Infecção Genital por Chlamydia trachomatis na Mulher
Transcrição
RFM - Revista Fluminense de Medicina FJM - Fluminense Journal of Medicine ARTIGO ARTICLE Infecção Genital por Chlamydia trachomatis na Mulher: Epidemiologia, Diagnóstico e Consequências Chlamydia Genital Infection in Woman: Epidemiology, Diagnosis and Consequences trachomatis Ana Carolina R Andrade1, Rosiane AS Teles2, Angélica Maria HP Silva1, Bruno Hállan M Dias1, Francisco Eugênio de Vasconcelos Filho1, Rose Luce G Amaral3, Iara M Linhares4, José Eleutério Júnior5 Acadêmico de Medicina da Universidade Federal do Ceará – UFC. 2 Mestranda pelo Departamento de Patologia da Universidade Federal do Ceará – UFC. 3 Médica Doutora contratada do Hospital da Mulher Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti – CAISM/Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. 4 Livre-docente da Universidade de São Paulo – USP. 5 Professor adjunto da Universidade Federal do Ceará – UFC. 1 RESUMO A infecção por Chlamydia trachomatis (CT) é a doença sexualmente transmissível (DST) mais comum em todo o mundo e o número de casos vem aumentando nos últimos anos. Os métodos laboratoriais para identificação de CT evoluíram bastante ao longo dos anos. A cultura não é mais considerada padrão-ouro, dando espaço aos testes de amplificação de ácidos nucleicos (NAATs): polymerase chain reaction (PCR) e ligase chain reaction (LCR), os quais apresentam alta acurácia e facilidade na obtenção das amostras, o que é bastante útil na prática clínica. A infecção clamidiana pode se resolver de forma espontânea ou progredir para complicações. Estas podem comprometer a reprodução feminina, predispondo a infertilidade e a gravidez ectópica. Além disso, a grávida infectada pode ter um parto prematuro ou um aborto espontâneo. Palavras-chave: Chlamydia trachomatis, infecções do trato reprodutivo, técnica de diagnóstico molecular, complicações ABSTRACT Chlamydia trachomatis (CT) genital infection is the most common sexually transmitted disease (STD) in the world and the number of cases has been increasing in recent years. Laboratory methods for CT identification evolved considerably over the years. The culture is no longer considered the gold standard, now it is substituted by to nucleic acid amplification tests (NAATs): polymerase chain reaction (PCR) and ligase chain reaction (LCR), which have high accuracy and are easy to obtain the samples, so quite useful in clinical practice. Chlamydia infection can resolve spontaneously or progress, having complications. These can impair female reproduction, predisposing to infertility and ectopic pregnancy. In addition, infected pregnant women may have a premature delivery or miscarriage. Keywords: Chlamydia trachomatis, reproductive tract infections, molecular diagnostic techniques, complications INTRODUÇÃO A Chlamydia trachomatis (CT) é uma bactéria intracelular obrigatória que infecta as células colunares do trato genital inferior feminino, com capacidade de ascensão para o trato genital superior, podendo trazer importantes sequelas para o futuro reprodutivo das mulheres1. É a infecção de transmissão sexual mais comum em todo o mundo. Nos Estados Unidos (EUA), segundo os Centers for Disease Control and Prevention (CDC), a infecção por Chlamydia trachomatis está tão amplamente disseminada que existem mais casos novos desta doença que qualquer outra doença sexualmente transmissível, como sífilis, gonorreia, HPV, herpes e AIDS1, e o número de casos aumenta a cada ano. Em 2000, foram notificados 702.923 casos, onde 74% ocorreram em mulheres de 15 a 24 anos1. Em 2010, foram 1.307.893 casos notificados, continuando com maior preva- Endereço para correspondência: ANA CAROLINA RODRIGUES DE ANDRADE Rua: Solon Pinheiro nº 1143 apto 104 bloco B Bairro: José Bonifácio - CEP: 60050-040 E-mail: [email protected] Recebido em: 17 de setembro de 2013 Aprovado em: 28 de agosto de 2014 DOI: 10.5533/RFM-FJM-2238-9423-201478-79204 lência nas adolescentes e adultas jovens2. Além disso, a avaliação de anticorpos específicos para Chlamydia trachomatis evidenciou que cerca de 50% das mulheres norte-americanas aos 30 anos já foram expostas a essa bactéria3. No Canadá, segundo dados da Public Health Agency4 em 2010, houve um aumento de 164 para 258,5 casos em cada 100.000 habitantes, o que equivale a um aumento de 57% na prevalência da CT em ambos os sexos. Neste mesmo país, um estudo mostrou que os custos associados à infecção clamidiana neste período foram de 51,4 milhões de dólares por ano3. Na América Latina, onde os países não possuem um programa sistemático de rastreio para a CT em suas políticas de saúde, os dados são poucos e esporádicos, porém alarmantes. Um estudo realizado na Argentina entre 2007 e 2009 mostrou uma prevalência de 26,4% de mulheres infectadas por CT5. No Peru, a prevalência em adolescentes e em mulheres jovens foi de 7,6%6 e no Chile, a prevalência, em adolescentes, foi de 6,9%7. No Brasil, a situação é semelhante. Os estudos de prevalência (Tabela 1) mostram uma variação entre os estados e regiões brasileiras, embora sempre com altos valores. DIAGNÓSTICO Os exames tradicionais para diagnóstico, como citologia, imunofluorescência direta, imunofluorescência indireta, cultura, entre outros, mostraram-se pouco eficientes por apresenRFM - Rev Flu Med 2014;78-79(2):15-17 - ISSN: 2238-9423 16 ANDRADE et al. Tabela 1 – Prevalência da infecção por Chlamydia trachomatis no Brasil Região Vitória – ES 8 Nordeste9 São Paulo 10 Ceará11 Prevalência Método Diagnóstico Utilizado 8,4% LCR em urina 4,5% LCR em amostra de lavado vaginal 23,9% PCR em amostras endocervicais 6,08% Captura híbrida em amostras endocervicais LCR = Ligase chain reaction; PCR = Polymerase chain reaction. tarem pelo menos um fator (baixa sensibilidade, dificuldade de execução, dificuldade de coleta, baixo poder de diagnóstico apurado) que os inviabilizam na rotina diária. Felizmente novos avanços estão sendo incorporados no combate às DST e testes de biologia molecular possibilitam a viabilidade no diagnóstico12. O desenvolvimento de métodos de amplificação de ácidos nucleicos facilitou bastante o diagnóstico desta infecção genital. São métodos não invasivos, com alta sensibilidade e especificidade e que, por estes motivos, podem ser utilizados como rastreio em pacientes assintomáticas13. Além disso, podem usar amostras coletadas de maneira não invasiva, inclusive urina ou material vaginal autocoletados, facilitando o exame fora dos ambientes clínicos convencionais14. Os testes de amplificação de ácidos nucleicos (NAATs) incluem os que utilizam sondas de RNA (captura híbrida com amplificação de sinal) e os de amplificação de DNA, que são a PCR (polymerase chain reaction), a LCR (ligase chain reaction) e a TMA (transcription-mediated amplification assay). Vários estudos avaliaram a eficácia destes métodos biomoleculares no diagnóstico da Chlamydia trachomatis. A sensibilidade média foi de 97,2% para a CT e 92,2%, para gonococo com especificidade superior a 99% quando comparada à cultura (antigo padrão-ouro). O método de amplificação de DNA mais usado é a PCR15,16. Sua sensibilidade é 20% maior que a da cultura (em torno de 90%), com especificidade entre 99 e 100%17. Apresenta a vantagem de poder ser realizada com swabs endocervical e uretral ou em amostras de urina, possibilitando que a coleta da amostra seja feita pela própria paciente18. Vários estudos avaliam a eficácia do método de captura de híbridos no diagnóstico da Chlamydia trachomatis. Segundo Darwin et al.19, a sensibilidade foi 97,2% com especificidade maior que 99% quando comparada à cultura. COMPLICAÇÕES Quando não diagnosticada e não tratada, a infecção clamidiana pode evoluir para resolução espontânea ou persistência da infecção, ou ainda progredir para complicações12,20, além de poder causar graves repercussões sobre o aparelho genital feminino e comprometer o seu futuro reprodutivo. A infecção cervical ascendente causa a doença inflamatória pélvica (DIP), que pode levar a abscesso ovariano, infertilidade, dor pélvica crônica e gravidez ectópica14. RFM - Rev Flu Med 2014;78-79(2):15-17 Na gestante, a CT está associada a diversos resultados adversos, entre eles endometrite pós-parto, abortamento espontâneo, trabalho de parto prematuro21. Baud et al.22 realizaram uma revisão sistemática em 2008, onde verificaram uma possível associação entre a Chlamydia trachomatis e outras bactérias do mesmo gênero com aborto de repetição, trabalho de parto prematuro, rotura prematura de membranas e baixo peso ao nascer, embora ainda sejam necessários mais estudos para confirmação. Mais recentemente, em um estudo de metanálise, Silva et al.23 demonstraram associação evidente entre infecção por CT e complicações no período gestacional, tais como trabalho de parto prematuro (RR = 1,35), baixo peso ao nascer (RR = 1,52) e mortalidade perinatal (RR = 1,84). Infecção prévia ou atual por CT ainda merece ser estudada para mais adequadas conclusões, uma vez que os efeitos da infecção por este agente se revelam mais tardiamente via sistema imunológico24. Sabe-se que a imunidade do hospedeiro está diretamente ligada a sua suscetibilidade às infecções genitais. O mesmo microrganismo pode causar consequências diferentes entre os indivíduos25. Poucos países realizam rotineiramente o rastreamento (screening) para infecção por Chlamydia trachomatis. Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e Escócia adotam programas de rastreamento, cujos resultados são bastante satisfatórios, com redução da taxa de doença inflamatória pélvica22,26 e, consequentemente, enorme economia de recursos para a saúde pública23. É evidente que a infecção genital por Chlamydia trachomatis em mulheres é frequente e com consequências graves quando não diagnosticada e tratada. O rastreio desta infecção deve fazer parte de um programa de saúde pública, sob pena de condenar milhares de mulheres aos seus efeitos sobre o sistema reprodutivo e gestações. Conflito de interesses: Não há conflito de interesses a declarar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Weinstock H, Berman S, Cates W. Sexually transmitted diseases among american youth: incidence and prevalence estimates, 2000. Perspectives on Sexual and Reproductive Health. 2004;36(1):6-10. 2. Centers for Disease Control and Prevention. Sexually transmitted disease surveillance, 2010. Atlanta: U.S Department of Health and Human Services: 2011. Disponivel em: http://www.cdc.gov/std/stats10/surv2010.pdf Acessado em: 14 jun. 2012. 3. Tuite AR, Jayaraman GC, Allen VG, Fisman DN. Estimation of the burden of disease and costs of genital Chlamydia trachomatis infection in Canada. Sexually Transmitted Diseases. 2012;39(4):260-267. 4. Public Health Agency of Canada. Reported cases and rates of Chlamydia by age group and sex, 1991 to 2009. Disponível em: http://www.phac-aspc.gc.ca/std-mts/sti-its_ tab/chlamydia-eng.php. Acessado em: 14 jun. 2012. 5. Deluca DG, Basiletti J, Schlover E, Vasquez ND, Alonso JM, Marin HM et al. Chlamydia trachomatis as a probable cofactor in human papilloma virus infection in aboriginal women from northeastern Argentina. Brazilian Journal of Infectious Diseases. 2011;15(6):567-572. Infecção Genital por Chlamydia trachomatis na Mulher: Epidemiologia, Diagnóstico e Consequências 6. Paul KJ, Garcia PJ, Giesel AE, Holmes KK, Hitti JE. Generation C: prevalence of and risk factors for Chlamydia trachomatis among adolescents and Young women in Lima, Peru. Journal of Women’s Health. 2009;18(9):1419-1424. 7. Huneeus A, Pumarino MG, Schilling A, Robledo P, Bofil M. Prevalencia de Chlamydia trachomatis y Neisseria gonorrhoeae en adolescents chilenas. Revista Médica do Chile. 2009;137(12):1569-1574. 8. Miranda AE, Szwarcwald CL, Peres RL, Page-Shafer K. Prevalence and Risk Behaviors for Chlamydial Infection in a Population-Based Study of Female Adolescents in Brazil. Sexually Transmitted Diseases 2004;31(9):542-546. 9. Oliveira FA, Pfleger V, Lang K, Heukelbach J, Miralles I, Fraga F et al. Sexually transmitted infections, bacterial vaginosis, and candidiasis in women of reproductive age in rural Northeast Brazil: a population-based study. Mem Inst Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro 2007;102(6):751-756. 10. Marconi C, Donders GGG, Martini LF, Ramos BRA, Duarte MTC, Parada CMG et al. Chlamydial infection in a high risk population: association with vaginal flora patterns. Arch of Gynecol Obstet. 2012;285(4):1013-1018. 11. Eleutério RMN, Eleutério Junior J, Giraldo PC, Muniz AMV. Cervicite por Chlamydia trachomatis em mulheres sexualmente ativas atendidas em um serviço privado de ginecologia na cidade de Fortaleza. Revista Brasileira de Análises Clínicas. 2007;39(4):287-290. 12. Linhares IM, Wotijane MDCH, Eleutério Júnior J, Giraldo PC. Resposta imune às infecções genitais. Revista Brasileira de Patologia do Trato Genital Inferior. 2012;2(1):12-16. 13. Centers for Disease Control and Prevention. Sexually transmitted diseases treatment guidelines 2010. MMWR. 2010;59(RR-12):44-49. 14. Geisler WM, Stamm WE. Infecções genitais por Clamídia. In: Klausner JD, Hook III EW. Doenças Sexualmente Transmissíveis - Current Diagnóstico e Tratamento. Rio de Janeiro: Revinter; 2011. p. 75-83. 15. Michelon J, Boena A, Filho EVC, Steibel G, Berg C, Torrens MCT. Diagnóstico da infecção urogenital por Chlamydia trachomatis. Scienta Medica. 2005;2(15):97-102. 16. Monis PT, Andrews RH, Saint CP. Molecular biology techniques in parasite ecology. International Journal for Parasitology. 2002;32(5):551-562. 17 17. Black CM. Current methods of laboratory diagnosis of Chlamydia trachomatis infections. Clin Microbiol. 1997;10(1):160-184. 18. Gaydos CA, Quinn TC. Urine nucleic acid amplification tests for the diagnosis of sexually transmitted infections in clinical practice. Current Opinion Infection Disease. 2005;18(1):55-66. 19. Darwin LH, Cullen AP, Arthur PM, Long CD, Smith KR, Girdner JL et al. Comparison of Digene Hybrid Capture 2 and conventional culture for detection of Chlamydia trachomatis and Neisseria gonorrhoeae in cervical specimens. Journal of Clinical Microbiology. 2002;40(2):641-644. 20. Geisler WM, Wang C, Morrison SG, Black CM, Bandea CI, Hook EW. The natural history of untreated Chlamydia trachomatis infection in the interval between screening and returninf for treatment. Sexually transmitted Diseases. 2008;35(2):119-123. 21. Aziz N, Cohen CR. Doenças sexualmente transmissíveis na gravidez. In: Doenças Sexualmente Transmissíveis - Current Diagnóstico e Tratamento. Rio de Janeiro: Revinter; 2011. p. 146-159. 22. Baud D, Regan L, Greub G. Emerging role of Chlamydia and Chlamydia-like organisms in adverse pregnancy outcomes. Current Opinion Infectious Disease. 2008;21(1):70-76. 23. Silva MJPMA, Florêncio GLD, Gabiatti JRE, Amaral RL, Eleutério Júnior J, Gonçalves AKS. Perinatal morbidity and mortality associated with Chlamydial infection: a metaanalysis study. Brazilian Journal of Infectious Diseases. 2011;15(6):533-539. 24. Eleutério Junior J, Giraldo PC, Gonçalves AKS, Amaral RL. Qual deve ser o rastreamento de doenças infecciosas em casos de perda gestacional recorrente? Femina. 2010;38(10):539-542. 25. Witkin SS, Linhares I, Giraldo P, Jeremias J, Ledger WJ. Individual immunity and susceptibility to female genital tract infection. American Journal of Obstetrics and Gynecology. 2000;183(1):252-256. 26. Scholes D, Satterwhite CL, Yu O, Fine D, Weinstock H, Berman S. Long-term trends in Chlamydia trachomatis infections and related outcomes in a US managed care population. Sexually Transmitted Diseases. 2012;39(2):81-88. RFM - Rev Flu Med 2014;78-79(2):15-17
Documentos relacionados
GLEDSON BARBOSA DE CARVALHO INFECÇÃO
No Brasil, como tais afecções não se incluem entre as doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) de notificação compulsória, estima-se que ocorram cerca de 1.967.200 novos casos de clamídia a cada a...
Leia maisChlamydia trachomatis E SUA ABORDAGEM NO
greatest cause of morbidity among young women, behind only causes related to pregnancy and puerperium. Chlamydia trachomatis represents a serious public health issue in sexually active young women,...
Leia mais1 universidade federal do espírito santo centro de ciências da saúde
infection. CT associated factors were: being younger (15–19 years old) OR= 1.6 (95% CI: 1.15–2.17); first sexual intercourse before 15 years of age OR= 1.4 (95% CI: 1.04–6.24); having more than 1 s...
Leia maisAvaliação do Perfil Socioeconômico e dos Fatores - PPGBAIP
Bacteria of the genus Chlamydia are associated with several diseases, such as blindness, genital infections, and pneumonia as well as bacteria of the genus Treponema, specifically Treponema pallidu...
Leia maisuniversidade federal do pará instituto de ciências - BAIP
Ao PPG-BAIP pela sua brilhante coordenação e por tudo que me ofereceu em termos de conhecimento e do qual tenho orgulho de ser estudante. À CAPES pelo apoio financeiro e a todos os indivíduos porta...
Leia mais