Diogo Macedo morreu há precisamente

Transcrição

Diogo Macedo morreu há precisamente
PRAXES
TEXTO FELÍCIA CABRITA
NA TUNA
Diogo Macedo morreu há precisamente
três anos. Feitos hoje. Com 22 anos e frequentando o
4.° ano de Arquitectura, o futuro parecia-lhe risonho. Morreu
como? Oficialmente, de hemorragia cerebral. Mas um
médico levantou a ponta de um véu: espancado. Colegas da
faculdade seriam os responsáveis, em ritual praxístico que terá
derrapado. O processo judicial foi encerrado em 2004 por
falta de provas e os suspeitos ilibados. Mas os fios desta teia
escapam-se entre os dedos de quem os queira atar
■^■^^
^^Ê^m á momentos em que uma mãe deve deixar
H
H partir o filho, soltá-lo na estrada e amá-lo,
H
H quer ele volte para si ou não. Maria de Fátima
^^^^^^l^^|
Macedo sabe que deve ser assim, mas sofre
H
H como se lhe fossem feitas feridas sempre que
I
I o encontra - E encontra-o por todo o lado.
H
H
Não lhe pode virar costas, tão-pouco
^^Ê^
^^^^ o coração. Ele anda por aí. Não lhe conhece
o paradeiro, e ele transporta um terrível enigma que até aqui ninguém conseguiu desarmar. Maria não desiste. O coração da mulher funciona como
um arpéu, agarra todas as memórias do filho, desde as dores tortas do parto
às traquinices; o esboço dos primeiros sonhos, os suspiros dos primeiros
amores, o dia da despedida. Embala-os. De quando em quando, liberta do
gancho uma recordação. Anima-a, espera que ganhe formas, de seguida
põem-na a caminhar ao encontro dele. Segue-a. Mas não será natural tudo
isto numa mãe que perdeu o filho jovem, quando prometia ser um brilhante arquitecto, na peugada do pai? Sobretudo quando ela sabe que
o filho não morreu de morte natural ou de acidente, mas foi fatalmente
espancado por quem se dizia seu amigo e estava com ele todos os dias?
O Outono, ao contrário do costume em terras do Minho, instalara-se
suave. Aquela segunda-feira de Outubro de 2001 podia ter sido igual
a outras tantas na vida de Diogo Macedo. De manhã cedo, sai de casa e
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r
dirige-se às instalações da Universidade Lusíada em Famalicão. Abrira o ano
lectivo, o estudante estava feliz. Com 22 anos e já no 4.° ano de Arquitectura, deve ter pensado com alívio que aquela etapa estava quase no fim.
Depois partiria para o estrangeiro para se especializar em Urbanismo.
Espanha ou Itália, ainda não decidira. Era ambicioso e teria sido capaz de
grandes projectos. Não imaginava que a realidade, na sua veemência cruel,
poderia maltratar os seus sonhos. Na faculdade, o histerismo da praxe crescia
à medida que as horas passavam. Os caloiros entravam à força no mundo
enviesado dos adultos. Os alunos mais velhos, apóstolos do amanhã, futuros
doutores que iriam um dia pelo mundo fora, embriagavam-se com os efeitos e as certezas do poder sem pressentirem o óxido que este sentimento
transporta. O que há de mais fundo nesta conduta de jovens é a incapacidade de distinguirem o bem do mal.
Diogo, apesar de trajado a rigor, tendo na capa os crachás da Académica,
uma das tunas da Lusíada, acompanha a recepção ao caloiro com distância.
Está num estado de espírito diferente dos anos anteriores. Tinha tomado uma
decisão que parecia inabalável. Passou a manhã com Albino Fonseca, colega
de curso e de tuna, a falar sobre estes e outros assuntos. Bino—todos os tunos
têm uma alcunha - discorre com pausas como se recuasse no tempo para ver
melhor o quadro: «Nós tínhamos sido massacrados durante tanto tempo que
estávamos saturados da praxe. Já nos incomodava, porque cada vez que praxávamos recordávamos o nosso percurso.»
PRAXES
Nos olhos azuis, muito grandes, de Bino correm nuvens do passado.
Recorda os primeiros passos de Diogo na faculdade. De quando em quando
suspira, mecanismo que a saudade acelera. Tinham os dois 18 anos. Diogo
parecia correr para o futuro guiado pela sorte. Nascera numa família rica, das
melhores de Braga. A fortuna pode ser um afia de ciladas, mas também as
atrai. A sua casa era mais do que um lar, era uma cidade. Falava-se de tudo.
Jorge Macedo, o pai, vivera as convulsões académicas nas Belas-Artes do Porto,
nos anos 70 do século passado, com os assomos que a sua personalidade, não
de extremos, permitira. Homem de esquerda, que viveu Abril sem compaixões
e sem ódios. Portanto, sereno. O filho cresceu sem as imposições dos saldos
históricos, ou seja, em liberdade. Maria, por seu lado, estava ali para o amar
com a predisposição das mães. Um caldo equilibrado.
Talvez por isso, Diogo nunca tenha sentido necessidade de esgrimir com
a sua boa estrela e perder-se, como outros colegas, nos corredores loucos do
álcool e das drogas para tourear a realidade. De nada precisava para se afirmar,
e não escondia a goma com que a família e ele se protegiam. Era diferente?
Tudo leva a crer que sim. Levava tudo a sério e arrastava o passado sem
cedências, apesar da embirração quase alérgica que isso convocou. Na altura
estava imbuído de espírito académico, seja isso o que for, e esforçou-se para
entrar na tuna da faculdade. Bino acabara de se estrear e olhou-o pela
perspectiva dos outros. «Até eu o gozava. O Diogo não ia para lado nenhum
sem telefonar e avisar a família.» Na tuna, a sua forma de estar era alvo de
chacota dos mais velhos.
O
tempo passava, a Académica ganha nome, tem um vasto repertório,
impõe-se nos festivais. Viajam muito. Diogo é pandeireta. Cada vez
que sobe ao palco esquece as torturas a que vem sendo submetido,
porque nunca na vida, fosse no que fosse, fizera uma entrada frouxa. Apesar
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de se aplicar cada vez mais para melhorar a performance, os tunos, passados
dois anos, não o elegiam para o seu seio. Mantinha-se «tuninho», o estagiário
que aguarda no limiar da entrada a decisão de os tunos lhe abrirem a porta,
deixando, nesse arremedo de luta de classes, de ser servo para passar a ser
senhor. Diogo e Bino, porque eram de facto diferentes, tinham sido eleitos
como alvos de praxes constantes. Umas violentas, outras humilhantes.
«Eu dava apoio ao Diogo e vice-versa. Dizia-lhe: "Vamos aguentar mais um
bocado que depois passamos a tunos".» Mas não havia meio. Passaram os dois
anos habituais, depois três, já estavam no quarto ano do curso e nada. Até que
uma prudência instintiva fez com que Bino abandonasse a tuna.
Nesse dia, Bino percebe que Diogo também seguiu os seus passos.
Mantinha aceso o espírito académico, como se via pelo orgulho com que desfilava de traje, mas os rituais da tuna haviam-se tornado estranhos à sua vida.
«Fiquei espantado, porque ele disse-me que já tinha saído da tuna há algum
tempo.» Deve ter sido a primeira vez que disse «quero», em vez de «devo».
Decisão que mudaria tudo de forma irreversível. Saíram ao mesmo tempo
da faculdade. Diogo tinha um corpo atlético e ar solene. As caloiras
paravam onde ele passava. O rosto parecia delineado por uma bordadeira
de bilros. Era de cortar a respiração. As raparigas, educadas no transe
moderno da igualdade, deixam escapar: «Bué de bom.» Diogo estava
habituado. Colhia os efeitos dos devaneios que provocava nas raparigas e
guardava-os, pois coisas desta
fineza não devem partilhar-se. Além de rico, era belo, inteligente e delicado.
O coração do rapaz, desde muito novo aberto às singularidades do amor,
pingou durante o trajecto de regresso a Braga. Liliana Morais esperava-o
ansiosa num restaurante. Tinham sido aque-| Ias três últimas características
que a conquis-I taram. Conheceram-se numa discoteca no i Porto.
Diogo está com amigos e descobre-a. Em dois tempos, trava conversa:
«Nem era meu costume, mas achei piada à abordagem. Era um sedutor,
tinha um olhar enigmático, era muito educado, diferente dos rapazes que
conheci. Um cavalheiro.»
Liliana tem um sorriso lindo, quente e verdadeiro Os cabelos, com reflexos
de veludo, emolduram-lhe o rosto pálido. A estocada do amor atingira-a, mas
nunca saberá como poderia ter acabado. Pouco importa. O amor tem as temporadas das aves de arribação, e é sempre lindo quando pousa. A única areia
que estorvou a caminhada entre os dois foi precisamente o facto de Diogo
pertencer a uma tuna. «Ele gostava de praxar, divertia-se com isso, e eu nunca
tinha ligado às tradições académicas. Eu tinha a ideia de que as tunas faziam
muitas viagens, muitas actuações. Eram borguistas e não ligavam aos estudos,
mas o Diogo contrariava isso tudo.»
Ela foi-se adaptando, ele era irresistível. Acabou mesmo, para lhe fazer
o gosto, por comprar também o traje académico. Só o estrearia para se despedir
dele, assim ganhando o epíteto «A noiva de luto». Também as suas lembranças
estão presas ao moinho daquela segunda-feira. Não receia a dor e recua
no tempo para recuperar as pistas que expliquem a partida dele. Nesse dia,
a conversa batia na mesma tecla, a vida deles. Estavam os dois a estrear
o romance, e portanto encantados. «De importante, disse-me que ia sair
da tuna. Repetiu-o várias vezes ao almoço. E nem disse que tinha a intenção
de ir ao ensaio ou à faculdade nessa noite.»
D;
iogo já estava de pijama quando Maria chegou a casa. Também
ela I não encontrou uma sombra no olhar do filho nem vacilações
na sua
fala. A mãe ainda não conhecia a rapariga, mas conhecia a alma do
filho para se deliciar com o olhar pasmado do amor: «Andava muito bem-disposto. Uma mãe sente essas coisas. Passava a vida a correr para o telefone,
a receber toques. Havia ali namorico!» Após o jantar e as conversas triviais sobre
Diogo está esquecido no WC. Quando
os olhos dele se enevoaram, como os de um afogado,
alguém decidiu chamar a ambulância. No trajecto para
o hospital, «Arrepio» ouve as versões dos outros:
«Disseram-me que ele tinha sido praxado, que fizera
umas 70 flexões. Mas não liguei as coisas. Os mais
velhos falavam de indigestão.» Certo e seguro é a hora a
que Diogo deu entrada no Hospital de Famalicão, a uns
metros da universidade, em coma profundo. Eram
exactamente 22h51
o dia, Diogo sobe ao quarto. Pouco depois, desce. Está vestido com ar de quem
vai sair. O pai faz-lhe o sermão: «Olha que já começaram as aulas!» E o rapaz
respondeu com a firmeza que punha nos momentos sérios: «Não vou sair, pai.
Vou só à tuna resolver a minha vida e volto já.» Pegou nas chaves do Seatlbiza
e na carteira com os documentos. As pandeiretas, sem as quais nunca saía
quando ia para os ensaios da tuna, ficam em casa. Maria não teve pressentimentos nem o questionou. No sábado, ouvira um telefonema do filho para
Pedro Soares, o «Melro», colega da faculdade. A voz de Diogo era áspera. Dizia
ao outro que nunca mais iria para a tuna. A mãe tirou a conclusão: «Sabia que
ele estava muito descontente por nunca mais passar a tuno, mas tinha um
sorriso malandro nos lábios e pensei que no regresso nos daria a boa notícia
de que finalmente era tuno. Alguém nesse dia lhe deve ter dito isso.»
Quem o terá convencido a sair, quando já estava de pijama? Terá recebido
um telefonema? Melro, outro pandeireta, não percebe o que fez o amigo
mudar de ideias. Eram vizinhos e, como não tinha carro, contava sempre com
ele para os ensaios: «Ele sabia que eu dependia dele para ir ao ensaio e não me
telefonou. Portanto, nunca teve ideia de ir.» Eram 21h30 quando Diogo saiu
de casa. O mais fiável, para compreender o que depois se passou, é a roda do
tempo, que não tem desvios nem caprichos, muito menos intenções. Chega
à faculdade um quarto de hora depois. O tempo habitual que fazia de Braga
a Famalicão. Mal entra no átrio é praxado por um dos tunos. Não certamente
o que previra. Dirige-se à sala da tuna, como era sua intenção, sem pressentir
pequenos ou grandes desastres. A partir daí, os pormenores são secretos, e as
fiéis testemunhas possuem um idioma próprio, impossível de compreender
caso alguém os oiça sem darem por isso. As versões são tantas, as horas e os
locais de certos eventos são tantos que só há um raciocínio seguro: a verdade
não está em lado nenhum.
José João Nóvoa, o «Arrepio», foi o último tuninho a falar com Diogo.
A história desenrola-se sem esforço na sua mente, sem estratégias, quanto
muito receios. Vê-se que sabe mais do que diz, mas não mente, omite.
Chegou atrasado à sala da tuna, faltavam dez para as 22h00 e já se instalara a
confusão: «Não sei quantas pessoas estavam. Eram certamente mais do que
uma, talvez duas ou três, mas estava muito stressado por chegar atrasado e nem
olhei para eles. Estive sempre a olhar para o chão.» Um dos tunos — também
aqui a memória é granítica em relação a identidade de quem deu a ordem disse-lhe que fosse para a casa de banho cuidar do Diogo, que se encontrava
maldisposto. Seriam 22h00 e pouco.
Diogo está esquecido no WC, junto aos lavatórios. As costas curvadas, a
cabeça quase a bater o chão. «Perguntei-lhe se estava bem.» Por um momento
recobrou forças. Resistia. Encostou a cabeça à parede. O rosto parecia estar
coberto por uma máscara branca. As palavras saíam-lhe dos lábios, sem cor,
em sussurros: «Tentou dizer-me alguma coisa; não se percebia nada. Depois
ficou inconsciente.» Foi quando os olhos de Diogo se enevoaram, como os
de um afogado, que alguém decidiu chamar a ambulância. «Arrepio» e mais
dois tuninhos seguem para o hospital. No trajecto, ele ouve as versões dos
outros sobre o que se teria passado: «Disseram-me que ele tinha sido praxado,
que fizera umas 70 flexões. Eu, que nunca "enchi" mais de 20, pensei: "Ele se
calhar fez alguma e foi castigado." Mas não liguei as coisas. Os mais velhos
falavam de indigestão.» Certo e seguro, porque há registos indesmentíveis,
é a hora a que Diogo deu entrada no Hospital de Famalicão, a uns metros
da universidade, em coma profundo. Eram exactamente 22h51.
P
arecia que uma pancada atingira Diogo e lhe esvaziara o cérebro. Maria
e Jorge chegam a Famalicão quando o filho entra na ambulância e segue
para o Hospital de São João, no Porto. Da fiada das recordações
suspensas na memória de Maria, há uma que não lhe dá sossego: «Entrei em
choque. Já não consegui ver o seu rosto lindo. Estava todo entubado.» Seguem
a ambulância e, pela velocidade, a mulher sente o primeiro aviso sério da proximidade da tragédia. Jorge liga para o irmão cardiologista em São João.
Luís Filipe Macedo liga para o director clínico, amigo de longa data da família
Estava, portanto, tudo a postos no Porto. Luís da Cunha Ribeiro, o director
clínico, que andara com Diogo ao colo, não tinha condições para imaginar o
pior: «Diogo entra em coma profundo com a suspeita de hemorragia cerebral, o que é logo tratado pela neurocirurgia.» O rapaz não dava sinal algum
de apego ávida. Maria não sai do hospital. Fala como se rezasse com o rosto
do filho nas mãos, convicta de que o amor de mãe faz magias. Não fazia. Os
dias passavam e o estudante não saía do coma. Recorre às influências da fé.
Pelas três da tarde, a família, junto ao corpo inanimado de Diogo, enlaça as
mãos e evoca orações. No Bom Jesus, frei Hermano da Câmara e outros
monges juntam-se à corrente. Diogo está noutra realidade. A suspeita de que
perderia o filho tomou Maria: «Até fui a Fátima pedir um milagre. Mas o meu
filho não era meu. Foi-me emprestado, porque ele não era deste mundo!»
Os moliços não encontravam explicação para a hemorragia cerebral. Diogo
tinhajjrna saúde de ferro, e resistente, sempre praticara desporto. Todos sabiam
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PRAXES
que fora praxado no dia em que entrou em coma, mas não ligavam uma coisa
à outra. Que teria provocado a lesão? Partem para a hipótese de aneurisma
congénito. Fazem-lhe exames, a angiografia não confirma a suspeita. Sete dias
depois de ter entrado em coma, Diogo desapega-se de forma irreversível
da vida. Cunha Ribeiro está confuso: «Apesar de o exame não confirmar
o aneurisma congénito, sabíamos, de todas as formas, a causa da morte —
hemorragia cerebral. Por isso não fizemos autópsia. Pensámos que tudo tinha
sido um grande azar. Nunca suspeitámos de crime.»
As dúvidas bailavam-lhe na cabeça. Nessa noite, Cunha Ribeiro janta com
António Guimarães, colega do hospital. Conversam sobre o assunto. A imaginação deste aquece, tenta preencher os espaços em branco, à medida que
sabe os pormenores que antecederam a entrada do Diogo no hospital: «E se
a morte tem alguma coisa a ver com a praxe?» Há coisas que se recordam como
se fosse ontem. Guimarães, homem de ímpetos, põe-se a matutar apenas nos
factos concretos. Faz dois telefonemas: «Um penso que foi para o filho, que
estava ligado a uma associação académica, e de seguida fez outro», recorda o
colega. «Nunca soube o que lhe disseram, porque saiu logo da minha casa.»
Nem se saberá: Guimarães suicidou-se pouco depois.
N
o dia seguinte, 16 de Outubro, o corpo de Diogo está na igreja para
as cerimónias fúnebres. O templo está apinhado. Maria instalara-se
na irrealidade, convicta de que tudo era um sonho. Convidara os
tunos para as exéquias, pensando que isso contribuía para a aliviar do peso da
morte do filho. Pedira-lhes que, antes da missa, tocassem a música preferida
de Diogo. Dispõem-se com os instrumentos ao lado do caixão e Maria junta-se a eles. «Teu nome ao Luar» ecoava na igreja: «Tuna! De ti eu levo a saudade/
e farei uma maldade com o meu coração/ Tuna da minha universidade serás
sempre a verdade, a minha ilusão.»
Os acordes das violas, o trinar do bandolim e as pandeiretas enchem a igreja.
Bino abre tréguas no divórcio da tuna para se despedir do amigo, e canta com
o grupo. Tem Diogo afundado no peito, mas a lucidez não o abandonara:
«Fiquei chocado, porque vi elementos da tuna que, enquanto ele foi vivo, não
demonstraram qualquer amizade. Falavam-lhe mal e, de repente, vejo-os
a chorar.»
Liliana está anónima na multidão, vestindo pela primeira vez o traje académico, em honra do namorado. Quase no fim, a canção parece ter dedicatória:
«Uniram-se na noite acordes de guitarra e doces canções/ da janela à calçada
pude ver tua face coberta de ilusões/ E ao ver teus lindos olhos, e ao ver teu
lindo rosto/ As estrelas disseram teu nome ao luar.» Mas ela não está preparada
para a despedida: «Essa perda não tem reparo. Pela idade que tínhamos e pela
situação em que estávamos. Se calhar no início de alguma coisa...»
Quando os tunos terminam, a igreja está submersa de emoções. O padre
inicia a missa, mas é logo interrompido. Um oficial de justiça suspende a
celebração. O procurador da República do distrito de Braga recebera a
denúncia de um médico de São João. Era Guimarães, que desde que
abandonara a casa de Cunha Ribeiro se armou em investigador e recolhera
informações que contrariavam a causa de morte no assento de óbito. Espalhase a notícia de que Diogo poderia ter sido assassinado pela própria tuna.
i ! Grande Reportagem j 16 OUTUBRO 2004
O médico parecia conhecer todos os passos do estudante naquela segunda-feira. Nem poupa os colegas: «O jovem foi ontem à tarde desligado das
máquinas que o mantinham vivo, porque estava em morte cerebral. Teve,
imagino, a certidão que V Ex.a ou eu próprio teríamos, isto é, foi um pedido
da família, e, no nosso nível social, deve ter tido direito àquela que os seus, ou
os meus familiares, teriam pedido para evitar uma autópsia médico-legal.
Apesar do horror que está por trás da sua morte, peço-lhe a humanidade de
não levar até às suas consequências qualquer procedimento que venha a pôr
em cheque o colega que passou uma certidão de óbito de clemência (...).
Venho por isso formalmente denunciar o que pode ter sido uma morte
violenta (...), e V Ex.a, tenho a certeza, tomará a atitude que a lei exige que
tome: impedir o enterramento daquele jovem antes que seja tarde.»
As convicções de Guimarães eram muito fortes. Via-se, pelo relato da missiva, que estava na posse de informações seguras, exige a autópsia do cadáver.
Roçava a ameaça: «Poupe à família a dor de uma exumação a posteriori, que
será bem mais funda do que sentirão enquanto o corpo está na igreja.
Exumação essa que acontecerá porque não vou parar por aqui.» O corpo de
Diogo é levado para o Hospital de Braga. As mais variadas histórias circulam.
Cunha Ribeiro está sem palavras: «A situação foi de estupefacção. Se não fosse
trágico, era surreal. Mas hoje, ao ver a carta do Guimarães, verifico que ele teve
conhecimentos pormenorizados que não sei como obteve.»
■L iTaria, essa, está sintonizada com a loucura. Os calmantes, muitos, \
/1 c°locanvna à margem dos acontecimentos. A suspeita de crime V
JLlançada na igreja nem a abala: «Não podia acreditar que alguém
tuna pudesse matar o meu filho, tanto que no dia a seguir à autópsia,
ando foi o enterro, telefonei de novo para os tunos para fazerem uma
menagem ao meu filho. Tinham-me dito que morrera de morte cerebral,
ra nisso que eu acreditava.» As pessoas concentram-se no átrio da igreja.
; elementos da Académica rodeiam o tio de Diogo. Luís Filipe, que
Mnpanhou o sobrinho durante a hospitalização, não dá qualquer
iportância à denúncia do colega e acalma os tunos. nquanto Maria e a
família são arrasadas pela fatalidade, a Académica
lobra-se em contactos e convoca uma reunião. Ligam para Bino: «Achei
ío. Porque é que queriam falar comigo, se eu nem sequer estava lá e até .
abandonado a tuna? Não fui, mas soube por outros colegas que a reu-i
era para acertar a história. Uns, para tirar dúvidas porque estavam lá mas i
assistiram pois se encontravam na sala de cima; outros, porque estavam
nas era como se não estivessem. Uma grande confusão. A única versão que
da boca deles é que o Diogo estava a ser praxado, começou a sentir-se mal,
à casa de banho e caiu para o lado.»
Como se, na intimidade da sala da tuna, cada elemento fosse obrigado a
istrar as cartas, verdadeiras ou falsas. Alguns não aceitaram o papel que lhes
distribuído e abandonaram a tuna. Nuno Quintas da Silva, o «Giga», um
linho que não estava presente no ensaio, também foi chamado. Talvez
por ) tenha tomado a decisão de sair: «Ficou definida uma versão para os
fac-, com horas demarcadas e alguns detalhes, que foram reduzidos a
escrito.» nedida que as personagens começavam a revelar o conflito agudo,
que sem rida marcaria as suas vidas, alguns abandonam o palco. Arrepio, o
último linho a falar com Diogo, deu o exemplo: «Não estava com o espírito
de tu-com o espírito da alegria. A imagem e as recordações de um amigo
como fogo vinham sempre a cabeça, e desisti.»
4aria pula de recordação em recordação. O nome do filho sai-lhe da boca
no se fosse um bocado de carne arrancado ao corpo. Só tomou conheci-
Maria convidara os tunos para as exéquias, pensando que isso contribuía para a aliviar
cio peso da morte do filho. Os acordes das violas, o
trinar do bandolim e as pandeiretas enchem a igreja
apinhada. Quando os tunos terminam, o templo
está submerso de emoções. O padre inicia a missa,
mas é logo interrompido. Um oficial de justiça
suspende a celebração. O procurador recebera uma
denúncia contrariando o assento de óbito. Espalha-se a notícia de que Diogo poderia ter sido
assassinado pela própria tuna
mento do resultado da autópsia neste ano de 2004, no Carnaval. Não era
partida. O processo judicial, aberto com a denúncia do médico - que a Polícia
Judiciária (PJ) não conseguiu ouvir antes do suicídio —, fora encerrado por
falta de provas. Maria não se conforma. Durante algum tempo, a seguir à
morte de Diogo, viveu com cepticismo a denúncia da suspeita de homicídio.
A sua família tornara-se muda, triste. De repente, a mãe que fugira da vida voltou a si. Lentamente, como convalescente. Iniciou uma investigação própria,
ouviu colegas de Diogo. A certeza cresceu, e foi surpreendida por nova dor.
Os olhos da mãe de Diogo pousam no relatório, depois regressam com
o brilho de uma navalha lançada no escuro. Dias antes de receber o registo
médico-legal, teve um sonho: «O meu filho estava num cantinho, todo
encolhido, com muito medo. Eu só queria subir umas escadas e ir ao céu
perguntar-lhe o que se tinha passado. Olhe para o que aqui está escrito.
Deram-lhe um ensaio de pancada até o matarem.» O cadáver do rapaz apresentava lesões por todo o corpo. Parecia obra de carrascos experimentados.
Maria Antonieta Dias, médica legista, não podia ter sido mais clara no
depoimento que posteriormente prestou à PJ em relação às causas da morte:
«Esta resultou de um traumatismo crânio-encefálico e cervical, no entanto
foram encontradas no cadáver outras lesões traumáticas, das quais se destacam algumas equimoses, bem como hematomas (designadamente no
Cerebelo, sendo que este poderia, por si só, determinar a morte) dispersos
pelo corpo. Isto significa que essas lesões foram provocadas por traumatismos com origem violenta.»
Acompanhe-se o moinho das lembranças de Maria, que parece ter parado
na tal segunda-feira, entre as 2 lh30 e as 22h50, à luz do parecer científico de
Maria Antonieta: «Explica ser muito pouco provável que, usando simplesmente as mãos (e sem quedas subsequentes), se produzissem os traumatismos
cerebrais que atrás aludiu. Provavelmente resultaram de uma ou várias
pancadas fortes, admitindo-se mais facilmente o choque violento no chão, na
parede ou em peças de mobiliário que pudessem estar no recinto em que
os factos sucederam (...) Não sendo de excluir a possibilidade de pontapés
desferidos na cabeça e em outras partes do corpo da vítima.»
PRAXES
A
história tem de fornecer um motivo para o homicídio. Quem teve
oportunidade, como lhe chama a polícia, para matar Diogo? O estudante chega à faculdade com o estado de espírito que se conhece.
Entrou sem as pandeiretas, ou seja, não pensava ensaiar. Leva apenas a carteira
com os documentos e o telemóvel. O que o fez mudar de ideias em relação à
tuna ninguém saberá, mesmo que estivesse vivo e reinasse no coração de muita
gente, era sob a forma de fantasma. Seguramente no de Olavo Almeida, o
«Tavinho». Cruzaram-se nessa noite mal a vítima entrou no átrio da faculdade.
Tavinho era mais velho dois anos. Cursava também Arquitectura, mas fazia
parte da classe eterna dos repetentes. Tocava viola na Académica e acalentava
a esperança de chegar a magister, responsável máximo da tuna. O gosto
da música vinha de trás.
Nasceu na Régua, onde teve uma banda. Filho de professores primários
com pedaços de terra onde cultivavam vinha, cresceu no campo com os animais. O primeiro sonho foi ser veterinário. O segundo, sair da província,
o que conseguiu quando entrou na Faculdade de Arquitectura da Lusíada.
O dinheiro não faltava, tão-pouco as tentações: «Posso dizer que só conheci a
liberdade quando cá cheguei. Comecei a sair à noite. Conheci muita gente
nova em bares, até comecei a trabalhar num deles sem receber nada, só pelo
prazer.» O rapaz estreia-se em vícios, entre eles o álcool. O curso fica para
segundo plano. Qualidades modernas que gerem agora a vida académica e
seleccionam líderes. Entra para a tuna em 1996. A Académica impunha-se
nos festivais, ganhava prémios, conhecia mundo. Mas a fama baixa à medida
do êxito.
Gabriel Oliveira, magister áa. tuna de Filosofia da Universidade Católica
de Braga, acompanha-os em muitos espectáculos e estabelece as diferenças:
«Nós víamos nas actuações que tínhamos juntos que havia droga na tuna.
O Diogo e o Bino afàstavam-se deles. Por isso eram alvos de praxes mais duras.
Isto causa inimizades.» Gabriel tem rosto pálido e olhos tristes. É um jovem
atencioso e correcto, animado por ideias cristãs que ajudam a melhorar a
realidade. O comportamento da Académica em relação a Diogo desorienta-o: «Soube por ele que era o alvo das praxes mais duras. Desde as flexões a
embebedarem-no para atravessar à noite um rio, ou abandonarem-no na
estrada, nu, sem dinheiro nem telemóvel, e ter de fazer a pé o percurso até
Braga. Havia ali qualquer coisa contra ele. Ele era um excelente pandeireta, já
estava no 4.° ano e não o passavam a tuno. Era realmente muito esquisito.»
Tavinho era dos mais velhos membros da tuna e um dos instigadores das
praxes. Os tuninhos quando o viam predispunham-se, tal como o animal de
estimação de Pavlov, aos enxovalhos. «O Diogo estava com um grupo de
tuninhos quando entrei no átrio. Eles já sabiam que no momento em que eu
aparecesse tinham de "encher".» Era o dia de entrada dos caloiros, e os ensaios
realizavam-se em três salas do mesmo edifício. Duas no piso superior, a 10 e
a 9, e a sala da tuna, no rés-do-chão. Foi para esta que todos se dirigiram.
A
partir daqui, descobrir a verdade é como perseguir uma luz
errante num espesso nevoeiro. Fazendo o cruzamento da história
contada por cada personagem, é possível apontar uma hora segura. Às
2 Ih45, pelos menos 15 pessoas estão na sala da tuna. Estende-se a galeria
de suspeitos. Quem contará a verdade? Diogo continua a ser praxado.
Flexões atrás de flexões. Ambiente agreste para o estudante que desaparecera
há meses sem dar explicações. Os olhos negros de Tavinho pestanejam
quando coloca o disco da memória a correr. É um jovem magro, nervoso, e
tem um olhar perplexo: «Perguntei-lhe por que é que há cinco meses não
punha aqui os pés. Fie dizia que era a família que não deixava.» O tuninho
acaba de encher mais 20 flexões e inquire Tavinho: «Posso-me levantar,
tuno?» O outro, que estava animado, entendeu que não: «Puto, então estás
meio ano sem aparecer e já não'sabes como me chamo?» O castigo continua,
e foi nesse momento que entra na arena Armando da Costa, o «Telhado», que
lhe desfere com o boletim da faculdade um golpe no pescoço. O passado ainda
abafa Olavo Almeida, o Tavinho. «Era uma revista para aí com 20 páginas,
não era essa pancada que lhe faria mal.
62 í Grande Reportagem | 16 OUTUBRO 2004
MARCADOS PELO DRAMA
Da esq. para a dir. e de cima para baixo, Luís da Cunha Ribeiro, à época director clínico do Hospital
de S. João {hoje director do Instituto Nacional de Emergência Médica), José João Nóvoa, José
Afonso, Olavo Almeida, USana Morais, Ricardo Nuno, Albino Fonseca e Pedro Soares
Depois disso ainda se levantou, riu-se e subiu para a sala 9, para o ensaio.»
A seguir, deu-se uma mudança de cenário e de hora que sustentou duas
estratégias. Os grupos dividem-se. Seis membros da tuna permanecem na sala
a tirar os acordes de uma música nova que o contrabaixista Paulo Pereira,
o «Armário», que haveria de tornar-se o suspeito n.°2 da PJ, depois de Tavinho,
trouxera das férias. Os restantes, entre eles Diogo, subiram para
o piso de cima. Seriam 22h30, segundo, claro, o consenso quase geral. De facto, transportar Diogo para outro local poderia ser um excelente álibi. E assim
distribuíram também um papel à vítima, mas de pouca visibilidade. Quase
ninguém o viu, não se sabe se estava sozinho a ensaiar na sala 10 ou no corredor. A essa hora, já Diogo estava no papel de fantasma, porque a maior parte
dos tuninhos nada viram. Diz-se que se ouviam as pandeiretas. As adaptações
não batem certo, porém. Luís Miguel Dias, o «Coimbra», o ensaiador, destrói esta tese junto da PJ: «Quando saiu desta sala ficaram na dita, para além
do Diogo, pelo menos os que atrás citou, que não acompanharam o depoente
escadas acima (...) Nem se lembra de Diogo ter entrado na sala 9.» Também
João Pedro Faria, o «Clone», caloiro que se estreou nesse dia, tem a memória
vazia desse pormenor: «Deixou de o ver quando saiu da sala da tuna, pelo que
ignora se o mesmo caiu ou lhe aconteceu alguma coisa Não o viu a ensaiar
sozinho, nem tocar pandeireta, mas imagina que o tenha feito.»
Em baixo, na sala do grupo, seis tunos permanecem imóveis. Como se fossem actores atrás de uma cortina. Tentam apagar aquela noite. Uns sabem
melhor do que outros como preencheram o tempo. Tavinho, que seria constituído arguido, ensaiava a tal nova música celta que Armário, com quem era
unha com carne, escolhera Ricardo Nuno, o «Amarelo», estava presente. Hoje
remexe nos trapos do passado com os olhos presos no chão, como se quisesse esconder uma culpa qualquer. Gostava de Diogo e vice-versa: «Isso é o que
se fala; eu não me recordo se ficámos a tirar acordes ou não.» E se não tivesse
havido ensaio? Durante a investigação policial, alguns tunos são
interceptados. Tavinho e Armário caem numa escuta esclarecedora.
O primeiro, constituído arguido havia três dias, tinha a noção de que muitas
perguntas mais se iriam fazer. A conversa com o inspector e dois depoimentos
de tunos com que fora confrontado deixam-no alerta. Diziam que ele
e Armário foram os únicos a sair antes da má disposição de Diogo: «Pronto,
o que ele [inspector] pensa é que estivemos todos na conversa na sala da tuna,
mas depois, ouve, ficamos quatro ou cinco a sacar aquelas músicas novas,
lembras-te?» E Armário: «Não». «Tavinho» insiste, porque a repetição às vezes
aviva a memória: «Pronto, ficámos na sala para aí quatro ou cinco a sacar as
músicas e o resto do pessoal foi lá para cima para a sala 9 ensaiar, percebes?»
atrás de flexões. Ambiente agreste para o estudante
que desaparecera sem explicações. Os olhos de
«Tavinho» pestanejam: «Perguntei-lhe porque é
que há cinco meses não punha aqui os pés.» O
tuninho acaba de encher mais 20 flexões e inquire
Tavinho: «Posso levantar-me, tuno?» O outro
entendeu que não. Entra Telhado, que lhe desfere
com o boletim da faculdade um golpe no pescoço.
«Era uma revista para aí com 20 páginas, não era
essa pancada que lhe faria mal»
Não, Armário não percebia o recado, apesar de ser ele, segundo a versão
tunística, a trazer a nova canção: «A ideia que eu tenho é que nem se chegou
a ensaiar nesse dia...» «Tavinho» interrompe, repete tudo de novo. A terceira,
Armário finalmente percebe: «É provável, é.» O ensaio sobre música celta, nas
conversas ouvidas pela PJ, tornava-se cada vez mais hipotético.
E
ram 22h25 quando Diogo, alegadamente indisposto, terá descido
as escadas sozinho, dirigindo-se à casa de banho. Tiago Fernandes,
b «Chippie», tocador de bandolim, sai da sala para atender um
telefonema. Fica no hall em frente à sala da tuna. Se Diogo tivesse descido,
ter-se--iam cruzado. Na altura já «Tavinho» e Armário haviam saído, só
ficaram três tunos. Mais uma vez, as versões não encaixam. Na sua
história, os dois suspeitos não abandonaram a sala e ainda viram Diogo
descer as escadas. Na escuta seguinte, atrapalham-se. «Tavinho» dá
corda: «O facto é que o Chippie e o «Comuna» [José Afonso Antunes]
disseram que nos viram sair juntos da sala no momento em que ele já estava
sozinho, e ele [o inspector] pensa que fomos nós que lhe demos a coça.» E
«Armário», muito despachado: «Mas isso é fácil de dar a volta, porque quando
saí contigo já o «Pêras» [Diogo] estava a descer as escadas com alguém a pegar
nele, que eu até disse: "Levem--no à casa de banho." Portanto, alguém deve
ter visto.»
Durante os cinco minutos em que Chippie esteve ao telefone, ninguém se
cruzou no seu caminho, nem Armário, nem Tavinho, muito menos Diogo.
Quando regressa à sala da tuna, ouve a voz enfraquecida do colega: «Parecia
estar na casa de banho, no piso imediatamente inferior ao da sala
da tuna, o que significa que teve de passar pelo patamar desta ao descer.
No entanto, não o vi descer.» Diogo apelava a Amarelo, provavelmente
a única pessoa, depois de tudo o que passara, em quem depositava confiança.
Estava este sentado na sala da tuna e passaram no mesmo instante dois
tuninhos: «"Estão a chamar por mim. Ora vede quem é." Um deles disse-me
que o Diogo não estava nada bem. Nessa altura só já estava eu e o Comuna
na sala. Foi ele quem chamou a ambulância.»
Diogo terá abandonado a sala da tuna, com os tuninhos, para a sala de cima?
Tudo leva a crer que não. Nova escuta entre Tavinho e Armário faz pensar.
Destacam-se, por isso, na longa lista de suspeitos. A conversa tem o ritmo e o
humor negro de um filme de série Z. Armário discorre com aspereza sobre o
assunto, talvez a idade o fizesse sentir imortal: «Depois tem-se uma conversa
com eles, convém saber o que se passa. Aliás, metade dos tuninhos nem
estavam nesse momento, nem sequer faziam parte da tuna nessa altura. Olha,
foi no primeiro dia deles.» Risos pegam com os risos do Tavinho: «Já viste, que
primeiro dia fixe?» E Armário: «Ah! Mas não viram nada, não se passa nada.
Nem sabiam o que... [imperceptível].»
Arrepio é mais um elemento desestabilizador em relação à versão oficiosa
dos estudantes. Chegou atrasado com outro colega. Eram 21h45. A sala
estava eléctrica, e ele não se lembra dos rostos, porque histórias como esta
mais vale ocultá-las. Atrase-se agora o relógio 15 minutos para a coisa bater
certa e recorde-se que a esta hora já Clone estava a ensaiar no piso de cima
com outros tuninhos. Os tunos pareciam não pôr grande empenho
no acontecimento e mandam Arrepio para a casa de banho ver o que
se passa com Diogo. Eram 22h05, segundo este. Aliás, confirmadas
por Paulo da Cunha, o «Passos», que chegou à mesma hora: «O Diogo
já estava a sentir-se mal na casa de banho.» Entre tunos e tuninhos a hora
não bate certa. Um quarto de hora basta para fazer a diferença entre a PJ
portuguesa e a inglesa Agatha Christie. Diogo acabaria por chegar
ao hospital por volta das 23h00. Por onde andou entretanto?
Outro mistério: como apareceram os documentos e o telemóvel de Diogo
na mão de Arrepio? «Alguém me deu as chaves no Hospital de Famalicão para
eu ir buscar as coisas ao carro. Fui e entreguei ao «Tirs» [Nuno Salgado], que
ligou depois para a família a avisar.» «Tirs», o magister, não estava no ensaio,
enquanto a ambulância se deslocava para o hospital. Os tunos chamam-no.
Ficou por lá uns momentos a ouvir o que se tinha passado. Mais um
pormenor desconcertante. Hélder Cardoso, o «Caramulo» - um dos tunos
presentes -, jura a pés juntos que foi ele quem encontrou o telemóvel
e a carteira de Diogo numa mesa da sala de ensaio. Então quem teve interesse
em colocar tudo no carro?
O
processo judicial correu e foi finalmente encerrado este ano por falta
de provas. Uma coisa era certa para os investigadores: as chamadas
efectuadas e as recebidas por Diogo naquele dia tinham sido
apagadas. Mas nem se deram ao trabalho de pedir a listagem à operadora.
O inspector, quando o tio de Diogo pediu contas, saiu-se com uma brilhante
tirada: «Não há crimes perfeitos, mas também não há investigações perfeitas.»
Grande parte dos envolvidos, para manter a coisa secreta, não quer
jornalistas na história. Calafetaram-se num mutismo desdenhoso. Vários
repetem: «Vocês contam a coisa à vossa maneira.» Mesmo os que aceitaram
a conversa não conseguem libertar nenhuma má experiência ou má
recordação, pois fora do grupo não têm com quem partilhar. Estão
condenados a armazenar. Confrontados com o resultado da autópsia,
a maioria tem a mesma opinião de Tavinho: «Deve ter levado porrada forte
e feio, mas não foi na faculdade. Pode ser uma ideia maquiavélica, mas para
mim foi o médico que fez a denúncia quem lhe fez isso.»
Maria necessita de alguém capaz de ir além dos factos concretos.
Alguém que imagine o que aconteceu. Já era tempo de a família ter uma
pausa. Mas não. O marido morreu a seguir ao resultado da autópsia.
Um cancro consumiu-o. Da família, resta-lhe a filha, nascida antes de
Diogo. O olhar de Maria, de uma imobilidade que não é terrena, parece
ter alcançado uma aparição inverosímil: «Nunca me convenci da morte
dele. Sinto uma força tão grande dentro de mim que, se enfiar as mãos
na terra, acho que a levanto. É o Diogo quem me dá essa força para
continuar.» E3
16 OUTUBRO 2004 | Grande Reportagem ; 63

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