Experiência da rave: entre o espetáculo e o ritual

Transcrição

Experiência da rave: entre o espetáculo e o ritual
Encontro Internacional de Antropologia e Performance -­ EIAP Realização NAPEDRA
São Paulo. 25 de setembro a 01 de outubro de 2011
Texto-­Fala Experiência da rave: entre o espetáculo e o ritual
Carolina de Camargo Abreu
A forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo
que seu modo de existência.
(Walter Benjamin, 1994, p. 169)
O vídeoclip da música Star Guitar do Chemical Brothers é considerado uma “obra de arte”
pela competência no uso de técnicas audiovisuais. Música computacional precisa e imagética
digital perfeita concebem um deslocamento tântrico. Suas estéticas propositalmente coincidem
para atingir o tátil e o emocional do espectador capturado como passageiro de um trem eletrônico.
O vídeo foi dirigido por Michel Gondry, considerado um mestre da edição digital
contemporânea. Chemical Brothers é nome da dupla inglesa de produtores de música eletrônica,
Tom Rowlands e Ed Simons, reconhecida mundialmente pela competência na criação de faixas
de dance music.
Calculando a perspectiva visual da janela de um trem, o vídeo viaja por cenários ingleses:
postes, casas, montanhas, rochas, pessoas, plataformas passam ou mantém-se no quadro no tempo
exato de um respectivo elemento da música. A grande brincadeira é conferir a coincidência dos
elementos visuais e musicais. A poética da arte disso é sua eficácia sensual: seu ritmo apropriado,
sua provocação em deslocar o corpo e conduzir a viagem sensorial.
O vídeo de Star Guitar foi concebido como uma partitura visual da música, e a música
valeu-se de técnicas de composição cinematográfica, essencialmente a montagem. Tecnologias
musicais e visuais ganham potência fundindo técnicas. Tecnologias próprias do século XX, o
cinema e a música eletrônica desenvolveram-se de forma imbricada com alvo preciso sobre a
qualidade tátil fundante e desperta desse século: a cinestesia.
Walter Benjamin sugeriu já na década de 20 do século passado, como a modernização,
marcada por fluxos incontroláveis de movimentos, signos e imagens, disponibilizando
velocidades antes desconhecidas, moldaria um novo modo de experiência. Experiências
perceptivas inéditas suscitadas pelos elevadores, as montanhas russas ou o cinema provocaram
novas concepções dos sentidos. Anotar como “a forma de percepção das coletividades humanas
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se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência” (Benjamin, 1994, p. 169) me parece
uma tarefa própria da antropologia.
Assumindo essa tarefa, esse texto, um dos capítulos da tese “Experiência trance da rave
entra o espetáculo e o ritual”, se debruça sobre a peculiaridade da tecnologia e da estética da
música eletrônica. O exercício antropológico é disparado pela proposta do etnomusicólogo John
Blacking (1995), que nos chama a considerar os contextos e situações sociais de produção,
audição e reprodução pelos quais as pessoas atribuem sentido musical para sons diversos, ou
ainda, transformam ruído em música.
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A intensidade com qual a música pode mover emocionalmente as pessoas há tempos é
conhecida, porém a direção desse movimento depende das características sensíveis musicais e
dos contextos de significação. No presente estudo estamos tratando de uma musicalidade
peculiar, a música eletrônica, exatamente sobre uma vertente bastante específica, muito popular
mundialmente: a chamada dance music, ou seja, música para dançar ou música de pista.
O universo da dance music abarca diversos gêneros: break beat, trance, techno,
drum’n’bass, house, dub, etc. que se subdividem em outros tantos estilos específicos (hard
techno, hard trance, full on, goa trance, etc.); estilos incessantemente inventados e nomeados,
que compartilham o propósito explícito de agitarem as pistas de dança.
As
musicalidades
criadas
estão
nitidamente
correlacionadas
com
o
desenvolvimento tecnológico de equipamentos no decorrer do século XX e também com certo
modo de narrar e compor, intimamente ligado com práticas sociais que se instituíram.
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“Desde o princípio, o principal da boa música de pista não era simplesmente te fazer
mover, mas realmente mover você” (minha tradução) é o comentário elogioso no encarte do DVD
do Chemical Brothers que acabamos de assistir.
Pedro Ferreira (2006) analisou a eficácia de mobilização da música de pista pela sua
capacidade de concretização do que chamou de técnicas de êxtase xamânico. O autor analisou
como os DJ´s trabalham através de 3 parâmetros na geração de um transe que seria exclusivo à
sociedade tecnológica:
(1) efeitos da altíssima intensidade (dB-decibéis) do som eletronicamente amplificado:
caracterizado pela experiência de imersão corporal em um ambiente vibratório;
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(2) efeitos de diferentes faixas de freqüências (Hz- hertz) quando produzidas em altíssimo
volume: caracterizado pela experiência de diferenciação entre sons que penetram o corpo,
colidem com ele ou o dissolvem;
(3) efeitos de velocidades (BPM - batidas por minuto) do tempo musical metronicamente
controlado: caracterizados pela sincronização de ritmos infra e inter-corporais.
Mesmo focando a música eletrônica de pista, o autor considera que a eficácia desta se dá
pela formação de um sistema de ressonância no qual os corpos dos dançantes não são passivos,
não são apenas vibrados, mas também vibram pela dança e acabam por concretizar um “corpo
coletivo sonoro-motor”.
O autor admite que seja preciso certa “disponibilidade” dos
participantes para que a sinergia som-movimento se alastre para todo o público, mas não
considera os efeitos dos psicoativos ingeridos na ocasião dos eventos.
Nesse trabalho, eu trato de corpos com vísceras, coração e pulmão, eu trato de corpos
compostos por sistemas nervosos.
“A música troveja através de minha carne, as notas rodam com minhas veias. DJ’s
rodopiam suas escrituras com eloqüência, deleite e segurança. O grave chocalha meu
pulmão e bate em uníssono com meu coração. Se eu fecho meus olhos eu posso ver minha
carne derreter e minha alma ascender entre os espaços do som.” (tradução minha)
É a declaração de uma moça sobre sua experimentação da música de pista.
Corpos que não apenas recebem, mas produzem sensações, emoções, significados;
respiram, pulsam. São corpos instrumentos primários de conhecimento, tal como Marcel Mauss
(2003) os concebeu.
Nesse trabalho, eu trato de muitos corpos que aprenderam a se deixar afetar pela música
eletrônica de pista depois que consumiram alguma vez um ecstasy. Informação pertinente do meu
trabalho de campo: a combinação entre música eletrônica e ecstasy capaz de transformar ruído
em musicalidade.
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“Aprendi a ouvir e gostar de música eletrônica depois que tomei um ecstasy; antes a
música era como barulho, incomodava.”. Esta é minha história, que freqüentei e organizei raves
na década de 90 no Brasil, e a de muitos outros.
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Bia sobre quando experimentou um ecstasy, conta: “foi a primeira vez que eu senti a
música eletrônica tocar em mim, o som era maravilhoso, era house, (...) a música antes era
insuportável”.
Depois que se vivenciou alguma(s) vez(es) a experiência do ecstasy, muitas pessoas
dizem nem precisar tomá-lo para “entrarem no espírito” da música. Luíza, conta que quando vai a
raves pela manhã (chega na festa por volta das 11 horas da manhã do domingo), diversas vezes só
bebe uma cerveja e vai dançar na pista pois logo ela “surpreendentemente” sente-se como se
tivesse tomado um ecstasy. “É como se o corpo tivesse uma memória que a música ativa”, diz
ainda.
Contando a história do início da prática clubbing no Brasil, o jornalista e DJ Camilo
Rocha, registra:
“Pastilhas de ecstasy pipocavam aqui e ali. Era uma droga até então pouco conhecida e
que até 1995 ainda era legal nos EUA. (...) De uma hora para outra, muitos passaram a
tomar. É fácil de entender por quê. Quem usava ficava sempre sorrindo, abraçando os
outros e depois falava em ‘sentir a música melhor’, ‘desencanar das paranóias’, ‘quebrar
as barreiras entre as pessoas’ e ‘uma vontade de dançar e imergir no som’” (Rocha, 2003,
p. 22)
O próprio emblema da geração clubber dos anos 90, símbolo do acid house, o smiley, resgatado da psicodelia dos anos 70 -, faz alusão ao ecstasy. Tal como caracterizou Rocha: “um
comprimido sorridente com olhos arregalados”.
Talvez não seja por acaso que um dos conjuntos mais competentes de produtores de dance
music chame-se Chemical Brothers. A irmandade estabelecida nas pistas de dance music também
tem laços numa consangüinidade química, mesmo que não sejam os únicos ou os mais
importantes.
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No decorrer de mais de dez anos de prática rave e clubbing no Brasil, a “pastilha” (gíria
para se referir ao ecstasy), festejada descoberta dos anos 90, passa a ser chamada de “bala” nos
anos 2000, e já não é mais o psicoativo preferido de todos os freqüentadores desses eventos –
alguns dizem gostar mais do LSD, o “ácido”, porém são raros os casos de quem nunca
experimentou um ecstasy.
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Estamos lidando com dois períodos diferentes no consumo desses elementos: (1) os anos
90 do século XX, quando aqueles que ouviam e dançavam música eletrônica no Brasil
representavam um restrito agrupamento que se formava geralmente nas raves, quando o ecstasy
foi conhecido como a “droga do amor”; (2) e a primeira década do século XXI, quando o ecstasy
passa a ser chamado de “droga recreativa” e a grande maioria dos diferentes agrupamentos de
jovens urbanos realiza suas “baladas” noturnas com trilhas de músicas eletrônicas.
Há diferenças fundamentais entre as esporádicas raves ilegais de meados dos anos 90,
consideradas festas underground, e os grandes eventos regulares de final de semana que chegam
a reúnem quinze mil pessoas oferecendo equipamentos de parques de diversões. Eventos esses
que no Brasil já não são nem mais chamados de raves, mas, trabalhando para sua legalização,
preferem a denominação de festas open air a fim de desligar-se da imagem de território
permissivo ao consumo e ao tráfico de drogas.
Talvez toda a potência da abertura para o outro e para a empatia provocada pela “droga do
amor” tenha ficado em segundo plano nos anos 2000, alguma utopia se perdeu aí, mas outro dos
reconhecidos efeitos do ecstasy é ainda descrito na mesma direção: a possibilidade ampliada de
sentir no corpo a música eletrônica.
Me lembro da camiseta de um moço que certa vi numa rave: era da imagem de uma
cápsula colorida seguida da legenda “extra flavour”.
Sob efeito do ecstasy é possível sentir a própria respiração e as batidas do coração. A
visão é alterada, mas apenas levemente, as cores se tornam um pouco mais vivas, os contornos
das formas suavizados, mas não há distorções significativas. O paladar também é aguçado, tornase gostoso sentir a leve doçura da água ou de frutas, - ninguém se arrisca a ingerir alimentos de
gosto muito forte, pois esses podem ser agressivos dada a sensibilização do momento. Mais
agradável do que o gosto da água, é sensação da matéria da água na boca ou escorrendo pela
garganta, pois o sistema mais alterado pelo ecstasy parece ser o tátil. As sensações táteis do corpo
(internas e externas) são agradáveis e prazerosas: movimentações, toques, pulsações,
temperaturas. É a dança, então, a atividade que melhor possibilita e ativa essas experimentações
sensoriais.
Mais apropriado do que dizer que se ouve música eletrônica, é dizer que se sente a música
eletrônica.
“A cada virada, parecia estar em outra dimensão uma sensação plena de bem estar
misturada com momentos de ARREPIO e CHORO. Olhava para o céu azul e agradecia à
boa força que me proporcionou esse momento único em minha vida. Era como se a
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música ouvida fizesse cócegas em meu cérebro. Compartilho o momento com outras
pessoas ao meu lado que estavam sentindo a mesma boa e mágica sensação.”
É depoimento espontâneo sobre a rave do final de semana num chat da internet.
Talvez a peculiaridade do ecstasy, ainda valorizada nos anos 2000, esteja na intensificação
tanto da sinestesia – com s -, quanto da cinestesia – com c. O dicionário de língua portuguesa
Larousse Cultural (1999) aponta algumas diferenças:
“Sinestesia (gre. syn, junto + aisthesis, sensação) 1. [psic.] experiência subjetiva na qual
percepções que pertencem a uma modalidade sensorial são regularmente acompanhadas
de sensações que pertencem a uma outra modalidade, sem que esta última seja
estimulada.” (1999, p. 830)
É sobre esse tipo de experiência que Walter Benjamin trata, em A obra de arte na era de
sua reprodutibilidade técnica, quando nota que o cinema, através da visão, atinge o tátil do
espectador.
Quanto à definição de cinestesia com c, o dicionário é pobre: “Cinestesia. 1. conjunto de
percepções pelas quais se percebem os movimentos musculares – 2. percepção consciente da
posição e dos movimentos das diferentes partes do corpo” (1999, p. 230). Mas a citação de Anne
Suquet nos ajuda a compreender melhor o conceito. Anne Suquet trata toda a experimentação da
dança e do corpo poético do século XX como incitada pela eclosão de um sexto sentido no limiar
desse período: a cinestesia. Experimentações de uma época sobre a natureza da visão e do
movimento; percepção e mobilidade intimamente ligadas.
“Em 1906, o inglês Charles Scott Sherrington, um dos pais fundadores da neurofisiologia,
reúne, sob o termo ‘propriocepção’, o conjunto dos comportamentos perceptivos que
concorrem para este sexto sentido que hoje recebe o nome de ‘sentido do movimento’ ou
‘cinestesia’. Muito complexo, ele traça informações de ordem não apenas articular e
muscular, mas também táctil e visual, e todos esses parâmetros são constantemente
modulados por uma motilidade menos perceptível, a do sistema neurovegetativo que
regula os ritmos fisiológicos profundos: respiração, fluxo sanguíneo, etc. É este território
da mobilidade, consciente e inconsciente, do corpo humano que se abre para as
explorações dos bailarinos no limiar do século XX. O sensível e o imaginário nele
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dialogam com infinito refinamento, suscitando interpretações, ficções perceptivas que dão
origem a outros tantos corpos poéticos.” (Suquet, 2008, p. 515-16)
A diferença e a relação entre cinestesia e sinestesia parecem interessantes para pensarmos
algumas das peculiaridades da experiência das pistas de dance music e traçar algumas das
relações entre os consumos da música eletrônica e do ecstasy, mas vale ressaltar que é a prática
da dança que ativa a conexão e a memória dessa conexão entre os elementos. Essa é a
particularidade de fruição da música de pista: um conjunto de interações, afetos e prazeres
vivenciados pela prática da dança.
A dança expande sua afinidade com a música pela permissão de constituir uma relação
física cada vez mais profunda com ela. Também a dança é coletiva e compartilhar a música de
pista intensifica o modo pelo qual ela afeta você, tal como a presença da música altera o modo
pelo qual as pessoas presentes se relacionam umas com as outras.
Essa interação musical-sensual entre pessoas no ambiente das pistas é a “balada” desejada
nos clubs e a vibe festejada nas raves.
Vibe é expressão de comunhão, um compartilhar de sensações e emoções. André (30 anos
em 2004) definiu: “A vibe é um momento quando as pessoas acreditam estar pulsando no mesmo
tempo, na mesma sintonia, e... é isso. Ficam felizes juntos, dançam juntos, tem um sentimento
coletivo... de vibe”. Enfatizando o caráter compartilhado, Marcelo (com 30 anos em 2004)
pontua: “A vibe é a comoção geral, é a loucura em grupo”.
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Morgan Gerard (2004) considera clubs e raves como espaços de constituição de eventos
liminares, no sentido próprio que Victor Turner atribui ao conceito. A liminaridade dessas pistas
de dança se realiza processualmente pela intensificação de interações e comunicações.
Nesse processo, o autor considera a combinação de dois pares de “técnicas de
liminaridade” usadas pelos DJ’s em gravações preliminares e durante evento: filtro e looping,
equalização e mixagem.
Interessante é a observação do autor quanto a padrões de resposta dos dançantes à
musicalidade composta pela DJ. Em momentos de suspensão da música ou da freqüência do
grave, Gerard observa que enquanto uma moça deixa de dançar, fita o DJ, meio sem saber o que
fazer, a espera de novas instruções; outra (provavelmente mais familiarizada com essa linguagem
musical) apenas respira e volta a dançar no momento exato que o DJ reintroduz o grave pela
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mixagem – os silêncios também compõem a música de pista e atendem a um tempo previsível
pois o ritmo não é suspenso.
Ferreira (2006) também fez observações quanto a comunicação corpórea da dança nas
pistas de música eletrônica: considerou que o beat da música - sua batida constante - sugere um
movimento rítmico regular do corpo, que se combina com respostas ao break da música –
quebras propiciadas pela diferenciação de elementos musicais - que motiva movimentos nas
articulação corporais. A dança nas pistas de música eletrônica seria então uma brincadeira com a
correspondência corporal entre esses sinais sonoros, que dependendo da habilidade e
conhecimento do dançarino resultaria em danças mais ou menos elaboradas. Mas essas
considerações, ainda que bastante pertinentes, não explicam ou dão conta da conexão coletiva
construída.
A mixagem, para Gerard, caracteriza um momento peculiarmente liminar, período de
ambigüidade tanto para DJ’s como para dançantes. Momento de transição entre uma faixa e outra
de música, quando se corre o risco de interromper o fluxo que vai se constituindo como um
envolvimento numa sintonia sensual coletiva. Há risco do DJ quebrar a estrutura rítmica e
despertar dançante para consciência de si mesmo e da situação, o que seria considerado uma falta
de competência Há várias gírias para tal mixagem que é considerada mal, uma quebra entre duas
gravações separadas, que se fazer notar pelo descompasso na passagem de uma gravação para
outra: “sambar” no Brasil ( “trainwrecking” em inglês).
A dance music seria como uma narrativa cíclica de mixagem após mixagem que levaria
dançantes e DJ constituírem estados de imersão coletiva, com alguns picos de euforia .
André (31 anos em 2005) comentou que um bom DJ é aquele que consegue não apenas
chamar os participantes da festa para a pista, mas também “manter em suspensão a euforia sem
esgotar os ânimos”. Ora, a festa é longa, e quanto mais longa maior a possibilidade de ser trilhada
coletivamente e ser construído esse espaço de imersão compartilhado.
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Kai Fikentscher (2000) caracteriza os DJ’s como “arquitetos de paisagens sonoras”, e
Ferreira pontua que as nomeações “pista” e “faixa” fazem alusões a uma viagem, a um percurso,
então acho que podemos definir a execução da música de pista como uma operação de sucessão
de paisagens sonoras num sentido bastante cinemático, uma viagem, uma história, que se deseja
coletiva. A execução da música de pista segue como a sucessão sinestésica de referências
musicais expressas no corpo. Neste sentido Jackson (2005) considera as músicas de pista nos
termos de “paisagens sensuais”.
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A composição da música eletrônica de pista mais se aproxima das técnicas do cinema do
que de um espaço musical que permitiria a reflexão. Ou pegamos carona, ou somos atropelados
pela dance music, dificilmente nos mantemos à parte.
As técnicas e a imaginação cinematográficas alimentam o modo de compor da música
eletrônica. Mixagem é montagem, e quando a mixagem “samba”, deixa os presentes perceberem
a colisão entre faixas, o efeito de despertar incomoda aqueles que querem adormecer e se deixar
levar pelo fluxo de uma viagem fantasticamente sensorial. O DJ não pode interromper a distração
dos dançantes em sua concentração na audição do corpo. Audição é o termo que se usa na prática
da dança contemporânea para a percepção tátil dos movimentos internos de seu corpo, sua
cinestesia.
Lembro-me, então, dos momentos de suspensão da música ou do grave durante a
execução da música de pista. Momentos de suspensão, quando se afirma, se pontua, pela troca de
olhares e sorrisos, pela resposta corporal exata, a constituição da conexão dos dançantes que
reconhecem compartilhar a mesma brincadeira de “materialização da música pela dança”
(Rouget, 1985) - brincadeira mimética. Momentos de passagem que engajam os presentes são
momentos nos quais eu observo e reconheço os dançantes se entreolham, fitando rápido, porém
de forma penetrante, expressando toda a movimentação cinestésica que pode ser acessada na
situação. Uma cinestesia possível pela ingestão do ecstasy.
Ecstasy, um elo importante na execução da tarefa da música eletrônica em “fazer do
gigantesco aparelho técnico de nosso tempo o objeto das inervações humanas” (cf. Benjamin).
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Se a musicalidade própria do movimento moderno tem muito do barulho das máquinas:
automóveis, motores, bombas, amplificadores, eletrodomésticos; a “poluição sonora” de nossas
cidades torna-se elemento de intoxicação que possibilita a transcendência nas raves. Não apenas a
música eletrônica é necessariamente produzida por máquinas, mas também reproduz e imita o
som de máquinas - o que Ferreira (2006) nomeou de “estética maquínica”. Serras elétricas,
baterias eletrônicas, sirenes, campainhas, ruídos de motores são unidades musicais que, então
rearranjadas (num compasso tão exato que só a máquina pode montar e reproduzir), deslocam o
familiar para a abertura de possibilidades de movimentos extraordinários. Zen Machine e
Wrecked Machine são nomes de DJ’s de raves. O ruído das máquinas, paisagem sonora das
cidades do século XX, que pontua a velocidade dos movimentos do trabalho na cidade, é
subvertido para ser dançado, mas ainda dita o ritmo.
Se a rave á festa, ela festejar a própria POTÊNCIA da sociedade industrial.
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