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A URBANIZAÇÃO “TURISTIFICADA” DA ORLA MARÍTIMA DE FORTALEZA:
O CASO DA FEIRA DA BEIRA-MAR.
Márcia Gadelha Cavalcante
Arquiteta e Urbanista, Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie, Mestre em Engenharia Civil com Área de Concentração em Edificações – UFC,
Professora da Universidade Federal do Ceará. Av da Universidade,2890 - Benfica- Fortaleza,
CE - BrasilTelefone: (85) 33667491. ([email protected])
Marina Cavalcante Hissa
Arquiteta e Urbanista, pós-graduanda UNIFOR; rua Silva Jatahy 760, ap.1800, (85) 32487500.
([email protected])
Palavras Chave: planejamento, turismo, comércio informal, Feira da Beira- Mar.
Introdução
A orla marítima de Fortaleza, nordeste do Brasil, tem sofrido um intenso processo de
urbanização atrelado ao turismo e a atividade imobiliária. A valorização da paisagem
litorânea desta área da cidade teve início na década de 60 com a abertura da Avenida
Beira-Mar,e, desde então,se desenvolve em meio à diferentes formas de apropriação
e diversidade de agentes produtores.
O calçadão da Avenida Beira-Mar se transformou em uma das principais atrações
turísticas de Fortaleza, marcado por uma ocupação desordenada de equipamentos de
comércio e lazer, onde a intensiva concentração de hotéis e edificios residenciais de
alto padrão, contrastam com o comércio informal caracterizado, principalmente, pela
feira de artesanato. Estas duas realidades convivem atualmente na área mais
valorizada da cidade gerando uma área dinâmica, com inúmeros conflitos de ordem
social, espacial e ambiental.
O presente trabalho analisa o processo de desenvolvimento da Feira da Beira-Mar de
Fortaleza por ser o equipamento mais procurado pelos turistas e exemplificar os
conflitos sócio-territoriais. Será enfocado o caráter híbrido do espaço onde ocorre a
feira e as razões que geraram este hibridismo. A análise do hibridismo no espaço
territorial, atualmente ocupado pela feira, tem como pressuposto teórico a definição do
dicionário Metápolis que afirma que a hibridação é caracterizada pela “simultaneidade
de realidades e categorias referidas não a corpos harmônicos e coerentes, e sim,
acenários mestiços feitos de estruturas e identidades em convivência comensalista.”
A Feira da Beira-Mar, objeto desta pesquisa, localiza-se no trecho da orla marítima da
Avenida Beira-Mar correspondendo à área frontal de dois hotéis bastante
frequentados, o hotel Praiano e o Hotel Oásis Atlântico (antigo Othon), praticamente
no meio da extensão total da avenida, sendo hoje uma atração que consta em todos
os roteiros turísticos da cidade. É um espaço onde, desde a década de 70, ocorre um
processo espontâneo de crescimento abrigando uma série de atividades instaladas
aleatoriamente e que hoje ocupa uma grande extensão do espaço do calçadão da
Beira-Mar. Compreender o processo de formação e transformação permanente deste
espaço nos auxiliará a entender a complexidade urbana existente atualmente na orla
marítima da cidade de Fortaleza.
1.
Fortaleza Turística
O Estado do Ceará adotou o turismo como atividade estratégica dentro de um
processo de reestruturação social (econômico, política e cultural-ideológico) com o
intuito de participar dos fluxos de produção e consumo globalizados, se inserindo na
categoria de turismo de “sol e mar”1.
A capital cearense, metrópole regional2 e atualmente a quinta cidade do Brasil em
população3, é receptora dos fluxos de turistas que procuram variados destinos
litorâneos4, por isso, a segunda cidade turística mais procurada do nordeste5. PAIVA
(2011)6, em sua pesquisa sobre o processo de metropolização de Fortaleza afirma que
a atividade turística é um dos indutores da urbanização da cidade, juntamente com a
industrialização e a atividade imobiliária. Segundo PAIVA (2011), “o turismo se
enquadra no conjunto de transformações gerais ocorridas nas práticas econômicas
contemporâneas [...] que se apresenta como um dos principais produtos de consumo
resultante da globalização, que entre outros processos aumenta a atratividade e a
visibilidade dos lugares”.
Em função de sua localização litorânea e de sua extensa orla marítima, o processo de
crescimento urbano de Fortaleza gerou uma intensa valorização de seu território à
beira-mar e circunvizinhanças. Segundo PAIVA (2011, pg.186) o litoral da Região
Metropolitana de Fortaleza concentra 98,8% dos empreendimentos hoteleiros.
Historicamente o crescimento populacional de Fortaleza advém dos fluxos migratórios
com origem na zona rural e nas pequenas cidades interioranas cearenses, o que
ocasionou uma macrocefalia urbana. Esta população expulsa do campo em função da
estiagem e da precariedade da atividade agrícola buscou na “cidade grande” a
sobrevivência. A pouca capacidade de absorção desta população pela indústria e a
baixa qualificação profissional gerou o aumento do setor de comércio e serviços,
especialmente na informalidade, que atualmente corresponde a 70% da ocupação de
atividades na economia urbana de Fortaleza. Em seu estudo sobre o processo de
metropolização de Fortaleza, PAIVA (2011) afirma que as políticas públicas de
inclusão do turismo como instrumento de reestruturação social reproduziram os
interesses hegemônicos e repercutiram em novos padrões de desigualdade social,
visto que a atividade terciária de prestação de serviços é a que pode absorver a
informalidade e baixa qualificação.
1
PAIVA (2010), Afirma que a produção e o consumo dos espaços litorâneos, que qualificam a
modalidade de turismo de “sol e mar”, constituem o segmento mais dinâmico da atividade
turística, pois além do ambiente natural litorâneo e da variedade dos seus ecossistemas,
exercem elevado poder de atração, possibilitam o exercício de diversas práticas de lazer. Uma
publicação Ministério do Turismo do Brasil, afirma que 60 a 65% da população mundial buscam
sol e praia em climas tropicais e mediterrâneos.
2 De acordo com a classificação da rede urbana brasileira elaborada pelo IBGE em 2008, que
abrangem variáveis como tamanho e importância das cidades, constituem o segundo nível da
gestão territorial, o primeiro é nacional, e exercem influência na macrorregião onde se
encontram. São metrópoles regionais Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Goiânia,
Manaus, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Luís.
3
2.447.409 em 2010, conforme estimativa do último censo do IBGE
4
A praia de Jericoacoara está entre os dez destinos mais procurados do Brasil.
5
Segundo dados do Ministério do Turismo divulgado no site http://g1.globo.com/jornalhoje/noticia/2013/02/cidades-do-nordeste-sao-maioria-no-ranking-de-destinos-maisprocurados.html. Acesso em 15.06.2013
A falta de trabalho formal gerou uma expansão do mercado informal levando muitos
trabalhadores a atuarem como vendedores ambulantes, instalando-se nos espaços
públicos da cidade tais como ruas, praças e calçadas, inicialmente no centro
comercial, e atualmente em bairros e na orla marítima.
Na década de 50 os principais hotéis de Fortaleza se concentravam no centro, sendo
a venda do artesanato nas calçadas dos hotéis um dos meios de sobrevivência dos
imigrantes à época. A praia de Iracema, próxima ao centro, abrigava as casas de
veraneio dos mais abastados e, em 1951, abriga o primeiro hotel à beira-mar de
Fortaleza, o Iracema Plaza Hotel. A implantação do novo porto na ponta do Mucuripe
gerou bruscas mudanças no litoral, observou-se uma nova configuração na Praia de
Iracema devido à diminuição da faixa de praia, onde vários balneários e casas de
veraneio foram devastados.
Paralelamente foi aberta a Avenida Beira-Mar, em 1963, atraindo sua ocupação pela
classe alta que antes ocupava a Praia de Iracema. A criação da avenida fazia parte do
plano urbanístico de Hélio Modesto para a cidade, o qual seguia o padrão de outras
cidades litorâneas com a abertura de vias paisagísticas litorâneas. Nesta época o
centro da cidade já estava "em paulatino esvaziamento residencial, político e
administrativo" (NETO, ALBUQUERQUE, 2014, pg.126)
Foto 01: Foto da Avenida Beira-Mar nos anos 60.
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1015635
Dessa forma, a inauguração da Beira-Mar consolidou o início do processo de
modificação do padrão de ocupação da área litorânea. Para a construção da avenida,
anteriormente conhecia como "Rua da Frente", alguns estabelecimentos, como
botecos e casas de prostituição, foram demolidos, ocasionando a remoção dos
habitantes originais para outros bairros da cidade, como o Serviluz(NETO,
ALBUQUERQUE, 2014). Somente depois desta "limpeza social" que a Beira-Mar
assumiu posição de centro de convergência de moradia e lazer da classe alta de
Fortaleza, dando início a valorização imobiliária e à expansão da rede hoteleira para a
orla marítima da avenida que, na década de 70, consolida-se como principal área
turística de Fortaleza.
Consequentemente, o comércio ambulante se transfere para a Avenida Beira-Mar,
onde a partir de diferentes formas de apropriação do espaço público, dentre elas a
feira de artesanato, foram se estabelecendo uma diversidade de agentes produtores
que comercializavam além do artesanato, itens de alimentação (refrigerantes, milho,
tapioca, acarajé, etc.) e confecção em geral.
Nas últimas décadas, a Beira-Mar tornou-se um espaço seletivo e de valorização
imobiliária por conta da paisagem litorânea e pelo acirramento por um lugar com vista
para o mar, havendo uma alteração da tipologia das moradias por prédios residenciais
de elevado nível. A orla marítima de Fortaleza, em especial o trecho da Avenida BeiraMar, e os bairros vizinhos (Aldeota, Meireles, Mucuripe e Praia de Iracema) se
tornaram as áreas imobiliárias mais verticalizadas da cidade, concentrando os hotéis,
edifícios multifamiliares e flats (Mapa 01). Segundo dados coletados na SETUR(Secretaria de Turismo do Governo do Estado do Ceará) por PAIVA (2011, p.188),
Fortaleza possui 66 hotéis localizados na orla que se inicia na Praia de Iracema e
termina no Bairro do Mucuripe, em aproximadamente 5 km de litoral, nesta área e nas
proximidades se localizam 21 dos 23 flats existentes na cidade.
Mapa 01- Orlas Marítimas de Fortaleza. Elaborado por RICARDO PAIVA(2011) e
complementado pela autora.
Desta maneira, pode-se afirmar que a realidade urbana da cidade é o resultado típico
de um processo de “urbanização turística”, sendo a orla da Avenida Beira-Mar um
“território turistificado”.
2. A dinâmica urbana da orla marítima da Avenida Beira-Mar
A chamada orla turística de Fortaleza se confunde com a extensão da Avenida BeiraMar onde estão localizados os hotéis, edifícios, e equipamentos de serviços (Foto
02).Ao percorrermos a Avenida Beira-Mar nos seus 5 km de extensão observamos a
diversidade da ocupação do espaço urbano e a vitalidade existente no calçadão em
todas as horas do dia, até mesmo ao meio-dia, com os termômetros ali instalados
marcando temperaturas de até 30°.PAIVA afirma a importância deste equipamento
para a cidade “por seu uso turístico e forte impacto visual, que capturado como cartão
postal é comercializado enquanto espaço-mercadoria” (PAIVA, 2011, pg.227).
Foto 02- Orla turística da Avenida Beira-Mar. Fonte: Skyscrapercity
Atualmente os 5 km de litoral que são interligados por um calçadão contínuo
conformam-se como um espaço urbano formado por uma sucessão de faixas
programáticas que se inicia com a calçada próxima a avenida; depois uma faixa dos
quiosques e equipamentos diversos; em seguida uma pista de Cooper; e por último a
praia. Nestes espaços praticam-se as mais variadas ações, caminhar, pedalar, jogar,
paquerar, comprar, passear, nadar, contemplar.
Os equipamentos fixos existentes na avenida são os quiosques, que diferente de orlas
de outras cidades, possuem uma infraestrutura de médio porte com mesas e cobertas.
Alguns criticam a dimensão de alguns quiosques, pois estes bloqueiam a vista para o
mar para quem caminha na avenida.Outro equipamento importante é o anfiteatro, com
capacidade para 1500 pessoas,o qual foi projetado abaixo do nível da rua, liberando a
vista para o mar. O calçadão ainda possui o chamado Mercado dos Peixes, que é
tradicionalmente utilizado para o comércio de frutos do mar. E por último, os
equipamentos esportivos que são de grande utilização pela população.
O calçadão da Beira-Mar foi objeto de vários projetos de urbanização,primeiro, datado
em 1979, foi projetado pelo arquiteto Otacílio Texeira Lima Neto, e constitui-se da
criação de pistas de skates e patins, quadras de esporte , criação de um anfiteatro,
além de reordenamento do passeio e da vegetação (NETO,1982). Ressaltando que
não havia preocupação com ordenamento do comércio informal na avenida. O último
projeto de reurbanização da orla foi no final de 2009, fruto de um concurso, sua
execução iniciou-se em 2013, ainda não foi finalizada. A proposta tem como um dos
objetivos "preservar e destacar a dinâmica das vistas da cidade em cada ponto da orla
e aproveitar os lugares de melhor ponto de vista para configurar recantos de
convergência e promenades extensivas da orla." (MURATORI, 2009) O projeto prevê
uma nova estrutura espacial para a feirinha da Beira-Mar e para o Mercado dos
Peixes, reformulações dos quiosques, novos espigões, estacionamentos, entre outros.
A dinâmica urbana observada no calçadão atualmente indica que, apesar dos projetos
e da vigilância dos órgãos públicos, equipamentos aparecem e somem dependendo
do período do ano e da intensidade do fluxo turístico, alguns volantes, outros fixos,
configurando uma ocupação predatória, a maioria irregular, principalmente as
empreendidas pelos menos favorecidos.
A observação do mapa desta área urbana evidência claramente duas realidades
delimitadas pela Avenida Beira-Mar: a zona da orla e a zona das edificações. No lado
sul, as edificações, a cidade “artificial”, composta por hotéis e edifícios de alto luxo, e
no lado norte, o calçadão, a cidade “natural”. O conceito de artificial e natural foi
introduzido por Christopher Alexander, em seu texto “A city is not a tree”, de 1965,
onde a cidade artificial é composta de planos e projetos, tendo como foco principal de
crítica o urbanismo moderno. Já a cidade natural se desenvolve espontaneamente,
não é projetada. O autor acredita que as cidades não devem ser compostas de
unidades distintas, como a árvore, e sim com os diferentes elementos do conjunto
interagindo reciprocamente, como uma retícula ou grelha (LAMAS, 2000). Alexander
(1965) reconhece que falta algum ingrediente essencial nas cidades artificiais, pois
estas tentativas modernas cidades são um fracasso do ponto de vista humanístico,
principalmente quando comparadas as cidades antigas.
Fazendo uma adaptação destes termos, o artificial e o natural, ao processo de
urbanização da orla marítima afirmamos como natural o processo de formação dos
equipamentos turísticos que gradualmente vão sendo incorporados ao calçadão por se
constituírem equipamentos que geram atração e vitalidade turística, entre eles a Feira
da Beira-Mar (foto 03). Esta teve sua formação espontânea, com o comércio
ambulante, que ao longo do tempo foi crescendo, se transformando em barracas que
foram se aglomerando e se concentrando no mesmo espaço. Já a cidade "artificial", foi
planejada e projetada, está inserida no contexto legislatório de uso e ocupação do solo
da cidade.
Foto 03- Vista noturna da feira. Fonte: Acervo Pessoal
Outro conceito mais recente que utilizamos para nos aprofundar no estudo sócioespacial da Feira da Beira-Mar, foi retirado do livro de Paola Berenstein Jacques,
“Estética da ginga”, onde a autora estuda o espaço-movimento das favelas, resultante
de três figuras conceituais: Fragmento, Labirinto e Rizoma. Ao analisar estas
intervenções e a frequente transformação da orla, reconhece-se a similaridade com o
processo de formação das favelas descrito pela autora. O Fragmento, que na favela é
o abrigo, pode ter seu conceito transposto para as barracas ou carrinhos, o Labirinto,
que são as ruas das favelas, pode ser comparado aos corredores das feiras e, o
Rizoma, que são o processo de implantação das favelas no urbano, pode ser, por
exemplo, considerado o processo de implantação e ampliação de pequenos quiosques
que se transformam em restaurantes sem autorização do poder público, ou a
implantação de quiosques promocionais, que se instalam e desinstalam em função da
temporada turística.
“O importante, todavia, é a transformação de um território,
territorialização, que torna possível a desterritorialização e
reterritorialização, e assim por diante; fazer Rizoma
precisamente aumentar seu território por meio de múltiplas
sucessivas desterritorializações.” (JACQUES, 2003, pg. 140).
a
a
é
e
Esta ocupação diversificada, com diversos conteúdos programáticos e com complexos
processos de territorialização de espaços públicos gera um espaço dinâmico. Dentro
deste cenário a Feira se constitui um forte atrativo gerando em seu entorno um
movimento intenso de ambulantes e comércio informal, é o Rizoma.
3. O processo de formação e o contexto da Feira da Beira-Mar
A Feira da Beira-Mar localiza-se no trecho da orla marítima da Avenida Beira-Mar
correspondendo à área frontal de dois hotéis bastante frequentados, o hotel Praiano e
o Hotel Oásis Atlântico (antigo Othon), praticamente no meio da extensão total da
avenida, sendo hoje uma atração que consta em todos os roteiros turísticos da cidade
(mapa 02). O crescente fluxo de turistas, a demanda por produtos artesanais e a
ausência de pontos comerciais com expediente noturno, incentivaram o aparecimento
deste comércio informal que tem crescido progressivamente. A feira, como ocorre
tradicionalmente7, é montada e desmontada diariamente.
Mapa 02- Localização da Feirinha de Artesanato na Orla Turística da Beira-Mar.
Fonte: Elaborado pela autora.
No final dos anos 70 era composta por 50 feirantes, a maioria artesãos. Na década de
80, durante o governo da prefeita Maria Luíza Fontenele (1986/89), houve a primeira
territorialização da Feira, com o intuito de diminuir os conflitos entre os pedestres e os
ambulantes que ocupavam o chão do calçadão com suas mercadorias. À época foi
feita uma seleção para a seção de espaços priorizando os ambulantes que produziam
seu próprio artesanato, com a intenção de valorização da atividade. Foram
demarcados espaços fora do calçadão e autorizada a colocação das barracas. Após
esta primeira iniciativa a feira tem crescido e, infelizmente, se descaracterizado. Houve
reformas e ampliações em 2000 e 2006 (mapa 03).
7
A feira (de feria, do latim, que significa festa de um santo) era sobretudo o
encontro de mercadores, frequentemente vindos de muito longe, que durava muitas semanas.
O século XII viu surgir ciclos de feiras regionais e inter-regionais que formavam uma espécie de
mercado contínuo, exceto no período de mau tempo. As mais importantes foram as feiras de
Champagne, nas cidade de Lagny, Provins, Bar-sur-Aube e Troyes [...] as feiras eram
montadas com uma série de tendas e barracas para expor as mercadorias. (VARGAS, 2001,
pg.146)
Apesar do sucesso turístico o espaço ocupado pela feira é questionado por parte da
população, por seu caráter privado se apropriando indevidamente de um espaço
público, fator que exige uma solução flexível e de uso compartilhado. Os debates em
torno do tema retornam à mídia sempre que se fala em novas intervenções na orla,
como atualmente com o projeto de reordenamento que já está com suas obras
iniciadas.
Mapa 03- Área ocupada pela Feira de Artesanato. Fonte: Elaborado pela autora.
Segundo GONÇALVES (2009), no período de sua pesquisa, existiam cadastrados
junto à Prefeitura Municipal de Fortaleza 600 feirantes e 140 ambulantes, além dos
permissionários, estimavam-se em torno de 550 vendedores ambulantes não
cadastrados. Das mercadorias comercializadas atualmente nas barracas somente
40% é artesanato as demais vendem CDs, moda praia, confecção, comidas, etc. (foto
03 e 04)
Foto 04- Barraca com produtos artesanais
originais. Fonte: Acervo Pessoal
Foto 05: Barraca com produtos variados.
Fonte: Acervo pessoal
A feira funciona somente no período noturno em decorrência dos seguintes fatores:
 Concorrência com os comércios de artesanato fixos da cidade como o Mercado
Central, a EMCETUR (antiga Cadeia Pública transformada em centro de
artesanato) e a CEART;
 Fluxo dos turistas aumentado por já terem retornado das praias, do trabalho ou das
convenções;
 Altas temperaturas durante o dia e falta de cobertura vegetal inviabilizam o conforto
térmico no local, tornando o espaço adequado somente aos banhistas e esportistas;
 Caráter de renda extra para os artesãos que produzem durante o dia e
comercializam seu produto à noite.
As barracas são montadas diariamente às 16:00hs e desmontadas às 23:00 hs. O
conjunto formado por barraca, carrinho e bateria ocupa uma área de dois metros por
dois metros (Foto 06 e 07). A barraca é composta por peças em ferro encaixadas, e
cobertas com lona plástica e o carrinho serve para carregar os produtos a serem
expostos e funcionam como balcão. A bateria alimenta a iluminação noturna dos
produtos. A logística montada para atender os feirantes é estruturada da seguinte
maneira: aluguel de um terreno próximo pela associação dos permissionários,
contratação dos carregadores e montadores, contratação de um fornecedor e
mantenedor das baterias.
O principal problema apontado pelos feirantes é a concorrência com a informalidade
do comércio ambulante, ou seja, eles pagam uma taxa para prefeitura para serem
permissionários, pagam os serviços de guarda de material, deslocamento e
infraestrutura e os ambulantes “ilegais” não têm nenhuma despesa. Como
constatamos é um círculo vicioso de difícil solução: os comerciantes estabelecidos
protestam contra os feirantes da Beira-Mar e o uso do espaço público considerado
“gratuito” e, os feirantes protestam contra os ambulantes.
Foto 06: Montagem das barracas.
Foto 07: Fornecedor de baterias.
Fonte: Acervo Pessoal
Fonte: Gonçalves (2009)
Dentro deste contexto destacamos o problema social, pois apesar de existir há cerca
de 40 anos ainda persiste o baixo nível de qualificação dos feirantes e a pouca
capacidade de endividamento, que impactam na qualidade dos serviços e produtos
ofertados, fatores que deveriam ser objeto de ação pública para mudar o perfil que
está se desenhando, ou seja, a descaracterização da feira.
"Por fim, temos ciência de que as transformações no mundo do
trabalho estabeleceram novas relações com o espaço urbano.
Podemos dizer que este “pedaço” da Beira-Mar se caracteriza pela
resistência, onde o território dos feirantes reflete uma totalidade
maior que envolve o período de reestruturação das economias, as
mudanças e alterações nas relações de trabalho. O fenômeno da
informalidade revela contradições, justapondo-se no espaço urbano o
circuito moderno e o circuito inferior, ricos e pobres, estes últimos,
quase sempre, resistindo à normatização urbana. Este é o caso da
atividade do comércio ambulante de artesanato na Beira-Mar em
Fortaleza”. GONÇALVES (2009, p.169)
A progressiva expansão da feira da Beira-Mar, e, a apropriação de um espaço público
extremamente valorizado impõem a manutenção do caráter temporário e a mobilidade
das barracas. Isto impede a alocação de infraestrutura apropriada compatível com a
importância da feira como atrativo turístico, que possui problemas estruturais de falta
de higiene, falta de organização, conflito com os pedestres, e pouca iluminação
noturna que impacta na segurança dos turistas e das barracas. Este caráter móvel e o
processo de criação da feira definem o perfil híbrido do espaço estudado. (fotos 08e
09)
Foto 08: Feira sendo montada. Observar os banheiros químicos e os hotéis ao
fundo.Fonte: Acervo Pessoal
Foto 09: Feira à noite. Observar a pouca iluminação. Fonte:Acervo pessoal
Considerações Finais
O calçadão da Beira Mar de Fortaleza, tendo como exemplo mais característico o
espaço da Feira, é o retrato das limitações do controle do planejamento urbano, pois é
a territorialização do comércio informal na área mais valorizada da orla marítima de
Fortaleza que, apesar dos diversos projetos urbanísticos visando sua organização,
adquiriu vida própria rompendo as leis urbanas e caracterizando um espaço dinâmico
e atraente.
Reconhecemos na orla marítima da Avenida Beira-Mar a ocorrência de processos
urbanos distintos e complementares de extrema importância para a formação de um
destino turístico. A Avenida constitui o eixo limitador de duas realidades: a cidade
planejada, a qual se desenvolve dentro dos parâmetros legais, como os edifícios
residenciais e hotéis ocupados pela classe de maior poder aquisitivo; e a cidade
“natural”, composta pelo calçadão da Beira-Mar, e em especial pela Feira, que surgiu
de maneira espontânea para abrigar uma população de artesãos migrantes do sertão,
totalmente desvinculada do planejamento urbano tradicional. Estas desigualdades
compõem uma área dinâmica, atrativa tanto para o visitante quanto para população
local. A cidade artificial com seus edifícios de alto luxo e hotéis, e, a cidade natural,
composta pelo calçadão que adquiriu vida própria e rompe com as leis urbanas
impostas de cima para baixo. Estas “cidades” se complementam gerando uma área
viva 24 horas por dia. Pode-se afirmar que a ocorrência de usos diversos com a
intensidade existente nesta área não ocorre em outras cidades do nordeste. Dentre os
inúmeros atrativos existentes no calçadão a feirinha de artesanato é o foco das
atividades, com maior intensidade de uso, embora em um tempo limitado de sete
horas diárias. A reconhecida importância turística deste equipamento e as questões de
apropriação do espaço público demandam soluções de uso compartilhado com os
demais usos diurnos. Esta cohabitação do espaço define um processo de hibridação
na orla turística de Fortaleza.
Os processos da cidade “natural” caracterizam o que (JACQUES, 2003) denomina de
espaço-movimento, que impõe a noção de ação, ou melhor, de participação. Os atores
deste processo são partícipes na criação do espaço da orla da Beira-Mar. Segundo
(JACQUES, 2003, pg. 150) “A intervenção nestes espaços deverá preservar o
movimento como patrimônio a ser conservado, se se deseja preservar a sua
identidade própria”.
Diante do desafio da insersão da cidade dentro do mercado capitalista do“citymarketing” está sendo empreendido um projeto de reordenamento da orla marítima de
Fortaleza, que ora inicia suas obras. Acredita-se que a compreensão dos processos
históricos de formação do existente e a participação da população para redesenhar a
“cidade natural” é a garantia de um projeto vitorioso, onde a construção coletiva é de
vital importância para a preservação da identidade construída e a inserção do novo.
Referencial Teórico:
ALEXANDER,Christopher. The city is not a tree. Architectural Forum, Vol 122, No 1,
April 1965, pp 58-62 (Part I), Vol 122, No 2, May 1965, pp 58-62 (Part II).
GONÇALVES, Luís Antonio Araújo. Traçando mobilidades e tecendo
territorialidades: o comércio de artesanato na Beira-Mar de Fortaleza/CE.
Dissertação (Mestrado Acadêmico em Geografia) Universidade Estadual do Ceará.
Ceará, 2009.
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da Ginga: a arquitetura das favelas através
da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
LAMAS, José R. G. Morfologia Urbana e Desenho da Cidade, Fundação
CalousteGulbenkian, 2ª Ed., Lisboa, 2000.
NETO, Otacílio Texeira Lima. Cadernos Brasileiros de Arquitetura: Panorama da
Arquitetura Cearense.1ed, Volume 1. Projeto Editores Associados Ltda, 1982, pp
86 a 89.
NETO, Lira. ALBUQUERQUE, Claudia. História urbana e imobiliária de Fortaleza:
uma biografia sintética. 1ed, São Paulo : Editora Braba, 2014.
MURATORI, Ricardo. Marco Conceitual Memorial do projeto urbanístico. Ceará,
2009
PAIVA, Ricardo Alexandre. A Metrópole Híbrida: O papel do turismo no processo
de urbanização da Região Metropolitana de Fortaleza. Tese de DoutoradoFaculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo,
2011
VARGAS, HelianaComin. Espaço Terciário: o lugar, a arquitetura e a imagem do
comércio. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2001.

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