Teoria do Direito Contemporâneo: Novas Reflexões a Partir da

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Teoria do Direito Contemporâneo: Novas Reflexões a Partir da
TEORIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO:
NOVAS REFLEXÕES A PARTIR DA
PERSPECTIVA DAS TRÊS
MATRIZES JURÍDICAS
CONTEMPORARY THEORY OF LAW:
NEW REFLECTIONS FROM THE
PERSPECTIVE OF THREE
LEGAL MATRICES
Luis Gustavo Gomes Flores1
Resumo: Pretende-se, com o presente texto, apresentar a perspectiva das Três Matrizes Jurídicas como uma importante contribuição de Leonel Severo Rocha,
autor de grande relevância para a formação do pensamento jurídico brasileiro,
sobretudo no âmbito do desenvolvimento da pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Trata-se de uma perspectiva crítica sobre as insuficiências da dogmática
jurídica, privilegiando uma observação e reflexão complexa do Direito da Sociedade. Para tanto, a reflexão aqui proposta se pauta por uma epistemologia
sistêmico-construtivista, que se inscreve na própria perspectiva da Matriz Pragmático Sistêmica, cunhada por Rocha, vista como um espaço único para pensar o
Direito em face dos desafios contemporâneos. Com base em uma pesquisa bibliográfica, reconstroem-se alguns singelos aspectos importantes da trajetória desse
grande pensador, bem como algumas particularidades de sua construção teórica
que nos interessa acentuar, em especial, a configuração representativa do campo
jurídico a partir das Três Matrizes do Direito.
Palavras-chave: Teoria do Direito. Três Matrizes Jurídicas. Teoria dos Sistemas
Sociais. Autopoiesis do Direito.
1
Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos – UNISINOS, Advogado, Professor do Curso de Direito da FADERGS, RS.
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Novas Reflexões a Partir da Perspectiva das Três Matrizes Jurídicas
Abstract: The aim of this text is to present the perspective of the Three Matrices of
Law as an important contribution of Leonel Severo Rocha, an author of great
relevance for the formation of the Brazilian legal thought, especially in the
development of research and postgraduate studies in Law. It’s a critical
perspective on the shortcomings of the legal doctrine, favoring an observation
and complex reflection of Law Society. Therefore, the reflection proposed here
is guided by a systemic- constructivist epistemology, which is in very prospect
of Matrix Pragmatic Systemic coined by Rocha, seen as a privileged to think the
law in the face of contemporary challenges space. Based on a literature review,
it reconstructs some single and important issues of the trajectory of this great
thinker as well as some aspects of his theoretical construction that interests us
emphasize, in particular the scope of the legal representative configuration from
the Three Matrices of Law.
Keywords: Theory of Law. Three Matrices of Law. Theory of Social Systems.
Autopoiesis of Law.
Sumário: Introdução. 1 Sobre o Autor da Teoria das Três Matrizes Jurídicas. 2 A
Teoria das Três Matrizes Jurídicas. 2.1 Matriz Analítica. 2.2 Matriz Hermenêutica. 2.3 Matriz Pragmático-Sistêmica. 2.4 Teoria dos Sistemas Sociais. 2.5 O
Direito a partir da noção de “Organização”. 2.6 A herança temporal da Modernidade no Direito. 3 Paralelismo Temporal. 3.1 O Direito e suas duas formas de
programação. Considerações Finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Escrever sobre Leonel Severo Rocha é escrever sobre um grande pensador da sociologia e filosofia jurídica, um dos principais nomes da Teoria
do Direito Contemporâneo no Brasil. Assim, com o presente texto, buscase apresentar algumas contribuições de Leonel Severo Rocha, de grande
relevância para a formação do pensamento jurídico brasileiro, sobretudo
no âmbito do desenvolvimento da pesquisa e Pós-Graduação em Direito.
Para tanto, em um primeiro momento, busca-se conhecer melhor Sobre o
autor da Teoria das Três Matrizes Jurídicas (1). Trata-se de uma observação
sobre aspectos relevantes de sua jornada teórica, que é mais ampla do que o
exposto e continua se desenvolvendo como contribuição para sofisticação
da Teoria do Direito. Em um segundo momento, numa perspectiva mais
teórica, propõe-se a apresentação de sua Teoria das Três Matriz Jurídicas (2).
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Nessa perspectiva, descrevem-se a Matriz Analítica (2.1); a Matriz Hermenêutica (2.3) e a Matriz Pragmático-Sistêmica (2.3), com destaque para esta última matriz, que indica a perspectiva de seus trabalhos contemporâneos. A
partir dessa perspectiva teórica, outros temas ganham novos contornos. Para
melhor compreensão, interessa-nos apresentar a Teoria dos Sistemas Sociais
(2.4), enquanto ponto de partida para essa perspectiva teórica; O Direito a
partir da noção de “Organização” (2.5), um tema referência não apenas à
perspectiva autopoiética, mas também aos tribunais como um espaço privilegiado para a produção da decisão jurídica; e A herança temporal da Modernidade no Direito (2.6), na qual o tema do Tempo, revisto sob a perspectiva autopoiética, é observado a partir de um Paralelismo Temporal (3). Nesta mesma
linha teórica é que Rocha apresenta reflexivamente O Direito e suas duas formas de programação (3.1). Trata-se de alguns temas fundamentais desenvolvidos por Rocha, que servem de estímulos para arriscarmos novos percursos.
Vale destacar que este trabalho2 é fruto de um olhar específico, incapaz de esgotar as perspectivas possíveis sobre a obra de Leonel Severo Rocha. Uma espécie de observação da observação, mas, cabe aqui destacar,
através de uma perspectiva contingencial, pois não se pretende indicar como
Rocha pensa, e sim como, a partir de um “observador”, se pode compreender alguns aspectos do trabalho deste autor.
Em larga medida, esta exposição traz consigo, de forma silenciosa,
além da gratidão, respeito e admiração, também um pouco de quem escreve3. Isso significa que escrever sobre Leonel Severo Rocha é também escrever sobre o meu percurso, assumidamente muito inspirado no autor e em
sua trajetória com Luis Alberto Warat4. Como na perspectiva autopoiética,
Convém mencionar também que o presente trabalho constitui-se, sobretudo, como um registro
de respeito, gratidão e profunda admiração por esse grande pensador, orientador e amigo, Leonel
Severo Rocha.
3
Aqui, conscientemente, assumo algumas lições transgressoras da forma (da narrativa impessoal)
para escrever na primeira pessoa, a fim de priorizar a importância da mensagem a ser
compartilhada com o leitor.
4
A partir dessa influência, também se justifica que os pontos tratados no presente trabalho foram
aqueles que mais me chamaram a atenção. A escolha dos assuntos traz impressa a minha
tônica de observação e, por sua vez, também explica a inspiração de alguns de meus trabalhos
– um local de partida, que também impulsiona desenvolver, em algum momento, uma produção
de diferença, um movimento natural de construção de autonomia, nada para com a ideia de
afastamento ou de rompimento, mas de uma construção autônoma e respeitosamente forjada
nos ensinamentos de Leonel Severo Rocha e Luis Alberto Warat. Algo que, de certa maneira,
pode nos remeter simbolicamente à ideia de “Autopoiese”.
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quando um elemento novo é recepcionado pelo sistema, podendo desencadear uma nova reorganização a partir da diferença assimilada, as ideias de
Leonel Severo Rocha tiveram uma importante ressonância em minha jornada acadêmica, possibilitando novas formas de observação, o que fez grande diferença.
As reflexões deste trabalho transportam o sentimento de que já era o
momento de textos como este serem produzidos: uma homenagem mais
do que merecida. Um espaço para compartilhar as ideias de Rocha, um
olhar praticamente transdisciplinar, com conexões sofisticadas que atravessam amálgamas complexos de conhecimentos filosóficos e sociológicos.
Um pensador de “peso” intelectual ímpar, com incursão internacional, em
meio a tantos outros autores renomados. Extrema competência e modéstia
andam ao lado da grandiosidade de sua contribuição teórica, tanto no desenvolvimento da pesquisa, da docência e da Pós-Graduação em Direito
no Brasil.
1 SOBRE O AUTOR DA TEORIA DAS
TRÊS MATRIZES JURÍDICAS
Leonel Severo Rocha é um pensador brasileiro de grande importância no Direito. Sua trajetória intelectual se confunde com o desenvolvimento da pós-graduação em Direito no Brasil. Rocha possui uma grande história no âmbito da docência, coordenação de programas de pós-graduação e
desenvolvimento teórico do Direito.
Graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM (1979). No âmbito da graduação, Rocha viveu
um momento especial, que teria consequências marcantes para sua jornada
acadêmica: o encontro com Luis Alberto Warat na cidade de Santa Maria.
Na época, Warat tinha sido contratado pela UFSM, onde ministrava a disciplina de Filosofia do Direito e montou um grupo de estudos que inicialmente possuía quatro alunos, entre eles, Leonel Severo Rocha.
Posteriormente, o autor argentino foi transferido para a Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Rendendo-se aos estímulos de Warat para realizar o mestrado, Rocha decide seguir o mestre, indo para Florianópolis, onde ingressou no Curso de Mestrado na UFSC (1980). Construiu
sua dissertação sob orientação de Warat, com quem também desenvolveu
uma grande amizade e compartilhou inúmeras realizações. Rocha defen-
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deu sua dissertação no ano de 1982. No ano seguinte, juntamente com inúmeros juristas importantes da época, Rocha participou da refundação do
CONPEDI, do qual, posteriormente ocupou o cargo de presidente.
Em 1984, Rocha foi à Paris fazer seu Doutorado na Ecole des Hautes
Etudes en Sciences Sociales – EHESS. Um período intelectual extremamente
fértil, no qual Rocha teve a oportunidade de interagir com os maiores pensadores da época. Com efeito, um privilégio único poder realizar o curso de
doutorado em um local “de ponta”, onde se poderia ter contato com muitas das maiores mentes da filosofia e sociologia ocidentais.
Foi por este motivo que, durante esse período de doutoramento na
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales – EHESS –, Rocha teve a oportunidade de participar de inúmeros seminários ministrados por pensadores
renomados, como Cornelius Castoriadis, Edgar Morin, Alain Touraine,
Pierre Rosanvallon, entre outros. Também assistiu inúmeras palestras no
Colége de France, entre as quais se poderia citar, com destaque, Jürgen Habermas e Karl Otto-Apel. Além disso, também participou de diversos congressos internacionais, nos quais estavam presentes François Ost, AndreJean Arnaud, Boaventura de Souza Santos, Ota Weinberger, MacCormick
e Ronald Dworkin.
No desenvolvimento de sua formação, Rocha interagiu com autores
renomados e consagrados mundialmente, como também, por exemplo,
Michel Foucault, de quem quase foi orientando – como Foucault estava no
Colege de France, que não era propriamente uma universidade, e também,
em seguida, acabou falecendo, Rocha foi orientando de Claude Lefort. Desenvolveu sua tese de Doutorado em francês sobre Rui Barbosa, entre os
anos de 1984 e 1989, uma obra de dimensões políticas, filosóficas, sociológicas, jurídicas e históricas extremamente ricas.
Rocha retorna, então, ao Brasil, sendo Coordenador do Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina entre os anos de 1993 a 1994 – mesmo ano em que, na Itália, Niklas Luhmann
fundava o Centro de Estudos sobre o Risco, na cidade de Lecce. Atento aos
grandes debates em nível mundial no âmbito do Direito, da Filosofia e da
Sociologia, Rocha, em 1996, vai para a Itália fazer o seu Pós-Doutorado
com Niklas Luhmann. Assim, Rocha ingressa do Pós-Doutorado em Sociologia do Direito pela Universita degli Studi di Lecce. O contato de Rocha com
Luhmann imprime novos rumos na perspectiva teórica do pensador brasi-
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leiro. Nesse momento, Rocha tem contato com a Teoria dos Sistemas Sociais, sobretudo com sua perspectiva autopoiética5.
A partir de então, Rocha6 passa a assumir uma perspectiva sistêmica
complexa em seus trabalhos na linha da Teoria dos Sistemas Sociais, de
Niklas Luhmann. Essa influência pode ser encontrada em inúmeros artigos nacionais e internacionais, bem como em três de suas principais obras:
Epistemologia Jurídica e Democracia, publicada pela editora da UNISINOS,
no ano de 2003; Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético, publicada pela
Livraria do Advogado no ano de 2005, juntamente com Germano Schwartz
e Jean Clam; e a obra A Verdade sobre a Autopoiese no Direito, publicada pela
Livraria do Advogado no ano de 2009, também conjuntamente com Germano Schwartz e com Michael King7. Pode-se verificar que Rocha, durante toda a sua formação, desde a Graduação ao Pós-Doutorado, sempre esteve interagindo com grandes pensadores do seu tempo. Isso justifica o peso
intelectual, concisão e profundidade de seus textos8. Para melhor observarmos isso, convém revermos alguns aspectos do trabalho de Rocha, a partir
da sua Teoria das Três Matrizes Jurídicas.
2 A TEORIA DAS TRÊS MATRIZES JURÍDICAS
A Teoria das Três Matrizes Jurídicas, de Leonel Severo Rocha, traz
um olhar interessante sobre a Teoria do Direito. Primeiramente, isso acentua uma questão importante, a saber, a relevância da noção de “matriz” ao
invés de se falar em “paradigma”, que é uma observação que parece ser mais
adequada no atual contexto da sociedade complexa. Mas, no que implica a
noção de matriz para dar suporte à sua construção teórica?
Essa perspectiva autopoiética é desenvolvida em uma espécie de segunda fase de Luhmann, abrindo
um novo horizonte para observar a complexidade e os inúmeros pressupostos implicados nela.
6
Atualmente Leonel Severo Rocha é Professor Titular da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos e Coordenador Executivo do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e
Doutorado, Capes 6), bem como Professor do curso de Mestrado da Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai (URI), estabelecendo Convênio PROCAD. Também convém
mencionar que Rocha é membro pesquisador do CNPq desde o ano de 1983.
7
É importante mencionar que, embora existam outras obras de Leonel Severo Rocha, como, por
exemplo, Genealogia da Crítica Jurídica: de Bachelard a Foucault, publicado pela editora Verbo
Jurídico, no ano de 2007, em conjunto com Albano Marcos Bastos Pêpe, optou-se por citar as
principais obras que estivessem relacionadas à perspectiva da Matriz Pragmático-Sistêmica.
8
Até mesmo, em uma ironia aparentemente despretensiosa, muitas vezes traz “um não dito”
sofisticado, perceptível apenas por olhares atentos e perspicazes.
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A escolha da palavra matriz sugere uma superação lúcida das expectativas anteriormente depositadas da concepção de paradigma, em face do
contexto atual. A concepção clássica de paradigma se difundiu a partir de
Thomas Kuhn, com sua obra, A Estrutura das Revoluções Científicas. Para
Kuhn, paradigmas são “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares
para uma comunidade de praticantes de uma ciência”9.
Rocha entende que a sociedade é altamente complexa e isso não deve
ser desconsiderado em qualquer forma de observação. Em face da complexidade social contemporânea e da multiplicidade de teorias já desenvolvidas, é plausível a dificuldade em desenvolver um domínio de todas
as teorias, para só então decidir qual a melhor a ser adotada. Parece ingenuidade esperar que em meio à multiplicidade de perspectivas, um paradigma se torne tão unificado e preponderante a ponto de suplantar um
paradigma anterior.
Parece sensato, na sociedade contemporânea, ter cautela em considerar a ideia de paradigma, na forma defendida por Thomas Kuhn, pois,
dificilmente, haverá um único paradigma que alcançará um predomínio
suficiente para sobrepor-se a outro e assim sucessivamente. Com frequência, tem surgido uma vasta diversidade de perspectivas teóricas diferentes e,
com isso, uma dificuldade maior de se alcançar uma unidade absoluta de
aceitação.
A saída pode ser vislumbrada a partir da adoção da ideia de matriz,
na qual se percebe uma espécie de âmbito teórico, através do qual se pode
compreender posturas intelectuais que guardam traços em comum – tratase, portanto, de uma alternativa que permite, a partir de certa matriz teórica, buscar soluções para os problemas contemporâneos. Com a grande diversidade de autores e teorias, é preciso encontrar um âmbito teórico no
qual se esteja convencido de qual seja o mais adequado. Tem-se aí um espaço de reflexão que permite desenvolver soluções para os problemas sociais
a partir de certo âmbito de conhecimento. Isso é concebido no Direito a
partir da ideia de matriz jurídica.
Nesse sentido, ao invés de se buscar uma unidade teórica impecável,
busca-se identificar traços comum em diversos autores, que, de alguma for-
9
KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 13.
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ma, estruturam seus trabalhos em pressupostos muito próximos10. Assim,
Rocha compreende a Teoria do Direito a partir da noção de Três Matrizes
Jurídicas, nas quais são “aglutinadas as principais teorias jurídicas contemporâneas conforme o campo de racionalidade no qual se inserem”11. As três
matrizes jurídicas, a saber, são: a Matriz Analítica, a Matriz Hermenêutica
(pragmática) e a Matriz Pragmático-Sistêmica; constituem-se de três âmbitos
de saber, nos quais se pode compreender autores e teorias de maior destaque no estudo da Teoria do Direito.
2.1 MATRIZ ANALÍTICA
Esta matriz faz referência à filosofia analítica, uma perspectiva racional
moldada, basicamente, a partir da pretensão de transformar o saber em ciência. No âmbito do Direito significou uma perspectiva voltada a forjar uma
ciência jurídica, como bem salienta Rocha, “a filosofia analítica encontrou o
seu desdobramento na teoria geral do Direito, através da análise lógico-formal das normas jurídicas”12. Trata-se de uma orientação teórica muito forte
no século XX. Traços dessa teoria podem ser encontrados “desde o normativismo kelseniano, passando por Bobbio, até as tentativas de elaboração de
lógicas jurídicas, nas quais foram pioneiros Von Wright e Kalinowski”13.
Esta matriz revela os contornos assumidos pela razão moderna na
esfera do Direito, sobretudo em relação ao chamado Normativismo Jurídico. Essa perspectiva teórica tornou-se a matriz dominante na Modernidade
e o autor referencial, certamente, foi Hans Kelsen14. Trata-se de uma consSignifica dizer que já não é tão fácil compreender o mundo a partir de poucos e grandes grupos
de teóricos que assumem uma grande corrente de pensamento. O que existe é uma
multiplicidade de perspectivas teóricas, mas na grande maioria não possuem uma ampla
aceitação; se verifica que existem adeptos de uma perspectiva ou outra.
11
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Editora
UNISINOS, 2003, p. 94.
12
Ibid., p. 95.
13
Rocha ainda salienta que “Esta linha, na América Latina, é muito representativa na Argentina,
notadamente, com os trabalhos de Alchurrón e Buligyn, bem como de Vernengo”. Ibid., p. 95.
14
A teoria do Direito de Kelsen, também influência de Kant, evidente no seu ideal de ciência
pura. “Por isso, Kelsen tem como uma de suas diretrizes epistemológicas basilares, o dualismo
kantiano entre ser e dever-ser, que reproduz a oposição entre juízos de realidade e juízos de
valor. Kelsen, fiel à tradição relativista do neokantismo de Marburgo, optou pela construção
de um sistema jurídico centrado unicamente no mundo do dever-ser. Tal ênfase acarretou a
superestimação dos aspectos lógicos constitutivos da teoria pura, em detrimento dos suportes
fáticos do conhecimento”. ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed.
São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2003, p. 96.
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trução teórica calcada na ideia de norma jurídica e na construção de uma
linguagem rigorosa para o Direito. Nota-se que há uma racionalidade que
organiza o poder da normatividade jurídica através de um Estado forte e da
lógica normativa, além de uma hierarquia de normas que forma um escalonamento no qual o fundamento de validade de uma norma passa a ser dado
por outra norma, hierarquicamente superior e válida na conjuntura normativa, dando ao ordenamento consistência e coerência suficiente para se ter
a concepção de um “sistema fechado”.
No contexto contemporâneo é fácil observarmos fortes críticas a Kelsen. Muitas delas sérias e consistentes. Contudo, também existem muitas
críticas equivocadas sobre o autor que são largamente reproduzidas. Com
efeito, não se pode atribuir a Kelsen o que não foi pretendido por Kelsen15.
Há de se ter cuidado em distinguir o que seja a proposta de um autor de
eventuais leituras, que podem ser equivocadas a partir de uma perspectiva
particular. Por esse motivo, são de grande esclarecimento as palavras de
Rocha:
Kelsen, ao contrário do que pensam seus críticos apressados, por filiar-se à
tradição da teoria do conhecimento, assume como inevitável a complexidade
do mundo em si. Para ele, o social (e o Direito) são devidos às suas heteróclitas manifestações constituídas por aspectos políticos, éticos, religiosos, psicológicos e históricos. E a esse respeito não cabe ao cientista do Direito
nada comentar. A função do cientista é a construção de um objeto analítico
próprio e distinto destas influências. A partir desta constatação é que Kelsen
vai procurar assim como Kant depurar essa diversidade e elaborar uma ciência do Direito. Ou seja, na teoria pura uma coisa é o Direito, outra distinta é a
ciência do Direito. O Direito é a linguagem-objeto, e a ciência do Direito, a
metalinguagem dois planos linguísticos diferentes16.
De acordo com Rocha, “trata-se de uma meta-teoria do Direito, que
ao contrário do positivismo legalista dominante na tradição jurídica (que
confunde lei e direito), propõe uma ciência do Direito como uma metalinguagem distinta de seu objeto”17. Enquanto uma metalinguagem, Kelsen
centra sua teoria na ideia de norma jurídica enquanto um esquema de interpretação do mundo; ao passo que, como conteúdo de uma norma jurídica,
É de se considerar nesse conjunto, que Kelsen teve uma proposta – construir uma ciência do
Direito – e dentro dessa pretensão ele teve muita consistência e coerência.
16
Ibid., p. 96.
17
Ibid., p. 96.
15
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o mundo ganha uma significação normativa18. Como elucida Rocha, “a
norma jurídica é uma metalinguagem do ser, localizada no nível pragmático da linguagem, que, ao emitir imperativos de conduta, não pode ser qualificada de verdadeira ou falsa, simplesmente pode ser válida ou inválida”19.
Certamente existem muitas críticas a serem feitas a Kelsen, contudo
isso não afasta a importância do trabalho desse autor. Saber distinguir esses
aspectos20 é fundamental para se construir uma crítica séria, como tantas
que sugiram, sobretudo no âmbito do que se convencionou chamar de Matriz
Hermenêutica.
2.2 MATRIZ HERMENÊUTICA
A Matriz Hermenêutica é uma perspectiva que, basicamente, se ocupa das várias possibilidades de sentido, propriamente, com a dimensão semântica da linguagem. Como menciona Rocha, a matriz hermenêutica “está
voltada à análise dos conteúdos de sentido das proposições, colocando o
problema da interpretação de textos (Gadamer), típico da dogmática jurídica (Robles, Ferraz Júnior)”21.
A Hermenêutica surge como uma reação crítica à filosofia analítica,
uma forma de transcender a lógica rigorosa do positivismo e normativismo
jurídico. Nessa perspectiva teórica, destacam-se as contribuições de Herbert Hart, sobretudo com sua obra O Conceito de Direito, bem como, os autores Joseph Raz e Ronald Dworkin, por exemplo.
Na concepção de Hart, o Direito é um sistema de regras primárias e
secundárias. As primeiras são regras de obrigação, que estão postas e devem ser obedecidas; já a dinâmica do sistema jurídico, na concepção hartiana, pode ser explicitada somente através das chamadas “regras secundárias
(adjudicação, mudança e reconhecimento), que permitem a justificação e
existência do sistema jurídico”22. Contudo, isto não sugere a completude
do Direito, pelo contrário: Hart considera que o Direito é insuficiente para
Por sua vez, essa norma jurídica irá se transformar em uma linguagem objeto da ciência do
Direito “a qual, por sua vez, passa a ser a sua metalinguagem”. ROCHA, Leonel Severo.
Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2003, p. 97.
19
Ibid., p. 97.
20
É importante buscar compreender a proposta de Kelsen e distingui-la de releituras
eventualmente equivocadas.
21
Ibid., p. 95.
22
Ibid., p. 98.
18
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compreender todas as situações do mundo, portanto considera que ele possui certa abertura, que se convencionou chamar de textura aberta 23.
Assim, em uma perspectiva mais pragmática da linguagem, pode-se
compreender que, para Hart, “a preocupação da jurisprudência não é a explicação da designação pura do signo Direito, como tenta fazer Bobbio”, mas
“explorar as relações essenciais que existem entre o Direito e a moralidade, a
força e a sociedade (...)”24. Quando as pessoas reconhecem o seu dever e o de
outros, quando se sentem obrigadas diante de uma regra, isto revela que há,
de fato, um reconhecimento de certa orientação de conduta aceita e compreendida como adequada. Sobre isso Rocha menciona que foi
a necessidade do reconhecimento que colocou a teoria de Hart no centro da
Hermenêutica. Nessa lógica, não é surpreendente o fato de que, para Hart,
o Direito possui uma zona de textura aberta que permite a livre manifestação do poder discricionário do juiz para a solução dos conflitos, nos chamados hard cases25.
Dentro dessa Matriz Hermenêutica, Hart propõe uma concepção de
sistema jurídico mais aberto, em relação à concepção de sistema jurídico
kelseniano (sistema fechado). Contudo, compreendendo que a abertura proposta por Hart é demasiadamente aberta, sobretudo por conceder grande
liberdade de interpretação ao juiz – que poderá se valer do seu poder discricionário –, Dworkin se opõe a ela.
Dworkin, por sua vez, propõe certo fechamento do sistema a partir
da noção de princípios do Direito, negando a indeterminação do Direito
sustentada por Hart. Para Dworkin, o Direito é capaz de proporcionar uma
resposta certa (a mais adequada). Para ilustrar essa compreensão, ele se
utiliza da metáfora do romance, na qual o Direito é construído ou “escrito”
como uma espécie de narrativa; cada decisão se configura como se o juiz
estivesse escrevendo o Direito e, portanto, deve compreender o que se passou antes para que possa dar coerência à continuidade da escrita. Nesse
sentido, é possível vislumbrar uma resposta certa que, segundo Rocha,
seria aquela que resolvesse melhor a dupla exigência que se impõe ao juiz,
ou seja, fazer com que a decisão se harmonize o melhor possível com a
Cf. HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2007.
24
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Editora
UNISINOS, 2003, p. 98-99.
25
Ibid., p. 99.
23
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jurisprudência anterior e ao mesmo tempo a atualize (justifique) conforme a
moral política da comunidade26.
Embora a Matriz Hermenêutica tenha surgido como um viés crítico
da perspectiva analítica, “num certo sentido, esta matriz, já bastante prescritiva, ainda é normativa (normativismo de 2º grau), embora se possa dizer que
Dworkin possui uma teoria da interpretação capaz de avançar além do positivismo e do utilitarismo” 27. Apesar da Matriz Hermenêutica abrir novas
possibilidades para o Direito, ela demonstra certa fragilidade, por exemplo,
com o “excessivo individualismo da hermenêutica do common law”28.
De certa forma, este último aspecto sugere que o Direito precisa de
uma Teoria da Sociedade. É importante compreender o Direito inserido
em um contexto que produz múltiplas ressonâncias e estabelece com ele
complexas conexões; pensando nisso é que Rocha vai propor a terceira
matriz jurídica, a saber, a Matriz Pragmático-Sistêmica.
2.3 MATRIZ PRAGMÁTICO-SISTÊMICA
Diante do contexto social contemporâneo é necessário rever algumas posturas jurídicas, para que se possa repensar permanentemente as
bases do Direito, em face dos desafios que a sociedade lhe apresenta. Convém repensarmos a própria noção de ciência jurídica (clássica) que, segundo Rocha, embora tendo sido forjada em bases sintático-semânticas, nos
últimos tempos, “tem se alterado para critérios pragmáticos”29.
Assim, após o rigor formalístico da Matriz Analítica e o advento do
contraponto crítico da Matriz Hermenêutica, passa-se a ampliar o horizonte reflexivo do Direito, abrindo possibilidades para perspectivas que levem
em consideração a “pragmática”. Contudo, trata-se de pragmática redefinida pela teoria sistêmica, o que traz inúmeras possibilidades de diferenciações, inclusive a “vantagem de se romper com o psicologismo da versão
Ibid., p. 99.
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Editora
UNISINOS, 2003, p. 99.
28
Ibid., p. 100.
29
Ibid., p. 93. Convém mencionar que, a partir do momento em que se está transitando dentro
de uma perspectiva teórica específica, como neste caso, tem-se à disposição a perspectiva
luhmanniana como ponto de partida. A partir disso, todas as categorias ou expressões utilizadas,
como, por exemplo, a noção de procedimento, são apresentadas já com a sua dimensão
semântica revista por um olhar sistêmico complexo.
26
27
186
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FLORES, Luis G. G. Teoria do Direito Contemporâneo:
Novas Reflexões a Partir da Perspectiva das Três Matrizes Jurídicas
pragmática tradicional”30. Essa perspectiva pragmática, revista a partir de
Luhmann, indaga sobre as formas de comunicação em meio à multiplicidade de sentidos existentes na sociedade, bem como de procedimentos utilizados nos processos de tomadas de decisão31.
Para melhor compreendermos essa perspectiva, Rocha propõe a Matriz Pragmático-Sistêmica. Num primeiro momento, ilustrando a tônica de
cada uma das três matrizes jurídicas, através da semiótica de Carnap, indica-se que se poderia associar representativamente a dimensão da sintaxe
com a Matriz Analítica e, por meio dela, principalmente, fazer referência ao
Normativismo Jurídico; associando a dimensão semântica com a Matriz
Hermenêutica e uma dimensão pragmática, que após ser revista pela perspectiva luhmanniana, ressurge como a Matriz Pragmático-Sistêmica. Rocha esclarece que essa ilustração, a partir de Carnap, é realizada com fins didáticos. Contudo, é de se destacar que a partir da
pragmático-sistêmica, pode-se analisar simultaneamente os três níveis da
semiótica com predominância do nível pragmático e suas conexões com o
social, graças à sua perspectiva sistêmica. Na verdade este relato visa demonstrar a superioridade desta matriz perante a semiologia numa sociedade
complexa32.
Destaca-se que a matriz pragmático-sistêmica tem como ponto de partida “as análises de Luhmann sobre a Teoria dos Sistemas de Parsons”33 e,
sobretudo, em sua perspectiva autopoiética.
Niklas Luhmann adaptaria, entretanto, alguns aspectos da teoria de Parsons, somente numa primeira fase de sua atividade intelectual, que caracterizou a matriz inicialmente denominada de sistémica no texto sobre as matrizes teórico-políticas da teoria jurídica. Porém, recentemente Luhmann,
ao voltar-se para uma perspectiva autopoiética (Varela-Maturana), acentuando a sistematicidade do Direito como autoreprodutor de suas condições
de possibilidade de ser, rompeu com o funcionalismo parsoniano34.
A Matriz Pragmático-Sistêmica sugere enfoques diferenciados das
perspectivas tradicionais35, demonstrando grande fecundidade, na medida
Ibid., p. 95.
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Editora
UNISINOS, 2003, p. 95.
32
Ibid., p. 95.
33
Ibid., p. 100.
34
Ibid, p. 100.
35
As perspectivas tradicionais referidas no texto, dizem respeito basicamente aos pressupostos
do normativismo jurídico, enquanto teoria jurídica dominante na Modernidade, que tem como
30
31
Campo Jurídico, vol. 2, n. 1, p. 175-199, maio de 2014
187
FLORES, Luis G. G. Teoria do Direito Contemporâneo:
Novas Reflexões a Partir da Perspectiva das Três Matrizes Jurídicas
em que visa a “produção de diferença”, o que, de certa forma, permite novas
problematizações do Direito e de toda a epistemologia jurídica36. Assim,
tem-se uma forma de observação diferenciada, envolvendo operações complexas e estruturas inovadoras 37, além de uma maneira diferente de tratar
problemas sociais, rompendo com delimitações simplificadoras e abrindo
fissuras para a complexidade.
Apesar de essa matriz exigir uma profunda mudança epistemológica
e isto, segundo Rocha, ser um dos motivos pelos quais essa teoria “ainda
não chegou a ter grande influência na dogmática positivista dominante”38,
ela se constitui de uma ótima alternativa para se enfrentar os desafios da
sociedade contemporânea.
Essa mudança necessária se justifica pelo fato de que Luhmann, por
vários motivos, vai muito além de Kelsen (matriz analítica), sobretudo por
ter uma grande e complexa abertura para a sociedade, algo inconcebível na
concepção da Teoria Pura do Dirieto39. Luhmann também vai além de Hart
e Dworkin (matriz hermenêutica), compreendendo o Direito como uma
estrutura da sociedade, apta a realizar a estabilização de expectativas de
forma normativa em três níveis sociais: temporal (normal), social (institucionalização) e prático ou objetivo (núcleo significativo)40. Sobre essa perspectiva luhmanniana, Rocha menciona que
o comportamento social em um mundo altamente complexo e contingente
exige a realização de graduações que possibilitem expectativas comportamentais recíprocas e que são orientadas a partir de expectativas sobre tais
expectativas”. Estas reduções podem dar-se através de três dimensões: temporal, social e prática. Na dimensão temporal, “essas estruturas de expecta-
expoente Hans Kelsen, assim como as práticas jurídicas que com ela se identificam, sobretudo
em função de sua acentuação do passado que se constitui em uma dogmática jurídica,
extremamente conservadora e defasada no sentido de não ser capaz de alcançar uma
operacionalização adequada com a dinâmica da sociedade contemporânea. Cf. KELSEN,
Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado, 7 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006; ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo:
Editora UNISINOS, 2003.
36
Uma perspectiva, que abre boas perspectivas para teorias que levem em conta categorias como:
paradoxo, risco e complexidade.
37
Isto pode ser visualizado desde a compreensão do Direito quanto da sociedade a partir das
distinções e inter-relações orientadas pela distinção sistema/ambiente.
38
Ibib., p. 100.
39
Ibid., p. 100.
40
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1983.
188
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FLORES, Luis G. G. Teoria do Direito Contemporâneo:
Novas Reflexões a Partir da Perspectiva das Três Matrizes Jurídicas
tivas podem ser estabilizadas contra frustrações através da normatização”;
na dimensão social, essas estruturas de expectativas podem ser institucionalizadas, isto é, apoiadas sobre o consenso esperado de terceiros; e, na dimensão prática, “essas estruturas de expectativas podem ser fixadas também
através da delimitação de um ‘sentido’ idêntico, compondo uma inter-relação de confirmações e limitações recíprocas”41.
Em face de um contexto social altamente complexo, é inevitável certa redução42 dessa complexidade, que significa a reestruturação da complexidade social no interior do Direito. Assim, a partir de uma perspectiva
sistêmica complexa, busca-se “harmonizar as dimensões, através de reduções que irão se dar em cada uma delas, por intermédio de mecanismos
próprios”43. Esses pontos iniciais necessariamente deverão ser compreendidos a partir de uma teoria da sociedade, sobretudo no que diz respeito à
perspectiva autopoiética assumida tanto por Luhmann como por Rocha.
2.4 TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS
A perspectiva sistêmico-complexa deste trabalho faz referência a uma
epistemologia que tem como ponto de partida a Teoria dos Sistemas Sociais,
de Niklas Luhmann44. A partir daí, entende-se o Direito como estrutura da
sociedade, reorganizando a complexidade social através de sua diferenciação
funcional e de sua estabilização generalizada de expectativas normativas45.
Por sua vez, a sociedade como um grande sistema social de comunicação,
subdivide-se em sistemas parciais, entre eles o Direito, nesse sentido atua
através de uma perspectiva autopoiética, que significa um grande potencial
para desenvolver sua capacidade operacional. Assim, Rocha destaca a necessidade de vislumbrar um “novo estilo científico mais apto à compreensão
ROCHA, Leonel Severo. Op. cit., p. 100-101.
E aqui, quando se menciona “redução” não se está fazendo referência a uma concepção ingênua
do termo; não se trata do “reducionismo”, muito frequente na dogmática jurídica, como uma
herança da modernidade, mas sim de uma necessária redução e reorganização da complexidade
a partir de um olhar jurídico.
43
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Editora
UNISINOS, 2003, p. 101.
44
Sobretudo no que diz respeito à sua fase autopoiética, que, por sua vez, já sugere um novo
olhar sobre a sua própria fase anterior, numa espécie de círculo virtuoso da própria epistemologia
que se mostra altamente reflexiva.
45
Essa concepção de Direito está intimanente compreendida na noção de sociedade complexa,
que vem a surgir com o advento da Modernidade, que, por sua vez, é fortemente marcada por
certa tranformação social que na teoria de Luhmann ganha a denominação de diferenciação
funcional.
41
42
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189
FLORES, Luis G. G. Teoria do Direito Contemporâneo:
Novas Reflexões a Partir da Perspectiva das Três Matrizes Jurídicas
das atuais sociedades complexas”46 e do Direito na atualidade, através de
sua Matriz Pragmático-Sistêmica:
É importante nesta matriz epistemológica demonstrar-se que certos elementos básicos tornam possíveis distintas formas, entre infinitas possibilidades,
de interação social. Isto implica uma grande complexidade, que exige cada
vez mais subsistemas, como o Direito, a economia, a religião, etc., que por
sua vez se diferenciam criando outros subsistemas e assim sucessivamente47.
São múltiplas e distintas as formas e as possibilidades de sentido na
sociedade a serem operacionalizados pelo Direito – enquanto sistema parcial de comunicação jurídica. Toda operação jurídica é produzida comunicativamente, embora, paradoxalmente, Luhmann afirme que a comunicação é altamente improvável48. Por isso, Rocha menciona:
A sociedade moderna possui condições de controlar as indeterminações, ao
mesmo tempo em que não cessa de produzi-las. Isto gera um paradoxo na
comunicação. Nesta ordem de raciocínio, concorda-se com Luhmann, no
sentido de que a pesquisa jurídica deve ser dirigida para uma nova concepção da sociedade centrada no postulado de que o risco é uma das categorias
fundamentais para a sua compreensão49.
Assim, a Matriz Pragmático-Sistêmica traz uma proposta epistemológica para além das teorias compreendidas no âmbito das Matrizes Analítica e Hermenêutica. Uma alternativa diferenciada para enfrentar desafios
contemporâneos, sobretudo, permitindo novos olhares50.
Todos esses fatores exigem uma revolução epistemológica que, rompendo
com a departamentalização dos campos de racionalidade dominantes, que
isoladamente trabalham a analítica, a hermenêutica e a pragmática, aponte
para uma perspectiva pragmático-sistêmica.
Dessa forma, tem-se uma estratégia reflexiva de mudanças na observação do Direito e de suas organizações, sugerindo a revisão de “dogmas”
frequentemente abalados por questões atuais51. “Esta estratégia desloca-se
Ibid., p. 102.
Ibid., p. 104.
48
Cf. LUHMANN, Niklas. A Improbabilidade da Comunicação. Tradução de Anabela Carvalho,
3. ed. Lisboa: Vega, 2001.
49
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Editora
UNISINOS, 2003, p. 104.
50
Isto permite um novo olhar, por exemplo, sobre o risco (Luhmann) e sobre a concepção de
democracia (Lefort), como elementos de grande importância na reflexão jurídica atual. Ver
ROCHA, Leonel Severo. Ibid., p. 94.
51
Cf. FLORES, Gustavo. Direito e Cibercultura: para pensar uma “resiliência jurídica”. Novatio
Iuris: Revista do Curso de Direito da Escola Superior de Administração, Direito e Economia – ESADE,
Porto Alegre, v. 1, n. 2, out/2008, p. 98-120.
46
47
190
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FLORES, Luis G. G. Teoria do Direito Contemporâneo:
Novas Reflexões a Partir da Perspectiva das Três Matrizes Jurídicas
sucessivamente de uma perspectiva estrutural, voltada aos aspectos normativos do Direito, até uma perspectiva funcionalista, dirigida às funções
sociais do Direito”52. O “Direito da sociedade” não pode ser reduzido à
figura do juiz ou da Constituição, é preciso considerar tudo isso em uma
perspectiva sistêmico-complexa, na qual emerge a importância de repensarmos os contornos da noção de “Organização”.
2.5 O DIREITO A PARTIR DA NOÇÃO DE “ORGANIZAÇÃO”
Entre aspectos complexos da sociedade, Rocha acentua a importância
das Organizações53. Os tribunais, sendo as organizações por excelência do Direito, constituem um espaço privilegiado de tomada de decisão e garantem
certa coerência ao sistema54. Por isso, no centro do sistema jurídico, os tribunais possuem diversas instâncias e possibilidades de recursos. Consiste-se,
portanto, em um espaço no qual o “poder” ganha disposição hierarquizada a
fim de ser operacionalizado na dinâmica do sistema, movimentando a autoorganização do Direito e forjando sua própria concepção de tempo.
2.6 A HERANÇA TEMPORAL DA MODERNIDADE NO DIREITO
Durante longo período, a concepção de Tempo figurou como uma
espécie de “pano de fundo”, praticamente sem mudança; até o momento
em que o normativismo kelseniano descongela na Modernidade55 a percepção temporal jusnaturalista56. Contudo, com a operacionalização do DireiROCHA, Leonel Severo. Op. cit., p. 93.
Sobre isso é importante compreender que o juiz não está sozinho e muito menos isolado. Ele
está inserido em uma organização que constitui uma conjuntura da qual o juiz não se torna
independente. A própria teoria dos papéis de Max Weber já indicava que dependendo do papel
que se estivesse assumindo o seu comportamento estaria sendo orientado pelo âmbito do
respectivo papel, bem como, em relação às expectativas que se formam em torno de cada
papel. Isso se torna ainda mais complexo quando se pensa na ideia de sistema autopoiético e
na ideia de organizações existentes no interior desses sistemas.
54
O que Dworkin chama de integridade, justamente porque o que se decide deve guardar
correspondência com um âmbito de ação maior que o âmbito de ação do juiz, mas o âmbito de
ação de todo o sistema do Direito.
55
Com o surgimento da Sociedade Moderna, funcionalmente diferenciada, aos poucos a dinâmica
de transformações passa a ser acentuada, mesmo que num primeiro momento essas
transformações ainda sejam muito lentas. Até que essa dinâmica alcance o estágio
contemporâneo, o Direito, em meio a processos burocratizados, experimenta uma estabilização
radical de suas estruturas.
56
Sobre isto, comenta ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São
Leopoldo: Editora UNISINOS, 2003, p. 97.
52
53
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191
FLORES, Luis G. G. Teoria do Direito Contemporâneo:
Novas Reflexões a Partir da Perspectiva das Três Matrizes Jurídicas
to – muito voltada ao nível sintático da estrutura linguística –, cria-se na
dogmática uma tendência de compreender as mudanças do Direito muito
ligadas à lei57. Dessa maneira, verifica-se uma cultura desenvolvida na prática de um positivismo legalista clássico.
Como herança do normativismo (matriz predominante na Modernidade), ainda hoje a concepção temporal do Direito remonta uma noção de
Tempo de longa duração. Isso comporta a pretensão de realizar previsões
sobre o que poderia vir a acontecer, com a esperança de certa segurança,
com a crença em uma ordem estável de mundo58.
Rocha nos mostra que a concepção temporal do Direito moderno
remonta, como ponto de partida, ao pensamento de Isaac Newton – um
pensamento da física moderna que é mantido na filosofia de Immanuel
Kant, que aceita o caráter completo e verídico da dinâmica newtoniana em
seus trabalhos59. Kelsen, o maior expoente da filosofia analítica, foi um
neokantiano, trazendo para o Direito essa forte influência temporal de
Newton e Kant, reelaborada através da noção de “âmbito de validade”60.
O grande problema é que a concepção temporal do Direito moderno
é o resultado de uma racionalidade extremamente conservadora. Esse conservadorismo não permite que se recepcionem os trabalhos de Albert Einstein, que transcendem o paradigma temporal da ciência moderna. Apesar
de haver inúmeras evoluções em outros âmbitos de saber, a racionalidade
moderna parece tornar o Direito imune a essas transformações. Isso sugere
reflexões sobre como abrir fissuras na dogmática a fim de equalizar posturas antigas a um contexto de rápidas transformações.
Dessa forma, como os processos burocratizados também constituem uma característica
marcante da Modernidade, as produções legislativas não fugiram à regra. Assim, com a
sociedade cada vez mais dinâmica, torna-se demasiadamente ariscado depositar as expectativas
de mudanças do Direito nos demorados processos de produção legislativa.
58
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Editora
UNISINOS, 2003, p. 63.
59
PRIGOGINE, Ilya, STENGERS, Isabelle. A Nova Aliança. Tradução de Miguel Faria e Maria
Joaquina Machado Trindade. Brasília: Universidade de Brasília, 1991, p. 68-69; BLACKBURN,
Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Tradução de Danilo Marcondes. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar. Ed., 1997, p. 214-215.
60
ROCHA, Leonel Severo. A construção do tempo pelo direito. In: ______; STRECK, Lênio
Luiz. Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito, Mestrado e Doutorado. São Leopoldo:
Unidade Ciências Jurídicas, 2003-a, p. 311.
57
192
Campo Jurídico, vol. 2, n. 1, p. 175-199, maio de 2014
FLORES, Luis G. G. Teoria do Direito Contemporâneo:
Novas Reflexões a Partir da Perspectiva das Três Matrizes Jurídicas
3 PARALELISMO TEMPORAL
O excessivo fechamento61 operacional promovido pela dogmática
jurídica é o que torna o Direito extremamente conservador. A dogmática
jurídica, sob contornos de ressonâncias “precárias” do normativismo, é elaborada através da produção de normas contra-fáticas62 – uma estratégia de
repetição que acentua posturas estabelecidas no passado com a pretensão
de controlar o futuro.
Num contexto no qual as novas tecnologias da informação indicam
uma dinâmica praticamente instantânea, torna-se mais nítida a defasagem
temporal do Direito63 através da diferença entre a dinâmica do Direito e da
sociedade64. Observando isso, Rocha menciona a existência de um paralelismo temporal. A defasagem na concepção temporal do Direito gera a impressão de existir duas concepções temporais distintas e desconectadas: um
Tempo da sociedade, altamente dinâmico e, paralelamente, um Tempo específico do Direito, extremamente conservador, fruto de uma racionalidade moderna que acentua demasiadamente o passado65. Assim, torna-se
importante compreender como o Direito operacionaliza a construção de
sua temporalidade em face da sociedade contemporânea.
O fechamento operacional não significa necessariamente um problema. Trata-se de uma
operação regular da autopoiese do sistema e também de uma condição de possibilidade para a
abertura do mesmo. O fechamento operacional, em certa medida, é de fundamental importância
para a reorganização interna do sistema. É através dessa auto-organização que o Direito elabora
internamente a sua concepção temporal. Nesse sentido, a construção do Tempo do Direito é
fruto de uma autoconstrução. Contudo, o fechamento excessivo operacionalizado comumente
pela dogmática jurídica parece gerar um distanciamento inconveniente, entre sistema e
ambiente, que afeta a operacionalização do Direito. Quando esse distanciamento começa a
ser muito grande, começam a emergir nas decisões jurídicas o contraste com a noção de tempo
existente no contexto social.
62
Historicamente o Direito esteve voltado a construir uma atmosfera de segurança, mesmo a
custo de uma defasagem temporal ou de uma sensação de que a segurança não passasse de
mera ficção.
63
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Editora
UNISINOS, 2003, p. 185; Cf. OST, François. O Tempo do Direito. Lisboa: Instituto Piaget,
1999.
64
A crença por uma dependência absoluta pela positivação, enquanto instrumento de efetivação
do Direito e a morosidade deste processo, muitas vezes, ainda hoje, pode revelar a intenção
dos juristas de criarem normas que tenham uma longa duração – isso se verifica, muitas vezes,
quando tais normas surgem já estão defasadas.
65
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Editora
UNISINOS, 2003, p. 197.
61
Campo Jurídico, vol. 2, n. 1, p. 175-199, maio de 2014
193
FLORES, Luis G. G. Teoria do Direito Contemporâneo:
Novas Reflexões a Partir da Perspectiva das Três Matrizes Jurídicas
3.1 O DIREITO E SUAS DUAS FORMAS DE PROGRAMAÇÃO
É preciso compreender a lógica de operacionalização do Direito (autoorganização), que permitirá compreender a sua programação. Para tanto,
convém esclarecer que através da institucionalização de expectativas normativas, o Direito moderno, tradicionalmente, acentua excessivamente o
seu fechamento operacional em detrimento de sua abertura cognitiva. Assim, o sentido fixado demasiadamente no passado, força a “repetição” através de uma estabilização contra-fática66. O Direito torna-se um mecanismo de
controle e negação do futuro, na medida em que a racionalidade de repetição garante que se tenham expectativas confirmadas normativamente.
Essa lógica de pressupostos permite que se tenham expectativas e
sugere a possibilidade de se conceber a existência de certa programação. Assim, Rocha indica que os juristas, ao operacionalizar o Direito, sobretudo
no processo de tomada de decisão, o fazem através de duas programações:
a programação condicional e a programação finalística 67.
A programação condicional é uma forma de orientar os processos de
tomada de decisão a partir da produção de repetição, que significa produção no passado e, com isso, certa anulação do tempo. Além disso, está mais
relacionada com a observação e com a operacionalização da dogmática
jurídica68. Dessa forma, a construção do sentido jurídico (futuro) já vem
dada pelo passado69; o problema é que essa noção de tempo de longa dura-
A lei tendo, em um primeiro momento, o seu sentido fixado no passado, serve como uma
estratégia de orientação para as pessoas saberem como devem se comportar e como podem
esperar que os outros se comportem, embora isso não impeça que haja comportamentos
desviantes.
67
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Editora
UNISINOS, 2003, p. 194-198.
68
Ibid., p. 195. Uma pretensão de controlar o futuro através da repetição, apresentando respostas
predeterminadas para situações que ainda não aconteceram, mas que já existem, apresentando,
para tanto, um sentido previamente definido pela lei para enquadrar e tutelar tal situação.
Nessa ótica, é mais provável que um direito seja confirmado quando (de alguma forma) ele
está de acordo com o passado, quando algo como uma decisão se repete.
69
Ibid., p. 195. Trata-se de uma observação dogmática voltada a uma programação condicional,
privilegiando apenas um lado do Direito, que está mais intimamente relacionado com o
fechamento operacional do sistema jurídico, desprezando a importância do seu outro lado,
que corresponde à sua abertura cognitiva. Contudo, a referência ao passado, além de
proporcionar certa operacionalidade jurídica, de eventualmente frear pretensões inovadoras
carentes de reflexões, gera uma simplificação epistemológica que produz uma espécie de ficção
consoladora de segurança jurídica.
66
194
Campo Jurídico, vol. 2, n. 1, p. 175-199, maio de 2014
FLORES, Luis G. G. Teoria do Direito Contemporâneo:
Novas Reflexões a Partir da Perspectiva das Três Matrizes Jurídicas
ção70, alimentada por posturas conservadoras71, contrasta com a temporalidade dinâmica da sociedade contemporânea (Internet), evidenciando as
fragilidades do Direito.
Assim, Rocha destaca a importância da programação finalística como
operacionalização do Direito, que considera o futuro na reflexão de questões contemporâneas. Embora o jurista precise lidar com estruturas jurídicas disponíveis no sistema, essa programação está voltada à “produção de
diferença”, através de uma argumentação que, ao inserir discretamente a
diferença, acentue a coerência desta com as estruturas já existentes72.
Há, por um lado, uma forma de operacionalizar o Direito que acentua a repetição e a produção de passado e, por outro, uma forma que acentua a diferença e a construção de futuro, que possibilita a recepção de nova
realidade. Contudo, as duas formas de programação devem estar presentes
em uma decisão jurídica ao mesmo tempo – deve ser equacionado simultaneamente repetição e diferença (passado e futuro), a partir de sua dinâmica
autopoiética (aberta e fechada)73.
Quando se privilegia a programação finalística, procurando enxergar os dois lados do Direito, começa-se a sair de uma órbita estruturalmente fechada, passando de uma abertura cognitiva para a complexidade74.
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Editora
UNISINOS, 2003., p. 197; Sobre o tempo, Cf. ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ,
Germano; CLAM, Jean. Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005; OST, François. O Tempo do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
71
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Editora
UNISINOS, 2003., p. 194-195. Por outro lado, também, a inovação ou a produção de diferença
em si não significam necessariamente uma boa alternativa; é preciso que ambas sejam resultado
de um processo reflexivo.
72
Seria como o exemplo de uma peça teatral submetida à censura no período da ditadura: a partir de
1964, quando o Brasil passa por um período ditatorial, para que uma peça teatral pudesse ser
exibida, havia uma condição necessária – ser submetida a certo controle de censura e ter sua
exibição autorizada por este órgão. Sendo a obra um manifesto contra a ditadura forjada em
contornos artísticos, os argumentos do autor deveriam ser de que a referida obra estaria de
pleno acordo com a ordem estabelecida.
73
Só existe sistema porque ele identifica-se enquanto fechado e aberto ao mesmo tempo. A
observação do Direito como autopoiético permite que se veja o outro lado do Direito, permite
pensarmos o impossível como possível, o improvável como provável, ou seja, permite-nos
pensarmos os paradoxos, algo que se opõe e, ao mesmo tempo, se complementa.
74
Quando se decide através da programação condicional não se vê o paradoxo. Só se vê o paradoxo
quando se admite que se poderia decidir conforme a programação condicional e finalista. Um
jurista conservador percebe apenas um dos lados do Direito, acentuando sua normatividade, e
deixa de perceber o lado cognitivo que pode ser melhor observado através do surgimento dos
novos direitos e de um processo argumentativo.
70
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FLORES, Luis G. G. Teoria do Direito Contemporâneo:
Novas Reflexões a Partir da Perspectiva das Três Matrizes Jurídicas
Nessa perspectiva, Rocha abre inúmeras janelas através das quais se podem
desenvolver novas reflexões, como, por exemplo, sobre as ressonâncias advindas do desenvolvimento das novas tecnologias digitais que destaca a dissolução da noção moderna de Tempo, através de forte instantaneidade e
desterritorialização das novas relações, cujas ressonâncias deverão ser operacionalizadas pelo Direito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se pôde observar, Leonel Severo Rocha é um autor de grande
importância para a Teoria do Direito. Pensador de múltiplas influências,
doutorou-se pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales – EHESS – em
Paris, onde teve a oportunidade de interagir com nomes como Cornelius
Castoriadis, Edgar Morin, Alain Touraine, Pierre Rosanvallon, Jurgen Habermas, Karl Otto-Apel, François Ost, Andre Jean-Arnaud, Boaventura de
Souza Santos, Ota Weinberger, MacCormick, Ronald Dworkin. Também
conheceu Michel Foucault, no Colege de France e foi orientado em sua Tese
sobre Rui Barbosa, por Claude Lefort. Tendo ainda posteriormente indo à
Itália realizar o Pós-Doutorado com Niklas Luhmann. Uma trajetória que,
além disso, sempre esteve permeada pela amizade de Luis Alberto Warat.
Na denominação de sua teoria, Rocha propõe uma reflexão voltada
ao abandono de nossas ingenuidades reproduzidas75, como a substituição
do termo paradigma pelo termo matriz, este último considerado mais adequado no contexto da sociedade contemporânea76.
A sua Teoria das Três Matrizes é de fundamental importância como
ponto de partida para novas reflexões, sobretudo no que diz respeito à observação do Direito em face das novas tecnologias digitais. Nesse sentido,
Rocha menciona que “somente uma nova Matriz Jurídica pode ajudar na
reconstrução da teoria jurídica contemporânea, até então impotente para a
Rocha desenvolve seus trabalhos a partir de um deslocamento de seus orientandos de lugares
cômodos e convidando-os a um nível de reflexão diferenciado. Dessa forma, ocorreu um
deslocamento em mim que culminou no presente texto.
76
É plausível que seja uma ingenuidade esperar que um paradigma possa ser suplantado por
outro. Por isso, a noção de matriz indica um âmbito coerente em que se busque desenvolver
soluções para os problemas e buscar a melhor ressonância possível no sentido de comunicar
suas contribuições.
75
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compreensão e transformação dos acontecimentos”77 na sociedade complexa. Assim, surge a proposta da Matriz Pragmático-Sistêmica como uma
pesada crítica à dogmática e à epistemologia jurídica tradicional.
Essa matriz significa um novo espaço reflexivo, que tem como referência basilar a teoria luhmanniana. Contudo, não se trata de um espaço
engessado, mas sim de uma construção autopoieticamente aberta a outros
autores que guardem um mínimo de compatibilidade, bem como a eventuais
inovações que possam significar certa contribuição (diferença) evolutiva.
Para isso, a Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann fornece
um importante passo para a construção de uma nova teoria do Direito.
Consiste-se, portanto, em uma perspectiva capaz de desencadear uma reflexão jurídica (autopoiese), de modo a reorganizar o Direito para o enfrentamento de desafios advindos de uma sociedade complexa, na qual as transformações são apresentadas em um ritmo altamente veloz. Trata-se de uma
forma de transcender os pressupostos tradicionais do Direito
Todo o trabalho de Rocha significa um ótimo legado para o aprimoramento da Teoria do Direito. Um legado que está em permanente construção
e traz a confiança de um autor de uma capacidade intelectual ímpar, reconhecida e respeitada, inclusive, pelo olhar exigente de Luis Alberto Warat78.
Considerando tudo isso, nada melhor do que as próprias palavras de
Luis Alberto Warat sobre o talento e a competência de Leonel Severo Rocha ao escrever o prefácio do livro Epistemologia Jurídica e Democracia:
Nunca tive tanta satisfação elaborando o prefácio de um texto. Tenho pelo
professor Rocha um conjunto de sentimentos que compreende o carinho e a
admiração por um trabalho teórico que engrandece o pensamento jurídico
brasileiro.
Conheço o autor desde seus tempos de estudante de Direito em Santa Maria. Acompanhei passo a passo a sua trajetória teórica e tive o enorme prazer de contar com a sua parceria em inúmeros trabalhos, sem esquecer que
há mais de quinze anos, compartilhamos o mesmo espaço docente, sonhan-
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Editora
UNISINOS, 2003, p. 93.
78
Para compreendermos essa última afirmação, convém mencionar que a jornada intelectual de
Rocha sempre foi permeada por grandes diálogos com o mestre argentino. Warat era um grande
e autêntico filósofo. Costumava filosofar constantemente, não havia pausas, mesmo durante
um café ou um simples passeio. Suas análises eram intelectualmente muito complexas, mesmo
quando revestidas de uma ironia “aparentemente” ingênua, em torno das quais incorriam os
mais precipitados equívocos de alguns olhares cegos. Apesar disso, Warat era extremamente
respeitado e exigente no que diz respeito ao reconhecimento da qualidade intelectual de outrem.
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do, padecendo e gozando da vida acadêmica do Curso de Pós-Graduação
em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, de que foi coordenador (1993-94).
Sem sombra de dúvida, Rocha contribui notavelmente para o processo de
transformação do pensamento jurídico surgido no Brasil nos últimos vinte
anos. Faz parte do seleto grupo dos filósofos do Direito que alteraram o
paradigma imperante no Brasil do final dos anos de 1970. [...] Neste contexto, trata-se de um pensador com maiúsculas, uma cabeça que sempre surpreende e me surpreende (o que não sucede com muita frequência)79.
Nada mais autêntico do que o relato de um grande pensador como
Luis Alberto Warat, atestando a grande qualidade do trabalho de Leonel
Severo Rocha, um raro privilégio de reconhecimento, respeito e consideração. Nesse sentido, embora a Teoria das Três Matrizes Jurídicas – dando-se
ênfase à Matriz Pragmático-Sistêmica –, seja de grande relevância, na verdade, constitui apenas um aspecto de sua obra. Esta possui muitos pontos
extremamente relevantes que ainda não foram explorados. Por isso, concorda-se mais uma vez com Warat, compreendendo que a obra de Rocha é
como “um álbum que contém muitas folhas em branco, que ainda serão
complementadas com os melhores momentos de Leonel Severo Rocha.
Tenho absoluta certeza do que termino de afirmar”80.
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80
WARAT, Luis Alberto. Prefácio. In: ROCHA, Leonel Severo. Ibid., p. 8-9.
79
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Recebido em: 23 de fevereiro de 2014.
Aceito em: 02 de março de 2014.
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