Loucura e Cidadania: Avanços e Impasses da Reforma Psiquiátrica

Transcrição

Loucura e Cidadania: Avanços e Impasses da Reforma Psiquiátrica
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE- CCS
INSTITUTO DE ESTUDOS EM SAÚDE COLETIVA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
Loucura e Cidadania:
Avanços e Impasses da Reforma Psiquiátrica
Brasileira
Rodrigo Costa do Nascimento
Rio de Janeiro
2009
Rodrigo Costa do Nascimento
Loucura e Cidadania:
Avanços e Impasses da Reforma Psiquiátrica Brasileira
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Saúde
Coletiva, Instituto de Estudos de Saúde
Coletiva, Universidade Federal do Rio de
Janeiro como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do título de Mestre em Saúde
Coletiva
Orientador: Prof. Dr. Arthur Arruda Leal
Ferreira
Rio de Janeiro
2009
N244 Nascimento, Rodrigo Costa do.
Loucura e cidadania: avanços e impasses da reforma psiquiátrica
brasileira / Rodrigo Costa do Nascimento. - Rio de Janeiro: UFRJ/ Instituto
de Estudos em Saúde Coletiva, 2009.
101 f.; 30 cm.
Orientador: Arthur Arruda Leal Ferreira
Dissertação (Mestrado)-UFRJ/ Instituto de Estudos em Saúde Coletiva,
2009.
Referências: f. 95-101.
1. Saúde mental. 2. Direitos humanos. 3. Reforma psiquiátrica .
4. Cidadania. I. Ferreira, Arthur Arruda Leal. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva. III. Título.
CDD 616.8
Rodrigo Costa do Nascimento
Loucura e Cidadania:
Avanços e Impasses da Reforma Psiquiátrica Brasileira
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Saúde
Coletiva, Instituto de Estudos de Saúde
Coletiva, Universidade Federal do Rio de
Janeiro como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do título de Mestre em Saúde
Coletiva
Aprovada em
___________________________________________________________
Arthur Arruda Ferreira Leal - Orientador
Universidade Federal do Rio de Janeiro
___________________________________________________________
Prof. Dr. Luis Antonio dos Santos Baptista
Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________
Prof. Dr. André Martins Vilar de Carvalho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
AGRADECIMENTOS
Ao meu pai, Jorge, e minha mãe, Madair, pela paciência, apoio e confiança, apesar
das minhas loucuras...
À minha mulher, Amana, pelo amor e pela companhia certa, pelo cotidiano das
conversas, dicas, pequenas tarefas e socorros.
À minha irmã Georgia, pela prontidão e conhecimentos de informática.
À Raquel, pela amizade, apoio, compreensão e pela perspectiva da militância em
Direitos Humanos.
Ao meu orientador pela tranqüilidade e disponibilidade, me acalmando e
reanimando nos momentos de incerteza e caos.
À Heliana Conde, pelas derivas e digressões.
À banca examinadora, compreensiva apesar das dificuldades e imprevistos.
Aos ‘Cancioneiros do IPUB’, pelo aprendizado festivo regado a rock’n’roll.
À Pedro (Dropê) e Douglas, pelo grupo de estudos e pelas loucuras compartilhadas
que acabaram por impulsionar esse ciclo de vida que se materializa hoje nesse presente
trabalho.
NASCIMENTO, Rodrigo Costa do. Loucura e Cidadania: Avanços e Impasses da Reforma
Psiquiátrica Brasileira. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva)Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2009.
RESUMO
O presente trabalho analisa e discute o papel desempenhado pelo conceito de cidadania no
processo da reforma psiquiátrica brasileira a partir da articulação existente entre este
conceito e os novos dispositivos legais e assistenciais dos serviços e ações empreendidas no
campo da saúde mental. Para isso, procura-se evidenciar as principais tendências e
movimentos que forjaram as condições de possibilidade sociais e políticas de emergência e
presentificação do conceito de cidadania como elemento central da legislação e das
políticas públicas voltadas para a organização e estruturação da assistência psiquiátrica
brasileira. Assim, a estratégia metodológica adotada se desenvolve no sentido de realizar
uma contra-história, onde a leitura dos diversos estudos e publicações que discorrem sobre
a história do movimento da reforma psiquiátrica brasileira sustenta a indicação dos pontos
de análise e discussão, tais como a forma como a perspectiva dos direitos humanos e sua
fundamentação universalista incide no arcabouço jurídico-político e técnico assistencial
relacionado ao louco e à psiquiatria de modo geral, redimensionando as bases normativas
da relação estabelecida entre cidadania e loucura, gerando uma forma específica de
exercício e garantia dos direitos, aqui denominada como uma espécie de ‘cidadania cafécom-leite’. Desse modo, embora reconheça no louco a condição de sujeito de direito, novas
formas de tutela são desenvolvidas por conta da especificidade de suas demandas e
reivindicações e do sujeito coletivo que agencia essas transformações – o usuário de
serviços de saúde mental ou portador de transtornos mentais – manter-se vinculado ao
enunciado da doença mental.
PALAVRAS-CHAVE:
HUMANOS
CIDADANIA,
REFORMA
PSIQUIÁTRICA,
DIREITOS
NASCIMENTO, Rodrigo Costa do. Madness and Citizenship: Advances and Problems of
the Brazilian Psychiatric Reform. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Saúde
Coletiva) - Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
ABSTRACT
The present work analyzes and discusses the role played by the concept of citizenship
during the process of the Brazilian psychiatric reform, considering the connections between
this concept and the new legal and assistential aspects of the services and actions developed
in the mental health field. We intended to evidence the principal tendencies and movements
that built the social and political conditions of possibility for the emergence of the concept
of citizenship as a central element for the public policy that organize and structure the
Brazilian psychiatric assistance. In order to do so, our methodology was developed to tell a
counter-history of the movement, where the readings of the different studies and
publications about this process sustains the indication of the topics for analysis and
discussion, as, for example, the way that the perspective of human rights and its
Universalist background influences the juridical policies and the assistential techniques
related to the mentally ill and to the Psychiatry, in general. This resized the normative basis
for the relation established between citizenship and mental illness, creating a new specific
form of practice of the rights, which here we named as a “café au lait citizenship”. So,
although the mentally ill have their condition of subjects of rights recognized, new forms of
custody are developed because of the specificity of their demands and claims, and also
because of the collective subject that drives those changes – clients of the mental health
services or mentally ill people – are still attached to the idea of mental illness.
KEY-WORDS: CITIZENSHIP, PSYCHIATRIC REFORM, HUMAN RIGHTS
SUMÁRIO
9
1. INTRODUÇÃO
2. RELAÇÕES
ENTRE
CIDADANIA,
LOUCURA
E
A 21
CONSTITUIÇÃO DO SABER PSIQUIÁTRICO
2.1 O SURGIMENTO DA CIDADANIA MODERNA
21
2.2 A CONSTITUIÇÃO DO SABER PSIQUIÁTRICO
24
3. DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E REFORMA
31
PSIQUIÁTRICA
3.1 PÓS-GUERRA, DIREITOS HUMANOS E UMA NOVA NOÇÃO DE
31
CIDADANIA
3.2 OS MOVIMENTOS DE REFORMA PSIQUIÁTRICA
42
3.3 O MOVIMENTO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA
45
4. LOUCURA E CIDADANIA: ALIANÇAS, NÓS E PONTOS CEGOS
61
4.1 O UNIVERSAL “CAFÉ-COM-LEITE”
61
4.2 OS NOVOS DIREITOS DOS NOVOS SUJEITOS DE DIREITOS
69
4.2.1 A Lei Federal 10.216 de 2001
69
4.2.2. Novos direitos, programas e ações afirmativas
75
4.3 A JUDICIALIZAÇÃO DO COTIDIANO
77
4.4 OS ANTECEDENTES E RISCOS DOS NOVOS SERVIÇOS
80
5. CONCLUSÃO
87
6. REFERÊNCIAS
95
9
1. INTRODUÇÃO
Sem dúvida, um dos acontecimentos mais marcantes do século XX diz respeito aos
horrores do holocausto e às atrocidades cometidas nos campos de concentração nazistas,
onde prisioneiros de guerra e imensas populações de origens culturais e características
específicas – judeus, homossexuais, ciganos e negros – foram seguidamente submetidas a
maus tratos, torturas e toda sorte de atos de extrema violência. Atos que compreendiam
desde a realização de experiências científicas com seres humanos – tomados como cobaias,
na medida em que eram considerados menos humanos – resultando em mutilações,
deformações e mortes, até a execução de assassinatos em massa com a utilização de
técnicas letais variadas. E na base desse genocídio, o ideal nazi-fascista, com pressupostos
eugênicos de dominação e hierarquização da vida humana, com a adjacente eliminação da
diferença ou, segundo seu prisma, das raças ditas inferiores, fracas, sem valor.
A então derrota militar para os países aliados, e a própria forma como a segunda
guerra mundial encontrou seu desfecho, com o lançamento das bombas atômicas e a
aniquilação total das cidades japonesas de Hiroxima e Nagasaki, geraram uma profunda
discussão acerca da reorganização da vida em sociedade e a criação de leis e parâmetros em
escala planetária que impedissem a repetição dessa tragédia e preservassem as gerações
futuras desse flagelo. Urgia, dos escombros das batalhas, a formulação e implementação de
um sistema normativo internacional e a construção de uma base jurídica e política
consensuada que regulamentasse e evitasse possíveis conflitos futuros de magnitude
semelhante, cuja desenrolar pudesse descambar novamente para uma situação absurda e
inaceitável como essa.
Quando a opinião pública mundial tomou conhecimento das atrocidades praticadas
pelos regimes totalitários, difundiu-se um sentimento de revolta e a convicção de que
qualquer forma de destruição deliberada de um grupo étnico, racial ou religioso, promovida
por autoridades através de instituições governamentais na forma de uma política estatal,
“constituía um crime cuja gravidade superava em muito o elenco tipológico dos delitos
definidos nas diferentes leis nacionais, ou das violações tradicionais dos princípios do
direito internacional” (COMPARATO, 2001).
10
Emerge assim, amplificada por esse clamor popular, a necessidade de reconstrução
do valor dos direitos humanos, tomados como paradigma e referencial ético para orientar e
subsidiar a nova ordem social que se anunciava e impunha.
Dentro dessa perspectiva, reivindicada pelas circunstâncias ditadas por esse
acontecimento e liderada politicamente pelas nações vencedoras da Segunda Guerra
Mundial, se empreende a fundação da Organização das Nações Unidas em 1945 e a
releitura contemporânea do conceito de cidadania e direitos humanos, inicialmente
propostos em 1798, pela Revolução Francesa, na Declaração Universal dos Direitos do
Homem e do Cidadão, e agora atualizada e repactuada na Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948 (PIOVESAN, 2008). Concepção refundada dos direitos
humanos fundamentais, marcada pela afirmação da universalidade e indivisibilidade desses
direitos, tendo como meta principal elevar a condição de pessoa humana como único e
exclusivo requisito para a titularidade da cidadania nas diversas dimensões existentes dos
direitos – civis, políticos, sociais, dentre outras.
Além disso, a denúncia das torturas e atrocidades praticadas nos campos de
concentração, paradigma organizacional dos regimes totalitários (LAFER, 2003),
impulsionaram o questionamento de uma série de instituições moldadas e criadas na aurora
da modernidade, agora comparadas aos mesmos campos de concentração que tanto
envergonharam e mancharam o mundo de sangue e horror.
Dentre esses levantes e questionamentos, estão incluídos os movimentos de reforma
psiquiátrica desenvolvidos ao redor do mundo, que reconfiguraram o modo como se
percebe e articula o saber e prática psiquiátrica. Movimentos estes que se caracterizaram,
de modo geral, por severas críticas e denúncias das improbidades, abusos e contradições
relacionadas ao saber psiquiátrico tradicional e seus correlativos dispositivos disciplinares,
com uma ênfase especial contra os asilos e manicômios, encontrando respaldo e coerência
num mundo marcado pelos horrores da guerra.
Amarante (1995a), seguindo periodização e definição proposta por Birman & Costa
(1994), aponta como os principais movimentos de reforma psiquiátrica: as comunidades
terapêuticas e a psicoterapia institucional, representando críticas que se restringiram a uma
reforma do âmbito asilar; a psiquiatria de setor e a psiquiatria comunitária ou preventiva
11
enquanto uma forma de ampliar e superar as reformulações restritas ao espaço asilar; e, por
fim, a antipsiquiatria, as experiências de Franco Basaglia e a Psiquiatria Democrática
Italiana, como iniciativas que procuraram romper com esses movimentos acima, trazendo
em seu bojo articulações e críticas de cunho social, político e cultural acerca dos
dispositivos institucionais do aparato médico-psiquiátrico, questionando a própria
legitimidade dos seus principais axiomas.
Esse conjunto de movimentos e críticas gerou um extenso campo problemático de
disputas e embates sociais, políticos e epistemológicos, difundindo-se ao redor do mundo e
fundando novos olhares e novos modos de atuação a partir de seu ideário, em cujo escopo
fundamental está uma série de proposições alternativas ao modelo asilar tradicional – cujo
conteúdo se compõe basicamente de propostas de desospitalização e desinstitucionalização
do doente mental.
Desse modo, as diversas proposições concernentes a esse paradigma giravam em
torno da elaboração, produção e implementação de novos modelos e modalidades de
tratamento e abordagem da questão da loucura, ampliando o debate para além dos
tradicionais postulados pertinentes aos axiomas psiquiátricos. Em suas produções e
experiências, procuravam construir um novo olhar para a doença mental, “deslocando-a de
um quadro nosográfico individualizado para a multiplicidade de conexões que a
constituíam: conexões históricas, políticas, familiares, sociais, afetivas, orgânicas”
(SANTOS, 2003, p.118).
Essa ampliação possibilitou que outros saberes, tais como a sociologia, a
antropologia, o direito, fossem progressivamente ganhando espaço e destaque na discussão,
criação e definição de conceitos e premissas que passaram a fundamentar e orientar a
formulação e a execução de políticas públicas, o desenvolvimento de novas técnicas
terapêuticas e a produção científica relacionada ao tema.
No Brasil, a reforma psiquiátrica é um processo que é deflagrado, principalmente,
em fins da década de 1970, tendo como fundamentos uma crítica conjuntural ao subsistema
nacional de saúde mental, aliada a uma crítica estrutural ao saber e às instituições
psiquiátricas clássicas, dentro de toda uma movimentação de transformações políticosociais que caracterizaram a conjuntura de redemocratização (AMARANTE, 1995a). Desse
12
modo, é um processo que se desenvolve em paralelo às mudanças efetuadas no panorama
econômico, político e cultural do país, em um contexto de reivindicações por mudanças
políticas concretas e de proliferação de movimentos sociais.
No caso brasileiro, assim como ao redor do mundo, essas novas perspectivas,
problematizações, questionamentos e objetos de análise subsidiaram a construção de um
novo continente de saberes e práticas sociais e discursivas que passou a legislar, delimitar e
definir múltiplas concepções, iniciativas, ações e reordenamentos da rede de serviços de
saúde mental. Neste contexto, dentre os diversos conceitos trabalhados, emerge
predominantemente a noção de cidadania como elemento central das ações empreendidas
pelo movimento da reforma psiquiátrica brasileira.
Grosso modo, podemos apontar três momentos fundamentais do processo de
reforma, ou, melhor dizendo, três trajetórias, no sentido de “percursos, caminhos que,
muitas vezes, se entrecruzam, se sobrepõem” (AMARANTE, 1995a) sem que configurem
uma periodização estanque nem uma gradação evolutiva, tal como os termos etapas ou
conjunturas poderiam indicar.
Em um primeiro momento, a “trajetória alternativa”, durante os últimos anos da
década de 1970, com uma intensa produção de ações libertárias com relação aos chamados
doentes mentais (NICÁCIO, 2003). Esse momento, especialmente marcado pela conjuntura
de redemocratização do país e da afirmação dos direitos humanos universais, desenvolveuse em consonância com as principais transformações da psiquiatria desenvolvidas nos
Estados Unidos, França, Inglaterra e Itália, e pelos movimentos na área da saúde, onde a
construção do pensamento crítico teve como base conceitual, sobretudo, as obras de
Foucault, Goffman, Castel e Basaglia, dentre outros.
Emerge desse contexto, o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM),
apresentando denúncias e acusações direcionadas ao sistema nacional de assistência
psiquiátrica gerido pelo governo militar, tais como maus tratos, diversos, negligências e
mesmo a prática de torturas no interior dos estabelecimentos hospitalares, além da
ocorrência de fraudes e outras formas de corrupção (AMARANTE, 1995a).
Nesse momento inicial, ancorado por uma crítica e uma efervescência política
diretamente ligada ao questionamento de toda forma de repressão e autoritarismo, e
13
motivada por uma reverberação contundente de suas denúncias em veículos de
comunicação e na opinião pública em geral, o movimento de reforma adotou uma postura
francamente aguerrida e radical, questionando os alicerces que sustentavam o próprio
paradigma psiquiátrico como um todo.
No início dos anos 1980, se empreendeu um novo momento, a chamada “trajetória
sanitarista”, desenvolvida até a realização da I Conferência Nacional de Saúde Mental, em
1987. Ao longo desse período, observamos uma tendência institucionalizante, com a
adoção de uma estratégia de ocupação da burocracia estatal no que se refere aos projetos de
transformação assistencial.
Principalmente por conta da influência e união com o movimento sanitarista – como
indica o próprio nome conferido a esta trajetória – cujo caráter reivindicatório preconizava
a ocupação dos espaços públicos de gestão, suas críticas e propostas se voltaram
prioritariamente para a reestruturação da assistência psiquiátrica prestada, sendo balizadas
por razões de ordem técnica. Estavam, portanto, alinhadas às propostas de releitura do
conceito de cidadania empreendido no contexto nacional dessa época, onde se reivindicava
a proteção social como um dever do Estado e da sociedade como um todo, com a defesa da
universalidade do acesso a serviços de qualidade que garantissem efetivamente o usufruto
pleno dos direitos concernentes à população brasileira. E dentre eles, o direito à saúde
mental.
Desse modo, as propostas desse período se ancoraram mais fortemente em razões de
ordem política, econômica e operacional, vinculadas ao campo da saúde em geral,
agregando as especificidades relacionadas à assistência psiquiátrica. Construiu-se assim
uma nova racionalidade assistencial, onde o modelo asilar passou a ser representado como
um modelo superado, cronificador e inadequado do ponto de vista terapêutico, além de
dispendioso e apresentando distorções em relação ao projeto político nacional que então se
delineava.
Nesse contexto, realizou-se o II Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental em
São Paulo, onde se delineou o início de uma nova direção para o movimento, a partir da
explicitação de um novo campo ético-político como base para o projeto de transformação
da atenção psiquiátrica: o direito de cidadania das pessoas com transtornos mentais
14
(LANCETTI, 1987). Com essa proposição, iniciava-se, naquele período, uma profunda
mudança de ótica na forma de compreender a relação entre loucura, direitos e tutela, que
será aprofundada e problematizada nos anos posteriores, engendrando mudanças
significativas nas dimensões assistencial, jurídica e sociocultural. (NICÁCIO, 2003)
Deu-se início, desde então aos dias de hoje, à “trajetória da desinstitucionalização
ou da desconstrução/invenção” (AMARANTE, 1995a, p.93), quando o processo de reforma
psiquiátrica brasileira procura produzir uma ruptura com os marcos conceituais e com as
estratégias políticas e operativas desenvolvidas e se direciona para a construção de novos
aparatos e novas abordagens dos corpos técnicos e assistenciais que sejam orientados pela
premissa fundamental do respeito à cidadania do doente mental.
Assim, levantando a bandeira ‘Por uma Sociedade sem Manicômios’, o movimento
de reforma passou a se orientar na direção dos objetivos e mudanças propostas por Basaglia
e pela Psiquiatria Democrática Italiana, segundo uma forte negação do modelo de
assistência psiquiátrica tradicional, “incluindo nesta recusa tanto o velho asilo, quanto
novas tutelas sem grades aparentes” (RODRIGUES, 2003, p.45).
Para entendermos melhor esse momento, e a direção tomada pelo movimento de
reforma psiquiátrica, é primordial o entendimento do conceito de processo social complexo,
utilizado por Rotelli, Leonardis & Mauri (2001) para caracterizar a desinstitucionalização
italiana – modelo notoriamente adotado pelo movimento brasileiro – e diferenciá-la da
ocorrida na Europa e nos Estados Unidos que, para ele, reduziu-se, segundo o autor, a uma
mera desospitalização, motivada exclusivamente pela necessidade de racionalização
financeira e administrativa.
Para esses autores, o trabalho de desinstitucionalização psiquiátrica tornou-se, na
Itália, um processo social complexo voltado para a mobilização dos sujeitos sociais
envolvidos, a transformação das relações de poder entre os pacientes e as instituições, a
produção de novas estruturas de Saúde Mental que substituam inteiramente a internação no
Hospital Psiquiátrico (ROTELLI, LEONARDIS & MAURI, 2001, p. 18).
Trocando em miúdos, Amarante (1999) define o conceito de processo social
complexo como um movimento amplo composto de fatores inter-relacionados, onde
podemos destacar quatro campos fundamentais: um campo teórico-conceitual ou
15
epistemológico, empreendendo o trabalho de desconstrução e reconstrução dos principais
conceitos fundantes da psiquiatria, tais como doença mental, alienação, saúde mental,
dentre outros; um campo técnico-assistencial, onde se busca a construção de uma rede de
novos serviços, substitutivos ao modelo terapêutico tradicional; um campo jurídicopolítico, voltado para a revisão das legislações existentes, no que estão relacionadas à
questão psiquiátrica; e um campo sócio-cultural, onde se procura operar uma transformação
do imaginário social da loucura.
Embora a palavra ‘reforma’, de certo modo, não contemple a amplitude almejada
por este processo social complexo – podendo ser associada a mudanças meramente
superficiais – segundo seus proponentes, pretende-se, de modo geral, desinstitucionalizar o
paradigma psiquiátrico, ou seja, reconstruir a complexidade do objeto trabalhado,
desmontando o conceito de doença, retomando o contato com a existência e o sofrimento
do sujeito e sua ligação com o corpo social, não mais para curar, mas para a produção de
vida, de outros variados sentidos, de sociabilidade e de espaços coletivos de convivência
(YASUI, 2006).
Assim, o termo desinstitucionalização aponta para a superação da idéia de um
reformismo simplista, restrito a uma mudança técnica ou administrativa, voltado para uma
mera desospitalização, descortinando um novo e extenso campo de possibilidades e
trazendo consigo diversos novos desafios éticos, teóricos, sociais, institucionais e jurídicos.
Desafios estes que vêm gerado uma série de respostas, avanços e impasses, além de
inúmeras contradições concernentes tanto ao seu campo específico, quanto ao contexto
macro-político nacional, profundamente alterado pela implementação, em meados da
década de 1990, de reformas estruturais de cunho neoliberal.
No entanto, apesar desses avanços, uma questão, central no presente trabalho, se
instala quando pensamos esse processo e nos debruçamos sobre os marcos conceituais e
teóricos que fundamentam as práticas atuais, em especial, a articulação do conceito de
cidadania com esse processo de reforma psiquiátrica brasileira. Articulação esta que traz
em seu âmago a aposta de uma positivação do louco enquanto cidadão e sujeito de direitos,
para além da negatividade imanente ao conceito de doença mental e a imagem de um
indivíduo desprovido das características humanas mais essenciais – sua razão e sua vontade
16
– e por isso excluído da sociedade. Em outros termos, a construção de um outro lugar social
para a loucura (BIRMAN, 1992).
Sem dúvida, na medida em que uma série de direitos de cidadania foram
incorporados ao arcabouço jurídico relacionado à loucura– especialmente a possibilidade de
livre circulação pela cidade – os avanços alcançados pelo processo de reforma alteraram
profundamente o aparato terapêutico e o modelo assistencial psiquiátrico.
Houve o notório desenvolvimento de um processo de substituição gradativa do tipo
de assistência psiquiátrica baseada na internação por outros modelos, caracterizados por
serviços abertos, tais como os CAPS e as residências terapêuticas. O projeto de lei 3.657,
apresentado em 1989, após quase doze anos de tramitação no Congresso Nacional, foi
finalmente aprovado em abril de 2001, dando origem à lei 10.216, cujo conteúdo limita e
submete ao Ministério Público grande parte dos procedimentos relacionados às internações
psiquiátricas.
Porém, dada a normatividade imanente ao conceito de cidadania vivenciado nos
dias de hoje, essa articulação produziu, em suas limitações e contradições, um lugar social
ainda diminuído, e de certa forma, menorizado. Uma cidadania que poderíamos, lançando
mão de uma expressão popular, denominar como uma cidadania ‘café-com-leite’1, especial,
onde viceja ainda a noção de ausência de obra, matriz da incapacidade, da periculosidade,
da irresponsabilidade e de outros aspectos estigmatizantes com que se molda e delineia a
loucura. Uma forma de cidadania, de certo modo, excessivamente passiva e entremeada
com benefícios especiais.
Alguns autores já apontaram para novos problemas relacionados a esse processo
descrito acima como a atenuação do processo de desinstitucionalização que assume ares
reinstitucionalizantes (RODRIGUES, 2003), ou, nas palavras de Amarante uma
“capsização” da reforma onde “se está reduzindo todo o processo social complexo de
reforma psiquiátrica a uma reorganização administrativa e tecnocrática de serviços”
(AMARANTE, 2003, p.62-63). Assim, o que inicialmente pretendia transformar
1
Segundo o Wikipedia: “O café-com-leite também serve de expressão lingüística, uma gíria. É usado para
designar a pessoa que participa de uma ação com neutralidade (não pode dar conselho e não pode ser
aconselhado), somente participando”.
17
radicalmente a relação entre sociedade e loucura, hoje, ao que parece se direciona para uma
clínica modernizada e uma psiquiatria renovada, redimensionada institucionalmente
segundo os parâmetros éticos e morais da atualidade.
Assim, com o intuito de promover a análise e discussão do papel desempenhado
pelo conceito de cidadania no processo de reforma psiquiátrica brasileira, o objeto do
presente trabalho diz respeito à articulação existente entre este conceito – cidadania – e os
novos dispositivos legais e assistenciais dos serviços e ações empreendidas no campo da
saúde mental.
Para construir as bases de entendimento e análise desse processo, iremos remontar a
esse percurso brevemente apresentado acima, buscando, ao mergulhar nos contextos
históricos de cada trajetória apresentada, delinear por trás dos grandes marcos e
acontecimentos que modularam esse processo quais motivações impulsionaram suas
transformações e inovações, suas escolhas e rumos.
Desse modo, procura-se vislumbrar os indícios de porquê e como a articulação com
o conceito de cidadania pôde por um lado, produzir rupturas e avanços indiscutíveis no que
se refere à forma como se trata e pensa a loucura ao longo do tempo, e de outro, criar
impasses e perpetuar certas visões naturalizadas e cristalizadas, erigindo barreiras
aparentemente intransponíveis.
Adotaremos para a análise pretendida no presente trabalho uma perspectiva de
inspiração genealógica, que se desenvolve aqui na forma de uma contra-história. A
genealogia foi inicialmente proposta por Nietzsche, que a empregou no esforço de
desconstrução dos valores da moral e da verdade, tidas então como “verdades
transcendentes que se impunham ao mundo sensível como superiores a este” (MARTINS,
2004). Para ele, essa transcendência atribuída a esses conceitos ocultava aspectos como o
egoísmo, a culpa e de modo geral as disputas políticas que os engendravam e, desse modo,
modulavam formas de dominação.
Desse modo, ao recusar a leitura de formas essenciais, esse método procura
demonstrar o caráter histórico, contextual e mesmo ficcional dessas construções, partindo
da premissa de são regidas pelos valores vigentes na sua época.
18
Partindo da perspectiva foucaultiana, que concebe a formação dos objetos como
uma ação própria da história em seu caráter fortuito e acidental, forjando nessa operação
uma natureza transcendente e essencial para esses objetos, a genealogia se configura como
um exercício de “desconstrução destas ficções de verdades, de propiciar colocar a nu a
construção do que hoje aparece como natural e inevitável” (MARTINS, 2004, 954). Buscase assim apontar os aspectos cristalizadores e perpetuadores das assimetrias e relações de
força que motivam a construção desses objetos e concernem à vida e dos embates próprios
das diversas arenas e campos da existência concreta.
Desse modo, ao nos lançarmos para uma investigação do passado, procuramos
identificar a política da verdade em jogo para cada recorte e contexto estudado, procurando
discernir “o conjunto de procedimentos regrados para a produção, a distribuição e a
circulação de enunciados aos quais se atribui efeitos específicos de poder: o poder de serem
aceitos como verdadeiros” (BRUNI, 1989, p.203).
Ao adotarmos uma estratégia metodológica no sentido de um contra-história, em um
primeiro momento, apresentaremos a história da reforma psiquiátrica tal como é contada
em diversos estudos e publicações que, por seus autores serem, eles mesmo, atores sociais
envolvidos no processo da reforma, assume a feição de relatos históricos ‘oficiais’. Desse
modo, procuraremos apontar novas perspectivas e olhares acerca da reforma psiquiátrica
brasileira através da problematização de alguns elementos desses relatos e sua constante
interação com as vicissitudes e teorias relacionadas ao conceito de cidadania.
Noutras palavras, ao investigarmos o passado recente da reforma psiquiátrica
brasileira e a articulação forjada com o conceito de cidadania, procuraremos indicar o jogo
de forças de transformação e inércia atuantes nesse processo. Do mesmo modo, podemos
perceber como os argumentos e proposições se moldaram em consonância com as formas
de entendimento e com os valores de cada época, assim como os acontecimentos que foram
relevantes nesse itinerário.
Aliás, vale aqui uma breve consideração acerca da forma como o conceito de
acontecimento é aqui adotado, assim como quais dos inúmeros acontecimentos ocorridos
no período serão analisados como diretamente implicados no processo estudado.
19
Lançando mão de uma metáfora trivial, podemos aproximar o conceito de
acontecimento como eventos que, enredados na trama histórica, funcionam como pedras
atiradas na superfície de um lago, onde as ondulações produzidas nessa superfície seriam
tais como as transformações impulsionadas nos diferentes contextos sociais, políticos e
históricos da vida dos homens. Eventos concatenados pelas próprias relações existentes e
reconfigurados segundo a ação de encontros fortuitos do cotidiano, que potencializam a
criação de novos sentidos e novas leituras das diversas dimensões da vida e dos homens.
Dentre esses eventos, a Revolução Francesa do século XVIII é apresentada, no
primeiro capítulo, como marco fundamental da constituição do paradigma psiquiátrico e da
construção do dispositivo asilar como principal instrumento do saber e prática psiquiátrica,
calcado numa condição negativa de cidadania e no enunciado da doença mental.
Posteriormente, já no século XX, analisaremos, no segundo capítulo, como a
eclosão da Segunda Guerra Mundial e os horrores do holocausto se configurou como
mobilizadores de diversas críticas e releituras do conceito de cidadania e dos direitos
humanos. Ainda nesse capítulo, no que se refere ao contexto nacional, veremos como o
movimento de redemocratização possibilitou o surgimento do movimento de reforma
psiquiátrica brasileira, assim como as suas diferentes trajetórias – alternativa, sanitarista e
da desinstitucionalização. Desse modo, procura-se reconstituir o processo que forjou a
articulação com o conceito de cidadania, agenciando as transformações operadas, com
ênfase para a formação e difusão de novos serviços e da revisão legislativa realizada.
Já no terceiro capítulo, a partir do levantamento de três pontos específicos de análise
– a questão da universalidade, a tendência de judicialização das relações sociais e os
antecedentes e riscos relativos aos novos serviços em saúde metal – realizaremos a
problematização do processo de reforma tal como se apresenta nos relatos históricos sobre
o período, assim como a forma como se desenvolveu a convergência entre loucura e
cidadania nos seus novos marcos legais e assistenciais.
Por fim, a título de conclusão, analisaremos os avanços e impasses encontrados no
processo de reforma psiquiátrica brasileira a partir da articulação desta com o conceito de
cidadania, demonstrando, enquanto hipótese central do presente trabalho, que os problemas
enfrentados pelo movimento estão diretamente relacionados a essa mesma articulação. Isso
20
por conta da união entre um conceito com uma grande dimensão positiva, tal como o é a
cidadania, e a loucura, presa ainda nas teias do enunciado da doença mental, agora
redimensionada
em
sofrimento
psíquico
e
existencial,
mas,
ainda
assim,
predominantemente negativa e tutelada pelo saber e prática psiquiátricos.
Assim, se por um lado a aliança entre cidadania e loucura trouxe uma força
libertária incontestável, por outro, evidencia uma carga normativa e jurídica
excessivamente passiva, voltada para o desenvolvimento de ações afirmativas e calcada
numa abordagem negativa – da falta, deficiência ou incapacidade, o que acaba por limitar e
refrear o ímpeto transformador original.
Vale ressaltar ainda que ao longo de toda a dissertação essa relação será discutida,
de maneira que possamos perceber as múltiplas possibilidades de conexão existentes na
história dos conceitos de loucura e cidadania, desnudando ainda os acontecimentos que
produziram, em diferentes contextos, diferentes formas de articulação.
21
2. RELAÇÕES ENTRE CIDADANIA, LOUCURA E A CONSTITUIÇÃO DO
SABER PSIQUIÁTRICO
Para renascer,
e às vezes para nascer,
é preciso morrer,
e ele começou morrendo
(Moacyr Scliar, 2005)
2.1 O SURGIMENTO DA CIDADANIA MODERNA
Um primeiro aspecto a ser analisado quando pensamos nas relações existentes entre
o conceito de cidadania e a loucura diz respeito ao caráter histórico destes conceitos, e em
particular da cidadania, regido principalmente pelo princípio universalista que
fundamentava os ideais revolucionários da França do século XVIII – liberdade, igualdade e
fraternidade.
De modo geral, embora a discussão em torno da temática da cidadania
inevitavelmente trate de alguns elementos similares, como participação política, a questão
da liberdade, a condição de igualdade entre os homens e a disposição e distribuição de uma
série de direitos e deveres que apontam para uma característica intrínseca à civilização
ocidental como um todo, em cada época houve a produção peculiar de práticas, reflexões e
discursos muito distintos sobre esse conceito.
Portanto, não podemos abordar o conceito de cidadania como se encerrasse uma
definição fechada em si, mas sim como um conceito histórico, que varia de sentido no
tempo e no espaço não somente pelas regras que apontam quem é ou não titular da
cidadania, mas, sobretudo, pelos direitos e deveres distintos que caracterizam o cidadão em
cada contexto sócio-político, histórico e cultural a que estão intrinsecamente imbricados.
Todavia, não obstante a inadequação de uma perspectiva linear de análise desse
percurso, para alguns autores, como Jaime Pinsky (2005), ainda que não se possa pensar a
cidadania segundo uma seqüência evolutiva única, de cunho determinista e necessário,
podemos entrever um processo que evolui historicamente segundo uma perspectiva inicial
de ausência de direitos para sua ampliação.
Dito isto, passemos então a rever brevemente algumas vicissitudes e transformações
operadas sobre a forma de conceituação da cidadania através de distintas culturas e
contextos sócio-históricos.
22
O debate em torno das formas e conceituações relacionadas com a cidadania – assim
como o próprio termo – remonta à Antiguidade Clássica, na Roma e Grécia antigas. De
acordo com Roberto DaMatta (1992), a palavra portuguesa ‘cidadania’ deriva do vocábulo
latino ‘civitas’, origem etimológica ainda dos vocábulos ‘cidade’ e ‘civil’, que encontra
como sinônimo grego a ‘polis’.
Podemos apontar a democracia grega como o berço do conceito de cidadania. É na
Grécia Antiga que, pela primeira vez, se pensa na possibilidade da construção de uma
sociedade formada por homens livres e iguais. Entretanto, apesar desse pretenso ideal
igualitário, na vida pública da ‘polis’ grega o conceito de cidadão estava condicionado a
uma visão muito peculiar do ser humano, onde a noção de homens livres excluía de seu
escopo crianças, mulheres, povos bárbaros e escravos. Diante disso, podemos afirmar que o
conceito de cidadania grego era regrado por uma lógica excludente, sendo mais
devidamente relacionado ao usufruto e vivência de poucos do que, visto pelos olhos do
presente, podemos denominar como privilégios de uma minoria.
A análise da cidadania tal como é pensada nos dias atuais está diretamente ligada à
gênese moderna do conceito, cujo marco fundamental remonta às Revoluções Burguesas
dos séculos XVII e XVIII, que culminaram com a Declaração de Independência dos
Estados Unidos da América e, em particular, à Revolução Francesa, lançando as bases para
a compreensão da questão da liberdade individual e da igualdade entre os homens. Esses
eventos romperam o princípio de legitimidade vigente até então, o qual estava baseado na
noção de deveres dos súditos, passando a estruturá-los a partir do que se convencionou
chamar como direitos do cidadão (PINSKY, 2005).
Esse processo de lutas e revoluções é caracterizado basicamente como uma
oposição às normas difusas, indiscriminadas e arbitrárias da sociedade feudal (MANZINICOVRE, 1991). A crise do sistema feudal, a decadência da noção de predestinação
concernente à milenar percepção teológica alimentada pela Igreja Católica Romana e o
questionamento da legitimidade de uma sociedade cuja hierarquia era fundada a partir de
privilégios de nascença impulsionaram uma série de críticas, conflitos e insurreições
(MONDAINI, 2005).
O processo de expansão marítima e a estrutura mercantilista forjaram o surgimento
de uma burguesia economicamente poderosa. A proliferação de medidas monárquicas
23
como a ampliação dos rendimentos advindos da tributação feudal e a criação de novos
impostos e monopólios contribuíram para um ambiente de extrema insatisfação, crescente e
generalizada. O modo de vida aristocrático, marcado pela exaltação do ócio, passou a
incomodar profundamente aqueles que começaram a experimentar um sentimento de
coerção e um engessamento da liberdade, impostos pelas teorias religiosas e filosóficas que
defendiam a existência de uma predestinação divina.
Além disso, o desenvolvimento do saber científico e sua força crítica, aliados a uma
nova ética religiosa disseminada pelo movimento da Reforma Protestante, começam a
inviabilizar uma continuidade absoluta da maneira transcendente de explicar o mundo, o
homem e a história. Novos pressupostos filosóficos passaram ainda a desenvolver a visão
do homem como sujeito do seu destino e não mais como mero objeto de uma razão divina
exterior. Naquele momento, uma consciência histórica foi sendo construída sem ser
exclusiva da intelectualidade e dos grandes pensadores, “mas também da classe ascendente,
a burguesia, que percebe sua importância nas transformações sociopolíticas, econômicas e
mesmo culturais que estão sucedendo” (ODALIA, 2005, p.160).
Todo esse panorama impulsionou a deflagração de uma série de sangrentos e
acirrados conflitos sociais. A burguesia e o povo em geral se unem na luta contra o poder
real, a nobreza e o clero, numa irrupção de processos revolucionários ambientados
principalmente na Europa e na América do Norte. Por meio desses movimentos, promoveuse uma ruptura com a tradicional organização social e política próprio das sociedades
feudais, iniciando-se a construção de uma nova estrutura de sociedade.
A eventual vitória e tomada do poder dessa burguesia revolucionária instituiu um
modelo universal de direitos do homem, baseado nos conceitos de liberdade, igualdade e
fraternidade, a partir do qual a condição de cidadania passou a ser reconhecida social e
politicamente, sendo representada em termos de igualdade perante a lei.
Assim, surgia daí a conceituação de um Estado de Direito, de cunho liberal, regido
por uma contratualidade consensual balizada por documentos e leis, nos quais são
regulamentados e constituídos, aos indivíduos dotados de racionalidade, certo número de
direitos naturais, como o direito à vida, à liberdade e a posse de bens (MONDAINI, 2005).
Desse modo, é na de passagem do feudalismo para a formação dos Estados-nação
que observamos o surgimento da cidadania moderna. Conforme Monteiro (2006, p.26),
24
Esse surgimento ocorreu através de um processo duplo, de fusão e separação (...)
geográfica - com a própria formação dos Estados-nação - e a separação funcional com a criação de instituições independentes, como tribunais e parlamentos. Esse
duplo processo acarretou como conseqüência, que cada uma destas instituições
passassem a seguir um caminho com princípios próprios,e estas passaram a ter um
caráter nacional e especializado, não mais restrito e ligado de forma mais íntima à
vida dos grupos sociais de caráter local.
Grosso modo, é justamente esse específico contexto histórico, de profundas
transformações e efervescência, que produzirá os meios e condições de possibilidade para a
concatenação e articulação da loucura com o enunciado da enfermidade mental e a
construção do saber e prática psiquiátricos.
2.2. A CONSTITUIÇÃO DO SABER PSIQUIÁTRICO
O século XVIII, a partir das inúmeras transformações vivenciadas na Europa e no
mundo em geral, tornou a preocupação com as condições de vida e saúde uma questão de
teor estratégico para o desenvolvimento das nações e o acúmulo de riquezas. Preocupação
esta que repercutiu, notável e especialmente, na forma como era estruturada a assistência
fornecida à – recém definida conceitualmente – população.
O ideal moderno de uma sociedade absolutamente racional, protagonista desse
processo de transformações e ebulição social, inscreveu a medicina em um lugar
estratégico, constituindo-se, segundo Birman (1992, p.80), como
(...) o campo de saber que poderia, pela transformação racional das regularidades
da natureza, possibilitar a constituição de corpos saudáveis e instituir as
condições higiênicas no espaço social [...], de maneira que promovendo a maior
riqueza das nações pela mediação da produção da saúde, poderia organizar
também as condições mais eficazes de sociabilidade que possibilitariam o
exercício pleno da cidadania.
Essas reconfigurações, da sociedade como um todo e do papel social desempenhado
pela medicina, impulsionaram um movimento de reforma dos hospitais, que deveriam se
reorganizar com vistas a passar de lugar de hospedagem, depósito e espera da morte para o
lugar de cessação de doenças, assumindo agora um caráter prioritariamente médico e
terapêutico.
Até então, o hospital se constituía essencialmente como uma instituição de caridade
que tinha como função principal a prestação de assistência aos pobres. Seu objetivo não era
proporcionar a cura, mas, antes, oferecer um ambiente acolhedor para os que aguardavam a
25
morte. Além disso, o médico não era um personagem constante no cenário do hospital. Pelo
contrário, suas visitas eram raras e limitadas.
Segundo Robert Castel (1978), o hospital se constituía ainda como uma espécie de
solução imposta às pessoas que apresentavam costumes e comportamentos percebidos
como inadequados, em um estado de ruptura com a integração social. Na França, as ordens
de internações – lettre-de-cachet – eram estabelecidas pela autoridade real, determinando o
recolhimento em casas de correção ou em hospitais gerais. Esses estabelecimentos
funcionavam como instituições voltadas para a reclusão e abrigo daqueles indivíduos que,
de algum modo, perturbavam a ordem social – loucos, prostitutas, libertinos, doentes,
pobres, ociosos, etc. Conforme o autor, as internações efetuadas nesses estabelecimentos
hospitalares não eram propriamente determinadas pela ocorrência ou irrupção de alguma
doença, mas, sim, por uma prerrogativa moral que justificava a realização dessas
intervenções com o intuito de exercer um controle efetivo sobre a população.
O processo de reestruturação do dispositivo hospitalar em geral foi implementado
na França no final do século XVIII. Em meados de 1780, atendendo à solicitação da
Academia de Ciências, Tenon realizou uma série de viagens-inquérito, desenvolvendo
descrições funcionais dos hospitais visitados. Essas visitas e esse estudo como um todo
tinham como objetivo a coleta de informações para implementação da reestruturação do
Hospital Geral de Paris (FOUCAULT, 2000).
Assim, foram vistoriados e analisados nessas visitas fatores como o número de
doentes, sua localização no espaço hospitalar, a forma de tratamento dispensado, a
dimensão das salas, as taxas de mortalidade e de cura, a rotina das pessoas que ali
trabalhavam e seus hábitos, o percurso realizado pelo material utilizado (roupas, panos,
lençóis), etc. Desta forma, pôde se desenvolver e consolidar um novo olhar sobre o
hospital, atentando para os seus efeitos nocivos e para a cura que deveria proporcionar.
Conforme Foucault (op.cit.), essa reorganização do hospital que possibilitou a sua
medicalização, ocorreu graças ao desenvolvimento de uma tecnologia política específica, a
disciplina. Este conjunto de técnicas e procedimentos caracterizava-se por uma arte de
distribuição espacial dos indivíduos, onde os corpos devem ocupar um espaço previamente
individualizado e classificado; pelo controle exercido sobre o desenvolvimento de uma
ação e não sobre o seu resultado; por uma técnica de poder que requer uma vigilância
26
permanente e constante dos indivíduos; e por um registro contínuo e minucioso de tudo o
que ocorre na instituição.
Neste momento, a prática médica passava, também, por uma série de
transformações. Inicialmente, a reforma e reestruturação dos hospitais eram voltadas para a
anulação de seus efeitos negativos ao ambiente, pois, segundo o modelo das ciências
naturais, a doença era entendida como um fenômeno natural, resultado de uma ação direta
do meio sobre o indivíduo. Diante disso, a intervenção médica deveria ser dirigida para o
meio que circunda e difunde a doença.
Para obter o desejado conhecimento sobre a doença, o médico lançava mão do
modelo epistemológico da botânica, das ciências naturais, conhecido como o método
classificatório de Lineu. Conforme Britto (2004), o emprego deste método de conhecimento
das ciências naturais relacionava-se diretamente com a garantia à medicina de um estatuto
de ciência racional. O método naturalista baseava-se, essencialmente, na observação e na
análise do fenômeno estudado, consistindo em observar, descrever, comparar e classificar
os seus objetos de estudo.
Dentro desse modelo, destacou-se a utilização de alguns princípios, dentre eles, o
isolamento, que significava retirar, separar o que se quer conhecer do meio que pudesse
interferir na sua observação, e o afastamento, que propiciava a separação dos objetos de
conhecimento e seu posterior agrupamento de acordo com as características encontradas,
formando uma classificação.
Desta forma, a presença do médico no hospital, permitiu que as doenças fossem
isoladas, separadas e observadas minuciosamente em seus sinais externos, possibilitando
sua classificação. O hospital passou a ocupar um lugar privilegiado de aprendizado, de
produção e de transmissão de saber, tornando-se ponto central para o estabelecimento e
desenvolvimento de uma medicina clínica que iniciou sua atuação. A organização
hospitalar passou a ser responsabilidade médica e o hospital redimensionado como local de
cura assume o caráter de uma instituição médica por excelência, lugar privilegiado para a
produção e o exercício do saber médico.
Esse processo de reestruturação do dispositivo hospitalar, de certa forma, indicava a
possibilidade de se repensar e reorganizar o espaço destinado aos loucos, sintonizando esse
espaço e a própria abordagem efetuada sobre essa parcela excluída da população com o
27
projeto revolucionário de uma sociedade contratual e da nascente conceituação da
cidadania moderna. Esses movimentos e transformações, associados ao contexto turbulento
e inovador da época, acabaram por criar as condições possíveis para a consolidação de um
olhar médico sobre a loucura.
A
constituição
da
psiquiatria
enquanto
especialidade
médica
ocorreu,
principalmente, com Pinel no final do século XVIII. Desde então, conforme Britto (2004), a
loucura ganhou estatuto de doença mental e a internação psiquiátrica passou a ser
considerada como principal estratégia de tratamento.
Em 1793, Pinel foi nomeado médico-chefe do hospital de Bicêtre, sobre o qual, nos
anos seguintes, operou uma verdadeira reforma, em consonância com o movimento de
reestruturação dos hospitais franceses. Seu mítico gesto de desacorrentar os loucos tornouse um símbolo da criação da psiquiatria e da libertação da loucura, que passou a ser
encerrada na figura da enfermidade mental.
A loucura passou a ser considerada, percebida e definida como doença mental, ou
melhor, dizendo, alienação mental, a saber, um estado no qual se considera que a pessoa
tenha um distúrbio na razão, e, a partir dele, perca o principal elemento de sua constituição
humana. Quando acometida pela alienação, a pessoa tem sua capacidade de julgamento
afetada, estando fora de si, o que acaba por comprometer ainda sua integração social.
Para Pinel, no entanto, seria possível restituir a razão do alienado por meio de um
tratamento moral realizado no interior do asilo. Esse tratamento preconizava o isolamento
do meio social que, segundo a conceituação elaborada, era um fator promotor dessa
alienação e a convivência com uma ordem asilar que consistia na reaprendizagem de
normas, regras e rotinas, determinando de forma rigorosa os lugares de cada um e o
estabelecimento de uma relação de autoridade entre médico e doente.
O asilo passou a ser considerado o local privilegiado para a realização do tratamento
aos loucos, pois detinha os elementos necessários para essa empresa. No asilo, o alienista
obtinha as condições propícias para realizar o isolamento da doença e do doente, observar o
desenvolvimento da doença e, então, classificá-la.
Por um lado, ao analisarmos esse processo de constituição do paradigma
psiquiátrico, a nova conceituação conferida ao processo de seqüestração dos indivíduos
28
loucos somente se tornou possível diante da anterioridade dessa ação excludente e da
existência prévia de uma população asilada.
Nesse sentido, conforme Machado (1981, p.76),
Medicalização da loucura não significa, neste momento anunciador de tão
importantes transformações, importação da teoria médica da loucura no espaço do
internamento; significa, antes de tudo, a reestruturação interna das instituições de
reclusão do louco que, paulatinamente, por um efeito próprio à reorganização de
seu espaço, vai lhes dar uma significação intrinsecamente médica de agente
terapêutico.
Por outro lado, para alguns autores, o tratamento moral e o processo de sequestração
dos loucos forjaram uma vocação ou dimensão inclusiva da psiquiatria onde, conforme
Bezerra Jr. (1992, p.120),
(...) ao invés de signo da exclusão, o asilo refletiria a utopia igualitária dos
revolucionários e a noção disseminada entre eles de que a sociedade e o
ambiente modelam o homem. Daí a necessidade de espaços onde ‘as paredes
fossem terapêuticas’ (Esquirol) e onde a hierarquia, a arquitetura e a disciplina
pudessem servir ao objetivo de resgatar para uma igualdade de fato aqueles que
somente a possuíam como direito.
A partir dessa contradição fundamental, segundo Joel Birman, em um artigo
denominado “A cidadania tresloucada” de 1992, podemos dizer que a constituição do
paradigma psiquiátrico está fundada sobre um paradoxo estrutural. Por conta de sua
alienação fundamental e sua condição enferma, o louco não era reconhecido como “um ser
inscrito nos universos da razão e da vontade, não podendo conseqüentemente ser
representado como um sujeito do contrato social” (BIRMAN, 1992, p. 74).
Ao mesmo tempo, segundo a nova ordem social balizada pelos ideais
revolucionários franceses, sua caracterização patológica indicava a necessidade e, mesmo, a
possibilidade de se promover a devida restauração de sua razão e a correlativa restituição de
sua condição de sujeito através das práticas disciplinares componentes do tratamento moral
proposto por Pinel. Assim, o louco era submetido a um seqüestro asilar justificado por
finalidades terapêuticas, e obrigado a um processo de desalienação e recuperação de sua
condição de sujeito do contrato social.
Conforme Amarante (1995b, p. 491),
(...) o alienado não tinha a possibilidade de gozar da Razão plena, portanto, da
liberdade de escolha. Liberdade de escolha era o pré-requisito da cidadania. E se
29
não era livre não poderia ser cidadão. Ao asilo alienista era devotada a tarefa de
isolar os alienados do meio ao qual se atribuía a causalidade da alienação para, por
meio do tratamento moral, restituir-lhes a Razão, portanto, a Liberdade. No
contexto da Revolução Francesa, com o lema ‘Liberdade, Igualdade e
Fraternidade’, o alienismo veio sugerir uma possível solução para a condição civil
e política dos alienados que não poderiam gozar igualmente dos direitos de
cidadania, mas que, também, para não contradizer aqueles mesmos lemas, não
poderiam ser simplesmente excluídos. O asilo tornou-se então o espaço da cura da
Razão e da Liberdade, da condição precípua do alienado tornar-se sujeito de
direito.
Dentro desse contexto, o poder do médico se efetivava enquanto um princípio
absoluto de dominação e tutela que somente se anularia com a reconquista da autonomia
racional pelo louco. Reconquista essa que dependeria exclusivamente desse mesmo poder
médico para ser reconhecida. Funda-se, dessa forma, o que Foucault (2000, p.127) chamou
de “o direito absoluto da não-loucura sobre a loucura”, materializado na configuração de
um monopólio de competência da psiquiatria sobre os processos de tutela e tratamento,
além da conceituação e indicação do que poderia ser ou não considerado um quadro
patológico.
Desse modo, a constituição do paradigma psiquiátrico consiste numa dupla
operação de silenciamento da loucura: do corpo social, num primeiro momento, a partir da
sequestração asilar; e, posteriormente, do corpo doente, por uma série de coerções físicas e
morais componentes do tratamento moral a que os loucos eram submetidos.
Dessa forma, ao louco não havia o reconhecimento de nenhum saber, sendo, pelo
contrário, estruturado segundo um índice negativo de cidadania e existência. Ao indivíduo
alienado restava a reconstituição de sua positividade segundo uma série de coerções e
constrangimentos que produziriam – ou o reconduziriam – a sua condição humana
condizente com critérios de ordem estritamente racional.
Essa manobra, que repousa na negação da ‘humanidade’ da loucura, legitimava e
reconfigurava o processo de reclusão e exclusão do louco empreendido desde os tempos da
nobreza, em defesa agora de uma nova ordem social, de cunho liberal, contratualista e
racionalizada, instituindo e aprisionando a loucura em um status diferenciado, desprovido
de todos os direitos relacionados ao conceito de cidadania (CASTEL, 1978).
Portanto, a loucura constituía uma forma completamente desprovida de direitos,
configurada pelo que Birman (1992) chamou de “condição negativa de cidadania”. O
estado de alienação mental subentendia a perda da razão e da liberdade, pressupostos do
30
conceito de cidadania liberal então nascente. Na medida em que o tratamento moral
representava a possibilidade de cura do alienado por meio da restituição da razão e
liberdade como efeito direto de um trabalho de reeducação do alienado – segundo um
conjunto de técnicas batizado por Birman (1992) como pedagogia da sociabilidade – a
dimensão inclusiva do aparato psiquiátrico como uma única e reles possibilidade de
reintegração social desses indivíduos doentes, residia na produção de um indivíduo
docilizado, regrado, obediente, disciplinado.
O isolamento se caracterizou como o principal modo de observação dos fenômenos
da loucura, proporcionando condições ótimas para o desenvolvimento da estratégia
metodológica empírico-indutiva e da constituição do paradigma psiquiátrico, tanto do ponto
de vista nosográfico, quanto em suas novas pretensões terapêuticas.
O asilo se constituiu numa espécie de ‘laboratório’, onde se encontravam as
circunstâncias e condições ideais para a observação e generalização dos fatos e fenômenos
relacionados à loucura, mediante uma manipulação radical do meio referido ao espaço
asilar e a objetivação do indivíduo louco como objeto de análise, estudo, classificação e
intervenção corretiva.
31
3. DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA E REFORMA PSIQUIÁTRICA
3.1. PÓS-GUERRA, DIREITOS HUMANOS E UMA NOVA NOÇÃO DE CIDADANIA
Ainda que nosso foco volte-se agora basicamente para o momento pós-segunda
guerra mundial, ou seja, entre 1945 e a década de 1950, devemos antes fazer algumas
considerações sobre a forma com que se revestia e vivenciava o conceito de cidadania ao
longo do período precedente. Considerações estas, que se fazem necessárias, sobretudo para
a compreensão da magnitude e configuração do processo de transformação efetuado, assim
como para ressaltar a relevância dos elementos redimensionados nesse processo.
Apesar do caráter universal preconizado formalmente em documentos importantes
dos séculos XVIII e XIX, a recém instaurada cidadania moderna regia-se ainda por uma
lógica de funcionamento contraditório e, em muitos aspectos, extremamente excludente.
Podemos inclusive dizer que justamente por não funcionar de fato segundo uma dimensão
inclusiva universal – inegavelmente presente na sua definição geral, mas abstrata, vaga e
sujeita a distorções e múltiplas capturas – é que o conceito sofreu uma série de releituras e
ressignificações, motivadas, em sua maioria, pela ocorrência e irrupção de inúmeras lutas e
movimentos de cunho emancipatório que reivindicavam a ampliação e universalização dos
direitos concernentes ao exercício e reconhecimento da cidadania em sua plenitude.
Desse modo, apesar de instituir um documento de teor universal – a Declaração
Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1798 – na então recente Constituição
Francesa foram criadas formas de hierarquização e diferenciação social como critérios para
reconhecimento ou não da condição de cidadania e do correlato usufruto e garantia dos
direitos a ela atrelados.
Conforme Bresciani (1992, p. 194),
Ser proprietário de bens e livre das mazelas do trabalho cotidiano constituíram as
para que um homem ascendesse à condição de cidadania e nela fosse reconhecido
por seus iguais. Essa afirmação fundante da sociedade moderna (...) foi questionada
pelos revolucionários franceses e pelos radicais ingleses no final do século XVIII.
Contudo, a não ser por momentos efêmeros, essa concepção restritiva continuou a
regular as representações diferenciadas dos direitos civis e dos direitos políticos.
Neste sentido, o direito à representação política foi configurado como um direito
exclusivo dos indivíduos que porventura detivessem a condição de proprietários, deixando
32
de fora dos limites e formas de reconhecimento desse direito as mulheres e outros sujeitos,
como escravos e pobres em geral. Aliás, a própria existência e legitimação da escravidão
demonstra o quão contraditório pode ser representado o conceito de cidadania vigente nesse
período histórico. Diante desse paradoxo e dessa manobra da burguesia, “a cidadania
deixou de ser um símbolo da igualdade de todos e a derrubada dos privilégios da nobreza
deu lugar ao aparecimento de uma nova classe de privilegiados” (DALLARI, 1998, p.12).
No entanto, o processo histórico de lutas em torno da ampliação dos direitos
concernentes à noção de cidadania não cessou e até os dias de hoje ainda se faz presente.
Entendendo a cidadania como um conjunto padronizado de direitos que obtém diferentes
formas e sentidos mediante as características de cada contexto histórico específico, as
dimensões formais e práticas da cidadania sofreram variadas transformações e vicissitudes,
as quais foram analisadas sob diferentes prismas por diversos estudiosos.
Um dos autores mais importantes para compreensão do processo histórico de
construção do conceito de cidadania na modernidade, T. H. Marshall, na sua obra clássica
denominada “Cidadania, Classe Social e Status” de 1967, apresenta uma concepção de
cidadania dividida em três partes ou elementos: os direitos civis, políticos e sociais.
O elemento civil, ou direitos civis, dizem respeito aos direitos relacionados com a
liberdade individual e a igualdade perante a lei, ou seja, mais especificamente, liberdade de
ir e vir, liberdade de expressão, imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade privada,
de estabelecer contratos e o direito à justiça.
O elemento político, ou direitos políticos, referem-se à participação no exercício do
poder político, seja como integrante de uma organização investida de autoridade política,
seja como eleitor.
O elemento social se refere a “tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bemestar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e
levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade”
(MARSHALL, 1967, p.63).
Segundo essa perspectiva, a cidadania em sua configuração moderna e burguesa se
desenvolveu a partir da assimilação progressiva desses três tipos de direitos, obedecendo,
necessariamente, a um movimento de luta, reivindicação, conquista, assimilação,
incorporação e proteção legal de cada elemento.
33
Conforme Carvalho (2002 apud OLIVEIRA E ALESSI, 2005, p.193),
A classificação das dimensões de cidadania proposta por Marshall, que se tornou
clássica e que teve por base a história da Inglaterra, pressupõe uma evolução linear,
em forma de pirâmide em que, a partir da base, inicialmente surgem os direitos
civis, em seguida os direitos políticos e, por último, os direitos sociais.
Segundo esse viés, o século XVIII assistiu, portanto, ao desenvolvimento dos
direitos civis, o século XIX, dos direitos políticos, e o século XX se configurou,
especialmente, como palco de lutas em torno dos direitos sociais.
Para Marshall, a cidadania corresponde a um status concedido aos membros
considerados integrais de uma comunidade a qual fazem parte, na qual e pela qual serão
delimitados os alcances e limitações desse status. Dessa maneira, todos aqueles que
possuem esse status são considerados livres e iguais no que tange ao respeito aos direitos e
obrigações a ele vinculados, não existindo nenhum princípio universal que delibere
antecipadamente quais serão esses direitos e obrigações. Cada comunidade, portanto, é que,
conforme seu contexto sócio-político e histórico particular, descreve e pontua os limites
desse exercício e desse reconhecimento.
Desse modo, a história dos direitos civis em seu período de formação se caracteriza
basicamente pela adição gradativa de novos direitos a um status já existente enquanto
medida efetiva de igualdade.
No entanto, esse status de cidadania dizia respeito exclusivamente aos homens
adultos, não incluindo as mulheres e outros estratos populacionais. Além disso, os direitos
relacionados ao exercício e à representação política estavam intrinsecamente ligados à
condição de ‘proprietário’, sendo seu reconhecimento delimitado por um substrato
econômico.
Para Marshall, o desenvolvimento e a ampliação da fruição dos direitos políticos se
deveram à incorporação do status de cidadania ao corpo social como um todo, sendo um
produto derivado da efetivação dos direitos individuais e à liberdade e igualdade
concernentes ao reconhecimento desses direitos civis.
Assim, segundo Marshall (1967, p.69),
34
A história dos direitos políticos difere tanto no tempo como no caráter. O
período de formação começou, como afirmei, no início do século XIX, quando
os direitos civis ligados ao status de liberdade já haviam conquistado substância
suficiente para justificar que se fale de um status geral de cidadania. E, quando
começou, consistiu não na criação de novos direitos para enriquecer o status já
gozado por todos, mas na doação de velhos direitos a novos setores da
população.
Dessa maneira, com a expansão dos direitos políticos, novos segmentos
populacionais passam a ter mais força em suas reivindicações, fortalecendo lutas em torno
dos direitos sociais como meio de construção de uma garantia de igualdade social na forma
de um padrão mínimo de bem-estar econômico e social. Direito à educação, à saúde, à
moradia, ao lazer, dentre outros, são pleiteados pelos setores mais desfavorecidos e por uma
classe trabalhadora organizada.
Seguindo raciocínio desenvolvido por José Murilo de Carvalho (2001) esse caminho
descrito por Marshall não se restringe a um viés meramente cronológico, mas antes
pretende indicar uma lógica de evolução dos direitos e da cidadania. E aí reside, talvez sua
principal limitação.
Para Carvalho, os caminhos para formação da cidadania são distintos, nem sempre
seguindo uma seqüência linear, reta, uniforme, comportando nesses trajetos inumeráveis
desvios, retrocessos, peculiaridades e distinções intrinsecamente relacionados aos
acontecimentos que moldam a história específica de cada Estado-nação. A conformação
social e política de um dado país irá incidir diretamente na forma e no modelo de cidadania
pensado e experimentado por seus integrantes, de maneira que “quando falamos de um
cidadão inglês, ou norte-americano, e de um cidadão brasileiro, não estamos falando
exatamente a mesma coisa” (CARVALHO, 2001, p.12).
Desse modo, a construção da cidadania diz respeito diretamente às relações
específicas travadas entre as pessoas com o Estado e com a nação, e as pessoas se tornavam
cidadãs na medida em que se sentiam integrando e fazendo parte especificamente de uma
nação e de um Estado.
Dentro dessa perspectiva, Marco Mondaini (2005) nos indica uma ordem seqüencial
que obedece, em termos gerais, à lógica evolutiva proposta por Marshall, onde diferentes
formas de Estado foram se constituindo ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX, indicando
diferentes formas de relação dinâmica entre cidadãos, sociedade e aparelho estatal.
35
Em primeiro lugar assistimos à configuração de um Estado liberal, voltado para a
garantia da liberdade civil dos indivíduos e no princípio fundamental da não-interferência
na sua vida privada. Em segundo lugar, o Estado democrático, instrumento voltado para a
realização da igualdade política entre os indivíduos, incentivando, regulamentando e
estendendo as formas legítimas de participação de todos no jogo político. Em terceiro lugar,
o Estado do bem-estar social, voltado para a efetivação da igualdade social entre os
indivíduos, administrando e distribuindo de maneira eqüitativa os recursos materiais, de
maneira a aliviar os obstáculos impostos pelas distâncias econômicas existentes na
sociedade.
No entanto, o mais contundente redimensionamento efetuado sobre o conceito de
cidadania ocorreu em meados do século XX, mais especificamente, no período pós-segunda
guerra mundial. Esse processo foi desencadeado principalmente em resposta aos regimes
totalitários que proliferaram no início do século e, mais especificamente, aos horrores e às
atrocidades cometidas pelo regime nazista. Os Estados totalitários se caracterizaram
basicamente pela supressão das instituições democráticas, fechamento dos sindicatos e
outras instâncias similares de participação política, censura dos meios de comunicação,
proibição de outros partidos políticos e perseguição generalizada aos opositores do regime.
No nazismo, devido ao ideal eugênico que preconizava a superioridade da raça ariana,
ainda assistimos a perseguição de outros grupos minoritários específicos, em especial os
judeus, ciganos e homossexuais.
Em face deste verdadeiro regime de terror então desenvolvido, no qual imperava a
lógica da tirania e do extermínio de determinadas pessoas, então consideradas descartáveis
e inferiores, o totalitarismo nazi-fascista promoveu um verdadeiro massacre, promovendo a
tortura e a disseminação de maus tratos, a realização de diversos experimentos com cobaias
humanas e produzindo a morte de milhares de pessoas em seus campos de concentração e
extermínio, ao que se convencionou chamar de holocausto.
Além disso, o próprio desfecho desse conflito bélico mundial, com o lançamento de
bombas atômicas e a destruição completa das cidades japonesas de Hiroxima e Nagasaki
lançaram um alerta mundial para o poder de destruição alcançado pelo homem.
Segundo Comparato (2001),
36
Ao final da 2ª Guerra Mundial, quando a opinião pública começou a tomar
conhecimento das atrocidades praticadas pelos regimes totalitários, europeus ou
asiáticos, firmou-se a convicção de que a destruição deliberada de um grupo étnico,
racial ou religioso, promovida por autoridades governamentais como política
estatal, constituía um crime, cuja gravidade superava em muito o elenco tipológico
dos delitos definidos nas diferentes leis nacionais, ou das violações tradicionais dos
princípios do direito internacional.
Assim, em face do flagelo da Segunda Guerra Mundial, e da intensa comoção e
mobilização da opinião pública, emerge a necessidade de adoção de um referencial ético
internacional capaz de erigir barreiras, constrangimentos e limites legais que impedissem,
ou, ao menos, minimizassem a repetição daqueles acontecimentos brutais. Dentro dessa
perspectiva, a reconstrução do valor dos direitos humanos é adotada como uma ação capaz
de criar as bases normativas para a regulação das relações internacionais, estabelecendo
orientações e normas supranacionais que pudessem exercer algum controle ou
gerenciamento de possíveis conflitos vindouros, assim como impedir o surgimento ou
perpetuação de regimes totalitários.
O então chamado “Direito Internacional dos Direitos Humanos” emerge, assim, em
meados do século XX, como decorrência direta da Segunda Guerra Mundial e das
atrocidades praticadas pelos regimes totalitários – e em especial, o nazismo da era Hitler – e
à crença de que parte desses horrores poderiam ser prevenidos com a construção e
efetivação de um sistema internacional de proteção dos direitos humanos.
Ao tratar do Direito Internacional dos Direitos Humanos, afirma Richard B. Bilder,
citado por Piovesan (2008, p.20),
O movimento do direito internacional dos direitos humanos é baseado na
concepção de que toda nação tem a obrigação de respeitar os direitos humanos de
seus cidadãos e de que todas as nações e a comunidade internacional têm o direito e
a responsabilidade de protestar, se um Estado não cumprir suas obrigações. O
Direito Internacional dos Direitos Humanos consiste em um sistema de normas
internacionais, procedimentos e instituições desenvolvidas para implementar esta
concepção e promover o respeito dos direitos humanos em todos os países, no
âmbito mundial. (...) Embora a idéia de que os seres humanos têm direitos e
liberdades fundamentais que lhe são inerentes tenha há muito tempo surgido no
pensamento humano, a concepção de que os direitos humanos são objeto próprio de
uma regulação internacional, por sua vez, é bastante recente. (...) Muitos dos
direitos que hoje constam do “Direito Internacional dos Direitos Humanos”
surgiram apenas em 1945, quando, com as implicações do holocausto e de outras
violações de direitos humanos cometidas pelo nazismo, as nações do mundo
decidiram que a promoção de direitos humanos e liberdades fundamentais deve ser
um dos principais propósitos da Organizações das Nações Unidas.
37
Dentro desse bojo, em um processo liderado pelas nações aliadas, vencedoras da
segunda guerra mundial, é fundada a Organização das Nações Unidas (ONU) e assinada a
Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1948. A partir desse
documento, se introduz no contexto mundial a concepção contemporânea dos direitos
humanos, marcada pela reconfiguração do conceito de universalidade e pela inédita
proposição de uma indivisibilidade do conjunto de direitos relacionados ao conceito de
cidadania.
A universalidade proposta diz respeito à extensão universal dos direitos humanos
sob a crença de que a condição de pessoa humana deva ser considerada como único
requisito para sua titularidade, considerando “o ser humano como um ser essencialmente
moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição
humana” (PIOVESAN, 2008, p.21).
Já a noção de indivisibilidade deriva porquanto a garantia dos direitos civis e
políticos passa a ser pensada como condição primordial para a observância e fruição dos
direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Desse modo, quando um desses
direitos é violado, por conseguinte, os demais também o são. Os direitos humanos, segundo
essa perspectiva, passam a compor uma unidade indivisível, interdependente e interrelacionada, diante da conjugação do catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo
de direitos sociais, econômicos e culturais (PIOVESAN, 2008).
A partir da aprovação da Declaração Universal de 1948 e da concepção
contemporânea de direitos humanos introduzida por este documento, começa a se
desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros
tratados internacionais voltados para a proteção dos ditos direitos fundamentais. Os
instrumentos internacionais de proteção invocam um consenso internacional acerca de
temas centrais aos direitos humanos, refletindo, sobretudo, uma mesma consciência ética
contemporânea compartilhada pelos Estados signatários.
Essa concepção inovadora acaba por produzir uma revisão da noção tradicional de
soberania absoluta do Estado, cujo conteúdo e alcance, em tese, passam a sofrer um
processo de relativização, na medida em que são admitidas e indicadas diversas formas de
intervenções no plano nacional, tendo como finalidade e justificativa a proteção dos direitos
humanos. Ou seja, são criadas e instituídas algumas formas de monitoramento e
38
responsabilização internacional dessas nações, quando porventura se julgue que os direitos
humanos foram violados. Além disso, essa nova disposição legal internacional aponta para
a idéia de que o indivíduo deva ter uma série de direitos garantidos e protegidos na esfera
internacional, na condição de Sujeito de Direitos (PIOVESAN, 2008).
Ao lado desse sistema normativo global, vão se desenvolvendo sistemas normativos
regionais de proteção dos direitos – particularmente na Europa, América e África – os quais
buscam efetivar os direitos humanos no plano regional. Desse modo procura-se consolidar
a convivência e complementaridade do sistema global com instrumentos dos sistemas
regionais, cabendo, portanto, ao indivíduo que sofreu violação de direito a escolha do
aparato protetivo mais favorável e acessível.
No que se refere à posição do Brasil em relação ao sistema internacional de proteção
dos direitos humanos, podemos dizer que somente a partir do processo de democratização
do país, deflagrado em 1985, é que o Estado brasileiro passou a ratificar relevantes tratados
internacionais de direitos humanos.
Aliás, de modo geral, podemos inclusive apontar no caso brasileiro algumas
particularidades que indicam uma construção histórica peculiar no que concerne ao
conceito de cidadania. Seguindo o caminho descrito por Britto (2004), podemos, ainda que
superficialmente, perceber no Brasil uma tendência, apontada por Carvalho (2001), inversa
a traçada por Marshall para a experiência inglesa de formação e constituição do conceito de
cidadania.
No caso brasileiro, os direitos sociais tiveram, em linhas gerais, uma maior ênfase,
sendo inicialmente implantados em um contexto de pequena expressão e legitimidade dos
direitos políticos e de um exercício reduzido e limitado dos direitos civis. Embora esse
mesmo autor considere que não há uma única via de construção do processo de cidadania,
nem que essa trajetória brasileira possa ser assim tão simplificada, essa inversão resultou
em diferenças qualitativas importantes na concepção e no exercício nacional da cidadania.
No período compreendido entre os anos de 1889 e 1930, durante a Primeira
República, houve a conquista e produção de importantes transformações na sociedade
brasileira, tais como a abolição da escravidão e a instauração do mercado livre de trabalho.
Os direitos políticos foram ampliados pela Constituição de 1891, com a concessão do
direito de voto a todos, com exceção dos analfabetos, mulheres e soldados. Houve ainda,
39
nesse período, a promulgação de uma série de leis relacionadas à questão trabalhista e à
questão social, que envolveram a participação do Estado. Em 1916 assistiu-se à
promulgação do Código Civil que, segundo Dallari (1987) se apresentou como uma lei de
extrema importância, construída segundo valores burgueses, acabando por, na prática, se
configurar e funcionar como uma constituição.
Posteriormente, o período compreendido entre os anos de 1930 a 1964, teve como
característica principal à expansão e ampliação dos direitos sociais mediante uma maior
intervenção estatal no contexto social, político e econômico de então. As leis sociais
referentes, basicamente, aos direitos dos trabalhadores foram outorgadas pelo Estado que,
assim, procurou regulamentar, delimitar e estabelecer as bases e condições de
funcionamento e contrato da força de trabalho. Diante dessa perspectiva, os direitos do
cidadão foram organizados e regidos por meio de postulados contidos nas legislações
previdenciária, sindical e trabalhista.
Um aspecto interessante a ser assinalado é que o reconhecimento da cidadania
esteve, por muitos anos, diretamente relacionado ao pertencimento a uma categoria
profissional regulamentada em lei, fazendo com que grande parte da população
permanecesse excluída de tal condição. Dessa forma, diversos trabalhadores que exerciam
atividades não reconhecidas em lei não eram considerados cidadãos, não tendo, por conta
disso, acesso aos benefícios deliberados por essas legislações.
Esse modelo de cidadania vinculado ao trabalho é o conceito chave para se
compreender a política econômica e social desenvolvida no país a partir de 1930. Em 1932,
foi instituída a carteira de trabalho, que se tornou o documento oficial de reconhecimento
do cidadão, funcionando, conforme Santos (1979), como uma espécie de ‘certidão de
nascimento cívico’.
Para Santos (1979, p.75), a noção de cidadania no Brasil desse período pode ser
compreendida a partir do conceito de “cidadania regulada”:
Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes encontram-se,
não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação
ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido
por norma legal. (...) são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se
encontram localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas
em lei. A extensão da cidadania se faz, pois, via regulamentação de novas
profissões e/ou ocupações (...) e mediante ampliação do escopo dos direitos
associados a estas profissões.(...) A cidadania está embutida na profissão e os
40
direitos dos cidadãos restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo
produtivo, tal como reconhecido por lei.
Esta forma de reconhecimento e concepção do conceito de cidadania e a legislação
correspondente produziram desigualdades entre os diversos setores e membros da
população: a separação entre os indivíduos considerados profissionais, com profissão
regulamentada, e os não profissionais, categoria composta por grande parte de
trabalhadores brasileiros sem profissão reconhecida em lei. Mesmo dentro da categoria dos
profissionais, pode-se observar a existência de desigualdades referentes à remuneração dos
trabalhadores, à contribuição previdenciária e ao acesso aos benefícios concedidos. Além
disso, como nos mostra Carvalho (2001, p.223), “os benefícios sociais não eram trados
como direitos de todos, mas como fruto da negociação de cada categoria com o governo”.
Em 1934, uma nova constituição promoveu alguns avanços, tal como o direito de
voto estendido às mulheres. O Estado passou a assumir as funções de regulamentação e
parte do financiamento dos Institutos de Aposentadorias e Pensões, desenvolvendo a
previdência social e elevando sua participação em questões relacionadas com a saúde da
população.
Entre os anos de 1945 a 1964 foi restabelecido o sistema democrático. Houve a
restituição de direitos políticos e civis, assim como a reorganização de partidos políticos e a
ampliação dos direito políticos – basicamente o direito de votar – a toda a população
alfabetizada.
Em 1964, com o Golpe Militar, as ações governamentais passaram a ser realizadas
por meio de Atos Institucionais e Leis Complementares. Foi decretado o recesso do
Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores. O Poder
Executivo passou a dominar outras esferas e funções anteriormente relacionadas a outros
poderes. Como conseqüência disso, os partidos políticos foram extintos, os sindicatos
foram fechados, os meios de comunicação passaram a ser controlados, pessoas foram
perseguidas, exiladas, configurando-se um quadro de extrema repressão e coerção,
extremamente violenta, dos indivíduos.
Para Scherer (apud MEDEIROS & GUIMARÃES, 2002, p. 574),
O regime militar caracterizou-se pelo alijamento da sociedade civil, que passa a ser
considerada perigosa aos interesses do bloco no poder e, por isso, tutelada e vigiada
41
pelo Estado. Assim, a ditadura suprime drasticamente a escassa cidadania
conquistada pela classe trabalhadora antes de 1964.
Nesse período, assistimos a uma marcante expansão dos direitos sociais devido a
uma proposta de desenvolvimento e segurança nacionais, onde se ampliou a cobertura da
previdência social e da assistência médica por meio da criação do Instituto Nacional de
Previdência Social.
No final dos anos 1970, período em que o regime militar começou a declinar, houve
a organização e eclosão de diversos movimentos sociais. A revogação do AI-5, a reabertura
dos partidos políticos, a anistia política, dentre outros fatores, contribuíram para o
crescimento da participação popular e para a deflagração de uma intensa movimentação
sócio-política voltada para a reconstrução nacional e para o processo de redemocratização.
Medeiros e Guimarães (2002, p. 574), destacam ainda que:
A emergência de uns e o fortalecimento de outros movimentos se dão a partir de
1976/1977 e apontam na perspectiva de ampliação da cidadania: a luta pelo direito
de posse de terra, pela igualdade entre homem/mulher, contra a discriminação
racial, por direito à creche, pela terra e reservas indígenas, pelo direito de se
exprimir social e politicamente, por uma sociedade sem manicômio e por
participação nas decisões do poder, entre outras questões.
Estes movimentos sociais desempenharam um papel fundamental na reconquista da
democracia e na reafirmação dos direitos sociais, civis e políticos. A elaboração e
promulgação da Constituição de 1988, denominada constituição cidadã porquanto
promoveu a ampliação dos mecanismos de exercício, garantia e proteção aos direitos de
cidadania de toda a população brasileira, figura como um marco desse panorama de lutas e
movimentos sociais, consolidando o processo de redemocratização.
A partir da Constituição de 1988 é que se intensifica a interação e a conjugação do
Direito internacional e do Direito interno, fortalecendo o sistema de proteção dos direitos
fundamentais, segundo o princípio da primazia dos direitos humanos. As inovações
introduzidas pela Carta de 1988 — especialmente no que tange ao primado da prevalência
dos direitos humanos, como princípio orientador das relações internacionais — foram sem
dúvida fundamentais para a ratificação de importantes instrumentos de proteção dos
direitos humanos.
42
Além das inovações constitucionais, como importante fator para a ratificação desses
tratados internacionais, acrescente-se a necessidade do Estado brasileiro de reorganizar sua
agenda internacional, de modo mais condizente com as transformações internas decorrentes
do processo de democratização. Este esforço se conjuga com o objetivo de compor uma
imagem mais positiva do Estado brasileiro no contexto internacional, como país respeitador
e garantidor dos direitos humanos.
Logo, é destacável a relação entre o processo de democratização no Brasil e o
processo de incorporação de relevantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos
humanos. Além disso, se por um lado, o processo de democratização permitiu a ratificação
de relevantes tratados de direitos humanos, por outro, essa ratificação contribuiu do mesmo
modo para o fortalecimento do processo democrático, através da ampliação e da
consolidação do universo de direitos por ele assegurado.
3.2. OS MOVIMENTOS DE REFORMA PSIQUIÁTRICA
No período compreendido entre o término da 2ª Guerra Mundial e o final da década
de 1970, diversos movimentos e tentativas de reforma das instituições psiquiátricas foram
desenvolvidos, tendo como mote central desde uma dinamização da estrutura asilar, a
experimentação de novas modalidades e condições de tratamento que proporcionassem uma
maior eficácia na recuperação dos doentes, até o questionamento mais radical do hospital
psiquiátrico e do saber médico como um todo.
Motivados em grande parte por uma repulsa generalizada contra toda forma de
equipamento institucional que se assemelhasse aos temíveis campos de concentração em
sua lógica operacional centrada no confinamento, na segregação de grupos sociais
específicos e na utilização de práticas a partir de então percebidas como violentas, o asilo
psiquiátrico passa a ser alvo de críticas advindas tanto do próprio campo teórico, quanto de
outros saberes.
Ao mesmo tempo em que algumas dessas críticas denunciavam o alinhamento do
dispositivo asilar com o que se passou a denominar ‘instituições totais’ (GOFFMAN,
1987), por conta de sua estrutura fechada que se assemelhava aos campos de concentração
nazistas, de modo geral, se construiu um consenso acerca da necessidade de uma
reformulação do aparato psiquiátrico, na medida em que o dispositivo asilar não estava
43
cumprindo a sua função de recuperação dos doentes. Muito pelo contrário, longe de se
configurar como um espaço efetivamente terapêutico, o modelo institucional do asilo
psiquiátrico estava sendo justamente responsabilizado pelo agravamento e cronificação das
doenças mentais.
Nesse ínterim, podemos indicar alguns movimentos relevantes para esse processo de
reforma psiquiátrica ao redor do mundo, a saber: Comunidade Terapêutica, Psicoterapia
Institucional, Psiquiatria de Setor, Psiquiatria Comunitária, Antipsiquiatria e Psiquiatria
Democrática Italiana.
As reivindicações e proposições desses diversos movimentos variavam entre
aqueles que procuraram transformar o ambiente hospitalar e o tratamento realizado no
mesmo, outros que tinham como objetivo transferir o local de tratamento e intervenção para
o interior da comunidade e ainda aqueles que intentavam transformar radicalmente as
concepções acerca da loucura.
Grosso modo, podemos fazer a seguinte caracterização desses movimentos
supracitados, agrupando-os conforme divisão apresentada por Amarante (1995a), seguindo
definição proposta por Birman & Costa (1994):
a) Comunidade Terapêutica (Inglaterra) e Psicoterapia Institucional (França).
Ambas correntes reformistas voltavam-se para a recuperação do caráter terapêutico
do hospital psiquiátrico. Pode-se definir a ‘Comunidade Terapêutica’ como uma proposta
de reforma institucional caracterizada pela adoção de medidas administrativas,
democráticas, participativas e coletivas, as quais tinham como objetivo central a
transformação da dinâmica institucional asilar. Procurava ainda chamar a atenção da
sociedade para as péssimas condições vivenciadas pelos pacientes internados nos hospitais
psiquiátricos. A Psicoterapia Institucional considerava que a instituição hospitalar
apresentava características doentias que deveriam ser tratadas para que se desenvolvesse
efetivamente a sua função terapêutica.
b) Psiquiatria de Setor (França) e Psiquiatria Comunitária (EUA).
Estes movimentos propuseram o deslocamento do tratamento para a comunidade. A
psiquiatria de setor, anterior à psicoterapia institucional, apresentou-se como um
movimento de contestação da psiquiatria asilar, desenvolvido no período pós-guerra, na
França. Foi considerado como a matriz da política psiquiátrica francesa desde a década de
44
1960, consistindo basicamente na transferência do atendimento para a comunidade. Já a
Psiquiatria Comunitária surgiu nos Estados Unidos em meio ao contexto da crise do
organicismo mecanicista e desenvolveu-se no cruzamento entre as proposições da
psiquiatria de setor e da socioterapia inglesa. Esse movimento representou a delimitação de
um novo campo de atuação para a psiquiatria, no qual se delineava um novo objeto, a saúde
mental. Sendo também chamada de psiquiatria preventiva, esse enfoque comunitário
procurava estabelecer uma estratégia de intervenção nas causas das doenças mentais,
preconizando a prevenção dessas doenças e a promoção da saúde mental.
c) A Antipsiquiatria (Inglaterra) e a Psiquiatria Democrática Italiana (Itália).
Esses movimentos formularam uma crítica radical à psiquiatria enquanto saber e
prática. A Antipsiquiatria foi desenvolvida inicialmente na Inglaterra na década de 1960 a
partir de um grupo de psiquiatras, dos quais destacam-se Ronald Laing e David Cooper.
Apresentava como principais referências teóricas a Fenomenologia, o Existencialismo, a
obra inicial de Foucault, algumas correntes da sociologia – notadamente, Goffman – e
psiquiatria norte-americanas, a Psicanálise e o Marxismo. Questionou contundentemente o
processo de naturalização da loucura enquanto doença mental. Dessa forma, pretendia
romper com o modelo assistencial vigente e destituir o valor hegemônico do saber
psiquiátrico com relação à loucura. A antipsiquiatria denunciou a cronificação e o caráter
reprodutor das doenças mentais exercido pelo hospital psiquiátrico, procurando estabelecer
formas de diálogo entre loucura e razão, percebendo a loucura como um fenômeno das
relações humanas: a loucura estaria entre os homens e, não, dentro deles. Este movimento
iniciou um processo de ruptura com o saber psiquiátrico moderno.
A Psiquiatria Democrática Italiana foi desenvolvida principalmente por Franco
Basaglia e realizou uma crítica radical ao saber psiquiátrico afirmando a urgência da
revisão das relações sociais a partir das quais o saber médico fundava sua práxis. Em 1971,
Basaglia foi para Trieste onde iniciou a construção e constituição de novas formas de
entender, lidar e tratar a loucura, contra a utilização e perpetuação do aparato manicomial.
Essa empreitada se baseava em uma análise crítica da sociedade e da forma pela qual esta
se relacionava com o sofrimento e a diferença. Basaglia não empreendeu propriamente uma
negação da instituição psiquiátrica e da doença mental, mas sim uma negação do poder que
a sociedade conferia à psiquiatria para que esta isolasse, excluísse e anulasse aqueles
45
indivíduos que se encontravam fora dos limites propostas para a normalidade social. O
trabalho realizado em Trieste acenou para a possibilidade da constituição de uma outra rede
de atenção, capaz de oferecer e produzir novas formas de sociabilidade e subjetividade para
os que se utilizam da assistência psiquiátrica. Essa experiência terminou por preconizar a
destruição do manicômio, o fim da violência e da substituição do dispositivo asilar,
rompendo com as formas instituídas do saber psiquiátrico tradicional.
3.3. O MOVIMENTO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA
Para uma análise e compreensão do contexto histórico e político do processo de
formação e desenvolvimento da reforma psiquiátrica brasileira, devemos, inicialmente,
elucidar o panorama político e algumas transformações sociais efetuadas no país.
Neste sentido, conforme Amarante (1995a, p.87), a reforma psiquiátrica é um
processo que surge no Brasil, principalmente, em fins da década de 1970, tendo como
fundamentos uma crítica conjuntural ao subsistema nacional de saúde mental, aliada a uma
crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas, dentro de toda uma
movimentação de transformações político-sociais que caracterizaram a conjuntura de
redemocratização.
Desse modo, podemos afirmar que o movimento brasileiro de Reforma Psiquiátrica
se desenvolveu e encontrou eco e força no bojo de um processo mais amplo de discussões,
debates e ações políticas voltadas para a redemocratização do país, reivindicando a
conquista e expansão de direitos e uma mudança da relação entre Estado e sociedade civil,
contribuindo para a construção de um projeto político de transformação que se consolidou
como política oficial do Ministério da Saúde ao longo dos anos noventa.
A Reforma Psiquiátrica constituiu-se, de maneira ampla, complexa e autêntica,
como um dos mais atuantes e importantes movimentos sociais brasileiros, na medida em
que seus integrantes e proponentes se configuravam como “‘novos’ sujeitos coletivos no
cenário político em distintas e diferenciadas arenas e espaços que não aqueles
tradicionalmente definidos pela concepção clássica da democracia”, expressando “sintomas
de conflitos presentes na própria sociedade na medida em que se caracterizam por um forte
traço reivindicativo na luta por conquistas na efetivação de demandas sociais” (COHN,
46
2003, p. 11). Para isso, desenvolveu-se implicando centenas de atores no processo de
desconstrução crítica do manicômio, de rupturas conceituais e da invenção de novas
propostas e modelos assistenciais, articulando-se com outros espaços e movimentos para a
sua concretização.
Para efeito de análise histórica do desenvolvimento da reforma psiquiátrica
brasileira, trabalharemos aqui com o conceito de trajetória – já devidamente explicitado no
capítulo introdutório do presente trabalho – apontando a existência de três momentos
característicos desse processo efetuado: uma “trajetória alternativa”, durante os últimos
anos da década de 1970; uma “trajetória sanitarista”, que se desenvolveu a partir do início
dos anos 1980 até a realização da I Conferência Nacional de Saúde Mental, e uma
“trajetória da desinstitucionalização ou da desconstrução/invenção” (AMARANTE, 1995a,
p. 93).
Dito isso, a partir desse referencial teórico-metodológico, apresentaremos uma
síntese das expressões fundamentais de cada trajetória, explicitando seus marcos históricos
‘oficiais’ e os momentos significativos desses percursos de transformação e, em particular,
o quadro teórico-conceitual desenvolvido, indicando em linhas gerais as suas principais
contradições e os diferentes modelos de atenção psiquiátrica e de saúde mental presentes
em cada uma delas.
A trajetória inicial, denominada “alternativa”, caracterizou-se especialmente pela
conjuntura de democratização do país e pela afirmação de direitos humanos universais
(Nicácio, 2003). Segundo Fernando Tenório (2002), desde 1978, tanto a questão da reforma
psiquiátrica brasileira quanto a da assistência à população e a humanização dos serviços já
permeavam as discussões realizadas entre os trabalhadores das unidades de saúde. Esses
debates vieram a culminar num momento conhecido por ‘crise da DINSAM’ (Divisão
Nacional de Saúde Mental) – órgão do Ministério da Saúde responsável pela formulação
das políticas públicas deste subsetor – quando os seus técnicos e demais profissionais da
área passaram a denunciar inúmeras irregularidades e deficiências dos serviços tais como a
falta de mão de obra, a precariedade das condições de trabalho e da assistência prestada,
além de apresentarem críticas relacionadas à cronificação do manicômio e uso do
eletrochoque. Dessa forma, reivindicaram da DINSAM um esforço no sentido da
47
substituição do modelo assistencial, custodial e segregador, por um modelo mais
abrangente de recuperação e ressocialização do usuário dos serviços de saúde mental.
Essa crise, deflagrada a partir da denúncia realizada por três médicos bolsistas do
CPPII (Centro Psiquiátrico Pedro II) mediante registro no livro de ocorrências do plantão
do pronto-socorro das irregularidades da unidade hospitalar, trazendo à tona e a público a
situação trágica e precária existente naquele hospital, culmina na criação do MTSM
(Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental), cujo objetivo era a constituição de um
espaço de luta não institucional.
Segundo Amarante (1995a, p.52), o MTSM configurou-se “em um locus de debate e
encaminhamento de propostas de transformação da assistência psiquiátrica, que aglutina
informações, organiza encontros, reúne trabalhadores em saúde, associações de classe, bem
como entidades e setores mais amplos da sociedade”. Esse movimento, através de diversos
protestos e pressões junto aos órgãos oficiais configurou-se como um novo ator, surgido no
final da década de 1970, que desempenhou durante um longo período o papel principal do
processo de reforma, tanto no que concerne ao aspecto teórico, quanto no que se refere à
organização de novas práticas mais condizentes com o contexto de reformas psiquiátricas
em andamento em todo o mundo.
Dentre as suas ações, o MTSM promoveu um amplo debate público sobre a questão
psiquiátrica, denunciando contundentemente a precariedade e as condições desumanas
vivenciadas no interior dos manicômios, a cronificação dos doentes mentais, as péssimas
condições de trabalho dos profissionais e a mercantilização da loucura caracterizada
basicamente pela privatização da assistência psiquiátrica efetuada por parte da Previdência
Social (NICÁCIO, 2003).
As práticas violentas e degradantes disseminadas no interior das instituições
psiquiátricas foram apresentadas à sociedade civil, sendo veiculadas pelos meios de
comunicação cenas que denunciavam as péssimas condições dos grandes manicômios
brasileiros, tais como o Juqueri, no Estado de São Paulo, a Colônia Juliano Moreira, no
Estado do Rio de Janeiro, e o Hospital de Barbacena, no Estado de Minas Gerais. Essas
denúncias engendraram uma ampla mobilização em prol da humanização dos hospitais
psiquiátricos, públicos e privados, alguns dos quais largamente identificados como
similares aos campos de concentração (VASCONCELOS, 2004).
48
Esse período foi marcado ainda por profundos questionamentos acerca dos saberes e
das práticas psiquiátricas, fundamentando a construção do pensamento crítico, a partir,
sobretudo, do contato com as obras de Foucault, Goffman, Castel e Basaglia. Em 1978, a
visita de alguns desses autores ao Rio de Janeiro propiciou a criação de um intercâmbio
com a ‘Rede de Alternativas à Psiquiatria’, movimento internacional de crítica às
instituições psiquiátricas, fundado em 1975 em Bruxelas (NICÁCIO, 2003).
Um dos momentos mais significativos desse período diz respeito à vinda de Franco
Basaglia ao Brasil no ano de 1979. Essa visita, que fora organizada pela Associação
Mineira de Psiquiatria, pelo Instituto de Psiquiatria Social de Diadema e pela Sociedade de
Psicodrama de São Paulo, possibilitou a realização de intensos debates, conferências
abertas ao público, e diversos eventos realizados em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas
Gerais.
Nessas conferências, Basaglia apresentou a Lei 180, promulgada na Itália em 1978,
produto direto do movimento de transformação da psiquiatria efetuada naquele país, ao
mesmo tempo em que demarcava o significado, os avanços alcançados, as proposições e os
limites dessa nova legislação em vigor. Narrou ainda as experiências realizadas em Gorizia
e Trieste, expondo sua visão acerca da função social da psiquiatria articulada à
racionalidade da organização social, de suas estruturas de poder e das instituições. Desse
modo, desenvolveu uma forma inovadora de tratar e pensar a questão psiquiátrica,
afirmando o caráter fundamental da superação do dispositivo manicomial, questionando o
papel dos técnicos enquanto delegados da ordem social e agentes da exclusão, incentivando
ainda a produção de novos modos de lidar com a experiência da loucura (NICÁCIO, 2003).
Durante sua permanência em Minas Gerais, Basaglia, visitou vários hospitais
psiquiátricos e, particularmente impressionado com as condições encontradas no
manicômio de Barbacena, denunciou à imprensa a situação de violência sob a qual se
encontravam submetidas as pessoas internadas, fato que se constituía em uma grave
violação dos direitos humanos. Essas denúncias produziram uma grande repercussão na
mídia e junto à opinião pública, intensificando as discussões, potencializando e ampliando
o processo de mobilização e a participação de trabalhadores e de outras instituições.
Segundo Nicácio (2003, p.39)
49
As chamadas “conferências brasileiras” de Basaglia indicaram um caminho que,
pela primeira vez, não era o da modernização ou de aggiornamento da psiquiatria
(NICÁCIO et al., 2000). Os debates sobre a assistência psiquiátrica romperam os
limites do espaço técnico e configuraram a questão da loucura e das instituições
psiquiátricas como uma questão social.
Desse modo, esse período foi especialmente marcado por uma forte adesão e
sensibilização da opinião pública com a difusão de denúncias e cenas chocantes do interior
dos asilos pelos principais meios de comunicação do país. Prova disso foi a produção do
primeiro documentário brasileiro sobre os asilos psiquiátricos, “Em nome da Razão”, do
cineasta Helvécio Ratton, apresentado em novembro de 1979, no III Congresso Mineiro de
Psiquiatria.
O segundo momento do processo da reforma psiquiátrica brasileira, a chamada
“trajetória sanitarista”, surge a partir da década de 1980. Uma característica marcante desse
período diz respeito à presença de atores dos setores progressistas no aparelho do Estado,
não apenas da área de saúde mental, mas, também, do campo global da saúde.
O período compreendido entre o final da década de 1970 e o início da década de
1980, no contexto geral brasileiro, despontou como uma época de inúmeras e profundas
transformações, cujas mudanças vieram determinar os rumos das políticas públicas de
saúde. Por conta dessas transformações, a assistência oferecida à população nos serviços de
saúde foi em certo ponto deteriorando-se. Isso porque, embora se tratasse de uma época
marcada por notáveis avanços tecnológicos, ao mesmo tempo os programas sociais e de
saúde sofreram cortes progressivos que afetaram diretamente as condições de saúde da
grande massa da população brasileira.
No que diz respeito ao setor de saúde mental, o quadro existente não diferia desse
relatado acima. Como vimos acima, o modelo hospitalocêntrico de asilos e colônias era
predominante e a assistência prestada, principalmente pela rede privada, cuja principal
fonte de financiamento se caracterizava por repasses efetuados pelo Estado, constituindo
uma situação de mercantilização da loucura.
Diante desse quadro de falência do modelo assistencial, assistiu-se a uma perda
gradativa tanto da resolutividade, quanto da eficiência e da qualidade dos serviços
prestados pela previdência social, tendo como resultado a elaboração das primeiras
50
tentativas direcionadas no sentido de alterar a precariedade do quadro vigente da saúde no
Brasil.
Ao lado dessa precária situação da saúde, nessa mesma época, o país apresentava
intensos movimentos de crítica e de forte resistência ao regime ditatorial em que se
encontrava mergulhado. Foi justamente contra este estado autoritário que se dirigiram as
formulações críticas de vários setores da sociedade. Um movimento de destaque foi o
movimento pela Reforma Sanitária – de onde, aliás, deriva a denominação ‘trajetória
sanitarista’ – que objetivava produzir uma reforma nas políticas e práticas de saúde que
vigoravam no país, tendo em vista a possibilidade de obtenção efetiva da assistência e dos
serviços relacionados à saúde por toda a população brasileira.
Segundo Yasui (2006, p.25), a Reforma Sanitária se constituía
fundamentalmente como um processo político, entendido como possibilidade
emancipatória na construção da polis, da esfera pública, dos bens comuns. Processo
que implicava em produção intelectual crítica, práticas e ações alternativas ao
modelo hegemônico, militância cotidiana, ocupação de espaços institucionais,
articulações com outros setores da sociedade, ocupação de espaços no interior do
aparato estatal, avanços e recuos. Um processo político colocando em cena e em
pauta a relação entre Estado e sociedade civil. A Reforma Sanitária se constituiu
tensionando criticamente os termos desta relação.
Desse modo, incidindo diretamente no âmbito das políticas públicas de saúde,
observam-se algumas propostas de mudança no sistema de assistência. No início dos anos
1980, uma nova modalidade de convênio denominada ‘co-gestão’, prevê a colaboração do
Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) no custeio, planejamento e
avaliação das unidades hospitalares do Ministério da Saúde (MS). Dessa forma o MPAS
deixa de comprar serviços do MS, segundo os mesmos moldes realizados com o setor
privado, passando a participar da administração global do projeto institucional da unidade
co-gerida. Assim, neste contexto, no ano de 1981, foi criado o CONASP (Conselho
Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária), órgão que contava com a
participação não paritária de representantes governamentais, patronais, universitários, da
área médica e dos trabalhadores. O CONASP tinha como objetivos propor normas mais
adequadas para a prestação da assistência à saúde da população, para a alocação de recursos
financeiros e também buscava propor medidas de avaliação e de controle do sistema de
assistência médica. Segundo Amarante (1995, p. 66), “o CONASP apresenta um plano
51
geral para a saúde previdenciária, um para a saúde oral e um outro para a assistência
psiquiátrica”. Para tanto o CONASP lançou o ‘Plano de Reorientação da Assistência à
Saúde’, no âmbito da Previdência Social, objetivando uma melhoria da qualidade da
assistência prestada e também a humanização dos atendimentos e um maior acesso das
populações rurais e urbanas aos serviços de saúde. Priorizava, dessa maneira, ações básicas
de saúde, com uma ênfase direcionada ao atendimento ambulatorial. Além disso, buscava
utilizar a capacidade ociosa do setor público, evitando, dessa forma, a contratação dos
serviços privados.
A criação do CONASP e a posterior e conseqüente promulgação do seu ‘plano’,
podem ser aqui entendidas como uma ampliação a nível nacional tanto da experiência
desenvolvida a partir da co-gestão como também algumas experiências localizadas em
municípios ou regiões centradas nos princípios da integração, hierarquização,
regionalização e descentralização do sistema de saúde e da rede assistencial, visando sua
unificação.
O plano para a assistência psiquiátrica data de agosto de 1982, ficando conhecido
como ‘plano do CONASP’. Como derivação deste plano, neste mesmo ano, foi aprovado o
Programa de Reorientação Psiquiátrica Previdenciária, que tinha como objetivos a reforma
da assistência psiquiátrica no país, a melhoria das condições de internação, o
desenvolvimento de uma rede ambulatorial e a incrementação de novas formas
intermediárias de assistência psiquiátrica (hospital-dia, hospital-noite, pensão protegida,
etc.). Em 1983 foram implementados pelo CONASP dois grandes projetos: o programa de
racionalização das contas hospitalares, com a introdução da Autorização de Internação
Hospitalar (AIH) e o programa de Ações Integradas de Saúde (AIS). Segundo afirma
Amarante (1995, p. 92), “o plano do CONASP desdobra-se nas Ações Integradas em
Saúde, em 1985, que constituem os Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde
(SUDS), preparando o terreno para a confecção do Sistema Único de Saúde (SUS) hoje
impresso na Constituição”. Neste mesmo ano, na área de saúde mental, estas mesmas
diretrizes passam a nortear a prática da DINSAM.
Dentro desse movimento de críticas e contestações, e mesmo com o confronto e
embate de forças entre o MTSM e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em 1986
52
ocorreu a VIII Conferência Nacional de Saúde, onde foram definidas as bases do projeto de
Reforma Sanitária Brasileira, tendo, pela primeira vez, a convocação de entidades
representativas da sociedade civil nos debates, com uma participação efetiva na discussão
dos programas do governo, assim como na formulação das políticas públicas de saúde.
A partir de uma estratégia voltada para a ocupação da burocracia estatal, foram
realizadas algumas iniciativas de mudança na assistência psiquiátrica em alguns Estados,
sendo em geral programas coordenados por integrantes do MTSM. As políticas desse
período buscaram formular e operar modelos e propostas progressistas de intervenção, com
ênfase nas orientações de cunho preventivistas e comunitárias, difundidas então pela
Organização Panamericana da Saúde - OPAS.
No Estado de São Paulo, as diretrizes da política de saúde mental implementada no
período compreendido entre os anos de 1982 a 1986 preconizavam a construção de uma
rede de atenção em saúde mental que pudesse significar uma alternativa ao modelo asilar
vigente. Seguindo essa orientação, foram priorizadas a criação de serviços extrahospitalares, a configuração e adoção de equipes multiprofissionais e, em particular, a
ampliação e o redimensionamento dos serviços ambulatoriais voltados para a saúde mental
(Nicácio, 2003).
Ao longo do processo de implementação dessa política, foram desenvolvidas várias
experiências voltadas basicamente para a inserção das pessoas diagnosticadas com
transtornos mentais graves no atendimento ambulatorial, para a diversificação dos
atendimentos e para a redução do tempo de internação hospitalar. Por outro lado,
emergiram diversos conflitos e contradições, dentre os quais podemos indicar aqueles
relativos à prática assistencial, à formação dos profissionais, às finalidades da própria
proposta e ao contexto no qual se inscrevia (op.cit.).
A posterior análise dessas experiências e dos limites e impasses encontrados nesse
esforço para se solidificar e concretizar uma alternativa real ao asilamento psiquiátrico
constituiu a base fundamental para a reflexão crítica da política de saúde mental no Estado
de São Paulo e do modelo assistencial proposto, gerando uma série de debates organizados
por integrantes do Movimento, então reunidos na Plenária de Trabalhadores em Saúde
Mental (op. cit.).
53
Em 1987, em um cenário marcado por um conjunto de embates e disputas, foi
convocada a I Conferência Nacional de Saúde Mental, estruturada segundo três temas
centrais: “Economia, Sociedade e Estado: impactos sobre a saúde e doença mental; reforma
sanitária e reorganização da assistência à saúde mental; e cidadania e doença mental:
direitos, deveres e legislação do doente mental” (BRASIL, 1988).
Desde o processo de convocação e ao longo da realização dessa Conferência foram
especialmente marcantes os diversos conflitos evidenciados entre os participantes,
revelando a presença de posições diferentes. Essas divergências evidenciaram-se tanto na
própria coordenação do processo da Conferência quanto com relação ao projeto pretendido
para a mudança da assistência psiquiátrica (Amarante, 1995a). Dentre as recomendações
apresentadas no Relatório Final da I Conferência podemos ressaltar: “a prioridade da
participação da população no planejamento e na implementação dos programas de saúde
mental e a necessidade de construção de serviços extra-hospitalares” (BRASIL, 1988).
Parte do MTSM desenvolve uma crítica aguda à burocratização efetuada na
trajetória sanitarista, quando o movimento priorizou desenvolver suas proposições do
interior do aparelho de Estado e centrava suas ações e esforços no sentido de obter um
maior controle e humanização dos hospitais psiquiátricos, assim como com a difusão de
serviços ambulatoriais. Além disso, dentre as principais críticas e limitações do modelo
sanitarista em relação com a reforma psiquiátrica desenvolvida, podemos indicar, conforme
Vasconcelos (2004) a percepção do seu caráter excessivamente
estrutural, na medida que centra as possibilidades de mudança apenas nas macroestruturas econômica, institucional e política do campo em foco, sem interferir no
próprio processo interno de produção dos serviços, ou no ato de saúde propriamente
dito; tecnicista/burocrática, como se os diferentes técnicos e instrumentos de
planejamento, vigilância epidemiológica, sistema de referência e contra-referência,
fossem suficientes para implementar e garantir a mudança; fordista, ou seja, visando
uma produção em massa de serviços de forma padronizada, não flexível e não
preocupada com as especificidades dos diversos grupos da clientela dos serviços e
com a dimensão de singularidade humana do sofrimento psíquico.
Além disso, as experiências de transformação da assistência psiquiátrica, com uma
ênfase particular na atenção ambulatorial e nos hospitais psiquiátricos, desenvolvidas na
década de 1980, produziram um conjunto de contradições que expressavam a distância
entre os princípios norteadores adotados e as práticas concretas. Surgem propostas de
redirecionamento e criação de novos dispositivos e modalidades de atendimento, cujas
54
bases teóricas tornam necessário a invenção de novas formas de responder a estas questões.
A reforma psiquiátrica passa a ter como objetivo a procura por um meio de aproximar-se e
ir de encontro às pessoas e às comunidades, enquanto a “tradição sanitarista fala muito
pouco sobre pessoas e muito de números, de populações, sem conseguir escutar as diversas
singularidades a respeito do sujeito que sofre” (AMARANTE, 1995a, p.94).
Diante disso, essa ala propõe uma revisão dos objetivos estratégicos, e se re-molda
segundo uma clara inspiração no modelo proposto por Basaglia e pelo movimento da
Psiquiatria Democrática Italiana, apontando como interesse central das ações desenvolvidas
a ruptura radical com o dispositivo asilar como dispositivo terapêutico, lutando pela
implantação de serviços que fossem efetivamente substitutivos ao hospital psiquiátrico.
Desse modo, esse campo conflituoso das diversas reflexões presentes na
demarcação do final do período da ‘trajetória sanitarista’ foi, ao mesmo tempo, o terreno de
construção do início da chamada ‘trajetória da desinstitucionalização’. As contradições
evidenciadas pelas experiências que pretendiam constituir alternativas ao modelo
hegemônico clássico da psiquiatria apontavam ainda para uma crítica ao modelo
preventivista-comunitário, um marco teórico que fundamentava as proposições de reforma
em sua aspiração sanitarista.
Segundo Amarante, (1995b, p. 493-494)
Desinstitucionalização significa tratar o sujeito em sua existência e em relação com
suas condições concretas de vida. Isto significa não administrar-lhe apenas
fármacos ou psicoterapias, mas construir possibilidades. O tratamento deixa de ser
a exclusão em espaços de violência e mortificação para tornar-se criação de
possibilidades concretas de sociabilidade a subjetividade. O doente, antes excluído
do mundo dos direitos e da cidadania, deve tornar-se um sujeito, e não um objeto
do saber psiquiátrico. A desinstitucionalização é este processo, não apenas técnico,
administrativo, jurídico, legislativo ou político; é, acima de tudo, um processo
ético, de reconhecimento de uma prática que introduz novos sujeitos de direito e
novos direitos para os sujeitos. De uma prática que reconhece, inclusive, o direito
das pessoas mentalmente enfermas em terem um tratamento efetivo, em receberem
um cuidado verdadeiro, uma terapêutica cidadã, não um cativeiro. Sendo uma
questão de base ética, o futuro da reforma psiquiátrica não está apenas no sucesso
terapêutico-assistencial das novas tecnologias de cuidado ou dos novos serviços,
mas na escolha da sociedade brasileira, da forma como vai lidar com os seus
diferentes, com suas minorias, com os sujeitos em desvantagem social.
55
Desse modo, a crítica ao saber psiquiátrico se voltou para o conjunto das questões
sociais, tendo como eixo condutor os temas da exclusão social e a cidadania. Fortemente
calcadas no marco teórico-conceitual concernente à noção de desinstitucionalização, as
discussões realizadas neste período apontaram para uma ruptura com as trajetórias até então
desenvolvidas. Foram assim delineadas novas idéias e pressupostos tais como a
desconstrução do manicômio, a construção da cidadania e o direito à diversidade.
O manicômio passou a ser pensado como uma lógica que transcende o próprio
hospital, uma maneira específica de definição e compreensão da loucura. Segundo esse
prisma, urgia a construção de um processo de transformação radical das instituições
psiquiátricas e do rompimento com a leitura reducionista geralmente adotada na análise da
loucura e da doença mental.
A Reforma Psiquiátrica começa a se articular na forma de um processo social
complexo, conceito formulado por Rotelli, Leonardis & Mauri (2001), e utilizado para
caracterizar a desinstitucionalização italiana em oposição aos processos desenvolvidos em
outros países da Europa e nos Estados Unidos, os quais, segundo ele, acabaram reduzindose a uma mera desospitalização, motivada basicamente por uma necessidade de
racionalização financeira e administrativa. Processo social complexo que abrange quatro
dimensões essenciais: dimensão teórico-conceitual ou epistemológica, técnico-assistencial,
jurídico-política e sócio-cultural, que se articulam visando reconstruir a complexidade do
objeto, desmontar o conceito de doença, retomar o contato com a existência e o sofrimento
do sujeito e sua ligação com o corpo social, não mais para curar, mas para a produção de
vida, de sentidos, de sociabilidade e de espaços coletivos de convivência.
Desse modo, a I Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), realizada em
1987, conforme Amarante (1995a, p. 93-94)
marca o fim da trajetória sanitarista e o início de uma outra: a trajetória da
desinstitucionalização ou da desconstrução/invenção. Aqui é tomada a decisão de
realizar o II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, em Bauru,
em dezembro do mesmo ano, quando é construído o lema ‘por uma sociedade sem
manicômios’. É nesta trajetória que surge o Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS), em São Paulo, que é feita a intervenção na Casa de Saúde Anchieta, em
Santos, com a posterior criação de Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) ou
que surge o Projeto de Lei 3.657/89. Nesta trajetória, passa-se a construir um novo
projeto de saúde mental para o País.
56
O II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, em Bauru, em
dezembro de 1987, figura como um evento marcante nesse processo de reformulação dos
rumos tomados pelo movimento, contando com a presença de lideranças municipais,
técnicos, usuários, familiares, estudantes e muitas outras pessoas, em um clima de muita
vitalidade e participação. Esse evento marca o início de uma nova discussão e da
explicitação de um campo ético-político específico para o projeto de transformação da
atenção psiquiátrica, voltada especialmente para os direitos de cidadania das pessoas com
transtornos mentais Com essa proposição, iniciava-se, naquele período, uma profunda
mudança na forma de compreender a relação entre loucura, direitos e tutela, cujo conteúdo
será aprofundado e problematizado nos anos posteriores, promovendo mudanças
significativas nas dimensões assistencial, jurídica e sociocultural.
Seu encerramento foi marcado por uma passeata pelas ruas de Bauru, onde mais de
trezentas pessoas reivindicaram a extinção dos manicômios. O Manifesto de Bauru,
documento aprovado na plenária e distribuído no dia da passeata, registrou o nascimento de
um novo movimento: o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, cujas idéias foram
assim expressas:
Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agentes da exclusão e
da violência institucionalizadas, que desrespeita os mínimos direitos da pessoa
humana, inauguramos um novo compromisso. Temos claro que não basta
racionalizar e modernizar os serviços nos quais trabalhamos. O Estado que gerencia
tais serviços é o mesmo que impõe e sustenta os mecanismos de exploração e de
produção social da loucura e da violência. O compromisso estabelecido pela luta
antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a classe
trabalhadora organizada. O Manicômio é a expressão de uma estrutura, presente
nos diversos mecanismos de opressão deste tipo de sociedade. A opressão nas
fábricas, nas instituições de menores, nos cárceres, a discriminação contra os
negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos
doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus
direitos mínimos, à saúde, justiça e melhores condições de vida (Manifesto de
Bauru apud Conselho Regional de Psicologia, 1997, p.93)
A partir deste evento, este nascente movimento, que representa, em linhas gerais, a
face mais politicamente ativa da Reforma Psiquiátrica, difundiu-se nacionalmente,
organizando-se em vários estados.
Segundo Yasui (2006, p.40)
57
Uma importante característica desse movimento é a de existir como um
movimento, sem se tornar uma instituição, não há uma sede, ficha de inscrição ou
rituais de filiação. Existe como uma utopia ativa, prenha de desejos e ideais de
transformação, e como materialidade na prática cotidiana de profissionais,
familiares, usuários e tantos outros que se identificam com seu ideário. É,
fundamentalmente, um dispositivo social que congrega e articula pessoas,
trabalhos, lugares.
Ainda no final dos anos oitenta, vemos surgir um novo e importante ator na
construção de novas possibilidades de atenção e cuidados e na luta pela transformação da
assistência em saúde mental: as associações de usuários e familiares. Além da pioneira
SOSINTRA do Rio de Janeiro, criada em 1978, e do Grupo Loucos Pela Vida do Juqueri,
foram organizadas a Associação Franco Basaglia - SP, a Associação Franco Rotelli Santos, o SOS Saúde Mental, dentre outras.
Vemos a difusão de novas estratégias de ação, com um viés cultural distinto, voltada
para a organização de festas e eventos sociais e políticos nas comunidades, construindo
uma possibilidade de diálogo até então inédita, em grande parte por conta da participação
majoritária de trabalhadores, técnicos e técnicas em saúde mental.
No final dos anos 1980, o Brasil vivia um novo panorama, bem diferente daquele
vivenciado na década de 1970. A eleição direta para presidência da República, uma nova
Constituição, a perspectiva e uma viabilidade palpável de construção de uma nação mais
soberana e democrática. No campo da saúde, a mobilização existente mantinha-se em torno
do processo de institucionalização da Reforma Sanitária. No campo da saúde mental, de
uma situação inicial em que havia apenas o modelo do hospital psiquiátrico como
dispositivo de cuidado e assistência, encontramos no raiar dos anos 1990 o
desenvolvimento de algumas importantes experiências municipais. Essas experiências
denotavam duas características marcantes do movimento de reforma psiquiátrica brasileiro
de até então, com a ocupação dos espaços de decisão e de poder do aparelho estatal abrindo
a possibilidade, sustentada politicamente, da produção de um processo de transformação
radical da assistência em saúde mental.
Assim, são desenvolvidas as primeiras experiências municipais inovadoras no
sentido da constituição de uma nova rede de cuidados em saúde mental. Dentre essas, o
principal exemplo diz respeito ao Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS) experiência
iniciada em 1989 em Santos, no Estado de São Paulo, que se constituiu em “um serviço
58
comunitário de portas abertas durante 24 horas por dia, 7 dias por semana, capaz de atender
a praticamente todo o tipo de demanda de cuidado em saúde mental, incluindo uma
estrutura de alguns poucos leitos” (Vasconcellos, 2004). Podemos citar também
experiências desenvolvidas na capital de São Paulo como a constituição dos Centros de
Convivência e, principalmente, dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
Assistimos ainda em 1989, em grande parte impulsionada junto à opinião pública
pela intervenção efetuada na Casa Anchieta em Santos, ao lançamento do Projeto de Lei
Paulo Delgado, propondo a extinção e a substituição progressiva dos serviços do tipo
manicomial; a realização da Conferência de Caracas de 1990, onde se articulou um
consenso entre os governos latino-americanos em torno da nova plataforma política da
reforma psiquiátrica; e o amplo processo de discussão da nova estratégia a nível municipal,
estadual e federal no país, culminando na II Conferência Nacional de Saúde Mental, em
dezembro de 1992, considerada um marco na história da psiquiatria brasileira.
Esse momento constituiu-se em um momento político favorável para a
implementação das proposições concernentes ao processo de reforma desejado, contanto
com um movimento forte e organizado nacionalmente – representado pelo Movimento da
Luta Antimanicomial, com a ampliação da organização e da participação de associações de
usuários e familiares, o início das transformações na legislação federal, a criação de leis em
vários estados e municípios2 e o início de um processo de institucionalização da Reforma
Psiquiátrica (Yasui, 2006).
2
Conforme Britto (2003, p.91), “Convém destacar que, durante o período de tramitação do PL, alguns
estados brasileiros aprovaram leis baseadas nas propostas do projeto do deputado Paulo Delgado, são eles:·
Ceará – Lei 12.151 de 29/07/93; Dispõe sobre a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos e sua
substituição por outros recursos assistenciais, regulamenta a internação psiquiátrica compulsória e dá outras
providências. · Distrito Federal – Lei 975 de 02/12/95. Fixa diretrizes para a atenção à saúde mental no
Distrito Federal e dá outras providências. · Espírito Santo – Lei 5.267 de 07/08/92. Dispõe sobre direitos
fundamentais das pessoas consideradas doentes mentais e dá outras providências. · Minas Gerais – Lei 11.802
de 18/01/95. Dispõe sobre a promoção de saúde e da reintegração social do portador de sofrimento mental;
determina a implantação de ações e serviços de saúde mental substitutivos aos hospitais psiquiátricos e a
extinção progressiva destes; regulamenta as internações, especialmente as involuntárias, e dá outras
providências. · Paraná – Lei 11.189 de 09/11/95. Dispõe sobre as condições para internações em hospitais
psiquiátricos e estabelecimentos similares de cuidados com transtornos mentais. · Pernambuco – Lei 11.064
de 16/05/94. Dispõe sobre a substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos por rede de atenção integral à
saúde mental, regulamenta a internação psiquiátrica involuntária e dá outras providências. · Rio Grande do
Sul – Lei 9.716 de 07/08/92. Dispõe sobre a Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do Sul, determina a
59
No governo Collor, apesar do seu conservadorismo, assistimos a uma reocupação
dos espaços políticos por parte do movimento de reforma, em torno da Coordenação de
Saúde Mental ao nível do Ministério da Saúde. Desse modo, até pelo menos 1996, vemos
se desenvolverem uma série iniciativas políticas formais, com o lançamento de portarias
ministeriais a partir de 1991/1992. Estas estabeleceram a normatização e o financiamento,
antes restrito aos hospitais psiquiátricos convencionais, para os novos serviços de saúde
mental, particularmente os de atenção psicossocial.
São desenvolvidos projetos e serviços comunitários como os lares abrigados e
residências terapêuticas e o país desenvolve um processo de desospitalização, denominada
por Vasconcelos (2004) de “desospitalização saneadora” com uma redução significativa do
número de leitos em hospitais privados e principalmente públicos.
Paralelamente ao processo de desospitalização, conforme Vasconcelos (1999), mais
de 2000 leitos psiquiátricos em hospitais gerais e cerca de 200 serviços de atenção
psicossocial (hospitais-dia, CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, e NAPS – Núcleos de
Atenção Psicossocial) foram abertos, em todo o país, demonstrando haver um processo de
substituição gradativa do tipo de assistência psiquiátrica baseada na internação por outros
modelos, caracterizados por serviços abertos, de acordo, portanto, com um novo modelo de
atenção. Procurava-se, com essa nova estrutura de tratamento e com o modelo ambulatorial
reconfigurado, estender a rede assistencial para além dos limites e moldes do hospital
psiquiátrico, fomentando a participação comunitária e da sociedade civil organizada como
instrumentos de reabsorção e ressimbolização do indivíduo portador de transtornos mentais.
Com isso, inaugurou-se uma nova configuração da assistência psiquiátrica, tanto no
que concerne ao funcionamento dos novos dispositivos, quanto do aperfeiçoamento da rede
de cuidados, levando-se em conta o seu aspecto territorial e o fato do atendimento
ambulatorial ter se ampliado, sendo agora transformado no objeto primeiro de intervenção.
substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por rede de atenção integral em saúde mental,
determina regras de proteção aos que padecem de sofrimento psíquico, especialmente quanto às internações
psiquiátricas compulsórias e dá outras providências
60
Assim, ao longo desses anos (1989 aos dias atuais), podemos apontar uma série de
transformações ocorridas, diretamente relacionadas com a articulação e a luta pelos direitos
de cidadania do louco, tendo como modelo o processo de desinstitucionalização. Dentre
estas, as mais notáveis e consolidadas dizem respeito aos campos técnico-assistencial e
jurídico-político.
A lei 10.216 é finalmente aprovada em abril de 2001, inaugurando uma nova
orientação do modelo de atenção adotado pela assistência psiquiátrica brasileira, orientada
para a progressiva extinção da instituição manicomial e sua substituição por outras formas,
limitando as internações, submetendo-as ao Ministério Público, e procurando traçar um
novo modelo de atenção psiquiátrica. Na sua definição dos direitos da pessoa portadora de
transtorno mental, diz, no item IX do parágrafo único do artigo 2°, que a pessoa assistida
deve ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.
Segundo Pedro Gabriel Delgado (2001, p.284),
o texto aprovado constitui o resultado final de um longo ciclo de debates no
Congresso, especialmente no Senado, onde várias redações substitutivas foram
apresentadas. Ficou mantida a diretriz geral de reorientação do modelo de saúde
pública neste subsetor, com substituição progressiva do aparato hospitalocêntrico.
Assim, a grande conquista na aprovação desta lei se refere à assunção do
pressuposto ético de que o doente mental é um cidadão, devendo ser tratado como tal,
sendo destacado, com este princípio fundamental, os direitos do paciente psiquiátrico.
Desse modo, podemos apontar a existência de um rico aparato jurídico, ético e
científico que impulsiona as ações de saúde mental na comunidade. O campo para a
discussão e reflexão sobre o tema está aberto e o processo de reforma se mantém. A política
para a área está em constante transformação quer seja no campo dos saberes, das práticas,
da cultura e no campo jurídico.
Desse modo, em linhas gerais, esse terceiro momento da reforma psiquiátrica
brasileira, ou trajetória da desinstitucionalização tem ainda como grande mérito a
compreensão da cidadania para além de um mero atributo formal, apontando para um
projeto aberto que é e deve continuar sendo construído cotidianamente.
61
4. LOUCURA E CIDADANIA: ALIANÇAS, NÓS E PONTOS CEGOS
Como está descrito no capítulo introdutório do presente trabalho, nossa intenção
primordial reside na problematização das ditas histórias oficiais da cidadania, dos direitos
humanos e da reforma psiquiátrica brasileira, a fim de apontar possíveis impasses e
rachaduras nessas formas relativamente consolidadas de contar e encadear os diversos
acontecimentos vividos. Urge aqui, portanto, para que efetivamente se crie algo novo, a
reestruturação dos seus componentes e conceitos mais caros para que daí se extraia alguma
raridade – na forma de um outro olhar ou perspectiva.
Para essa desconstrução pretendida, desenvolveremos agora três pontos de análise
do material histórico descrito: a conjuração forjada entre cidadania e direitos humanos,
especialmente no que tange ao princípio da universalidade e à forma como o louco se
enreda nessa trama como um novo sujeito de direitos; a tendência observada nos últimos
anos no sentido da judicialização das relações sociais e o processo de distensão das
atribuições do poder judiciário e, em especial, do Ministério Público; e, por fim, os novos
serviços extra-hospitalares e o risco da transposição e criação de “novas tutelas sem grades
aparentes” (RODRIGUES, 2003, p. 45).
4.1. O UNIVERSAL “CAFÉ-COM-LEITE”
Como vimos nos capítulos anteriores, o conceito de cidadania, apesar de sua
institucionalização formal em leis e documentos normativos, não se constitui
necessariamente em um conceito substancialmente estático, fechado, sendo, ao contrário,
produzido, vivenciado e modificado segundo características específicas de cada contexto
histórico.
A partir do final do século XIX, diversos acontecimentos produziram um processo
de renegociação da relação entre Estado e sociedade civil, com implicações profundas para
o significado da cidadania e os processos de inclusão e exclusão na ordem dos direitos e
deveres. Assim, as relações entre Estado e sociedade foram se modificando e formando
diferentes tipos de cidadania nos diversos espaços geográficos.
Para Vieira (1997, p. 22, apud BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p.29) o
conceito de cidadania, mais especificamente tomado “enquanto direito a ter direitos,
62
historicamente tem assumido variadas interpretações, em função dos diferentes contextos
culturais”. E é justamente essa dimensão do conceito de cidadania em sua relação com os
diversos direitos e diversos contextos culturais que nos indica um primeiro ponto a ser
problematizado acerca da noção contemporânea deste conceito quando definido segundo o
prisma dos direitos humanos – sua universalidade.
A partir do processo desencadeado, em primeiro lugar, nas revoluções burguesas do
século XVIII, com ênfase para a revolução francesa, até o movimento de reafirmação e
redimensionamento dos conceitos de cidadania e direitos humanos desenvolvido no período
após a segunda guerra mundial, quando uma série de direitos – denominados direitos
humanos fundamentais – são tomados como um dever universal para toda a humanidade e,
mais especificamente aos governos dos Estados-nações.
Em certa medida, esse processo instaura um conjunto de questionamentos acerca do
papel exercido pelas soberanias nacionais, fazendo com que as identidades nacionais sejam
constrangidas por pressões e movimentos de alcance internacionais, segundo a proposição
de uma identidade humana global. Esse movimento deriva diretamente dessa nova política
forjada desde o pós-guerra que considera a existência de um “sujeito humano universal
como um sujeito da doutrina de direitos humanos universais” (MONTEIRO, 2006, p.31).
Diversas críticas podem ser formuladas com respeito a essa suposta universalidade,
inicialmente conceituada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789,
sendo legitimada e alçada ao estatuto de ideal, a ponto de influenciar constituições como as
francesas de 1793, 1795, 1848 e 1946 e a Declaração Universal adotada pela ONU
(Organização das Nações Unidas) em 1948. Críticas que vão desde o etnocentrismo
vinculado a sua definição – marcadamente ocidental e imperativamente imposta para todos
os povos do mundo, independente das diferentes culturas existentes – até o caráter caótico
da fabricação do próprio texto da Declaração Universal de 1948 e do consenso sobre o
tema3, realizados mediante uma concatenação confusa de “projetos múltiplos, e até mesmo
3
Como exemplo, conforme Alves (2008, p. 2-3), “Controvertido, na qualidade de direito humano
fundamental, o direito à propriedade, ‘só ou em sociedade com outros’, registrado no Artigo 17, desagradava
sobretudo aos países socialistas, enquanto os direitos econômicos e sociais não se adequavam à ortodoxia
liberal capitalista. A igualdade de direitos entre homens e mulheres, sobretudo no casamento (Artigo 16),
assim como a proibição de castigo cruel (Artigo 5º) causavam, por sua vez, dificuldades a países muçulmanos
de legislação não-secular. Nenhum dos dispositivos chegava, contudo, ofender as tradições de qualquer
cultura ou sistema sócio-político. Ainda assim a Declaração de Direitos Humanos foi submetido a voto, na
63
inconciliáveis, (...) objeto de intermináveis negociações e compromissos, (...) associação de
fragmentos colhidos de diversos lados, (...) reconhecida e aprovada por seus próprios
autores como uma obra ‘não terminada’” (JULLIEN, 2008).
No entanto, apesar desse caráter confuso, do fato de que nem mesmo os seus
Estados redatores tenham se disposto a cumpri-la imediata e efetivamente, além de outras
dificuldades encontradas nesse processo, podemos dizer que a Declaração de 1948 –
“simples peça de soft law, na terminologia anglo-saxã” (ALVES, 2008) – alcançou ampla
repercussão mundial.
O passo mais significativo no sentido de uma universalização formal da Declaração
de 1948 foi dado na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena, em
junho de 1993.
Segundo Alves, (2008)
Maior conclave internacional jamais reunido até então para tratar da matéria,
congregando representantes de todas as grandes culturas, religiões e sistemas sóciopolíticos, com delegações de todos os países (mais de 170) de um mundo já
praticamente sem colônias, a Conferência de Viena adotou por consenso –
portanto, sem votação e sem reservas – seu documento final: a Declaração e
Programa de Ação de Viena. Este afirma, sem ambigüidades no Artigo 1º: “A
natureza universal desses direitos e liberdades não admite dúvidas”.
Contudo, apesar dessa formalização e dos avanços contabilizados dentro dessa
agenda política, por assim dizer, internacional, podemos apontar, dentro do campo do
Direito, duas concepções distintas acerca da universalidade desses direitos do homem que
vão influenciar e mesmo se mesclar nos documentos e teorizações ligadas ao tema.
A concepção jus-naturalista, de onde deriva o artigo primeiro da Declaração
Universal dos Direitos do Homem da ONU de 1948, “todos os homens nascem livres e
iguais em dignidade e direitos”, exprime uma concepção ideal, fixa e imutável do direito,
independente dos movimentos e contextos sociais, e mesmo dos valores que cada momento
histórico inscreveu em sua conceituação.
Já a concepção positivista se caracterizaria por sua particularização no espaço e no
tempo, estando na base da constituição do Estado moderno, onde o Direito passa a figurar
como um instrumento de controle, ordenamento e gestão governamental, sendo
Assembléia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948, e aprovada por quarenta e seis a zero, mas com oito
abstenções (África do Sul, Arábia Saudita e os países do bloco socialista)”.
64
influenciado pelos processos de secularização, sistematização, positivação e historicização.
O Direito, na concepção positivista, é concebido como um produto da História,
teleologicamente pensada como progresso.
Apesar dos evidentes distanciamentos, e apesar da posição jus-naturalista ser
usualmente tomada como anterior à positivista, articulando-se a ela enquanto um
fundamento essencial, as duas concepções possuem em comum a adoção de uma
perspectiva transcendental de análise e a cristalização de noções fechadas acerca do
‘homem’ e dos ‘direitos’, sendo ambas vinculadas à crença de uma natureza humana, ora
dada de antemão ao nascermos, ora construída e positivada ao longo da história e do
progresso científico alcançado particularmente em cada contexto sócio-político.
Desse modo, conforme Chauí (1995 apud VIEIRA, 2008), “podemos dizer que
tanto a crença em uma positividade do dado quanto no caráter absoluto e imóvel da idéia
fazem com que ambas concepções – positivista e naturalista – percam o movimento que
cristaliza os dados em conceitos e as idéias em instituições”.
No entanto, no caso de abrirmos mão desse caráter absoluto que caracteriza as
concepções usuais dos direitos do homem e passarmos a lidar com esse conceito na forma
de um projeto em aberto, vivo, em constante movimento, podemos descortinar o que, a
nosso ver, melhor explicita uma capacidade universalizante dos direitos humanos, distinta
dos transcendentalismos positivista e jus-naturalista que sustentam a formalização e
institucionalização de suas proposições em leis e normas.
Para isso, lançaremos mão do artigo de François Jullien, publicado em 2008 na
revista ‘Le Monde Diplomattique’, onde nos são apresentadas duas formas de lidarmos com
a questão dos direitos do homem – como um conceito de caráter ‘universalizável’ ou
‘universalizante’.
A dimensão universalizável dos direitos humanos diz respeito a sua pretensão por
encerrar um enunciado de verdade, a sua busca e reclame por uma qualidade de universal
capaz de ser aplicada a todo e qualquer ser humano, independente das diferenças culturais
vivenciadas. Já o seu caráter universalizante decorreria não propriamente de uma
formulação de ordem teórica, mas, antes, de ordem prática, operatória, donde o universal
emanaria como efeito dessa ação.
65
De certo modo o autor identifica no conceito de direitos humanos universais, tal
como é usualmente pensado e operado nos dias de hoje, uma maior aproximação do caráter
universalizante com a função reivindicatória, de protesto e luta. Isso decorre, por um lado,
devido ao caráter universalizável que geralmente está vinculado ao seu conteúdo positivo –
“por seu mito do indivíduo, por sua construção da ‘felicidade’ como fim último, por seu
pressuposto de ensinar universalmente o significado da vida, exigindo que sua ética seja
preferida a qualquer outra” (JULLIEN, 2008) – e, por outro, porquanto em seu aspecto
negativo e reivindicatório, eles se constituem em um instrumento insurrecional
incomparável, “para dizer não e protestar, para opor-se ao inaceitável, marcar uma
resistência” (op.cit.)
Ainda segundo Jullien (2008),
essa função negativa, insurrecional, prevalece sobre a dimensão positiva da noção e
alcança a utilidade mais geral que a vocação do universal possui: a de reabrir uma
brecha na totalidade satisfeita, reacendendo nela a aspiração. Nem todos os que
invocam os direitos do homem aderem à ideologia ocidental – às vezes nem mesmo
a conhecem –, mas encontram neles o último argumento, o instrumento
incansavelmente retomado de mão em mão e disponível para toda causa por vir.
Desse modo, ao invés de imputar nos direitos do homem uma universalidade que
supostamente existiria de antemão, o caráter universalizante aponta para uma dimensão do
universal que se encontra em curso, em um processo que não está acabado. Essa noção, ao
invés de tratar os direitos do homem como uma propriedade ou qualidade passivamente
possuída, os concatena como fator, agente e promotor, vetor do universal, abrindo mão de
qualquer referência ou dependência de alguma representação instituída externamente às
lutas que continuamente os constituem.
Segundo essa perspectiva, podemos também pensar o processo de construção da
cidadania. Turner (1993), por exemplo, a partir da crítica à visão legal e normativa
apresentada por Marshall de cidadania – considerada etnocêntrica e apolítica em seu caráter
seqüencial que nos induz a conceber um processo evolutivo pacífico, consensual e linear –
procura definir a cidadania de uma forma inovadora, atribuindo a responsabilidade pela
expansão e ampliação dos direitos às diversas frentes de luta encampadas pelos
movimentos sociais (verde e de mulheres, movimento negro na América do Norte, direitos
relativos às vítimas da AIDS e aos homossexuais, etc.).
66
Para Turner, a cidadania corresponderia a um conjunto de práticas jurídicas,
políticas, econômicas e culturais que fazem com que uma pessoa seja considerada como um
membro efetivo da sociedade, tendo como parâmetro e conseqüência o dimensionamento
do fluxo de recursos sociais disponibilizados para os indivíduos e os diferentes grupos
delineados por meio e na relação com esse fluxo. Concebida como um conjunto de práticas,
essa definição aborda a cidadania como produto direto de lutas políticas, da distribuição
desigual de recursos e como parte de uma dinâmica histórica.
Nessa definição, Turner diferencia a relação e a forma de vivência desses direitos
segundo os conceitos de cidadania ativa e passiva, relacionados à forma como os direitos e
deveres são distribuídos entre os diferentes setores da sociedade, a partir dos modos de
participação vivenciados e da sua dimensão cultural, enfocando a cidadania com uma
ênfase marcante em sua dimensão política.
Retomando o caminho traçado até aqui, podemos dizer que a existência da
cidadania está diretamente encarnada na figura individual do cidadão. Este realiza essa
existência, na medida mesma em que todo o arcabouço legal e jurídico relacionado a esse
status lhe confere uma identidade, que o inscreve na esfera pública.
Enquanto função identificatória, a princípio, a cidadania tem como pressuposto a
existência da igualdade e da diferença e, por conseguinte, evidencia ainda as condições para
as circunstâncias de privação e os próprios limites dos direitos.
Conforme Ferreira (2000, p. 20 apud MONTEIRO, 2006, p.18), “a cidadania faz a
mediação das relações entre os indivíduos identificados, ‘presentificados’ como cidadãos
frente ao Estado, os que se incluem na ordem dos direitos e deveres; ao fazer isto, também
identifica os que estão excluídos dessa ordem, os não-cidadãos”.
Ao longo do tempo, conforme já exposto acima, podemos perceber um movimento
de ampliação dos direitos concernentes ao conceito de cidadania, onde o efeito
universalizante se presentifica no sentido de uma inclusão progressiva de toda a população
existente numa mesma ordem de direitos e deveres, buscando equalizar as diferenças
existentes a partir de uma crescente apropriação normativa regida pelo potencial integrador
do princípio da igualdade perante a lei. E o grande desafio que nos é posto atualmente se
refere ao esforço por desenvolver a equalização da diferença sem que com isso se promova
uma homogeneização da diferença.
67
Como instrumento para entendermos essa tendência observada no contexto mundial
e brasileiro, Benevides (1994), a exemplo de Turner (1993), desenvolve a noção de
cidadania ativa e passiva, calcada na abordagem do cidadão como titular, ainda que
parcialmente, de uma função ou poder público. Segundo essa visão, é a partir de uma dupla
ação política, dos cidadãos e do Estado, que a equalização da diferença se efetua no sentido
da universalização dos direitos.
Dentro dessa perspectiva, a cidadania passiva diz respeito aos direitos e benefícios
outorgados pelo Estado, segundo a autora, trazendo consigo a idéia moral do favor e da
tutela. Já a cidadania ativa institui o cidadão como portador de direitos e deveres, mas,
sobretudo como fundamentalmente criador de direitos para abrir novos espaços de
participação política. A efetivação da cidadania ativa implica na ampliação de direitos
políticos para a participação direta dos cidadãos no processo de decisões de interesse
público (BENEVIDES, 1994, p. 9). Assim, a cidadania está diretamente ligada à
possibilidade de participação direta na formulação e proposição de políticas públicas e na
construção e conformação dos diversos direitos e deveres, afirmando a soberania popular
como elemento essencial desse processo.
Até por conta da tradição brasileira de governos populistas e políticas de cunho
predominantemente assistencialista, a idéia moral do favor e da tutela prevalecem sobre a
noção de conquistas sociais, mais coadunadas com a perspectiva de uma cidadania ativa,
onde os direitos e benefícios outorgados pelo Estado dizem respeito a proposições e
plataformas advindas de lutas disseminadas no tecido social, representadas pelas diversas
minorias citadas acima.
Hoje em dia, segundo essa confusão gerada por pontos de vista em disputa, o
governo brasileiro procura, através das chamadas ‘ações afirmativas’, intervir na sociedade
de modo a garantir uma mínima igualdade social, equalizando as diferentes condições para
o acesso aos direitos previstos constitucionalmente. Assim, o reconhecimento da dimensão
universal da cidadania se presentifica dialeticamente na capacidade associativa e
insurrecional de grupos específicos – cidadania ativa – e na forma de intervenções estatais
– cidadania passiva –, realizadas muitas vezes em parceria com a sociedade civil, que
procuram conceder aos menos favorecidos possibilidades de construção do que se entende
68
por uma vida digna, caracterizada basicamente por valores como a liberdade, a
independência e a autonomia.
Dentro do contexto específico da reforma psiquiátrica, podemos apontar como um
documento de luta e reivindicação a ‘Carta de Direitos dos Usuários e Familiares de
Serviços de Saúde Mental’, elaborada pelos participantes do III Encontro Nacional dos
Usuários e Familiares da Luta Antimanicomial, realizado em Santos/SP, em Dezembro de
1993.
Em linhas gerais, o documento procura afirmar a universalidade dos direitos
fundamentais, garantindo ao usuário o direito de “ser tratado e ouvido como pessoa
humana, com direitos civis, políticos e sociais como qualquer cidadão”. Traz uma
importante consideração acerca do termo usuário, querendo demarcar o campo em que são
formulados os direitos e reivindicações propostas, na forma de um sujeito coletivo que
pretende ser reconhecido em sua especificidade e diferença, muito embora não seja
redutível a essa condição específica.
Contudo, embora tratem de aspectos variados remetidos à noção de uma vida plena
e multifacetada, discorrendo sobre a integralidade das ações que devem ser dirigidas a
todos os aspectos existenciais da vida desses sujeitos, as suas reivindicações e as temáticas
trabalhadas pelo documento se circunscrevem e delimitam no que tange aos direitos
relacionados à vivência junto aos serviços de assistência psiquiátrica, às políticas públicas
voltas para esse público específico e à regulação das formas de tratamento dispensadas, tais
como o direito de escolha dos serviços e profissionais de sua preferência e o direito de ser
devidamente informado e consultado no que se refere à participação nas decisões
terapêuticas e na fiscalização dos serviços prestados.
Sem dúvida, esse documento evidencia um alto grau de articulação, maturidade
política, engajamento e adesão às reivindicações que ao longo do tempo foram construídas
pelo processo de reforma como um todo. No entanto, a nosso ver, o mesmo fator que
possibilita a unidade e força desse documento e desta luta acaba, por outro lado, por
reforçar uma condição específica e, em determinados aspectos, menorizada no que tange
aos direitos e à noção de uma cidadania plena.
Ao se lidar com a diferença e especificidade deste sujeito coletivo em particular, a
sua condição desigual acaba por delinear uma aura excessivamente passiva, revestida de
69
imagens ligadas às noções de deficiência e desvantagem social em relação aos demais
membros da sociedade, o que gera uma proliferação de ações afirmativas e benefícios
especiais concedidos por parte do Estado. Assim, a afirmação dos direitos universais inclui
o louco, mas não elimina um viés negativo ou uma condição menorizada, estigmatizante,
por conta da articulação desses direitos com o enunciado da doença mental.
Essa hipótese formulada acima fica patente quando analisamos as formas como as
portarias e leis conformam a situação do louco ou, segundo sua própria terminologia, do
portador de transtorno mental.
4.2. OS NOVOS DIREITOS DOS NOVOS SUJEITOS DE DIREITOS
Podemos estruturar a legislação e os novos serviços relacionados à assistência
psiquiátrica agrupando-os segundo o campo específico de cada direito contemplado. Para
essa exposição, exporemos inicialmente uma análise da lei 10.216/01 e, posteriormente,
algumas portarias e programas relacionados à saúde mental.
4.2.1. A Lei Federal 10.216 de 2001
Um primeiro aspecto a ser analisado com relação ao processo de lançamento,
tramitação e aprovação dessa lei, diz respeito à defasagem ou apaziguamento imposto por
uma série de negociações legislativas e pelas pressões políticas exercidas por forças
opositoras dessa proposta – ao que Rodrigues (2003, p. 57) nomeia como um “árduo
processo de anti-luta manicomial”, presente até os dias de hoje, mas que entre os anos de
1989 e 2001 demonstraram sua força e poder de persuasão parlamentar ao reduzir o ímpeto
transformador e mesmo a magnitude da proposta inicial do projeto de lei 3.657/89,
imputando um caráter tímido ao texto final da lei 10.216/01.
Inicialmente, o objetivo central do projeto de lei do deputado Paulo Delgado era a
extinção progressiva dos manicômios, ou seja, a extinção das instituições de internação
psiquiátrica especializada. No entanto, ao longo do tempo de tramitação parlamentar, esse
ponto foi praticamente alijado do texto a lei, não sendo sequer mencionado no substitutivo
encaminhado senador Sebastião Rocha.
A lei federal 10.216/01 se articula em dois grandes eixos: a questão da proteção
social e o redirecionamento do modelo assistencial. Diferentemente do que almejava o
70
projeto de lei, a lei 10.216/01 mantém e legitima o dispositivo hospitalar, sendo fortemente
voltada para a reestruturação da assistência psiquiátrica com a regulação no uso e no
funcionamento desse modelo terapêutico. Busca-se, em linhas gerais, com uma maior
ênfase, a humanização dos serviços prestados, o reconhecimento dos direitos e da cidadania
dos sujeitos portadores de transtorno mental4, assim como as obrigações do Estado para
com eles.
Esta lei é composta por 13 artigos que são divididos segundo o seguinte
ordenamento: Art. 1º e 2º - apresentam os direitos das pessoas portadores de transtorno
mental; Art. 3º - estabelece as responsabilidades concernentes ao Estado; Art. 4º ao 10º definem, disciplinam e regulamentam os tipos de internação psiquiátrica; Art. 11 - trata das
pesquisas científicas que venham a envolver pacientes/usuários de serviços de saúde
mental; Art. 12 - cria uma Comissão Nacional para o acompanhamento da implementação
da lei; Art. 13 – faz vigorar a lei a partir da data de sua publicação.
O artigo 1º, claramente voltado para o pressuposto da universalidade dos direitos e
para a condição de igualdade perante a lei, estabelece que a proteção e os direitos dos
portadores de transtorno mental são assegurados a todos sem a existência de qualquer
forma de discriminação.
O artigo 2º determina que nos atendimentos em saúde mental as pessoas devem ser
informadas dos direitos estabelecidos para os portadores de transtorno mental, enumerados
e estabelecidos em seu parágrafo único. Os nove itens componentes desse deste parágrafo
indicam uma série de direitos que se referem especificamente às condições de realização
desses atendimentos.
Para Amarante & Yasui (2003, p.09),
uma leitura mais atenta nos permite perceber que alguns itens são quase
redundantes e lá estão como garantia de que as cotidianas violências submetidas
àqueles pacientes não mais se repitam. (...) na história daquilo que se
convencionava chamar de tratamento psiquiátrico, eram rotina para os pacientes:
serem submetidos a abusos, explorações, não ter direito ao sigilo de suas
informações e serem submetidos a condutas terapêuticas violentas tais como ECT
(eletroconvulsoterapia, conhecida como eletrochoque), lobotomia, etc.
4
A expressão ‘portador de transtorno mental’ que figura em seu título e é adotada atualmente pela psiquiatria
nos indica uma mudança inovadora no que tange à nomenclatura utilizada para se definir a condição da
pessoa que necessita de cuidados em saúde mental.
71
O artigo 3º trata da responsabilidade do Estado no que se refere ao desenvolvimento
da política de saúde mental, na assistência e na promoção de ações. Vale ressaltar aqui que
essas ações e políticas devem contar “com a devida participação da sociedade e da família”,
o que, por um lado, pode ser percebido como um reflexo direto da forma como a nossa
Constituição Federal privilegia e legitima a participação social e política como fator
imprescindível para a formulação das políticas públicas e a garantia dos direitos de
cidadania. Por outro lado, dada a imprecisão desta “devida participação” e do foco no
atendimento prestado, não se pode delimitar de antemão, propriamente, que forma de
parceria se pretende estabelecer entre Estado, sociedade e familiares dos sujeitos portadores
de transtorno mental. Essa imprecisão permite a proliferação de formas de compreensão e
práticas variadas, o que acaba por criar um campo aberto de incidência política, podendo
ser ocupado de múltiplas maneiras.
O artigo 4º estabelece um limite para a ocorrência da internação, cuja indicação fica
condicionada pela circunstância do esgotamento ou insuficiência dos recursos extrahospitalares, não havendo, no entanto, uma definição para o que deva ser considerado como
insuficiente. Os parágrafos deste artigo regulamentam a internação e estabelecem que o
tratamento deve ter como finalidade permanente a reinserção social do paciente e a oferta
de uma assistência integral, com a abordagem terapêutica sendo efetuada a partir da atuação
de uma equipe multidisciplinar.
Essa limitação pode, ao invés de diminuir os índices de internação e hospitalização,
funcionar como um incentivo ao acionamento desse dispositivo, uma vez que não existe
uma rede assistencial extra-hospitalar tão abrangente no país.
De certo modo, essa brecha para a internação explica em parte a tendência apontada
por alguns autores de capsização da reforma psiquiátrica, uma vez que, conforme está
disposto na lei, em tese, a expansão e consolidação da rede de serviços extra-hospitalares
poderia servir como um argumento no sentido de evitar novas internações.
Contudo, ademais, conforme Britto (2003, p.94)
Embora no parágrafo 3º a lei proíba a internação em instituições com
características asilares – definidas como aquelas que não apresentam os recursos
explicitados no parágrafo 2º e que também não respeitam os direitos enumerados
no artigo 2º -, os demais itens que constituem o artigo permitem que o hospital
psiquiátrico exista enquanto recurso de tratamento a ser utilizado.
72
O artigo 5º discorre sobre a situação dos pacientes internados por longo tempo, que
por conta disso apresentam uma situação de grave dependência institucional. Segundo essa
abordagem, esses sujeitos devem ser “objeto de política específica de alta planejada e
reabilitação psicossocial assistida”, demonstrando, em certa medida, uma preocupação ou
tendência, ainda que contraditória, no sentido de superar o modelo manicomial e focar a
assistência psiquiátrica como um todo, incluindo aí o dispositivo hospitalar, no sentido da
reinserção social dos pacientes.
O artigo 6º define a internação como um ato médico, onde seu laudo se configura
como o instrumento primordial para efetuação de uma internação psiquiátrica, a qual é
tipificada, em seu parágrafo único em internação psiquiátrica voluntária (IPV), involuntária
(IPI) e compulsória.
O artigo 7º regulamenta a internação voluntária, estabelecendo que esta se efetue a
partir de uma declaração escrita, assinada pelo paciente, afirmando seu consentimento para
este tipo de tratamento. Seu parágrafo único determina que a IPV se encerre a partir de uma
solicitação por escrito do paciente ou segundo determinação médica.
Apesar desta medida significar uma importante inovação, estabelecendo o poder do
próprio paciente em requerer sua alta, não há propriamente uma referência para possíveis
condições que impeçam a cessação da IPV, nem tampouco sobre as conseqüências cabíveis
para o hospital que não cumprir apropriadamente a determinação da lei, que se torna vaga e
sujeita a distorções no cotidiano dos hospitais.
O artigo 8º determina que as internações voluntárias e involuntárias somente devam
ser autorizadas por médicos que sejam devidamente registrados no CRM do estado onde se
localize o estabelecimento onde se efetuará a internação. O parágrafo 1º estipula que a
internação involuntária e sua respectiva alta devem ser comunicadas ao Ministério Público
Estadual em no máximo setenta e duas horas. Dessa forma, há a introdução inovadora do
Ministério Público Estadual na intermediação da relação da medicina com o Estado.
Conforme Britto (2003, p.95)
Este é um ponto que se manteve comum entre o PL 3.657/89 e o texto final
aprovado. No PL o artigo 3º determinava a comunicação da chamada internação
compulsória à autoridade judiciária local ou à Defensoria Pública. O propósito
desta medida era verificar a legalidade da internação, fiscalizar os estabelecimentos
psiquiátricos e zelar pelos direitos do cidadão internado. Embora a lei atual
mantenha a comunicação das IPIs a uma autoridade pública, ela não define o
73
objetivo de tal procedimento. Da mesma forma a lei não menciona as
conseqüências do descumprimento desta medida para o hospital.
O parágrafo 2º deste artigo discorre sobre o término da IPI, podendo ocorrer a partir
de uma da solicitação do familiar ou responsável legal, ou quando determinada pelo
médico. Dessa forma, na IPI, o paciente não é consultado e não participa de importantes
decisões relacionadas ao seu tratamento.
O artigo 9º delibera sobre a internação compulsória, em geral determinada pelo
poder judiciário. O artigo 10º determina o prazo de vinte e quatro horas para a comunicação
aos familiares ou representantes legais, assim como à vigilância sanitária, das evasões,
transferências, intercorrências clínicas graves e falecimentos de pacientes.
Apesar desse artigo tratar de procedimentos que deveriam ser usualmente
desempenhados pelos hospitais psiquiátricos, segundo Amarante & Yasui (2003, p. 10) “o
aqui disposto é mais bem compreendido se considerarmos a triste e absurda realidade de
que essa comunicação não era feita pelos hospitais psiquiátricos”.
De modo geral, podemos afirmar que a transformação social pretendida pelo PL não
foi mantida, na medida mesmo em que praticamente nenhum artigo componente desta lei
aborda diretamente a questão do modelo assistencial nem sequer menciona a constituição
de serviços substitutivos em detrimento ao modelo asilar. A lei mantém de certo modo uma
estrutura hospitalocêntrica em suas deliberações e determinações, onde encontramos apenas
a indicação da integralidade proporcionada pela atuação de uma equipe multidisciplinar
(art. 4º § 2º) e a preferência que deve ser observada para os serviços comunitários de saúde
mental (art. 2º- IX), não havendo uma definição do que efetivamente se entenda por um
serviço comunitário.
Ademais, muito embora possamos formular diversas críticas ao seu texto e sua
tramitação parlamentar, esta lei representa indubitavelmente um avanço para o processo de
reforma psiquiátrica e para a transformação do modelo de assistência em saúde mental na
medida em que, confrontada com a agenda política desse movimento, torna explícitos
alguns direitos concernentes ao portador de transtorno mental, além de diferenciar e
regulamentar a realização de internações psiquiátricas.
74
A Lei 10.216/01, em consonância com uma tendência já apontada anteriormente,
coloca em ação um dispositivo de segurança e proteção dos direitos do portador de
transtornos mentais, onde o Ministério Público Estadual assume uma função reguladora.
Posteriormente, com o objetivo de regulamentar a internação psiquiátrica
involuntária, foi promulgada em 2002 a Portaria n° 2.391/GM que
regulamenta o controle das internações psiquiátricas involuntárias (IPI) e
voluntárias (IPV) de acordo com o disposto na Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, e
os procedimentos de notificação da Comunicação das IPI e IPV ao Ministério
Público pelos estabelecimentos de saúde, integrantes ou não do SUS (Brasil, 2002).
Como pontos principais da portaria, podemos destacar: determina que a internação
psiquiátrica deva ser adotada como último recurso de tratamento e durar o mínimo possível;
estabelece quatro modalidades de internação, incluindo, para além das já definidas pela lei
10.216/01 a modalidade ‘internação psiquiátrica voluntária que se torna involuntária’; o
prazo de 72 para horas para a notificação das internações psiquiátricas involuntárias (Arts.
4º e 5°) e voluntárias que se tornam involuntárias (Art. 6º) ao Ministério Público Estadual,
assim como a comunicação da alta hospitalar, relacionada à internação psiquiátrica
involuntária; a elaboração de um modelo de formulário próprio – Termo de Comunicação
de Internação Involuntária; o estabelecimento do papel do Ministério Público quanto ao
registro das notificações das internações psiquiátricas involuntárias e voluntárias que se
tornam involuntárias, para que possa ser realizado o controle e o acompanhamento das
mesmas até o momento da alta (Art. 6), podendo requerer maiores informações sobre o
laudo médico, autorizar novos exames realizados por diferentes profissionais e entrevistar
aqueles que achar conveniente - paciente, familiares, etc. (Art.11); o estabelecimento de
solicitação à pessoa que se interna voluntariamente de estar de acordo com o documento
intitulado ‘Termo de Consentimento Livre e Esclarecido’, o qual deverá permanecer sob os
cuidados do serviço que realiza a internação (Art. 9°); a constituição de uma Comissão
Revisora das Internações Psiquiátricas Involuntárias (Art.10) que realizará a revisão das
internações psiquiátricas involuntárias, podendo através de laudo, confirmar ou suspender
tal tratamento (Art.12).
De modo geral, portanto, são reconhecidas algumas reivindicações do movimento,
principalmente no que tange à intervenção e poder decisório dos usuários, ainda que,
sombria e inelutavelmente, o poder médico ainda arbitre sobre as ditas faculdades mentais e
75
a capacidade de entendimento da situação por parte do paciente psiquiátrico. Ademais,
essas medidas recolocam a questão da capacidade civil e atualizam o conceito de
“intervalos lúcidos” (DELGADO, 1992, p. 124), da psiquiatria forense. Ainda que não o
cite propriamente, podemos perceber essa atualização do conceito na medida em que se
entrevê que o poder decisório do portador de transtornos mentais depende, em última
instância, da constatação médica dessa lucidez para que efetivamente se realize.
4.2.2. Novos direitos, programas e ações afirmativas
Uma série de programas de governo, segundo o prisma das ações afirmativas, foram
criados como meio de equalizar as condições de usufruto dos direitos de cidadania por parte
dos sujeitos portadores de transtornos mentais. Muitos desses programas apresentam traços
característicos do que poderíamos chamar de ‘tutelas temporárias’, uma vez que pretendem
fazer a ponte entre uma vida social autônoma e independente aos que, a princípio,
necessitam de cuidados especiais.
a) Direito ao convívio social e familiar
Partindo de uma premissa exposta no artigo 5º da lei 10.216/01, o Programa ‘De
volta para casa’, regulamentado pela lei 10.708/03 e Portaria GM 2077/03, se volta para um
auxílio-reabilitação psicossocial dos pacientes institucionalizados, egressos de hospitais
psiquiátricos, tendo permanecido internados por período igual ou superior a dois anos.
Procura contemplar os direitos à liberdade de ir e vir e de integração ao meio social e
consiste num benefício pecuniário mensal concedido por um prazo inicial de um ano,
podendo ser renovado.
b) Direito à moradia
O direito à moradia, reconhecido como constitucionalmente como uma categoria de
direito fundamental, garante a o seu titular – o cidadão brasileiro – a possibilidade de exigir
do Estado uma ação positiva no sentido de garantir o gozo deste bem juridicamente
assegurado. Figura ainda, no âmbito das políticas públicas em saúde mental, uma condição
fundamental para a garantia de uma condição digna de reabilitação psicossocial,
significando um local de referência e proteção social.
Com esse fim, foram criados os serviços de residência terapêutica ou lares
abrigados que consistem em moradias de natureza pública, financiadas pelo governo federal
76
e voltadas para o acolhimento e reinserção social de pessoas com transtornos mentais
egressas de hospitais psiquiátricos, usuários de CAPS ou outros serviços de saúde mental
que não possuam um suporte familiar e social, além de moradores de rua que integrem
projetos terapêuticos.
Regulamentados basicamente pelo Art. 5º da lei 10.216/01, pelas Portarias GM
106/00 e 1220/00, consistem em espaços coletivos de moradia, amparados por um ou mais
profissionais desempenhando a função de ‘cuidador’, divididos em duas modalidades
configuradas segundo a maior ou menor autonomia dos seus moradores, no que tange ao
cuidado e higiene pessoal, capacidade de organizar-se para tomar os medicamentos,
guardar e conservar seus pertences pessoais, gerir a casa, pagar contas, e outros afazeres,
assim como na relação com outros moradores.
c) Direito à educação
O direito à educação se efetua basicamente de quatro formas: na rede regular de
ensino, por meio da educação especial, por meio da oferta de classe hospitalar e
atendimento pedagógico domiciliar ou através de oficinas terapêuticas de alfabetização. Na
medida em que a educação se constitui como um imprescindível instrumento de inclusão
social e superação das desigualdades, os projetos terapêuticos individuais devem ser
permeados pelo asseguramento desse direito, com uma atenção especial para o retorno ou
permanência em atividades escolares.
Preferencialmente, o acesso da educação deve ser realizado na rede regular de
ensino. As outras modalidades de acesso vão variar de acordo com o desempenho e a
situação específica vivenciada por cada pessoa. Desse modo, urge às escolas se adequarem
para garantir o acesso desses alunos, reconhecidos como cidadãos com necessidades
educacionais especiais.
d) Direito ao Trabalho
Apesar de não estar expresso na Constituição Federal, o direito ao trabalho figura
como um dos direitos sociais mais elementares para uma existência digna e para o
reconhecimento e inserção social.
A longa permanência em hospitais psiquiátricos e mesmo a própria possibilidade de
uma aposentadoria por incapacidade ou invalidez relacionada à observância de um
transtorno mental tido como impedimento para o desempenho das funções profissionais,
77
acabam por gerar uma série de dificuldades na relação desses sujeitos com o mercado de
trabalho.
A reabilitação psicossocial por meio do trabalho figura como um dos pilares
fundamentais da Reforma Psiquiátrica Brasileira e tem dois campos distintos de atuação: a
realização de capacitação profissional por meio de oficinas terapêuticas e a formação de
cooperativas sociais ou empresas sociais, que apresentam a solidariedade e o próprio fim
terapêutico como valor agregado.
e) Direito ao Benefício da Prestação Continuada
Trata-se de um benefício pecuniário concedido por uma ação nacional do campo da
assistência social que objetiva auxiliar grupos de pessoas que são consideradas como
socialmente desamparadas, tais como idosos, pessoas com deficiência, com transtornos
mentais e doenças graves.
Assim, de maneira geral, podemos perceber nesse arcabouço jurídico a forma como
o conceito de universalidade proporcionou, por um lado, o reconhecimento dos direitos de
cidadania do louco, mas, por outro, reforça um caráter e condição negativa, faltante,
deficiente, a partir do conceito das necessidades especiais e das novas formas de tutela e
gestão da vida desses novos cidadãos, produzindo quase-sujeitos. Justamente por essa
peculiaridade que caracteriza sua cidadania é que a denominamos ‘café-com-leite’, no
sentido de denunciar a forma como a loucura é inserida nas formas atuais de conceituação e
exercício da cidadania.
4.3. A JUDICIALIZAÇÃO DO COTIDIANO
Podemos perceber uma tendência mundial, especialmente a partir dos anos de 1970,
no sentido de uma presença cada vez maior do poder judiciário de modo geral ocupando
lugares tradicionalmente reservados às instituições especializadas da política e de autoregulação societária. Essa percepção, ao invés de indicar possíveis ambições de poder por
parte do judiciário, aponta para outros processos mais complexos.
Grosso modo, esses processos, advindos de múltiplas instâncias, ganham força a
partir das transformações presentes desde o período pós-segunda guerra mundial. Em
primeiro lugar, podemos apontar o próprio desfecho dessa guerra, com a formação do
Tribunal de Nuremberg, convocado para o julgamento dos crimes contra a humanidade
78
praticados pelos dirigentes nazistas, possibilitando assim a penalização de agentes estatais
que cometam violações dos direitos humanos então rediscutidos e reinstitucionalizados,
submetendo o poder soberano nacional a um direito de foro internacional.
Além disso, da guerra igualmente veio a motivação – de importância crucial para a
forma como se constituíram esses processos – para que as constituições e legislações dos
diversos países signatários dos documentos de caráter internacional trouxessem em seu
corpo um conjunto de normas e valores fundamentais que pudessem exercer algum controle
e regulação do poder soberano de cada Estado-nação.
Desse modo, segundo (VIANNA, BURGOS E SALLES, 2007, p.40), o chamado
constitucionalismo democrático reclamava por um
poder judiciário dotado da capacidade de exercer jurisdição sobre a legislação
produzida pelo poder soberano. E, na esteira da guerra, o Welfare State, com suas
ambições de organizar o capitalismo e introduzir relações de harmonia entre as
classes sociais, com suas fortes repercussões no sentido de trazer o direito para o
centro da vida social.
Essa tendência promoveu uma verdadeira invasão do direito sobre o social,
avançando na regulação dos setores mais vulneráveis, em um processo em que podemos
apontar uma substituição do Estado e dos recursos institucionais classicamente
republicanos pelo poder judiciário, procurando garantir direitos e dar cobertura a grupos
sociais distintos tais como a criança e o adolescente, o idoso e os portadores de deficiência
física, os loucos, dentre outros. O juiz passa assim a assumir o papel de protagonista direto
da questão social. O cidadão, individualmente, e essas minorias ou coletividades
organizadas que se arregimentam e configuram, em suas lutas e reivindicações comuns e
difusas, em novos sujeitos de direitos passam então a mobilizar o arsenal de recursos criado
pelos legisladores a fim de conseguir vias alternativas para a defesa e eventuais conquistas
de uma série de direitos.
Segundo essa perspectiva, quando o Brasil se redemocratiza, após duas décadas de
ditadura militar e depois de percorrer um longo processo de transição, os constituintes de
1986 reformam a tradição republicana brasileira, sob o impulso da sociedade civil e dos
movimentos sociais.
Nesse sentido, a Constituição Brasileira de 1988 expurgou os elementos autoritários
presentes naquela tradição, afirmando os princípios e as instituições do liberalismo político,
revitalizando os direitos civis da cidadania, concedendo configuração institucional à
79
democracia política e instituindo novos mecanismos necessários para uma gestão pública
mais eficiente. Por outro lado, ampliou consideravelmente a presença da representação
funcional, recriou o Ministério Público e “consagrou o instituto das Ações Civis Públicas e
o tema do acesso à Justiça; e, sobretudo, admitiu a sociedade civil organizada na
comunidade dos intérpretes da Constituição” (VIANNA, BURGOS E SALLES, 2007,
p.42), fortalecendo e demarcando um papel preponderante para a participação social e
política da população brasileira.
Deste modo, de acordo com a Constituição Federal de 1988, o Ministério Público é
“instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a
defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis”. A Constituição estabeleceu o Ministério Público como órgão autônomo de
efetivação dos direitos do cidadão, e para isso, possui a característica de ser independente
aos poderes legislativo, executivo e judiciário.
Esta condição de independência e autonomia se configura como de suma
importância para o desempenho de suas funções reguladoras, uma vez que dentre essas
funções está a fiscalização das ações ou omissões dos órgãos governamentais ou poderes
públicos que ferem os direitos constitucionais.
Dentre seus procedimentos, na defesa dos interesses sociais e individuais
indisponíveis, na mediação de conflitos e na garantia dos direitos dos cidadãos, e mais
especificamente, dos portadores de transtornos mentais, o Ministério Público, de acordo
com a Constituição Federal e com as leis que o organizam, teria o
poder de requisição de informações e documentos (mesmo os de caráter sigiloso,
como o prontuário médico); o poder de notificar pessoas para comparecerem a fim
de serem ouvidas, sob pena de condução coercitiva; o poder de recomendar a
prática de determinados atos; o poder de fiscalizar locais de internação coletiva,
como hospitais e asilos, tendo livre acesso a todas dependências, etc.”. Além destes
procedimentos, com a finalidade de evitar uma ação ou um processo judicial, o
Ministério Público pode admitir o recebimento de um Termo de Ajustamento de
Conduta, que atua como um acordo para a reparação de alguma irregularidade.
(BRITTO, 2006, p. 104).
Especificamente no campo da saúde mental, o Ministério Público atuava
basicamente junto aos processos de interdição, realizando a fiscalização do processo, do
curador e na promoção da interdição. A partir da Lei 10.216/01, sua atuação foi aumentada.
80
A Constituição Federal determina que a privação da liberdade ou de bens seja
devidamente efetuada mediante a realização de um processo legal. Desse modo, na medida
em que na haja propriamente um crime que justifique a privação da liberdade efetuada
numa internação involuntária, esta se configuraria, a princípio, como uma desobediência à
Constituição. Contudo, a justificativa médica deste ato acaba por se fazer valer porquanto
se dirige para outros direitos essenciais também presentes no que determina o texto
constitucional, tais como o direito à vida, à saúde e à dignidade. Desse modo, este ato
médico, logo revestido de uma finalidade terapêutica, relaciona-se ao cumprimento desses
direitos, embora promova o recolhimento e a privação de liberdade dessas pessoas.
Ainda segundo Britto (2006, p.106),
a Lei 10.216/01, ao explicitar em seu texto a participação de uma instituição de
Direito, o Ministério Público, contribui para que as pessoas com transtorno mental
tornem-se cientes de seus direitos e tenham um órgão ao qual recorrer caso sintamse lesionadas em seus direitos e em sua condição de cidadão.
Assim, apesar do Ministério Público atuar na fiscalização e regulação desses atos,
não lhe cabe propriamente atuar como um revisor do ato médico. A decisão pela forma de
tratamento continua restrita ao conhecimento médico, ou ainda, a decisão de uma equipe
multiprofissional. Ao Ministério Público caberia, portanto, monitorar a política de saúde
mental como um todo, no funcionamento dos hospitais e serviços extra-hospitalares, na
forma como os recursos destinados à saúde mental vêm sendo utilizados, como os
familiares e curadores estão tratando de seus familiares e interditados, visando muito mais
um controle desses serviços, evitando irregularidades e/ou ilegalidades que porventura
possam estar ocorrendo, zelando pela qualidade da assistência prestada e na oferta de um
tratamento digno, respeitando os direitos fundamentais da população.
4.4. OS ANTECEDENTES E RISCOS DOS NOVOS SERVIÇOS
No que tange à reforma psiquiátrica, no Brasil e no mundo, algumas considerações
devem ser colocadas antes de enveredarmos no próximo momento anunciado: a “trajetória
da desinstitucionalização ou desconstrução/invenção” (Amarante, 1995a).
Voltando ainda para o período pós-guerra, e aprofundando uma discussão e
descrição já superficialmente realizada no capítulo anterior, vemos despontar uma série de
movimentos de reforma, os quais vicejaram com maior ou menor força e amplitude. Os que
81
obtiveram maior dose de sucesso, a nosso ver, o obtiveram por conta de sua adequação
tanto com alguns valores morais e éticos vigentes na época – marcada pela crítica ao
totalitarismo e pelo temor de experiências-limite tais como o nazismo, no mundo, e a
ditadura militar, no Brasil – quanto a determinadas estruturas político-administrativos de
governo vigentes e da luta empreendida por uma série de movimentos sociais pela
universalização do acesso e pela efetivação dos direitos.
Desse modo, junto com uma crítica ampliada a todo modelo institucional que se
assemelhe com os campos de concentração e extermínio, assim como dos maus-tratos e da
tortura com que foram submetidos prisioneiros de guerra e opositores de regimes
ditatoriais, o tratamento asilar, fortemente caracterizado pelo desrespeito aos direitos
humanos e o isolamento da comunidade, passa a ser percebido, por grande parte da opinião
pública e dentre alguns setores progressistas no âmbito do saber psiquiátrico, como um
dispositivo eticamente condenável, ineficiente e anacrônico.
O século XX, especialmente dentro da área da saúde, se configurou, por uma série
de fatores, como um palco privilegiado para a assunção de modelos de atenção centrados na
vivência em comunidade. Em parte por posições políticas e motivações econômicas, em
parte por conta de articulações e disputas internas da comunidade científica, conceitos
como a prevenção da doença, a promoção da saúde, a descentralização políticoadministrativa, o envolvimento da população e um enfoque comunitário em relação às suas
ações, começaram a ganhar força e a se difundirem mundialmente.
Vemos desenvolverem-se, nesse bojo, projetos como os da Medicina Preventiva,
Medicina e Psiquiatria Comunitária, dentre outros. Esses movimentos foram marcados por
tentativas de integração da dimensão social, tidas como presentes na produção das
enfermidades, e que vinham sendo excluídas da ação médica. Difunde-se, entre seus
principais axiomas, a concepção do indivíduo como uma “totalidade biopsicossocial
irredutível a um conjunto de estruturas e funções orgânicas” (REINALDO, 2008, p.174).
Além disso, durante e após a Segunda Guerra Mundial, nos Estados Unidos, entre
os anos 1940 e 1950, o grande número de jovens soldados que retornavam da guerra com
graves sintomas psiquiátricos contribuiu para impulsionar o desenvolvimento dos
pressupostos de uma psiquiatria comunitária.
82
As autoridades norte-americanas de saúde passaram a encarar a doença mental
como um problema social grave, que assumia uma maior proporção e significação diante da
necessidade de devolver os jovens soldados aos campos de batalha o mais depressa e
agilmente possível (REINALDO, 2008). Desse modo, diante da alta demanda apresentada e
da ineficiência e baixa resolutividade verificada no espaço asilar e hospitalar para esses
problemas, aliados ao alto custo e à necessidade de uma resposta rápida dos serviços de
saúde, novos dispositivos de assistência psiquiátrica são desenvolvidos e implementados
segundo uma linha político-conceitual que postula a concepção de saúde mental.
No entanto, a concepção de psiquiatria comunitária não era clara, mesmo entre
profissionais que assim se intitulavam, basicamente por conta de uma dificuldade na
conceituação de uma saúde mental comunitária, em oposição à psiquiatria hospitalar, assim
como no que se refere tanto ao entendimento do que vem exatamente a ser comunidade,
quanto em relação aos limites dessa proposta.
Nos Estados Unidos, após a guerra, os hospitais gerais passaram a aceitar pacientes
psiquiátricos, o que viabilizava, em certa medida, sua permanência nas comunidades de
origem. Apesar desses avanços registrados nos anos 1950, os hospitais psiquiátricos dos
norte-americanos contabilizavam cerca de meio milhão de pacientes internados. Além
disso, as condições precárias de assistência a essa população eram constantes alvos de
denúncias, protestos e críticas por parte da opinião pública.
Segundo Reinaldo (2008, p.174),
Em decorrência dessas pressões, o Congresso Americano, em 1955, criou uma
Comissão de Enfermidade e Saúde Mental, que, entre os anos de 1955 e 1963,
avaliou, discutiu e criou as bases políticas e jurídicas para transformar a assistência
psiquiátrica. A Comissão apresentou, em 1961, um relatório intitulado Action for
Mental Health que recomendava que fossem criadas bases de assistência
comunitária, leitos psiquiátricos em hospitais gerais. Os grandes hospitais
psiquiátricos deveriam ter seus leitos reduzidos, e outros não poderiam ser criados.
O espaço de ação da psiquiatria deveria ser expandido e incorporado à comunidade
como campo de atuação.
A partir de 1990, com a realização da Conferência de Caracas e a confecção de sua
declaração notadamente marcada pela doutrina dos direitos humanos, esse movimento
ganhou força e reconhecimento político, impulsionando uma série de mudanças em relação
às políticas públicas de saúde mental caracterizadas pela reestruturação da assistência
psiquiátrica, por uma racionalidade técnica mais eficiente e uma melhor aplicação dos
83
recursos financeiros e pelo desenvolvimento de novos serviços integrados à atenção básica.
A ênfase se voltava para o desenvolvimento de dispositivos comunitários visando o
tratamento precoce, contínuo e eficiente da enfermidade mental, desenvolvendo ainda as
noções de reabilitação psicossocial e de reinserção social do usuário da saúde mental.
A princípio, foram propostos alguns serviços intermediários, tais como pequenos
hospitais e clínicas para tratamento de alguns transtornos comportamentais ditos menores,
mas que acabaram por reproduzir o modelo do macro-hospital. O tratamento estava
centrado na figura do médico e na terapia farmacológica que, aliás, tem assumido nas
últimas décadas uma posição hegemônica, “presente desde pelo menos o final dos anos
1950 no campo da psiquiatria, como a terapêutica por excelência dos distúrbios mentais”
(RUSSO, 2006, p. 474-475).
No entanto, com a expansão dos programas de saúde mental comunitária se
empreendeu uma mudança conceitual e prática em relação aos tratamentos efetuados.
Além de focar a saúde mental, esses programas se propunham desenvolver ações
sociais e promover a qualidade de vida da comunidade. Novos profissionais são
incorporados às equipes, no sentido de consolidar a idéia de um ser biopsicossocial, o qual
deve ser acompanhado de diferentes formas e por diversos saberes.
Do mesmo modo, em todas as experiências realizadas em consonância com os
princípios da psiquiatria comunitária, existem determinados consensos acerca do que vem
ou não a ser o melhor para o paciente. Por exemplo, a noção de que o sujeito, mesmo
estando doente, pode elaborar melhor seus projetos de vida na comunidade, “partindo do
princípio de que a comunidade é o seu ambiente familiar e que a vida nesse ambiente é um
constituinte indispensável para o processo de saúde do sujeito” (REINALDO, 2008, p.176).
Noção esta que se fundamenta na idéia de que o sujeito doente tem maiores probabilidades
“de alcançar sua normalidade se viver e for tratado em um ambiente [...] o mais parecido
possível a seu lugar de origem” (op.cit., p.177).
Desse modo, a psiquiatria comunitária baseia seus pressupostos na idéia de que a
comunidade se configura em um ambiente onde existam as condições fundamentais para o
seu processo de recuperação. Além disso, por outro lado, acredita-se numa maior
probabilidade
de
diagnóstico
e
tratamento
precoce
de
possíveis
transtornos
84
comportamentais, favorecendo o controle social na medida em que produz uma população
informada acerca dos distúrbios e dos encaminhamentos adequados.
Conforme Reinaldo (op.cit., p.175), foram formuladas uma série de recomendações
e características primordiais para a prática de saúde mental na atenção básica, dentre elas:
estar associada às demais ações da atenção básica; assegurar o bem estar da
comunidade e do indivíduo; privilegiar as ações preventivas, individuais e
coletivas; alocar os programas de saúde mental em diferentes serviços de atenção
básica, formando uma rede de suporte e cuidados; realizar ações diretas e indiretas;
utilizar novas estratégias de abordagem em saúde; ter governabilidade; agregar
profissionais com diferentes formações, implicar a comunidade e, por fim,
considerar as características da comunidade.
Entretanto, apesar das mudanças efetuadas no enfoque da atenção psiquiátrica, a
psiquiatria comunitária apresentava ainda uma atuação centrada no binômio saúde-doença.
Desse modo, na medida em que a psiquiatria comunitária é uma disciplina médica que
incorpora conceitos oriundos da saúde pública e postula a reorganização dos serviços de
assistência psiquiátrica e social, apesar de estar inserida na comunidade, de modo geral, ela
não rompe necessariamente com os encaminhamentos realizados para o hospital
psiquiátrico.
Apesar da forte crítica ao modelo hospitalocêntrico, uma mera reestruturação dos
equipamentos e serviços de saúde mental pode manter ainda como referência final de
tratamento o hospital psiquiátrico, geralmente justificadas por limitações de ordem técnica,
tais como o esgotamento dos recursos terapêuticos disponíveis.
Além disso, grosso modo, o mandato social atribuído à psiquiatria comunitária,
enquanto programas de governo ligados a políticas públicas de saúde mental, se expressa
em uma ação de cuidados terapêuticos em psiquiatria e saúde mental, dirigida a uma
comunidade geograficamente limitada, definida mediante características sociais e
demográficas específicas. Logo, existe obviamente uma função social relacionada à ordem
social e, por extensão, à vigilância desta comunidade, à detecção e ao controle precoce de
fatores de risco que porventura possam causar sofrimento mental, além do
acompanhamento dos pacientes sabidamente em sofrimento, estando submetidos ou não a
tratamento medicamentos.
No Brasil, apenas na década de 1970 assistimos a incorporação da designação
biopsicossocial, característica das práticas de saúde e de saúde mental comunitária
85
fortemente ancorada nas proposições do que viria a ser o movimento pela reforma sanitária
– e, até certo ponto, do próprio movimento de reforma psiquiátrica – onde os conceitos e
práticas relacionadas à medicina comunitária passam então a exercer forte influência junto
à burocracia estatal ligada ao setor saúde em geral e à própria comunidade científica.
Contudo, em ambos movimentos problematizaram as bases teóricas e conceituais
dessa perspectiva preventivista e comunitária, avançando para posições e implicações
distintas. Na Reforma Sanitária, a análise crítica da medicina preventiva avançou para uma
discussão sobre a Saúde Coletiva, redefinindo as suas noções fundamentais, como o
processo saúde-doença, a história natural das doenças, o princípio da causalidade, a clínica
médica, dentre outros aspectos, com fortes conseqüências técnicas, assistenciais, políticas,
ideológicas e culturais. E no processo da Reforma Psiquiátrica as críticas sobre as reformas
da psiquiatria e sobre a psiquiatria preventiva avançaram, também, para um questionamento
dos conceitos fundantes da psiquiatria, de suas instituições e dispositivos, de sua função
ideológica de controle.
Talvez a principal crítica efetuada ao avanço da perspectiva preventivista e sua
influência na reforma psiquiátrica brasileira seja essa dimensão de controle e vigilância
efetuados a partir de seus dispositivos, o que aponta para uma possível mudança estratégica
e atualização do controle social do qual a psiquiatria se constitui num dos mais evidentes e
fortes mandatários.
Conforme Yasui (2003, p.91), a
psiquiatria preventiva norte-americana que nos anos 60 do século XX, sem a
conotação eugênica, mas com forte viés de controle, toma a sociedade como seu
lócus privilegiado objetivando a prevenção da doença mental por meio da detecção
dos comportamentos desviantes e de risco. A psiquiatria na sua relação com a
sociedade sempre foi o mais bem acabado exemplo do dispositivo da sociedade
disciplinar que investe na normalização dos corpos, como afirma Foucault (1979,
1983) e, posteriormente como acrescenta Deleuze (1992), da sociedade de controle:
do corpo dócil ao corpo útil, cúmplice, aparentemente participativo, consumidor.
Se nos colocamos na perspectiva de uma ruptura com esta racionalidade que
determina o lugar do cuidado da loucura como o do isolamento, da exclusão, da
disciplinarização e também como dispositivo que penetra na sociedade como
estratégia de controle, vigilância, domesticação, devemos estar atentos sobre as
relações entre a produção de cuidado e o território no qual se inscreve o serviço.
Essas críticas e reformulações evidenciam os riscos e as profundas repercussões
existentes na construção de novos serviços e novos modelos de atenção, tanto na prática
86
diária do cuidado e da assistência, quanto também para a escolha de estratégias distintas
condizentes com a especificidade da luta e do processo de reforma como um todo.
Assim, apesar de uma predominância no caso brasileiro de uma influência
basagliana, com o movimento de reforma apresentando uma inspiração francamente
inclinada para o processo de desinstitucionalização italiana, esses antecedentes históricos
dos dispositivos de base comunitária devem ser sempre lembrados. Quanto mais num
momento em que autores notoriamente envolvidos com tema da reforma, como Amarante
(2003) e Rodrigues (2003), denunciam um abrandamento da crítica aos dispositivos
manicomiais e do processo de reforma como um todo, com a redução do processo social
complexo a uma reinstitucionalização da psiquiatria, modernizando-a e renovando-a através
da implantação dos novos serviços.
Assim, ainda que esses novos serviços assumam uma lógica diferente da perspectiva
da psiquiatria preventiva e comunitária ao serem integrados em um movimento de
desinstitucionalização de inspiração basagliana, não podemos negar o seu potencial de
controle e esquadrinhamento da loucura em seu contato com o tecido urbano.
87
5. CONCLUSÃO
Alguém se inclinou sobre ele, um policial. Que lhe perguntou:
– Como é que está cidadão? Dá para agüentar, cidadão?
Isso ele não sabia.
Nem tinha importância.
Agora sabia quem era.
Era um cidadão...
(Moacyr Scliar, 2005)
Existem várias formas de se contar uma história. E até quando um mesmo evento é
presenciado por mais de uma pessoa, estas, ao explanarem seus testemunhos o fazem de
maneiras distintas, obedecendo a estilos e pontos de vista pessoais que, apesar de
inevitavelmente trazerem um corolário de pontos comuns na descrição do ocorrido, alteram
e influenciam sobremaneira a leitura das cenas compartilhadas. Cada observador colore a
sua narrativa com tons e nuances próprias, estendendo determinado ponto, encolhendo
outro, ignorando ou achando irrelevante o que na narrativa vizinha se avoluma e assume
uma centralidade na discussão. Assim, cada narrativa se faz de tal forma singular que não
podemos dizer que o seu somatório permita uma visão mais correta ou que esgote as
possibilidades de leitura dos acontecimentos, por assim dizer, historicizados.
Assim, mesmo quando pretendemos construir uma História e englobar com um
furor enciclopédico a leitura de documentos, textos, entrevistas, ou mesmo as lembranças
vivenciadas do que narramos, inelutavelmente tingiremos nossa descrição com uma
aquarela peculiar. Mesmo na busca de uma pretensa neutralidade científica que porventura
possa construir o mais objetivo e imparcial dos textos, sempre haverá uma dimensão
ficcional impressa, menos por uma autoria propriamente dita e mais por valores e formas de
argumentação e leitura próprias do tempo e do contexto em que a obra se situa e
desenvolve.
Quando nos debruçamos sobre os estudos e publicações que discorrem sobre o que a
história do movimento de reforma psiquiátrica brasileiro, nos deparamos com esse quadro
esboçado acima. Essas histórias, apesar de trazerem um corpo comum de circunstâncias e
interpretações dos marcos e enredos políticos e sociais subjacentes, trazem a marca dos
seus narradores e do contexto em que foram escritos, seus anseios, suas urgências, seus
enfoques e perspectivas mais caras, suas vinculações e pertencimentos, numa palavra, sua
implicação.
88
De modo geral, conforme anunciado na introdução e apresentado no segundo
capítulo do presente trabalho, existem o que podemos chamar de relatos históricos oficiais
da reforma psiquiátrica brasileira. Seus principais narradores são, eles mesmos,
personagens, protagonistas desse processo descrito e analisado. Aliás, diante disso,
podemos dizer que seus próprios relatos se constituem em instrumentos políticos de luta e
afirmação de suas proposições e reivindicações. Narrativas e discursos que se apropriam
dos percursos e acontecimentos vividos para consolidar os avanços obtidos e impulsionar
novas transformações, mantendo acesa a chama insurrecional do movimento, seu projeto e
sua agenda política.
Dentre os textos pesquisados – livros, artigos, dissertações e teses – podemos
perceber uma mesma estrutura rondando os eventos concatenados, organizados segundo o
modelo das trajetórias, momentos ou percursos da reforma. Do mesmo modo, a descrição
dessas trajetórias não escapa de uma tentação ‘periodicizante’, e acaba por delinear
justamente aquilo que se pretende escapar com essa estrutura de análise: as trajetórias
indicam diferentes etapas, enlaçadas num processo de cunho evolutivo, seqüencial,
progressivo e linear. Suas rupturas se fundem sem que fiquem cicatrizes capazes de apontar
propriamente seu caráter disruptivo.
Grosso modo, podemos dizer o mesmo acerca dos relatos referentes ao conceito de
cidadania. Talvez por conta de tratarem as vicissitudes desses conceitos na forma de
projetos políticos específicos, com características teleológicas, as histórias da reforma
acabam se emoldurando tal como a teoria marshalliana da cidadania, geracional, linear e
progressiva. De uma brandura e brancura não condizente com a arena dessas lutas.
Afora uma dificuldade em transmitir através de palavras a atmosfera das batalhas,
podemos entrever aspectos que indicam ou forjam uma semelhança entre os relatos
históricos acerca desses conceitos. Ambos se apresentam como projetos abertos, em
construção, compartilhando cronologicamente um mesmo ‘era uma vez’ e em busca de um
‘foram felizes para sempre’.
Assim, por um lado, poderíamos supor uma deficiência do texto, uma incapacidade
dos autores em transmitir a profundidade e sutileza das rupturas descritas. Por outro, e é por
onde prefiro caminhar e se espraia a tese central do presente trabalho, essa linearidade é
reflexo – e reforça – elementos intrínsecos a cada projeto e conceito em particular: a noção
89
de direitos, no caso da cidadania, e o enunciado da doença mental, no que tange aos
movimentos de reforma psiquiátrica.
A articulação entre cidadania e loucura, ou, melhor dizendo, entre a cidadania
moderna e a doença mental, como vimos, é antiga. Ambos os conceitos compartilham de
uma mesma aurora. Do mesmo modo, os dois projetos interagem, se influenciam e se
constrangem.
É nos momentos de ebulição social, nos períodos ditos revolucionários, que as
maiores transformações são impulsionadas. Seja na Revolução Francesa, ou em momentos
como o pós-guerra e suas críticas ao totalitarismo ou maio de 1968, observa-se uma difusão
pública de protestos, manifestações, um sentimento de revolta e um desejo de mudança
compartilhado por um coletivo insurgente.
Ao lançarmos nosso olhar para esses acontecimentos e as ondas geradas pela pedra
quando atinge a superfície desse ‘lago social’, agitando-a, podemos perceber a eclosão de
uma potência criadora que se abranda na medida mesma em que se reinstitucionaliza – e a
superfície do espelho d’água se amansa novamente.
Assim, quando o movimento que gera ao redor do mundo o que chamamos de
doutrina dos direitos humanos incide sobre o conceito de cidadania e seu exercício, é
também quando o olhar sobre a forma como a loucura é abordada e tratada se reconfigura.
É contra um mesmo incômodo que a psiquiatria e a política se transformam, assim como
diversos outros campos e dimensões da existência humana.
No Brasil, a perspectiva dos direitos humanos incide no arcabouço jurídico e
assistencial relacionado ao louco e à psiquiatria – campo específico focalizado pela análise
empreendida no presente trabalho – redimensiona a relação entre cidadania e loucura,
gerando uma forma específica de exercício e garantia dos direitos, aqui denominada como
uma espécie de ‘cidadania café-com-leite’.
Esse conceito diz respeito a forma como se articulam e apresentam o conjunto de
direitos, leis e a política pública relacionada à saúde mental. Apesar de indubitavelmente
reconhecer no louco a condição de sujeitos de direitos, por conta de sua especificidade
enquanto sujeito coletivo – usuário de serviços de saúde mental ou portador de transtornos
mentais – esse reconhecimento traz consigo uma visão estigmatizada e estigmatizante
desses sujeitos. Mesmo quando, nos documentos produzidos no âmbito do movimento,
90
como a Carta de Direitos, se pretende ampliar a visão dessas pessoas e respeitar a
pluralidade de dimensões de vida e superar a centralidade geralmente imposta nesse aspecto
específico desses sujeitos – sua loucura – as próprias proposições e reivindicações se
vinculam a uma condição negativa.
Assim, quase podemos ler nos itens produzidos um argumento do tipo ‘apesar de
estar louco eu posso...’, que, a nosso ver, ao contrário de produzir um lugar social
efetivamente ativo para a loucura como produção, potência, criação continuam impingindo
a falta, o ‘menos’, a ausência de habilitações como marca distintiva da loucura.
Obviamente, não se quer aqui negar as dificuldades vivenciadas pelos sujeitos
considerados loucos no trato social e na gestão de suas vidas. Do mesmo modo, é patente e
inegável a desvantagem social no que se refere a inclusão no mundo do trabalho, no
desenvolvimento da sua escolarização, no seu sustento pessoal. O que se quer é apontar a
continuidade de noções como incapacidade ou deficiência por conta da adoção de padrões
universais de caracterização e avaliação do ser humano e das diferentes formas de existir e
viver.
A idéia de universalidade que fundamenta a expansão irrestrita dos direitos de
cidadania a todas as pessoas está recheada por padrões ocidentais que vão servir de base
para a construção de modelos e significados comuns para o que venha a ser considerada
uma vida digna, uma capacidade laborativa adequada, um bom nível de interação social.
Se por um lado, a idéia de universalidade possibilitou o reconhecimento legal dos
direitos do louco, por outro, reforçou, no que tange a imagem jurídica desses sujeitos, o
foco nas suas incompetências e dificuldades segundo a exigência de equalização das
condições efetivas de usufruto desses direitos.
Não obstante o inegável avanço efetuado na percepção dessas pessoas como
passíveis de inserção social e desenvolvimento individual, a rede de cuidados e suas
necessidades especiais os conformam como quase-sujeitos, condicionados a um aval e
acompanhamento multiprofissional. E é justamente esse o ponto que nos permite utilizar a
expressão ‘café-com-leite’.
Assim, uma série de direitos são reconhecidos, tais como ir e vir, ser devidamente
atendido pelos serviços de saúde, liberdade de expressão e de associação, de receber
educação, e morar dignamente, etc. No entanto, além de condicionados pela noção de
91
intervalos lúcidos e da possibilidade de suspensão desses direitos segundo um ato médico,
novas formas de tutela são erigidas. À antiga pedagogia da sociabilidade que fundamenta o
tratamento hospitalar de tipo asilar se articula uma pedagogia da autonomia como um
aprendizado efetuado no sentido de ensinar a viver e gozar desses novos direitos.
Desse modo, ao se apoiar nas deficiências e dificuldades apresentadas, os programas
desenvolvidos com o fim de equalizar essas diferenças, as denominadas ações afirmativas,
acabam se direcionando muito mais para uma negação dos aspectos negativos do que
propriamente uma afirmação das capacidades e dos aspectos positivos, ainda que esteja
implicitamente calcada no reconhecimento de uma capacidade positiva de mudança e
aprendizagem.
Essa cidadania tutelada por benefícios especiais e cuidadores se articula ainda com
uma nova rede de serviços em saúde mental de cunho comunitário. Como vimos, os
antecedentes dessa proposta, calcados em diretrizes sugeridas pela psiquiatria comunitária,
atualiza o mandato social da psiquiatria ao mesmo tempo em que, com essas novas
condições de trabalho impostas tanto pela exigência de serviços abertos, quanto pelo novo
estatuto jurídico do portador de transtornos mentais, produz novos olhares e práticas
segundo a entrada em cena de uma equipe multiprofissional.
A lógica do acolhimento e do cuidado em saúde mental com a adoção dessas
equipes ampliadas abre a possibilidade de relativizar o poder médico ao mesmo tempo em
que põe em baila novos olhares e enfoques sobre a loucura. A divisão de tarefas e a própria
divisão das escolhas clínicas redimensiona a atenção prestada.
No entanto, os riscos de efetuação de um controle acentuado na vida desses sujeitos
aumenta, na medida mesma em que, se tratando de espaços abertos e muitas vezes
interligados, os olhares e projetos terapêuticos podem tender a invadir os espaços de
moradia e o cotidiano como um todo dos usuários desses serviços e seus familiares. À
liberdade de ir vir se acopla uma necessidade de acompanhar e vigiar.
Na verdade, apesar das limitações de um estudo de caráter teórico-conceitual no que
se refere à análise das práticas concernentes ao campo de saber investigado, podemos
perceber uma proliferação de dispositivos de controle exercido de forma difusa por vários
atores sociais envolvidos em um mesmo enredo. Da mesma forma como existem formas de
controle e vigilância dos portadores de transtornos mentais, são também disponibilizadas
92
instâncias de participação e controle do ato médico, exercidas pelos usuários desses
serviços e por instituições extra-psiquiátricas, em particular, assumindo um papel de
destaque, o Ministério Público.
Dessa forma, as decisões relacionadas ao tratamento e à observância dos direitos
garantidos por lei são divididas pelos usuários e seus familiares tanto no nível individual,
do acompanhamento clínico e psicossocial, quanto coletivas, assumidas pelas associações e
organizações coletivas desses atores. Esse controle social, em linhas gerais, se volta para a
construção de bases aceitáveis da tutela exercida sobre os pacientes psiquiátricos, bases
estas constituídas a partir dessa participação e do exercício dos seus direitos políticos.
Quanto à atuação do Ministério Público, suas competências se restringem e
direcionam em zelar pelos direitos desses sujeitos, não interferindo propriamente no ato
médico relacionado aos processos terapêuticos e mesmo os mecanismos de interdição
eventualmente acionados segundo essa prerrogativa. De certo modo, ao contrário de
significar uma limitação não desejada sobre as ações e competências concernentes ao saber
psiquiátrico enquanto saber especializado, essa limitação acaba por assumir um caráter
necessário, uma vez que os olhares leigos são, muitas vezes, influenciados por noções
difundidas na opinião pública, ao senso comum, podendo estar baseados em estigmas e
preconceitos difundidos socialmente.
A cidadania, em seu aspecto jurídico-normativo, construída até o momento para
esses novos sujeitos de direitos – os loucos – apresenta um caráter de avanço, no que tange
à agenda política do movimento de reforma, mas também explicita algumas limitações em
parte próprias do próprio exercício da cidadania, e em parte por conta de sua filiação ao
enunciado da doença mental.
Ainda que a análise aqui desenvolvida esteja centrada num eixo específico do
processo social complexo com o qual se concebe o processo de desinstitucionalização e a
própria reforma psiquiátrica como um todo, suas conclusões se justificam e ganham um
estatuto mais abrangente justamente pela complexidade e constante interação exercida entre
os eixos. Assim como as transformações relacionadas ao arcabouço jurídico vão determinar
a forma de atuação dos novos serviços, as visões disseminadas pela opinião pública e a
própria base conceitual e epistemológica irá exercer um papel determinante na forma como
os direitos são pensados e vivenciados.
93
Sem sombra de dúvida, vale ressaltar, os avanços farmacológicos registrados nos
últimos anos são de suma importância na argumentação em prol dos direitos civis e da
liberdade de ir e vir desses sujeitos. Do mesmo modo, a manutenção do enunciado da
doença mental acaba por justificar uma série de benefícios e direitos que facilitam e
garantem melhores condições de vida para essa parcela da população, principalmente diante
da forma como a sociedade está atualmente estruturada, centrada em valores como o
trabalho e a autonomia.
Mais do que erigir uma conceituação revolucionária da loucura, o que a reforma
psiquiátrica realiza, e talvez aí resida seu grande mérito, é uma atualização na forma como
percebemos e tratamos a loucura, atualização condizente com as tendências e os contextos
sócio-políticos vivenciados nos dias correntes.
A afirmação dos direitos de cidadania dos portadores de transtornos mentais
produziu por um lado uma renovação do saber e prática psiquiátricos e, por outro a
assunção de novos sujeitos de direitos com a possibilidade de incidir diretamente nas
políticas públicas e na maneira mesma como a loucura é percebida.
Na medida em que se apresenta como projeto aberto, em construção, a articulação
entre a reforma psiquiátrica e a cidadania brasileira tem ainda um longo caminho pela
frente. As disputas e embates estão longe de terminar e, mesmo a afirmação recorrente de
constituir um novo paradigma não elimina as oposições e críticas aos seus argumentos e
postulados. Além disso, o efeito universalizante de suas proposições e lutas traz consigo a
possibilidade de por em cheque e rediscutir as próprias bases de entendimento da existência
humana e na forma como as relações sociais se estabelecem e fluem no cotidiano.
O enunciado da doença mental produz uma série de responsabilidades concernentes
a um mandato público exercido pela psiquiatria e pelos outros saberes incluídos nessa
discussão. Psicologia, educação física e artística, direito, antropologia, assistência social,
enfim, são muitos os olhares e perspectivas que ingressaram nesse campo de atuação.
Contudo a centralidade no enunciado da doença mental tem a capacidade de reduzir todas
as possibilidades de análise a um foco restrito e limitado de antemão.
Muitas experiências têm sido desenvolvidas com graus variados de ousadia. Ainda
que existam limitações no que tange ao arcabouço jurídico-normativo às estruturas técnicoassistenciais, nos aspectos positivos concernentes aos loucos, suas obras delirantes e suas
94
formas diferentes de encarar e construir a vida, agora libertos, ainda que tutelados, é onde
reside a nosso ver a possibilidade de redimensionar a percepção social da loucura, para
além da patologia, dos tratamentos e terapêuticas.
Por fim, resta a aposta ou esperança de que as astúcias dos loucos – no sentido
designado por Michel De Certeau (1999) para as múltiplas possibilidades de sentido
existentes na comunicação e na linguagem – produzam o reconhecimento da obra ou do
poder de verdade do discurso delirante. E de que essas astúcias, apesar da condição cafécom-leite, possam afirmar a positividade desse mesmo discurso delirante em pé de
igualdade com qualquer outra forma de leitura da vida e do mundo.
Então... Quem sabe?...
95
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