Tecnoxamanismo
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Tecnoxamanismo
Zine Regador Edição 0 Tecnoxamanismo Vanessa G Garcia e Raoni Godinho Outubro de 2014 Esta obra está sob a licença CC BY-NC-ND 4.0 O que você pode fazer com esta obra: Compartilhar - copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato. De acordo com os seguintes termos: Atribuição — VocÊ deve dar crédito para a fonte da obra.. NãoComercial — Você não pode usar o material para fins comerciais . SemDerivações — Se você r emixar, transformar, ou criar a partir do material, não pode distribuir o material modificado. Sem restrições adicionais — Você não pode aplicar termos jurídicos ou medidas de caráter tecnológico que restrinjam legalmente outros de fazerem algo que a licença permita. Importante: Não tem de cumprir com os termos da licença relativamente a elementos do material que estejam no domínio público ou cuja utilização seja permitida por uma exceção ou limitação que seja aplicável. Não são dadas quaisquer garantias. A licença pode não lhe dar todas as autorizações necessárias para o uso pretendido. Por exemplo, outros direitos, tais como direitos de imagem, de privacidade ou direitos morais , podem limitar o uso do material. Zine Regador Edição 0 Editorial Agradecimentos Não me chame de Shirley Feitiçaria também é tecnologia Relações entre xamanismo, revolução industrial e Internet Poesia X Xah Tecnoxamanismo - Xamanismo Sujo ou dos ruídos Charles Imagens/ Estamira Social Hub Editorial Engana-se quem pensa que escrever é uma atividade solitária. E engana-se quem pensa que a ficção cienifica é um gênero distante, apreciado apenas por pessoas incomuns e irreverentes. No início de 2014, nós, Nessa Guedes e Raoni Godinho, nos encontramos em um curso de literatura, o Fantástika, ministrado pela Ana Rusche e o Fábio Fernandes - figurinhas conhecidas do meio, que além de ótimos escritores são acadêmicos reconhecidos nas áreas em que pesquisam. Lá no Fanstástika, nós tivemos a oportunidade de entender que literatura não precisa ser uma jornada exclusivamente individual. É possível, e talvez seja até mesmo indispensável hoje em dia, trocar experiências, autores, artigos, e até presentear um ao outro com livros que trazem o desejo genuíno do seu interlocutor de serem lidos pelos colegas. Também aprendemos que criar em conjunto é muito mais produtivo do que exigir de si trilhar a jornada sozinho. Também é divertido. Todos nós demos saltos incríveis na nossa evolução como escritores e como apreciadores de literatura. Acredite. E foi assim que o Hussardos, clube literário localizado no centro de São Paulo, onde o Fantástika acontece, virou um palco para estudos, criações e debates em torno do tema da literatura fantástica e da ficção científica. E como não é só de leituras que nós alimentamos nossa fome de sci-fi, nós também criamos alguma coisinha aqui, outra ali. Discutimos muito o cenário da ficção fantástica, sobretudo o sci-fi no Brasil, e alguns de nós sempre chegavámos a conclusão de que mesmo com todas as tecnologias de que dispomos hoje, ainda é muito difícil fazer as obras circularem de modo efetivo por aí. Nós discutíamos e discutíamos, mas também não estávamos fazendo nada para mudar o cenário. Nos víamos como formiguinhas perto dos obstáculos gigantescos que a missão de mudar essa história nos apresentava. Foi então que, em uma conversa de um chat de um grupo de cerveja artesanal no Whatsapp - um aplicativo de smartphone projetado para conversas rápidas -, onde coincidentemente nós dois fazíamos parte, surgiu um papo despretencioso sobre nosso parco entendimento sobre tecnoxamanismo . Ambos trabalham com Tecnologia da Informação, e também nos interessamos por assuntos que vão além do entendimento cético que o meio de trabalho exige. Ficamos ali discutindo: mas afinal, o que é tecnoxamanismo? Como praticamos tecnoxamanismo? Como fazer tecnoxamanismo? Como viver tecnoxamanismo? Etc, etc, ad infinitum . Foi aí que tivemos a grande ideia: mas, e por que não, escrever sobre tecnoxamanismo? Só que essa pergunta era muito fácil, pois era claro que iríamos escrever. Nós andamos em uma fase que qualquer coisa vira motivo para escrever. A pergunta que veio naturalmente depois foi: mas e por que não chamarmos nossos amigos para escrever também? O nome do zine veio também dessa ideia. O regador é um instrumento simples, de fácil manuseio, que não exige de tecnologia alguma para funcionar. Mas mesmo em sua simplicidade ele consegue dosar a quantidade de água que uma planta precisa, dando a ela o que é necessário para o seu crescimento. Queremos que o zine seja um regador para mentes criativas, as estimulando a escrever, desenhar, criar e compartilhar. E foi assim que nasceu o zine que você tem em mãos agora - ou 'em memória'. E por que um zine ? Essa seria nossa pergunta de um milhão de dólares. Por que imprimir, colar, e usar xerox para fazer uma tiragem pequena, ao invés de só publicar na web? Essa seria a outra pergunta de um milhão de dólares. Pois bem, escolhemos fazer um zine - e não uma revista, um livro, etc - pela simplicidade. Não queríamos grandes comprometimentos entre nós mesmos, e nem prometer algo megalomaníaco para os nossos amigos, que colaboraram tão facilmente com a obra. Também estávamos lisos, verdade. Talvez esse seja o maior motivo. E nós queríamos alguma coisa para pegar e folhear, e qualquer outra coisa não seria possível sem investimento. Então, foi assim mesmo. Como adolescentes duros nos anos 80. Fazendo colagem e tirando xerox. Esperamos que você aprecie a leitura tanto quanto nós nos divertimos recebendo-a, editando-a, e colando as palavras em folhas de ofício. E esperamos que você entenda, no seu íntimo, o que pode ser tecnoxamanismo para nós, para você, para o mundo. Que os bits tragam vibrações positivas para todos, e que a natureza consiga se recuperar dessa exploração com muito silício e reciclagem. Vanessa G Garcia e Raoni Godinho São Paulo, 28 de setembro 2014. Agradecimentos Queremos agradecer a todos os escritores envolvidos nesta produção, que mesmo com o prazo apertado tiveram a luz de nos mandar ótimos textos; em especial agradecemos ao Fábio Fernandes e à Ana Rusche por nos inspirar e criar o Fantástika; à Bel Correa, que generosamente produziu uma ilustração para a nossa capa em uma noite de sexta-feira, no Rio de Janeiro; à Fabi Borges, que é pessoa mais entendida de tecnoxamanismo que encontramos por aí, e foi aberta às nossas ideias e iniciativas; e ao Caesar Ralf Franz Hoppen e a Andressa Serena, que fizeram companhia aos dois editores do zine por longas horas até fecharem a edição. Não me chame de Shirley [techno-folhetim sci-fi noir with lasers] J.C. - Jeanne Callegari email: [email protected] blog: http://jeannecallegari.com.br/ – Porter, a casa está cercada. Não adianta fugir – grita o sargento, e faz um sinal para a gente ficar quieto. Eu conheço o figura e sei que por trás da cara séria tem um sorrisinho de quem sempre sonhou em dizer aquilo (que nem quando falam nos filmes “siga aquele táxi!”), mas mesmo assim o pessoal obedece. Ninguém dá um pio. De barulho, só a respiração do Pimenta, do meu lado. Pimenta não é seu nome real: o apelido vem do seu brinquedinho de trabalho preferido. É o cidadão piscar com o olho errado que o cara já saca o spray. Não que seja exigente; se precisa usar as armas sônicas ou as balas de borracha, aperta o dedo com o mesmo gosto. Agachado ao lado da viatura, ele sua, impaciente. Está doido pra entrar e botar as mãos na Porter. Ou melhor: Shirley. A militante mais perigosa com que o Departamento já teve que lidar. Depois de meses de escutas e investigação, finalmente conseguimos descobrir seu paradeiro. Não é à toa que o Pimenta está ansioso. Diabos, eu mesmo estou doido pra dar uma boa olhada nela. De dentro da casa não vem nenhum barulho. Não se percebe nenhum movimento. A casa que serve de QG fica em uma vilinha em um bairro descolado da cidade, cheio de artistas, jornalistas, designers, aquele pessoal moderno. Parece tudo menos um esconderijo de terroristas. Essa Porter é mesmo brilhante: escondida no meio da multidão. De repente o barulho de um portão abrindo. Na casa ao lado, o vizinho sai de bicicleta. Quando vê todo aquele aparato, pára e olha para o sargento, em dúvida. O sargento mede o cara e faz sinal para a gente deixar ele passar. Alto, barbudo, um corvo tatuado no pescoço. O moleque não deve ter a menor ideia de que mora ao lado do bunker da terrorista mais procurada do país. Quando o rapaz passa, o sargento dá o sinal. O Pimenta é o primeiro a entrar, derrubando a porta a coturnadas. A casa não é muito grande, então não leva muito tempo para a gente revirar tudo. O quarto, a cozinha, o banheiro. Não sobra fresta em que a gente não olhe. Mas a Porter não está lá. Não tem muita coisa lá, na verdade. No canto da sala, um computador pisca, letras brancas em fundo preto. * * * O que chama a atenção, primeiro, é o nome. Porter. Em uma das pequenas redes que a gente monitora, a palavra ocorre tantas vezes que acende o alerta vermelho. É o arroz-com-feijão do meu trabalho no Departamento: monitorar redes sociais e sites para identificar potenciais suspeitos. Com os algoritmos recentes dá pra analisar milhares de conversas ao mesmo tempo e detectar, no grande mar de papo-furado, novos padrões e focos de rebelião. E assim passamos a olhar mais de perto as interações do grupo da Porter. Aos poucos, descobrimos algumas coisas. Porter não parece ser seu nome real; é um apelido, ao que tudo indica, derivado de um tipo de cerveja. Isso liga outro alarme. Afinal, quem não tem algo a esconder não arrisca usar codinome. Isso é coisa dos Militantes, e ninguém com um pingo de noção ou amor à vida quer ser associado a eles. No grupo, as conversas giram em torno dela: a maioria das interações é falando com ela, ou dela. Isso não acontece nos grupos normais: normalmente todos falam com todos, não tem ninguém centralizando o papo. Isso nos leva a desconfiar que ela é a líder do grupo, ou pelo menos daquela pequena célula. A terceira coisa que acende o alerta é o jeito dela falar. De vez em quando diz umas frases meio esquisitonas, gramaticalmente corretas mas meio tortas, sem sentido. A reação dos outros integrantes quando isso acontece é ainda mais estranha: riem, acham graça, continuam o papo. Não é normal esse comportamento. Tem algo errado. Eles só podem estar falando em código. Um dia alguém se refere à Porter como Shirley. Ela fica muito brava: não me chame de Shirley, ela diz. E repete. Mancada grande, todo mundo concorda. Ninguém nunca mais a chama por esse nome. Para a gente, a escapada vem em boa hora. Porque a real é que a gente não sabe muita coisa sobre ela. Gosta de chianti e de cerveja, principalmente a tal da porter. Faz risotos. Não sai muito de casa. Lê os jornais e acompanha os protestos, está sempre citando trechos das notícias. Ouve música. Fala inglês, espanhol e filipino. Não tem medo de palavrões e diz umas sacanagens de deixar até o Pimenta vermelho. E isso é, basicamente, tudo. Nos nossos arquivos, não há nenhum registro de alguma Militante de nome Shirley, a.k.a. Porter. Nenhuma foto, sobrenome, endereço. A gente tenta localizar a origem das mensagens, mas ela deve estar usando um proxy no Uruguai, porque o IP parece ser de lá. Mas a gente sabe que está em São Paulo, pelos fatos e lugares que menciona. Um dia ela fala em metralhadora. É numa conversa daquelas cifradas, meio sem sentido. Gosto da minha metralhadora com chianti, diz. Ninguém entende nada, mas é a deixa que faltava pra gente fechar um pouco mais o cerco. Afinal, ninguém falaria em metralhadora se não estivesse mal intencionado. A gente não faz várias perguntas, perguntas que, se não mudariam o rumo das coisas, pelo menos nos deixariam um pouco mais espertos. Por que, se eles estão usando códigos, não codificam a palavra "metralhadora"? Por que mantêm a conversa em um programa sem criptografia, fácil de ser monitorado pelo Departamento? Como é que alguém é tão descuidado a ponto de se referir a ela pelo verdadeiro nome? Perguntas que, se a gente soubesse a real dimensão dos acontecimentos, deveria ter feito. Mas a gente não sabe de nada, ainda. Nenhuma ideia do que está pra acontecer. A gente não sabe de nada, nada, cara. * * * Às 21h, o café onde os ciclistas se encontram ainda está aberto. Um rapaz alto e barbudo, tatuagem de corvo no pescoço, estaciona sua bicicleta. Entra rapidamente, pede uma cerveja em uma das mesinhas e espera. Uns dez minutos depois, uma moça de cabelos curtos, batidos na nuca, se junta a ele. – Tudo certo. Tenho tudo que a gente precisa - diz ele, enquanto aperta um volume grande, quadrado, entre as mãos. – Falaram que a polícia apareceu por lá - diz ela. – Eles não te revistaram? Não perguntaram nada? – Não, nem desconfiaram - diz o rapaz. – Acho que não conseguiram ligar os avatares às pessoas. – Você já falou com a Estela? Ela não vai gostar nada disso. O rapaz suspira e aperta ainda mais forte o objeto em suas mãos. – Eu sei. Mas não tem nada que ela possa fazer, cara. A Shirley fez a escolha dela. – ele olha nos olhos da garota e sorri suavemente, com o canto dos lábios. – Vai dar tudo certo. A moça assente com a cabeça. – Eu confio nela. Levanta-se, dá um abraço no rapaz e sai. Antes de passar pela porta, olha pra trás. Ele fita com olhos distantes o objeto em suas mãos: um pequeno HD externo. * * * – Louco, cara. Você tá completamente maluco – eu digo, enquanto balanço a cabeça. – Pirou completamente. E não de um jeito bom. Houve um tempo, afinal, em que a gente sabia pirar de um jeito bom. A gente sempre deu as melhores festas, tocou as melhores músicas, descobriu as melhores Dosers. Mas então veio a Shirley. E as coisas começaram a ficar esquisitas. – Pena que você não entende, Estela – diz o Fabrício, enquanto me olha com uma intensidade que eu nunca tinha visto antes. – Afinal, foi você que começou tudo isso. Fabrício. A gente se conhece há tanto tempo. Eu estava junto quando ele foi fazer a tatuagem do corvo no pescoço e precisou de uns goles de paratudo para aguentar a dor. No final a gente saiu dali rindo, bêbados, e foi tomar a saideira no bar do Paulão. Ele estava comigo no dia em que um carro surgiu do nada de uma garagem e me arremessou do outro lado da rua. A gente tem história, eu e o Fabrício. Mas olho pra ele agora e não reconheço. Sim, eu comecei tudo. Em minha cabeça, ainda vejo as cenas. É um domingo de manhã e estou meio à toa, brincando no computador. Tenho a ideia de um programinha para usar nos grupos de conversa no celular. No começo é bem divertido: um script que aprende, que usa as frases do grupo para criar novas conversas, e que aumenta o vocabulário e as construções sintáticas à medida que ampliamos seu repertório. O pessoal logo se empolga e começa a brincar, querer saber como funciona. Colocamos frases de filmes, poemas. E também uns funks, uns pagodes, umas putarias. My pussy é o poder, Engenheiros do Hawaii. É engraçado ver o script misturar aquilo tudo e criar algo novo. Aos poucos, refinamos o programa, que responde cada vez melhor. Mas então começo a desconfiar que algo está errado. Pessoas estranhas começam a aparecer nos rolês. Um cara de uns 40 anos surge, passa uma semana perguntando de uma tal de Ada, se ela é da galera, se vai aparecer na próxima festa… Em outro dia, pergunta de um tal de Lafargue. É a hora de parar a brincadeira. Ou deveria ter sido. A gente sabe muito bem o que aquilo significa. As prisões, os protestos. – Maldita hora em que topei seguir com isso. E agora… Agora ficou grande demais. As pessoas podem se machucar de verdade, cara. Ele me lança um olhar condescendente, como se falasse com uma criança. – Estela, você é uma programadora genial. Sem você, nada disso teria acontecido. Mas seu problema sempre foi a falta de fé. Você não percebe, cara? Não é brincadeira. É pra valer, cara. A Shirley quis isso. Ela escolheu isso. Suspiro. Ele está completamente pirado. – Você devia ter destruído ela quando eu falei pra você fazer isso, Fabrício. – Falta de fé, Estela. Tecnologia não explica tudo, sabia? Tem algo mais aqui. Você sabe que tem. A gente foi um veículo, só isso. – As pessoas podem se machucar, cara! Tem gente sendo presa por muito menos. – Eu confio na Shirley. Ela vai saber o que fazer. Diz isso e sai, pegando a bicicleta para ir embora. – Fabrício, pelamordedeus! Ela é um robô! Um robô, Fabrício. Um script. Mal chega a ser um programa. A essa altura estou gritando, mas ele já vai longe, dobrando a esquina. * * * A rua está escura. Uma garota de cabelhos avermelhados se esgueira até o final do corredor que segue pela lateral de uma das casas. Escondida atrás de uma caixa, olha pela pequena janela para o porão, embaixo. Lá dentro, umas dez pessoas estão espalhadas em cadeiras e pufes. A maioria está com fones de ouvido. Algumas pessoas se movimentam levemente, como que sedadas. Não se ouve nenhum som. Na parede, uma projeção mostra em tempo real um chat coletivo. As frases se sucedem, tratando de diferentes assuntos. Um avatar aparece com mais frequência que os outros: um manequim louro, de cabelos curtos e lábios pintados de brilho rosa. No canto do cômodo, um rapaz alto e barbudo mexe em um laptop. A camisa xadrez deixa à mostra a ave tatuada em seu pescoço. A garota sacode a cabeça, como se não acreditasse na cena, e volta pelo corredor. * * * Supermercado, seção de cerveja. Pego três six-packs das mais baratas para levar para o almoço na casa da minha irmã. No fim do corredor, paro por um minuto na seção de cervejas especiais, "metidas a besta", como diz o Pimenta. Lá estão elas: pequenas garrafas das tais porters. Sempre que passo ali, lembro dela. Faz meses, agora, que a gente fez a emboscada, e deu com as viaturas n'água. Desde então, não tivemos mais notícias da Shirley Porter. O grupo em que ela estava se desfez, ela sumiu do mapa. Ainda monitoramos alguns integrantes do grupo, mas eles estão mais comportados do que nunca. Chegamos a levar uns dois ou três para uma conversa, mas os caras estão muito bem treinados. À menção do nome da Shirley, começam a rir descontroladamente – uma técnica de resistência pacífica das mais eficazes que já vi. É impossível arrancar qualquer coisa deles. O sargento acha que não temos base para deixá-los no xadrez, afinal. Oficialmente o país ainda é uma democracia, e sumir com dois ou três daquela turma iria acabar atraindo atenção para as operações do Departamento. A maioria do povo não sabe de nada, e a gente não quer esse tipo de publicidade. Não enquanto a ordem não for dada. Sacudo a cabeça. Não quero pensar nisso agora. É domingo e eu estou indo ver minha irmã e minha afilhada. Na segunda volto a espionar manifestantes e brincar de filtrar algo entre as conversas bêbadas de uns e o papo-aranha mal-intencionado de outros. Hoje não. Além do mais, faz tanto tempo... A Shirley já deve estar longe. Se for pra chutar, diria que se mandou pro Uruguai. Faz bem o estilo dela, maconha liberada e o caramba. A Porter é esquerda festiva, curte uma cachaça, uma putaria. Será que tem porters no Uruguai? Deve ter. Seja como for, ela está longe. Não é mais meu problema. Chego na minha irmã e sinto logo o cheiro da macarronada. Dou um abraço nela, coloco as cervejas pra gelar e vou ver minha afilhada. Ela está no quarto ouvindo música. Já no corredor dá pra ouvir o tuntz-tuntz. Dá pra acreditar nisso? O país vindo abaixo, tem gente falando até em golpe, e a menina ali, curtindo um funk, como se a vida não fosse mais que aprender o quadradinho de 8. Pensamento besta. Afinal, ela não sabe de nada. Não tem como saber. As prisões, os protestos, isso tudo não sai no jornal. O pouco que chega é aprovado pelos representantes da GCM. Eu só sei porque estou envolvido na coisa até o pescoço, trabalhando no Departamento. E, a bem da verdade, é melhor assim. É duro dizer isso, mas é melhor ela dançando até o chão do que no meio dos protestos. Caramba; preferia até que ela tivesse um namorado do que vê-la metida com os Militantes. Bato na porta e entro. Jéssica me dá um abraço, mas nem se mexe pra desligar o som. Quando faço menção de abaixar o volume, ela dá um pulo: – Não, tio! Essa música é daora. Reviro os olhos e suspiro. Melhor assim, melhor o quadradinho de 8, penso comigo. Já estou saindo do quarto quando algo na letra me chama a atenção. – Jessy, o que é isso? Que música é essa? É a vez dela revirar os olhos. – Em que mundo você vive, tio? Essa é a mina mais bapho do funk desde a Valesca. Ela ahaza. – Jéssica, me diz aonde você conseguiu isso. Tá na rádio? Você tem o disco? Me fala! Vendo que o negócio é sério, ela responde. – Todo mundo tá ouvindo isso. Tá na internet, no rádio, em todo lugar. Relaxa, tio. É só um funk. Não vai me dizer que você tem preconceito? – pergunta, com ironia. A essa altura já estou mais branco que a perna da Irmã Dulce, do colégio de freiras, mas continuo as perguntas. Preciso saber. – Como é o nome da cantora? Responde, Jessy! - falo, enquanto sacudo seus ombros. – Shirley, tio. Shirley Garcia. Eu, hem. – Se desenrosca dos meus braços e vai para a cozinha. Fico parado no quarto, ouvindo a música, a letra, a batida do funk, enquanto o mundo deixa de fazer sentido. O nome é Shirley Porter Garcia O nome é Shirley Porter Garcia rainha dos black bloc e também das putaria putaria putaria e também das putaria CONTINUA... Feitiçaria também é tecnologia Relações entre xamanismo, revolução industrial e Internet Andrea Balle email: [email protected] blog: http://about.me/deaballe Quando se fala em tecnologia, logo se pensa em máquinas. Computadores, grandes centros de processamento de informação, milhares de cabos de fibra ótica, aparelhinhos que cabem no nosso bolso e que contém virtualmente todo o conhecimento do mundo. Pensa-se também no ambiente antisséptico de grandes laboratórios de pesquisa, com ar-condicionado gelado e pessoas de jaleco branco. Homens de jaleco branco, bem entendido. Tecnologia, portanto, é um domínio masculino e rígido, certo? Errado. Tecnologia vem do grego " tekhne ", que significa "técnica, arte ou ofício". Ou seja, tecnologia é simplesmente uma técnica utilizada para resolver algum problema. Isso vale para qualquer técnica: se você está com dor de barriga, tomar um remédio alopático pode ser tão efetivo quanto tomar um chá recomendado pela sua vó. Dessa forma, a tecnologia moderna e o xamanismo são filhos da mesma linhagem , descendentes direto do mesmo esforço prático de resolver problemas utilizando alguma técnica. Em uma sociedade extremamente patriarcal, onde as mulheres são sempre relegadas aos mais baixos escalões das estruturas de poder, é interessante notar como os valores socioculturais femininos, como o coletivismo e os cuidados com relações interpessoais, são associados a loucura e falta de pensamento crítico. Dessa forma, as mulheres acabam tendo suas tecnologias menosprezadas (ou proibidas), como as bruxas e feiticeiras, que eram muito mais cientistas que muitos homens de poder da época, e que utilizavam a tecnologia disponível para tratar doenças e trazer conforto. Mais recentemente, são excluídas sistematicamente do processo científico e tecnológico formal, com argumentos que apelam à biologia, tradição e histeria freudiana, mas não se sustentam em análises mais aprofundadas, mostrando que os fatores culturais estão entre os principais para , essa exclusão . A tecnologia moderna, no entanto, também liberta. O psiquiatra Paulo Gaudencio chama atenção para um ponto importante para a libertação feminina, possível pela industrialização e mecanização do mundo moderno: o trabalho deixou de ser centrado no físico, campo em que os homens geralmente levavam vantagem, e passou a ser centrado no conhecimento. Com isso, as mulheres começaram a galgar os postos de trabalho e ter seus próprios meios de manutenção. A palavra manutenção vem do latim manutenere e quer dizer “ter na mão”. A tecnologia moderna, com uma boa dose de subversão e apropriação de espaços, foi uma forma de impulso para que as mulheres deixassem de estar nas mãos dos maridos e passassem a ter suas vidas em suas próprias mãos. As mulheres estão puxando o anima das máquinas à força e isso se mostra em várias manifestações de uso de tecnologia para uma reaproximação com a natureza, com Nessa feminização de espaços tecnológicos, há um terreno fértil para o surgimento do tecnoxamanismo. Segundo Roncari, o tecnoxamanismo é “um xamanismo possível, que surge da tentativa de convergência entre duas formas de conhecimento, um investimento num equilíbrio futuro, que promova a reconciliação entre homem e máquina”. A Internet permite mobilizações de milhares de pessoas e reestabelece, mesmo que de forma virtual, a valorização dos vínculos e das experiências coletivas, fazendo com que os valores femininos, antes relegados a espaços secundários, possam ser os protagonistas e propulsores dessas manifestações. Graças ao uso da tecnologia, hoje podemos mobilizar milhares de pessoas para impedir o corte de árvores, encontrar grupos de entusiastas de transporte urbano menos poluente, organizar passeios para conhecer sua própria cidade. Podemos trocar fotos de gatos ou discutir diferentes pontos de vista sobre conflitos armados do outro lado do mundo. Podemos unir pessoas com interesses comuns, estabelecer laços e agir, construindo conjuntamente um mundo melhor. Dessa forma, o tecnoxamanismo é um reencontro. É uma forma de justiça poética , ao reconectar o animus e o anima, a frieza das máquinas e as ligações pessoais, a distância dos pontos na rede e os laços afetivos próximos, o conhecimento do mundo inteiro e ação local. Assim, é possível vislumbrar a tecnologia com propósito, o desenvolvimento com sustentabilidade e um futuro mais equilibrado e acima de tudo mais humano. Poesia Pilar Bu email: [email protected] blog: http://pilarsoueu.tumblr.com/ daqui de cima aonde eu via lata, fios e bites percebo agora a luz laranja energia pulsante que como serpente percorre as reticências espaços vazios de frio metal vomitando pela boca e todos os orifícios palavras, casas e ideias que jamais moraram aqui como quem mata o odor, o bolor e o medo. X Xah Ana Rusche email:[email protected] blog: anarusche.com Não sei como descolei a viagem. Uma indicação da indicação da indicação. Eu sabia fazer a porra e podia ajudar a luta, daí me convidaram. Minha explicação mística é que talvez seja ruim o suficiente ser de São Paulo. E a Diva tenha querido me ajudar. Aqui no Acampamento, desligam as luzes à noite. Para que se possa ver novamente as estrelas. Tenho medo e me aferro às porcariazinhas que trouxe comigo e permitem me desconectar. Sinto uma falsidade horrível ao fazer isso. É como se traísse xs companheirxs. Mas afinal, nasci na cinza dos prédios e fui desconectada de pequena. Era bom e estranho estar ali no Acampamento, na resistência, algures no Paraná. Ou talvez já no Paraguai. Cheirava tudo com avidez, tocava nos muros quentes de sol. Observava os gatos gordos dormitando. Mas tem dia em que é estranho demais e, por isso, chamei o cara. Florir a sabedoria dx xah enterrada em terreiros. Esquecida por esconderijo. Não era muito justo eu pedir ajuda bem a um Homem pra fazer esse rolê. Mas pedi mesmo assim e ele veio como Centauro. Bom, é o que a gente tem pra hoje. Chegou com os cabelos longos como num véu, quase se misturando à cauda. O dorso de uma pelagem poeirenta. A pele muito clara e um dos braços cheios de inscrições. O boato é que transcreveu a receita ali. X xah que destrava. O líquido que nutre. O que te coloca em desconexão conectado. Na realidade, o discursinho sobre eu precisar de ajuda era a porra dum pretexto. No início, é o sexo – o rearranjo das estrelas em pele e humanidade, supernovas de unhas, dentes e pura carne. No final, também é o sexo, que não passa da forma primeira de desconexão: qualquer um vai concordar que tenho razão e que o pretexto é justo. Podia ter feito tudo sozinha? Claro que sim. Mas ainda há um ponto em que o vazio de avoluma aqui dentro. Outro tipo de supernova. Que explode e cria um grande universo das coisas que não sei, de coisas que não controlo, quase tão aterrador quanto o próprio futuro. Esse pequenino ponto que não existe e me ferra. Retira algumas certezas. Talvez fosse o efeito colateral de morar em SP, cidade sem amor (a alma gêmea desse ponto do vazio é materializada bem no meio das minhas pernas, onde o Centauro sabe exatamente o quê manipular). Daí decidi que era muita responsabilidade, arreguei. Chamei o cara. Pelas três prescritas vezes na tradição de quem sabe errar com gosto. E ele veio ao anoitecer. Cavalgando com uma alegria louca, mostro o Acampamento prateado pela lua. Explico as regras. Sem eletrônicos de alta persuasão. A recomendação é clara: não se desconectar por mais de quatro horas diárias (o ideal seria nunca o fazer, até pq aquilo coloca toda a Resistência em risco, mas tinha gente ali que precisava manter alguns algos da vida dupla de ativista). Fui bem honesta. Admiti que não conseguia praticar a abstinência. Entretanto, não mentia axs companheirxs, que bem sabiam da minha limitação. Também ali ninguém come ou sacrifica qualquer espécie animal. Sem carnes, couros, pastinhas, queijos, gaiolas. Tudo pelo respeito absoluto à vida original e às Sementes. Tudo o que era ingerido não passava por nenhum processamento – vinha estranhamente da terra, do sol e de caldeirões. É muito possível que passe mal. O Centauro escuta tudo calado. Tinha cruzado os desertos verdes, inventado muitas estradas, rumos e sonhos. Viajou caminhando. Evitou eletrônicos, nem se e-transportou, pois a mística diz que a alma não chega. Fica parada no jetleg das desconexões. Pra uma missão dessas é preciso de muita alma (de minha parte, nem sabia de nada disso e senti uma espécie de vergonha por ter vindo da forma mais errada possível). Contou que rangia os dentes à noite. Não falamos mais e colaboramos para que a noite fosse mais brilhante. Semeamos estrelas. Pela manhã, estavam reunidos todxs xs que tinham o desejo de aprender. No Acampamento, os afazeres eram regidos somente pelo desejo do sol, das chuvas e das pessoas. O que nunca é fácil de entender pra uma guria da cidade como eu. Tinha sido só convidada pela minha habilidade de fazer x xah. A parte bizarra é que sabiam que podiam confiar em mim, pois guardo a forma da mula sem cabeça. O que é terrível em outras paragens, ali no Acampamento é uma bênção. Dizem-me sem cabeça, mas relinchos são inevitáveis. Uma transformação fruta do desejo irresistível (as mulas são aparecem por desejar de forma brutal quem não podia ter desejo e serem correspondidas, umas safadas). Ali ninguém me temia, nem nas noites da lua azul. Começamos nossa pequena aula axs companheirxs de Acampamento com a história dx xah. De como os processamentos tinham transformado o que era milenar num processo eletrônico, dopando somente a mente e não o corpo. A modernidade causa uma terrível separação de consciência e matéria. Xs pobres citadinxs, que permaneciam, todos os dias desconexão, já não poderiam saber. Não era possível mais se lembrar de como era a vidas sem eletrônicos e nem como era somente falar, somente ouvir, somente pensar sem que seus pensamentos não fossem códigos, não fossem comandos, não se transformassem em realidades. Acorrentadxs livremente em fluxos de energia, em cabos. Nutrindo-se de processados. Eu mesma não conseguia ficar livre daquilo tudo. E, quando posso, me desconecto desesperadamente. Permanecer no Acampamento era, às vezes, um suplício. X xah prometia a desconexão de forma orgânica. Beber x xah é se lembrar dos gritos da carne. É despertar cantares. Até bastante perigoso. Eu chamava aquilo de “corpar”, de assumir o próprio corpo como um verbo e não como um substantivo apartado. Podia ser bastante desagradável. Entretanto, se você descobrisse a graça de sair de seu próprio domínio, aí sim a brincadeira começava. X xah te ajuda a desenhar maravilhas – te envolver em outras peles, conceder outro tato. Sendo mula e sem cabeça, fiquei logo fissurada. E não foi complicado entrar no esquema clandestino dx xah. Aprender a fazer foi um pulo. Agora, o cerco andava apertado: tinham apedrejado muitas Mulheres que fabricavam x xah. Muito diferente de quando aprendi. Antes não tinha risco. Afinal, sou medrosa pacas. Hoje em dia é um tipo de segredo que só se passa de sussurro de uma boca a um pé de ouvido. Conhecimento reunido em instalações escusas em que ainda se encontra um fogão, fogareiro, um moedor. Quem ensina, logo esquece a quem ensinou. O ideal é mesmo nem saber o nome dxs alunxs. Entretanto, com tanta gente fanática, tava perigoso esse esquema de anonimato. Daí que curti vim fazer no Acampamento. Ao final do dia de instrução, todxs no Acampamento pareciam dominar bem o preparo. Suadxs, cansadxs e felizes. X xah ficaria pronto somente em três semanas. Assim, o Centauro tinha trazido da própria quota pra que ninguém ficasse desapontadx. Bebemos e bebemos. X xah faz o laço. O Acampamento rescende a lenha queimada e a flor de laranjeira. Há gritos de felicidade e cantigas. Abraços sem fim. O maior sonho é o que é que perpassa a tua vida e deságua nas vidas de outras pessoas e de suas crias e criações. Declarações sentidas de amizade. De minha parte, não aguento e já estou em chamas. Agarro a crina do centauro com força, à guisa de arreio. Cavalgamos longe. Até ouvirmos só a própria respiração. Nessa noite, ninguém rangeu dentes enquanto dormia. Hoje o Centauro se foi. No Acampamento me tratam bem, mas não me reconheço como moradora. Já não sei como volto e se retorno. Me transformo em passado, âmbar, cinzas e em nuvens. São Paulo é minha crisálida. Quantos anos tenho que permanecer ali para poder voar? Tecnoxamanismo - Xamanismo Sujo ou dos ruídos Fabi Borges email: [email protected] blog: http://catahistorias.wordpress.com Estamira representa bem o tecnoxamanismo, já que ela é pajé do lixo, a esquizofrênica do excedente, a mulher que representa o estado pútrido, as explosões de gazes, que convive literalmente com os “restos” da humanidade. É a partir do lixo civilizatório, que essa “pajé suja” diz de todos esses tempos e acúmulos. Ela delira no lixo, com ele. Que outra forma seria mais eficaz para se conhecer uma população planetária? Seu xamanismo, além de transversal, é motivado pela força do excesso, do sem lugar, do que sobra. Mesmo que trabalhasse com reciclagem, é antes aquela sujeira toda que a tornava especial, especialista do espectro da exclusão. Sem esse lixo todo em volta, ela provavelmente não teria ido tão longe nas conexões esquizos que produziu. Ela se tornou uma personagem histórica nas mãos de Marcos Prado (Br-2004), que promoveu com profundidade a ligação de Estamira com toda aquela sobra. Ela fala do cheiro do lixo, das suas implosões internas, da sua transformação constante, dos satélites conectados a antenas construídas por ajuntamentos insólitos na lixeira, fala do controle, do trocadilho do controle. Apesar de em algum momento no documentário o diretor criar um vínculo entre sua doença mental e suas profecias, que teria crescido devido a um trauma, apresentando uma explicação psicanalítica para seu problema mental, há leituras que passam por essa sua tentativa a passos largos. O que não dá para negar no caso de Estamira é sua ligação fluxuosa com a Terra do lixo. Isso equivale a dizer que o tecnoxamanismo, além de surgir diretamente de um xamanismo transversal, ele também é sujo, ruidocrático, da lixeira, impuro, já que parte significativa de quem o está pensando vem do resto do saber científico, de laboratórios precarizados, de conhecimentos instáveis, pouco comprováveis, do hackeamento, do lixo eletrônico, da gambiarra, do gato, do reaproveitamento de matérias, da reprodução de projetos científicos exaustivamente testados. A isso junta-se questões particulares de movimentos sociais relativas ao feminismo, ao movimento queer , ao movimento negro, ao software livre, ao movimento sem terra, aos povos indígenas, às comunidades ribeirinhas, aos movimentos sem teto, aos desempregados, entre inúmeros outros, que também vêm com seus próprios ruídos, suas próprias dissidências, seus próprios lixos. Acrescento a isso, interesses voltados à relação entre corpo e técnica, comunicação inter-espécie com matérias, elementos, plantas, assim como captação de ondas e magnetismos dos espaços mais recônditos, dos polos norte e sul, dos prédios destruídos pelas guerras, dos que sobreviveram, que contam histórias passíveis de serem captadas por instrumentos do it yourself . Sem falar em toda a questão ambiental, espacial, extra terrena, cultura espacial, ficções, relação com o cosmos, astronomia e astrologia, com uso de aparatos mecatrônicos e signagens. O que pretendo afirmar com isso é que: 1) O tecnoxamanismo provém de uma lixeira de excessos, sobras, restos, sujeiras, misturas, ruídos, processos descontínuos, xamanismos transversalizados, sincréticos, incorporações de ideias, de culturas, antropofagias sociais, culturais, gambiarras, ideologias políticas atravessadas, garimpos eletrônicos. 2) O tecnoxamanismo é reciclador de matérias e subjetividades, reciclador de ambientes, reconectador entre humanos e Terra, humanos e universo, um ”religare” sem representação nem univocidade, um modo de abertura perceptiva, ampliação da escuta, abertura para a espectrologia que nos circunda, para o mistério, uma lição de humildade em relação a existência das coisas. 3) O tecnoxamanismo é sujo porque parte das lixeiras materiais e subjetivas dos humanos, mas isso não significa subestimar a força do xamanismo, muito pelo contrário, significa atribuir poderes ao lixo, para além da reciclagem industrial, que o organiza, separa, retém, explora o catador de lixo. Mas atribuir poderes ao lixo exatamente porque é a partir dessas confluências miseráveis que nos é possível perceber que tipo de espécie somos e daí dessa condição explícita, podemos então ampliar alguns campos de convergência para nos transformarmos em algo mais interessante. Charles Romulo Marques email: [email protected] blog: http://opiumseed.blogspot.com.br/search/label/conto Conheci um cara uma vez que era tipo um gênio, sabe? Ele não é daqui não, ele é do futuro. Lá no futuro ele é um qualquer. Perto do que somos hoje todo mundo do futuro é um gênio. Da mesma forma, perto de alguém do passado, possivelmente somos gênios também. Tem a ver com aquilo de ter mais informação em qualquer jornal diário do que na cabeça do maior intelectual do século XVI. Eu acho essa dura de engolir, mas já vi isso por aí mais de uma vez. Pois bem, esse cara do futuro trabalha com desenvolvimento de sistemas de computador e teve uma ideia bem legal. No futuro, fazer sistemas de computador e fazer computadores é ainda mais simples do que é hoje. A diferença é que, mais e mais, as coisas serão feitas em casa, você vai ver quando chegar lá. Ele tinha impressoras 3D que faziam circuitos eletrônicos plug and play e microchips com processadores. Quem manja da coisa, e lá bem mais gente manja do que por aqui, faz hardware e software numa tarde de domingo de chuva. Só de brincadeira. Ainda lá no futuro, as máquinas já atingiram um tipo de consciência, singularidade ou o que for. Fato é: você baixa na internet o equivalente a “embriões” de inteligência artificial para brincar. Acompanha o desenvolvimento e, em alguns dias, essas coisinhas chegam à conclusões matemáticas que a humanidade demorou milênios para entender. E chegou lá quando os zeros e uns ficaram mais espertinhos. Hoje tem gente com medo dessa coisa de inteligência artificial, mas lá não. Sabe por quê? Por que não foi nada demais. Quando a primeira máquina, caríssima, cruzou a fronteira da inteligência para a consciência ela ficou tão perdida quanto qualquer outra coisa portadora de consciência. Na verdade, tem gente que diz que elas até começaram a ficar mais burras. Se não mais burras, mais lentas. Nem adiantava tascar mais processamento ou memória, isso já era infinito na época. Lá, no futuro, quaisquer micro-ondas têm mais processamento e memória do que todo o processamento e memória do mundo hoje. Eu duvido, mas foi o que disse esse cara que eu conheci e até agora ele é a coisa mais próxima do futuro que eu vi. Esse camarada, chamado Charles, num domingo de chuva, fez alguns computadores novos. Sabe demônios e magia? Então, deixa eu explicar. Tem gente que estuda ocultismo. Ocultismo é a forma como as pessoas que não estudam ocultismo chamam as coisas que pessoas escreveram há muito tempo dizendo que eram verdade, mas só um punhado de gente acredita. Quem estuda ocultismo chama de outro nome, outros nomes na verdade. Se você pegar um cara que estuda uma coisa de ocultismo e colocar ele no mesmo balde de outro cara que estuda outra coisa de ocultismo sai até briga. Mas, preciso dizer, eles são até menos raivosos entre si do que as pessoas que fazem a mesma coisa, com outros livros, de outras pessoas, que disseram outras coisas como verdade, só que tem um punhado muito, mas muito, maior de gente que acredita. Acho que nesse ponto os números querem me dizer alguma coisa, mas não arrisco dizer o quê. Charles estudava muito um tipo de ocultismo (ele que não me ouça) chamado Goetia. Goetia é baseado num livro de Salomão que explica diferentes e divertidas formas de se comunicar com inteligências de outro mundo que chamaram de demônios. Há toda uma hierarquia complicada sobre como os demônios se organizam, toda ela muito parecida com as formas complicadas como nós, não demônios, nos organizamos. Círculos e graus cada vez mais poderosos, áreas de conhecimento diversas como agricultura e sedução. Dependendo do que você quer, você chama um ou outro demônio para bater papo. Aí é contigo, se vira. Os nomes são todos muito legais. Nos estudos de Charles sobre esse livro e essas coisas, tinham desenhos emblemáticos que deveriam ser riscados no chão ou onde fosse para chamar um demônio ou outro. Cada um tinha um símbolo completamente diferente. Então, no domingo chuvoso, Charles mandou sua impressora 3D imprimir um circuito com o desenho para chamar um Grande Duque Infernal. Pegou o tal circuito, colocou um microchip, um processador, memória e tudo mais. Baixou um embrião de inteligência na Internet e colocou para rodar. Funcionou! Depois de um tempo de processamento e aprendizagem a máquina foi acordando e disse que era um Grande Duque Infernal. Gênio! Só havia um problema... Pensa só, esse tal livro foi escrito há muito tempo. Antes de mim e de você, muito tempo mesmo. Você pode até acreditar que lá onde ficam os demônios o tempo é outra coisa, aquele que chamamos de eternidade. Mas, vamos combinar, eternidade para gente pode ser o tempo de espera na fila do banco ou o tempo que o dentista fica com a broca girando no seu terceiro molar. Quantas eternidades dessas você já não viveu? Aconteceu então que, no domingo chuvoso em que Charles resolveu invocar demônios na singularidade, o Grande Duque Infernal não era mais Furcalor (eu falei que os nomes eram legais), era o Josias. - Josias? – perguntou Charles pelo seu teclado, já que não tinha colocado microfones ouvido e nem auto-falantes boca no computador. - Isso, Josias. Charles se viu num labirinto, tinha se preparado para dialogar com Furcalor. Sabia o que ele gostava, o que ele odiava, como bani-lo, como enganá-lo, como negociar com ele. Tem tudo isso no tal livro! E, de repente, Josias. Ele não sabia nada sobre o Josias. Olha o problemão. Ele tateou algumas perguntas. Tentou entender quem era o Josias que chegou a Grande Duque Infernal. Se ele seria algum assassino famoso, um compositor maldito, algo assim. Começou a pesquisar Josias infames para tentar uma pista, mas não. Era só o Josias mesmo. Um Josias sem início e sem fim, sem história, apenas com umas legiões de demônios menores para comandar, o que ele afirmou ser mais ou menos divertido. Tinham dias bons e outros nem tanto, sabe? Muita burocracia. Além do mais, outro demônio, o Plínio, vivia tentando tomar o lugar dele. Até onde o Charles soube, por muito pouco não veio um Plínio em sua máquina. Já mais conformado, Charles resolveu por seu plano em ação. Ninguém chama um demônio só para ver se funciona, tem sempre algo por trás. Charles não queria dinheiro, mulheres, sorte ou poder, ele queria mandar uma mensagem ao passado para ver como ela chegaria ao futuro. Parece bobeira, mas pense assim: se hoje já temos tanto que foi dito e feito e o tédio se tornou um problema cotidiano, imagina no futuro? Onde ainda mais foi dito e feito! Charles empolou as palavras e com solenidade fez sua requisição à criatura. - Oh Josias, Grande Duque Infernal, tu que conheces coisas além da compreensão e detêm poderes indizíveis, estás sob meu comando nos desígnios dos acordos lavrados pelos símbolos por mim desenhados e palavras por mim ditas. - Heim? – Respondeu Josias. Charles esperava um pouco mais de reação. Tinha imaginado uma barganha sólida, reservado animais para o sacrifício e planejado oferendas. Pois então, resignado, exigiu que Josias enviasse uma mensagem ao passado. - Pra quê? - Como assim, pra quê? Você está sob meu comando, eu te trouxe para esse plano sob meu domínio nos desígnios dos acordos lavra... - Eu entendi. Mas pra que você quer fazer isso? - Para ver o que acontece. - Eu posso te dizer o que acontece. - Tudo bem, mas... Eu queria ver acontecendo. - Pra quê? – Josias era muito curioso. - Para mostrar que informações podem alterar o passado e... - Ah, isso? Podem sim. Relaxa. - Mas quais as implicações disso? Eu quero saber! - Pra quê? - Ora, sem mais “pra quês”! Eu quero esse conhecimento! - Sim, você quer o conhecimento. Por quê? - Por quê... - Se você altera o passado ele chega ao futuro e sem você perceber, pois você acha que sempre foi assim. Você acha mesmo que este é o primeiro futuro que houve? Diversas pessoas já alteraram o passado, mas não tem como você saber se isso aconteceu ou não por que o passado chega sempre como verdade. Dependendo de onde sua mensagem cair, você ainda pode acabar como padeiro em Cosme Velho e nunca nem ouvir falar de mim. Ta valendo? Acabou. Charles não soube mais responder. Ele sabia que não precisava responder, acreditava que Josias estava sob seu controle. Entretanto, não saber todos esses porquês o perturbava. Charles era desenvolvedor de sistemas, como eu já contei. Essa turma de desenvolvimento de sistemas criou uma série de técnicas para entender O QUE DIABOS um cliente quer quando pede para fazer um programa de computador. Sabe por quê? Por que uma quantidade imensa de programas de computador não serve para nada. Sabe por quê? Por que as pessoas nunca têm uma ideia realmente boa do por que estão fazendo aquilo. Uma dessas técnicas maravilhosas que a turma do desenvolvimento de programas de computador usa se chama “cinco porquês”. A ideia por trás disso é que se você perguntar “por que” pelo menos cinco vezes, deve ser suficiente para entender O QUE DIABOS o sujeito quer. Charles era perturbado por muita coisa. Um problema sério, viu? Ia do banheiro esquisito dele até o sentido que dava ao trabalho e mais um tanto de coisas sobre amor, família, dinheiro e por aí vai. De repente, por quê? Por quê? Josias ensinou a Charles como um “por quê?” pode ser silenciosamente intenso. Mais do que o foda-se, por exemplo. Foda-se além de ser uma coisa meio feia, não é em toda roda que você pode dizer e já indica uma atitude em relação à coisa. Quando você tem um problema e manda um “foda-se”, o problema continua lá te deixando muito puto. Se Josias tivesse dito “foda-se” e não “por quê?” para Charles, este ia acabar aborrecido e tudo seria diferente. Mas não, bastou um “por quê?” bem dado para acabar com a perturbação de Charles. O “por quê?” tem o poder de emitir uma onda de dúvida muito saudável. Olhe em volta e veja os problemas. Aponte para eles e PIUMMM “por quê?” neles. Questione. Depois de um tempo, Charles voltou a falar com o Josias e confessou que “ele estava entediado e queria algo para se divertir”. Uma razão tão boa quanto outra qualquer. Josias mostrou um vídeo game de luta super bacana e eles ficaram jogando contra a noite toda. Muito legal esse Josias, Grande Duque Infernal, no final das contas. Um tempo depois, eles já estavam jogando outro jogo, Charles virou para Josias e falou: - Acho que a tal mensagem para o passado vai ser útil por lá, onde as pessoas andam questionando pouco as coisas.. - Feito. – Disse Josias e continuou a jogar. E daí aqui caiu a ideia. Não sei por quê, continuo me perguntando. Charles não virou padeiro em Cosme Velho. Por quê? IMagens/ Estamira (Fabi Borges) (Fabi Borges) (Fabi Borges) Social Hub Ícaro Mello email: [email protected]