Atas_3Conferencias.MuseuLamego-CITCEM.2015

Transcrição

Atas_3Conferencias.MuseuLamego-CITCEM.2015
Atas das 3
CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM
2015
20 de julho
as
MOVIMENTOS POLÍTICOS E SOCIAIS NO DOURO
ENTRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA
FOTO: Arquivo da Imagem/Lamego
(nos 100 anos do Motim de Lamego)
Geraldo Coelho Dias
ATAS das 3as
CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM - 2015
MOVIMENTOS POLÍTICOS E SOCIAIS NO DOURO,
ENTRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA
(NOS 100 ANOS DO MOTIM DE LAMEGO)
Disponível online em www.museudelamego.pt
ABREVIATURAS
CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar
Cultura, Espaço e Memória
DL – Diocese de Lamego
DRCN – Direção Regional de Cultura do Norte
EMT – Espaço Miguel Torga
FLUP – Faculdade de Letras da Universidade do Porto
FLUP/GI – Grupo de Investigação: Memória, Património e Construção de Identidades da Faculdade de Letras da Universidade do Porto
IHC/FCSH/UNL – Instituto História Contemporânea,
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
ML – Museu de Lamego
RAD – Rádio Alto Douro
RDP – Rádio Difusão Portuguesa
UM – Universidade do Minho
ULP/CEAUP – Universidade Lusófona do Porto/Centro
de Estudos Africanos da Universidade do Porto
ORGANIZAÇÃO
ML-DRCN / CITCEM-FLUP
IMAGEM DE CAPA
© Arquivo de Imagem/Lamego
COMISSÃO ORGANIZADORA
Alexandra Isabel Falcão (ML-DRCN)
Gaspar Martins Pereira (FLUP-CITCEM)
Luís Sebastian (ML-DRCN)
Paula Montes Leal (FLUP-CITCEM)
EDIÇÃO
© Museu de Lamego – Direção Regional de Cultura
do Norte
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Alexandra Isabel Falcão (ML-DRCN)
Luís Sebastian (ML-DRCN)
DATA DE EDIÇÃO
Dezembro 2015
e-ISBN
978-989-99516-0-0
O conteúdo dos textos, direitos de imagem e opção ortográfica
CONFERENCISTAS
António Monteiro Cardoso (IHC/FCSH/UNL)
Augusto Macedo (RDP e RAD)
Carla Sequeira (CITCEM-FLUP)
Célia Taborda da Silva (ULP/CEAUP)
Gaspar Martins Pereira (CITCEM)
João Luís Sequeira (EMT)
José Viriato Capela (UM)
Otília Lage (CITCEM-FLUP/GI)
são da responsabilidade dos autores.
REVISÃO
Alexandra Isabel Falcão (ML-DRCN)
DESIGN E COMUNICAÇÃO
Luís Sebastian (ML-DRCN)
Patrícia Brás (ML-DRCN)
COMUNICAÇÃO
Patrícia Brás (ML-DRCN)
GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS
E FINANCEIROS
Paula Duarte (ML-DRCN)
SECRETARIADO
Patrícia Brás (ML-DRCN)
Teresa Sequeira (ML-DRCN)
LOGÍSTICA
Paula Pinto (ML-DRCN)
CONCEÇÃO E COMPOSIÇÃO GRÁFICA
Pe. Hermínio Lopes (DL)
APOIOS:
Casa de Santo António de Britiande
Diocese de Lamego
Escola de Hotelaria e Turismo do Douro – Lamego
ESTGL - Escola Superior de Tecnologia e Gestão,
Lamego
Hotel Lamego
Liga dos Amigos do Museu de Lamego
Município de Lamego
Quinta de Mosteirô
SoltaGiga
Índice
Mesa-redonda
MOVIMENTOS POLÍTICOS E SOCIAIS NO DOURO, ENTRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA
Otília Lage (CITCEM - FLUP/GI: Memória, Património e Construção de identidades)
Gigantes do Douro, memória e património histórico:
lutas em defesa da Região Vinhateira (séculos XIX-XX).. ............................................................. 09
Augusto Macedo (jornalista aposentado; ex-Director da Rádio Alto Douro e da RDP-Norte)
Douro Vinhateiro - Fragmentos de Abril ................................................................................ 21
Painel 1
REVOLTAS E REVOLUÇÕES NO DOURO OITOCENTISTA
José Viriato Capela (Univ. Minho)
As Invasões Francesas e a Restauração Nacional de 1808 - o Juiz do Povo e Junta dos Prudentes de Viseu..... 31
António Monteiro Cardoso (IHC/FCSH/UNL)
A Revolução Liberal no Douro............................................................................................. 39
Célia Taborda da Silva (Universidade Lusófona do Porto/CEAUP)
Ação coletiva no Douro: a propósito das movimentações da “Maria da Fonte”..................................... 47
Painel 2
O MOTIM DE LAMEGO DE 1915
Carla Sequeira (CITCEM/FLUP; Bolseira Pós-Doc. da FCT)
Antão de Carvalho e os motins do Douro de 1914-1915............................................................... 59
João Luís Sequeira (DRCN; Espaço Miguel Torga)
O motim de Lamego e a causa do Douro na vida e obra de Pina de Morais........................................... 67
Gaspar Martins Pereira (CITCEM/FLUP)
O motim de Lamego, um momento histórico de consagração da denominação de origem «Porto» para os vinhos
generosos da Região Demarcada do Douro.............................................................................. 75
6
Mesa redonda
MOVIMENTOS POLÍTICOS E SOCIAIS NO DOURO,
ENTRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA
Otília Lage
Augusto Macedo
9
Gigantes do Douro, memória e
património histórico:
lutas em defesa da Região Vinhateira (séculos XIX- XX)
texto: Otília Lage
[email protected]
Fig.1 - Trabalhadores do Douro. Fotografia do fotojornalista Leonel de Castro1
1 Créditos desta e restantes fotos incluídas nesta comunicação cedidos pelo autor, a quem se agradece. Redução do formato original, à escala, da nossa
responsabilidade, procedimento seguido em todas as fotografias.
10
Nota biográfica:
Maria Otília Pereira Lage é pós-doutorada em Estudos Sociais e Históricos
(2010, UC), Doutorada em Historia Moderna e Contemporânea (2001) e Mestre
em História das Populações (1995, UM), Licenciada em História (1976, UP),
Pós-Graduada em Biblioteconomia, Arquivística e Documentação (1979, UC) e
especializada em Administração Escolar (1992, IPP). Foi Professora Associada
da Universidade Lusófona do Porto, encontrando-se aposentada. Actualmente
é investigadora do CITCEM - FLUP/GI: Memória, Património e Construção de
identidades.
11
INTRODUÇÃO
Quer se que queira, quer não, o trabalho histórico inscreve-se no interior (e não fora) das lutas socioeconômicas
e ideológicas (Michel du Certeau)2
N
o título “Gigantes do Douro” evocamos simbolicamente, o homónimo
filme por realizar, do cineasta Manuel
de Oliveira, notável defensor cultural
do Douro, assinalando o centenário do Motim de Lamego de 20 de Julho de 1915, apogeu sangrento das
“marchas da fome” geradas na miséria extrema de
uma multidão de trabalhadores, é marco histórico dos
movimentos de afirmação da denominação de origem
2 “Douro” e impulsionador do “Movimento de Paladinos do Douro”.
Para se conhecer esse passado subterrâneo de sublevações e lutas das populações anónimas e sofridas
que em revolta contra a desigualdade abissal e injustiça social, construíram a história moderna e contemporânea da Região Vinhateira do Douro, não se pode
esquecer o que ficou esquecido (Marc Augé, 1988).
CERTEAU, 1978:34.
Fig. 2 - Vindimador em paisagem duriense pelo olhar de fotojornalista
12
1. Aproximação socio-histórica à Região
Demarcada Duriense, arena de movimentos
sociais e políticos desde o liberalismo à Democracia
O
Douro, uma das primeiras regiões vitivinícolas demarcadas do mundo é um espaço de regulação sócio-institucional estatal
alvo de medidas protecionistas ditadas pelas filosofias
políticas do despotismo iluminado (meados do séc.
XVIII), regime que se iria alterar no liberalismo (séc.
XIX), sendo depois retomado (séc. XX) com a ditadura franquista e, de forma restritiva, corporativista e
duradoura, com o Estado Novo e sua política de regulamentação e controlo dos sectores da produção e
comercialização dos vinhos do Douro. “Caso único na
organização pré-corporativa do Estado Novo, a Casa
do Douro nascia com a reivindicação social e regional
e não por imposição estatal. Talvez por isso mais de 40
anos depois, após a revolução democrática do 25 de
Abril de 1974, será a única organização a sobreviver
à queda do Estado Novo e da organização corporativa”3, alterando-se progressivamente em sua orgânica e
funções com as políticas de integração de Portugal na
CEE e a globalização dos mercados.
tudo isso se conheceu nos séculos XIX e XX”6, em diferentes conjunturas definindo processos diferenciados que se ilustram nos seguintes gráficos elaborados
com base em quadros numéricos construídos a partir
de uma cronologia das crises, agitação político-social
e organizações autónomas regionais7.
1.1.Condições determinantes e dominantes dos
movimentos sociais e políticos durienses
O Alto Douro, a primeira zona do capitalismo
agrário-comercial em Portugal apresenta uma posição
e identidade social “intermédia”4 ou “conjuntural”5
originada numa agricultura de viticultura intensiva assente no trabalho de jornaleiros pobres, trabalhadores
sazonais, camponeses sem terra e pequenos proprietários dominados por grandes proprietários e lavradores, ricos e influentes donos de quintas e explorações agrárias onde tem sido determinante a posição e
acção de poderosas elites nacionais e estrangeiras que
controlam a produção e o negócio dos vinhos, e em
especial do Vinho do Porto, principal produto da Região com lugar proeminente mantido na exportação
nacional.
“A desregulação desenfreada, o intervencionismo
excessivo, as crises de superprodução e demagogia,
3 MOREIRA, 1996: 77-94.
4 PARKHURST, 1977:183-191.
5 LAGE, 2009.
6 BARRETO, 2014: 274.
7 Dadas as limitações de espaço não se inclui a cronologia demasiado
extensa e os quadros numéricos.
13
para a perpetuação do sistema em que só o comércio
está organizado9
Porque no Douro há muito poucos lavradores que vivam
da agricultura, do vinho e da vinha. (…) Os verdadeiros agricultores emigraram ou sobreviveram com dificuldades que
encobriram e encobrem por vergonha. (…) 92% dos lavradores são inviáveis (…) e hoje 80% das boas terras durienses
estão nas mãos de grandes empresas.
Esta a voz crítica aspirando tornar-se causa pública, representativa da situação actual da Lavoura
Duriense. 10
A análise dos gráficos permite configurar um quadro social de contradições dominantes, principais e secundárias, que decorrem de características da história
da Região Duriense:
- Sucessão de crises seguida de intensa conflitualidade social recorrente face às difíceis condições de
vida, marcada por protestos sociais e políticos, violentos ou pacíficos, progressivamente organizados e
ideologicamente politizados, com aliados nas elites
regionais;
- Claro posicionamento geopolítico derivado de o
Vinho do Porto ser um produto de antiga e vasta exportação para mercados de países do centro da economia e sistema mundo capitalista;
- Situação de intensa exploração do trabalho contestada e publicamente denunciada, inclusive por escritores, muitos deles durienses, como Miguel Torga,
João de Araújo Correia, Domingos Monteiro, Pina de
Morais, António Cabral, Manuel Mendes, Alves Redol
e outros.
1.2. Estado actual da Região do Douro Vinhateiro
Persistem na Região Duriense, enormes diferenças sociais e desigualdades, não só fundiárias e em vinha, mas também de produção, e grande polarização:
os maiores 600 agricultores/empresas detém quase
1/3 da área total da região, onde 3/4 das explorações
têm menos de 1ha e só uma percentagem de 1% dos
25.000 viticultores produzem mais de 150 pipas cada
um, quando no extremo oposto mais de 2/3 produzem menos de 5 pipas8. Mantém-se o obsoleto sistema
monopolista de formação dos preços do vinho assente
num contrato entre vendedor e comprador (em que o
preço só se conhece depois da vindima e da entrega
do vinho), contribuindo a desorganização da lavoura
8 BARRETO, 2014:261.
Fig.3 - Tradicional pisa das uvas no Douro Vinhateiro
9 BARRETO, 2014:261.
10 Entrevista a J.M.L., em Santa Marta de Penaguião, Maio de 2015. O
entrevistado, neto de comerciante e filho de funcionário público, é produtor do Douro, dono de uma pequena quinta próxima da Régua, com
turismo rural de habitação.
14
2. Para a história social dos protestos no
Douro oitocentista e contemporâneo
N
o espaço regional duriense definiu-se um
sistema tradicional de relações económicas e sociais marcado pela oposição de
interesses entre viticultores, comerciantes e exportadores e pela posição intermédia entre assalariados e
pequenos lavradores. Região de monocultura agrária
e produção voltada para o comércio internacional, o
Douro sempre registou protestos populares e movimentos interclassistas, “primitivos” ou “modernos”,
violentos ou pacíficos, com características diferentes
nos diversos processos e conjunturas económico-sociais dos dois últimos séculos. Nas dinâmicas de protesto reflectiram-se as políticas dos sucessivos regimes,
principais mudanças políticas e sócio-institucionais,
acordos comerciais com o estrangeiro e flutuações dos
mercados. Essas dinâmicas interferiram na alteração
de leis polémicas e lesivas dos interesses regionais e
na oscilação das políticas nacionais: livre cambismo
e proteccionismo estatal, respectivamente contestado
ou reclamado pela Região.
2.1.Sublevações “pré-modernas” oitocentistas
A acção política no Douro foi sobretudo conduzida por problemas e interesses económicos. As elites
de notáveis da sociedade duriense, então acentuadamente endogâmicas e muito ligadas ao Porto e Gaia,
desenvolviam os seus negócios na base das relações
familiares mais importantes, o que favoreceu a grande concentração de riqueza e negócios na elite agrária
duriense com fortes ligações ao poder político e claro
apoio às correntes mais conservadoras, em oposição
à grande fragilidade financeira de pequenos e médios
produtores.
a) Na primeira metade do séc. XIX o Douro vive
uma forte conflitualidade social e politica: acções revoltosas e protestos violentos de milícias de paisanos,
guerrilhas rurais com apoio de membros do clero, revoltas de massas populares (camponeses, assalariados
rurais, artesãos, trabalhadores dos serviços, pequenos
proprietários e comerciantes) e levantamentos armados contra os invasores franceses e os poderosos locais
colaboracionistas: “afrancesados”, “jacobinos” e “judeus. Com os motins gerou-se o banditismo e a criminalidade contra militares de alta patente, morgados
ricos, juízes e elementos do clero, evoluindo a revolta
de cariz político para contestação à ordem social do
antigo regime” e a subversão das hierarquias tradicionais.
b) A Revolução Liberal (1820-34) faz-se sentir
também na região duriense, verificando- se resistências da sociedade camponesa, manifestações populares pró e contra o regime nascente, hostilidade às
novas instituições, insurreições absolutistas no Baixo
Corgo e guerrilhas liberais no Cima Corgo. Problemas
com o comércio dos vinhos e a crise vinícola originam
movimentos peticionários às Cortes, e sucedem-se os
protestos contra a cobrança de impostos, direitos senhoriais e encargos excessivos, administração, recrutamento e expedições para o Brasil. Novos e grandes
investimentos no Douro como os de António Bernardo Ferreira e suas inovações técnicas (moinhos
hidráulicos, tulhas gigantes…) suscitam acções de sabotagem dos moleiros, semelhantes ao ludismo. Grupos rurais mais favorecidos da sociedade rural ousam
também reivindicar, acabando por condicionar a legislação vintista. Questões político-religiosas, não alheias
ao processo de desamortização dos bens da igreja, originam manifestações que culminam no “cisma” entre
a cúria romana e o estado português acompanhado de
fenómenos marginais: incêndio dos mosteiros de Salzedas e S. Pedro das Águias e queima de registos de
aforamento e contratos enfitêuticos.
c) Com a vitória dos Cartistas (1836), abre-se novo
período intervencionista no comércio do vinho do
Porto, fase difícil da vida duriense marcada por movimentações cartistas e setembristas, oposição entre
proteccionismo e livre-cambismo, guerrilhas políticas, tumultos anti-fiscais e levantamentos violentos. A
Revolta da Maria da Fonte alastra a Trás-os-Montes e
Douro liderada pela nobreza e alta burguesia, em confrontos com o exército, constituição de Juntas Governamentais e erupções miguelistas. A Junta do Porto
domina a margem direita do Douro, palco de lutas da
Patuleia e instabilidade gerada pela miséria, banditismo e agressividade contra a sobrecarga fiscal. As manifestações militares Cabralistas (1842) para restaurar
a Carta Constitucional fazem-se sentir intensamente
no Douro, com adesão popular e a organização de homens armados, a favor da rainha (Lamego, Vila Real,
Tabuaço) ou dos Revoltosos (Sanfins, Foz-Côa). Terminada a guerra civil (Convenção de Gramido) continuam os distúrbios políticos e sociais e as guerrilhas
que se agravam com a crise comercial de 1848-49,
nova conjuntura duriense difícil dada a estagnação do
15
negócio dos vinhos.
d) A acção pragmática e utilitarista da Regeneração
abre uma fase de estabilidade política mais liberal no
comércio e assiste-se no Douro ao enriquecimento de
grandes proprietários como D. Antónia Ferreira enquanto que o oídio e a cólera atingem vinhas e homens
(1852) mantendo-se a situação de miséria, falta de trabalho e exíguos salários. Em 1866, lavradores e comerciantes associam-se na Companhia Comercial dos Lavradores do Douro que é aplaudida em toda a Região.
Verifica-se uma das “mais profundas alterações sociais
e transferência de propriedade de toda a história do
Douro”. As doenças da vinha (filoxera e míldio) e a
crise provocada pela filoxera (1872) contribuem para
intensificar a miséria e a desgraça dos mais débeis,
favorecendo vultuosos investimentos capitalistas no
Douro Superior e a penetração inglesa na Região onde
convivem, em situações sociais chocantes, jornaleiros,
assalariados e pequenos proprietários, em condições
penosas de vida e trabalho, com grandes patrões e influentes famílias de produtores e negociantes, o que se
reflecte em agitação social11.
Com a construção do caminho-de-ferro (1873) dá-se uma grande afluência ao Douro de trabalhadores
nacionais e galegos entre os quais surgem frequentes
lutas e distúrbios.
e) De 1865 a 1908, a complexa situação comercial
vitivinícola, a liberalização e a concorrência acentuam
a conflitualidade entre lavradores e negociantes do
Douro e de outras regiões do país. A elevação do custo de vida e o desemprego no sector vinícola causado
pelo grande declínio das exportações tornava a vida
cada vez mais difícil para as classes trabalhadoras.
Os tanoeiros (cerca de 8.000), grupo vital no sistema
do vinho do Porto12, uniram-se numa associação de
classe (1889) que depressa ascendeu a cerca de 1000
membros13. Com a substituição dos “salários fixos”
por “pagamentos à tarefa” sucederam-se as greves de
tanoeiros (1890-95) que mobilizaram mais de 800 trabalhadores, o que significou um avanço na força associativa sócio-profissional.
2.2. “Novos” movimentos sociais, políticos e institucionais no Douro contemporâneo
Se na segunda metade de oitocentos a instabilidade
social no Douro não resultou em grandes manifestações de violência, o mesmo não vai acontecer nos inícios do séc. XX, marcados por intensa e violenta turbulência social e política14.
a) Nos inícios do séc. XX, com o agravamento da
crise de exportações, fraudes e falsificações dos vinhos
da região, vão proliferar no Douro os movimentos de
defesa regional, reclamação da marca Porto15 para os
vinhos do Douro, regresso ao proteccionismo, exclusivo da barra do Douro e porto de Leixões e assiste-se
ao ressurgimento da Comissão da Defesa do Douro
e comissões concelhias de defesa da “genuinidade do
vinho do Porto”, à fundação de vários sindicatos agrícolas e comissões16, realização de comícios e reuniões.
Sucedem-se as representações de notáveis e câmaras
durienses às cortes, as denúncias nos jornais e, em
vários locais, motins e revoltas populares contra impostos e concorrência dos vinhos e aguardentes do sul,
com invasão de armazéns de vinho, repartições de finanças e queima de matrizes e papéis. Assinalando de
forma sangrenta o cume da crise e dos agudos conflitos sociais, o Motim de Lamego contra o artigo 6.º do
Tratado de Comércio Luso-Britânico, que prejudicava
o escoamento dos vinhos durienses mobiliza populações de várias freguesias, elementos do clero e forças
partidárias, sendo violentamente reprimido (12 mortos e feridos). Pouco antes, dera-se na região vitivinícola do Languedoc (Montpellier, 10 de Junho 1907),
violenta revolta de mais de 600.000 viticultores, com
réplicas (Champagne, Abril 1911) e consequências políticas nacionais.
Devido à crise vitícola nacional a cultura da vinha
é condicionada no Douro. E a miséria, fome, desemprego e emigração que despovoava as aldeias do Cima
Corgo, a diminuição considerável da produção de
vinho generoso no Baixo Corgo e Douro Superior, a
generalizada crise social, de produção e comércio levaram os produtores a reclamar leis de protecção aos
14 Ver desenvolvimentos em SILVA, 2010: p.88-139 e BENNETT, 2010:
280-334.
15 Em 1911 é aprovada a Convenção de Washington para a defesa das
marcas de origem.
11 CRUZ, 2010: 52-87.
12 Ver CARDOSO, 1994: 27.
13 BENNET, 2010: 323-324.
16 Após uma forte pressão das várias “comissões de defesa”, registada em
1906, constitui-se na Régua, em 1907, a Comissão de Viticultura do Douro
formada por Júlio Vasques, António Montes Champalimaud e outros notáveis da região.
16
vinhos durienses, reivindicações de que mais tarde se
fará eco João Franco17 com medidas proteccionistas
semelhantes às de Pombal.
A grande instabilidade política nacional e internacional da I Guerra Mundial, em que Portugal participa, reflecte-se no Douro que vive uma conjuntura
económica e comercial muito difícil, de crise vinícola, estagnação do comércio dos vinhos com o encerramento de mercados internacionais e a concorrência desleal de outras regiões vinhateiras do país, que
agrava a conflitualidade social e política e intensifica o
espírito regionalista duriense de personalidades locais
que vão liderar o Movimento dos Paladinos do Douro.
Nas décadas de 1920-1930, ressurge a questão da
marca Porto e sucedem-se os protestos (numerosas
reuniões, grande Comício na Régua, a 14 de Junho
1923 e encerramento simbólico de instituições) sob
liderança de autarcas, viticultores, comerciantes e industriais locais que contestam a falta de fiscalização
das fraudes e a entrada de vinhos do Sul na região demarcada, em Gaia e na barra do Douro. Verifica-se a
adesão duriense à Revolta do Reviralho no Porto contra a ditadura militar, e ocorrem acções conspiratórias
em que se destaca o militar e escritor duriense Pina de
Morais que consegue a adesão de unidades militares
de Vila Real, confrontos na Régua e intentonas em Alijó e Valpaços com o apoio dos Partidos Radical, Democrático, Esquerda Democrática, Acção Republicana
e Seara Nova.
b) De 1926 a 1949, sucedem-se ciclos de resistência
ao Estado Novo, e continuam no Douro os protestos
populares, a manifestação de pretensões regionais e a
agitação. O Movimento dos Paladinos do Douro, liderado por notáveis republicanos regionalistas, em que
se destaca Antão de Carvalho, afirma-se na defesa da
legislação vinícola duriense, considerada avançada a
nível mundial, reivindica a reforma institucional, em
comícios, reuniões e comissões de estudo e defende o
regresso ao regime constitucional por «via pacífica».
As elites durienses dividem-se entre Situacionistas e
Opositores, ao regime do Estado Novo sobrelevando a
17 Golpe de estado em 1907 e início da ditadura de João Franco que
impõe novo regime geral para a produção, venda, exportação e fiscalização
dos vinhos, reserva a barra do Douro para os vinhos do Porto, alarga a
RDD e cria a CVRD para controlo da lavoura e comércio dos vinhos do
Douro. A 1 de Fevereiro de 1908, dá-se o Regicídio, segue-se a demissão de
João Franco a que sucede Ferreira do Amaral que diminui a área da RDD
(as freguesias substituem os concelhos), e cria o Grémio dos Exportadores
do Vinho do Porto e a Comissão agrícola comercial dos vinhos do Douro.
defesa dos interesses vitícolas regionais.
As miseráveis condições de vida e de trabalho das
gentes do Alto Douro, proletários assalariados com
uma alimentação tão deficiente “que não existe em
mais nenhuma região vinícola do globo”18 e as gritantes diferenças sociais geram uma consciência de miséria inconformada e revolta latente manifestada em
“protesto social” sob diversas formas de relaxe religioso, descristianização e “abandono das práticas religiosas”.
c) Com a II Guerra Mundial agrava-se a situação
política em Portugal e desencadeia-se um clima de agitação social que o Governo reprime ferozmente. No
pós-guerra inicia-se um segundo ciclo de resistência
à ditadura do Estado Novo que dissolve a Assembleia
Nacional e anuncia eleições legislativas e presidenciais, o que é visto pela oposição, como oportunidade
de mudança de regime. A ARS (Aliança Republicana
Socialista)19 e o MUD (Movimento de Unidade Democrática), ilegalizado em 1948, encontram grande
adesão no Douro onde se criam delegações concelhias
de diversos quadrantes políticos e eminentes vultos
locais, como Antão de Carvalho, João de Araújo Correia ou Carlos Richter. Porém, os descontentamentos
regionais durienses são mantidos a níveis suportáveis
pela Casa do Douro e Junta Nacional do Vinho, organismos do Estado cujos mecanismos medeiam os
impactos negativos da produção vinícola e funcionamento dos mercados. Elites políticas e económicas e
agentes vinculados às instituições zelam pelo sistema e
interesses hegemónicos na região.
Nos anos 1950 e 1960, torna-se problemática a
falta de mão-de-obra assalariada devido à forte emigração local reflectida na diminuição da população
activa agrícola e consequente crise de trabalho. Os
fluxos migratórios inter-concelhios durienses perdem
intensidade, diminuem as idas para o Douro onde o
trabalho era de sol a sol com meia hora ou menos de
pausa para almoço e as actividades agrícolas nas quintas deixam de ser asseguradas por assalariados recrutados nas proximidades. Intensifica-se o êxodo rural,
o raio de acção de procura de trabalhadores alargou-se
e passaram a existir cardanheiros não só nas vindimas
18 PEREIRA, 1954: suplemento.
19 A ARS, dirigida por Norton de Matos, candidato às eleições presidências de 1949, Tito de Morais e outros elementos de diferentes quadrantes
políticos formam a Frente Única nacional de oposição ao regime defendendo uma via pacifica de mudança, através de eleições.
17
mas noutras tarefas ao longo do ano. As populações de
várias localidades lutam contra a florestação dos baldios e ocorre viva oposição de uma aldeia de Sabrosa à
GNR e à Pide, contra a prisão política de proprietário
duriense.
Desenvolve-se a Rede de Adegas Cooperativas
Durienses com 24 adegas e 15.000 associados, que irão
mais tarde, reunir-se na UNIDOURO, protagonista
social de peso.
No início da década de 1970, as crises endémicas
de falta de trabalho continuam a sentir-se no Douro,
e os trabalhadores manifestam resistência a patrões e
poderes públicos, em atitudes subtis de oposição, dissimulação nas actividades quotidianas, num registo
escondido” diferente de formas explícitas de agitação e
afrontamento violento de grupos subordinados contra
os poderes dominantes (J. Scott, 1985, 1990).
d) No período pós 25 de Abril de 1974, a democratização do país reflecte-se também no Douro que entra num “processo de fermentação” mantendo-se, com
mudanças sócio-institucionais, os dois pilares organizativos fundamentais: o Instituto do Vinho do Porto
e a Casa do Douro. São tempos conturbados política
e socialmente: saneamento dos dirigentes da Casa do
Douro, extinção dos grémios da lavoura e Grémio dos
Exportadores do Vinho do Porto e intervenção dos
partidos políticos na vida da Região.
Na Régua, uma multidão de viticultores ameaça
atirar da varanda da Casa do Douro o elemento do
MFA (capitão Pardal) indigitado para a comissão liquidatária deste organismo, e elegem, em plenário,
uma comissão de gestão a que sucede uma comissão
instaladora para a eleição dos corpos sociais, reclamação dos viticultores.
e) Em 1975, é restabelecido o direito de liberdade sindical e o ordenamento jurídico das associações
sindicais, o que favorece o desenvolvimento dos movimentos associativo, cooperativista e sindical. É fundada a Associação dos Agricultores da Régua e criado
o Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas do Distrito de
Vila Real. As empresas de vinho do Porto de Gaia e os
exportadores, produtores e engarrafadores de vinhos,
constituem, respectivamente: a AEVP (Associação de
Empresas de Vinho do Porto), instituição privada com
16 associados que representa cerca de 90% da comercialização de Vinho do Porto; e a ANCEVE (Associação Nacional de Exportadores de Vinhos e Bebidas
Espirituosas).
A par da dinâmica associativa de agentes regionais
prosseguem no Douro as mudanças político-administrativas e sócio-institucionais e surge no sector vitivinícola da RDD um novo modelo de autorregulação,
esboço de interprofissionalismo, idêntico ao de regiões
vitivinícolas europeias, com representação de todas
entidades intervenientes na fileira.
De 1970 para 1980, há uma subida elevada dos salários que se reflecte nos custos de produção da viticultura duriense, o que aliado ao êxodo rural, influenciará a mecanização da produção. Inicia-se a revolução
contemporânea do Douro com a alteração das condições técnicas e tecnológicas da produção e comercialização, em estreita cooperação do tecido empresarial e
Universidade (IPVR e UTAD) e o aumento de produtores reconhecidos movimento que prossegue até fim
dos anos 1990. A revolução social tinha-se já vindo a
operar com as revoltas populares, as diversas formas
de protesto e o êxodo rural, modalidade de oposição
popular in–extremis e decisiva.
Na década de 1980 é criada na Régua a ADVID
(Associação para o Desenvolvimento da Viticultura
Duriense), impulsionadora de uma acção de experimentação, estudo e divulgação de novas técnicas de
vitivinicultura, é fundada, com vocação diferente, a
Confraria do Vinho do Porto, congregando comerciantes, exportadores e quadros no activo e é constituída (1986) a AVEPOD (Associação de Viticultores
e Engarrafadores dos Vinhos do Porto e Douro), para
defesa dos viticultores/engarrafadores que passam a
exportar directamente do Douro e a criar um canal de
diálogo in loco com a lavoura.
No início dos anos 1990, são constituídas a União
de Viticultores do Douro, a Confraria dos Enófilos,
com 36 confrades, para valorização e promoção dos
produtos vínicos da RDD e a Vitidouro (Associação
dos viticultores aderentes do PDRITM). Surge nova
onda de protestos contra a proposta do governo de
alteração dos Estatutos da Casa do Douro tida como
“concentracionista”, “estatizante” e “afrontamento a região”.
Já nos anos 2000, é fundada a Lavradores de Feitoria, uma associação de 20 lavradores que tratam e
comercializam em conjunto os seus vinhos.
18
3. Pensar os movimentos sociais e políticos na dimensão geopolítica do Douro
A
ambiguidade, fragmentação, amplitude e
múltiplas variações e critérios de análise
dos movimentos sociais - formas autónomas de expressão violenta ou pacifica de diferentes
grupos, comunidades e colectividades, não redutíveis
a uma forma superior/ sintetizadora e germes das mudanças, revitalizações e (re)configurações que moldam as sociedades -, especificamente no mundo rural
agrícola, fazem do seu estudo um tema historiográfico
controverso em que se não dispõe de modelos analíticos únicos.
A partir da definição das “vantagens comparativas
ou relativas” proposta pela economia clássica de David
Ricardo20 com o advento do liberalismo económico21
se poderá explicar a monocultura do vinho na Região
Duriense, elemento determinante da mesma. A sua estrutura político-económico-social e a diversidade de
conjunturas e quadros sócio-institucionais e culturais
determinam uma complexidade e heterogeneidade
dos movimentos sociais e políticos, de natureza nada
convencional.
Se os movimentos sociais e políticos do Douro, no
período do liberalismo em que coexistem diferentes tipos de protesto, podem interpretar-se na linha do pensamento de Thompson da “economia moral”, isto e, em
situações de emergência que levavam à obrigação “moral” de protestar”22 devendo ser vistos na apreensão de
pontos de convergência específicos e redes em que se
constituíram, melhor será analisar na concepção da
“rebeldia primitiva”23 de Hobsbawm a coexistência das
acções de agitação social arcaicas, como as guerrilhas,
com reivindicações modernas como as dos tanoeiros
de Gaia, no fim do séc.XIX. Os movimentos de contestação que se sucedem no centro e periferias da Região
Demarcada Duriense ganham outra inteligibilidade,
se interpretados no campo da sociologia histórica de
I. Wallerstein que à luz da luta de classes e do jogo de
poderes que operam na estrutura do sistema mundo
capitalista24 permite esclarecer as suas características
gerais e significado histórico. Nestes se poderão identificar então as seguintes dinâmicas: contestação da
legitimidade do estado, de cariz progressista na arena
política, marcada pela repressão e/ou cedências; oscilação entre protestos violentos e compromissos sociais
permeada pelos efeitos de acumulações de funções díspares; dificuldade destes levantamentos se manterem
por muito tempo em alto nível; protestos que deixam
um legado, mudando sempre alguma coisa na política, para melhor; muitos, conservadores, que se juntam
aos levantamentos, não fortalecem os seus objectivos,
antes os pervertem; todos ocorrem na luta geopolítica,
o que exige perceber as suas consequências em termos
de sistema mundo25.
Fig. 4 - Cultivo da vinha nos socalcos do Douro
20 RICARDO, 1817.
21 Este axioma da economia clássica objecto de numerosos estudos especializados exigiria todo um desenvolvimento que não cabe neste artigo.
22 SILVA, 2007: 35
23 SILVA, 2007: 26-27.
24 WALLERSTEIN, 2012.
25 LAGE, 2013: 221 – 229.
19
Considerações finais
Esboçou-se, numa perspectiva cívica empenhada, um roteiro das movimentações sociais e políticas
ocorridas na Região Vitivinícola do Douro, do Liberalismo à Democracia, que nos convida a concluir:
Mas o Douro merece mais – … as proporções da montanha e a estatura do homem dessas bandas não se contemplam
a frio, obrigam por força a cismar… [no] destino deste homem
tão indigente como heróico, diante de cujo trabalho e sacrifício temos de nos vergar com respeitosa admiração26.
A cartografia dos protestos sociais e políticos
durienses ao longo de 200 anos, seguindo um princípio explicativo integrador assente em contributos
da história social e da sociologia histórica, possibilita
uma inteligibilidade esclarecedora do processo social
e histórico em que se inscreve a fragmentação dos fenómenos sócio-políticos. A energia popular e regional
libertada pela sucessão desses movimentos políticos
e sociais diferentes, contraditórios e complexos, persistiu no inconsciente colectivo regional com traços
duradouros e mantém-se transformada alicerçando a
emergência de novas lutas durienses como as que hoje
se manifestam, mais complexas e globalizadas.
A investigação historiográfica nacional deste tema
não é ainda abundante, apesar da boa literatura entretanto produzida. Disso se ressente também a pesquisa feita, que embora em extensão e diversidade, não é
ainda suficiente, seja pela exiguidade de fontes consultadas seja pelo desigual aprofundamento e densidade.
26 MENDES,1964:10 e 24-25.
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commentaries/index.html, [consulta em Maio 2015].
21
Douro Vinhateiro
Fragmentos de Abril
texto: Augusto Macedo
Ex-Jornalista da RDP
[email protected]
Resumo:
O trabalho retrata o clima emocional da época,
aborda a evolução comportamental da sociedade civil e lembra ocorrências no Alto Douro Vinhateiro no
período da revolução de Abril de 1974. O autor, jovem
jornalista nesse período, relatou para a rádio e para
os jornais acontecimentos como: a primeira greve de
trabalhadores rurais, a tentativa de ocupação de uma
quinta, a alfabetização em programa de rádio pelo
MFA - Movimento das Forças Armadas, as primeiras
eleições, a constituição dos primeiros movimentos reivindicativos do Douro e sequente alteração no modelo
de regulação através da alteração dos estatutos da Casa
do Douro.
Palavras-chave:
Revolução; MFA; Douro Vinhateiro; Abril.
Abstract:
The work portrays the emotional climate of the
time, addresses behavioural change in civil society and
recalls events in the Alto Douro Wine Region during
the April 1974 revolution. The author, a young journalist at the time, reported on radio and in the press
on events such as: the first farm labourers’ strike, the
attempted occupation of a farm, a literacy radio broadcast by the MFA (Armed Forces Movement), the first
elections, the constitution of the first Douro protest
movements and the resulting change in the regulatory
model through amendment of the statutes of the Casa
do Douro.
Keywords:
Revolution; MFA; Douro Wine Region; April
22
Nota biográfica:
Augusto Macedo, jornalista desde 1974, Curso Superior de Jornalismo,
CENJOR, e Pós-graduação em Direito da Comunicação, pelo Instituto da
Comunicação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Trabalhou para diversos órgãos de comunicação: Rádio Alto Douro, que dirigiu
durante 16 anos, Radio Clube Português, Radio Comercial e no grupo RDP (Atena
1, Antena 2, Antena 3 e RDP Internacional).
Foi delegado em Trás-os-Montes do Primeiro de Janeiro e posteriormente
correspondente do Diário de Noticias. Participou na criação do Jornal Público
sendo colaborador regular até 1991.
Aposentou-se como Diretor da Delegação do Norte da Radiodifusão
Portuguesa.
Na sociedade civil participou na direção de diversos grupos culturais: Centro
Cultural Regional de Vila Real, Teatro de Ensaio Transmontano, Liga de Amigos
do Alto Douro Património da Humanidade e outros.
23
A
gradeço o convite do Museu de Lamego e
da equipa Centro de Investigação Transdisciplinar - Cultura, Espaço e Memória,
com referência particular ao professor Gaspar Martins Pereira. Incluir-me entre os oradores, homens
de ciência e investigação, que se debruçaram sobre os
movimentos políticos e sociais no Douro, é para mim
uma honra que espero não desmerecer.
O que vos trago é o testemunho do jovem, que à
época, aprendia a profissão de jornalista.
Comecei a trabalhar como profissional, na rádio,
como locutor, animador de emissão em 1970. Punha
a música a correr, fazia a apresentação dos artistas, lia
uns textos de natureza ambígua, visando um auditório
muito heterogéneo.
Foi na Guiné-Bissau, ou Guiné Portuguesa, como
então se dizia, que tive a minha primeira experiências
como repórter. Acompanhei o General Spínola, nas visitas a quartéis, nas chegadas e nas despedidas de contingentes militares e ainda no acompanhamento do
Congresso do Povo, que decorreu durante alguns dias
no Palácio do Governador em Bissau em 1973. Iniciativa com objetivo de criar uma classe política com alguma afectividade naquela província, correspondendo
a uma estratégia de autodeterminação do agrado do
General Spínola, que assentava no reconhecimento
das culturas tradicionais e do intrincado conjunto tribal em que se organizavam.
À pergunta tantas vezes repetida: onde estavas no
25 de Abril? Eu respondo: em Bissau. Era o comandante do paiol de Bissau. Situação de grande vulnerabilidade e com os homens sob meu comando a festejar, o
último serviço, em estado de grande embriaguez. Era
suposto embarcarmos de avião daí a dois dias para a
metrópole. Foi um dia bem difícil, de resto o início de
um período de guerra com muitas proezas e perigosas
peripécias a merecer uma outra conversa, num outro
contexto e ocasião.
A nota serve como justificação implícita para a falta
de apontamentos sobre o período imediato do 25 de
Abril até a Julho de 74.
Cheguei no início de Julho, aborrecido com a revolução, por me ter obrigado a mais de dois meses de
Guiné, e porque a primeira greve nacional, envolveu
os correios, deixando-nos sem comunicações com a
família, em tempo de muitas incertezas.
Cumprindo um preceito legal, apresentei-me na
Rádio Alto Douro, para recuperar o meu posto de trabalho. Já integrava o quadro de trabalhadores antes
de ingressar no serviço militar obrigatório e portanto
tinha como certo o emprego. Assim foi de facto, não
sem o sobressalto de passar por nova avaliação. Nesse espaço temporal, o Rádio Clube Português, tinha
adquirido a Rádio Alto Douro. Já tinha havido saneamentos e os novos dirigentes hesitaram na justeza de
manter essa obrigação. A nova gestão requereu testes
de voz, leitura de textos e avaliação de cultura geral.
Cumprida a avaliação, comecei a trabalhar na emissora da liberdade, com profissionais muito reputados e
em programa de grande audiência nacional. No CDC
– Clube das Donas de Casa. Em Lisboa o Júlio Isidro,
no Porto a Maria Isolda, na Régua, Augusto Macedo.
O trabalho de maior responsabilidade consistia no
lançar do folhetim radiofónico “Simplesmente Maria”.
Programa de grande audiência, com publicidade caríssima, comparado às novelas que hoje lideram nos
canais de televisão. Como diferentes eram os tempos!
Os programas eram autónomos e os cruzamentos de
voz muitos raros. As ligações técnicas para diálogos
em direto eram muito caras e por isso raras. Entrava
em antena depois do noticiário das 13.00 e o programa
chegava até as 16.00 horas.
Antes pontificava o “Espaço de Dinamização Cultural”, do Movimento das Forças Armadas. Militares
do Quartel de Lamego; Capitão Pardal, os Sargentos
Monteiro e Ludovico e ainda o soldado que mais tarde
viria a integrar a equipa da Rádio Alto Douro: o António Manuel Correia.
Era um programa de alfabetização. Através da rádio os militares ensinavam, em tese, os fundamentos
da democracia. Tiravam dúvidas que os ouvintes expressavam em cartas dirigidas ao MFA – Movimento
das Forças Armadas e em telefonemas para os estúdios. Há que dizer, que no início, os programas eram
construídos de forma muito simples e tinham a veleidade de fazer chegar o pensamento do MFA e até o de
justificar todas as suas derivas, junto da população que
encara a revolução com algum distanciamento.
Julgo que é da natureza humana, uma certa desconfiança dos movimentos de rotura política. Já assim foi
no passado. A implantação da República em 1910, em
Santa Marta de Penaguião, tendo como base a narrativa do jornal Comércio do Porto de dois de Novembro:
“sem sobressaltos, sem estranheza, e sem entusiasmo,
quase um mês depois”.
A Régua desse período era um centro social muito
24
interessante. Entreposto comercial de excelência, com
uma procura que congestionava as ruas centrais dos
Camilos e Ferreirinha. Todos os dias milhares de pessoas vinham à Régua, tratar de negócios do sector do
vinho e da vinha.
À quarta-feira, dia da feira semanal, eram
frequentes os encravamentos do trânsito com longos
concertos das sonoras buzinas. Os comboios andavam
repletos no vale do Douro. Havia gente do Pocinho,
de Barca D’Alva, de Baião, Marco de Canavezes, de
Cinfães e muitos outros lugares, sobretudo do Douro
Vinhateiro, cujo relacionamento comercial hoje nos
parece improvável.
O programa apontava para esta população, que
passou a ir à com frequência à Rádio Alto Douro. Desde as jovens, para ir dar um beijinho aos locutores, à
população rural que pretendia expor os seus problemas ao MFA. Os políticos queriam falar com os comandantes. Chegavam queixas e pedidos de apoio
para vários fins: água, arranjos de caminhos, aberturas
de estradões e com frequência o pedido de apoio para
transporte de doentes.
O programa serviu também de suporte a denúncias
de supostos comportamentos, comprometedores da
revolução. Por iniciativa dos novos governadores civis,
as câmaras foram destituídas e a gestão dos municípios
e das juntas de freguesia, passou a fazer-se por comissão administrativa. Porém, as nomeações eram por vezes contestadas, dando lugar a demissões e a novos indigitados. Em Vila Real, no pequeno espaço temporal
até às primeiras eleições autárquicas de 76, a câmara
conheceu três presidentes. Na freguesia de Godim, na
Régua, o presidente da Junta era um homem de Salazar,
o célebre Chico Camoca, com tanta autoridade que,
um ano depois da revolução, continuava intocável.
Neste caldo social, viveu-se o que se designou por
«Verão Quente», com situações de profundo mal-estar
e conflitos graves.
Havia uma parte da população que se manifestava
com entusiasmo dando cobertura e apoio directo às
iniciativas do MFA, mas havia também quem as deplorasse. Os partidos que entretanto se iam consolidando
acentuavam clivagens com palavras e actos públicos.
Vincava-se o sentido de Esquerda e de Direita. Gente
que tinha abraçado a revolução afastava-se. Adormeciam socialistas e acordavam salazaristas de novo.
Questionava-se a presença dos militares nos estúdios da Rádio Alto Douro. O jipe e o unimog parados à
entrada tornaram-se símbolos da ocupação militar da
estação emissora. Os militares passaram a permanecer
durante mais tempo, fazendo da discoteca, a sua sala
de trabalho permanente. Nós, os trabalhadores, éramos alvo preferencial de calúnias e responsabilizados
por tudo o que se ouvia nas rádios nacionais. Bom e
mau. Um disco, do Pedro Barroso, com uma letra que
atingia os “doutores”, e que ainda nem tinha chegado
sequer à Régua, inspirou uma crónica muito agressiva
de um médico, que nos responsabilizava pelo texto e
gerou uma campanha anti Rádio Alto Douro.
A Vera Lagoa, líder de audiência de Direita, publicou uma notícia, acusando-nos de hastearmos, lado a
lado e com igual dignidade, a bandeira nacional e a
bandeira do Partido Comunista. Grande aparato, processo interno de averiguações, para constatar que não
existia, nem nunca tinha existido, mastro nenhum que
permitisse o hastear de qualquer bandeira.
Todos os dias chegavam informações sobre iniciativas da sociedade civil para ocupar a estação emissora. Os comerciantes da Régua combinaram concretizar
um boicote comercial à Rádio Alto Douro, que vivia
da publicidade. A estação emissora ficou apenas com
o anúncio da Casa Ermida, comércio de ferragens, materiais de construção e lavoura, que não concordando
com a posição dos colegas, manteve a sua publicidade.
O Partido Socialista, liderado pelo Dr. Camilo Botelho, que mais tarde viria a ser Governador Civil de
Vila Real, logrou concretizar uma ocupação simbólica
dos estúdios, dizendo pretender evitar a ocupação por
forças da direita que sabiam eminente.
Aos estúdios da Rádio Alto Douro chegaram dezenas de militantes socialistas. Tocaram à porta e
meteram logo o pé, - à Martim Moniz -, para que se
não fechasse. O colega que os recebeu, Alfredo Alvela, prestigiado jornalista, que vindo de Lisboa dirigia
a Rádio naquele período, prontificou-se a recebê-los,
não como ocupantes, mas como convidados. Entram
uns tantos que a casa era pequena e não cabiam todos. Logo se compreendeu que a presença dos políticos constituía um gesto agressor que não seria aceite. Contactada a hierarquia pelo telefone, a direcção
do RCP – Rádio Clube Português, a cuja empresa
pertencíamos, promoveu uma reunião de emergência
com o MFA. Fomos todos para o Porto e nos estúdios
do RCP da Rua Tenente Valadim, em presença de
altos dirigentes militares da Região Norte, (General
Corvacho e Major Delegado) a situação foi pacificada
com um comunicado conciliador, lido aos microfones
da emissora da liberdade e distribuído depois pela
25
imprensa.
Vivemos um período de grande insegurança. A
presença dos militares não chegava. Passamos a ter a
presença da Polícia de Segurança Pública de noite. Situação que se arrastou para lá do 25 de Novembro de
1975 e só desapareceu com a reabertura da Rádio Alto
Douro depois da sua nacionalização.
Hoje o que nos parece complexo e estranho, na
ocasião foi vivido com absoluta normalidade.
Era jovem, tinha chegado da guerra há relativamente pouco tempo, e sentia que os acontecimentos
me propiciavam as melhores condições para a profissão de jornalista.
Com muito entusiasmo e espírito de equipa combatíamos as correntes mais radicais, que nos empurravam para situações pantanosas ou pouco claras, e
procurávamos ganhar a confiança dos ouvintes em espaços recreativos e desportivos. A contestação ao trabalho era produzida por um grupo pequeno, comparado com os apoios que nos chegavam dos diferentes
pontos da região.
Foi incontestavelmente um período muito rico de
episódios de toda a espécie. Dos mais genuínos e ingénuos actos de ternura, compreensão e bondade, até às
peripécias burlescas, ridículas e perigosas.
O sentido de perigo, nem sempre teve correspondência com a realidade.
O dia mais longo e difícil foi o 1 de Junho de 1975.
O Governo tinha nomeado, ainda em 1974, uma
Comissão Liquidatária para a Casa do Douro, liderada pelo engenheiro Serpa Pimentel, com nove pessoas.
Constou, no final do mês de Maio, que o governo se
preparava para nomear uma nova direcção para a Casa
do Douro, presidida pelo Capitão Pardal e afecta ao
Partido Comunista.
Logo foi criado um movimento social, liderado
pelo médico Luís Roseira, do Partido Socialista, e pelo
professor Fernando Pinto do Partido Popular Democrático, hoje PSD, que se opôs a esta determinação.
Um carro invulgar, de matrícula luxemburguesa,
com potente aparelhagem de som, percorreu aldeias
e vilas mobilizando lavradores de todo o Douro, para
uma manifestação impeditiva de arrebatarem a Casa
do Douro à lavoura duriense.
O carro era conduzido pelo André da Cumieira,
meu companheiro de infância, bem conhecido pela
força e convicção que punha em todas as causas que
abraçava. Era impressionante a capacidade de mobilização. Calava a cassete gravada, agarrava-se ao mi-
crofone dirigindo-se de forma directa e vibrante às
pessoas que observava, impelindo-as a comparecer na
Régua. Conseguiu uma mobilização extraordinária.
Mais do que a Rádio Alto Douro, o Rádio Clube
Português, nos seus noticiários, tinha feito a defesa da
anunciada deliberação do governo. Nesse dia, 1 de Junho de 75, foi com naturalidade que uma equipa de
reportagem chegou para cobrir a posse da nova direcção da Casa do Douro, com os meios adequados para a
transmissão em directo. Carro parado logo no cima da
rua da Alegria, junto à porta lateral, para ser mais fácil
o acesso às escadas e elevador e transportar os materiais para o salão nobre onde a sessão iria decorrer. Escolheu-se o local para a posto de reportagem, mesmo
junto à varanda, para que desta se pudesse cobrir também o que se passava na rua.
A um dado momento ouvimos berros sincopados:
«hei, hei, hei…» – fomos ver: a multidão arrastava o
Citroën Dyane do Rádio Clube Português. Sobressai
de entre a multidão a voz do engenheiro Daniel Carneiro: – «que estão a fazer? O carro está aberto!... Se é
para o atirar ao rio basta destravá-lo». Ato contínuo,
entrou dentro do carro, pô-lo a trabalhar e fugiu com
ele guardando-o numa garagem comercial.
A multidão começou a gritar: «jornalistas rua,
fora…» dirigindo-se para as escadas de acesso ao salão nobre. Militares do CIOE – Centro de Instrução de
Operações Especiais de Lamego, sob comando de um
dos sargentos, barram-lhes o caminho já no segundo
lance de escadas, ameaçam abrir fogo e só conseguem
a retirada com recurso ao som ameaçador do bater das
culatras das espingardas G3 ao introduzir bala na câmara.
Em todo este tempo líderes dos movimentos políticos envolvidos estão em conversações nas salas contíguas de direcção. O salão nobre enche-se de gente,
utilizam a mesa central, (peça muito frágil, de grande
valor decorativo que ainda hoje existe), como palco e
ouvem-se inflamados discursos.
A contestação é violenta de tal maneira que o engenheiro Armindo Martinho, director destituído pelo
Governo Provisório, ajuíza que toda aquela gente pretende o modelo anterior, pensa que afinal o querem
a ele, sobe para cima da mesa e tenta falar. Ouve-se
uma vaia monumental: «fora, rua, fascista…» é mesmo agredido com alguns socos e tem muita dificuldade em sair do improvisado palanque. Apelos à ordem
de Luís Roseira e Fernando Pinto, também em cima da
mesa, dando conta de negociações com o MFA através
26
do Major Delegado da Fonseca.
Saber-se-á depois que intervieram também três
importantes ministros sem pasta. Luís Roseira tinha
como interlocutor Mário Soares, Fenando Pinto, Magalhães Mota e nas teses do Partido Comunista o próprio Álvaro Cunhal.
Enquanto tudo isto se passa, o grupo dos jornalistas da rádio estava a trabalhar junto do topo poente
da sala. À esquerda a Emissora Nacional, mais à direita, junto ao varandim, a equipa do Rádio Clube
Português e da Rádio Alto Douro. À época só havia
um canal de televisão e os meios técnicos de então
não permitiam directos. Lembro-me de andar a tentar
saber o que se passava junto das salas de direcção, e
ver um colega e amigo da escola secundária, (Augusto
Boanerges) funcionário da Casa do Douro, dirigir-se
a mim muito preocupado, para me prevenir de que
havia um grupo de manifestantes, que tinha definido
a estratégia de ir comprimindo lentamente o nosso
grupo de trabalho contra a varanda, para depois atirar
o nosso chefe (Carlos Ruela) para a rua. Corri para o
sargento, e este avisado, criou de imediato um cordão
de segurança com militares à volta do espaço onde se
concentrava a comunicação social. Na sequência deste
acontecimento, Carlos Ruela até aí director da Rádio
Alto Douro, visivelmente transtornado, saiu protegido por militares e abandonou a Casa do Douro. O
seu traumatismo foi de tal ordem que veio depois a
ser internado para tratamento numa Casa de Saúde do
Porto.
Todos queriam falar. Discursos inflamados e contraditórios na linha de pensamento. Luís Roseira e Fernando Pinto repetiam os apelos à ordem até à chegada
das notícias do Governo de Lisboa: depois de várias
discussões entre as partes interessadas, foi decidido
constituir uma Comissão de Gestão, com dez pessoas,
que passou a gerir a Casa do Douro, assim constituída: Cap. Esmeraldo Joaquim Delgado Pardal; Dr. João
Fernandes da Cunha Sousa Machado; Dr. Adelino
Carlos Vilela Pereira Portela; Dr.ª Maria Manuela Rodrigues da Silva Oliveira; Eng.º António José Cardoso
Sequeira; Eng.º António José Borges Mesquita Montes;
José da Silva Gouveia; Jorge Alberto de Carvalho Santos Silva; Arq.º José Alberto Cleto Sampaio e António
Augusto Santos Grácio. No meio de lavradores técnicos do sector e políticos estava, pela primeira vez, um
cavador da vinha. Dizia-se que ganhava num mês o
que os seus pares não ganhavam num ano.
A liderança do grupo foi quase naturalmente assu-
mida pelo Capitão Pardal. Se muitos o continuam a relacionar com o período desagradável da vida do Douro, pessoalmente dele guardo as grandes preocupações
de natureza social e a defesa que entendia dever fazer
dos sectores mais desprotegidos. O empenho para fazer nesse ano o escoamento dos vinhos, foi notável.
A operação que parecia impossível, pelo boicote, ou
pelo menos falta de colaboração dos comerciantes de
Gaia, teve consequências inteiramente salutares para a
lavoura duriense. Ele e o engenheiro Mesquita Montes, que partilhavam nessa altura o mesmo gabinete,
fizeram o levantamento de todos os armazéns particulares do Douro, mandaram reparar cubas e tonéis,
conseguiram escoar toda a colheita do ano anterior,
garantindo o vasilhame necessário para a produção do
ano da revolução.
O modelo de governação da Casa do Douro sofreu
muitas vicissitudes. Os seus estatutos foram alterados.
As eleições nem sempre foram pacíficas. A democratização da Casa do Douro, então anunciada, merecia um
estudo profundo, que sugiro como tese de sociólogo.
Primeira greve.
Em Setembro de 1974, fui alertado por colega
da redacção de Lisboa, de que havia um movimento
de greve, na vindima de uma Quinta, em Casais do
Douro.
Carregado com o gravador, (na época o gravador
de reportagem pesava cerca de sete quilos), dirigi-me
a Casais do Douro, freguesia de Ervedosa do Douro no
concelho de S. João da Pesqueira.
Caminhei para o terreiro interior, vulgar ainda hoje
nas quintas tradicionais do Douro, e naquele espaço,
a escassos metros dos lagares e da casa dos proprietários, encontrei um grupo de trabalhadores, não muito
numeroso, que exigia garantias para que o trabalho da
pousa, o pisar das uvas, fosse pago de forma complementar ao trabalho da jorna diária. Perante a presença do jornalista, o líder que claramente me esperava,
abandonou a persuasão dos companheiros para falar
comigo.
Alto, rosto seco dourado pelo sol, impressionava quando abria a boca: muito desdentado, tinha um
dente que dançava com o seu exaltado falar, ameaçando cair a todo o momento. A convicção dos restantes
não era grande. No grupo havia mesmo quem manifestasse pena da situação do patrão: «Não fosse o vinho
estragar-se por causa da greve».
O líder insistia na necessidade de não trabalharem
e dizia-se convencido, «de que no dia seguinte, em to-
27
das as quintas do Douro se iria passar igual». Queriam
receber mais dinheiro quando além da acarta das uvas,
durante o dia, também tivessem que as pisar à noite.
Nesse dia não houve lagarada. Os proprietários
não apareceram, desprezaram o movimento e no dia
seguinte facilmente arranjaram outros trabalhadores
e fizeram o vinho. Alguns dos grevistas participaram
no trabalho sem que lhes fosse dada qualquer garantia
para pagamento extra. A primeira greve pouco mais
foi do que uma notícia. No entanto, progressivamente este trabalho foi reconhecido e pago complementarmente. Fiquei desiludido. Quando fui averiguar da
evolução dos acontecimentos, soube da greve, mas fiquei sem saber se o dente do líder dos grevistas tinha
caído ou não.
Primeira ocupação de uma quinta.
Já em 1975, depois de muitas ocupações de propriedades no Alentejo, acordei certa manhã com a
notícia de que nesse dia se daria a primeira ocupação
de uma Quinta no Douro. A informação, embora integrando o noticiário, tinha um certo ar festivo, dizia-se que se tratava de uma quinta abandonada, que um
grupo de trabalhadores iria passar a explorar. Não estranhei quando chegou o pedido de Lisboa para fazermos a cobertura do acontecimento. Os pormenores da
convocatória mostravam mão profissional. Tinha hora
marcada e local de encontro estabelecido. Era a Quinta
da Telhada, junto a Nogueira, no alto da estrada que
ligava Vila Real à Régua por Vilarinho dos Freires. Lá
chegados, encontramos um grupo de pessoas claramente à espera dos jornalistas. O grupo avançou para
a entrada da Quinta como quem vai para um piquenique. Porém, ainda antes do portão de entrada, da suposta Quinta abandonada, um outro grupo, bem menor em número, mas, mais parecido com verdadeiros
trabalhadores rurais correu para nós, bem munidos de
enxadas e varapaus. Varreram num ápice o grupo ocupante. Jornalistas incluídos.
Houve notícia da eminente ocupação e notícia da
não ocupação de facto.
No chamado «Verão Quente», raro era o dia em que
não havia um acontecimento relevante e de denúncia
abjecta. Esquerda e direita provocavam-se.
Lembro as armas escondidas do Moura Borges.
Denúncia anónima chega à GNR – Guarda Nacional Republicana, informando que o engenheiro Moura
Borges, pessoa tida como próxima do Partido Comunista – PCP, foi visto a esconder armas, tipo G3, na
Quinta da Igreja.
A Guarda Nacional Republicana avança para Fontelas, cerca a quinta e o próprio Capitão Bernardino vai verificar a existência das espingardas. Perante
a inexistência de qualquer arma, é o próprio Moura
Borges que incita que elas podem estar no interior dos
santos no altar. O capitão, conhecido homem de Igreja, ajoelha-se, reza, e só depois ganha coragem para
ir constatar que as imagens são de madeira, nada podendo esconder. Ao lado o Moura Borges ri de forma
insidiosa.
As provocações deste homem eram permanentes. Lopes Cardoso, Ministro da Agricultura, veio ao
Douro para tratar de assuntos relacionados com a Real
Companhia Velha. Foi convidado a visitar uma propriedade do Moura Borges, engenheiro agrícola muito
inovador, que tinha investido em patamares mecanizáveis, os primeiros do Alto Douro, com vinha regada e
citrinos nos taludes. Aproximava-se a comitiva quando um dos fotógrafos entrou no interior da propriedade, andando de costas, para fazer uma fotografia com
o cortejo a entrar. Sai a correr, interrompe o grupo,
e alerta que do lado de dentro, só visível do interior,
está um grande letreiro a dizer: «À saída todos os FP
limpem bem os pés para deixarem a terra a quem a
trabalha». No chão, em jeito de tapete, estavam umas
correntes de ferro, para sacudir os pés.
O bom senso nem sempre esteve presente e o período viveu imensas situações caricatas a raiar a anedota.
Uma denunciada de abuso de um agricultor de Boticas, que veio à Régua pedir para a GNR não ir mais
à sua povoação. Explicou que foi visitado por um capitão da GNR, que lhe pediu um copo de vinho para
matar a sede. Ele, por delicadeza e hábito de transmontano, ofereceu-lhe logo pão e presunto para acompanhar. O graduado gabou o presunto, que era uma
delícia, e ele delicadamente pô-lo à vontade: «coma sr.
capitão o presunto é seu, não faça cerimónia». Perante
isto o capitão respondeu imediatamente: «se o presunto
é meu como-o em casa». Agradeceu, chamou o soldado condutor e ordenou-lhe para o guardar. O lavrador do Barroso disse que na ocasião não teve reacção,
mas quando comentou o caso com os vizinhos, soube
que o mesmo capitão e com a mesma situação, já tinha
trazido mais presuntos.
Era frequente, ir gente à rádio à noite levar de comer e beber às forças de segurança que ali se encontravam: vinho do Porto, cervejas, sandes e comida de
recurso. Numa das noites, um dos apoiantes, apanhou
28
um soldado distraído, pegou-lhe na arma, uma G3, e
foi exibir-se armado para o café Stop, na rua da Ferreirinha.
As situações de denúncias apareciam, por vezes
com tal rigor e pormenores, que eram levadas a sério.
Em determinada ocasião chegou ao MFA a informação de que pessoa importante tinha levantado todo
o dinheiro da sua conta e da adega que dirigia e se
preparava para fugir. Os militares confirmam a informação junto de um empregado bancário e avançaram
para o impedir.
Chegaram na hora em que o caixão do visado saia
para o cemitério. O homem tinha morrido e a viúva
para evitar dificuldades burocráticas tinha de facto levantado todo o seu dinheiro. Mas, só o seu dinheiro.
As peripécias nem sempre tiveram graça e em muitos casos foram mesmo bem dramáticas.
O assassinato do padre Max e da Maria de Lurdes
são exemplo disso mesmo. O padre Max morreu muito jovem, aos 33 anos. Era muito popular. Entrevistei-o poucos dias antes da sua morte em Vila Real onde
era professor. Lembro o seu entusiasmo em criar um
programa de preparação para os jovens das aldeias e
de apoio aos adultos. «Antes de emigrarem, os adultos,
precisavam de saber falar francês». A Maria de Lurdes,
que veio a morrer com ele, acompanhava-o nessa fatídica noite depois de darem explicações na Cumieira.
Os excessos são sempre condenáveis. Houve muitos nesse período, vivemos picos de tensão por coisas
verdadeiramente mesquinhas. Nas primeiras eleições
os comícios deram origem a apedrejamentos das caravanas partidárias e até a tiros intimidatórios. Reporto
a minha experiência. Ainda comigo em África, o meu
carro conduzido por familiar meu, integrado na caravana do PPD, foi apedrejado em Murça, depois de um
comício em Mirandela. Mais tarde, dispararam dois
tiros de caçadeira, de uma caravana partidária, para a
porta da casa do meu pai em Sarnadelo, Santa Marta
de Penaguião, porque membro da Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de Sever, tinha pedido a
demissão por não concordar com a política de obras.
Ao terminar este relato, cujo interesse será apenas
o de ilustrar factos vividos, que podem colorir teses
mais profundas sobre este período, quero apresentar
um voto de gratidão, a muitas figuras anónimas, que se
empenharam em campanhas de solidariedade, apoio
social e actos de apaziguamento e pacificação.
Homens e mulheres que deram o seu melhor no
apoio a outros sem nada pedir.
O facto mais relevante deste período foi o da solidariedade. Havia felicidade no apoio aos outros. Só
em actos de guerra observei espírito de fraternidade
semelhante. O mais elevado que conheci.
29
Painel 1
Revoltas e
Revoluções no
Douro
oitentista
José Viriato Capela
António Monteiro Cardoso
Célia Taborda da Silva
30
31
As Invasões Francesas
e a Restauração Nacional de 1808
o Juiz do Povo e Junta dos Prudentes de Viseu
texto: José Viriato Capela
Lab 2 PT/UMinho
AS INVASÕES FRANCESAS
EM PORTUGAL
N
ão é de todo homogéneo o tempo, nem
uniformes os processos históricos que se
vivem e desenrolam em Portugal entre
1807 e 1811 sob o impacto das três invasões francesas
que assolaram o território. Deixando de parte a 3.ª invasão, de menor impacto territorial, torna-se necessário distinguir mais claramente a primeira da segunda
invasão, nos seus condicionalismos próprios, nas suas
continuidades, mas também descontinuidades e roturas.
1. A Primeira e a Segunda Invasões
C
omparemo-las nos seus aspetos essenciais, desde logo nos agentes e contextos. A 1.ª invasão de finais de 1807 é uma
ação conjunta de franceses e espanhóis, resultado
de um acordo de conquista e partilha do território
português. A 2.ª invasão, de março de 1809, é uma
ação exclusivamente francesa porque se rompera a
colaboração entre espanhóis e franceses. Ao tempo da
2.ª invasão a conquista e integração de Espanha está
agora também nos horizontes franceses. As vicissitudes
da invasão e conquistas de Soult em Portugal correm
em relação direta com as vicissitudes da presença e
domínio dos franceses em Espanha (designadamente
da duração do governo pro-francês de José Bonaparte).
Em 1807-08, portugueses e espanhóis são em grande
parte inimigos, estão em pólos opostos. Os espanhóis
são invasores e conquistadores, acordam-se com os
franceses na divisão e anexação de Portugal. Em 1809
defendem a causa comum de libertação da Península e
são aliados na Guerra Peninsular que agora assim deve
ser chamada. São também bem diferentes os termos
32
Nota biográfica:
José Viriato Eiras Capela é, desde 1998, Professor Catedrático do Departamento
de História da Universidade do Minho. É membro do CITCEM – Centro de
Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», da Real Academia
Galega e da Academia Portuguesa de História. É, ainda, membro do Conselho
Consultivo da Revista Lusitana Sacra e membro efectivo do Conselho Científico
da Comissão Portuguesa de História Militar, entre outros. Entre 2000 e 2009 foi,
Pró-Reitor e Vice-Reitor da Universidade do Minho e, finalmente, Presidente do
Conselho Cultural dessa Universidade.
Tem como principais áreas científicas de interesse, com larga produção
científica, a História Moderna e Contemporânea de Portugal e a História das
Instituições da Cultura e das Mentalidades. Como outra área científica de interesse
tem a História do Municipalismo português.
Está envolvido na publicação sistemática das Memórias Paroquiais de 1758
para todo o país, estando já publicados os Distritos de Braga, Viana do Castelo,
Vila Real, Bragança, Porto, Viseu, Aveiro/Coimbra e Guarda (em tratamento o
distrito de Lisboa e Setúbal).
33
das suas realizações. A 1.ª invasão é uma invasão
pacífica. Os franceses dizem vir como libertadores
(das instituições de Antigo Regime e do jugo e
monopólio dos ingleses); assim também são vistos
por afrancesados-ilustrados portugueses, que são
poucos. As autoridades promoverão bom acolhimento
dos invasores e tudo farão para evitar conflitos. A 2.ª
invasão é uma ação militar, com fortes efetivos e meios;
envolve organização da defesa e mobilização civil
contra o invasor; provoca fortes confrontos militares,
mortes, devastações, incêndios, fuzilamentos …
Comparemo-las também na sua extensão e medidas políticas. A 1.ª invasão conquistará e dominará
Portugal no seu conjunto, com a instalação do governo em Lisboa e guarnições e governos militares por
todo o País. O Norte a partir do Porto será ocupado
e dominado por tropas e guarnições espanholas. Envolve a partir de 1 de fevereiro de 1808 uma forte integração e “afrancesamento” das instituições, com programas de reforma “revolucionários” para Portugal, a
saber: 1 – Contribuições gerais (muito gravosas, sem
respeito pelos privilégios e ordenamento social-fiscal
tradicional); 2 – Reformas administrativas à francesa
(corregedores-mores e vontade de proceder à reforma
administrativa e territorial, que acabasse com a administração de Antigo Regime). 3 – Proposta de Código
Civil, uma Constituição e novo rei para Portugal.
A 2.ª invasão entra pelo Norte, conquistará o Porto,
não se configurará como domínio nacional. A forte resistência das populações, a atuação e apoio ingleses, as
vicissitudes da guerra francesa em Espanha, não permitem o projeto de conquista de Portugal; Soult pouco avançará para além do Porto. A curta duração do
domínio francês de Soult no Porto (29 março a fim de
abril) não permitiu desenvolver grandes projetos para
Portugal, tirando a vontade de Soult de aí ser coroado
rei e para tal ter mobilizado e encenado o beija-mão e
as aclamações de deputações nortenhas.1
2 – A resistência e a Restauração
de Portugal (1808)
C
omo é sabido, os programas de integração
de Portugal no Sistema Continental francês
e Império Napoleónico sempre tiveram em
conta a participação e a plataforma espanhola. Por isso
1 CAPELA; MATOS; BORRALHEIRO, 2009.
as vicissitudes e caminhos da invasão e conquista, e
logo da resistência e luta pela independência em Portugal sempre devem ser articuladas ao que se passa em
Espanha. A 1.ª invasão é, como referimos, ação conjunta de franceses e espanhóis. O fim da 1.ª invasão e
o início das Aclamações no Porto (a partir de 6 de junho de 1808) estão associados e são estimulados pelo
rompimento das relações entre franceses e espanhóis.
A partida das guarnições espanholas do Porto incentivaram e convidaram os portuenses a rebelar-se e a
fazer causa comum da guerra dos espanhóis e povos
peninsulares contra os franceses, inimigos, invasores e
conquistadores comuns. Depois, os obstáculos ao desenvolvimento do programa de Soult em Portugal têm
que ver com as dificuldades dos franceses em Espanha
e a não chegada de complementos de forças francesas
estacionadas em Espanha para auxiliar as manobras de
Soult em Portugal.
A resistência na 1.ª invasão e a expulsão dos franceses é, no essencial, uma ação da luta das Províncias,
do corpo da Nação. Nelas relevará sobretudo a ação
das Províncias mais afastadas do centro do controlo
e dominação político-militar do governo de Junot em
Lisboa. E em particular das Províncias mais próximas
de Espanha, que se articulam mais diretamente com
o movimento de independência e das Juntas Espanholas, que deflagrará depois do 2 de maio. É o caso
das Províncias do Norte, do Minho, Trás-os-Montes
e Beiras e também do Algarve, cujas Juntas se articulam ativamente com os territórios espanhóis vizinhos
e suas Juntas.
O movimento de Aclamação do príncipe regente pelo Norte de Portugal e reino terá seu ponto de
partida com o Grito do Porto a 6 de maio, com mais
forte eco em terras e Províncias fronteiriças nortenhas
de Valença, Melgaço, Chaves e em geral pelas terras
transmontanas. Depois destas primeiras Aclamações
que são em geral espontâneas, populares, de base concelhia, expressão do mais profundo sentimento de independência do povo português, o movimento tomará
uma feição e organização institucional onde emerge
o papel dos principais centros político-militares das
Províncias nortenhas. O Porto tomará a iniciativa,
seguido das cabeças dos governos militares – Viana e
Bragança – das cabeças das terras de 1.º governo administrativo – sedes de comarcas e concelhos de juízes
de fora com assento em Cortes - onde se constituem
as Juntas de Governo provinciais e governos políticos
municipais mais alargados.
34
Este movimento da Restauração Nacional decorre
a par da Revolução Espanhola do 2 de maio, como se
disse e do seu Movimento Junteiro. Mas arranca em
Portugal quando se torna mais gravosa a governação e administração francesas: cobrança efetiva dos
impostos (com a especialmente gravosa e atentadora
para o clero e as comunidades da recolha da prata das
igrejas), e abertura do processo de plesbicito de uma
Constituição à francesa para Portugal e após abolição
da Casa de Bragança, proposta de um rei da família de
Napoleão, para Portugal.
Esta Revolução vai ter como pano de fundo e suporte, o papel e ação política e social, dos concelhos.
Usurpado o governo legítimo, os concelhos em obediência à Lei e Constituição tradicional Portuguesa,
assumem pelos braços da Nação o governo do reino
que deterão provisoriamente, para reintegrar no Soberano, logo que a nação e Portugal se tiverem libertado
do “jugo” da usurpação, tirania e conquistas francesa e napoleónica. A ação de Libertação correrá pelas
Juntas, dos concelhos, das comarcas e províncias; finalmente pela Junta do Porto, depois do acordo e protocolo com as demais Juntas nortenhas que assumirá o
plano superior do governo e a libertação de Portugal.
O Porto, o Norte comandará o processo de Restauração da Independência Nacional, a que o exército e os
ingleses ajudarão a dar conclusão com as batalhas da
Roliça e Vimeiro, a assinatura da Convenção de Sintra
e final partida de Junot (setembro de 1808).
Nas Juntas Provisionais tomarão assento, ao lado,
ou por sobre, os camaristas dos concelhos, os braços da Nação, clero, nobreza e povo, os magistrados
das instituições políticas e militares régias nacionais,
quando existentes nas terras (corregedores, desembargadores, militares). Vão presididas pelos bispos
das dioceses, pelos mais altos comandos militares das
Províncias ou pelos mais altos magistrados régios nas
terras. No final é a recomposição mais extensa do poder e ordem política e social da Monarquia Portuguesa
que nelas se realiza. A Junta do Porto de 1808, pretende organizar-se mesmo como um Congresso para o
Governo da Nação para que concorrerão Deputados
nomeados pelas Juntas de Viana e Bragança. Pode ver-se aí uma composição política ao modo das Cortes
tradicionais ou uma pré-composição de um Sinédrio e
Cortes Constituintes.
E as Juntas, com o Porto à cabeça, terão como tarefas essenciais: Aclamação e Restauração dos Direitos
Reais e Nacionais da Monarquia Portuguesa; reorgani-
zação do poder político e sobretudo o militar; manutenção da ordem social, paz social, dentro do quadro
da conservação da ordem social antiga, que conterão
nalguns casos programas revolucionários.
3 – A vaga das Aclamações
nortenhas e transmontanas
E
m 5/6 junho de 1808 inicia-se, no Norte, o
ciclo das Aclamações “inorgânicas” e “espontâneas” logo seguido da 2.ª vaga de Aclamações institucionais e a constituição das Juntas pós
18 de junho desse ano de 1808 – com a constituição da
Junta do Porto - que se encerra na final Restauração,
com a libertação de Lisboa, a assinatura da Convenção
de Sintra a 30 de agosto de 1808, entre franceses e ingleses, e a partida de Junot.
As primeiras Aclamações iniciadas no Porto e Chaves são iniludivelmente um movimento de origem
militar ou paramilitar. Adscrevem-se-lhe logo – se é
que não o suportam de início – elementos de todas as
classes, e em massa as classes populares. No Porto são
as guarnições da Foz, Matosinhos, Castelo do Queijo, com o apoio da população da cidade e os militares
de um brigue inglês ancorado fora da barra. Deixemos aqui de lado o movimento dos Levantamentos e
Aclamações na Província Minhota e fixemos, particularmente, os da Província de Trás-os-Montes. Em
particular por Chaves onde o movimento de revolta e
revolução ganha pioneirismo.
Em Chaves a iniciativa da revolta é dos “conjurados”, os funcionários da Administração dos Provimentos de boca da tropa – organização paramilitar que trata do abastecimento da tropa – que se viram afastados
pela entrada em cena de um arrematante do assento
do referido fornecimento. Neste caso a origem está
numa reivindicação profissional: a substituição do serviço de fornecimentos ao Exército. A organização da
revolução dos funcionários da referida “Administração” toma a forma de “conjuração”, à 1640, invoca uma
organização prévia, secreta, e um plano de desenvolvimento. Que progressivamente tem em vista enlaçar
todas as ordens da sociedade, em ações de amplitude
política e social crescente e que se articulará também
ao desenvolvimento das ações noutras terras da Província, culminando também na constituição da Junta
flaviense a 25 de junho. A espontaneidade não está de
35
facto aqui presente, bem pelo contrário, os conjurados
que reúnem em Assembleia, são presididos pelo Administrador que é o chefe da Revolta.
Organizam-se e consagram-se à causa da Restauração com a imposição solene do tope da Nação, em que
numa fita escarlate se lê a inscrição: «vencer ou morrer
pela Religião e pelo Príncipe Regente». Mobilizarão os
militares, o juiz de fora, os camaristas, a nobreza e demais estados para a causa da Restauração; pretendem
despertar em todos os flavienses o mais decidido Patriotismo e organizar um governo de confiança popular; festejam com jubilo a chegada pelo correio da notícia da Aclamação do Porto do dia 6; contactam com
o Governador da Província, Sepúlveda, em Bragança,
mas sobretudo com Vila Real e Francisco da Silveira,
para participarem na defesa contra a entrada dos franceses pelo Douro (pelos dias 19). Festejaram a notícia
da Aclamação e constituição da Junta do Porto do dia
18 e promoveram a constituição da Junta Flaviense em
25 de junho.
Papel significativo foi também o desempenhado
pelo General Sepúlveda Governador da Província militar de Trás os Montes a partir da Proclamação do dia
11 de junho, com o seu envio às terras da Província e
convite do povo para aclamar D. João e a iniciar a causa
da defesa da Província. Na sequência da sua Proclamação multiplicam-se os gestos, os vivas e proclamações.
E a Província parece aclamar em uníssono D. João e
preparar-se para expulsar o invasor e a defender-se de
novas investidas. Tal situação e clima estará depois na
origem – como é dito – da nova e decisiva ação portuense do dia 18. Parecendo sufocada e contida, a Revolução portuense desde as jornadas revolucionárias
entre 5 e 8 de junho, com o estímulo das Aclamações e
insurreições gerais transmontanas, em especial de Vila
Real iniciadas no dia 15 para 16 (a que podemos também juntar às de Viana, nos mesmos dias) – levanta-se
de novo a ação popular e militar portuense na Aclamação do dia 18, que se firmará na criação da sua Junta
Provisional Suprema.
A partir do Porto as Aclamações retomarão – agora
maioritariamente conduzidas pelos poderes e elites locais tradicionais - com todo o vigor por todo o Norte.
Com elas a constituição do movimento das Juntas que
se organizará e suportará em definitivo a Restauração.
Fixemos a cronologia da constituição das principais
juntas nortenhas. Algumas delas já em relação com as
movimentações nas terras que vêm de 5/6 de junho
e que retomam por meados do mês (dias 15 e 16 em
Vila Real, Viana e outras partes), mas a maior parte na
sequência da criação da Junta do Porto de 18 de Junho:
Na Província do Minho - Porto, 18; Guimarães,
20; Viana, 19; Braga, 20; Barcelos, 21.
Na Província de Trás-os-Montes - Bragança, 21;
Vila Real, 23; Chaves, 25; Torre de Moncorvo, 25; Miranda do Douro, 27; Lamego, 23; Viseu, 30.
4 – Centralidade de Vila Real
na Revolução transmontana e beiraltina
E
m Trás-os-Montes a Junta de Bragança,
destinada em princípio a exercer um papel
político e militar geral sobre a Província,
governada pelo General Sepúlveda, viria de facto a
desempenhar um papel pouco relevante. Negaram-se em geral as terras a corresponder à nomeação de
Deputados para a sua Junta, como foi solicitado. As
resistências à liderança e centralidade brigantina são
grandes, vêm das áreas mais periféricas à Província e
também das mais articuladas ao Porto e à Província do
Minho, das principais terras que buscam outra(s) centralidade(s) políticas para a região. De um modo geral
a unanimidade é geral no sentido que o único centro
de governo regional nortenho tem de estar no Porto.
E em relação com a maior e mais rápida articulação
e comunicação com o Porto, é que se devem organizar os centros políticos para a defesa da Província. Isto
sem embargo, do poder próprio militar do Governo
das Armas da Província e do seu quartel em Bragança.
Vila Real, logo no auto de Aclamação de 23 de
Junho, exprimiria a sua adesão à Junta do Porto, salvaguardando a autoridade militar do General da Província. Na vereação seguinte, confrontada com o ofício do tenente-general da Província, com data de 25
de Junho, «sobre enviar um deputado à Junta reunida
na cidade de Bragança», responde que fizera termo de
união à Junta do Porto, ficando deste modo «incompatível» nomear alguém para Bragança.
Chaves é absolutamente favorável ao governo da
Junta do Porto, sem limitações. Como alega, a Província não tem meios económicos, nem rendas para suportar os seus cinco regimentos; precisa do auxílio do
Porto e da Província do Minho: Precisamos do socorro
do Porto e Província do Minho (...) é necessário que o
governo das Províncias do Norte seja uniforme. Propõe
mesmo que o governo geral das armas da Província se
36
transfira e coloque o seu quartel general em Vila Real,
ponto central das comunicações com toda a Província,
com o Porto e com o Minho e da defesa militar da Província, cujas ameaças vêm, por então, das partes das
margens do Douro. Sempre em Vila Real se deve estabelecer um posto militar para mais facilmente se comunicar com a Junta e Regência da cidade do Porto e
transmitir as suas ordens a todos os lados da Província
transmontana. Chaves militaria ativamente por esta
solução e programa que aliás enviou, com os termos
da sua Proclamação, às câmaras cabeças de comarca
da Província para decidirem se estão conformes com a
deliberação desta câmara. Em conformidade com esta
posição, negou-se Chaves a nomear um seu representante para a Junta de Bragança, como se lhe tinha requerido.
Conhecemos o posicionamento de Mirandela face
às requisições de Bragança e reações à proposta de
Chaves. É de parecer favorável ao voto da câmara de
Chaves a fim de que a Junta de Bragança e mais Juntas
provinciais fiquem subalternas à da cidade do Porto. A
fundamentação é a das circunstâncias que concorrem
para que a segunda cidade do país reúna os meios económicos, de defesa e de união das Províncias do Norte
para sacudir com a causa comum, o jugo da dominação
e usurpação. E concorda também com a proposta e argumentos de Chaves de estabelecer quartel-general em
Vila Real e concentração da defesa no Douro.
O certo é que estas propostas vieram a ser acolhidas. A concentração e reforço militar de Vila Real viria de facto a fazer-se com a criação e instalação em
Vila Real, por finais do ano do Exército de Observação para a Defesa da Província de Trás-os-Montes
e Beira Alta (vereação de Vila Real, assento de 14 de
dezembro de 1808).
Coincidentes com Chaves, no outro extremo da
Província, por razões idênticas aos das terras do pólo
oposto da Província, são as propostas de Miranda.
Chega a nomear representante à Junta de Bragança.
Mas logo advoga que se deveria reorganizar o plano
da defesa da Província, indo ao encontro de propostas
mais de acordo com uma maior centralidade organizativa e defensiva. Aliás chega a vias de facto, ao desvincular-se de Bragança e constituir unia Junta particular
para a sua defesa, porque da Junta Provincial não vem
apoio. E vai mais longe, ao estabelecer um acordo de
defesa e segurança pública com a Junta de Zamora,
pela defesa e protecção da região de onde vem a particular ameaça de guerra mas também do bandoleiris-
mo2.
5 – A invasão e a Restauração
em Viseu e Lamego3
O
Levantamento Geral das Províncias Nortenhas, em articulação com a final proclamação da Restauração e constituição da
Junta do Porto, fez movimentar o exército de Loison,
que a 17 de junho já sai de Almeida, em direção ao
Porto para sufocar o levantamento da cidade. «Levava
2600 homens (com 100 de cavalaria), intentava domar
o Porto, todo o país além Douro, tendo de fazer frente
a toda a Beira Alta» (…). Na marcha achou tudo pacifico até Lamego, onde chegou a 20 e no dia seguinte ainda
conseguiu passar o Douro na Barca da Regua.
Mas, as dificuldades da marcha são patentes, promovidas sobretudo pela resistência das populações, no
quadro das suas ordenanças e milícias e com o ânimo
dos párocos.
«Era quasi tudo paisanagem, algumas milícias e
muita pouca tropa de linha, porque a não havia. Os
clérigos e os religiosos faziam uma parte muito considerável desta expedição, e deve-se-lhes muito, não só pelo
valor e atividade que despregavam, mas também pelo
entusiasmo que sabiam inspirar aos povos. Um religioso
autorizado e resoluto, um abade ou mesmo um cura,
à frente do seu povo, valia por um general: as suas ordens eram obedecidas sem réplica. Este mesmo espirito
manifestou-se no clero por toda a parte do reino: era a
consequência de uma guerra que tomava os caracteres
de guerra de religião e da pátria».
As tropas de Loison, passado Lamego, entraram em
Viseu, sem resistência dos poderes da terra. Tal como
noutras terras, também aqui se avaliou a capacidade
de resistência da terra. Florêncio José Correia de Melo,
governador das Armas da Província, convoca uma
Junta para decidir da resistência ou entrega da cidade.
O general e o vereador mais velho da câmara votam
pela resistência; o corregedor, o juiz de fora e demais
camaristas pela recepção amigável. E assim se decidiu.
Entraram os franceses, não pediram boletos, acamparam no Campo da Feira. Mais tarde o povo amotinado
2 CAPELA; MATOS; BORRALHEIRO, 2008.
3 Seguimos neste ponto, diretamente, a informação contida em José
Acúrsio das Neves (1983) - História geral da invasão dos franceses em
Portugal e da restauração deste Reino. «Obras completas de José Acúrsio
das Neves», volume 2, tomos, III, IV, V, (Tomo III, cap. XVIII; Tomo IV,
cap. XLV), Porto: Edições Afrontamento.
37
substituirá revolucionariamente os poderes constituídos pelo modo como as autoridades tinham recebido
Loison e a sua tropa.
Loison e seu exército retrocederão para Almeida,
ficando à saída a ideia de que iriam no encalço de
Coimbra por terem tomado a estrada de Mangualde,
até próximo de Celorico. É então que a 30 de junho
Viseu procederá à Aclamação Nacional do príncipe
regente e à constituição da sua Junta, num modo totalmente tradicional. Pelo mesmo tempo, o fizeram os
de Foz Côa e outras terras; Lamego tinha-o feito a 23
como se referiu. Na Aclamação e Junta participaram a
convocatória das autoridades constituídas com a assistência do bispo, general, corregedor, juiz de fora, camara, clero, nobreza e povo.
6 – Juiz do Povo e Junta dos Prudentes de Viseu
T
em-se vindo a referir que neste processo de
Levantamento e Restauração da Independência Nacional e expulsão dos Invasores,
por sob um unanimismo que acaba por ser vitorioso,
e em proveito das classes tradicionais que repõem e
recuperam o poder na constituição das Juntas – eventualmente com o alargamento da representação a outras classes sociais – está presente, ora ativo, ora a larvar o movimento mais profundo, subterrâneo mesmo,
a revolução das classes populares. Nuns casos tomam
a iniciativa da ação, noutros o trajeto do movimento,
chegando a desencadear também a sua revolução política e social contra a ordem Feudal, Absolutista, dos
poderes régios e locais, nas terras e nas câmaras. Em
algumas terras a Restauração e os novos Governos
constituirão a mais ou menos tempo, Governos Revolucionários, de rotura, usurpação e substituição dos
poderes tradicionais. Aconteceu em muitas terras de
diferentes hierarquias, mas nem sempre estes movimentos e governos vieram ao registo e às Memórias da
Revolução e Restauração.
Em Acúrsio das Neves na sua História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal e da Restauração deste
Reino, apesar da fixação “conservadora” dos factos da
Restauração e da constituição das Juntas, ainda são
relatados os factos mais populares, revolucionários
destes movimentos, incluindo os seus gestos e tempos de duração. É o caso do relatado para Viseu, onde
por causa dos termos em que se fizera a “acomodação
dos franceses” e dos termos da reconstituição do po-
der pela Junta em 30 de junho, se relata, a constituição de um governo revolucionário, do juiz do povo,
na sequência de um levantamento geral do povo no
imediato à aclamação e constituição da Junta. De facto
relata, no dia seguinte, a 1 de julho, ter-se apresentado
no palácio episcopal, onde se reunia a Junta presidida
pelo bispo, como juiz eleito pelo povo. E perante os
factos e movimento popular, as autoridades e o escrivão da câmara não só dão juramento e posse ao juiz
do povo mas também aos 24 que ele apresenta para o
governo da cidade. Este novo poder é realçado e proclamado no auge das revoltas e motim de 11 de julho,
no «ajuntamento de mais de 3000 pessoas que naquela
manhã de 11 de julho se levantaram em massa na praça do Colégio e adro da Sé a fim de desempenhar as
funções determinadas no Regimento dado a semelhantes cargos nas maiores, mais bem regulados cidades do
Reino…, isto é, constituir no juiz do povo e na Junta
dos 24 todo o poder da cidade. Decidem a prisão do
general, requerem também a prisão do juiz de fora e
deposição dos camaristas. Tudo fizeram com ordem
do corregedor da comarca, ordenada pelo bispo sob
imposição do juiz do povo e amotinados.
Contra a câmara e autoridades o povo elege um
juiz do povo, que refere A. das Neves era emprego que
não costumava haver naquela cidade, adiantando-se
a indicar o indivíduo que para isso destinavam e dois
advogados que lhe dariam acessória... Homem que foi
feito juiz do povo a quem o escrivão da camara passou a
lavrar o auto de juramento, ficou sendo mais que Bispo
e mais que General, refere. E a quem o bispo proclamado Generalíssimo Bispo e o General adjunto que lhe foi
nomeado, António da Silveira Pinto da Fonseca, não
se animaram a repelir ou resistir tal pretensão.
Este juiz do povo vai acompanhado desde a sua
posse, a 2 de julho, de 24 indivíduos, que se anunciaram, nomeados pelo juiz do povo para constituírem
uma Junta, a quem foi dado juramento e posse. Pelo
arbítrio desta notável Junta, baptizada com o nome da
Junta dos Prudentes, se ficou regendo a cidade. Nada
que espantasse José Acúrsio das Neves que descreve
na sua História Geral movimentos revolucionários da
mesma natureza, tal como o que descreve desenvolvidamente para a vila e concelho dos Arcos, na província do Minho. Não fixa A. das Neves, como o faz para
aquela vila alto-minhota, a ação política e as medidas
tomadas pelo juiz do povo e Junta dos 24 dos Prudentes de Viseu. Certamente, ao modo do que se verificou para os Arcos, registar-se-iam ao mesmo tempo
38
medidas e gestos de um programa revolucionário e
conservador que afastasse as ditaduras e opressões dos
poderosos das terras e fosse ao encontro dos anseios
dos povos que um governo de naturais e populares deveria realizar em muitos casos já movidos pelos ventos
da Revolução de 1789. Singular é que aqui em Viseu se
recorresse ao figurino de uma instituição – o juiz do
povo e os 24 - que na história de Portugal, do seu governo civil e político, desempenhou em Lisboa e noutras maiores cidades do Reino, ações decisivas em prol
da população e da defesa do reino.
A notícia destes eventos, em Viseu, chegando ao
Porto, logo moveu as autoridades a agir. Expediram-se ordens ao provedor de Lamego datadas de 20, 21
e 25, para que passasse logo a Viseu a informar-se de
tudo. Na sequência do informe à Junta do Porto, pela
Relação foi determinado (9 setembro) se fizesse soltar
o general e juiz de fora e reintegrar nos seus empregos; que os oficiais da câmara e o capitão-mor fossem
igualmente reintegrados, mandando prender os réus
de que tratava o Provedor de Lamego (…) e proceder a
devassa. Foram pois restabelecidas as autoridades legítimas.
Mas na entrada de novo os Franceses no Porto (2.ª
invasão) o povo força tumultuariamente as cadeias
a 22 de março de 1809, libertando todos os réus que
nelas se achavam. Informa A. das Neves, que alguns
deles se têm depois reconduzido à prisão; de outras
não houve notícia. Isto é, o governo viseense entrava
de novo na normalidade institucional e a Restauração
seguia a Ordem Geral do Reino.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CAPELA, José Viriato; MATOS, Henrique e BORRALHEIRO, Rogério (2008) – O Heróico Patriotismo
das Províncias do Norte. Os concelhos da Restauração
de Portugal. Braga: Casa-Museu de Monção, Universidade do Minho.
CAPELA, José Viriato; MATOS, Henrique; BORRALHEIRO, Rogério (2009) – Sempre Fiel e Leal. O
Porto na restauração nortenha e defesa da independência nacional (1808-1809), PORTO: Área Metropolitana
do Porto.
NEVES, José Acúrsio (1983) - História geral da invasão dos franceses em Portugal e da restauração deste
Reino. «Obras completas de José Acúrsio das Neves»,
volume 2, tomos, III, IV, V. Porto: Edições Afrontamento.
39
A Revolução Liberal
no Douro
texto: António Monteiro Cardoso
IHC/FCSH/UNL
[email protected]
Resumo:
A revolução liberal de 1820 desencadeou na região do Douro um forte conflito entre os apoiantes da
Companhia das Vinhas do Alto Douro e os que sustentavam a sua extinção.
Essa oposição predominava no Cima Corgo, em
contraste com o Baixo Corgo, onde a Companhia tinha grandes apoios. A isso veio acrescer uma profunda divisão política, com um Cima Corgo liberal e um
Baixo Corgo absolutista.
Daí que, quando a partir de 1823 se desencadeiam
as revoltas absolutistas, seguidas de uma guerra civil,
o Douro vai assistir a fortes conflitos armados entre
vizinhos.
É conhecido o papel da família Silveira, que deu
ao Douro a imagem de zona forte do miguelismo,
esquecendo as guerrilhas liberais que se levantaram
por três vezes no Cima Corgo e as centenas de prisões
que sofreram.
Abstract:
The 1820 liberal revolution unleashed in the Douro region a strong conflict between the supporters of
the Company of Alto Douro Viticulture and those
that supported their extinction.
This opposition predominated in Cima Corgo, in
contrast to the Baixo Corgo, where the Company had
great support. It reinforced a deep political divide, with
a liberal Cima Corgo and an absolutist Baixo Corgo.
Hence, when from 1823 the absolutist uprisings
begun, followed by a civil war, the Douro faced strong
armed conflict between neighbors.
The role of the Silveira family is well known, it
contributed to the Douro’s reputation as a region of
supporters of D. Miguel, forgetting the liberal guerrillas which stood up three times in the Cima Corgo
and the hundreds of arrests they suffered.
Palavras-chave: Companhia das Vinhas; Cima
Corgo; Baixo Corgo; Revolução liberal.
Keywords: Company of Alto Douro; Cima Corgo;
Baixo Corgo; Liberal revolution.
40
Nota biográfica:
António Manuel Monteiro Cardoso é Doutorado em História Moderna e
Contemporânea pelo ISCTE-IUL, com a tese A Revolução Liberal em Trás-osMontes (1820-1834). O Povo e as Elites, em 2005, e investigador do Instituto de
História Contemporânea da Universidade de Lisboa (IHC/FCSH/UNL). Como
investigador, tem-se dedicado ao estudo dos movimentos sociais, nomeadamente
na região duriense, tendo publicado:
— «O debate sobre a Companhia e as atitudes políticas no Douro (1820-1834)».
In O Douro Contemporâneo. Porto: GEHVID, 2006, pp. 39-53.
— A Revolução Liberal em Trás-os-Montes (1820-1834). O Povo e as Elites.
Porto: Edições Afrontamento, 2007.
— «A questão da livre navegação no Douro e a crise de 1840 entre Portugal
e Espanha». In Entre discursos de centro e práticas de fronteira. Lisboa: IELT
– Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e
Edições Colibri, 2009, pp. 53-72.
— «Alves Redol: um olhar sobre o Douro». In Alves Redol. O Olhar das Ciências
Sociais. Lisboa: Edições Colibri, 2014, p. 353-367.
41
A
revolução liberal desencadeada no Porto com o pronunciamento militar de 24
de Agosto de 1820 inaugura uma época
de movimentações políticas e militares,
que culminaram numa cruenta guerra civil entre liberais e miguelistas, somente concluída formalmente
com a convenção de Évora Monte em 26 de Maio de
1834.
Como acontece sempre nestas lutas civis travadas à
escala nacional, o conflito principal, de cariz dinástico
e de regime político, desencadeia ou agudiza violentos confrontos a nível local, envolvendo as populações
como sucedeu de forma notória na região do Douro.
Na origem desse conflito que dividiu profundamente a região e colocou vizinhos contra vizinhos,
aldeias contra aldeias, numa luta verdadeiramente fratricida, está a diferente posição das populações quanto
à Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto
Douro, fundada pelo marquês de Pombal, em 1756, ou
seja em relação à venda do vinho, vital para a sobrevivência dos viticultores durienses, sempre ameaçados
pela escassez da procura.
De facto, muitos viticultores do Baixo Corgo apoiavam a Companhia, que lhes assegurava a exportação
dos vinhos, pois grande parte deles ficara dentro da
demarcação de “vinhos de feitoria”, únicos que se podiam exportar, enquanto os produtores do Cima Corgo opunham-se-lhe radicalmente por entenderem que
constituía um entrave para a sua atividade.
A rivalidade entre estas sub-regiões remontava aos
finais de setecentos, uma época de prosperidade do
vinho do Porto, devido à maior procura inglesa. Para
responder ao aumento das exportações, alargou-se a
zona de produção dos “vinhos de feitoria” que se expandiu para leste, através das “demarcações subsidiárias”, fixadas entre 1788 e 1791, no reinado de D. Maria I, que passaram a incluir algumas áreas do Cima
Corgo.
Porém, poucos anos depois, logo que a procura dos
vinhos diminuiu, a rivalidade entre as duas sub-regiões
extremou-se a tal ponto que, em 1797, um conjunto de
câmaras do Baixo Corgo (Penaguião, Mesão Frio, Fontes, Godim e Lamego) pediram que ficasse sem efeito
a demarcação subsidiária. A isto se opôs com sucesso
a câmara de Alijó, sustentando que ali se produziam
melhores vinhos do que na demarcação primordial.
Anos mais tarde, a revolução de 1820 vai encontrar
o Douro numa conjuntura de crise, pois a colheita tinha sido abundante, a procura diminuíra e a Companhia não tinha meios económicos para comprar todo
o vinho aprovado.
A situação agudizou-se com a abertura das Cortes
constituintes em Janeiro de 1821, onde entrou na ordem dia a discussão da reforma da Companhia, cujos
privilégios, segundo alguns deputados, chocavam com
os princípios constitucionais.
O ataque à Companhia partiu do que virá a ser o
seu principal inimigo, o deputado Girão, de seu nome
completo, António Lobo Barbosa Ferreira Teixeira Girão, morgado de Vilarinho de S. Romão, que defendeu
que lhe fossem retirados os seus exclusivos, começando pelo do fabrico e venda da aguardente. Seguiu-se
a apresentação de uma representação assinada por
600 cidadãos do Porto para que se abolisse o privilégio da venda exclusiva nas tabernas da cidade. Estava
em aberto a sua extinção na prática, pois a Companhia
não podia sobreviver sem os seus privilégios.
O debate nas Cortes depressa se repercutiu no
Douro, que se movimentou contra e a favor da Companhia, através do envio às Cortes de numerosas petições e pela circulação de inúmeros folhetos e de cartas
na imprensa da época, que chega a publicar números
especiais para dar a conhecer rapidamente a marcha
dos debates parlamentares.
O estilo desta propaganda é apaixonado, com os
opositores a lembrarem que a Companhia nascera
num “berço de sangue” e no sangue havia de morrer
(aludindo à repressão dos motins do Porto, em 1757),
enquanto os apoiantes falam dela como o banco, que
há 70 anos faz a fortuna dos lavradores do Douro.
Os opositores da Companhia eram quase todos
liberais convictos, como o deputado Girão e grande
parte dos lavradores do Cima Corgo, pois a sua extinção só era possível se o sistema constitucional se mantivesse.
A Companhia colheu apoio de alguns deputados
liberais destacados, oriundos do Baixo Corgo, como
por exemplo, o abade de Medrões, Inocêncio António de Miranda, autor do célebre “Cidadão Lusitano”,
que foi posto no Index e o deputado António Pereira
Carneiro Canavarro, proprietário em Santa Marta e
capitão-mor de Peso da Régua. De resto, a Companhia
favorecera o pronunciamento liberal de 1820, sobretudo através de José Ferreira Borges, um dos homens do
42
“Sinédrio”, homem muito ligado à Companhia, da qual
foi secretário.
No entanto, quando as Cortes avançaram num sentido claramente liberal, especialmente com a aprovação da Constituição de 1822, a Companhia e muitos
dos seus apaniguados no Douro passaram a apostar no
derrube do regime constitucional, envolvendo-se nas
revoltas absolutistas e mais tarde no apoio a D. Miguel.
A primeira revolta armada contra o regime liberal,
iniciada em Vila Real em 23 de Fevereiro de 1823, veio
evidenciar a divisão política profunda existente no
Douro.
À testa desta revolta, encontra-se Francisco da
Silveira, segundo conde de Amarante, natural de
Canelas, apoiado por um círculo de fidalgos durienses,
mais exatamente do Baixo Corgo, quase todos oficiais
de cavalaria e parentes entre si. Os títulos de visconde
com que mais tarde foram recompensados ilustram a
sua origem geográfica: António da Silveira (visconde
de Canelas), Gaspar Teixeira (visconde do Peso da
Régua), Bernardo da Silveira (visconde da Várzea [de
Abrunhais]), entre outros.
Os revoltosos tiveram um sucesso inicial, porque
conseguiram sublevar as tropas de Bragança e principalmente de Chaves, onde dispunham de grande
influência e existia descontentamento pela abolição
pelas cortes do foro militar, que os subalternizava em
relação aos magistrados. Obtiveram uma vitória na batalha do monte de Santa Bárbara, perto de Chaves, ao
atacarem de surpresa uma força liberal, mas acabaram
por ser forçados a retirar para Espanha, perseguidos
por tropas constitucionais, numericamente superiores.
Apesar da derrota, esta revolta valeu ao Douro, desde 1823, a reputação de uma região onde dominava o
absolutismo e onde a população se opusera em massa
às tropas constitucionais.
Trata-se de uma ideia que perdura até hoje, mas
que só poderá aplicar-se à família Silveira e aos fidalgos do Baixo Corgo, seus partidários e dependentes e
que passa pela omissão da atitude política prevalecente
no Cima Corgo.
De facto, a revolta do Conde de Amarante suscitou
imediata oposição no Cima Corgo, onde uma companhia de milícias se reuniu em Alijó com o intuito
de atacar os revoltosos de Vila Real, ao mesmo tempo
que os seus emissários eram fortemente hostilizados,
como sucedeu na feira de Favaios.
Esta polarização entre as duas sub-regiões do Douro firmou-se ainda mais na rebelião seguinte, nos anos
de 1826-1827, desta vez contra o juramento da Carta
Constitucional, promovida de novo por Francisco da
Silveira, que entretanto obtivera o título de Marquês
de Chaves, que surge em campo acompanhado dos revoltosos de 1823.
Esta movimentação traduziu-se numa invasão por
tropas portuguesas a partir de Espanha, para onde tinham desertado ao longo do ano de 1826, como forma
de se oporem à Carta, que o governo mandara jurar.
Tratou-se de uma invasão à escala nacional, que
permitiu aos absolutistas que entraram por Trás-os-Montes apoderar-se temporariamente do norte do
país, chegando a aproximar-se do Porto. Desta vez, os
revoltosos não hesitam em mobilizar centenas de pessoas como guerrilhas em povos “fiéis” como Canelas,
Covelos, Covelinhas, Penajóia, Mesão Frio e Cidadelhe, todos no Baixo Corgo.
Ficou célebre o gesto da marquesa de Chaves, que
fugiu de noite de Vila Real para Galafura, onde reuniu
mais de duas mil pessoas, à frente das quais marchou
em cortejo, que entrou de surpresa em Vila Real. Estava achado um ícone da lealdade do Douro à causa
realista, mas a verdade é que isto ocorria em aldeias
de jornaleiros e pequenos lavradores na dependência
dos Silveiras.
Esquece-se mais uma vez que havia um outro
Douro ferreamente constitucional no Cima Corgo, os
“patriotas voluntários” de Vale de Mendiz, Celeirós,
Castedo e Sanfins, armados e fardados na cidade do
Porto, que ajudaram a desalojar as forças do Marquês
de Chaves que tinham ocupado Foz Tua.
A tomada do poder por D. Miguel como rei absoluto em Março de 1828 e a revolta militar liberal que
se seguiu no Porto em Maio daquele ano provocaram
uma guerra civil, na qual se manifestou mais uma vez
a divisão política do Douro.
Assim, enquanto no Baixo Corgo, os fidalgos que
participaram nas revoltas anteriores, agora liderados
por Gaspar Teixeira, visconde de Peso da Régua, marcharam na direção de Amarante para atacar as tropas liberais, arrastando milicianos e guerrilheiros, no
Cima Corgo levantava-se a famosa guerrilha constitucional de Vale de Mendiz, comandada por António da
Veiga e Sousa, alferes de ordenanças do Castedo, que
juntou mais de 500 homens armados oriundos de um
conjunto de povoações situadas entre o Tua e o Pinhão.
Era a terceira vez que o Cima Corgo se armava contra as tentativas antiliberais no Douro, mas essa parte
da história nunca é contada, mas apenas a “adoração”
43
pronúncia de cerca de 10.000 pessoas em todo o país.
Se alguns dos réus lograram escapar, sobretudo exilando-se do país, muitos milhares atulharam as prisões,
de tal modo que houve que recorrer a todo o tipo de
fortificações militares para os encarcerar. Ficaram célebres pela crueldade dos carcereiros e pelas péssimas
condições prisionais o forte de S. Julião da Barra, junto
ao Tejo ou a cadeia da Relação do Porto. Raro é o castelo em Portugal que não serviu de presídio para os presos
políticos liberais, acusados pelo crime de rebelião.
Essas devassas permitem-nos agora saber, apesar
das omissões, qual o número de réus acusados, a sua
proveniência geográfica e o seu emprego ou modo de
subsistência.
Esta análise permitiu-nos concluir que, com o impressionante resultado de 903 pronunciados pelo crime de rebelião, as devassas tiradas na comarca de Vila
Real assumiram enorme amplitude que terá representado a mais intensa repressão política da história contemporânea portuguesa
Para compreendermos esta vaga repressiva, há que
considerar que a comarca de Vila Real abrangia uma
área extensíssima, que incluía grande parte da área
vinhateira situada entre o Corgo e o Pinhão, ou seja
as povoações dos concelhos de Alijó e Favaios, onde
se tinham formado guerrilhas liberais nos anos anteriores. Para entender melhor a distribuição geográfica
das povoações com maior número de réus processados
nas devassas de 1828, intercalamos o seguinte mapa.
Rio
Rio Co
rgo
fanática do povo pelos Marqueses de Chaves, na senda
da descrição pitoresca de Oliveira Martins no “Portugal Contemporâneo».
Para combater esta guerrilha, agora intitulada batalhão de voluntários do Senhor D. Pedro IV, os miguelistas levantaram guerrilhas de sinal contrário,
que cometeram roubos, incêndios, estragos e prisões
tumultuárias às mãos dos voluntários realistas de Vila
Real, comandados por um barbeiro, conhecido por
“Foguete”, célebre pelas suas atrocidades.
Também na margem esquerda do Douro ocorreram violentos confrontos entre guerrilhas constitucionais e miguelistas, que envolveram choques armados
entre povoações. Em Moimenta da Beira formou-se
uma guerrilha liberal, com cerca de 60 homens, à qual
se uniram constitucionais de Tarouca, Trevões e de
Barcos, mas acabaram batidos por uma guerrilha miguelista de Tabuaço, armada pelo juiz de fora.
Com a derrota do exército liberal, consolidou-se o
poder de D. Miguel, que envia ao Porto uma alçada,
munida de poderes para processar e julgar os apoiantes da rebelião de 16 de Maio de 1828.
Embora a rebelião tivesse carácter militar, implicou
a cumplicidade e apoio de muitos civis, contra os quais
deviam ser abertas devassas em todas as terras, a cargo
dos corregedores, juízes de fora e outras autoridades,
sob a direção dos membros da Alçada.
Estas devassas constituíram a maior purga política
alguma vez levada a cabo em Portugal, implicando a
a
oT
Vilar de Maçada
C
Mezão Frio
Barqueiros
B
A
IX
O
O
R
G
Régua
a
roz
Va
Lamego
Galafura
Covelinhas
Rio Douro
Gouvinhas
COR GO
CIMA
Folgoza
Armamar
Barcos
Ri
oT
ed
o
Povoações com maior número de réus processados nas devassas de 1828
Tabuaço
a
avor
Rio T
Rio
uro
Alijó
S. Mamede de Ribatua
Favaios
Celeirós
Sabrosa
Vale de Mendiz
Vilarinho de
Rio
Cachão
S. Romão Castedo
Do
da Valeira
uro
Cotas S. João da
Pesqueira
Cumeeira
Penaguião
Rio Do
Cheires Sanfins
Rio Ce
Rio Teixeira
ira
Ri
O
Rio Tu
ão
Vila Real
a
h
Pin
Justes
a
nh
Rio
To
r
to
44
Nestas povoações, a mobilização liberal atingiu
transversalmente os vários grupos sociais, tanto incluindo proprietários, lavradores, padres e bacharéis
como simples jornaleiros, todos eles constitucionais
aguerridos, de que é exemplo a família Torga, formada
pelo pai e dois filhos, naturais de Sanfins, condenados
a pesadas penas de degredo.
Claro que esta polarização política comporta excepções, como a povoação de Cumieira, no concelho
de Santa Marta, que embora situada no Baixo Corgo
teve 64 pessoas perseguidas nas devassas.
As devassas atingiram também figuras, que se tinham distinguido na época liberal, como o ex-deputado Girão, o arqui-inimigo da Companhia, que esteve
escondido cinco anos e dois meses em Lisboa, quase
sempre num desvão de escada, aproveitando para escrever o seu livro de contos, intitulado Histórias de
Meninos, para Quem não For Criança, publicado logo
em 1834.
Também vários sacerdotes optaram pelo liberalismo, como o abade de Medrões, Inocêncio António de
Miranda, ex-deputado às Cortes, Frei Faustino de S.
Gualberto, um agostinho descalço, natural de Peso da
Régua, condenado a dez anos de degredo para a ilha
do Príncipe, por ter pregado no Porto contra D. Miguel, sem falar num jovem frade da Granja de Alijó,
Frei António Alves Martins, que se tornaria célebre,
anos depois como bispo de Viseu e influente político
liberal.
Com o declinar da causa miguelista, cujas tropas
não conseguiram entrar no Porto e com uma nova
conjuntura internacional favorável ao liberalismo decorrente da revolução de 1830 em França, os liberais
durienses voltaram à luta, que se traduziu em evasões
espetaculares das principais cadeias, como sucedeu
em Vila Real em Maio de 1832, onde fugiram 40 presos por um túnel subterrâneo, embora alguns tenham
sido recapturados.
Acresce que, no Douro, muitos que esperavam beneficiar com o reforço dos poderes da Companhia, sob
o reinado de D. Miguel, cedo se desiludiram porque
aquela passou a “separar” grandes quantidades de vinho, ou seja, a rejeitá-los no acto de prova, o que suscitou protestos das câmaras de Santa Marta, Godim e
Fontes e levou a protestos violentos na feira da Régua
de 1832, quando os lavradores presentes, incitados por
dois clérigos, ameaçaram os caixas e o deputado da
junta encarregada das compras, obrigando-as a fugir
para o Porto.
Reprovando embora os desacatos, o juiz de fora de
Santa Marta rogava que se acudisse aos clamores dos
“infelizes lavradores do Douro”, juntando uma exposição, em que se culpava a Junta da Companhia, por ter
instaurado na região uma “bárbara desigualdade”, pois
os que tinham o vinho aprovado vendiam a pipa a preços elevados, enquanto os que os outros eram forçados
a aceitar preços irrisórios.
Os favorecidos eram os deputados da Junta e os
poderosos, que incluíam até os “liberais mais afamados”, a quem não faltavam os meios de subornar os
provadores, enquanto os “Desvalidos, os Realistas, os
Lavradores” ficavam na miséria, muitos deles obrigados a vender as uvas, por não terem dinheiro para a
vindima.
Nestas circunstâncias, concluía-se que o Douro,
que em 1823 era conhecido em todo o reino pela sua
“realeza”, distinguia-se agora pelo seu liberalismo, observando com espanto que, de 1828 em diante, a “deserção do Realismo” era muito mais considerável do
que o tinha sido nos tempos constitucionais.
Embora possa haver aqui algum exagero, a verdade
é que quando, em Abril de 1834, o exército constitucional avançou para Trás-os-Montes, atravessando povoações do Baixo Corgo, célebres pelo apego à causa
miguelista e onde sempre deparara com forte resistência, tal não sucedeu desta vez.
Além disso, esse exército integrava o batalhão
transmontano, uma força de cerca de 350 homens,
grande parte dos quais tinham tomado parte na célebre guerrilha de Vale de Mendiz e povoações vizinhas,
mais uma vez, sob o comando de António da Veiga e
Sousa, do Castedo.
Após o final da guerra civil em 1834, assistiu-se a
uma desforra dos liberais que tinham sido perseguidos
nos anos anteriores, verificando-se roubos e saques de
casas de conhecidos miguelistas e ao homicídio de outros, como o célebre “Foguete” linchado em Vila Real,
do corregedor da comarca, Albano de Vasconcelos,
que dirigira as devassas e os irmãos Pinto Moreira, de
Santa Marta, miguelistas exaltados.
Com o passar dos anos, a paz voltou ao Douro, para
mais tarde se romper com violência, por ocasião da
Maria da Fonte e da “Patuleia”, mas isso é o tema de
outra conferência.
Quanto ao período compreendido entre 1820 e
1834, marcado politicamente pela luta entre liberais,
45
predominantes no Cima Corgo e absolutistas, depois
chamados miguelistas, prevalecentes no Baixo Corgo,
tudo isto com óbvias excepções, resultou em grande
parte da sua atitude face à Companhia. Contudo, seria
redutor analisar as opções políticas, unicamente com
base nesta questão, sem ter em conta as características
económicas e sociais específicas das duas sub-regiões
durienses.
De facto, o Baixo Corgo era uma zona de influência, por excelência, da propriedade eclesiástica e nobiliárquica, onde dominava uma fidalguia mais antiga.
No fundo, foi para os proteger que foi fundada a Companhia, que aí comprava a maior parte dos vinhos.
O panorama alterou-se com a expansão da vinha
para o Cima Corgo, onde passaram a produzir-se vinhos de cor escura, pagos a bom preço pelos negociantes do Porto, pelo que não careciam da Companhia
para escoar os vinhos, constituindo até um entrave ao
desenvolvimento da sua atividade.
O Cima Corgo, sobretudo a área entre o Pinhão e o
Tua, converteu-se numa área de eleição de negociantes-proprietários, movendo-se constantemente entre
o Douro e o Porto, onde possuíam casas, armazéns e
escritórios, uma espécie de empresários – viticultores
que tudo tinham a ganhar com a extinção da Companhia e a instauração do regime constitucional. Ou
seja, uma área de penetração na esfera da produção
dos homens de negócios do Porto, nacionais e ingleses.
Organizados como verdadeiras empresas de base
familiar, alguns destes proprietários lançam-se em
plantações arrojadas no Douro Superior, dando origem a importantes quintas, cuja produção introduziam clandestinamente na demarcação com facilidade
e depois livremente após a vitória liberal de 1834.
46
47
Ação coletiva no Douro:
a propósito das movimentações da “Maria da Fonte”
texto: Célia Taborda Silva
Universidade Lusófona do Porto
[email protected]
Resumo:
No Douro, foi intensa a ação coletiva durante o
período de instauração do liberalismo (1834-1851),
motivada por razões políticas, económicas, sociais e
religiosas, fruto da instabilidade política que se vivia
no país. A falta de controlo estatal contribuiu para a
afirmação dos poderes locais, propiciando a que antigos notáveis ao serviço do miguelismo pudessem ir
mantendo a sua influência junto das populações Entre as variadas ações conflituais ocorridas nesta época,
destacou-se o movimento da “Maria da Fonte”, por estar inserido numa revolta popular de dimensões nacionais.
Esta revolta, embora tenha eclodido no Minho, rapidamente se manifestou no Douro, e não apenas pelo
efeito contágio. Nos relatórios dos governadores civis
para o Ministério do Reino ficou evidenciado que,
desde 1845, havia movimentações das elites para preparar uma revolta na região duriense.
Através das ações que ocorreram na região, vamos analisar a “Maria da Fonte” no Douro e refletir
sob as peculiaridades do movimento neste território,
pois não foi por acaso que em Vila Real se formou a 1.ª
Junta revolucionária.
Abstract:
In the Douro, was intense collective action during
the period of introduction of liberalism (1834-1851),
motivated by political reasons, religious, social and
economic, the result of political instability that lived
in the country. The lack of State control served to the
affirmation of local authorities, providing what former
notable serving “miguelismo” could go while maintaining their influence with the various populations
Between conflicting actions that occurred at this time,
the movement of the “Maria da Fonte”, be inserted in a
popular uprising of national dimensions.
This uprising, although it has hatched in Minho,
quickly manifested itself in the Douro, and not just by
contagion effect. Civil governors reports to the Ministry of the Kingdom was evidenced that since 1845,
there was movement of the elites to prepare a revolt in
the Douro region.
Through the actions that occurred in the region, we
will analyze the “Maria da Fonte” in the Douro and
reflect under the peculiarities of the movement in this
country, because it was not by chance that in Vila Real
graduated the first revolutionary Junta.
Palavras-chave: Liberalismo, Douro, Ação coletiva, “Maria da Fonte”
Keywords: Liberalism, Douro, Collective Action,
“Maria da Fonte”
48
Nota biográfica:
Célia Maria Taborda da Silva é Professora Auxiliar na Universidade Lusófona
do Porto. É doutorada em História Contemporânea pela FLUP, com uma tese
intitulada: «Movimentos Sociais no Douro no período de implantação do
Liberalismo (1834-1855)». Tem várias publicações científicas na área da ação
coletiva e movimentos sociais em revistas portuguesas e estrangeiras, bem como
tem participado em conferências sobre a temática.
49
O
Antigo Regime não se desintegrou de
um momento para o outro, nem a sociedade liberal o substituiu repentinamente, levando o seu tempo a implantar-se, por razões que passam quer pelo arcaísmo da
própria estrutura social portuguesa quer pelo atraso a
nível económico e cultural.
Além de lenta, a transformação também não foi
pacífica. Na verdade, se em algumas situações o mundo rural e a sociedade provinciana do reino reagiram
com apatia à implementação do liberalismo, noutras
responderam com violência aos ventos de modernidade. Assim, este período de transição fez-se acompanhar de múltiplas e diversificadas situações conflituais,
principalmente nos campos, mais profundamente arreigados aos seus ancestrais tradicionalismos.
No Douro, foi intensa a ação coletiva durante o período de instauração do liberalismo (1834-1851)1, motivada por razões políticas, económicas, sociais e religiosas, fruto da instabilidade política que se vivia no
país. A falta de controlo estatal serviu para a afirmação
dos poderes locais como uma grande força, propiciando a que antigos notáveis ao serviço do miguelismo
pudessem ir mantendo a sua influência junto das populações. Entre as variadas ações conflituais ocorridas
nesta época, destacou-se o movimento da “Maria da
Fonte”, por estar inserido numa revolta popular de dimensões nacionais.
A vida na província, pouco dada a mudanças,
custava a adaptar-se à nova dinâmica política, que
pretendia introduzir alterações nos hábitos e costumes
instituídos. Com efeito, com a vitória do liberalismo,
iniciou-se uma nova fase na Administração Pública,
visando a formação de um sólido aparelho de Estado
para sustentar e consolidar o poder político da
burguesia ascendente.
Com o cabralismo (chegada ao poder de Costa Cabral), em 1842, acentuaram-se as reformas estruturais
que vinham a ser executadas pelos governos liberais
anteriores. António Bernardo da Costa Cabral, mal
conquistou o poder, tomou uma série de medidas tendentes à reestruturação da administração e finanças,
com vista à modernização do país. De março de 1842
1 SILVA, 2005.
a inícios de 1844, foi publicado o novo código administrativo, a constituição da Guarda Nacional, a gestão
económica das câmaras municipais, os vencimentos
dos funcionários, a lei sobre as estradas de 26 de julho
de 1843, o projeto de lei sobre a instrução pública de
4 de março de 1844, a lei sobre o imposto relativo à
transmissão da propriedade 2.
O descontentamento popular não tardou a manifestar-se. As reformas mais polémicas, contudo, foram
as tributárias. Em 19 de abril de 1845, foi publicado o
diploma sobre as contribuições diretas de repartição,
que operava uma profunda transformação no sistema fiscal, substituindo uma série de impostos por três
tributos: predial, de maneio e pessoal. A lei foi posta em execução a 16 de fevereiro de 1846, sendo de
imediato contestada. Para o povo, como refere Oliveira Martins, o imposto era considerado a «ladroeira»
dos homens de Lisboa. Os camponeses começaram a
desconfiar dos empregados do Estado que lhes batiam
à porta para inquirir dos seus bens e a entrarem em
confronto com eles. A contribuir para o desagrado sobreveio a execução das leis de saúde, que decretava a
obrigatoriedade dos enterramentos nos cemitérios, e
o imposto do covato, provocando uma transformação
das atitudes relativas às práticas ligadas à morte e aos
enterros. Por tudo isto, não foi com indiferença que as
populações rurais viram ruir o Portugal antigo, para
elas o verdadeiro, o ditoso, o bom, mais uma vez, nas
palavras de Oliveira Martins, substituído por um novo
e desconhecido Portugal.
Todo o dissabor gerado por estas medidas de Cabral
foi aproveitado pela oposição setembrista e miguelista,
estando bem patente a sua intervenção no movimento
popular da “Maria da Fonte” e na guerra civil que se
lhe seguiu, a Patuleia. Esta revolta, embora tenha eclodido no Minho, rapidamente se manifestou no Douro,
e não apenas pelo efeito contágio. Nos relatórios dos
governadores civis para o Ministério do Reino ficou
evidenciado que, desde 1845, havia movimentos de
notáveis para preparar uma revolta na região.
Através das ações que ocorreram na região, vamos analisar a “Maria da Fonte” no Douro e refletir
sob as peculiaridades do movimento neste território,
pois não foi por acaso que em Vila Real se formou a 1.ª
Junta revolucionária.
2 RIBEIRO, 1993:107-129.
50
A REVOLTA DA “MARIA DA FONTE” NO
DOURO: ESPONTANEIDADE OU CONTÁGIO?
A
revolução da “Maria da Fonte” começou
no Minho em março de 18463 e desde
logo se colocaram várias questões acerca
dos factos e da sua interpretação, questões essas que
permaneceram ao longo dos tempos na historiografia
nacional.
Alguns autores coevos forneceram os primeiros
elementos explicativos, inclinando-se para a tese da
espontaneidade, como J. P. Roby, A. Teixeira de Macedo e o padre Casimiro4. Oliveira Martins5 também
considerou que a revolta explodiu de um modo espontâneo, mas que, em seguida, foi aproveitada pelos
partidos políticos da oposição, sobretudo pelos setembristas. Seria Camilo Castelo Branco quem primeiro
emitiu opinião diferente no seu romance A Brasileira
de Prazins e, mais tarde, em Maria da Fonte6, afirmando que a «gentalha» agiu por influência de algum clero
setembrista. Apesar da pertinência das observações de
Camilo, foi-se difundindo, até praticamente aos nossos dias, o carácter espontâneo da sublevação.
Os historiadores foram, ao longo dos tempos, encontrando várias justificações para o movimento. No
final da década de sessenta e nos anos setenta, Victor
de Sá, Miriam Halpern Pereira e Manuel Villaverde
Cabral destacaram na revolta o seu caráter antifeudal,
antisenhorial e anticapitalista7. Estes autores centraram as suas perspetivas de análise na importância dos
fatores económicos e sociais, num cenário de desmoronamento de um mundo agrário pelo recuo do comunitarismo face ao individualismo capitalista que
se instalava, mas sem deixarem totalmente de lado a
espontaneidade das primeiras manifestações. A antropóloga Joyce Riegelhaupt8 defendeu o mesmo, sublinhando, além disso, o carácter antiestatal dos protestos pela ingerência do Estado na vida quotidiana e na
organização do ritual das comunidades camponesas.
José Manuel Sobral, num texto introdutório aos Apon-
tamentos do padre Casimiro, também admite o eclodir
espontâneo da revolta, referindo-se aos «quadros de
sociabilidade local»9. Estudos realizados sobre as atitudes mentais das populações perante a morte e o seu
culto10 permitem entender o modo como o processo
de laicização da vida local promovido pelos cabralistas, ao fazerem aplicar as leis de saúde e ao reformarem
as confrarias, pode ter desencadeado uma resistência
ativa contra o ministério cabralista. Luísa Tiago Oliveira11, em 1989, defendeu igualmente a espontaneidade nos «primeiros tempos» e a ausência de um «enquadramento político» definido.
Na região duriense, a questão da espontaneidade,
em nosso entender, não se coloca, não obstante muitos
dos levantamentos terem ocorrido no início de maio12,
portanto dentro do período cronológico considerado
como a primeira fase, a das revoltas espontâneas. Mas
perguntamos, como João Antunes Estêvão, se as revoltas alastraram de terra em terra e de concelho em concelho, como poderiam continuar a ser espontâneas13?
A resposta, para certos autores, reside na ausência de
contradição entre o contágio e a espontaneidade, afirmando que esta se continuou a verificar porque não
houve uma liderança a nível nacional14; logo, em termos de macro-história, pode falar-se de revoltas espontâneas. Agora, em termos micro-históricos, a nível
de cada comunidade, para utilizarmos a linguagem
dos antropólogos, essa hipótese já não parece ser tão
viável, e no Douro ainda menos, pois o gérmen do descontentamento há muito que fervilhava entre os povos. Desde o ano anterior, os governadores civis queixavam-se de que as «massas» se vinham pronunciando
muito contra os impostos15. O governador civil de Viseu avisava o governo do impacto negativo que tinha
causado nas massas o imposto das estradas, afirmando
inclusive que alguns homens do povo tinham tomado
9 Ver SOBRAL: 1986, no Prefácio aos Apontamentos do padre Casimiro,
nota 65.
10 FEIJÓ et al., 1985.
11 OLIVEIRA, 1989:161.
3 Sobre a revolta da Maria da Fonte na Póvoa de Lanhoso ver as obras
de CAPELA & BORRALHEIRO, 1996:11. Idem, 1999: 19. E também RORICK, 1984:118-119.
12 Para Riegelhaupt e Luísa Oliveira, a primeira fase, que para estas autoras e outros foi a espontânea, vai de março até maio de 1846.
4 ROBY, 1846. MACEDO, 1880, CASIMIRO, 1883.
13 5 MARTINS, s/d: 143-148.
6 CASTELO BRANCO, 1996.
7 SÁ, 1978:276-296; PEREIRA, 1983:293-4; CABRAL, 1976:134-52.
14 Hobsbawm duvida da existência de movimentos camponeses nacionais, afirmando que a norma é a existência de um conglomerado de movimentos locais e regionais, cuja unidade é momentânea e frágil. Conferir,
HOBSBAWM, 1976: 18.
8 RIEGELHAUPT, 1981:29-39.
15 ESTEVÃO, 1998:130.
A.N.T.T., A.S.E., Ministério do Reino. Livro 2. Processo 357.
51
parte na última revolta, na esperança de verem derrogada a lei de 26 de julho de 1843, pela vitória dos revoltosos. O governador fazia algumas «considerações»
acerca das múltiplas resistências que apareceriam se
executassem aquela lei sem nenhuma alteração16. O
governador da Guarda chamava a atenção para o mesmo facto, por considerarem os povos que «não estava
na justa proporção para com as classes proletárias ser
um tributo novo e grande em proporção ao que o povo
está habituado a pagar»; por isso, esperavam a vinda
de D. Miguel para lhes fazer justiça17. Os povos achavam aquele imposto demasiado pesado, por obrigar os
homens a trabalhar quatro dias por ano na construção
de estradas e ruas entre Lisboa e as cidades distritais
ou, não querendo ou não podendo fazê-lo, a pagar 400
réis de taxa anual durante 10 anos18.
O governador de Vila Real, em setembro de 1845,
em relatório confidencial para o Ministério do Reino, dizia que «os colligados da opposição andão mais
animados, tem frequentes reuniões e fazem espalhar
pelos povos, que se as Cortes derem apoio ao Ministério e este tiver maioria no Parlamento, que em tal
caso haverá revolução, que dizem ser inevitável que
está tudo preparado, tem dinheiros avultados, e todos
os recursos para a levar a effeito». A difusão da ideia
de revolução a acontecer proximamente corria por
todo o lado, sobretudo nas feiras19. O administrador
do concelho de Vila Flor comunicava para o de Murça
que os «anarchistas tentão por todo este mês sublevar
os Povos contra o Governo». Sabendo as intenções do
“inimigo”, aumentaram os efectivos militares em Vila
Real e Alijó e mandaram um Destacamento para Vila
Flor20.
Terá sido a eficácia dos administrativos e do exército que impediu a oposição de fazer a dita revolução em
1845, na região duriense, para que se dizia preparada?
Ou será que as notícias que espalhavam sobre os meios
que tinham para a fazer não passavam de propaganda
intimidatória21?
Os administradores de Alijó e Murça comentavam igualmente que, de dia para dia, o espírito dos
povos contra o governo piorava por causa do lançamento da décima e da contribuição para as estradas22.
As operações a que as Juntas de Lançamento da Décima procediam consistiam nas medições e avaliações
da terra, que era uma maneira nova de fazer tombos
e de calcular o imposto. Ora, o campesinato e a fidalguia local, que vivia essencialmente da terra, ficaram
alarmados por se prever um grande aumento dos impostos e até outros perigos desconhecidos que para a
gente simples sempre vinham associados à subida dos
encargos para com o Estado. Esses receios eram ampliados pelo clima de tensão gerado pela descida de
preços dos produtos agrícolas resultante do aumento
da produção23. Para o governador Civil de Vila Real,
os causadores de desconfianças e receios nos povos tinham sido os «sequazes do uzurpador»24.
Destes documentos pode inferir-se que a oposição
se mantinha atuante no Douro e desde 1844, portanto, quase todos os levantamentos que ocorreram na
região foram previamente preparados pela oposição
miguelista e setembrista que ia passando a mensagem
de revolta, por via oral, numa cadeia de transmissão
hierárquica que partia do clero e da nobreza ou de outros homens com influência social até chegar às massas populares. Daí concordarmos com Rui Feijó quando ele diz que nesta revolta há a coexistência de vários
movimentos sociais, havendo uma mobilização rural e
uma urbana, diferindo nos objetivos e nas formas de
que se revestiram25. Consideramos que a maioria dos
movimentos durienses, dentro desta classificação, foram urbanos.
Nesta região houve um claro aproveitamento político do descontentamento que os impostos estavam
a causar junto dos contribuintes. O governador civil
de Vila Real, no mês de abril, dizia que, nos concelhos
do Douro, os «mal intencionados tratão de desvairar
o Povo para que não pague as contribuições»26. Resta
16 Idem, ibidem. Processo 357, nº159.
17 Idem, ibidem. Processo 357, nº13.
nanceiros e, sobretudo, da ausência de uma liderança imediata, susceptível
de coordenar os recursos possíveis e promover, por assim dizer, a indispensável dinâmica multiplicadora das influências». BRISSOS, 1997: 84.
18 Idem, ibidem.
19 Idem, Livro 2. Processo 226-230, nº230.
23 Vivia-se numa época de estagnação do mercado de produtos agrícolas, pelo que qualquer imposto era sentido de forma muito mais dramática
pelos trabalhadores rurais. JUSTINO, 1981: 467-474.
20 Idem, ibidem, nº223.
24 A.N.T.T., A.S.E., Ministério do Reino, Livro 2. Processo 226-230.
25 FEIJÓ, 1981: 183-191.
21 Que a oposição, nomeadamente a miguelista, tinha optado pela via
subversiva como resistência ao Estado era um facto, mas, segundo José
Brissos, a «organização sediciosa destinada a cumprir este objectivo teve
uma difícil maturação mercê dos entraves resultantes da falta de meios fi-
22 A.N.T.T. A.S.E., Ministério do Reino, Livro 2. Processo 756-828.
26 Arquivo Municipal de Mesão Frio. Correspondência Recebida pelo Administrador no ano de 1846.
52
a dúvida acerca do motivo pelo qual não terão agido
mais cedo. Mas pensamos que o problema esteve na
dificuldade de encontrar um líder regional, o que conseguiram em Vila Real, embora somente a nível distrital, mas foi suficiente para aí se formar a 1.ª Junta
revolucionária.
A forte liderança desta Junta acabou por lhe dar
uma amplitude provincial. Em Trás-os-Montes não
houve mais nenhuma e a de Braga assumiu um carácter local, tendo-se formado no Minho várias Juntas.
OS LEVANTAMENTOS POPULARES
O
s primeiros motins da “Maria da Fonte”,
como foi referido, aconteceram na Póvoa
de Lanhoso, entre 19 e 24 de março, na
freguesia de Fonte Arcada, quando um grupo de mulheres impediu o pároco da freguesia de sepultar um
cadáver fora da igreja, fazendo-o elas mesmas dentro
do templo27. A notícia depressa chegou às autoridades
locais que, por sua vez, a comunicaram para o Ministério do Reino.
Tais eventos também não passaram despercebidos ao cônsul britânico no Porto que rapidamente se
apressou a comunicá-los ao seu governo. A 10 de maio
enviava um relatório para Inglaterra onde informava
do distúrbio popular que tinha ocorrido no Minho e
reportava os acontecimentos no Douro28.
O cônsul britânico tinha, igualmente, notícias de
que cerca de 3000 insurretos se encontravam em Castelo de Paiva e que não existia força militar entre eles e
o Porto, temendo que, se resolvessem entrar no Porto,
a cidade ficasse a saque, porque a força que a cidade
tinha não era suficiente para a defender. Dizia também
que as respeitáveis classes de cidadãos não se tinham
pronunciado a favor ou contra as autoridades, mas que
muitos estavam extremamente insatisfeitos e ansiosos
que os senhores Cabral fossem afastados do poder, o
que ele pensava aconteceria em breve29.
Os primeiros motins na província de Trásos-Montes ocorreram nos dias 13 e 16 de abril30,
principalmente nas freguesias do concelho de Ruivães,
utilizando os mesmos métodos, a queima de processos.
O administrador interino do concelho de Ruivães dizia
que não havia partido político nestes revoltosos, cujo
fim principal era fazer constituir «autoridades suas»
para os livrarem dos seus crimes, pelo que com aquela
gente não podia haver «moderação e boas maneiras;
força e só força os poderá conter». Este administrativo
pedia providências para Vila Real, pois os efetivos que
tinha não chegavam para evitar sangue31.
João Augusto Marques Gomes32 refere que os
primeiros tumultos que se verificaram em Ruivães
foram a propósito dos enterramentos fora das igrejas,
mas, segundo os documentos que encontrámos,
depressa houve um aproveitamento da situação, por
parte de indivíduos de baixa condição social, para
benefício próprio.
O que aconteceu em Ruivães não se passou no
Douro, onde a maioria dos pronunciamentos populares
foram aproveitados, alguns mesmo preparados e
comandados pelas elites locais.
Em 5 de maio, a revolta deu-se em Mirandela e
Murça33. Dali os populares dirigiram-se para Vila Real,
onde entraram na tarde de 10 de maio, em número
superior a mil, estando mais de metade armados34.
Cerca de 400 homens desarmaram a tropa estacionada
em Vila Real e tomaram conta do local35. As forças
populares comandados pelo «seu heróico chefe», o
senhor D. Fernando de Sousa Botelho, foram recebidas
pelos habitantes de Vila Real com entusiasmo e
regozijo36, pelo que o governador civil, não tendo
força para obstar a este movimento, se retirou para
Chaves. O povo elegeu então uma Junta Governativa,
segundo o cônsul britânico composta por algumas das
mais influentes pessoas do distrito de Vila Real, com
poderes administrativos e judiciários. Para presidente
foi eleito D. Fernando de Sousa Botelho, filho do conde
de Vila Real, proprietário do solar de Mateus, tendo
como «companheiros e membros» António da Veiga e
Sousa e Sebastião José de Carvalho Moutinho.
Na correspondência do consulado inglês de
12 de maio, o cônsul dizia que tinha havido no
domingo levantamentos no Douro, em Alijó, Favaios,
Provesende, Sanfins e S. Mamede e que os seus gritos
31 Idem. Livro 3. Processo 204, nº1.
32 GOMES, 1889: 18.
27 Sobre esta revolta do Minho, ver CAPELA & BORRALHEIRO, 1996.
33 Idem, ibidem.
28 Ver sobre o assunto SILVA, 2005: 161.
34 Idem, ibidem.
29 Public Record Office, GB, FO 63 626 (nº13).
35 Public Record Office, GB, FO 63 626 (nº15).
30 A.N.T.T., A.S.E., Ministério do Reino, Maço 2090.
36 Arquivo Municipal de Mesão Frio. Correspondência Recebida.
53
foram a favor da rainha e da Carta enquanto clamavam
«morram os Cabraes», «nada de contribuições»37. Em
Favaios desarmaram 70 soldados e depois foram para
Vila Real, expulsando as tropas, tendo algumas ido
para a Régua38.
No dia 13 de maio, pronunciou-se Mesão Frio. A
Câmara foi dissolvida e a Junta de Vila Real nomeou
para ela outros cidadãos. Os povos amotinados das
aldeias vizinhas deitaram fogo à maior parte dos papéis
daquela administração, conseguindo o escrivão, já
«prevenido e acautelado», salvar os «principais papeis
e rois», mas não conseguiu evitar que queimassem os
papéis das contribuições das estradas, mesmo assim
com grande risco para a sua integridade física39.
A 14 de maio, o referido cônsul, em relatório
para Londres, contava que, na Régua, as autoridades
tinham conseguido levar com elas alguns documentos
sobre os novos impostos, mas que cerca de 50 homens
armados ainda destruíram muita coisa, insultaram
constitucionais, entraram na casa de muitos e
ameaçaram tratá-los como eles haviam tratado os
miguelistas40.
A 16 de maio, Lamego encontrava-se cercada por
tropas, mas a cidade estava pronta para a revolta41
que, de facto, aconteceu. A 17 de maio dava-se um
pronunciamento popular em Lamego. Há muito que os
povos premeditavam um levantamento por causa dos
impostos, mas a força armada tinha conseguido até à
data evitá-lo. O detonador foi o anúncio de uma taxa
para as obras do convento da Graça. No dia 16, uma
multidão das freguesias vizinhas acorreu a Lamego,
armada dos mais diversos utensílios. O exército
conseguiu a custo contê-los, mas, quando se levantaram
tumultos dentro da urbe a favor dos amotinados, as
autoridades prometeram uma reunião para o dia
seguinte em que decidiriam as resoluções a tomar. No
dia 17, as autoridades locais colocaram-se ao lado do
povo e decidiram enviar uma representação à rainha,
pedindo a demissão do Ministério e providências para
que fossem aliviadas as contribuições42.
Em maio, também em Freixo de Espada à Cinta e em
Alfândega da Fé se estabeleceram Juntas Provisórias,
37 Public Record Office. FO 63 626.
38 Idem, ibidem.
39 Arquivo de Mesão Frio. Correspondência Recebida no ano de 1846.
40 Public Record Office. GB. FO 63 626.
41 Idem, ibidem.
42 COSTA, 1975: 170.
que pouco depois se dissolveram, e o governador de
Bragança nomeou novas autoridades administrativas
que «merecessem a estima e confiança dos Povos»,
dizendo que tinha recebido provas de afeição e de
adesão aos novos ministros nomeados43.
Na cidade de Viseu instalou-se a Junta provisória a
15 de Maio, sendo o seu presidente o Barão da Várzea
do Douro.
PARA CONCLUIR:
COMO PODEMOS CLASSIFICAR OS MOTINS DURIENSES?
N
os motins do Minho, embora praticamente todos os autores fujam a explicações
monocausais, pôs-se muito a tónica explicativa em aspetos soteriológicos, na alteração dos
hábitos religiosos dos povos, crenças e de afetividade,
para com os seus parentes falecidos. No Douro, por estranho que pareça, não encontrámos nenhum motim
ou sequer qualquer alteração da ordem, neste período,
por causa da questão dos enterramentos nos cemitérios e não foi com certeza por sentimentos anímicos
diferentes relativamente a esta questão, pois eles verificaram-se em anos anteriores.
Também não foram movimentos antissenhoriais
do género dos de Antigo Regime, como alguns autores
referem para o Minho, já que nem sequer aparecem as
inimputáveis mulheres à frente dos motins. Nos documentos que utilizámos nunca apareceram diferenciadas. Se, por acaso, houve participação feminina, ela foi
tão insignificante que não mereceu destaque.
O seu carácter político ficou já bem demonstrado,
pelo que não se encaixa nos movimentos pré-políticos
e pré-capitalistas, igualmente aventados para as revoltas do Minho. Nesta região, houve um sentimento
antiliberal inequivocamente marcado pela participação dos miguelistas. Havia nesta zona muita nobreza provinciana que era manifestamente adepta de D.
Miguel, como havia muitos ex-oficiais miguelistas que
residiam na área e que iam tentando minar o sistema
com pequenos levantamentos desde a implantação do
liberalismo. Desta vez, os liberais cartistas, pelas mãos
de Cabral, quiseram modernizar muita coisa em pouco tempo, o que foi interpretado como uma ameaça,
não só para o campesinato menos esclarecido como
43 A.N.T.T., A.S.E., Ministério do Reino. Livro 3. Processo 179.
54
para outras classes com interesses instalados. Por outro lado, a oposição estava toda contra Cabral. A luta
contra o cabralismo fez, inclusive, esquecer diferenças
ideológicas e aproximou miguelistas de liberais mais
radicais, como os setembristas. O objetivo era derrubar o cabralismo.
A “Maria da Fonte” no Douro foi um movimento
político e urbano, marcadamente antiestatal, pelas medidas legislativas que vinham sendo implementadas e
eram consideradas injustas44. Os povos revoltaram-se
contra um Estado que não lhes dava nada e os ameaçava naquilo que lhes era “sagrado”, a subsistência e a
crença. A revolta contra o cabralismo deixou aflorar
uma série de animosidades em relação à ordem vigente, aquilo que James Scott chama de «registo escondido»45, muitas delas derivadas da própria “questão vinhateira”, sempre descurada, na opinião dos durienses,
pelos governos liberais.
A novidade desta rebelião é que, pela primeira vez,
os populares se revoltam contra o Estado, entendido
como um poder negativo, como já havia acontecido
na Europa.
FONTES:
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (A.N.T.T).
Fundo do Arquivo das Secretarias de Estado (A.S.E).
Ministério do Reino: Livro 2 (Processos: 226-230, 357,
756-828); Livro 3 (Processos: 179, 204).
Arquivo Distrital de Viseu (A.D.V.) Correspondência expedida para o Ministério do Reino. Livro 10,
1845-1847.
Arquivo Municipal de Mesão Frio. Correspondência Recebida pelo Administrador no ano de 1846.
Arquivo Inglês. Public Record Office. GB. FO 63
626.
44 Ver, a propósito do Minho, a opinião de SILVA, 1996: 143-157.
45 SCOTT, 1990: 111.
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55
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56
57
Painel 2
O MOTIM
DE LAMEGO
DE 1915
Carla Sequeira
João Luís Sequeira
Gaspar Martins Pereira
58
59
Antão de Carvalho
e os motins do Douro de 1914-1915
texto: Carla Sequeira
Investigadora do CITCEM. Bolseira de Pós-Doutoramento da FCT
[email protected]
Investigação desenvolvida no âmbito do projecto de pós-doutoramento
«Antão Fernandes de Carvalho e a República no Douro», inserido no projecto do CITCEM «O Douro Vinhateiro na Primeira República: Defesa da
Denominação de Origem e Construção de uma Identidade Regional». Trabalho financiado por Fundos Nacionais através da FCT (Bolsa de Pós-Doutoramento, co-financiada pelo Fundo Social Europeu através do Programa
Operacional Potencial Humano – POPH/ QREN). Texto escrito segundo a
ortografia anterior ao AO90.
Resumo:
Em 1914-1915, a Região Demarcada do Douro
confrontou-se com um clima de forte efervescência
social em consequência da crise comercial e de super-produção então vivida. A par das iniciativas institucionais, empreendidas pelas municipalidades, pela
Comissão de Viticultura Duriense e pelo representante
do poder central, suceder-se-iam movimentações populares em diversos concelhos, atingindo, por vezes,
características de verdadeiros motins. No presente trabalho, deter-nos-emos na acção de Antão de Carvalho
enquanto líder do movimento regional, caracterizado
pela convergência entre acções populares e das elites
locais, em defesa da denominação de origem «Porto».
Abastract:
In 1914-1915, the Douro Demarcated Region was
confronted with strong social unrest as a result of the
commercial crisis. Abreast of the institutional initiatives undertaken by municipalities, the Douro Viticulture Commission and the representative of the central
government, popular movements occurred in several
localities, forming sometimes true riots. In this paper,
we analyze the action of Antão de Carvalho as leader
of the regional movement, characterized by the convergence of popular actions and local elites, in defense
of «Porto» appellation of origin.
Palavras-chave: Alto Douro; Denominação de
origem; Movimentações sociais; Elites
Keywords: Alto Douro; «Porto» appellation of
origin; social movements; Elites
60
Nota biográfica:
Carla Sequeira é doutorada em História pela Faculdade de Letras da
Universidade do Porto (2010). É investigadora do CITCEM (Centro de Investigação
Transdisciplinar «Cultura, Espaço & Memória»), onde desenvolve a sua actividade
no grupo «Memória, Património e Construção de Identidades». É Bolseira de
Pós-Doutoramento da FCT, com o projecto «Antão Fernandes de Carvalho e a
República no Douro», integrado no projecto do CITCEM «O Douro Vinhateiro e
a Primeira República». A sua área de especialização situa-se no âmbito da história
social, institucional e política do Alto Douro.
61
OS MOTINS DO DOURO EM 1914-1915
CRISE VITÍCOLA E SOCIAL
NA REGIÃO DURIENSE
N
o início do século XX, a maior parte das
regiões vitícolas europeias atravessou uma
fase de crise comercial e vitícola, propícia
ao agravamento da conflitualidade social e à eclosão
de movimentos de revolta.
Neste contexto, as movimentações dos
viticultores assumiram um carácter marcadamente
sectorial, corporativo e regionalista, apesar de nelas
convergirem, quase sempre, vários movimentos
sociais com diferentes interesses, motivações e formas
de intervenção.
A liderança destas movimentações sociais
foi assumida pelas elites locais, canalizando os
descontentamentos populares para a reivindicação
política da intervenção do Estado, através de medidas
de repressão às fraudes e de regulação da produção e
do comércio de vinhos.
Na região do Alto Douro, em crise desde o último
terço do século XIX, assistiu-se igualmente a um
agravamento da conflitualidade social, manifestada,
em particular, contra os «inimigos externos»
(exportadores de Gaia menos escrupulosos, acusados
de praticarem fraudes e falsificações através da
utilização de vinhos do Centro e do Sul do país nas
lotações de vinhos do Porto).
Em consequência, multiplicaram-se os movimentos
de influências e as reivindicações de medidas protectoras
da viticultura regional, defendendo-se o regresso aos
princípios da política pombalina. Exacerbou-se um
forte espírito regionalista, formaram-se Comissões de
Defesa do Douro e prenunciava-se um ambiente de
«revolta latente».
A
agitada conjuntura social que se vivia no
Douro desde finais do século XIX agravou-se particularmente em 1914. A legislação
reguladora não era cumprida com rigor e os vinhos do
Porto e de mesa «Douro» continuavam a sofrer a concorrência desleal dos vinhos do Sul, com a consequente dificuldade de escoamento dos vinhos durienses e
abaixamento dos preços. Gerar-se-ia, então, um clima
de forte efervescência social, exigindo-se, do Governo,
o cumprimento rigoroso da legislação vinícola, maior
fiscalização sobre a entrada de vinho do Sul no Douro e em Gaia, a par da garantia das marcas «vinho do
Porto» e «virgens do Douro», quer em Portugal quer
no estrangeiro.
O movimento regional em defesa da denominação de origem «Porto» ficaria caracterizado por dois
tipos de actuação. A par das iniciativas institucionais,
empreendidas pelos notáveis e organismos regionais,
suceder-se-iam acções populares, atingindo, por vezes,
características de verdadeiros motins.
Perante a conjuntura de crise vivida e a demora do
Governo na tomada de medidas, a agitação popular ia
crescendo, assim como o receio de graves desordens.
Em vários concelhos do Alto Douro os sinos tocavam
a rebate e a população dirigia-se em massa à Câmara Municipal a solicitar auxílio. Foi o que aconteceu
na Régua, em Junho de 1914. Inúmeros lavradores
do concelho dirigiram-se à Câmara, pedindo a sua
intervenção junto do Governo no sentido de serem
decretadas providências que minorassem os efeitos
destruidores decorrentes das intempéries que se haviam registado. Dias mais tarde, em resposta ao repto
lançado por Bernardino Zagalo durante um comício
de lavradores, a população do concelho voltaria a manifestar-se junto à Câmara, que se encontrava reunida,
empunhando bandeiras negras e exigindo medidas
por parte do poder central. Acontecimentos idênticos
ocorreram no concelho de Alijó. Em várias freguesias, os sinos das igrejas tocaram a rebate e a população reuniu-se junto à Câmara, no momento em que
esta se encontrava reunida, mostrando-se disposta a
não pagar contribuições ao Estado até que o Governo
atendesse as reclamações regionais; ao mesmo tempo,
exigia-se que a Câmara encerrasse em sinal de protesto, atitude que deveria ser imitada pelos restantes municípios do Douro. No mês seguinte, movimentações
62
populares ocorridas no Pinhão assumiriam características de maior violência quando o povo, amotinado,
invadiu a quinta da Barca, arrombando tonéis e lançando fogo a um armazém de vinhos1. Era o prenúncio das movimentações populares a que se assistiria,
motivadas pelo tratado de comércio entre Portugal e
a Grã-Bretanha.
O tratado entre Portugal e a Inglaterra, celebrado
a 12 de Agosto de 1914, propunha-se acabar com a
enorme concorrência que o vinho do Porto enfrentava
no mercado britânico, face a falsificações e imitações
estrangeiras, mas, o seu artigo 6º estabelecia como vinho do Porto qualquer vinho produzido em Portugal
e não na sua legítima região de origem, abrindo caminho às falsificações nacionais.
De imediato se desencadeou um forte movimento
de contestação junto do Governo. Na Região Duriense
as acções institucionais empreendidas acabariam por
denunciar, numa primeira fase, a confrontação entre
o Baixo Corgo e o Cima Corgo quando, ao pedido de
reunião apresentado pela Câmara de Alijó no sentido
de se preparar um forte movimento de contestação regional, Antão de Carvalho (presidente da Câmara da
Régua e da Comissão de Viticultura da Região Duriense) respondeu com o silêncio2. Não se tratava, contudo,
de um silêncio inoperante. Antão de Carvalho tinha
uma estratégia política. Acabaria, assim, por se assistir
a várias frentes de acção institucional, que se complementariam: às acções iniciadas pela Câmara de Alijó
na Região Demarcada do Douro3, Antão de Carvalho
contraporia iniciativas junto do poder central. A estratégia posta em prática na Região, com o envio de telegramas e representações, era apoiada na participação
parlamentar, com destaque para Antão de Carvalho,
que procurava usar o seu cargo de Senador no sentido
de estabelecer uma forte rede de influências parlamentar sobre o poder instituído, de modo a possibilitar a
concretização da defesa da marca regional «Porto».
Os primeiros sinais de cedência ao movimento
duriense por parte do Governo surgiram em inícios
de Janeiro de 1915. Nessa data, Antão de Carvalho
foi convocado, juntamente com outros parlamentares
afectos à causa do Douro, para uma reunião com o
ministro dos Negócios Estrangeiros, que se mostrava
disposto a elaborar a aclaração reivindicada, definin1 Segundo a imprensa da época, a população tencionava repetir tais actos em outras quintas, tendo sido travada pelas forças policiais.
2 Cf. A missão de Alijó. «Cinco de Outubro», 16 Dezembro 1914, p. 1.
3 Cf. SEQUEIRA, 2011: 291-293.
do como «vinho do Porto» o vinho produzido na Região Duriense. Em poucos dias, o referido aditamento (conseguido por acordo entre Antão de Carvalho,
Carlos Richter, os exportadores ingleses, a Associação
Comercial do Porto, Sousa Júnior, Bernardo Lucas, Serafim de Barros, Torcato de Magalhães e Afonso Costa) seria elaborado e aprovado pela Câmara dos Deputados, conjuntamente com a aprovação da ratificação
do Tratado.
Apesar destes desenvolvimentos, os ânimos não
acalmaram. Como noticiava a imprensa da época,
anunciavam-se graves perturbações, fruto da ansiedade gerada pela demora em serem atendidas as reclamações regionais. Desde Março de 1915, sucediam-se, no
Alto Douro, manifestações, comícios e tumultos, por
vezes com acções violentas, de contornos semelhantes
às que haviam ocorrido, com as mesmas motivações de
defesa da denominação de origem, em 1911, na região
de Champagne, e que eram conhecidas no Alto Douro,
através da imprensa. Por exemplo, em Peso da Régua
propagou-se o rumor de que algumas pipas de vinho
do Bombarral, depositadas na estação de caminho-de-ferro com destino a Tarouca, seriam depois reintroduzidas na Região Duriense para serem exportadas
como vinho do Porto. Tal bastou para que os sinos
tocassem a rebate em diversas freguesias e centenas de
populares, invadindo a estação de caminho-de-ferro,
destruíssem as referidas pipas. Em reunião extraordinária da Comissão de Viticultura da Região Duriense,
em Abril, considerou-se que os factos ocorridos eram
altamente prejudiciais à causa regional e, após inquirição aos vogais concelhios, decidiu-se publicar uma
moção em que se declarava não existir na região vinho
estranho a ela, de modo a acalmar os ânimos.
Tratava-se de uma posição institucional da qual
partilhava Antão de Carvalho, tal como demonstrara
em situação análoga, em 19064. Antão privilegiava a
acção institucional, pondo ao serviço do Douro e da
questão duriense a sua rede de sociabilidades políticas.
Nesse âmbito se insere a recepção ao seu amigo pessoal
e correligionário político, Afonso Costa, na Régua, em
Maio de 1915. Em campanha eleitoral para as eleições
legislativas de Junho de 1915, Afonso Costa proferiu
um discurso com diversas referências à situação do
Douro e à incapacidade do Governo em salvaguardar
os interesses do sector vitícola junto da diplomacia
britânica. Desta forma, parecia colocar-se ao lado das
4 Cf. SEQUEIRA, 2011: 233.
63
reivindicações durienses na questão do tratado mas,
na verdade, não passava de uma estratégia com vista às
eleições legislativas agendadas para Junho, como demonstrariam os acontecimentos posteriores.
Os protestos em torno do tratado ganhariam novo
fôlego a partir de inícios de Junho. O boato de que o
tratado ia ser ratificado sem a aclaração aprovada no
Parlamento conduziu a uma nova vaga de agitação
popular. Sucediam-se manifestações em várias localidades. No concelho de Alijó, o povo organizou uma
manifestação de protesto. Em Sabrosa, os sinos tocaram a rebate; uma grande multidão reuniu-se junto à
Câmara, onde foi hasteada uma bandeira negra, para
ouvir António Augusto Regueiro afirmar que era preciso que o Douro acordasse da sua inércia e reagisse
até onde «as circunstâncias o exigissem»5; receava-se,
por isso, que a ordem viesse a ser alterada. Em Mesão
Frio, havia também grande alvoroço e descontentamento mas a Comissão de Defesa do Douro conseguiu
orientar os acontecimentos no sentido de um protesto
ordeiro
Em simultâneo, os notáveis aproveitavam o período de campanha para as eleições legislativas de 13 desse mês, no sentido de comprometer as diversas forças
partidárias. Ao mesmo tempo que a «missão de Alijó»
percorria o Douro apelando ao boicote eleitoral, Antão de Carvalho, na qualidade de presidente da Câmara Municipal da Régua e da Comissão de Viticultura
Duriense, procurava pressionar os poderes públicos.
Em 8 e 9 de Junho teve lugar novo comício de viticultores. Assumindo-se como líder do movimento, Antão
de Carvalho enviou um telegrama com as exigências
regionais ao Governo. De seguida, fez distribuir uma
circular por todas as câmaras, sindicatos e vogais da
Comissão de Viticultura, estabelecendo um prazo para
as reivindicações serem atendidas, findo o qual todas
as autoridades administrativas, entretanto encerradas,
se demitiriam. A força do movimento duriense e a
ameaça de abstenção eleitoral, levariam Afonso Costa
a prometer que patrocinaria a causa duriense no Parlamento desde que pudesse contar com o apoio ao Partido Democrático. Tratava-se, pois, de um jogo político
ambivalente: influenciar os resultados eleitorais em
função dos benefícios para a causa duriense. O protesto seria suspenso nas vésperas das eleições e o Partido
Democrático obteria as maiorias em todos os círculos
eleitorais do Douro, à excepção de Sabrosa e Tabuaço.
Pelo círculo de Vila Real foram eleitos Jerónimo
Matos, como senador, e João Carlos de Melo Barreto,
como deputado. Jerónimo de Matos pertencia à elite
política próxima de Antão de Carvalho e representava
a sua continuidade a nível parlamentar. A candidatura
de João Carlos de Melo Barreto (antigo regenerador e
próximo de Teixeira de Sousa) fora patrocinada pelo
Directório do Partido Republicano Português e apoiada por Antão de Carvalho, como estratégia em benefício da causa regional. Melo Barreto propunha-se, de
facto, pugnar «pela justíssima causa da infeliz região»
duriense6. Antão de Carvalho pedia-lhe, expressamente, que estabelecesse, com os deputados eleitos pelos
concelhos que formavam a Região, uma estratégia capaz de fazer vingar as reclamações regionais, prometendo apoio regional à acção parlamentar:
5 A questão do Douro. O tratado com a Inglaterra. «O Comércio do Porto», 8 Junho 1915, p. 2.
7 ACD – Fundo da Comissão de Viticultura Duriense, carta de Antão de
Carvalho para João Carlos Melo Barreto, 20 de Junho de 1915.
ao primeiro rebate levantará um protesto que há-de
ficar memorável na história das lutas económicas e políticas do país7.
Esse protesto regional ocorreria em breves semanas, quando o compromisso assumido pelo Partido
Democrático em período eleitoral não foi respeitado.
Cedendo maioritariamente aos interesses da viticultura do Sul, o Parlamento acabaria por votar contra a
aclaração ao artigo 6.º do tratado, contrariando a resolução parlamentar de Janeiro de 1915.
O Alto Douro, através dos seus órgãos representativos, estava decidido a não aceitar aquela decisão.
Multiplicaram-se, de novo, as acções de pressão e de
protesto institucionais. Antão de Carvalho procurava
alargar a base de apoio parlamentar, tendo conseguido que os deputados pelo Porto passassem a constituir
uma frente comum na defesa dos interesses regionais.
Ao mesmo tempo, acompanhado de Vítor Macedo
Pinto e na qualidade de representantes da Comissão
de Viticultura Duriense, promovia sucessivas reuniões
com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, com o presidente da Associação Comercial do Porto e da Câmara Municipal do Porto. Todos reconheciam a necessidade de medidas que garantissem a genuinidade dos
vinhos durienses e da respectiva marca.
Nos inícios de Julho realizou-se, na Câmara Muni6 Melo Barreto viria a ter uma acção importante no debate sobre o Tratado, ocorrido entre 6 e 8 de Julho, na Câmara dos Deputados. Cf. SEQUEIRA, 2014: 142-143.
64
cipal do Porto, uma reunião decisiva em que participaram várias câmaras do Douro, associações comerciais
do Norte, vereadores da Câmara do Porto e lavradores
durienses. Foi nomeada uma comissão, liderada por
Antão de Carvalho, para se deslocar a Lisboa a fim de
negociar com o Governo. À semelhança do movimento de Junho, os serviços administrativos, agrícolas e
industriais seriam suspensos em diversos concelhos8
e tal situação comunicada por telegrama ao Governo,
pressionando-o a atender as reclamações durienses.
Estas acções institucionais foram acompanhadas
por nova uma vaga de agitação popular. Em Santa
Marta de Penaguião e Peso da Régua, os tumultos adquiriram características de autêntico motim, com o
incendiar das Conservatórias e Repartições de Finanças. Em Carrazeda de Ansiães, a população de diversas
aldeias invadiu a estação de caminho-de-ferro do Tua,
destruindo, a golpes de machado, cascos com aguardente do Sul.
Foi neste contexto de grande exaltação que se desencadeou o «motim de Lamego». A 20 de Julho de
1915, a população de várias aldeias e freguesias do
concelho dirigiu-se à cidade de Lamego, manifestando-se em frente ao edifício da Câmara; no momento
em que a comissão de representantes se encontrava reunida com a Comissão Executiva da Câmara, a
multidão foi atacada, inesperadamente, pelas forças
policiais, daí resultando doze mortos e vinte feridos9.
No dia seguinte, registavam-se acções amotinadas em
Armamar, onde uma multidão, reunida a toque de sinos, invadiu a repartição da Fazenda, atirando livros e
papéis para a rua e incendiando-os de seguida. Confirmava-se, assim, a preocupação do correspondente
da Régua junto do jornal O Comércio do Porto: «Se ao
Douro não for feita justiça, não sei o que sucederá»10.
Face aos acontecimentos, Antão de Carvalho, assumiu uma postura de comprometimento institucional.
Em reunião da Câmara da Régua, afirmou ser necessário não deixar «no esquecimento os trágicos sucessos
de Lamego, as suas vítimas e mártires gloriosos da nossa causa»11 e, por isso, propunha que fossem identifica8 Como veio a acontecer em Murça, Moncorvo, Pinhão, Freixo de Espada à Cinta, Mesão Frio, Alijó, S. João da Pesqueira; Meda, Régua e Sabrosa.
9 Cf., a este respeito, PEREIRA & SEQUEIRA, 2004: 5977; SEQUEIRA, 2011: 290-300.
10 Interior. Régua, 21. «O Comércio do Porto», 25 Agosto 1915, p. 1-2.
11 AMPR – Livro de Actas das Sessões da Comissão Executiva da Câmara Municipal do concelho de Peso da Régua,
1914-1916, fl. 68v-69.
dos os órfãos e viúvas decorrentes dos acontecimentos,
a quem deveria ser atribuído um subsídio mensal para
o seu sustento, pago pelas câmaras municipais. Além
disso, faria aprovar por aclamação, na reunião entre a
Comissão de Viticultura e representantes de sindicatos
agrícolas e câmaras municipais, ocorrida a 21 de Agosto de 1915, a moção apresentada por Torcato de Magalhães em que se considerava a brutalidade do ataque
das forças policiais no «motim de Lamego» como um
«atentado contra as legítimas reclamações que então e
agora o Douro vem fazendo colectivamente»12.
Esta atitude era consentânea com a posição assumida perante o chefe do Governo. Os tumultos da Régua e Santa Marta haviam ocorrido no momento em
que a Comissão de delegados do Douro, nomeada na
reunião ocorrida na Câmara Municipal do Porto, se
encontrava reunida com os membros do Governo. Ao
tomar conhecimento do que se passara, o Presidente
do Ministério declarou que não podia conferenciar
com os «representantes dos incendiários». Antão de
Carvalho protestou,
declarando-se solidário com todas as manifestações
do Douro e afirmando que o Governo pode suspender a
conferência, mas há-de ir concluí-la à Régua com ele e
com os seus representados13.
Tais declarações levaram a que o Governo desistisse
da sua pretensão, assegurando mesmo a melhor vontade em atender as reclamações durienses. No final, a
Comissão de representantes conseguiria a elaboração
de uma proposta de lei em que ficaram garantidos os
interesses da região do Douro. Continuaram, por isso,
as iniciativas institucionais com vista à sua aprovação.
No momento em que o Parlamento se preparava para
votar o projecto apresentado pelo Governo14, Antão de
Carvalho exortava as Câmaras Municipais, Juntas de
Paróquia e demais organismos da Região a manterem-se «muito prevenidos e atentos, velando as armas dia
12 ACD – Fundo da Comissão de Viticultura Duriense, Livro de Actas da
Comissão de Viticultura da Região Duriense, 1915-1917, fl. 73.
13 Idem, fl. 78.
14 O projecto proibia a exportação para Inglaterra de todos os vinhos
licorosos excepto os de Porto, Carcavelos, Moscatel e Setúbal; segundo a
imprensa portuense, teria por base um esboço apresentado por Antão de
Carvalho no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na sequência da reunião de organismos durienses, ocorrida em inícios de Julho, em que se
decidira avançar com um projecto deste teor como forma de contornar a
possibilidade da aclaração não vir a ser incluída no texto do Tratado.
65
e noite»15, pressionando, por telegrama, a Câmara dos
Deputados a aprovar o referido projecto.
O apelo de Antão de Carvalho tinha fundamento.
O ministro dos Negócios Estrangeiros apoiava a causa
do Douro mas o Governo não dispunha de força suficiente para se impor. Em carta de 27 de Julho de 1915,
Alfredo de Sousa informava que havia sido enviado
para a Mesa da Câmara dos Deputados o projecto governamental, mas que tinha também sido apresentado
um contra-projecto, elaborado por deputados do Sul,
estabelecendo, entre outras coisas, a autorização de
produção de vinhos licorosos no Centro e Sul de Portugal, com designação de origem, desde que não utilizando a palavra «Porto». Previa-se, pois, um debate
difícil. Por isso, Antão de Carvalho encetou uma série
de iniciativas tendentes a pressionar os poderes públicos. Por um lado, conseguiu mobilizar a imprensa
portuense no apoio ao movimento regional, através da
publicação de artigos nos jornais O Primeiro de Janeiro e A Montanha. Por outro lado, procurando colher
uma base de apoio alargada, solicitou solidariedade
institucional aos administradores de todos os concelhos estranhos às regiões directamente interessadas no
tratado, através do envio de telegramas ao Parlamento,
bem como do apoio dos deputados e senadores pelo
respectivo círculo. Antão de Carvalho enviaria, ainda,
na qualidade de presidente da Comissão de Viticultura
Duriense, da Câmara da Régua e de antigo Senador da
República, um telegrama ao presidente da Câmara dos
Deputados, pedindo que fosse feita justiça ao Douro
através da aprovação do projecto do Governo. Insistia
em que a Região apenas reclamava o que lhe pertencia
legitimamente e pedia ao Parlamento que tornasse eficaz a lei votada em Janeiro, que aprovara o tratado de
comércio com a Inglaterra.
Porém, o projecto não passaria na Comissão de
Agricultura da Câmara dos Deputados, formada
maioritariamente por representantes do Sul. A questão
seria encerrada apenas em Maio de 1916, ao ser anexada uma adenda ao tratado, nos termos reivindicados
pelo Alto Douro.
15 AMPR – Livro de Actas das Sessões da Comissão Executiva da Câmara
Municipal do concelho de Peso da Régua, 1914-1916, fl. 68v-69.
CONCLUSÕES
C
omo refere Otília Lage, a Região Duriense tem sido, «desde a época moderna (…)
um espaço de forte tensão social e palco
de recorrentes manifestações populares»16. No caso
particular em apreço, as movimentações sociais do
Douro em 1914-1915, inscrevem-se no ambiente geral de crise e revolta que, desde finais do século XIX,
se vivia nas principais regiões vitícolas europeias. Por
outro lado, tendo uma raiz e motivação comuns, as acções populares ocorridas ao longo daqueles dois anos
teriam contribuído para o processo de «construção
identitária» do Douro Vinhateiro17. Um marcado carácter regionalista sobrepôs-se a diferentes motivações
sociais, contribuindo para reforçar o espírito de uma
difícil unidade regional, baseada nos interesses vinhateiros, sobre as divisões naturais e administrativas do
território.
Nos protestos durienses de 1914-1915 convergiram
uma empenhada intervenção das elites regionais – assegurando uma direcção ao movimento e representando-o nas negociações com outro sectores e com o
poder central – e uma forte mobilização popular, caracterizada pela emergência de diversos tumultos ou
motins localizados. Porém, nem sempre foi pacífica
a relação entre as elites e o povo, que comparecia em
massa aos comícios promovidos por notáveis locais,
mas desencadeava, de forma aparentemente espontânea, tumultos e motins que suscitavam uma atitude reservada ou, mesmo, condenatória das elites, que
aconselhavam a não praticar violências que em nada
serviam a causa do Douro.
No caso concreto de Antão de Carvalho, a sua actuação enquanto líder do movimento de defesa regional em 1914-1915 revelou a existência de uma estratégia política de capitalização da rede de influências que
criara, a favor da causa duriense. Sendo essencialmente um regionalista, as suas fortes ligações políticas foram postas ao serviço do movimento de defesa regional, dos vinhos do Douro e da sua região produtora.
Contudo, embora mantendo uma atitude de reserva relativamente às movimentações populares, viria
a partilhar da percepção regional quanto ao «motim
de Lamego», visto como gesto heróico em defesa dos
16 LAGE, 2013: 222.
17 LAGE, 2013: 228.
66
interesses da região. Em artigo de homenagem, publicado no jornal da Régua, A Defesa do Douro, em 1925,
afirmava:
A causa triunfou e foram eles os vencedores. Que
o Douro nunca os esqueça, pagando a dívida sagrada,
ainda em aberto, da merecida consagração aos mortos
obscuros, que, em verdade, são os seus mais excelsos e
nobre paladinos. Glória aos Mártires!18
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
GUY, Kolleen M. (2003) – When Champagne became French: wine and the making of a national identity. Baltimore: The John Hopkins University Press.
LAGE, Maria Otilia Pereira (2013) – Revoltas populares no Douro Vinhateiro (Carrazeda de Ansiães e
Lamego), no final da Monarquia e início da República:
representações sociais e identidades a partir da imprensa da época, In Actas das 1ª Conferências Museu de
Lamego/ CITCEM. História e Património no/ do Douro: investigação e desenvolvimento. Lamego: Museu de
Lamego – Direcção Regional de Cultura do Norte, p.
221-229.
MARQUES, A. H. Oliveira (1975) – Afonso Costa.
Lisboa: Editora Arcádia.
MARQUES, A. H. Oliveira (1978) – História da
Primeira República Portuguesa. As estruturas de base.
Lisboa: Iniciativas Editoriais.
SEQUEIRA, Carla (2003) – O vinho do Porto e as
movimentações sociais nos anos de 1914-15. «Douro –
Estudos & Documentos», vol. VIII (15), 1º tomo. Porto: GEHVID, p. 77-86.
PEREIRA, Gaspar; SEQUEIRA, Carla (2004) – Da
Missão de Alijo ao Motim de Lamego: crise e revolta no
Douro Vinhateiro em inícios do século XX. «Revista da
Faculdade de Letras – História», III Série, vol. 5. Porto:
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p. 5977.
SEQUEIRA, Carla (2011) – O Alto Douro entre o
livre-cambismo e o proteccionismo: a «questão duriense» na economia nacional. Porto: CITCEM/Edições
Afrontamento.
SEQUEIRA, Carla (2014) – Antão Fernandes de
Carvalho e a República no Douro. Porto: CITCEM.
Siglas
AMPR – Arquivo Municipal de Peso da Régua
ACD – Arquivo da Casa do Douro
18 CARVALHO, Antão de – Glória aos mártires! «A Defesa do Douro».
26 Julho 1925, p. 2. Também publicado em SEQUEIRA, 2014: 263.
67
O motim de Lamego
e a causa do Douro na vida e obra de Pina de Morais
texto: João Luís Sequeira Rodrigues
Espaço Miguel Torga
A
quando da ocorrência dos fatídicos
acontecimentos junto à Câmara de Lamego, no dia 20 de Julho de 1915, João
Pina de Morais era um oficial do exército português em início de carreira, recentemente
chegado ao Regimento de Infantaria 13, de Vila Real.
Nessa altura com 26 anos, o então aspirante Pina de
Morais, depois de uma infância assumidamente feliz
passada entre Valdigem e a casa de Quintião, em Cambres, havia já passado pela formação liceal no Colégio
de Lamego e no Liceu de Viseu, de 1900 a 1906. Seguiu-se, em 1907, a matrícula na Academia Politécnica
do Porto, onde conviveu com personalidades proeminentes do republicanismo português e do movimento
da Renascença Portuguesa. Em 1911, Pina de Morais
deslocou-se para a Escola de Guerra, em Lisboa, onde
concluiu a sua formação militar.
A análise da diversa documentação utilizada na reconstituição biográfica do autor de Sangue Plebeu permite-nos inferir com segurança que o sangrento episódio de Lamego chocou profundamente Pina de Morais.
Desde logo porque seis das vítimas eram conterrâneos
de Pina de Morais, da aldeia de Cambres, no concelho
de Lamego. O escritor fez questão de nos apresentar
individualmente os mártires do motim no texto introdutório ao conto No Douro, incluído na obra Sangue
Plebeu. Neste conto o escritor homenageia os trabalhadores durienses, naquele que é por muitos considerado como o mais inspirado texto da sua produção
literária. Escreveu, então, Pina de Morais:
68
Nota biográfica:
João Luís Sequeira Rodrigues nasceu em Vila Real, em Junho de 1966.
Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade
Católica Portuguesa. É mestre em Cultura Portuguesa pela Universidade de Trásos-Montes e Alto Douro. É autor das obras João Pina de Morais: Vida, Pensamento
e Obra; Pina de Morais – Crónicas no Jornal de Notícias (1942-1950); Viajar com...
Pina de Morais. Coordenou a publicação do livro Obra Poética de Aires Torres.
Para além da atividade docente e do exercício de funções na Direção Regional
de Cultura do Norte, trabalha atualmente no Espaço Miguel Torga.
69
A 20 de Julho de 1915 caíram mortos, por
uma causa justa e grande, a causa da sua terra, do seu pão e do prestígio do Vinho do Porto,
duma maneira trágica e covarde, onze durienses,
dez homens e uma mulher, humilíssimos trabalhadores da gleba. Foram eles:
Maria da Silva Loureiro, Bernardo Pinto,
Francisco Guedes, Francisco dos Santos Araújo,
José Gomes Rabito, Manuel da Silva, de Cambres;
José Cardoso, de Parada do Bispo; José da Rede,
de Souto Covo; Maximiano Ferreira, de Valdigem; António Ribeiro, de Figueira; e Manuel Correia, de Britiande.1
Para além da partilha da origem geográfica, é também certo que a sensibilidade social e sentido de responsabilidade perante os mais desfavorecidos de que
Pina de Morais deu mostras ao longo da sua vida cívica e literária, terá também contribuído para ampliar
a comoção perante a tragédia de Lamego. Na verdade,
uma das marcas de personalidade mais evidentes em
Pina de Morais é a proximidade aos seus semelhantes, o sentimento de verdadeira fraternidade que nutria por aqueles que o rodeavam, independentemente
da sua condição. Em Pina de Morais são múltiplas as
evidências do profundo conhecimento que o escritor
tinha das pessoas da sua aldeia, das famílias, da sua
forma de vida, dos seus usos e costumes, dos ardis de
que se socorriam para iludir a fome e a miséria, mas
também a assombrosa capacidade de trabalho de que
os durienses sempre deram mostras e que está na génese da paisagem humanizada do vale do Douro.
Este traço de personalidade de Pina de Morais encaixa perfeitamente no perfil ideológico do movimento da Renascença Portuguesa que o autor interiorizou
durante a sua permanência, enquanto estudante, na
Academia Politécnica do Porto e sobressairá nos momentos cruciais da sua vida, da luta em prol da região
do Douro e dos durienses, na guerra das trincheiras,
ou no exílio. Este sentimento de unidade fraterna que
o aproximava dos seus conterrâneos e da terra do
Douro pode ser exemplificado num artigo intitulado
Crónica Banal da Minha Aldeia, publicado no Jornal
de Notícias em 13 de Setembro de 1945. Afirmava, então, Pina de Morais:
Sigo a minha volta pelo povoado. Podia ir de olhos
fechados, conheço tudo, as pedras, as casas, as vozes, as
1 MORAIS, 2003: 11.
árvores, tudo. Lá vem a Ester. Tem envelhecido muito.
Os olhos são fundos sem fim, a figura esquarteja-se dum
cubismo impressionante. Toda a gente tem cara, para
ter uma máscara é preciso ter sofrido ou amado muito,
o que é – ao fim! – a mesma coisa. É uma heroína, tem
criado onze filhos, um colosso de trabalho, milhões de
canseiras, fome às vezes, sei lá o quê. Falo-lhe do «Abono de Família». Para ninguém seria mais justo. É como
se lhe falasse das Pirâmides do Egipto ou de Einstein.2
Anos mais tarde, no dia 20 de Outubro de 1949,
numa crónica intitulada Miséria Dourada, também
publicada no Jornal de Notícias, escreveu Pina de Morais:
Aquela paisagem traduz a alma de toda aquela gente. Há paisagens para ver, sim, só para ver,
e outras para amar. Aquela, a do Douro, é para
conviver, para irmanar e, muitas vezes, para ensinar. Ali pode fazer-se uma lição. É preciso procurar sob a beleza da expressão, o significado do
esforço ingente daquele trabalho, como em nenhuma parte do Mundo. E a lição ensina como
se irmanam os homens e a terra, quando os seus
destinos – são o mesmo destino.3
Pelo teor destas passagens poderemos aquilatar da
enorme comoção que a chacina cometida em Lamego,
em Julho de 1915, terá provocado em Pina de Morais.
Desse choque nos deu conta António Pinto Machado
no artigo João Pina de Morais – Soldado Poeta e Poeta Soldado, publicado no Boletim da Casa Regional da
Beira-Douro, publicado em 1953, dias após o falecimento do escritor. Nesse texto, o autor afirmava mesmo que os acontecimentos de Lamego terão estado na
génese da opção de Pina de Morais pela escrita. Escreveu, então, o Director do Palácio de Cristal:
Vejo-te aspirante do 13, na ardência dos anos
em 1915.
Choravas a meu lado a tristura dos acontecimentos de Lamego, com trabalhadores da terra
ceifados quando pediam apenas Pão.
A tragédia forjou o escritor.4
Será certamente exagerada a afirmação de Pinto
Machado se entendermos que a pulsão inicial da actividade literária de Pina de Morais se tenha ficado a
dever exclusivamente ao sangrento acontecimento de
2 MORAIS, 1945b: 1.
3 MORAIS, 1949b: 1.
4 MACHADO, 1953: 41.
70
Lamego. Na verdade, já antes da sua ocorrência Pina
de Morais publicara textos na imprensa. Assim, em
1913, ainda aluno da Escola de Guerra, Pina de Morais
iniciou colaboração em jornais regionais como Posta
Rural, de Baião e Folha de Viana, de Viana do Castelo. Nas crónicas de costumes e episódios da vida militar narradas nesses jornais o autor de Ao Parapeito já
denotava talento para a criação literária e dava mostra
das influências estéticas e preocupações sociais que
futuramente iriam marcar os seus livros e crónicas.
Porém, se analisarmos o percurso cívico e literário
de Pina de Morais na sua totalidade poderemos com
segurança afirmar que o Motim de Lamego, nas suas
causas e consequências, terá tido um papel determinante nas opções políticas e literárias que assumiu
ao longo da vida. A tragédia acontecida nessa data
aos seus irmãos durienses, associada ao contexto de
injustiça política e social que esteve na sua génese, fizeram com que Pina de Morais assumisse a luta pela
defesa da região do Douro e do seu povo como uma
das causas maiores da sua acção enquanto político e
escritor. Na verdade, julgo que a quase totalidade da
obra literária de Pina de Morais tem como premissa e
finalidade a defesa do povo, dos mais desfavorecidos
da sociedade, entre os quais se contavam as gentes do
Douro. Poder-se-á afirmar que em Pina de Morais a
actividade da escrita teria uma função instrumental,
constituía-se como um veículo privilegiado de asserção dos seus posicionamentos ideológicos e políticos.
Este princípio está patente tanto na diarística da I
Grande Guerra com Ao Parapeito (1919) e O Soldado
Saudade na Guerra Grande (1921), nos quais defendia
a participação de Portugal na guerra e as virtudes do
soldado português, como nas novelas durienses de A
Paixão do Maestro (1922); Sangue Plebeu (1942) e Vidas e Sombras (1949). Nestes textos assume a defesa da
causa dos trabalhadores rurais do Douro e a denúncia das más condições de vida a que a ineficiência do
Estado e a incompetência dos sucessivos governos os
sujeitava.
O próprio autor nos dá conta deste sentido de
dever em relação ao seu torrão natal num artigo que
publicou no Jornal de Notícias em 31 de Março de
1949, intitulado O Vinho do Porto. Afirmou Pina de
Morais nesse texto:
[…] Sobre mim pesa a responsabilidade de ser
duriense, e, portanto, de me considerar na obrigação de ser útil ao meu torrão. Como filho da
região duriense tenho a obrigação de a servir o
melhor que souber. E é isso que venho fazendo
sempre que é possível.5
É neste contexto que deveremos inserir e interpretar
uma obra como Sangue Plebeu e, em particular, o
conto No Douro, no qual Pina de Morais narra magistralmente a sua versão do Motim de Lamego, cuja
responsabilidade tem sido objecto de controvérsia ao
longo de décadas. No Douro é um texto notável, na
forma e no conteúdo. Neste conto, para além de dar
uma perspectiva dos acontecimentos trágicos do Motim de Lamego, Pina de Morais revela um profundo
conhecimento da região. Do ponto de vista geológico
e geográfico e, principalmente, de todas as dimensões
do trabalho de cultivo da vinha e produção do vinho.
Neste texto o autor revela um raro poder de observação que se traduz na meticulosa descrição das diversas
fases do trabalho do cultivo da vinha ao longo do ano,
acentuando permanentemente a dimensão humana
da paisagem duriense. No Douro é, para além de tudo,
uma homenagem à gleba duriense, a todos aqueles
que, ao longo de séculos, transformaram uma região
inóspita no clima e no chão, numa paisagem única pela
beleza e monumentalidade. Não parece ser intenção
de Pina de Morais entrar na polémica da identificação
dos culpados da tragédia. Coerente com a sua postura de defesa dos trabalhadores, o autor narra-nos os
acontecimentos do Motim na perspectiva das vítimas,
daqueles que clamando por trabalho e pão, tiveram a
metralha como resposta.
Daí que este conto se constitua também como um
libelo acusatório às autoridades portuguesas por, não
apenas, desprezarem o trabalho e os incontáveis sacrifícios de um povo que consumia a sua vida na criação
do produto de maior valor e projecção internacional
da economia portuguesa, como contribuía para o seu
desprestígio ao adoptar medidas legislativas que colocavam em risco a qualidade do Vinho do Porto e
a sobrevivência das populações, como era o caso da
cláusula 6ª do tratado de comércio a estabelecer entre
Portugal e a Inglaterra, em 1914, que abria a possibilidade de incluir a designação Porto em vinhos produzidos fora da Região Demarcada do Douro.
Esta atitude nefasta aos interesses da sua região é
claramente denunciada por Pina de Morais, em No
Douro quando afirma o seguinte:
Os poderes públicos abandonam à sua sorte o
5 MORAIS, 1949a: 1.
71
produto mais rico do País, aquele que podia dar o
oiro que chegasse para equilibrar os orçamentos.
Cada litro de vinho que se falsifica é um dia de
fome para uma criança do Douro, e uma tigela
de caldo que se rouba, tal como se a arrancassem
das mãos esquálidas que a seguram.6
Publicado em 1942, Sangue Plebeu é um livro que
inclui oito contos inspirados em acontecimentos e
pessoas reais, habitantes da localidade de Portelo de
Cambres. Todas as novelas têm como cenário o Douro.
Sangue Plebeu era um projecto antigo de Pina de
Morais como se comprova pelo facto de três dos oito
contos já terem sido objecto de publicação anterior em
revistas literárias. Assim, ainda que com textos diferentes, as novelas intituladas O Rouxinol e A Audiência
do Diabo foram editadas na revista A Águia, respectivamente em 1922 e 1924; e O Ferrugento saiu na Seara
Nova, em Julho de 1922. Este facto comprova que, sensivelmente duas décadas antes da publicação daquela que é uma das suas obras mais inspiradas, já Pina
de Morais dava mostras de concentrar na região e no
drama do povo duriense a sua produção literária. Esta
inferência é reforçada pelo teor de uma entrevista dada
por Pina de Morais, em Janeiro de 1927, ao jornal do
Rio de Janeiro A Noite, aquando da sua passagem pelo
exílio no Brasil. Afirmou, na época, o escritor quando
questionado sobre a natureza da actividade que desenvolvia na vida social portuguesa:
A política tem merecido grande parte da minha actividade. Representei o Porto na Câmara
Federal, durante diversas legislaturas e trabalhei
intensamente na imprensa defendendo os meus
princípios, tendo sido mesmo director político
de um diário. Depois, a literatura. Tenho feito a
literatura dispersiva da imprensa e da observação. Tendo participado da Grande Guerra como
capitão, escrevi “No Parapeito” onde procurei fixar flagrantes e o espírito geral daquela sangrenta partida das nossas tropas. Tenho concluído,
agora, um livro de costumes “Sangue Plebeu”, no
qual pretendo ter feito em três novelas a vida regional do Norte7.
Estes factos fazem recuar cerca de vinte anos a intenção de Pina de Morais editar um livro exclusiva6 MORAIS, 2003: 28.
7 MORAIS, 1927.
mente dedicado à região do Douro e ao seu povo. Este
Facto aproxima temporalmente a opção artística e
ideológica do autor dos acontecimentos do Motim de
Lamego e recoloca Sangue Plebeu numa época em que
a sua actividade em prol da defesa do Douro foi ampla
e diversificada.
Na verdade, nos anos que se seguiram ao Motim de
Lamego, Pina de Morais intensificou a atenção às questões durienses. Não foi apenas no plano artístico que
o escritor assumiu como prioritária a causa duriense.
Pina de Morais foi uma personalidade multifacetada
que dedicou à actividade política a parte substancial
dos seus esforços. E foi precisamente enquanto político que Pina de Morais ergueu a sua voz em defesa da
causa duriense.
Assim, em 1923, enquanto deputado e colaborador
no jornal O Primeiro de Janeiro, opôs-se fortemente à
intenção do governo de Álvaro de Castro em lançar
um novo imposto sobre o vinho, conhecido como a
Base V do Parecer nº 607. Com este imposto, no qual
o vinho não era tido como um produto de primeira
necessidade, o governo pretendia gerar mais um contributo para o equilíbrio das finanças do Estado. Contudo, esta proposta acabou por não ser concretizada
devido à controvérsia que, então, se gerou.
Em 1925, Pina de Morais voltou a desempenhar
um papel relevante em prol da agricultura duriense
quando, juntamente com elementos do grupo dos Paladinos do Douro, denunciou publicamente as fraudes
na produção do Vinho do Porto devido à introdução
de aguardentes provenientes de regiões estranhas ao
Douro, o que para além de adulterar o produto, provocava a ruína dos agricultores durienses.
Nessa altura, Pina de Morais era já uma personalidade respeitada na região do Douro em virtude do
conhecimento profundo e transversal que detinha de
toda a orgânica que envolvia o Vinho do Porto, desde
a produção à comercialização, mas também pelo facto
de ter um projecto fundamentado para a reorganização do sector do vinho do Douro. Projecto esse que tinha como objectivo central a protecção dos pequenos
agricultores e trabalhadores rurais.
Este reconhecimento, aliado à condição de deputado, justificam a presença de Pina de Morais em diversos comícios e outras acções públicas que aconteceram na região duriense em meados da década de 20
do século passado. O prestígio do escritor determinou
também, em Novembro de 1926, a sua designação, por
parte da Comissão de Viticultura da Região do Douro,
72
para membro da Comissão de Representantes Escolhidos encarregada de proceder à fiscalização e avaliação
do funcionamento do Entreposto de Gaia, entretanto
criado.
Pina de Morais assumiu funções na Comissão de
Representantes Escolhido numa época particularmente agitada da política e da sociedade portuguesa e, por
consequência, da sua própria vida.
Assim, a primeira metade da década de 20 ficou
marcada pela degenerescência do regime republicano, que culminou no golpe de 28 de Maio de 1926 e
consequente imposição do regime da ditadura. Pina de
Morais, que durante esses anos combateu, como deputado e na imprensa, os abusos do Partido Republicano,
viu-se confrontado com a tomada do poder, pela força,
por parte de um governo que contrariava os princípios
mais elementares da República e da Democracia. Daí
que, integrado no movimento do Reviralho, se tenha
envolvido na preparação de um contra-golpe revolucionário tendente à reposição da ordem republicana
em Portugal. Esse golpe aconteceu entre os dias 3 e 7
de Fevereiro de 1927, no Porto. Contudo, divisões, desentendimentos e traições intestinas levaram a que o
golpe se tenha gorado, o que levou Pina de Morais a
iniciar um período de exílio que passou por Espanha,
Brasil e França.
Porém, a distância física não implicou um afastamento de Pina de Morais em relação à questão do
Douro. Pelo contrário, afastado do Exército o escritor
encontrou na comercialização de vinhos em França
a sua fonte de subsistência. Esta actividade profissional permitiu a Pina de Morais alargar conhecimentos
relativamente à vertente da comercialização e exportação do Vinho do Porto. Ao comercializar vinhos,
pôde constatar a diferença de estratégias e ambição
comercial entre outros países produtores de vinho e
Portugal, e dessa análise concluiu do enorme prejuízo
e consequente pobreza social que a ausência de uma
política económica eficaz no sector do vinho por parte das autoridades portuguesas, causava à população
duriense.
A participação de Pina de Morais na tentativa de
golpe de 3 de Fevereiro custou-lhe um exílio de cinco
anos e um afastamento da imprensa que durou quinze anos. Na verdade, só em 1942, o escritor retomou
actividade regular nos jornais ao assinar uma crónica
semanal no Jornal de Notícias. Nessas crónicas, Pina
de Morais analisou a evolução da II Grande Guerra,
escreveu sobre política internacional e assuntos de or-
dem ideológica e reflectiu sobre a vida social e urbanismo da cidade do Porto. Mas foi também oportunidade
de voltar a escrever com regularidade sobre a questão
do Douro, com especial incidência na organização institucional que regia a produção e comercialização do
Vinho do Porto.
Assim, nas mais de três de dezenas de crónicas publicadas na primeira página do Jornal de Notícias durante os oito anos que durou a sua colaboração, Pina
de Morais insistiu na necessidade de uma reorganização do sector do Vinho do Porto e, principalmente, na
urgência da adopção de uma estratégia mais ambiciosa de comercialização do vinho, que fizesse chegar o
nosso maior produto de exportação a novos países e
novos mercados. Segundo Pina de Morais, nem o estabelecimento do Entreposto de Gaia, nem a criação
da Casa do Douro, em 1932, resolveram os problemas
da lavoura duriense, pois, na perspectiva do escritor, o
principal condicionamento do Vinho do Porto residia
na exportação, o que se repercutia, em última análise,
na continuada situação de pobreza económica e social
dos trabalhadores rurais e das suas famílias
Para Pina de Morais, era indispensável que o Governo português e instituições como o Instituto do Vinho do Porto e o Grémio dos Exportadores de Vinho
do Porto, assumissem uma política expansionista do
Vinho do Porto, aproveitando a conjuntura económica e política saída da II Grande Guerra, visto que, na
sua opinião e tendo em conta o conhecimento que tinha do mercado internacional, Pina de Morais estava
convicto que o Vinho do Porto superava em qualidade
os vinhos concorrentes, oriundos de outros países. Porém, tradicionalmente, as instituições reguladoras do
negócio do Vinho do Porto recorriam a um processo
inverso, sempre que a produção de uvas ultrapassava
as previsões, ou seja, optavam pela queima do vinho
excedentário, o que regulava o mercado, mas também
limitava a expansão do produto e contribuía para o
empobrecimento das populações. Em diversos artigos Pina de Morais manifestou a sua oposição a este
procedimento. Assim, em Fevereiro de 1944, publicou
uma crónica intitulada Agro-Economia – O Novo decreto sobre o Plantio da Vinha, na qual afirmou:
O sistema de deixar de produzir porque o produto abunda, o preço baixa e as compensações à
cultura desaparecem, é evidentemente uma solução. Mas é uma solução trágica, a última, a mais
triste porque se baseia em estancar uma fonte de
riqueza. Fonte de riqueza que atrás de si acarreta
73
um verdadeiro cortejo de irremediáveis prejuízos.8
haver crise.
[…] É que o nosso país é um país fragilmente
vinícola onde ninguém bebe vinho. Porque não
gostam? Não. Porque não podem bebê-lo, não
têm recursos para o fazer. Este é que é o facto
insofismável. Sendo a quase totalidade da nação
constituída por trabalhadores, estes não podem
beber vinho às suas refeições, porque o preço do
trabalho é muito baixo. Esta asserção levar-nos-ia a largas considerações, o que nos forçaria a
abandonar o problema de que estamos tratando.
Não me recorda de ver tratado este assunto com a
nudez indispensável com que o estamos fazendo.
Tenho alguns amigos espalhados pelo estrangeiro. Há relativamente pouco tempo recebi a visita de um deles, francês.
Arrasou-me de perguntas a que eu respondia
como podia. Por fim, rematou desta forma:
- Os senhores o que exportam é mão-de-obra,
é trabalho. No dia em que pagarem como se paga
em França o trabalho, não haverá nada para exportar. A mim fazia-me espécie, que os senhores
vendessem a água-raz em Bordéus mais barata
do que a produzida nas landes que vizinham a
cidade.
Esta frase é duma realidade iniludível e bate
como o jacto de luz das lanternas furta-fogo sobre toda a rede da nossa organização económica
e sobretudo sobre a nossa exportação.10
Mais tarde, no artigo O Douro e o Vinho do Porto,
publicado em 6 de Setembro de 1945, o escritor reforça
esta ideia ao afirmar o seguinte:
A queima dos vinhos no Douro é o inimigo
número um da região e do vinho do Porto. Não
se deu conta da sua gravidade porque se queimavam pequenas quantidades, exactamente como
se não dá conta da toxidade desse produto quando ministrado em pequenas porções. Mas hoje, o
problema da queima dos vinhos do Douro apresenta duma maneira iniludível a sua insensatez
económica. E de tal forma que a sua tendência
conduziria ao esmagamento de muita possibilidade de exportação. […] Impõe-se a revisão de
todos os princípios económicos que enfermam os
estatutos do conjunto – Vinho do Porto – e promover o seu aperfeiçoamento.9
Porém, numa crónica intitulada Política Económica
– O Vinho, publicada anteriormente, em 22 de Outubro de 1942, Pina de Morais colocava a tónica na dimensão social e política subjacente à estratégia limitativa do governo Português relativamente ao sector do
Vinho do Porto, apontando as suas consequências ao
nível da pobreza a que condenava a população. Escreveu Pina de Morais nesse artigo:
É o nosso país de tal maneira vinícola, que a
sua produção conduza fatalmente a uma crise
endémica de vinho? A nossa produção é tão
vasta que leve o produtor a viver na inquietação
permanente de não saber se poderá cobrir as
suas despesas de granjeio e as suas próprias?
Cuidamos que não. Cuidamos que dentro deste problema se abriga um erro económico crasso
e que infelizmente ainda o mesmo problema não
foi encarado pelo seu verdadeiro prisma. Cremos
que o país é vinícola porque produz felizmente vinho, mas não é um país que produza exageradamente. Cremos, pelo contrário, que nunca houve
pletora de vinho, embora as crises sejam tanta
vez tremendas.
Afirmamos pelo contrário que a nossa produção é, em geral, deficitária e que nunca devia
8 MORAIS, 1944: 1.
9 MORAIS, 1945a:1.
É evidente que, dado o contexto político vivido na
época em Portugal, as ideias de Pina de Morais sobre o
funcionamento da estrutura orgânica do sector do vinho do Porto não foram aceites pacificamente pelo poder instituído. Foram vários os artigos objecto de polémica por parte dos responsáveis institucionais e outros
foram mesmo censurados. Mas nem por isso Pina de
Morais deixou de expressar as suas ideias. Ao longo
da sua participação no Jornal de Notícias foi sempre
apresentando propostas que, genericamente, visavam
a melhoria das condições de vida dos trabalhadores
rurais durienses. Entre essas propostas podemos ainda
mencionar a criação de um Banco do Vinho do Porto,
a urgência de formação de enólogos e a necessidade de
abolir a duplicação de grémios de lavradores no Douro.
10 Morais, 1942: 1.
74
Um século passado sobre o trágico Motim de Lamego, parece absolutamente apropriado lembrar nesta
data os humildes trabalhadores agrícolas assassinados
quando apenas reivindicavam trabalho e pão, bem
como as circunstâncias sociais e políticas em que estes
actos bárbaros aconteceram. Neste contexto, é também justo recordar a figura de João Pina de Morais,
um exemplo de coragem e civismo que assumiu o papel de cronista dos acontecimentos ocorridos junto à
Câmara de Lamego, não apenas para homenagear os
seus irmãos durienses mortos, mas também para que
nos lembremos sempre que no Douro, por trás da beleza da paisagem e da excelência do vinho está o trabalho e o sacrifício de gerações de homens e mulheres
que, desde há mais de dois séculos e meio, criaram
uma região única no mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
MACHADO, A. Pinto (1953) - João Pina de Morais
– Soldado Poeta e Poeta Soldado. «Boletim da Casa Regional da Beira-Douro», Fevereiro de 1953.
MORAIS, Pina (1927) – «Jornal a Noite», Rio de
Janeiro.
MORAIS, Pina de (1942) – Política Económica – O
Vinho. «Jornal de Notícias», Porto, 22 Outubro, p. 1.
MORAIS, Pina de (1944) – Agro-Economia – O
Novo decreto sobre o Plantio da Vinha. «Jornal de Notícias», Porto, 24 Fevereiro, p. 1.
MORAIS, Pina de (1945a) – O Douro e o Vinho do
Porto. «Jornal de Notícias», Porto, 6 Setembro, p.1.
MORAIS, Pina de (1945b) - Crónica Banal da Minha Aldeia. «Jornal de Notícias», Porto, 13 Setembro,
p. 1.
MORAIS, Pina de (1949ª) - «O Vinho do Porto».
Jornal de Notícias, Porto, 31 Março, p 1.
MORAIS, Pina de (1949b) - Miséria Dourada. «Jornal de Notícias», Porto, 20 Outubro, p.1
MORAIS, Pina de (2003) – Sangue Plebeu, 2ª Edição. Lamego: Museu do Douro/Câmara Municipal de
Lamego.
SOUSA, Fernando de (1988) – A Memória de um
Século. «Jornal de Notícias» (Edição Comemorativa do
Primeiro Centenário do Jornal de Notícias). Porto.
RODRIGUES, João Luís Sequeira (2007) – João
Pina de Morais – Vida, Pensamento e Obra. Porto: Edições Caixotim.
RODRIGUES, João Luís Sequeira (selecção,
coordenação e notas) (2009) – Pina de Morais – Crónicas no Jornal de Notícias (1942 – 1950). Fafe: Editora
Labirinto.
75
O motim de Lamego,
um momento histórico de consagração da denominação
de origem «Porto» para os vinhos generosos da Região
Demarcada do Douro
texto: Gaspar Martins Pereira
INTRODUÇÃO
O
motim de Lamego de 20 de Julho de 1915
constituiu o culminar do movimento de
contestação duriense ao Tratado de comércio luso-britânico de 1914, em particular ao seu
artigo 6.º, cuja redacção desprezava a origem regional
do vinho do Porto, admitindo que essa designação
pudesse ser usada em Inglaterra por qualquer vinho
produzido em Portugal. Num contexto de crise comercial do vinho do Porto, que enfrentava, desde finais do século XIX, uma intensa concorrência nos
mercados europeus, em que proliferavam falsificações
baratas, os durienses reagiram com um vasto conjunto
de movimentações, tanto das elites vinhateiras como
das camadas populares, em simultâneo com o sector
exportador, como poucas vezes tinha acontecido, para
defender a denominação de origem «Porto» e o seu
uso exclusivo pelos vinhos generosos produzidos na
Região Demarcada do Douro. O desfecho sangrento
do motim de Lamego transformou esse acontecimento
num momento histórico de consagração da denominação de origem, elevando os seus actores à condição
de heróis-mártires da causa regional.
Nesta breve comunicação, pretendemos apenas
destacar o carácter épico da revolta de Lamego, que
justifica este momento de celebração, buscando perceber o seu significado histórico, em comparação com
outros movimentos sociais que ocorreram no Douro e
em outras regiões vitícolas europeias no início do século XX.
76
Nota biográfica:
Gaspar Martins Pereira é Professor catedrático do Departamento de História
e de Estudos Políticos e Internacionais da Faculdade de Letras da Universidade
do Porto e investigador do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar
«Cultura, Espaço & Memória». Tem desenvolvido investigação nas áreas de
História Urbana, História Social, História Empresarial e História da Vinha e do
Vinho. É autor de diversas obras, de que se destacam, entre as publicações mais
recentes, Uma vida pela liberdade: Artur Santos Silva, 1910-1980 (Porto, 2010),
Crise e Reconstrução. O Douro e o Vinho do Porto no século XIX (coord., Porto,
2010), Roriz. História de uma Quinta no Coração do Douro (Porto, 2011), Alves
Redol e o Douro. Correspondência para Francisco Tavares Teles (org., Porto,
2013), Unicer, uma longa história (Leça do Balio, 2014).
77
viúva e dois filhos; Francisco Guedes, solteiro; Pedro da Silva, que deixou viúva.
Da freguesia de Valdigem: — Uma mulher,
mendiga; Maximiano Ferreira da Silva, que deixou viúva e filhos.
Da freguesia de Figueira: — António Ribeiro,
que deixou viúva e 4 filhos.
— Um rapaz, de maior idade, de Sande.
— José da Rede, que deixou viúva e três filhos,
de Almacave.
— Um rapaz, solteiro, de Britiande.3
Justificando a homenagem promovida pelo
semanário A Defesa do Douro, o seu director,
Júlio Vilela, considerava que os durienses não
podiam esquecer aquele momento:
20 de Julho de 1915 é uma data que o Douro
não deve, não pode esquecer. O sangue vertido
nesse dia, alarmando os governantes, obrigou-os
a atender as reclamações, aliás justíssimas, que o
Douro fez em prol da aclaração da base VI desse
tratado [de comércio com a Inglaterra].
Quem nos diz que, sem ele, sem esse sangue
inocente se obteria a vitória?! Quem pode afirmar que não era necessário aquele golpe brutal
da Fatalidade e do Destino para que justiça fosse
feita ao Douro?!
Eis porque é preciso relembrar essa data.
Agora, mais do que nunca, é forçoso não esquecer essas vítimas, lembrando-se o Douro de que,
estando na eminência de ver denunciado o tratado de comércio que foi a causa daquela tragédia, ninguém lhe pode afiançar que, para defesa
do pão de seus filhos, não seja preciso derramar
mais sangue, atirando-se para uma luta ingente,
formidável, talvez a maior de quantas tem sustentado!4
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO
D
eve dizer-se que a importância deste acontecimento histórico, apesar do destaque
que lhe conferiu a imprensa da época,
por vezes com interpretações contraditórias, foi, depois, continuamente abafada, por razões ideológicas,
quer pelos republicanos mais intolerantes, que viam
na participação de alguns monárquicos um ataque à
República, quer pelos adeptos do Estado Novo, que
privilegiavam uma ideia de ordem social contrária a
todas as formas de manifestação e de intervenção cívica. É certo que, ainda durante a Primeira República, é
possível assinalar uma ou outra comemoração tímida
da revolta de Lamego. Por exemplo, no décimo aniversário dos acontecimentos, o semanário reguense
A Defesa do Douro publicou um número especial de
homenagem aos «mártires da causa do Douro»1. Com
destaque de caixa, integrada no próprio cabeçalho e
sob o título «Como se deu a carnificina», pode ler-se
uma declaração de João Carlos Guedes, que participara activamente na revolta:
Ninguém melhor do que eu sabe como as
coisas se passaram e por isso também ninguém
melhor sabe que nenhuma razão plausível houve
para aquele procedimento.
Não posso dizer quantos foram os feridos por
estilhaços de bombas; posso só dizer que, diante
de mim, no hospital, os médicos reconheceram
haver ferimentos por estilhaços de bombas. Alguns foram mortos, a tiro, das janelas das traseiras da casa da Câmara quando fugiam!2
Logo a seguir, a toda a largura da primeira página,
evocavam-se, com destaque a negro, as doze pessoas
mortas na revolta:
20-VII-1915
Os mártires da causa do Douro
Da freguesia de Cambres:
— Bernardo Pinto, que deixou viúva e dois
filhos; Maria da Silva, que deixou viúvo e seis filhos; José Gomes Rabito, que deixou viúva e um
filho; Francisco dos Santos Araújo, que deixou
1 A Defesa do Douro. Peso da Régua, ano I, n.º 30, 26.07.1925. Este número do jornal inclui artigos de Júlio Vilela, Antão de Carvalho, A. de Sousa, Vieira da Costa, Torcato de Magalhães, Nuno Simões, Amâncio Queirós
e A. Regueiro.
2 Idem, ibidem.
O tom de todos os artigos desse número do jornal é
de idêntica consagração dos heróis-mártires da causa
do Douro, que, em 20 de Julho de 1915, tinham contribuído, decisivamente, para a vitória do movimento de
protesto contra o artigo 6.º do tratado luso-bitânico,
obrigando o governo a proceder à aclaração daquele
artigo, assumindo que a denominação de vinho do
Porto pertencia em exclusivo aos vinhos generosos
produzidos na região do Douro. Alguns artigos do jor3 Idem, ibidem.
4 VILELA, 1925: 1.
78
nal que temos vindo a citar historiam o movimento
duriense, desde a «missão de Alijó», chefiada por Torcato de Magalhães, em finais de 1914, passando pelos
grandes comícios vinhateiros, por campanhas de imprensa e pelas representações e negociações junto do
Governo e do Parlamento, lideradas pelas elites regionais, até às manifestações populares que se verificaram
em várias vilas do Douro na Primavera e no início do
Verão de 1915.
As homenagens promovidas em 1925, como se depreende das palavras que citámos de Júlio Vilela, assumiram a revolta de Lamego como um momento-chave
da defesa dos interesses regionais, no contexto de reactivação do movimento duriense, que viria a estender-se até 1932 e a estar na origem da fundação da Casa
do Douro, já no limiar do Estado Novo.
Nos anos quarenta, numa conjuntura de abertura
intelectual e também de uma renovada atenção aos
dramas sociais e humanos da viticultura duriense,
agravados por uma nova crise comercial do sector do
vinho do Porto, a consagração dos mártires da revolta
de Lamego seria reafirmada e fixada na narrativa literária. Primeiro, com a evocação feita por Pina de Morais
no conto inicial do seu livro Sangue Plebeu, publicado
em 1942. Em jeito de apresentação ao conto No Douro, Pina de Morais refere-se às «esquecidas efemérides
da Região demarcada do Douro», homenageando os
«humilíssimos trabalhadores da gleba» que «caíram
mortos, por uma causa justa e grande, a causa da sua
terra, do seu pão e do prestígio do Vinho do Porto,
duma maneira trágica e covarde»5. E, adiante, propõe
que seja erguido um monumento em sua memória:
«não quero que este lancinante heroísmo se perca, não
quero que a ingratidão de nós todos continue»6.
Poucos anos depois, o consagrado escritor ribatejano Alves Redol dedicaria à revolta de Lamego o volume Vindima de Sangue, desfecho do «Ciclo Port Wine»7. Na prosa neo-realista de Alves Redol, a narrativa
literária, ancorada na memória regional e na pesquisa
de muitas fontes documentais da época, contextualiza
amplamente os movimentos populares de 1914 e 1915,
revelando-nos, para lá da trama ficcional, a conjuntura
política e económica nacional e internacional, as con-
dições de vida dos pequenos viticultores durienses e
a profunda crise que os atingia, as diferenças sociais
e territoriais dentro da região demarcada, os conflitos
entre os produtores e os negociantes, bem como entre
o Douro e as regiões do Sul, cujos vinhos mais baratos
eram misturados com vinhos generosos do Douro e se
introduziam no circuito exportador sob a denominação «Porto»8.
Apesar dessas tão vivas narrativas literárias, reflectindo a importância que assumiu na memória
regional, bem como da abundância de fontes para o
seu estudo9, o movimento duriense foi, durante muito
tempo, desprezado pelos historiadores. Mesmo obras
de grande fôlego ignoraram a revolta de Lamego ou,
quando muito, concederam-lhe escassas linhas, como,
por exemplo, a História de Portugal, dirigida por Damião Peres10. Por vezes, o movimento duriense aparece-nos obscurecido por interpretações incongruentes.
Numa obra recente sobre a I República pode ler-se:
As vagas de assalto são sobretudo um resultado da
conjuntura de guerra e não podiam ser dela dissociadas.
A prova surge em Julho de 1915, quando o que tinha começado por ser um movimento exclusivamente urbano
se alarga às zonas rurais. Começam nesse mês as “revoltas camponesas”, com as populações rurais a “invadirem” Lamego para assaltar armazéns e destruir tudo o
que lhes cheirasse a Estado que encontrassem pela frente, a começar na câmara municipal.11
A verdade é que a historiografia regional só muito
recentemente tem vindo a gerar um bom conjunto de
estudos e análises mais detalhadas, solidamente alicerçadas nas fontes, incluindo o motim de Lamego e o
contexto histórico em que ocorreu12.
8 PEREIRA, 2014.
5 MORAIS, 1942: 9.
9 Além das inúmeras referências existentes na imprensa e outras fontes
da época, vale a pena destacar a compilação documental feita por PEREIRA, 1949.
6 MORAIS, 1942: 10.
10 PERES, 1954: 118-119.
11 TELO, 2010: 328.
7 Os três volumes do «Ciclo Port Wine» — Horizonte Cerrado; Os Homens e as Sombras; Vindima de Sangue — foram publicados, respectivamente em 1949, 1951 e 1953, com reedições posteriores. A 5.ª edição foi
lançada no presente ano (Lisboa: Ed. Caminho, 2015).
12 Em especial, SEQUEIRA, 2000; SEQUEIRA, 2003; PEREIRA & SEQUEIRA, 2004; SEQUEIRA, 2011; LAGE, 2014.
79
m finais do século XIX e no início do século XX, a região vinhateira do Douro atravessou um dos períodos mais dramáticos
e também mais épicos da sua história. Desde 1863, a
filoxera tinha alastrado, lentamente, a partir do seu
foco inicial, em Gouvinhas, reduzindo a «mortórios»
todo o vinhedo regional. A partir da década seguinte,
multiplicaram-se os tratamentos, à base de sulfureto
de carbono, numa tentativa desesperada para salvar
as videiras. A mudança radical do sistema de cultivo,
lançada ainda em 1876 por Joaquim Pinheiro de Azevedo Leite Pereira, com a plantação de porta-enxertos
americanos, só viria a difundir-se nos anos noventa,
com um movimento impressionante de replantações,
que ultrapassou, numa década, mais de 20 mil hectares
de vinhas13.
O movimento foi comum a todas as regiões vitícolas da Europa14 e teve importantes impactos técnicos,
económicos e sociais, além de alterar profundamente
a paisagem de algumas dessas regiões, como aconteceu
no Douro. Porém, esse período coincidiu, também,
com grandes alterações nos mercados, em que se intensificava uma concorrência agressiva, com práticas
pouco escrupulosas de contrafacção dos vinhos das
denominações mais prestigiadas. Por toda a Europa,
produziam-se «vinhos do Porto» industriais, tal como
«Madeiras», «Xerez», «Champagnes» e outros, que
inundavam os mercados com imitações baratas, concorrendo, de forma desleal, com os vinhos genuínos
dessas denominações de origem.
Assim, as principais regiões vinhateiras, após grandes investimentos no combate às doenças da videira e
na replantação das vinhas, passaram a enfrentar crescentes dificuldades de escoamento dos seus vinhos e a
depreciação dos respectivos preços, o que gerou situações críticas de miséria e um clima de crescente conflitualidade social. Ficou célebre a revolta vinhateira
do Languedoc francês, em defesa dos vinhos naturais
contra os vinhos falsificados. Na Primavera de 1907, o
movimento chegou a reunir mais de meio milhão de
pessoas, em Montpellier, atingindo um desfecho dra-
mático em Narbonne, onde foram mortos seis populares pela tropa enviada para reprimir os manifestantes15. Menos trágicos, mas não menos violentos, foram
os acontecimentos ocorridos em várias localidades da
região de Champagne, entre Janeiro e Junho de 1911,
em torno da demarcação da região e, também, contra as fraudes praticadas por negociantes. As caves de
diversos negociantes, suspeitas de guardarem vinhos
provenientes de outras regiões, foram incendiadas e
registaram-se tumultos em vários locais, chegando a
erguer-se barricadas, quando o governo enviou a tropa
para travar a revolta vinhateira16.
Nas movimentações vinhateiras do Douro de 1914
e 1915, verificam-se muitas das características que
marcaram as revoltas do Midi francês e da Champagne, onde o que estava em causa era o combate à fraude
que campeava no sector vinícola e também, no segundo caso, a defesa da identidade territorial da denominação de origem.
Revoltas sectoriais e territoriais, uniram, essencialmente, os viticultores contra os «inimigos» externos
e os representantes locais desses interesses externos,
que responsabilizavam pela crise: os negociantes que
usavam práticas fraudulentas, os viticultores de outras
regiões que usurpavam a denominação de origem ou
os produtores de álcool industrial usado para substituir a aguardente vínica. Foram revoltas regionalistas,
cumulativas e corporativas, em que convergiram diversos movimentos sociais com diferentes interesses,
motivações e formas de intervenção. Se as elites regionais se distinguiram nas campanhas de imprensa, nos
Congressos Vitícolas e nas reuniões de viticultores,
nas representações junto do Governo ou do Parlamento, nas negociações e nos discursos nos comícios
vinhateiros, ou ainda nas acções desencadeadas pelas
câmaras municipais (demissão das vereações, encerramento dos serviços, telegramas ao governo, colocação
de bandeiras negras ou bandeiras a meia-haste, etc.),
as movimentações populares assumiram um carácter
mais violento e iconoclasta, como o incêndio de pipas
de vinho ou aguardente de outras regiões nas estações
de caminho-de-ferro e em armazéns de traficantes ou
a destruição de edifícios das finanças.
Muitos destes aspectos são também visíveis nas
movimentações do Douro de 1914 e 1915. Mas o caso
duriense assume, simultaneamente, algumas caracte-
13 Cf. PEREIRA, 1989; MARTINS, 1991; PEREIRA, 2009.
15 LACHIVER, 1988: 467-471.
14 Veja-se, por exemplo, GARRIER, 1989.
16 GUY, 2003: 158-185.
A CONSAGRAÇÃO DA DENOMINAÇÃO DE
ORIGEM «PORTO» PARA OS VINHOS GENEROSOS DA REGIÃO DEMARCADA DO DOURO
E
80
rísticas singulares que merecem ser destacadas.
Em primeiro lugar, a revolta duriense de 1914-1915
situa-se na continuidade de uma longa série de movimentações em defesa da denominação de origem,
remontando a finais do século XIX, com a criação de
Comissões de Defesa do Douro, realização de comícios vinhateiros, representações ao poder central, criação de uma imprensa regionalista, etc. Em geral, todos
esses movimentos coincidiam na reivindicação de medidas de regulação do comércio, repressão das fraudes
e contrafacções, regresso à demarcação da região produtora (abolida em 1865) e à exclusividade da denominação «Porto» para os vinhos generosos produzidos
na região do Douro. Após a reposição da legislação
reguladora pelo governo de João Franco, em 1907, os
movimentos de protesto centraram-se no combate à
fraude e à concorrência desleal, defendendo a extensão e cumprimento da legislação da denominação de
origem. No final da Monarquia, o agravamento da crise comercial, fazendo agravar as condições de vida no
Douro, com o empobrecimento dos pequenos viticultores e o desemprego entre os jornaleiros, fez emergir
um espírito de «revolta latente» e algumas formas de
agitação popular mais violentas, incendiando repartições locais das finanças, como aconteceu em Alijó, em
Janeiro de 1909, em Murça, em Fevereiro de 1909, e
em Carrazeda de Ansiães, em Abril de 1910, ou destruindo pipas de vinho de outras regiões em estações
do caminho-de-ferro, como no Tua, ainda em Abril de
191017. Após a instauração da República, os movimentos durienses ganharam novos contornos, utilizando,
frequentemente, as redes de influências partidárias,
a par de uma maior actividade da renovada Comissão de Viticultura da Região do Douro. Sobretudo a
partir do início de 1914, intensificaram-se as acções
de protesto e as reclamações durienses, com grandes
comícios vinhateiros (como o de 10 de Maio de 1914,
na Régua), ocorrendo também diversos tumultos populares, com ataques a armazéns suspeitos de fraudes.
A assinatura do tratado de comércio luso-britânico,
em 12 de Agosto de 1914, seria o pretexto para uma
nova vaga de movimentações, que viria a culminar em
Julho de 1915, no motim de Lamego, face às hesitações
governamentais em proceder à aclaração do já referido
artigo 6.º. Assim, as velhas motivações de denúncia da
fraude e de reivindicação de medidas de protecção da
região vinhateira e de regulação da denominação de
17 Cf. SEQUEIRA, 2011: 281-282.
origem associaram-se à luta contra o tratado de Comércio com a Inglaterra, colocando-se já não apenas
nos planos regional e nacional mas também no plano
internacional, o que decorre da vocação exportadora
dos vinhos generosos do Douro.
Em segundo lugar, as características da vitivinicultura duriense, com as conhecidas dificuldades
de cultivo da vinha em terrenos de encosta, os elevados custos de armação do terreno, de plantação
e de granjeio, a par da maior dependência da população da monocultura da vinha e da colocação dos
seus vinhos no circuito exportador, acentuaram os
efeitos da crise comercial e conferiram grande dramatismo à situação vivida no Douro em finais do
século XIX e princípios do século XX, transformando a «questão duriense» numa das grandes
questões nacionais da época. Para lá dos objectivos e
motivações que, em cada momento, impeliam à acção
colectiva, foi a complexa e multifacetada «questão
duriense» que esteve subjacente à longa continuidade
das movimentações regionais. Nesta perspectiva,
valeria a pena explorar, em estudo mais alargado, as
motivações que mobilizavam as comunidades rurais
durienses não apenas decorrentes das dificuldades e
necessidades conjunturais mas, sobretudo, em torno
de razões mais profundas, que poderíamos associar ao
que consideravam os seus «direitos sagrados» e a uma
consciência das desigualdades e injustiças provocadas
pela economia de mercado. Nos protestos das camadas
populares, que se intensificavam em contextos de crise
de subsistências, as ideias tradicionais de «negócio
honesto», de «preço justo» e de «bem comum», que
Edward Thompson traduziu no conceito de «economia
moral da multidão», legitimariam as acções violentas
de revolta contra práticas ou situações consideradas
indignas18.
Um terceiro aspecto a destacar prende-se não só
com uma forte intervenção das elites vinhateiras e das
diversas instituições locais e regionais (câmaras municipais, sindicatos vitícolas, Comissão de Viticultura da
Região Duriense, etc.) mas também com uma nítida
e excepcional aliança sectorial entre os viticultores do
Douro e os negociantes do Porto-Gaia. Desde o início dos protestos contra o tratado luso-britânico, as
posições tradicionalmente divergentes da produção e
do comércio uniram-se na defesa da aclaração do ar18 THOMPSON, 2008. A versão inglesa, sob o título The Moral Economy
of the English Crowd in the Eighteenth Century, foi publicada na revista
Past & Present, n.º 50, 1971, p. 76-136.
81
tigo 6.º. Pode dizer-se, por isso, que os movimentos
de 1914-1915 tiveram o condão de unir todo o sector
do vinho do Porto, o que raras vezes aconteceu na sua
história. Trata-se, por isso, de um momento histórico
de consagração da denominação de origem. Por um
lado, os produtores durienses assumiram para os seus
vinhos generosos a denominação «Porto», a que sempre se tinham oposto, preferindo designá-los por «vinhos finos do Douro». Por outro lado, os negociantes
do Porto-Gaia abandonaram as suas reservas em relação ao uso exclusivo da denominação «Porto» para os
vinhos produzidos na Região Demarcada do Douro.
NOTA FINAL
N
o dia em que ocorreu o motim de Lamego, uma comissão de representantes do
Douro, chefiada por Antão de Carvalho,
reuniu-se em Lisboa com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, que se comprometeu a atender às reivindicações durienses de aclaração do artigo 6.º do tratado
luso-britânico. A vitória desse movimento reivindicativo decorreu de um vasto e diversificado conjunto de
acções que, durante vários meses, agitou a região demarcada, a par da pressão exercida na imprensa e junto do poder central por representantes do Douro. Mas
a memória regional evocaria os «mártires de Lamego»
como os principais «heróis» desse duro combate em
defesa da denominação de origem. A vitória tinha sido
«selada com sangue» e, por isso, sacralizada. Como
evocaria, dez anos mais tarde, Antão de Carvalho:
Glória aos Mártires!
Em Lisboa, o Douro falava ao Governo da República na voz mais enérgica e sonora, defendendo os seus direitos sagrados.
As palavras dos comissionados foram simples eco retumbante das reclamações regionais
na porventura mais bela e formidável campanha
que haja agitado a alma da forte gente transmontana e beirã.
Era solene o momento.
Instantaneamente os clamores irados converteram-se em silêncio.
Caíra sobre nós a dor.
Estávamos ungidos pelo sangue dos mártires.
A causa triunfou e foram eles os vencedores.
Que o Douro nunca os esqueça, pagando a dívida sagrada, ainda em aberto, da merecida consagração aos mortos obscuros, que, em verdade,
são os seus mais excelsos e nobres paladinos.
Glória aos Mártires!19
19 CARVALHO, 1925: 2.
82
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A Defesa do Douro. Peso da Régua, ano I, n.º 30,
26.07.1925.
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