O direito à educação e a exclusão social

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O direito à educação e a exclusão social
O direito à educação e a exclusão social
Mônica Sifuentes
Juíza federal em Brasília
Tratar do direito à educação, sobretudo em um país como o Brasil, de grandes desigualdades
sociais e econômicas, é o mesmo que cuidar da exclusão social. No entanto, essa questão não se
relaciona apenas com a riqueza ou pobreza. Ela pode assumir formas mais sutis, tais como a
discriminação contra as pessoas de outra raça, cor ou nacionalidade, os indígenas, as crianças em
idade escolar fora das escolas, os portadores de deficiência e os adultos analfabetos.
O direito ao ensino fundamental implica também reduzir as acentuadas desigualdades no
acesso, como o privilégio conferido aos meios urbanos em detrimento dos meios rurais, a tímida
atuação do governo na concessão de auxílio aos carentes sob a forma de bolsas de estudo, livros,
material escolar, cantinas para a merenda escolar e condições de transporte, o que é essencial nos
locais afastados dos centros urbanos.
Esse problema, no entanto, tem raízes históricas e profundas, não só no Brasil como na
maior parte dos países do continente americano. Vale lembrar, a propósito, que a questão das
dificuldades de acesso à escola, bem como a importância da educação para o desenvolvimento
pessoal e social surgiram há mais de um século no direito norte-americano, muito a propósito e
umbilicalmente ligadas ao próprio problema da discriminação racial.
Trata-se da célebre polêmica a respeito do acesso dos negros aos mesmos lugares
frequentados pelos brancos e que resultou na famosa teoria de ‘‘separados mas iguais’’,
consubstanciada em não menos famosa decisão da Suprema Corte, de 1896, no caso Plessy versus
Ferguson. O acórdao que adotou essa doutrina, como se sabe, permaneceria como leading case por
décadas. Ademais, acabaria por ter implicações no direito de acesso dos negros às escolas públicas
frequentadas pelos brancos, que vinha sendo constantemente negado com apoio na doutrina
esposada pelo acórdão, estendendo assim ao campo da educação a discriminação racial.
Somente com o caso Brown vs. Board of Education of Topeka, essa situação veio a ser
alterada. Por meio desse também conhecido processo, algumas crianças negras, principalmente do
sul dos Estados Unidos da América, pediram o amparo para obter acesso em escolas públicas de sua
comunidade, frequentadas por crianças brancas, ao argumento de que o Estado não deveria manter
suas escolas com base na política de segregação. O pedido delas já havia sido recusado, não
somente nas escolas, como também nas Cortes dos Distritos, sob a invocação da doutrina
‘‘separados mas iguais’’. Vale lembrar que nessa época a população negra ainda era na sua maioria
analfabeta, e não havia uma política de criação de escolas para elas.
O acórdão proferido no caso Brown vs. Board of Education of Topeka consagrou um
entendimento, considerado avançado e humanitário, onde se reconheceu a essencialidade da
educação, como função dos governos, e sua importância para a sociedade democrática. Concluíram
os juízes da Suprema Corte, ainda, que, no campo da educação pública, a antiga doutrina adotada
http://www.redebrasil.inf.br/0artigos/educacao.htm
O direito à educação e a exclusão social
Monique Sifuentes
em Plessy vs. Ferguson não tinha mais lugar — a separação era uma negativa da igual proteção das
leis.
A orientação da Suprema Corte mudou completamente a partir desse caso, bem como o
próprio sentido da política social e educacional americana. O caso norte-americano leva-nos a fazer
um paralelo com a situação atual de dificuldade de acesso ao ensino com que se deparam não só os
deficientes físicos e mentais, mas também os indígenas, as crianças que trabalham, os adultos
analfabetos e até mesmo, em alguns casos, os indivíduos de outra raça ou religião. Não seria
pertinente questionar até que ponto a carência de proteção governamental ao direito de acesso
dessas pessoas ao ensino não estaria se revelando em uma forma velada de exclusão — em uma
versão mais amenizada, mas nem por isso menos discriminatória —, como a que ocorria com as
crianças negras americanas?
Com a Constituição brasileira de 1988, novo e maior relevo foi dado à educação,
especialmente ao ensino fundamental. Pode-se afirmar que nenhum outro direito, de todos os nela
previstos, recebeu tratamento tão cuidadoso como o referente à educação, podendo ser considerado
o primeiro e o mais importante dos direitos sociais. Ela incorporou bem a visão democrática do direito
à educação (art. 208, III, VI), estabelecendo que o dever do Estado será efetivado mediante a
garantia do atendimento especializado aos portadores de deficiência preferencialmente na rede
regular de ensino, e mesmo na oferta de ensino noturno regular, o que é, sem dúvida, dirigido à
classe trabalhadora.
Disciplinado e interpretado em consonância com os fundamentos do Estado brasileiro, o
direito à educação passou a ser mensurado como um valor de cidadania e de dignidade da pessoa
humana, itens essenciais ao Estado Democrático de Direito. É o direito à educação, além disso,
condição para a realização dos ideais da República de construir uma sociedade livre, justa e solidária,
nacionalmente desenvolvida, com erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades
sociais e regionais, livre de quaisquer formas de discriminação (CF, art. 3º).
No entanto, a inscrição pura e simples desse importante direito na Constituição brasileira não
resolveu, por si só, como não se esperaria que o fizesse, o problema da exclusão ao direito de
ensino. Não obstante as iniciativas governamentais, amplamente divulgadas pela mídia, como o
inovador projeto da bolsa-escola, qual a proteção jurídica a esse direito fundamental do homem,
quando elas são inexistentes? Resta ver, portanto, se há mecanismos jurídicos adequados a essa
finalidade, ou se se trata de mais uma previsão normativa fadada a continuar ilustrando os
compêndios e manuais de Direito Constitucional.
Se é certo que as escolas têm servido para a reprodução da sociedade, tal como ela é, com
exclusão e separação entre ricos e pobres, distinguindo entre a normalidade e a deficiência, já é
tempo de mudança de posturas, nesse limiar do novo milênio, de modo que a escola, ao fim e ao
cabo, deve também absorver as diferenças.
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