas dá começo e fim à mensagem que
queria pôr na boca de Pedro. Uma coisa, porém, é certa: “Foi
perdendo a palavra de verdade que Pedro encontra a verdade
da palavra”23. Ao perceber a descida do Espírito sobre os
pagãos, Pedro, de fato, compreende a verdade da mensagem
que ele próprio acabara de anunciar: “Deus não apresenta
parcialidade”. A vida de Jesus entregue por todos é prova
disso.
22
Fabris diz: “O relato de Lucas leva a entender que a irrupção do Espírito sobre
os pagãos que escutam a Palavra acontece de modo inesperado, truncando até o discurso
de Pedro” (FABRIS, 1991, p.215). Saout afirma: “O discurso de Pedro foi interrompido pela
ação de Deus” (SAOUT, 1991, p.247). Storniolo escreve: “Pedro é interrompido. Novamente
a iniciativa de Deus: o Espírito desce sobre os que ouvem a Palavra” (STORNIOLO, 1993,
p.101).
23
MARIN apud. SAOUT, 1991, p.247.
90
A boa-nova universal da salvação
A presença do Espírito, derramado em Cornélio e nos seus,
é um argumento irrefutável. Todo o grupo de Cornélio foi
impregnado pelo Espírito. O grupo que acompanhava Pedro
percebe a profundidade desse acontecimento. A primeira
reação é de espanto, susto. Aos pagãos, sem necessidade de
passar antes por Moisés, é concedido o dom de Deus: eles falam
línguas estranhas – como os discípulos no dia de Pentecostes
(cf. 10,44; 11,15) – e glorificam a Deus.
Pedro não sabe mais o que fazer a não ser admitir que o
Espírito é superior a ele e às normas que ele segue. “Não há
dúvidas de que esta nova intervenção do Espírito foi também
para Pedro um claro sinal de qual era a vontade divina,
obrigando-o mais e mais a dar o grande passo em relação aos
gentios”24. Pedro não está disposto a ser atrevido. Ao contrário,
prefere a submissão da fé. Então manda batizar os que já
haviam sido plenificados pelo Espírito, como sinal da pertença
destes à comunidade cristã. “Cornélio não é praticamente mais
que um objeto que Deus toma para convencer Pedro da idéia
fundamental... o convertido não é Cornélio, mas Pedro”25.
A partir dessa mudança, Pedro é convidado a se hospedar
com os pagãos. Agora, todos são irmãos, batizados em Cristo
Jesus, selados por seu Espírito. Não há mais nada que os separa.
Nada é mais forte que o laço fraterno que o próprio Deus criou
entre eles. Com a ação decisiva de Deus na história, Lucas
atinge seu objetivo: a introdução oficial dos pagãos na Igreja,
eliminando todo obstáculo que separava judeus e gentios.
18
g) Encontro e discurso de Pedro em Jerusalém: At 11,1-
Mais um encontro no episódio de Cornélio. Já é o terceiro
que Lucas narra. Este, porém, tem um teor diferente. Quer
mostrar que o conflito entre judeus e pagãos achou uma
solução definitiva em Jerusalém.
24
25
TURRADO, 1965, p.101.
DIAS MATEOS, 1992, p.162.
91
Solange do Carmo
Os problemas e as interrogações surgidas nas cenas
precedentes são resumidos e resolvidos de forma oficial. Isso
só poderia acontecer em Jerusalém, na Igreja central, de onde
partiu a missão de Pedro, onde residem os apóstolos, isto é,
os representantes autorizados e o núcleo histórico originário
da comunidade cristã26.
O capítulo 11 começa dando pistas de que, depois
do evento na casa de Cornélio, a Palavra de Deus (11,1) se
difunde entre os pagãos. Mas a notícia chega a Jerusalém
e, quando Pedro vai até lá, os cristãos de origem judaica se
põem a questioná-lo a respeito do evento acontecido na casa
de Cornélio, especialmente acerca de sua entrada na casa dos
pagãos e do fato de Pedro ter comido com eles (cf. Lc 15, 2). É
natural essa reação da comunidade cristã de Jerusalém (v. 1-3).
O que fora realizado por Pedro era algo totalmente diferente
da prática evangélica assumida até então. Explicitamente, o
que se reprova é a entrada na casa de incircuncisos e o fato
de comer com eles. Mas, nesta objeção colocada pelos irmãos
de Jerusalém, está implícita a evangelização dos pagãos e
seu batismo27. Afinal, a entrada de Pedro na casa de Cornélio
não teve outro fim a não ser o de anunciar para aqueles que
o aguardavam a boa-nova que Deus lhe ordenara. E, como
consequência desse anúncio, só se podia esperar a conversão,
a fé e o batismo, que é o sinal da adesão a Cristo.
Pedro começa sua defesa com a recordação de sua visão
dos animais puros e impuros, e não com a visão de Cornélio.
Logo no início introduz o tema da pureza legal no intento de
quebrar as barreiras que se impõem sobre o tema no judaísmo.
A visão é recordada com detalhes. Nada pode ficar esquecido.
Tudo deve ser dito minuciosamente para que seus opositores
26
FABRIS, 1991, p.216.
27
É bom lembrar que nem todo exegeta concorda com esta afirmação. Cf. LUKASZ,
1993, p.186, nota 44.
92
A boa-nova universal da salvação
percebam que esta foi uma iniciativa de Deus e que ele fora
mero instrumento do Espírito neste processo da acolhida dos
pagãos. Afinal, “Pedro havia sido guiado a cada passo por Deus,
e não ter batizado Cornélio e os seus teria sido desobedecer a
Deus”28. Era preciso deixar isso bem claro para seus ouvintes.
Uma vez narrado o episódio, Pedro evoca o testemunho dos
seus companheiros de viagem. Ele tem álibis a seu favor. Não
estava sozinho na aventura de acreditar na ordem do Espírito
que o impulsionava a acolher os pagãos.
Só depois de expor todo o acontecido em Jope e do seu
encontro com o centurião, ele se reporta à visão de Cornélio,
que também recebera um enviado divino – um anjo.
Narradas as visões, Pedro parte para o acontecimento
apoteótico que se deu em Cesareia: a descida do Espírito sobre
os pagãos, logo após eles terem acolhido o querigma. E de
novo a pergunta retórica acerca da oposição possível à ação
de Deus. Lucas quer reafirmar que, uma vez que Deus decidiu
acolher os pagãos e dar-lhes o dom do Espírito, nada mais
resta a fazer a não ser aceitar a decisão divina.
Ao ouvirem a argumentação de Pedro, os irmãos se
aquietam: sossegam seus corações, apaziguam seus temores,
deixam Deus conduzir a história. E são até capazes de se alegrar
porque “Deus concedeu também aos pagãos a conversão
que leva à vida” (11,18). Cornélio e os seus são “primícias”
dos gentios (cf. Rm 16,5; 1Cor 16,15). Estão definitivamente
abertas as portas da Igreja para os pagãos. Está justificada a
prática paulina de evangelizar e acolher os pagãos, formando
com eles uma comunidade fraterna, sem distinções baseadas
numa antiga lei, que, por obra de Deus, já foi superada.
4 Temas principais
De um exame preliminar, saltam aos olhos alguns temas
relevantes que terminam desembocando no mais importante
28
TURRADO, 1965, p.103.
93
Solange do Carmo
e central deles: Jesus Cristo29.
a) Deus não apresenta parcialidade
Desde o começo, ênfase especial é dada a esse tema. Ao
descrever o transe de Pedro, Lucas afirma que ele ouviu uma
voz – identificada imediatamente em At 10,14 como voz de
Deus (ku,rie) – que lhe dá uma ordem de matar e comer os
animais que ele vê em êxtase. Imediatamente, Pedro responde
mostrando que ele reconhece a imparcialidade de Deus, pois,
em qualquer nação, qualquer um que o teme e faz o que é reto
é aceitável para ele (10,34-35). Mais à frente, no versículo 36,
Jesus é dito como Senhor de todos e, no versículo 42b, Pedro
declara que ele foi nomeado por Deus como juiz de vivos e
mortos. A universalidade da salvação é mais uma vez enfocada
no versículo 43b, na afirmação contundente de que todo aquele
que crê em Jesus recebe o perdão dos pecados por meio de
seu nome. No versículo 45, nova alusão à imparcialidade de
Deus: ele derramou o dom do Espírito Santo também sobre os
gentios.
b) Deus tem a total iniciativa
Em todo o texto, salta aos olhos a iniciativa de Deus,
especialmente nas duas teofanias iniciais. Na visão de Pedro,
essa iniciativa divina é ressaltada no versículo 20, com o perfeito
do verbo enviar (avpe,stalka), que não deixa dúvida alguma
quanto à definitividade da decisão. Deus mesmo enviou
aqueles homens a Jope para levar Pedro até Cesareia. No v. 33,
o perfeito volta dando de novo o mesmo sentido. Desta vez,
com o verbo ordenar (prostetagme,na). Pedro deve proclamar a
todos que o aguardavam na casa de Cornélio tudo aquilo que
o Senhor ordenou que ele dissesse. Não há dúvidas de que se
trata de uma ordem de Deus. Algo definitivamente decidido e
que não tem volta. Resta a Pedro obedecer ao Senhor, que vai
à sua frente tomando a iniciativa.
29
94
LAMBRECHT, 2003, p.133-137.
A boa-nova universal da salvação
No discurso, isso também fica claro. Deus toma a iniciativa
sempre: ele enviou a mensagem ao povo de Israel, ele ungiu
Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com poder, ele esteve
sempre com Jesus, ele ressuscitou Jesus ao terceiro dia, ele
permitiu que Jesus aparecesse aos apóstolos e – quem sabe! –
foi ele quem ordenou aos apóstolos que pregassem ao povo e
dessem testemunho de Jesus Cristo.
No evento da descida do Espírito, um novo perfeito vem
realçar a iniciativa divina. No versículo 45, os fiéis circuncidados
ficam admirados, pois Deus derramou o Espírito sobre os
gentios. Um belo indicativo perfeito passivo do verbo derramar
(’ekke,cutai) mostra que a descida do Espírito Santo é iniciativa
de Deus e não esforço dos pagãos ou merecimento deles por
sua piedade. Algo que não tem mais volta foi realizado. Pedro
não tem como discutir com Deus. Não tem como voltar ao
passado. Afinal, “agindo Deus, quem impedirá?” (Is 43,10).
Iniciado o processo da parte do Senhor, ele realizará tudo que
pertence ao roteiro de acolhida dos pagãos. Os pagãos já foram
ungidos, escolhidos. Agora, é só aderir ao projeto divino.
Por meio desses três perfeitos, é possível traçar uma linha
definitiva de ação divina:
Deus
enviou
a delegação de Cornélio
até Pedro
Deus
ordenou
a Pedro
anunciar a Palavra para
Cornélio e os seus
Deus
derramou
o Espírito
sobre os pagãos
Deus age no tempo presente: nos pagãos, em Pedro,
na Igreja que acolhe seu Espírito. Sim, Deus transcende o
tempo. No passado, inspirou Isaías e os profetas, escolhendo
antecipadamente os apóstolos para serem testemunhas. No
presente, continua agindo na Igreja. E, para o futuro, designou
95
Solange do Carmo
Cristo como juiz de vivos e mortos no final dos tempos.
Passado, presente e futuro são colocados no mesmo nível sob
a tutela de Deus, que toma sempre a iniciativa.
c) Pedro e os apóstolos são testemunhas
Nem todos recebem a aparição do Senhor ressuscitado,
mas somente aqueles que Deus escolheu de antemão como
testemunhas. Essa escolha de Deus é realçada com a expressão
prokeceirotonhme,vnoij: um particípio perfeito passivo que
não deixa dúvidas sobre quem escolhe e, muito menos,
sobre o fato de que essa escolha é plena de radicalidade.
Quem são esses escolhidos? Que status lhes é conferido? Os
escolhidos são aqueles que comeram e beberam com Jesus,
e receberam a função de testemunhar tudo o que ele fez. E,
sendo duplamente testemunhas – do Jesus terrestre (10,39a) e
do Cristo ressuscitado (10,41a) –, agora, são eles que atestam:
O enviado de Deus é juiz de vivos e mortos (10,42a). Este é
o status dos escolhidos: são designados para anunciar o que
viveram, de forma que a boa-nova chegue a todos.
d) Jesus Cristo é a boa-nova universal de Deus
Sem dúvida alguma, Jesus Cristo é o foco principal do
discurso de Pedro. Isso é tão notório que Lambrecht30 chega a
dizer que a centralidade de Jesus no discurso afeta a linguagem,
a sintaxe e o estilo do texto.
No começo do discurso, logo após Pedro declarar a
imparcialidade de Deus (10,34: Em verdade reconheço que
Deus não faz acepção de pessoas. Ao contrário, em todas as
nações, aquele que o teme e pratica [a] justiça é aceitável para
ele), Jesus Cristo é mencionado. Poderia parecer atrevido, mas
é possível pensar que até mesmo essa declaração só acontece
por causa do que vem em seguida no versículo 36: “[Deus]
enviou a palavra aos filhos de Israel, anunciando uma boa
notícia de paz por meio de Jesus Cristo, este [que] é Senhor de
30
96
LAMBRECHT, 2003, p.135.
A boa-nova universal da salvação
todos”. A imparcialidade de Deus se revela em Jesus Cristo,
Palavra de Deus31, que é Senhor de todos. Nessa Palavra, Deus
não faz distinção entre as nações. Estando sob o senhorio de
Jesus – Palavra de Deus –, não há mais espaço para divisões e
separações: todos são um em Cristo. Por ele é que vem a boanova da paz, pois ele é a paz (cf. Ef 2,14).
Esta Palavra de Deus é o divisor de águas. Só há dois povos:
aqueles que a conhecem e a aceitam, e aqueles que ainda não a
conhecem, pois não lhes foi anunciada. Para fazer esta Palavra
conhecida é que os filhos de Israel foram escolhidos. Para isso
é que Deus escolheu antecipadamente suas testemunhas.
A Palavra de Deus não é completamente ignorada pelos
pagãos. Ela se divulgou por toda a Judeia. A vida pública de
Jesus – seus feitos – não ficou no anonimato. Esta palavra,
que a princípio desponta apenas como uma notícia da qual
se ouviu falar, é personificada no versículo 37. A partir daí,
fala-se dela como alguém concreto. Ela tem um nome: Jesus
de Nazaré.
Jesus começou sua vida pública na Galileia, depois do
batismo de João. Uma vez ungido por Deus no batismo,
realizou grandes obras e sua vida mostrava que o Senhor
estava com ele. Disso, Pedro e os demais apóstolos são
testemunhas. Eles viveram com Jesus pela terra dos judeus
e experimentaram essa unção em seu ministério. Mas não foi
só isso: eles também foram com ele a Jerusalém e, assim, são
testemunhas de sua morte de cruz. Eles atestam que Deus
tomou o partido de Jesus e não deixou que seu ungido fosse
aniquilado pela morte. Deus o ressuscitou e o fez aparecer
depois de sua ressurreição aos seus, que conviveram com o
Ressuscitado e fizeram a experiência da ressurreição.
31
A expressão Palavra de Deus, neste caso, não se refere aqui ao logos pré-existente
como é dito em Jo 1, com referência somente a Jesus Cristo. É certamente algo mais amplo: a
Palavra de Deus anunciada pelos profetas, visibilizada no Filho, divulgada pelos discípulos.
Palavra que em todos os tempos interpela e exige resposta. Mas, mesmo não tendo
identificação com o logos joanino, essa Palavra não deixa de ter relação estreita com o logos.
Em Cristo, “ela se tornou audível e visível ao mesmo tempo; foi um diá-‘logo’ todo especial”
(VOLKMAN, 1992, p.43).
97
Solange do Carmo
Tendo presenciado tudo isso, os apóstolos foram enviados
a pregar e a testemunhar que ele é juiz de vivos e mortos32.
Todos estão sob seu senhorio. Até mesmo os profetas, que o
antecederam, dão testemunho dele, pois era ele o esperado.
Assim, todos que nele creem – vivos e mortos, pessoas do
passado, do presente e do futuro, pessoas de todas as nações
– recebem nele, e por ele, o perdão dos pecados que vem de
Deus. Ele é o penhor de toda redenção.
Conclusão
O texto de At 10,1–11,18 está em conformidade com a linha
geral traçada por Lucas, no conjunto de sua obra. Depois de
ter mostrado que Jesus é o evangelizador esperado desde os
tempos mais antigos e que ele faz o efetivo anúncio do reino
de Deus com sua própria vida doada, Lucas inverte os fatos:
o evangelizador será o evangelho anunciado. Ele é o próprio
reino de Deus por ele anunciado e, para participar desse reino,
a condição fundamental é acolher a ele, Palavra viva do Pai.
Essa Palavra sai da Galileia dos pagãos e vai para Jerusalém,
o centro da fé e da piedade judaica (Evangelho). De lá, ela vai
voltar aos pagãos, por meio da missão de Paulo, o apóstolo dos
gentios (Atos). Mas Paulo não está autorizado a anunciar essa
Palavra, sem que antes essa prática seja legitimada pelo líder
da comunidade cristã: Pedro. É a ele que deve ser atribuída a
iniciativa de se abrir aos pagãos.
O episódio na casa de Cornélio mostra como a Igreja se
abre aos gentios, precisando rever sua prática evangelizadora.
Baseando-se em Jesus, boa-nova universal de Deus, toda
superação é possível. Por isso, o querigma cristão é o centro
da pregação de Pedro. Em Jesus, o velho e o novo encontram
outro sentido. O Filho é o ponto de unidade entre todos os
homens33 e o motivo da superação de todo costume para se
32
Presente também em outros textos da Escritura (cf. 2Tm 4,1; 1Pd 4,5), esta expressão
logo passará para o Símbolo dos Apóstolos, expressão da fé cristã, sintetizada nos primeiros
Concílios da Igreja.
33
98
Melo lembra que “quando este Filho se faz homem, nele o Pai se revela aos homens
A boa-nova universal da salvação
acolher com firmeza a universalidade dos povos, já anunciada
desde tempos mais antigos pelos profetas.
Assim, ao descrever uma série de eventos concatenados que
se sucedem pela iniciativa absoluta de Deus, Lucas possibilita
à Igreja nascente compreender que é tempo de ruptura com
as antigas leis e de superação de práticas milenares. Afinal, o
impedimento que a Palavra encontrava para ir até os gentios
era meramente cultural e não tinha causas teológicas. Era
baseado em uma interpretação da lei e não na lei em si mesma.
Mas, em Jesus, tudo se faz novo: o conteúdo da pregação e as
práticas eclesiais. Não só o teor da pregação – cujo foco era a lei
judaica e agora coloca as lentes sobre Jesus de Nazaré – deve
ser repensado. Uma mudança estrutural é exigida para que a
Palavra de Deus continue sendo anunciada. A Igreja nascente
terá, a partir de então, de repensar não só sua catequese, seu
discurso evangelizador, mas também sua prática pastoral.
Essa é a proposta de Lucas.
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99
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MELO, Antônio Alves de. A evangelização no Brasil.
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VOLKMAN, Martin. Hebreus 4,12-13: a palavra de Deus, viva
e eficaz. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n.34, p.43, 1992.
______________________________________________________
Solange do Carmo
[email protected]
100
COMUNICAÇÕES
A RELAÇÃO ENTRE CLÉRIGOS E
LEIGOS NO CÓDIGO DE DIREITO
CANÔNICO
Jeferson Almeida de Souza
O Código de Direito Canônico promulgado em 1983 busca
apresentar uma imagem da Igreja descrita pela doutrina
conciliar. Ele é um esforço de transferir para a linguagem
canônica a eclesiologia do Vaticano II.
A relação íntima entre o Concílio e o Código é algo que
remonta à origem. Pois a intuição de reformar o Corpus vigente
das leis canônicas promulgado em 1917 e a de convocar um
Concílio Ecumênico nasceram juntas e foram anunciadas no
dia 25 de janeiro de 1959 pelo Papa João XXIII.
A mente arejada de João XXIII, percebendo os sinais
dos novos tempos, abre as janelas da Igreja com o Concílio
Vaticano II e deixa entrar a brisa suave da primavera. Embora
tenham sido simultâneos, o anúncio do Concílio e o da revisão
do Código, o trabalho desse somente foi levado a cabo tempos
depois uma vez que, para haurir as novas normas e orientações,
era necessária a conclusão do Concílio.
Dos traços marcantes da eclesiologia conciliar presentes
no Código podemos destacar:
Jeferson Almeida de Souza
- a doutrina que descreve e entende a Igreja como Povo de
Deus (LG1 2);
- a autoridade hierárquica como serviço (LG 3);
- a doutrina que apresenta a Igreja como comunhão e
estabelece as relações que deve haver entre a Igreja particular
e a Igreja universal, e entre a colegialidade e o primado;
- a doutrina segundo a qual todos os membros do Povo
de Deus participam, a seu modo, do tríplice múnus de Cristo:
sacerdotal, profético e régio;
- o esforço que a Igreja deve consagrar ao ecumenismo2.
Desse esboço geral podemos entrever como o Código
concebe a relação entre o clero e o laicato. Ela deixa de
ter o negativo aspecto de dominadores e súditos, como
anteriormente era vista, e passa a ser harmoniosa e fecunda.
O livro II do CIC3 intitulado “Do Povo de Deus”, nos
cc. 204-207, que pretendem sintetizar os pontos centrais da
eclesiologia do Vaticano II, inicia falando não da hierarquia,
como comumente era praxe, mas dos fiéis. Antes do Vaticano
II, a Igreja era compreendida como estrutura composta por
sujeitos distintos e desiguais. A nova eclesiologia recupera
o sentido profundo do batismo e destaca a igualdade
fundamental de todos os fiéis.
Os clérigos e os leigos não constituem duas classes
separadas (de dominadores e súditos, como antes se
dizia), mas são estritamente ligados entre si. Enquanto
os ministros sagrados estão a serviço dos outros
batizados que são chamados a uma colaboração ativa,
todos os fiéis, no exercício das diversas funções que
lhes são confiadas, contribuem, eficazmente, para
manifestar e incrementar a unidade do Povo de Deus.
A distinção entre clérigos e leigos é, pois, de caráter
102
1
Constituição Dogmática Lumen Gentium.
2
p.11-12.
3
Cf. Constituição Apostólica de Promulgação do Código de Direito Canônico. CIC
Sigla correspondente a versão latina Codex Iuris Canonici.
A relação entre clérigos e leigos no código de direito canônico
exclusivamente funcional que nada acrescenta ou
diminui à dignidade e à liberdade comum a todos os
membros da Igreja4.
Assim sendo, a Igreja recupera a sua imagem original
delineada no NT, na qual a comunhão precede as funções e os
cargos: “Como o corpo é um, embora tenha muitos membros,
e como todos os membros do corpo, assim também acontece
com Cristo. (...) fomos batizados num só Espírito, para
formarmos um só corpo, e nós bebemos de um único Espírito”
(1 Cor 12,12-13).
Ao falar das obrigações e direitos de todos os fiéis nos cc.
208-223, o CIC destaca a igualdade entre os clérigos e os leigos:
“Entre todos os fiéis, por sua regeneração em Cristo, vigora,
no que se refere à dignidade, uma verdadeira igualdade,
pela qual todos, segundo a condição e os múnus de cada um,
cooperam na construção do Corpo de Cristo” (c.208).
Os cânones seguintes vão na mesma linha, e o destaque é
para a comum responsabilidade pelo bem da Igreja. Unidos
pela vocação batismal clérigos e leigos devem trabalhar juntos
“a fim de que o anúncio divino da salvação chegue sempre
mais a todos os homens de todos os tempos e de todo o
mundo” (c.211).
Os cc. 224-231 tratam das obrigações e direitos dos fiéis
leigos. Tendo como pano de fundo o cap. IV da LG e o Decreto
Apostolicam Actuositatem, o Código supera aquela eclesiologia
que atribuía aos leigos uma posição passiva frente ao clero.
O CIC de 1917 dedicava aos leigos, com título próprio,
apenas dois cânones: o primeiro para declarar o direito
dos leigos de receber do clero, segundo a norma da
disciplina eclesiástica, os bens espirituais e sobretudo
os auxílios necessários para a salvação (c 682 CIC/17);
4
METTLER, Peter. Apostila de Direito Canônico I e II. Belo Horizonte: ISTA,
2009. (digit. p.25).
103
Jeferson Almeida de Souza
o segundo, para lhes proibir o uso do hábito eclesiástico
(c 683 CIC/17). Os leigos tinham uma posição de
absoluta subordinação ao clero e suas tarefas eclesiais
eram muito limitadas. Mais do que “sujeitos” de
responsabilidade e de ação, eles eram considerados
“objetos” da atividade ministerial dos clérigos5.
Na nova eclesiologia conciliar o leigo não mais é visto,
dentro da Igreja, como pertencente a uma segunda classe,
inferior aos presbíteros, aos diáconos e aos religiosos. Ele
é reconhecido e valorizado em sua idiossincrasia, em sua
condição peculiar de estar na “secularidade”. Assim diz a
Lumen Gentium:
É própria e peculiar dos leigos a característica secular.
(...) Por vocação própria, compete aos leigos procurar
o Reino de Deus tratando das realidades temporais e
ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é,
em toda e qualquer ocupação e atividade terrena, e nas
condições ordinárias da vida familiar e social, com as
quais é como que tecida a sua existência. São chamados
por Deus para que, aí, exercendo o seu próprio ofício,
guiados pelo espírito evangélico, concorram para
a santificação do mundo a partir de dentro, como o
fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros,
antes de mais pelo testemunho da própria vida, pela
irradiação da sua fé, esperança e caridade6.
A ação pastoral dos leigos na cotidianidade não é uma
delegação da Hierarquia. Eles não são intermediários entre a
Igreja e o mundo, eles são parte integrante da Igreja e a missão
deles brota da comum vocação batismal.
No c. 228, ao falar da cooperação dos leigos junto aos
5
6
104
Ibid., p.28.
LG 31.
A relação entre clérigos e leigos no código de direito canônico
Pastores, a motivação não é suprir a falta de ministros ordenados.
Essa é uma cooperação de cunho eminentemente teológico,
pois a edificação do Corpo de Cristo é responsabilidade de
todo batizado. Além da ampla participação e colaboração dos
leigos nas ações litúrgicas, catequese, missão..., a eles cabe
também, segundo o c. 129§2, a colaboração no exercício do
poder de governo. E essa possibilidade não se restringe aos
homens, mas também se estende às mulheres. Elas, segundo
o Código, podem exercer os cargos de notário, chanceler, juiz
auditor, etc., que implicam uma efetiva participação no poder
de governo da Igreja.
Do exposto, concluímos que superada a eclesiologia
que via a Igreja como sociedade desigual na qual o clero era
senhor e o laicato súdito, o Direito Canônico, alicerçado na
eclesiologia do Vaticano II, apresenta uma relação harmoniosa
e fecunda entre os leigos e os ministros ordenados. A hierarquia
presta um serviço a Igreja que é Povo de Deus. Nela a grande
dignidade se fundamenta no batismo, ele nos iguala a todos
perante Deus.
______________________________________________________
Jeferson Almeida de Souza, Sch.P.
[email protected]
105
NATUREZA HUMANA E PECADO
Artigo desenvolvido pelo Grupo de estudos teológicos:
Ismail Lisboa de Miranda, Jonathan Alex da Costa, Luiz Antônio
Maciel, Rodrigo Alves Ferreira e Wander de Oliveira Souza, sob a
orientação do Prof. Dr. Josimar Avezedo
Introdução
O comportamento humano é avaliado em pontos
positivos e negativos. Os pontos denominados negativos são
chamados de pecado na concepção cristã. Sempre o pecado
foi visto e tratado de várias formas. Na filosofia antiga, o
fatalismo e o dualismo impediram o aparecimento de uma
profunda consciência ética do pecado e da culpa moral no
mundo antigo. Na avaliação da existência, a tragédia grega
não considera a culpa no sentido moral e teológico, mas como
uma fatal necessidade fundada sobre a limitação da existência
humana1.
Para as religiões sobrenaturais, o pecado tem o caráter de
uma transgressão contra os poderes do mundo superior, que
reagem punindo até as perturbações involuntárias da ordem e
impondo ritos externos de expiação. Para as religiões mágiconaturais, o pecado é entendido como transgressão às regras
mágicas ou como infração à ordem da comunidade. Quanto
às religiões politeístas, o pecado é uma ofensa aos deuses e
requer uma expiação cultural2.
1
2
Cf. FRIES, 1970, p.181.
Cf. FRIES, 1970, p.183-185.
Natureza humana e pecado
O primeiro testamento não fala teoricamente sobre a
natureza do pecado; antes, mostra-o de modo concreto, como
uma força que opera na história do povo eleito e de toda a
comunidade. A essência do pecado, para a comunidade do
primeiro testamento, está no pecado original que vem de
Adão e que consiste na falsa autoafirmação do homem e na
desobediência a Deus. Os profetas consideram como pecado
as faltas interiores de orgulho, desobediência e ingratidão,
se bem que no primeiro plano apareça claramente o caráter
exterior da ação em favor do caráter subjetivo e interior de
pecado; também a formação de um claro conceito de culpa,
o qual não pode ser separado do conceito de pecado. A
visão teológica do pecado em relação a Deus corresponde à
fragilidade humana. As religiões monoteístas complementam
dizendo: vê-se no pecado mais uma transgressão e uma falta
objetiva quanto à ordem estabelecida do que a má disposição
subjetiva3.
Jesus Cristo e a comunidade primitiva não ofereceram
nenhuma dissertação sobre a natureza do pecado. Já o
cristianismo o define como um comportamento humano,
fundamentalmente negativo. Pecar é dar as costas a Deus,
criador, afastar-se da fonte da vida e, por conseguinte, colocarse num estado de carência. A escolástica diz que a natureza do
pecado está constituída pelo afastamento da lei divina e pela
perda de um bem maior. Em linhas pastorais, o pecado está na
raiz do comportamento, no núcleo central da pessoa, naquilo
que a Bíblia chama de coração e não podemos esquecer que o
pecado tem uma natureza religiosa. Podemos dizer que pecar
é violar a aliança, trair o amor e afastar-se da comunidade dos
irmãos. Em última instância, o pecado é o contrário do amor4.
1 Conceito de Natureza Humana
Sobre o conceito de natureza humana existem duas posições
3
4
Cf. FRIES, 1970, p.186-188.
Cf. FRIES, 1970, p.190-194.
107
Grupo de estudos teológicos
clássicas. De um lado encontramos autores como Rousseau e
Kant, que postulam uma possível natureza humana, e de outro
lado autores como Sartre, que a negam. Provar empiricamente
a existência da natureza humana é uma empreitada espinhosa
e árdua que dificilmente se conseguirá demonstrar5.
Contudo, assim como Hobbes e Locke, Rousseau se
enquadra entre os filósofos modernos no grupo de esteira
contratualista. Isso significa que esses autores negam a
sociabilidade natural dos homens e fundam o Estado em bases
contratuais e convencionais. Em uma palavra, o Estado surge
pela vontade humana6.
O ponto de partida para chegarmos à condição social é o
estado de natureza, onde podemos encontrar o homem vivendo
de maneira simples, ingênua e errante pelas florestas7. Dessa
maneira, Rousseau nos apresenta uma natureza humana boa,
ainda não corrompida pela vida em sociedade. Para o filósofo,
a natureza se deteriora na medida em que os relacionamentos
vão acontecendo.
Sartre, por sua vez, nega toda essa construção hipotética.
Segundo o filósofo, o homem existe depois ele é. Não existe um
antes e um depois, apenas o momento presente8. Utilizando
um jargão de Dostoievski, Sartre nos diz que: “se Deus
não existisse tudo seria permitido”. O autor dessa maneira
condiciona a moral à existência de um Deus que seria um
critério para validá-la.
Entretanto, Kant fundamenta a moral no conceito de
homem como ser livre9. Dessa maneira, a moral não precisa
de nenhum móbil externo para justificá-la. O imperativo
categórico se impõe como uma máxima de ação que basta
por si mesma. Portanto, na formulação kantiana a moral não
carece de um Deus que a justifique. Logo, o jargão utilizado
5
6
7
8
9
108
Cf. ROUSSEAU, 1999, p.160.
Cf. ROUSSEAU, 1999, p.176.
Cf. ROUSSEAU, 1999, p.166.
Cf. SARTRE, 1978, p.6.
Cf. SARTRE, 1992, p.11-12.
Natureza humana e pecado
por Sartre cai por terra diante do ser moral de Kant, que age
por determinações internas que se transformam em uma
máxima de ação.
Voltemos à hipótese rousseauniana. O homem vivia em
um estado primitivo; como ocorreu a saída dessa condição?
Rousseau postula uma natureza humana dinâmica, não
determinada. Há na natureza humana um elemento que
possibilita a mudança – a perfectibilidade. Ela é um mecanismo
inato que só se manifestará quando surgir a necessidade.
Sendo assim, Rousseau coloca em parênteses o testemunho
bíblico do pecado original e confere à natureza humana uma
mudança gradual que marca a diferença entre os homens e os
animais.
Além de não haver nenhum determinismo na natureza
humana10, o homem vivendo em sociedade é um agente livre,
ou seja, a sua ação moral é movida pela sua possibilidade
de poder escolher. Portanto, a vida social oferece por um
lado enormes benefícios, mas por outro ela colabora para
que o homem se torne vicioso e doente. Voltar à condição
inicial não é permitido; de agora em diante o homem altera
significantemente a sua natureza e transforma a sua existência
separada de um todo social. Dessa maneira, pode-se falar
em pecado, mas, na concepção histórica rousseauniana, o
pecado é histórico e aparece somente quando surgirem os
relacionamentos humanos.
2 O perdão como resposta humana ao pecado
O pecado é uma ação humana. O pecado só existe se está
ligado a uma pessoa que em determinado momento faz uma
escolha. A noção de pecado se traduz como a tomada de
posição consciente e livre da pessoa. Mas se o pecado só existe
relacionado a uma pessoa e a uma determinada escolha, então
10
Cf. SARTRE, 1992, p.11-12. Esse conceito fica mais explícito quando percorremos as
várias obras de Rousseau. Nessa perspectiva pode-se intercalar o Discurso sobre as Ciências e
as Artes com o Discurso Sobre a Desigualdade e depois passar ao Emílio intercalando-o com
o Contrato Social e com o Discurso Sobre a Economia Política.
109
Grupo de estudos teológicos
o pecado não existe. O que existe é a pessoa, capaz de fazer
escolhas, de decidir, tomar posições. Assim o pecado pode
ser o modo de traduzir a existência de uma pessoa, pois é a
revelação do seu agir, da sua escolha, da forma como escolheu
levar sua vida11.
O homem de fato tem a missão de construir a sua
existência, a sua vida. E esta é construída não por momentos
isolados, mas como um todo. E no momento em que o homem
assume plenamente essa sua existência faz escolhas e projeta
sua existência. Surge aí o comportamento moral, que tende a
unificar a pessoa e a colocá-la em uma direção12.
O pecado é a ação humana impregnada pela maldade.
É a experiência de no processo de autoconstrução se fazer
existir, livremente, de forma má. Dois aspectos importantes
na construção dessa estrutura de pecado são: a intenção e a
liberdade; só com esses dois elementos se é possível emitir
algum juízo sobre a responsabilidade com a qual a pessoa
desenvolve seu projeto fundamental da vida13.
Todo pecado, seja ele particular ou social, exige uma
resposta por suas consequências. Na pregação de Jesus
encontramos a penitência e a conversão como respostas ao
pecado. A penitência é uma forma radical de se separar do
pecado. Já a conversão, um modo de voltar-se para Deus, exige
grande esforço pessoal e é também Dom de Deus. Enfim é a
mudança radical de direção da vida, uma mudança profunda
e definitiva14.
A parábola do filho pródigo (Lc 15, 11-32) nos mostra a atitude
de um pai diante do pecado do filho. É Deus na condição de
Pai do pecador. Deus é Pai que respeita a liberdade do filho de
ir embora, porém fica a esperá-lo e o acolhe de braços abertos.
A resposta de Deus ao pecado é o perdão e a misericórdia. A
parábola é apresentada no Evangelho como resposta de Jesus
11
12 13 14 110
RAMOS-REGIDOR, 1989, p.92.
RAMOS-REGIDOR, 1989, p.93.
RAMOS-REGIDOR, 1989, p.92.
RAMOS-REGIDOR, 1989, p.125.
Natureza humana e pecado
aos Fariseus que o repreendiam por acolher os pecadores15.
3 O pecado enquanto categoria sócio-antropológica:
desafios à espiritualidade cristã
O perdão segue sendo um dos grandes desafios da
atualidade. A violência em seus vários desdobramentos
somada à crescente onda de intolerância tem constituído um
cenário social onde os sinais de morte são evidentes, ainda que,
muitas vezes, ignorado ou camuflado. Mais que atenuar os
indícios do pecado, o cristão é desafiado, à imagem de Jesus, a
fazer-se solidário tanto com o pecador quanto com a realidade
marcada pelas ações daquele que ofende e empreender um
itinerário de conversão. Após séculos de exploração externa, a
América Latina, ainda hoje, não conseguiu superar os estigmas
do colonialismo. A desigualdade social identifica o pecado
objetivado que as Conferências de Medellín e Puebla já haviam
apontado e reclama o reavivamento da espiritualidade cristã
do perdão.
A realidade do pecado, para além de quem o pratica,
dissemina inúmeros males na sociedade em geral. Neste
contexto é válida a questão: e quando os males não são
originados propriamente pela ação maldosa de um indivíduo,
mas causados pelo individualismo, omissão, apatia
generalizados? Sobrino anuncia: “redescobrir a essência do
pecado comunitário ajudou também a redescobrir a essência e
a finalidade do perdão”16.
Viver a fé com autenticidade, dentre outras atitudes, requer
amor gratuito, gerador de liberdade e um árduo exercício
de ultrapassar o mal, ou seja, coibir as tendências a um agir
vicioso e criar espaços, situações humanizadoras capazes de
aproximar o ofendido e o pecador, reinserindo este último.
Sendo assim, não há como considerar espiritualidade cristã
se esta não for sinalizada pelo amor. A perda da amizade no
15 16 Cf. RAMOS-REGIDOR, 1989, p.125-126.
SOBRINO, 1986, p.56.
111
Grupo de estudos teológicos
mundo moderno – o rompimento do ideário de comunidade
que tem concebido relações humanas voláteis, débeis,
permissíveis à intransigência – tem desafiado não só cristãos,
mas toda a sociedade a resgatar o amor na perspectiva da
gratuidade. Diante do caos moderno, ausência de uma
compreensão honesta do mundo, restabelecer a ordem por
meio do perdão integral pode figurar uma alternativa.
Sobrino apresenta três dimensões da espiritualidade do
perdão: confrontar-se com o pecado visando à libertação;
erradicá-lo; admitir que o processo de libertação significa
destruir potencialmente o opressor. Pode-se somar a essa
tríade uma conversão sócio-humana estrutural. Tanto o
opressor deve pensar os seus atos e ser readmitido ao convívio
fraterno como a sociedade é desafiada a reestruturar-se e
promover relações mais equitativas, verdadeiros programas
de assistência aos crucificados do nosso tempo.
Não há outro tempo para a prática do amor a não ser o
cotidiano. Sobrino afirma: “a espiritualidade do perdão tem de
exercitar-se não só ao nível estrutural, mas na vida cotidiana,
onde a ofensa é mais imediata e o perdão mais ardoroso”17.
Sanar os males exige algo de que carece a modernidade:
conhecimento profundo do mundo. Sem a devida apropriação
do pecado e a lúcida inserção nos meios onde ele se manifesta,
torna-se meramente formal o perdão; dificilmente veiculará
um processo de conversão, muito menos será suficiente
enquanto indicador de solidariedade.
Mergulhar no universo do pecador e exercitar-se na
superação dos sentimentos de ódio e vingança é possibilitar
novas perspectivas, ou seja, assegurar por meio da reconciliação
o projeto de um futuro melhor, solidário e fraterno, em que as
pessoas sejam livres; enfim, é lançar bases para a edificação do
Reino de Deus.
Medellín e Puebla detectam no coração humano as raízes
do pecado. A pobreza, angústias e frustrações ilustram
17 112
SOBRINO, 1986, p.56.
Natureza humana e pecado
uma realidade impregnada de pecado18. O crescimento
populacional e o exacerbado desenvolvimento tecnoeconômico são causa dos danos ambientais; a banalização da
vida humana, corrupção e roubos são situações prementes
no atual contexto latino-americano. Como intervir? Soluções
paliativas talvez possam atenuar o problema, contudo são
insuficientes. Só comoção e admiração, tampouco, bastam.
Também seria reducionismo apelar unicamente para a
“conversão” dos países europeus e norte-americano. “Lutar
contra o pecado significa denunciá-lo, dar voz ao clamor dos
ofendidos; desmascarar o pecado, denunciando que existe a
morte e a destruição de povos inteiros”19, argumenta Sobrino,
reforçando a convicção da necessidade de perdoar a realidade,
quer dizer, reavivar a “utopia na esperança”20 e adotar ações
concretas que concorram para a realidade do Reino.
Enfim, após este trajeto, é considerável o status de liberdade
conferido ao ser humano, a responsabilidade que isso implica,
seja na predisposição às virtudes ou ao vício/pecado e seu
papel enquanto agente de transformação social, expresso na
denúncia do mal e acolhimento do pecador. “Converter o
pecador com amor supõe crer que o amor é realmente eficaz
para transformar o pecado e o pecador”21.
Conclusão
De acordo com o documento de Puebla, podemos perceber
o mal e o pecado diante da reflexão de angústias e frustrações
em que vive o ser humano. “As angústias e frustrações, se
as consideramos à luz da fé, têm por causa o pecado, cujas
dimensões pessoais e sociais são muito amplas. As esperanças
e expectativas de nosso povo nascem de seu profundo sentido
18 19
20 21 Cf. SOBRINO, 1986, p.47-48.
SOBRINO, 1986, p.49.
SOBRINO, 1986, p.50.
SOBRINO, 1986, p.52-53.
113
Grupo de estudos teológicos
religioso e de sua riqueza humana”22.
Portanto, a angústia e o pecado são fenômenos que marcam
a existência humana. Tanto a contemplação do mundo quanto
a angústia proveniente da natureza fragilizada pelo “pecado
original” podem levar o indivíduo a uma intensa autocrítica.
Frequentemente o ser humano se nega a reconhecer
Deus como sua origem. Volta e meia as circunstâncias
sociais adversas o desviam do bem e o impulsionam para
o mal. Assim, os conflitos sociais procedem da cisão dos
pecadores; os desequilíbrios de que padece o mundo atual
estão relacionados ao desequilíbrio mais básico que sofre o
ser humano; a escravidão causada pelo pecado social tem sua
origem no orgulho e no egoísmo.
O que valeu para Adão tem de valer para todo indivíduo.
A angústia é a condição necessária, mas não suficiente para a
possibilidade do pecado. A relação é de semelhança de função;
o que aconteceu a Adão também acontece ao indivíduo e a
reflexão da angústia e do pecado, bem como o seu aumento
quantitativo, não deve afetar o ser humano e instaurar uma
ordem social afastada de Deus.
O ser humano se vê imerso em uma espécie de angústia
ao perceber o modo como se está inserido no processo do mal
que assola o mundo. Cada indivíduo se insere nesse contexto
independente da posição social, cultura ou nacionalidade a
que pertence. Por um lado o pecado social afeta a todos na
sociedade e a cada um em particular, por outro se percebe
a fragilidade da natureza humana diante do pecado. A
vida humana, preciosa a todos por ser um dom de Deus, se
torna pesada, angustiante e cansativa. O colorido próprio da
natureza humana perde o brilho diante da realidade penosa
em que são obrigados a “sobreviver” povos inteiros, alheios a
qualquer tipo de esperança.
É preciso uma forte reação a essa realidade na qual
estamos mergulhados. Uma reação que só é possível pela fé
22 114
Doc. Puebla, nº 73.
Natureza humana e pecado
e pelo empenho em construir um novo modelo de sociedade,
capaz de valorizar a natureza humana e romper com o mal.
Assim o mal já não poderá destruir povos inteiros: a paz teria
mais espaço no coração humano e a liberdade já não seria um
sonho.
Referências
CONCLUSÕES da III Conferência Geral do Episcopado
Latino-Americano. Puebla: Paulinas, 1979.
FRIES, Henrich. Dicionário de teologia: conceitos
fundamentais da teologia. 2.ed. São Paulo: Atual-Loyola, 1970.
p.185-198. v.4.
KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão.
Lisboa: Edição 70, 1992.
RAMOS-REGIDOR, J. Teologia do sacramento da penitência.
Paulinas: São Paulo, 1989.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens. 2.ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. São
Paulo: Abril Cultural, 1978.
SOBRINO, Jon. América Latina: lugar de pecado, lugar de
perdão. Concilium, Petrópolis, n. 204, p.46-58, 1986/2.
115
UT UNUM SINT: o diálogo como
pressuposto para o ecumenismo
Trabalho elaborado pelo grupo de pesquisa teológica composto
por Glecimar Guilherme da Silva, Raúl Villalba Maylin, Rodrigo
Naves Batista, Victor Manuel Torales e Wagner Aparecido
Ferreira, e orientado pelo Prof. Dr. Josimar Azevedo
Introdução
Atualmente a ideia do ecumenismo está sendo muito
discutida, buscando uma maior união entre as distintas
religiões cristãs, aquelas que professam seu credo em Jesus
como o Salvador e Filho de Deus. A unidade cristã não é
puramente uma tarefa humana, mas é um dom divino e
se revela mais como mistério do que como um problema a
ser resolvido. O próprio Vaticano II afirma que a alma do
ecumenismo é a oração. Uma atitude de humildade entre as
distintas religiões e a conscientização de que a graça não é
“propriedade privada” de nenhuma delas é essencial para o
ecumenismo1.
Definindo a etimologia de ecumenismo, a palavra vem do
grego oikomene, que significa casa, estirpe, habitar... Oikomene é
a terra habitada e o mundo conhecido e civilizado. Esse termo,
a princípio, é utilizado para se referir ao império romano2.
Com o passar do tempo, vai ganhando novos significados.
1
2
Cf. BOSCH, 1999, p.214.
BOSCH, 1999, p.213-214.
UT UNUM SINT: o diálogo como pressuposto para o ecumenismo
No Concílio de Constantinopla, em 381, é utilizado pela
primeira vez pela Igreja Católica sendo chamado de Concílio
Ecumênico. Em 1846, em Londres, o pastor francês Adolphe
Monod, na primeira reunião da Aliança Evangélica, utiliza
o termo de forma mais ampla ao agradecer a iniciativa de
formar o grupo: “(...) o espírito verdadeiramente ecumênico
que haviam demonstrado (...)”3. Mas foi no século XX que se
deu novamente uma nova acepção ao termo, quando as Igrejas
divididas buscam uma relação amistosa entre si para superar
a rivalidade teológica e uma aproximação entre cristãos4.
O objetivo do presente artigo é fazer uma abordagem sobre
o diálogo ecumênico como premissa para a concretização do
ecumenismo, partindo da necessidade de busca de unidade
que está incutida na história desde o início do cristianismo.
Uma unidade que não leve a uma perda de identidade, mas que
ajude a estabelecer pontos de contatos através do diálogo.
O primeiro capítulo, intitulado “Que todos sejam um,
grito de ontem e de hoje”, busca tratar o ecumenismo a
partir de uma perspectiva bíblica; para ser mais preciso, em
Paulo e João, deste último nas cartas e no evangelho. Ambos
demonstram que desde o início houve uma busca de manter a
unidade entre as comunidades e seus dirigentes, procurando
superar as diferenças e servir ao mesmo Senhor.
O segundo capítulo, intitulado “Ecumenismo, dom para
estabelecer pontes”, aborda o ecumenismo como um dom de
Deus que ultrapassa a esfera humana. Ele não representa uma
renúncia de identidade, mas sim a união em Cristo a partir
dos dons particulares da Igreja. A função do ecumenismo é
ser criador de pontes entre os cristãos.
Finalmente, o terceiro capítulo, intitulado “A necessidade
do diálogo ecumênico”, trata da necessidade deste como
importante fator para o desenvolvimento de movimentos
ecumênicos, visando à unidade como objetivo último.
3
4
BOSCH, 1999, p.214.
BOSCH, 1999, p.214.
117
Grupo de pesquisa teológica
Na conclusão, buscando-se a visão da Igreja Católica sobre
o tema, procurou-se confrontar as reflexões com o documento
Unitatis Redintegratio, do Concílio Vaticano II.
1 Que todos sejam um, um grito de ontem e de hoje
O problema de divisão entre os cristãos remonta às
primeiras comunidades cristãs, o que nos leva a afirmar que
o ecumenismo não é uma questão que se resolva de um dia
para o outro.
Tanto as cartas de João como as de Paulo nos apresentam
comunidades bem humanas, que têm seus conflitos
principalmente entre judeus e pagãos sobre a questão do
batismo e a circuncisão. Com a intenção de dar uma solução
a esse problema, foi convocado o primeiro concílio, o de
Jerusalém. A partir desses conflitos começaram os escritos
apelando à unidade. Entre eles temos a carta de João, que tem
como finalidade manter a comunhão da comunidade com
seus dirigentes e de todos com o Pai e o Filho5.
Neste contexto de conflito, segundo Pereira (1999), aparecem
o batismo e a eucaristia. Estes seriam ritos comunitários
socialmente visíveis que comprometeriam publicamente
os discípulos com Jesus e com a comunidade, coisa que os
cristãos inconsequentes evitavam por medo aos judeus e
para não serem expulsos da sinagoga6. João, inspirado pelo
Espírito Santo, critica esses cristãos inconsequentes colocando
claramente o que implica ser seguidor de Jesus.
Ao invés de chegar à unidade surgiram pontos de
divergências mais profundos. Já não se tratava de brigas
entre judeus e pagãos, de circuncisão ou não; agora entram
problemas como a cristologia, já que os dissidentes apoiados
no quarto evangelho acentuavam a divindade de Jesus e
davam pouco valor à sua humanidade; por isso, a carta insiste
em que é preciso crer “no nome” do Filho de Deus, que é Jesus
5
6
118
PEREIRA, 1999, p.44.
Cf. PEREIRA, 1999, p.49.
UT UNUM SINT: o diálogo como pressuposto para o ecumenismo
vindo da carne, encarnado.
Os dissidentes se consideravam perfeitos e sem pecados;
surge aí outro ponto de conflito, que é a questão ética, por
isso João acentua o amor mútuo, a abertura ao irmão,
principalmente o necessitado (1 Jo 3, 17)7.
É diante dessa realidade conflitiva que João sentiu
intensamente o anseio da unidade e o expressou de uma
maneira excepcional no seu Evangelho, na oração testamentária
de Jesus8. Esse anseio pela comunhão se resume em três
capítulos (Jo 17,20-27) onde João, colocando na boca de Jesus,
expressa quatro vezes o pedido para que todos sejam um.
João colocou um modelo de unidade para a sua comunidade
que é a unidade do Pai e do Filho, mas ele tem consciência de
que a unidade só se consegue com a ação divina, mas sem
deixar de lado o esforço humano. Essa unidade que João pede
não se reduz ao místico relacionamento com Deus. A unidade
dos discípulos deve ser suficientemente visível para levar o
mundo a crer em Jesus.
“Que todos sejam um” não é necessariamente em direção
a uma unidade institucional de todas as igrejas fundindo-se
numa só, mas o que se pede é que, apesar das diferenças, não
sejam divergências tais que contraponham entre si os que
verdadeiramente creem no mesmo Senhor.
Como somos seres humanos, e o ser humano é o mesmo
através das gerações com diferentes experiências históricas, a
situação de hoje não é muito diversa da realidade vivida por
João e sua comunidade primitiva. Neste mundo globalizado e
individualista onde cada qual vive no seu universo particular,
urge a necessidade da unidade, centrada na pessoa do Senhor
Jesus à semelhança da unidade entre Ele e o Pai.
O grito pela unidade entre os cristãos expressado na
oração testamentária de Jesus segue atual e necessário. Para
que o mundo creia é urgente uma verdadeira união.
7
8
PEREIRA, 1999, p.51.
Cf. PEREIRA, 1999, p.49.
119
Grupo de pesquisa teológica
Para que de fato aconteça o ecumenismo, existem ainda
barreiras a serem superadas, a serem contempladas com mais
clareza nos seguintes capítulos.
2 Ecumenismo: dom para estabelecer pontes
O “Ecumenismo” em si mesmo é de cunho teológico,
e sob esse caráter deve se resguardar, de maneira que está
fora de contexto banalizar e atribuir a qualquer comunhão
humana o título ecumênico. Dessa maneira, torna-se utópica a
pretensão da absorção de uma instituição por outra. Ademais,
o Ecumenismo não se implantaria por meio de sincretismos,
descartando a necessidade de negar as diferenças com intuito
de reconciliação9.
A grande barreira para que de fato o Ecumenismo aconteça
está nas exigências de cunho evangélico propostas por ele
às Igrejas, de corrigirem-se a si mesmas e sujeitarem-se às
legitimidades de fé que isso implicaria. Nisso estaria o caráter
de Comunhão que sugere o Ecumenismo: deter o foco de
atenção na conversão, não do outro, senão que em primazia,
de cada Igreja em particular. Seria uma proposta para que,
de fato, as instituições compreendessem o mistério de serem
membros de um único Corpo e, com isso, sepultariam de vez a
pretensão de serem tão somente o corpo místico de Cristo10.
Ser Igreja em Cristo significa o transcender de cada “comumunião particular”. A “Nova Comunhão” proporcionaria às
Igrejas a capacidade de cooperar para com o Ecumenismo sem
renunciar à sua identidade própria, cada qual se utilizando dos
dons particulares que receberam como caminho para chegar ao
Dom Maior: a Unidade em Cristo, Dom de Deus “ex nihilo”...
É bom termos consciência de que a proposta ecumênica com
pressupostos de comunhão de maneira alguma pretende a
uniformidade, senão que segue a premissa apresentada acima:
9
10
120
Cf. BRAKEMEIER, 2001, p.208.
Cf. BRAKEMEIER, 2001, p.209.
UT UNUM SINT: o diálogo como pressuposto para o ecumenismo
a Diversidade de Dons num mesmo Corpo11.
Comunhão implica reconhecimento mútuo de dons e
também de fraquezas, dos outros e de si mesmo. Para sustentar
esse argumento nos reportamos ao Novo Testamento, modelo
instrutivo de Ecumenismo e nas comunidades primeiras, ou
melhor, na primeira comunidade cristã, Igreja que exemplifica
de modo singular a “Comunhão de Igrejas”.
Como vimos expondo, o Ecumenismo é obra mestra
de Deus, é dom e, por isso, ultrapassa a esfera humana e
eclesiástica. Dizendo assim, temos plena consciência de que,
justamente por sua limitação teológica, o Ecumenismo adquire
extraordinária abrangência12. Esse amplo caráter, intrínseco
do Ecumenismo, lhe delega a incapacidade de exclusão e
ao mesmo tempo o postulado de ser criador de pontes, não
exclusivamente a cristãos que comungam de mesma tradição
eclesiástica, senão que também se abra ao diálogo entre
pessoas de outros credos. Essa afirmativa final sacramenta
de fato que a pretensão de comunhão é a priori as iniciativas
humanas e que o Ecumenismo abarca as tentativas de diálogo
inter-religioso.
O Ecumenismo sugere também a koinonia extramuros, de
maneira que pretende fazer com que se conheçam os parentes
mais próximos e aqueles mais distantes. Essa perspectiva,
além de reforçar o caráter de inclusão do Ecumenismo,
inevitavelmente o graduaria, fazendo-nos pensar que podem
existir inúmeros graus de “comunhão ecumênica”. Ademais,
seguindo por essas sendas, vislumbramos a possibilidade de o
Ecumenismo colaborar com a construção da paz, não somente
no âmbito inter-eclesial, senão que também a nível mundial13.
O Ecumenismo, se orientado em Deus, poderá sem
encargo de consciência e sem correr o risco de transformarse em um pseudomarxismo, adentrar nos corredores sociais e
políticos. Essa premissa nos reconduz a pensar o Ecumenismo
11
12
13
Cf. BRAKEMEIER, 2001, p.209-210.
Cf. BRAKEMEIER, 2001, p.211.
Cf. BRAKEMEIER, 2001, p.212.
121
Grupo de pesquisa teológica
“extra muros”. Faz-se pertinente recordar, uma vez mais,
que Ecumenismo busca a comunhão e a paz, mediante a
reconciliação e a acolhida de diferenças. A verdade deverá
ser sempre única: a Unidade; e o fundamento seguro para a
execução do Ecumenismo é a Fé.
No universo ecumênico está em voga o discurso sobre
uma teologia que busca encontrar pontos de encontro, de
koinonia, e estabelecer pontes entre os mais distantes e os mais
próximos. Não se trata única e basicamente de estabelecer um
diálogo entre justos e pecadores, entre fariseus e publicanos.
A tentativa deve pautar-se, sobretudo, na autocompreensão,
no reconhecimento da fragilidade do conhecimento humano
e na inoperância e impotência da criatura frente ao Criador.
Em suma, trata-se de que cada um se desfaça da pretensão de
ocupar o lugar de Deus na história da humanidade14.
O Ecumenismo acontece por Amor. O anti-Ecumenismo,
por sua vez, peca pela falta de compaixão e misericórdia.
O Ecumenismo de comunhão somente se dará pelo
reconhecimento e perdão mútuo dos pecados. Em outras
palavras, o Ecumenismo com pressupostos de comunhão é,
todavia, uma realidade de Esperança Escatológica. Contudo,
a acomodação não é análoga à espera da Plenitude. O
Ecumenismo possui nuances de advento, de espera, de
preparação por algo que está por vir. Ecumenismo em si
mesmo é algo ainda mais além do diálogo ecumênico. Contudo,
reconhecemos, sim, a importância de se criarem possibilidades,
proporcionar e estabelecer um ambiente para que germine o
diálogo ecumênico e, consequentemente, frutifique enfim o
Ecumenismo15
3 A necessidade do diálogo ecumênico
Como foi apresentado nos capítulos anteriores, a busca
pela unidade sempre esteve presente nas comunidades
14
15
122
Cf. BRAKEMEIER, 2001, p.215.
Cf. BRAKEMEIER, 2001, p.216.
UT UNUM SINT: o diálogo como pressuposto para o ecumenismo
cristãs, tanto nos primórdios do cristianismo como nos tempos
modernos. É necessária agora uma reflexão mais profunda
sobre a importância do diálogo nessa busca de unidade.
A abordagem sobre o diálogo ecumênico pressupõe uma
gama de interrogantes e possibilidades. Poderíamos dizer que,
devido ao drástico crescimento de inúmeras igrejas cristãs neste
novo milênio, o diálogo ecumênico é extremamente necessário
para que os movimentos ecumênicos alcancem seus objetivos.
Diálogo ecumênico não são os movimentos ecumênicos.
O diálogo é uma premissa vital para a concretização dos
movimentos ecumênicos.
É sabido de todos que a época moderna mergulhou o homem,
ou melhor, a sociedade num vasto oceano de subjetivismo
e individualismo. Há uma predominância da tendência do
não diálogo. Traçar o caminho do diálogo ecumênico é como
andar num campo minado. A qualquer equívoco o percurso
já feito até os tempos hodiernos por inúmeras discussões é
descartado. Estamos na época do “laissez-faire”, por isso, no
que se refere aos diálogos ecumênicos, várias são as posturas
tomadas. “[...] hoje em dia esse caminho parece a alguns como
coisa do passado, e a outros até mesmo como um caminho que
nao deveria continuar a ser trilhado [...]”16. Nota-se, então, que
o espírito do “laissez-faire” predomina em muitas camadas
das diversas igrejas cristãs. Porém, surge um interrogante:
Por que há tanta indiferença num assunto que moralmente e
evangelicamente seria o melhor caminho para todos? Não nos
esqueçamos do objetivo dos diálogos ecumênicos: “O objetivo
último dos diálogos é a unidade da igreja”17.
Por muito tempo, esse objetivo foi perseguido pelas
diversas igrejas espalhadas pelos confins do planeta. Porém,
nota-se um declínio na qualidade do diálogo ao longo da
trajetória traçada até nosso tempo moderno. Podemos dizer
que, nos primórdios do movimento ecumênico, o objetivo do
16
MEYER, 2003, p.46.
17
MEYER, 2003, p.50.
123
Grupo de pesquisa teológica
diálogo era trazer à tona e defender o que era comum para
todos, ou seja, a fé em Jesus Cristo e a apostolicidade. “[...] O
objetivo era, portanto, uma forma eminentemente aberta de
falar e lidar uns com os outros”18. Portanto, todos os diálogos
partiam dos elementos comuns da fé cristã.
Entretanto, como dizíamos, se nota que ao longo das
décadas o diálogo ecumênico foi se desgastando, os elementos
comuns haviam se evidenciado na história como insuficientes
para conservar a unidade da Igreja19. O que entra em cena
já não eram os elementos comuns, senão as discrepâncias
na compreensão da fé20. É urgente a necessidade de retomar
as origens e buscar a comunhão na fé. Da discrepância ao
consenso. Esse é o caminho que deveria ser traçado pelos
diálogos ecumênicos.
O elemento central para a unidade da igreja é a visibilidade.
A unidade da igreja é em sua essência comunhão na fé. “[...]
Também e justamente esses aspectos comuns na fé precisam
tornar-se visíveis, onde quer que se busque a unidade visível”21.
É indispensável o diálogo sobre a fé. Deve-se prosseguir na
busca de um consenso com confiança.
Ante toda a indiferença, ante todo espírito “laissez-faire”
social e de algumas alas prosélitas das diversas igrejas, “o
esforço das igrejas visando à unidade precisa continuar
sempre que e na medida em que essa comunhão não existe ou
está ameaçada, pois a divisão da igreja contradiz a confissão
de fé comum”22. Portanto, é necessário que o esforço em
superar divisões de fé ainda existentes continue. O objetivo
desse esforço só será alcançado quando a comunhão na fé
apostólica tiver encontrado sua expressão visível em seus
consensos formulais. É necessário crescer na qualidade dos
diálogos, visto que estes são o aspecto vital para a visibilidade
18
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124
MEYER, 2003, p.47.
MEYER, 2003, p.47.
MEYER, 2003, p.47.
MEYER, 2003, p.48.
MEYER, 2003, p.55.
UT UNUM SINT: o diálogo como pressuposto para o ecumenismo
dos movimentos ecumênicos.
Conclusão
Este artigo teve como objetivo a abordagem do diálogo
ecumênico que conduz a uma busca da unidade cristã.
Na primeira parte vimos no exemplo das comunidades
cristãs que a união não é uma realidade que acontece de um
dia para o outro, e sim um acontecimento que se constrói
progressivamente com a ajuda do Espírito Santo, apesar das
diferenças das instituições.
Já na segunda parte, abordamos o tema da pluralidade
das igrejas e os obstáculos que abarcam o Ecumenismo como
proposta de ser Igreja em Cristo. Por seu caráter teológico,
o Ecumenismo implica reconhecimento mútuo de dons e
também de fraquezas, ou seja, transcender de cada comunhão
particular sem perder a identidade própria, para ser pontes de
unidade, tendo como meio o diálogo.
Finalmente, na terceira parte, analisamos o Diálogo
Ecumênico como premissa vital para que as Igrejas cristãs
tracem o caminho do ecumenismo neste tempo marcado por
uma sociedade subjetiva e individualista, o que contradiz a
proposta evangélica. O diálogo é uma maneira de confrontar
e buscar o que vivifica a unidade da Igreja, que tem como
essência a comunhão da fé.
Na perspectiva do Documento Unitatis Redintegratio,
observa-se que os temas propostos nas três partes estão em
comunhão com o Magistério. O Sínodo do Vaticano II, na
sua pretensão de dialogar com a modernidade, tem como um
dos principais objetivos a reintegração da unidade entre os
cristãos23. Ou seja, o Ecumenismo é uma busca de unidade
entre os cristãos que procuram viver e celebrar a herança de
Cristo. Aquela herança explícita nas palavras do Salvador
e que, para os cristãos, tem um significado profundo: “Que
23
Compêndio do Vaticano II - Constituições, decretos e declarações. 19.ed.
Petrópolis: Vozes, 1987. nº 751.
125
Grupo de pesquisa teológica
todos sejam um”24. Segundo o documento, as comunidades
cristãs compartilham mediante o diálogo profundo a doutrina
da sua comunhão apresentando perspicuamente as suas
características25. É a dinâmica da fé que deve contribuir para o
diálogo e não ser um obstáculo.
Conclui-se, portanto, que, a partir do confronto entre o que
foi apresentado e o documento conciliar Unitatis Redintegratio,
o diálogo ecumênico é premissa vital para a concretização do
ecumenismo como proposta de unidade tendo a conversão e a
santidade como alma da dinâmica do ecumenismo26.
Referências
BÍBLIA de Jerusalém. Nova edição revisada e ampliada. São
Paulo: Paulus, 2003.
BOSCH, Juan. Ecumenismo. In: SAMANES, Cássio Floristan;
TAMOYO-ACOSTA, Juan-José. Dicionário de conceitos
fundamentais do Cristianismo. Trad.: Isabel Fontes Leal Ferreira;
Ivone de Jesus Barreto. São Paulo: Paulus, 1999.
BRAKEMEIER, Gottfried. Ecumenismo: repensando o significado
e a abrangência de um termo. Perspectiva Teológica, São Paulo,
n.33, 2001.
Compêndio do Vaticano II - Constituições, decretos e
declarações. 19.ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
MEYER, Harding. Diversidade reconciliada: o projeto ecumênico.
Trad.: Luís Marcos Sander. São Leopoldo: Sinodal, 2003.
PEREIRA, Ney Brasil. Que todos sejam um: a unidade dos
discípulos segundo João. Encontros Teológicos, Florianópolis,
27, 1999.
24
Bíblia de Jerusalém. Nova edição revisada e ampliada. São Paulo: Paulus, 2003.
Jo. 17,21.
25
Compêndio do Vaticano II - Constituições, decretos e declarações. 19.ed.
Petrópolis: Vozes, 1987. nº 766.
26
Compêndio do Vaticano II - Constituições, decretos e declarações. 19.ed.
Petrópolis: Vozes, 1987. nº 182.
126
RECENSÃO
FARIA, Jacir de Freitas. Apócrifos aberrantes, complementares
e cristianismos alternativos – Poder e heresias!: introdução
crítica e histórica à Bíblia apócrifa do Segundo Testamento.
Petrópolis: Vozes, 2009. 254p. (Comentários aos apócrifos).
Depois de várias publicações sobre a literatura apócrifa,
este novo livro de Frei Jacir, o quinto sobre os apócrifos, é o
resultado de uma longa pesquisa sobre a trajetória histórica
do cristianismo em seus sete primeiros séculos, a partir dos
88 apócrifos do Segundo Testamento. O livro pretende ser
uma introdução histórica e crítica a esses apócrifos, que ele
mesmo chama de aberrantes, complementares e alternativos
em relação ao cristianismo que se tornou hegemônico1.
O objetivo do autor, professor de exegese bíblica no Instituto
Santo Tomás de Aquino – ISTA, é mostrar que os apócrifos do
Segundo Testamento são todos eles formas de cristianismo –
textos de experiências de fé – que não se consolidaram naquele
que se tornou hegemônico, mas que de alguma maneira
influíram, complementaram ou discordaram da versão oficial
do cristianismo, que até o século terceiro conviveu com
diversas teorias e teologias. Algumas delas exageraram na
criatividade dos textos ou práticas como liturgia sexual; outras
simplesmente complementaram a versão oficial; outras, por
serem tão alternativas, foram relegadas ao ostracismo.
____________
1
Segundo o autor, “hegemônico” significa oficial.
Isabel Pomar Bonnín
O livro inicia com uma breve introdução geral à Bíblia,
para que o leitor visualize os apócrifos no cenário bíblico
canônico dos livros inspirados. Após a definição e classificação
da Bíblia apócrifa, o autor lança a seguinte pergunta: Como
ler os apócrifos do Segundo Testamento?. É preciso, segundo o
autor, lê-los dentro do seu contexto histórico, considerando as
disputas teológicas e de poder que marcaram seu surgimento.
Tais disputas aconteceram entre o cristianismo que se tornou
hegemônico e o cristianismo de outros grupos e movimentos
dissidentes, sobretudo dos gnósticos.
O corpo-coração da obra do Frei Jacir se encontra nos
capítulos 5 e 6 do livro. Num total de 11 capítulos, são esses
dois mais de 75% do conteúdo da obra. Nesses dois capítulos,
cada um dos sete primeiros séculos da nossa era é apresentado
com seus respectivos cristianismos, o oficial e os chamados
aberrantes, complementares e alternativos, relacionando-os
entre si. O conteúdo da literatura apócrifa é apresentado nesta
linha de tempo no seu contexto histórico, político e eclesial.
O autor parte do pressuposto de que entre os muitos
cristianismos de origem, o cristianismo vencedor das disputas
teológicas foi aquele que afirmou e comprovou a historicidade
de Jesus, morto e ressuscitado, como realização das promessas
do Primeiro Testamento, de fato, assim ganhou credibilidade
ao provar ao império romano a sua antiguidade a partir do
judaísmo. Mas também devemos reconhecer que o cristianismo
vencedor, aquele que hoje professamos e vivenciamos, é sólido
por ser aquele que mais se aproximou do evento histórico
Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado, e salvaguardou, de
fato, a essência da fé em Jesus Cristo, em um só credo e em
uma igreja universal.
Para finalizar, o autor apresenta no livro algumas temáticas
relevantes que foram aprofundadas a partir dos apócrifos, tais
como: a questão de gênero, a virgindade, a não-reprodução, a
traição de Judas e a história de Maria.
O livro provoca os leitores a reconstituir ecumenicamente
128
Recensão
Cristo nos vários modos de descrevê-lo, seja de forma piedosa,
aberrante, complementar ou alternativa. Neste sentido, a
literatura apócrifa tem sua atualidade e pertinência para a
nossa tradição de fé. Livros que antes se recomendava que não
fossem lidos por serem catalogados como escritos heréticos
e até foram proibidos pela Igreja, hoje sabemos que fizeram
parte do imaginário das teologias de alguns padres da Igreja
e estão presentes nas raízes do cristianismo oficial, católico e
romano.
Na luta com os outros modos de conceber o cristianismo,
o cristianismo hegemônico foi vencedor, mas também
se deve reconhecer que ele “utilizou tradições apócrifas
complementares em seus dogmas de fé” (p.248), como afirma
Frei Jacir. Portanto, para muitos, as obras sobre os apócrifos
escritas por este autor, em especial esta última, são uma
forma de dialogar com as formas de cristianismo dos nossos
antepassados.
O livro, de fato, é uma contribuição atual para situar os
apócrifos na história da igreja, bem como relê-los de forma
crítica e pastoral, o que coloca esta literatura na pauta do dia
desde a perspectiva de um pensador católico. Vale a pena ler
essa obra e refletir sobre o que ela nos provoca.
______________________________________________________
Prof. Isabel Pomar Bonnín
[email protected]
129
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– ARDUINI, Juvenal. Antropologia: ousar para reinventar a
humanidade. São Paulo: Paulus, 2002. 171 p.
– BINGEMER, Maria Clara Luchetti; FELLER, Vitor Galdino.
Deus trindade: a vida no coração do mundo. Valência: Siquem Ediciones, 2002. 175 p.
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