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DEVOÇÃO À MARIA E A “IGREJA
EM SAÍDA”
Devotion to Mary and the "Church in exodus"
Ir. Afonso Murad *
RESUMO: O texto situa a Devoção à Maria e a “Igreja em saída” em oito densos subtítulos. O
autor aprofunda seus textos anteriores e retoma e pontualiza criticamente certos pressupostos
do culto e da devoção à Maria. Estabelece parâmetros para a devoção, que não é somente
popular, pois tornou-se transversal e multifacetária seja como modo ou presente no universo
midiático. Reevoca Paulo VI para apontar três critérios consistentes para rever ou recriar exercícios
de devoção mariana: critério bíbilico, critério litúrgico e sensibilidade ecumênica. Lembra, por
outro lado que referências exageradas à poderosa “Mãe do Céu” não podem ser feitas às custas do
esquecimento da “Maria de Nazaré. Por sua vez, a devoção a Maria precisa estar fundamentada
na única mediação de Jesus. Por fim, apresenta o magistério do papa Francisco que consegue
articular, no mesmo discurso, as dimensões devocionais, éticas e pastorais da figura de Maria.
PALAVRAS CHAVE: culto; devoção; marianismo; critérios de renovação; mãe.
SUMMARY: The text is located the Devotion to Mary and the "Church in exodus" in eight
dense subtitles. The author deepens his previous texts and resumes and pinpoint critically certain
assumptions of the worship and devotion to Mary. Establishes parameters for the devotion, which
is not only popular because it became transversal and multifaceted by being a mode or being
present in the media universe. Revokes Paul VI to point out three consistent criteria to review
or recreate Marian devotion exercises: biblical criterion, liturgical criterion and ecumenical
sensitivity. Remembers, on the other hand that exaggerated references to the powerful "Mother
of Heaven" cannot be made at the expense of oblivion "Mary of Nazareth”. In turn, the devotion
to Mary must be based on the unique mediation of Jesus. Finally, presents the Magisterium of
Pope Francis which could articulate, in the same discourse, as devotional, ethical and pastoral
dimensions of the figure of Mary.
KEY WORDS: worship; devotion; marianism; renewal criteria; mother.
* Afonso Murad é Irmão marista. Doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de
Roma. Professor de Teologia na Faculdade Jesuíta e no ISTA, em Belo Horizonte. Articula seu
pensamento a partir de distintos saberes, como a teologia, a educação, a gestão, a comunicação
e a ecologia. Membro da Equipe Interdisciplinar da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB).
Autor de vários livros, entre os quais: Gestão e Espiritualidade (Paulinas), Maria, toda de Deus e
tão humana (Paulinas), Introdução à Teologia, com J.B.Libanio (Loyola), Ecoteologia, um mosaico
(org - Paulus). E-mail: [email protected] Blog mariano: maenossa.blogspot.com
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Certa vez, fui convidado a ministrar um minicurso de mariologia em uma
diocese. Quando cheguei lá, fui recebido por um casal de leigos. O homem,
segurando um enorme terço na mão direita, me cumprimentou desconfiado e
com voz forte lançou-me uma pergunta provocadora: você é a favor ou contra
Nossa Senhora? Respondi-lhe imediatamente: sou a favor. Por isso estou aqui.
Então ele me disse: Ainda bem! Por que o último teólogo que veio aqui fez muitas
críticas e nós dissemos ao bispo para ele não voltar aqui nunca mais. Quanto a você,
bem-vindo, Irmão.
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Talvez você, teólogo/a ou agente de pastoral, tenha passado por situação
semelhante. Felizmente, leigos/as, religiosos/as e presbíteros empenhados na
evangelização em diálogo com a cultura contemporânea tentam atualizar a figura
de Maria, bem como as orações a ela dirigidas. Mas encontram forte resistência,
a começar na própria comunidade ou em movimentos. Enfrentam o enorme
desafio de equilibrar o respeito à tradicional devoção mariana com uma visão
cristocêntrica e trinitária.
No horizonte desta tensão permanente entre devoção mariana,
evangelização e teologia é que escrevo este artigo, caro/a leitor/a. Mantendo o
necessário rigor conceitual da linguagem teológica, mover-me-ei no campo da
ação pastoral. Adotarei um gênero literário direto, utilizando algumas vezes a
primeira pessoa do singular. Evitarei citações bibliográficas detalhadas e muitas
notas de rodapé. Você encontrará as referências completas no final do artigo.
Começarei retomando alguns pontos que já apresentei em outros escritos, para
caracterizar um quadro amplo da devoção mariana. Nas últimas sessões, que são
originais, tomarei alguns pontos de documentos do Papa Francisco, nos quais
ele consegue integrar o aspecto devocional com o teológico e o pastoral. Quero
mostrar, com isso, que é possível e necessário promover a sinergia dessas três
dimensões.
1. Devoção e culto: horizonte conceitual
O/a católico/a comum nutre uma relação estreita com Maria, comumente
chamada no Brasil de “Nossa Senhora”. Para ela recita muitas vezes a oração vocal
da “Ave Maria”. À mãe de Jesus se dirige constantemente para pedir ou agradecer.
E os motivos são muitos: proteção, cura de doenças, resolver problemas familiares,
pedir a paz do coração, solicitar sua intercessão pelos filhos/as e netos/as...
Enfim, para usar uma expressão corrente, desatar os muitos nós da existência.
Esta relação íntima, próxima, simultaneamente afetiva e espiritual, chamamos de
“devoção mariana” ou “devoção mariana”.
Aqui se mostra uma característica impressionante: Maria é, ao mesmo
tempo, grandiosa e próxima. Venerada como mãe de Deus, ela habita no horizonte
transcendente do divino. Mas não está distante, pois como mãe amorosa revela a
condescendência de Deus, permanecendo “pertinho da gente”, acessível, pronta
a responder aos nossos clamores. Portanto, devoção mariana é, em primeiro
lugar, uma postura, uma atitude espiritual. Mas, seguramente, ela se expressa
em práticas devocionais, uma forma particular de culto a Maria, no horizonte da
comunhão dos Santos.
O termo “devoção” conota ao menos três sentidos diferentes e
complementares1:
- Em sentido amplo, “devoção” se entende como “atitude habitual/
permanente numa pessoa que, com fervor, presteza e constância, oferece
a Deus o seu serviço, de várias formas”2. Etimologicamente, significa
servir com fidelidade, respeito e dedicação. Nesta primeira acepção,
todo cristão é devoto, pois se dedica a seguir a Jesus e conformar sua
vida à vontade de Deus.
- O adjetivo“devoto”enfatiza as atitudes interiores de reverência, adoração,
constância na oração. Em suma, uma pessoa com senso religioso visível,
piedosa, respeitosa diante do sagrado. O substantivo “devoto” é utilizado
no Brasil para caracterizar as pessoas que visitam os santuários marianos
em peregrinação, como parte de sua experiência espiritual. E também
para aquele/a que nutre especial relação com algum santo/a ou uma
das tantas “Nossas Senhoras”.
- Em sentido teológico estrito, a devoção é uma forma específica de
realizar o culto cristão, que se diferencia e se completa com a liturgia.
Neste terceiro campo, o termo reporta às práticas devocionais. Não tanto
à atitude interior, mas sobretudo às expressões externas. No âmbito
mariano, proliferam práticas devocionais, como o rosário, as novenas, a
consagração a Maria, as procissões, etc. Elas são devoções, que devem
transparecer a atitude de devotamento.
O culto cristão tem três dimensões básicas: ética, mística e ritual . A primeira
dimensão significa que o culto verdadeiro consiste no serviço a Deus na vida,
através do amor solidário, da prática do bem e da luta pela justiça. O culto interior
brota do coração sintonizado com Deus, na existência cotidiana. Somos morada
1
Para os múltiplos sentidos do termo, inclusive no latim clássico, ver: R. Moretti, Devoción in:
Diccionário de Espiritualidad: Herder, p. 567-572. No que diz respeito à Maria, J.M. Velasco,
Devoção Mariana in: Dicionário de Mariologia, p. 392-393.
2 R.M. Valabek, Devoção in: Dicionário de mística: Loyola, p. 321.
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de Deus, por meio do Espírito Santo (Ef 2,22). A segunda dimensão, a mística,
quer dizer que o culto explicita a espiritualidade, determinada experiência de
Deus, articulando presença e linguagem. Por fim, o culto se manifesta em ritos,
gestos simbólicos e palavras, que sofrem influência das culturas de onde nascem
e se desenvolvem.
No Cristianismo católico, as dimensões mística e ritual do culto se
manifestam nas práticas individuais dos fiéis, na devoção e na liturgia. A devoção
consiste em expressões cultuais propostas livremente aos fiéis, que são elaboradas
e transmitidas por leigos(as), movimentos, institutos religiosos, padres e diocese.
Em princípio, qualquer cristão pode criar uma expressão devocional e convidar
outros para utilizá-la, desde que tal devoção esteja em sintonia com o Evangelho
e a Tradição eclesial. Nenhuma prática devocional, mesmo se recomendada por
movimentos religiosos ou pela autoridade eclesiástica, é obrigatória para os fiéis.
Do contrário, deixaria de ser devoção.
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Cultuar a Deus, de forma integral, significa viver simultaneamente essas
dimensões: procurar fazer a vontade do Senhor com atitudes, gestos e valores
(ética), cultivar a intimidade com ele (espiritualidade) e expressá-la de forma
pessoal e comunitária (rito). Na mesma proporção, o núcleo da devoção cristã
reside na entrega a Deus, do devotamento e do compromisso com a causa de
Jesus, que vem acompanhada de disposições interiores e de práticas religiosas
externas.
Já o devocionismo consiste numa forma deficiente (mas não errada) de
viver a fé cristã. Ele se concentra na valorização extrema de práticas piedosas,
normalmente ligadas às orações vocais. Do ponto de vista teológico, seu limite
aparece na pouca centralidade da pessoa de Jesus. Multiplicam-se as orações à
Maria e aos demais santos, atribuindo-lhes uma eficácia igual ou maior do que
aquela dirigida a Cristo. Do ponto de vista pastoral, seu limite reside na distância
em relação à Sagrada Escritura e na “redução terapêutica”. Ou seja: a fé se presta
sobretudo para resolver os problemas pessoais, e se subestima o apelo cristão
para viver a caridade e a solidariedade.
2. Culto e devoção a Maria
O que caracteriza especificamente o culto a Maria? Como o culto a Maria
se relaciona com o culto integral a Deus? Paulo VI resume, de forma admirável, as
características dessa relação estreita do fiel com a mãe de Jesus, na Marialis Cultus
(MC), publicada em 1974.
Antes de falar sobre o culto a Maria, Paulo VI mostra que Maria é figura
inspiradora da Igreja no culto a Deus (MC 16-22). Maria é o modelo da Igreja, na
fé, na caridade e na união com Cristo, as disposições com a que a mesma Igreja o
invoca, e por meio d’Ele presta o culto ao Pai (MC 16). A partir dos dados bíblicos,
Paulo VI apresenta quatro características básicas de Maria de Nazaré: virgem
que ouve e acolhe a palavra de Deus com fé, mulher dedicada à oração, Mãe e
pessoa oferente. Ao contemplar a sua figura, a Igreja reconhece nela as atitudes
fundamentais do culto a Deus. Assim:
- Maria ouve e acolhe a palavra de Deus com fé. Assim faz a Igreja na liturgia:
escuta com fé, acolhe, proclama e venera a Palavra de Deus e a distribui
como pão da vida. À luz da Palavra, discerne os sinais dos tempos e vive
os acontecimentos da história.
- Maria dá-se à oração. A Igreja, como Maria, se dedica à oração. Todos os
dias apresenta ao Pai as necessidades de seus filhos, louvando o Senhor
e intercedendo pela salvação de todos.
- Marie é Mãe. Também a Igreja exercita tal maternidade, gerando novos
filhos pelo batismo e nutrindo-os na fé.
- Maria é virgem Oferente. Assim como ela, Igreja se oferta a Deus e
apresenta os dons na eucaristia (cf. MC 16-20).
Portanto, para Paulo VI, Maria nos ensina como cultuar a Deus e fazer o
caminho de conversão e seguimento a Jesus. Maria é a mestra da vida espiritual
para cada um dos cristãos. Os cristãos olham para Maria, a fim de que, como ela,
façam de sua própria vida um culto a Deus, e do seu culto um compromisso vital
(MC 21). A raiz do culto a Maria reside em inspirar-se nas suas atitudes básicas.
Diríamos, no seu traço ético-performativo.
Fiel à longa e sábia tradição eclesial, Paulo VI apresenta um leque amplo
e complexo, das múltiplas relações de Maria conosco como: inspiração em suas
atitudes, imitação operosa, veneração profunda, amor ardente, invocação confiante,
serviço amoroso, admiração comovida e estudo atento (MC 21).
3. O culto a Maria na única mediação de Jesus
Como a teologia católica fundamenta o culto a Maria, a partir do Concílio
Vaticano II? São Paulo diz que rezamos para Deus e em Deus. O Pai nos dá a graça
da oração ao nos conceder o Espírito de seu Filho, que nos faz chamar Deus de
Pai (Rm 8,15; Gl 4,6). Na liturgia cristã, a comunidade se dirige ao Pai, pelo Filho,
15
no Espírito. Oramos à Trindade, ao Deus-comunidade. Também é legítimo dirigir
a prece diretamente a Jesus. Invoca-se o Espírito Santo em algumas ocasiões,
para que ele nos coloque em sintonia com Jesus e o Pai. Ora, se toda oração é
potencialmente trinitária, ao Pai, pelo Filho, no Espírito, para que dirigir preces a
Maria e aos santos?
O fundamento da visão católica acerca do culto a Maria se encontra no
capítulo 8 da Constituição Dogmática Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II3.
Ali se aborda a questão: Se Jesus é o único mediador entre Deus e a humanidade,
como compreender então a intercessão de Maria? Coerente com os dados bíblicos,
o documento conciliar confirma que Cristo é o único mediador. Mas essa única
mediação de Cristo não acontece de forma exclusiva ou excludente, pois os santos
são colaboradores de Jesus.
16
Segundo os padres conciliares, a missão materna de Maria não diminui
a mediação única de Cristo, mas mostra a sua potência. Não se origina de uma
necessidade interna, mas do dom de Deus. Não impede, mas favorece a união dos
fiéis com Cristo (LG 60). Nenhuma criatura jamais pode ser colocada no mesmo
plano do Verbo encarnado e redentor.
Dito de maneira positiva: o sacerdócio de Cristo é participado de vários
modos pelo povo de Deus, e a bondade divina é difundida nas criaturas. A única
mediação do Redentor suscita nas criaturas uma variada cooperação, que participa
de uma única fonte (LG 62). O concílio reconhece a legitimidade de recorrer à
intercessão de Maria, pois se trata de cooperação na única mediação de Cristo. E
não utiliza a expressão “medianeira”, até então marcada por acento maximalista.
Segundo o concílio, a cooperação de Maria não se situa no mesmo plano
da missão redentora de Jesus. Coloca-se em função dessa missão e dela depende
incondicionalmente. O culto a Maria é singular, diferindo e se orientando para o
culto à Trindade (LG 66).
O culto a Maria é bom, enquanto exercitado de maneira equilibrada:
“Recomenda-se o culto à Maria, evitando tantos os exageros
quanto a demasiada estreiteza de espírito. A verdadeira devoção
à Maria não consiste num estéril e transitório afeto, nem numa
vã credulidade, mas no reconhecimento da figura da Virgem
Maria e no seguimento de suas virtudes” (LG 67).
3 Retomo aqui, quase literalmente, alguns parágrafos do artigo A devoção marial no Brasil
contemporâneo. Olhar panorâmico, publicado em Vida Pastoral, julho-agosto 2015, p. 3-14.
Portanto, justifica-se o culto a Maria, no horizonte do seguimento de Jesus
e da comunhão dos Santos. Maria coopera de forma especial na única mediação
de Cristo, que é inclusiva.
O concílio afirma que Maria é membro, símbolo e mãe da Igreja, a partir de
sua relação ímpar com Jesus. Porque mãe, companheira e serva do Senhor, tornase assim para nós mãe, na ordem da graça (LG 61). Devido à sua maternidade, à
união de missão com Cristo e às suas singulares graças e funções, ela está também
intimamente relacionada com a Igreja (LG 63). Como Maria, a Igreja é mãe e
virgem: gera novos filhos pelo batismo, guarda a Palavra, vive na fé, esperança e
caridade (LG 64).
Esta chave da relacionalidade é fundamental para justificar, de forma
equilibrada, a devoção mariana. Em primeiro plano está Jesus, a causa do Reino
de Deus, e a comunidade dos seus seguidores. Conforme o texto conciliar, Maria é
simultaneamente mãe, discípula e companheira de Jesus (LG 61). Com ele convive,
ensina e aprende. O título “companheira” pode causar estranheza. Mas é original,
por indicar que Maria permanece junto com Jesus e seus seguidores, e não sobre
eles ou independente deles.
Então, a Maria nos dirigimos e nela nos inspiramos, sem concorrência com
Jesus, nosso mestre, Senhor e salvador. Neste lugar especial na comunhão dos
Santos, o mais perto de Jesus e mais próximo a nós (LG 54), Maria nos acompanha
e intercede pelos cristãos.
4. A devoção mariana no universo midiático
Caro/a leitor/a, você deve ter percebido que não utilizei a expressão
“religiosidade popular” ou “devoção popular”, e sim “devoção mariana”. Como
isso, ressalto que a devoção é mais do que as práticas devocionais. A primeira
significa uma relação espiritual e afetiva do fiel com Maria, a mãe de Jesus. De
outro lado, ela não é somente popular. E mais ainda, não se trata de algo fixo, e
sim em mutação. Vejamos4.
“Religiosidade popular” compreende uma visão unificadora sobre Deus,
o mundo e o ser humano, presente nos setores pobres, em culturas rurais e
pré-modernas, de forma assistemática, não reflexa, mas muito ativa. Neste
sentido, várias práticas devocionais fazem parte da religiosidade popular, como
manifestações visíveis da relação com Deus, sobretudo nos segmentos sociais
pobres e que tiveram pouco acesso à escola formal.
4
Cf. as citações literais o texto complementar Religiosidade popular e devoção mariana na obra:
Maria, toda de Deus e tão humana, p. 221-223.
17
No meio eclesial, alguns consideram a religiosidade popular como um
tesouro puro e intacto, a ser difundido o máximo possível. Por isso, critica-se a
“teologia moderna” que apontou limites, anacronismos e desvios teológicos e
pastorais nas devoções. A teologia é culpabilizada como a responsável pela perda
da “fé inocente do povo”. Não se percebe que esta “religiosidade idealizada” em
muitos lugares já não existe mais como no passado. Com isso, não se nega seu
valor.
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No contexto plural da sociedade contemporânea, há pessoas que admiram
a mãe de Jesus, identificam-se com suas atitudes, mas não sentem necessidade de
rezar para ela. No outro extremo situam-se os que apregoam que Maria, através
da voz de seus videntes, ordena praticar diariamente determinadas devoções.
Então, a recomendação degenera em obrigação, acompanhada de ameaças, se
não for seguida. Ora, no âmbito devocional deve reinar o respeito, a liberdade e
a diversidade. Levando sempre em conta que, na perspectiva católica, a oração a
Maria é legítima e recomendável.
O devocionismo mariano tem crescido de forma avassaladora no Brasil.
Denomino com tal termo essa devoção exagerada, sem limites, que se move num
horizonte triunfalista. E ele vem acompanhada por certo grau de intolerância e
rechaço à reflexão.
Nos últimos anos, várias práticas devocionais foram desenterradas do
passado, e muitas outras, dilatadas e acrescentadas. Retoma-se, propositalmente
ou não, a tendência maximalista que marcou a teologia e a espiritualidade mariana
antes do Vaticano II. Em vez de recitar ave-marias, porque não substitui-las por 50
Salve-Rainhas? No lugar do rosário, mil Ave-Marias (por enquanto)! E o que dizer
daqueles que, sem o mínimo bom senso, aplicam de forma literal e anacrônica
certas prescrições do passado, como usar corrente no braço, para sinalizar que o
devoto é escravo de Maria?
A outra questão diz respeito ao adjetivo “popular”. Por vezes, certa visão
ingênua considera a devoção com uma manifestação que brota da pureza do
“povo piedoso”, e por isso tem que ser mantida intacta. Isso não corresponde aos
fatos. Realmente, existem devoções nascidas de leigos e propagadas pelo povo.
Mas há também devoções criadas por Institutos religiosos e seus fundadores, por
presbíteros e, mais raramente, por bispos, que não vieram “do povo”. E a qualidade
das práticas devocionais abrange um leque enorme: da eclesiologia verticalista
medieval à visão de comunhão do Vaticano II, de crendices inaceitáveis a uma
espiritualidade admirável. Nem toda prática devocional tem o mesmo valor
teológico-espiritual.
Acrescenta-se o fato de que as devoções marianas “da moda” são
promovidas por padres e novas comunidades, utilizando o poderoso recurso
das mídias tradicionais (rádio, TV e revistas) e das novas mídias (site, blog e redes
sociais). Não são populares nem na sua origem, nem no seu protagonismo.
Algumas delas não tem raiz histórica consistente e apresentam um questionável
fundamento teológico. Estamos diante de um fenômeno novo e complexo: a
devoção midiática, que tem enorme poder de disseminação e contágio.
As práticas devocionais católicas, especialmente as marianas, são vividas
e difundidas simultaneamente por pessoas e grupos de diferentes segmentos
sociais. Grupos de elites ricas e poderosas promovem a oração do rosário, como
também comunidades de gente muito pobre e de setores médios. Hoje, a devoção
mariana está espalhada em todos os segmentos da sociedade.
Portanto, tanto do ponto de vista eclesial quanto do sociológico, a devoção
mariana não é somente popular. Tornou-se transversal e multifacetária. E, como
toda realidade humana, apresenta valores e limites, possibilidades e riscos.
No meio do clero medra certa visão pragmática5. Mesmo que o presbítero
não seja pessoalmente um devoto de Maria, ele estimula os movimentos marianos
de qualquer espécie, pois acredita nos seus benefícios pastorais e econômicos.
Certa vez, ouvi um padre dizendo: “eu só promovo as devoções marianas porque
o povo gosta”. Ora, esse argumento é inconsistente do ponto de vista teológico.
Discurso similar é usado de forma anti-ética em várias instâncias da sociedade.
Alguns programas de rádio e TV exploram a violência, o sofrimento e o erotismo,
porque “o povo gosta” e isso rende audiência (e, consequentemente, patrocínio).
A devoção midiática, poderosa, massiva e por vezes com poucos raízes
teológico-espirituais, exige que façamos um discernimento mais apurado, em
relação ao conhecido critério de “lex orandi, lex credenti”. Segundo este princípio,
as manifestações devocionais e litúrgicas que surgiram na história trazem uma
sabedoria do “senso comum dos fiéis”, inspirada pelo Espírito Santo, a ponto
de consolidarem-se como doutrina. Ora, não basta que determinada devoção
mariana seja muito difundida entre os fiéis, especialmente pelos veículos
midiáticos, para que seja reconhecida como de alto valor intrínseco.
5. Devoção mariana e ação pastoral
É certo que deve se levar em conta as tendências e os gostos dos nossos
destinatários e interlocutores na evangelização. Mas este não é o critério decisivo.
5
Cf. o artigo citado em “Vida Pastoral”.
19
Evangelizar não se reduz a vender um produto religioso que agrada o cliente e
lhe dá satisfação espiritual. Nós promovemos a devoção mariana porque ela tem
fundamentos doutrinais e espirituais, não simplesmente porque faz sucesso.
Além disso, o próprio conceito de “sucesso” é questionável. O
profetismo, elemento fundamental da mística cristã, comporta uma crítica aos
comportamentos massivos, ao formalismo, à religião do sistema. O cristianismo
tem um elemento irrenunciavelmente minoritário. Embora destinado a todos,
convoca para um “mais”. Pretende ser sal e fermento. Postula atitudes exigentes,
posturas reflexivas e renúncias.
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A ação pastoral eficaz na sociedade urbana conjuga duas ênfases: a
massiva e a profética. De um lado, busca manter o número de fiéis e conquistar
as massas. Para isso, recorre a esquemas simplificados de impacto emocional,
nos quais predominam a linguagem acessível, o convencimento, a sedução, o
encantamento, os gestos simbólicos. De outro lado, por fidelidade ao Evangelho
de Jesus, denuncia os enganos da religiosidade fácil, apela aos gestos profundos,
propõe pensar, cria espaços de reflexão, e provoca conflitos ao desmascarar
estruturas pecaminosas. Ora, uma devoção mariana lúcida e equilibrada mantém
tal tensão. Por ser profética, não cede aos encantos da religiosidade fácil e
manipuladora. Para impactar nas massas, busca formas e expressões simples e
acessíveis, que penetrem no tecido social.
A devoção mariana constitui uma herança legítima, que deve ser acolhida,
respeitada, valorizada e integrada. Deve-se evitar a difusão de devoções pouco
criteriosas, com intenção meramente proselitista (arrebanhar fiéis e polemizar
com outras Igrejas cristãs), mercadológica (enriquecer os presbíteros e a instituição
eclesial), e que perdem o foco da centralidade de Jesus.
Cumpre realizar um “discernimento pastoral” das devoções marianas, em
distintos níveis: comunitário, paroquial e diocesano. Não se trata de taxar tais
manifestações como “certas” ou “erradas”, mas sim em que proporção favorecem a
adesão à Jesus e permitem uma forma aberta e dialogal de estar no mundo. Neste
discernimento, identificam-se, de forma provisória, os elementos positivos e os
aspectos ambíguos que apresentam riscos de degenerar a experiência cristã. Por
fim, empreendem-se ações pastorais de renovação da devoção mariana, para as
massas, os que frequentam as igrejas e as lideranças.
Nos últimos 50 anos, desde a assembleia de Medellin (1968), desenvolveu-se
no continente latino-americano uma caudalosa corrente teológica e pastoral, voltada
para formar uma Igreja-comunidade, que atua decididamente para transformar
a realidade social, animada pelo Evangelho. Neste contexto, valorizou-se muito a
figura de Maria. Identificou-se nas devoções marianas uma forma de resistência do
povo oprimido, ao qual foi negado o direito de ser protagonista de sua história. Além
disso, os “círculos bíblicos”, a catequese renovada, as pastorais sociais, a eclosão das
Comunidades Eclesiais de Base, o desenvolvimento da Pastoral de Juventude, tudo
isso levou a uma redescoberta do perfil bíblico de Maria de Nazaré. Destacam-se,
entre outras características da mãe de Jesus, a consciência profética no Magnificat,
a solicitude do serviço a Isabel e em Caná, a resistência e a perseverança na cruz, a
simplicidade de quem aprende e ensina com Jesus, a companheira da comunidade
cristã em pentecostes, a mãe amorosa sempre presente.
Embora minoritária no atual momento histórico, tal corrente empreende
uma renovação profunda da devoção. Não a partir das fórmulas devocionais, e
sim do resgate da figura bíblica de Maria, que inspira as atitudes cristãs. Além
disso, ela retoma a centralidade de Jesus. Cultiva a leitura orante da Bíblia. Exercita
o protagonismo dos leigos/as, especialmente os mais pobres. Ao considerar como
importante as manifestações das comunidades locais, e o protagonismo dos
leigos, em detrimento da religião globalizada pela mídia, promove a inculturação
do evangelho.
Tal perspectiva é oficializada no Documento de Aparecida (DAp). Ali se
sustenta que a “devoção popular”, fortemente mariana, deve ser assumida no
processo evangelizador, pois ela “penetra a existência pessoal de cada fiel. Nos
diferentes momentos da luta cotidiana, muitos recorrem a algum pequeno sinal
do amor de Deus” como o rosário ou o olhar a uma imagem de Maria. Neste
sentido, “a fé encarnada na cultura pode penetrar cada vez mais nos nossos povos,
se valorizarmos positivamente o que o Espírito Santo já semeou ali” (DAp 262).
A devoção mariana é um ponto de partida para que a fé amadureça e se
faça mais fecunda. Simultaneamente se desenvolvem as atitudes de aceitação
e de mudança: “É preciso ser sensível a ela, saber perceber suas dimensões
interiores e seus valores inegáveis. É necessário evangelizá-la ou purificá-la,
assumindo sua riqueza evangélica” (DAp 262). Não basta continuar repetindo
aquilo que a comunidade eclesial recebeu no passado. Algo mais deve ser
acrescentado à prática cristã. Entre outras coisas, sugere-se: conhecer a vida
de Maria e dos santos, para se inspirar no seu jeito de ser e agir. Além disso,
intensificar o contato com a Bíblia, a participação na comunidade e o serviço do
amor solidário (DAp 262)6.
6 Resumo do texto Maria: um perfil plural em: UMBRASIL (org), Maria no coração da Igreja.
Múltiplos olhares sobre a mariologia, p.18-24.
21
6. Renovação da devoção mariana
A questão teológica e pastoral decisiva consiste em: que critérios adotar, para
avaliar, acolher ou renovar as práticas devocionais marianas? Para isso, tenhamos
em conta a insubstituível contribuição do Papa Paulo VI, na exortação apostólica
Marialis Cultus (MC), acerca do Culto a Maria na Igreja7.
Conforme o Papa, as manifestações da devoção mariana aparecem de muitas
formas, de acordo com tempo e lugar, sensibilidade dos povos e suas tradições
culturais. Como são sujeitas ao desgaste do tempo, necessitam de renovação,
para valorizar os elementos perenes e substituir os anacrônicos, incorporando os
dados da reflexão teológica e do magistério. Por esta razão, deve-se fazer uma
revisão dos exercícios de devoção mariana, ao mesmo tempo respeitando a sã
tradição e estando abertos “para receber as legítimas instâncias dos homens de
nosso tempo” (MC 24).
22
Paulo VI aponta três critérios para rever ou recriar exercícios de devoção
mariana:
- Cunho bíblico: não somente diligente uso de textos e símbolos tirados
da Escritura, mas que “as fórmulas de oração e os textos destinados ao
canto assumam os termos e a inspiração da Bíblia”. O culto à Maria deve
estar permeado pelos grandes temas da mensagem cristã (MC 30).
- Cunho litúrgico: as práticas devocionais devem considerar os tempos
litúrgicos e encaminhar para a liturgia, como grande celebração da vida,
morte e ressurreição de Jesus. Evitem-se os extremos dos que desprezam
os exercícios de devoção, criando um vazio, e dos que misturam exercício
piedoso e ato litúrgico, em celebrações híbridas (MC 31).
- Sensibilidade ecumênica: devido ao seu caráter eclesial, no culto a Maria
refletem-se as preocupações da própria Igreja. Entre elas, se destaca o
anseio pela unidade dos cristãos. A devoção mariana tornar-se sensível
aos apelos do movimento ecumênico, e adquire também um caráter
ecumênico (..). Assim, “sejam evitados, com todo o cuidado, quaisquer
exageros, que possam induzir em erro os outros irmãos cristãos, acerca
da verdadeira doutrina da Igreja Católica; e sejam banidas quaisquer
manifestações cultuais contrárias à correta prática católica” (MC 32).
Ao aprofundar as linhas teológicas traçadas na Lumen Gentium 8, Paulo VI
assume oficialmente a mariologia bíblica pósconcíliar. Consegue assim fazer um
amálgama da devoção com a prática cristã, fundada na Sagrada Escritura. Maria
7 Para o que se segue: Maria, um perfil plural, o.c.
não é considerada somente como a nossa Mãe do Céu, mas também como o
exemplo de vida para os seguidores de Jesus:
“A Virgem Maria foi proposta pela Igreja à imitação dos fiéis, não
exatamente pelo tipo de vida que Ela levou ou, menos ainda,
por causa do ambiente sociocultural em que se desenrolou a
sua existência, hoje superado quase por toda a parte; mas sim,
porque, nas condições concretas da sua vida, Ela aderiu total e
responsavelmente à vontade de Deus (Lc 1,38); porque soube
acolher a sua palavra e pô-la em prática, porque a sua ação foi
animada pela caridade e pelo espírito de serviço; e porque, em
suma, Ela foi a primeira e a mais perfeita discípula de Cristo
- o que, naturalmente, tem um valor exemplar universal e
permanente”(MC 35).”
Talvez umas das coisas mais graves do devocionismo mariano atual esteja
no fato de que as referências exageradas à poderosa “Mãe do Céu” se faça as
custas do esquecimento da “Maria de Nazaré”. Essa é retratada nos evangelhos
como primeira discípula de Jesus, peregrina na fé, ungida pelo Espírito, membro
e mãe da comunidade cristã.
Vejamos agora como o Papa Francisco, ao tratar de temas fundamentais para
a Igreja no mundo atual, articula, no mesmo discurso, as dimensões devocionais,
éticas e pastorais da figura de Maria. Tomarei como exemplo elucidativo a
Exortação Apostólica “Alegria do Evangelho” (Evangelii Gaudium – EG).
7. O Papa Francisco e a “Igreja em saída”
Em 2013 o Papa Francisco publicou a Exortação Apostólica “A alegria do
Evangelho”. Em latim: “Evangelii Gaudium” (EG) Este documento recolhe as
contribuições do Sínodo dos Bispos de 2012 sobre a Nova Evangelização e dá
orientações concretas para a Pastoral. Tem como finalidade principal iluminar
e abrir caminhos para a Igreja nos próximos anos (EG 1). Francisco propõe
“algumas diretrizes para encorajar e orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa
evangelizadora, cheia de ardor e dinamismo (..) com base na Constituição
dogmática Lumen Gentium do Vaticano II (EG 17).
O Papa escolhe sete temas que tem “relevante incidência prática na missão
atual da Igreja” (EG 18). São eles: A reforma da Igreja em saída missionária, As
tentações dos agentes pastorais, A Igreja vista como a totalidade do povo de Deus
que evangeliza, A homilia e a sua preparação, A inclusão social dos pobres, A paz e
o diálogo social, As motivações espirituais para o compromisso missionário.
23
Francisco lança um veemente apelo a todos os membros da Igreja: “Sejam
ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, o estilo e os
métodos evangelizadores das suas comunidades. Uma identificação dos fins, sem
a busca comunitária dos meios para alcança-los, está condenada à mera fantasia.
Apliquem, com generosidade e coragem, as orientações deste documento, sem
impedimentos nem receios” (EV 33).
24
O capítulo 1º apresenta a necessidade de a Igreja fazer um giro: sair de si
e abrir-se ao mundo, em espírito missionário. Tal renovação se alimenta de uma
volta ao núcleo do evangelho: “Sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar
o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos,
outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado
significado para o mundo atual” (EG 11). Segundo Francisco, a intimidade da
Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão é missionária. Fiel ao
Mestre, é vital que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos
os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A
alegria do Evangelho é para todo o povo, não se pode excluir ninguém (EG 23).
Transformar-se em uma“Igreja em saída”postula adotar os meios necessários
para avançar no caminho de conversão pastoral e missionária, que não pode
deixar as coisas como estão. Não basta uma simples administração. E sim, estar
em estado permanente de missão, em todas as regiões da terra (EG 25). Neste
sentido, diz o Papa: “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar
tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura
eclesial se tornem um canal destinado mais à evangelização do mundo atual do
que a auto-preservação” (EG 27). E mais: a reforma das estruturas, que a conversão
pastoral exige, visa fazer com que todas as instâncias se tornem mais missionárias,
que a ação pastoral seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes em
atitude constante de saída (EG 27).
Ora, colocar tudo em chave missionária exige mudar a maneira de comunicar
a mensagem. Pois, no momento, ela corre o risco de aparecer mutilada e reduzida
a aspectos secundários. O problema maior ocorre quando a mensagem que
anunciamos parece identificada com aspectos secundários, que, apesar de serem
relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus
Cristo (EG 34). Então, é preciso ir ao núcleo. Assim, a proposta acaba simplificada,
sem com isso perder profundidade e verdade, e assim se torna mais convincente
e radiante (EG 35).
Não cairíamos então em um relativismo? Não. Segundo Francisco, “embora
todas as verdades reveladas procedam da mesma fonte, algumas delas são mais
importantes por exprimir diretamente o coração do Evangelho. Neste núcleo
fundamental, sobressai a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus
Cristo morto e ressuscitado”. Neste sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que
existe uma ordem entre as verdades da doutrina católica. Isto é válido tanto para
chamados dogmas da fé como para o conjunto dos ensinamentos da moral (EG
36). É necessária uma proporção adequada entre os diversos ensinamentos (EG
38).
O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e
salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem
de todos. Se esse convite não brilha com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja
corre o risco de se tornar um castelo de cartas (..) A mensagem cristã perde o seu
frescor e dilui o perfume do Evangelho (EG 39).
Além disso, insiste Francisco, “no seu discernimento, a Igreja pode
reconhecer que alguns costumes hoje já não são interpretados da mesma
maneira. Sua mensagem não é percebida de modo adequado. Podem até ser
belos, mas agora não prestam o mesmo serviço à transmissão do Evangelho. Não
tenhamos medo de revê-los!” (EG 43).
Da mesma forma, há normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido
muito eficazes noutras épocas, mas já não têm a mesma força educativa como
canais de vida. Esse é um dos critérios a considerar, na reforma da Igreja e da sua
pregação, que a permita realmente chegar a todos (EG 43).
Ora, o que o Papa diz a respeito da necessária atualização da doutrina, da
moral e dos costumes, se aplica à catequese e à devoção marianas. Uma Igreja em
saída, em vez de multiplicar práticas devocionais, deve ir ao núcleo do evangelho
e resgatar o perfil bíblico-espiritual de Maria. E, vale recordar, aplicar os critérios
de discernimento para a renovação das devoções, já propostas por Paulo VI, faz
tanto tempo.
8. Piedade Popular e nova evangelização
Na exortação apostólica “Alegria do Evangelho”, o Papa Francisco dedica
alguns parágrafos para ressaltar o que ele denomina “a força evangelizadora da
piedade popular” (EG 122-126). Trata-se de uma visão positiva, pois considera as
manifestações religiosas populares, não oficiais e sem controle do clero, como uma
expressão do “sensus fidelium”. Não são algo meramente folclórico, mas fazem
parte da inculturação da fé. Francisco assume, como palavra do magistério da
Igreja, as posições defendidas na Assembleia de Aparecida, citada explicitamente.
25
Conforme o Papa, os diferentes povos, nos quais foi inculturado o
Evangelho, são sujeitos coletivos ativos e agentes da evangelização. A cultura é
algo de dinâmico, que um povo recria constantemente, e cada geração transmite
à seguinte, para reelaborar face aos próprios desafios. Cada porção do povo de
Deus, ao traduzir na vida o dom de Deus segundo a sua índole própria, testemunha
a fé recebida e enriquece-a com novas expressões. Assim, o povo se evangeliza
continuamente a si mesmo (EG 122). Neste contexto “ganha importância a
piedade popular, verdadeira expressão da atividade missionária espontânea do
povo de Deus. Trata-se de uma realidade em permanente desenvolvimento, cujo
protagonista é o Espírito Santo” (EG 122).
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Francisco recorda que, a piedade popular, vista por vezes com
desconfiança, foi revalorizada nas décadas posteriores ao Concílio. Paulo VI
na Evangelii nuntiandi. explica que essa traduz em si uma certa sede de Deus,
que somente os pobres e os simples podem experimentar. Bento XVI, em
visita ao nosso continente, considera-a um precioso tesouro da Igreja Católica.
Nela aparece a alma dos povos latino-americanos (EG 123). No Documento de
Aparecida os Bispos chamam-na também “espiritualidade popular” ou “mística
popular”. Trata-se de uma verdadeira espiritualidade encarnada na cultura dos
simples. Seu conteúdo é expresso mais pela via simbólica do que pelo uso da
razão instrumental. No ato de fé, acentua mais a entrega a Deus do que a adesão
à doutrina. Maneira legítima de viver o cristianismo, compreende um modo
singular de se sentir parte da Igreja. Comporta a graça da missionariedade, do
sair de si e do peregrinar, como acontece sobretudo nas peregrinação para os
santuários (EG 124).
Conforme Francisco, é imprescindível interpretar a devoção com o olhar
amoroso do Bom Pastor, que não julga e sim a acolhe afetivamente e efetivamente.
Somente assim se aprecia a vida teologal presente na piedade dos povos cristãos,
especialmente nos pobres (EG 125). E o próprio Francisco testemunha tal olhar, a
partir de sua longa prática do ministério, junto aos pequeninos.
“Penso na fé firme das mães ao pé da cama do filho doente, que
se agarram a um terço ainda que não saibam elencar os artigos
do Credo; ou na carga imensa de esperança contida numa vela
que se acende, numa casa humilde, para pedir ajuda a Maria, ou
nos olhares de profundo amor a Cristo crucificado. Quem ama
o povo fiel de Deus, não pode ver estas ações unicamente como
uma busca natural da divindade; são a manifestação duma vida
teologal animada pela ação do Espírito Santo, que foi derramado
em nossos corações (cf. Rm 5, 5) (EG 125).
Francisco considera a “piedade popular” um processo, uma chance e uma
interpelação para a evangelização. Por ser fruto do Evangelho inculturado,
nela subjaz uma força ativamente evangelizadora, obra do Espírito Santo, que
não podemos subestimar. “Somos chamados a encorajá-la e fortalecê-la para
aprofundar o processo de inculturação, que é uma realidade nunca acabada. As
expressões da piedade popular têm muito que nos ensinar e, para quem as sabe
ler, são um lugar teológico a que devemos prestar atenção na nova evangelização”
(EG 126).
9. A título de Conclusão: A oração a Maria na Evangelii Gaudium
Papa Francisco dedica a Maria os parágrafos finais da Exortação Alegria
do Evangelho (EG . O Papa resgata elementos preciosos da Lumen Gentium e
da Marialis Cultus, além de fazer eco da mariologia contemporânea. Articula,
de forma bela, a figura de Maria de Nazaré com a da Mãe da Igreja, glorificada
junto a Jesus. Reforça a centralidade de Cristo, que inclui a comunhão dos
Santos. Francisco se revela como um devoto de Maria, com sensibilidade latinoamericana. Sem pronunciar uma palavra explícita sobre a necessária renovação
da devoção mariana, oferece à Igreja algumas chaves de leitura do perfil de Maria
e encerra a exortação apostólica com uma prece mariana fascinante. A análise
desses parágrafos merece outro artigo. Por hora, vamos nos deter em EG 288. Ali
se descortina uma interpretação bíblico-teológica de Maria que supera os jargões
empobrecedores do devocionismo. Mais ainda, revela uma sinergia (confluência)
da mariologia bíblica com a sensibilidade pastoral e uma devoção equilibrada e
significativa. O Papa afirma que
“há um estilo mariano na atividade evangelizadora da Igreja.
Porque sempre que olhamos para Maria, voltamos a acreditar
na força revolucionária da ternura e do afeto. Nela, vemos que
a humildade e a ternura não são virtudes dos fracos, mas dos
fortes, que não precisam maltratar os outros para se sentir
importantes. Fixando-a, descobrimos que aquela que louvava a
Deus porque «derrubou os poderosos de seus tronos» e «aos ricos
despediu de mãos vazias» (Lc 1,52.53) é mesma que assegura o
aconchego dum lar à nossa busca de justiça” (EG 288).
Francisco mostra que Maria é o exemplo para todos aqueles/as que articulam, na
vivência cotidiana de sua fé, a contemplação e ação.
(Ela) conserva cuidadosamente «todas estas coisas ponderando-as no seu coração» (Lc 2,19). Maria sabe reconhecer os vestígios
do Espírito de Deus tanto nos grandes acontecimentos como na-
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queles que parecem imperceptíveis. É contemplativa do mistério
de Deus no mundo, na história e na vida diária de cada um e de
todos. É a mulher orante e trabalhadora em Nazaré, mas é também nossa Senhora da prontidão, a que sai às pressas (Lc 1,39) de
seu povoado para ir ajudar os outros.
E conclui:
Esta dinâmica de justiça e ternura, de contemplação e de
caminho para os outros faz dela um modelo eclesial para a
evangelização. Pedimos que ela nos ajude, com a sua oração
materna, para que a Igreja se torne uma casa para muitos, uma
mãe para todos os povos, e torne possível o nascimento de um
mundo novo (EG 288).
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A oração conclusiva da Exortação Apostólica Alegria do Evangelho,
dirigida a Maria, testemunha uma devoção integrada num projeto evangelizador
contemporâneo e renovador. Veja, destacado em itálico, os títulos e as
características atribuídas a Maria nesta oração. Como elas superam, de longe, as
imagens anacrônicas de certas devoções em voga. Prestam-se até para engendrar
uma nova ladainha para a mãe de Jesus.
Com o Papa Francisco, rezemos a Maria, para que “a Igreja em saída” seja
portadora da alegria do Evangelho, boa nova significativa para os homens e as
mulheres de hoje:
Virgem e Mãe Maria,
Vós que, movida pelo Espírito, acolhestes o Verbo da vida
na profundidade da vossa fé humilde, totalmente entregue ao
Eterno,
ajudai-nos a dizer o nosso «sim»
perante a urgência, mais imperiosa do que nunca,
de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus.
Vós, cheia da presença de Cristo,
levastes a alegria a João o Baptista,
fazendo-o exultar no seio de sua mãe.
Vós, estremecendo de alegria,
cantastes as maravilhas do Senhor.
Vós, que permanecestes firme diante da Cruz
com uma fé inabalável,
e recebestes a jubilosa consolação da ressurreição,
reunistes os discípulos à espera do Espírito
para que nascesse a Igreja evangelizadora.
Alcançai-nos agora um novo ardor de ressuscitados
para levar a todos o Evangelho da vida
que vence a morte.
Dai-nos a santa ousadia de buscar novos caminhos
para que chegue a todos
o dom da beleza que não se apaga.
Vós, Virgem da escuta e da contemplação,
Mãe do amor, esposa das núpcias eternas
intercedei pela Igreja, da qual sois o ícone puríssimo,
para que ela nunca se feche nem se detenha
na sua paixão por instaurar o Reino.
Estrela da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.
Mãe do Evangelho vivente,
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.
Amém. Aleluia!
10.Referências
ANCILLI, E., Devociones in: ANCILLI, E. (org), Diccionário de Espiritualidad. Barcelona: Herder,
1987, p. 572-574.
29
BEINART, W. (org.), O culto a Maria hoje. São Paulo: Paulus, 1980.
CELAM, Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência do Episcopado
Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Paulinas, 2007.
GAMBERO, L. Culto in: De FIORES, S. et MEO, S. (orgs). Dicionário de Mariologia, São Paulo:
Paulus, 1995, p. 356-369.
MORETTI, R., Devoción in: ANCILLI, E. (org), Diccionário de Espiritualidad. Barcelona: Herder,
1987, p. 567-572.
PAULO VI, Exortação Apostólica Marialis Cultus. Disponível em: http://w2.vatican.va/
content/paul-vi/pt/apost_exhortations/documents/hf_p-vi_exh_19740202_marialiscultus.html (acesso em 11 fev 2016).
UMBRASIL (org.), Maria no coração da Igreja. Múltiplos olhares sobre a Mariologia. São
Paulo: Paulinas, 2011.
VALABEK, R.M. Devoção in: BORRIELLO et al (orgs). Dicionário de mística. São Paulo: LoyolaPaulus, 2003, p. 321-323
30
VELASCO, J.M. Devoção Mariana in: De FIORES, S. et MEO, S. (orgs). Dicionário de Mariologia,
São Paulo: Paulus, 1995, p. 391-408.
Citações, textos literais e resumos do autor (Afonso Murad) em
publicações anteriores
----------, A devoção marial no Brasil contemporâneo. Olhar panorâmico in: Vida Pastoral,
fasc 304, julho-agosto 2015, p. 3-14.
----------, Perfil de Maria numa sociedade plural em: UMBRASIL (org), Maria no coração da
Igreja. Múltiplos olhares sobre a Mariologia. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 18-25.
----------, Maria, toda de Deus e tão humana. Compêndio de Mariologia. São Paulo: Paulinas,
2012, cap. 11 (p.199-223).