gritomudonomuro - Departamento de Matemática - PUC-Rio

Transcrição

gritomudonomuro - Departamento de Matemática - PUC-Rio
questões de criptografia
Aos 12 anos, Joana César inventou um alfabeto cifrado para esconder segredos do irmão mais velho. Depois, espalhou sua arte pelas ruas do Rio, como neste muro no Jardim Botânico.
GRITOMUDONOMURO
m trecho da mureta da via expressa que liga a Zona Sul do Rio de
Janeiro à Barra da Tijuca apareceu coberto de inscrições ilegíveis
numa manhã do ano passado. Era uma
sequência de símbolos, pintados em
tinta branca, que ocupava toda a altura
do pequeno muro. Estendia-se por
mais de 100 metros e tinha quase 400
sinais compridos e estreitos. Vários deles eram repetidos, o que sugeria tratarse de um alfabeto. As letras tinham
ângulos retos e poucas curvas. Algumas lembravam a escrita latina – era
possível identificar um I, um X, um Y
espelhado, um U de ponta-cabeça.
Não havia espaço que delimitasse as
palavras. Se aquilo fosse mesmo uma
mensagem, era incompreensível.
Inscrições semelhantes haviam sido
deixadas em muros e viadutos da Gávea, da Lagoa, do Leblon e bairros adjacentes. Há mensagens escritas no
U
alfabeto enigmático num acesso ao túnel Rebouças, no muro de uma escola
e na frente do Jardim Botânico. A meio
caminho entre o grafite e a pichação, os
escritos costumam ficar na parte de
cima de muros altos e outros lugares
improváveis. Com frequência, são associados a uma figura humana longilínea
e estilizada, com os braços e pernas finos e as costelas realçadas.
A autoria das inscrições foi reivindicada pela primeira vez no início de 2011.
Numa reportagem da revista dominical
d’O Globo, a artista plástica carioca Joana César contou que era ela quem espalhava as mensagens pela cidade.
Estavam escritas num código que criara
mais de uma década antes, para preservar seus segredos de pré-adolescente,
que anotava numa agenda. Acrescentou
uma revelação apimentada: algumas inscrições contavam suas fantasias eróticas.
Sem saber, os cariocas conviviam havia
anos com relatos íntimos, escritos em le- marcou a entrevista no café do Parque
Lage, em cuja Escola de Artes Visuais
tras garrafais na cara de todos.
ela estudou. Vestia camiseta branca sem
oana Coelho Lenz César tem 37 manga salpicada de manchas de tinta.
anos. É bronzeada, tem os cabelos
Um traço acentuado de sua obra é a
curtos, olhos castanhos e piercing obsessão com o ocultamento. Muitos
no nariz. Foi criada num sítio, em Jaca- de seus trabalhos foram cobertos de tinrepaguá, com acesso ao ateliê e ao ma- ta tão logo concluídos. Num pedaço de
terial da mãe, Tereza Coelho, também parede de 5 por 3 metros, no ateliê que
artista plástica. Ela pensou em ser escri- divide com a mãe, Joana pintou e cotora e produziu um número considerá- briu a superfície sucessivas vezes. Entre
vel de contos e esboços de um romance. uma camada e outra, escondia objetos:
Como tinha dificuldade em mostrar o folhetos de mãe de santo trazidos da
que fazia, destruiu boa parte dos escri- rua, bolsas que ela mesma fizera, peças
tos. Mas aproveitou muitos deles como de lingerie. A parede ganhou dois palsuporte para pinturas e colagens.
mos de camadas e depois foi desmontaAinda acha incrível que alguém torne da. “Descobri que tinha mais tesão em
públicos uma tela que pintou ou um tex- cobrir do que em pintar”, explicou. “Esto que escreveu. “Como é que o cara vai crevia por toda a parede, muito solta,
lá e mostra, na cara dura?”, perguntou sabendo que teria depois a sensação
durante uma conversa num fim de tarde. maravilhosa de cobrir tudo aquilo.”
“Que coragem”, completou, com uma
Os trabalhos no ateliê, contudo, lhe
expressão de perplexidade. Joana César deram vontade de ir para a rua e mostrar
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CLARISSA PIVETTA_ ARISSAS MULTIMÍDIA
Aos matemáticos que quiseram desvendar sua escrita, deu uma única pista: “Todas as letras estão dentro da própria letra.”
O embate de dois matemáticos com as confissões cifradas e
eróticas que uma artista plástica espalhou pelas ruas do Rio
BERNARDO ESTEVES
seus textos. Mas não venceu a timidez:
preferiu se expor de modo incompreensível e apócrifo, recorrendo ao alfabeto
secreto que concebera na puberdade.
Aos 12 anos, Joana se apaixonara por
um amigo do irmão mais velho, de
quem escondeu o sentimento. Atribuiu
um símbolo a cada letra do alfabeto e
passou a escrever suas confissões em segurança. Usou o idioma secreto por dois
ou três anos. Aí perdeu interesse e abandonou o código.
Quando resgatou o alfabeto, não teve
dificuldade para se lembrar das letras.
Não tardou a recuperar a fluidez da escrita, como fez questão de demonstrar
num pedaço de guardanapo. A essência
do abecedário permaneceu inalterada
na nova encarnação. As letras só ficaram
um pouco mais estreitas e alongadas,
por influência dos pichadores de São
Paulo. O estilo pode explicar a semelhança de alguns sinais com as letras
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runas, alfabeto usado pelos povos do
norte da Europa até o início da Idade
Média. Joana César só soube da existência das runas quando um passante que a
viu pintando assinalou a coincidência.
omeçou pintando inscrições pequenas. À medida que ganhava
confiança, aumentou a frequência
das saídas para escrever os relatos cifrados. Joana produz suas próprias tintas.
Mistura pigmento em pó, cola e água na
proporção adequada à superfície que escolhe. Sai para pintar de carro ou bicicleta, e leva galões, rolos e cabos extensores
de tamanhos variados. Hoje, prefere ficar
nas proximidades da sua casa, na Gávea,
“porque sou mulher e pinto sozinha”.
Desde que teve um filho, há três
anos, parou de pintar à noite. Já foi detida três vezes. Numa delas, foi pega
pichando na Barra. O acaso a levou à
presença do delegado – que era justa-
C
mente o amigo do irmão por quem se
apaixonara, o motivador do seu alfabeto. Foi libertada, mas não lhe contou do
seu amor adolescente nem revelou o
conteúdo das mensagens.
Houve um almoço de família no domingo em que foi publicada a reportagem sobre as inscrições de Joana César.
Sua avó lhe disse que ficara consternada com o conteúdo das mensagens.
A artista admitiu que fazia relatos libidinosos. “Tem mesmo umas baixarias”,
disse-me. Mas frisou que seus escritos
não se limitam a isso e negou com energia que seja pornógrafa. Explicou que
eles são parte de um conjunto de relatos
de desejos, angústias, frustrações.
Ao lado de um ponto de ônibus da
rua Marquês de São Vicente, ela deixou
no chão um recado para o pai, hoje
quase apagado pelos passantes. “Escrevi
um monte sobre ele, falei mal à beça”,
contou. “Foram duas madrugadas pin-
tando, foi excelente para mim.” Para a
artista, os muros do Rio funcionam
como um enorme divã: “A rua me ajudou a resolver várias questões relacionadas com a minha infância, com a
dificuldade de mostrar o que eu fazia.”
Joana César jamais revelou a chave
para decifrar seu código. Adolescente
isolada, não usou o alfabeto secreto para
se comunicar com amigas. Valeu-se
dele apenas para cifrar as anotações que
fazia para si mesma e hoje espalha pela
cidade. Era a única a entender o alfabeto com o qual escrevia suas confissões.
aulo Orenstein, um rapaz de 22
anos, loiro e de olhos azuis, se formou há dois meses em economia
pela Pontifícia Universidade Católica, a
puc do Rio. Mas ele gosta mesmo é de
matemática. Descobriu isso no meio do
curso e começou a seguir disciplinas de
pós-graduação na área. Antes de se for-
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POESIA_PAULO HENRIQUES BRITTO
FOGO-FÁTUO
Nenhuma solução se oferta
onde problema não havia.
(Cada porta estava aberta
e cada sala vazia.)
E no entanto a consciência
buscava alguma resposta.
(Estava cheia a despensa
e a mesa estava posta.)
Como livrar-se do estigma
de se saber terminável?
(A inexistência do enigma
é uma ausência insuportável.)
mar, já tinha feito um ano de créditos
para o mestrado.
No fim do ano passado, foi admitido
no concorrido processo de seleção do
Instituto Nacional de Matemática Pura
e Aplicada. Abriu mão da vaga para permanecer na sua universidade de origem
– escolha que muitos matemáticos considerarão herética devido à proeminência do Instituto. Explicou que, entre
outros motivos, optara pela puc porque
o currículo era mais flexível.
Orenstein deve muito do seu fascínio
pela matemática a Carlos Tomei, que lhe
deu aulas na graduação e vai orientá-lo
no mestrado. Professor da puc desde
1984, Tomei é um homem cativante,
de barba grisalha e sobrancelhas arqueadas. Quando saía para almoçar pela
portaria principal do campus da universidade, dava com uma mureta na qual
Joana César pintara inscrições. Nunca
lhes deu atenção. Até que soube que se
tratava de uma mensagem em código.
Em novembro de 2008, Persi Diaconis, da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, publicou um artigo no
qual discutiu o uso de simulações computacionais para resolver problemas
complexos. Na introdução, Diaconis
contou como elas foram usadas para
decifrar mensagens em código trocadas
por prisioneiros da Califórnia e interceptadas pela polícia. Onde métodos
corriqueiros haviam falhado, os algoritmos quebraram a cifra dos detentos,
que misturava trechos em inglês, espanhol e gíria da prisão.
Ao saber que as inscrições eram textos cifrados, Carlos Tomei lembrou-se
do artigo de Diaconis. E se indagou se
fazer, passou anos recapitulando na treva tudo o que vira e aprendera.
Um dia, o sacerdote recordou que o
seu deus escrevera, no primeiro dia da
Criação, uma sentença mágica, capaz
de conjurar os infortúnios que ocorreriam no final dos tempos. Tal frase fora
composta numa linguagem secreta, de
maneira a chegar incólume às mais longínquas gerações, quando um eleito a
decifraria. Julgando que o apocalipse
estava próximo, o mago dedicou todos
os seus dias escuros – e anos, e décadas
– a buscar a sentença. “O fato de que
uma prisão me rodeasse não me impedia essa esperança”, escreveu. Talvez
ele tivesse visto a frase milhares de vezes e só faltasse entendê-la.
A diferença entre os matemáticos e o
mago é que os cariocas tinham as sentenças, e o asteca partia do nada. Mas
ambos precisariam desvendar uma linguagem ignorada – em um caso, criada
pelo deus; no outro, por Joana César.
O sacerdote asteca refletiu que existem na Terra formas ancestrais que poderiam conter uma sentença que
perdurasse por milênios: uma montanha, um rio, um império, a configuração dos astros. Mas, no decorrer do
tempo, tudo isso caduca. A montanha se
aplaina, o rio desvia o curso, os impérios
decaem, até no firmamento há mudança. Aí se lembrou de que o jaguar era
um dos atributos do seu deus. Na Criação, pensou, a divindade escrevera a
sentença no dorso do animal, que se reproduziu ao longo dos séculos em canaviais e cavernas. Nas manchas do bicho
à sua frente, que ele via por instantes
apenas uma vez por dia, estava a mensagem. Sua busca era no fundo idêntica
à de Orenstein e Juliana Freire: achar
sentido num idioma desconhecido – a
pelagem da fera; os signos de Joana.
a mesma estratégia não poderia ser usada para quebrar o código nos muros
cariocas. Pensou logo em Paulo Orenstein e Juliana Freire, uma professora de
31 anos, de cabelos castanhos longos e
lisos, de quem ele também havia sido
orientador. De volta ao Brasil, depois de
um pós-doutorado na Universidade
dupla de matemáticos tinha pouco
de Nova York, Juliana Freire foi contracom que começar. Não havia pistada pelo Departamento de Matemátas sobre o idioma das inscrições.
tica da puc. Carlos Tomei lançou o
desafio à dupla: “Por que vocês não ten- Cada símbolo podia representar uma
tam usar o mesmo algoritmo para ver o letra, quiçá uma sílaba. Podia haver um
sinal para representar o espaço entre as
que ela está escrevendo?”
palavras, já que as letras eram escritas
m algumas áreas da matemática, de forma contínua.
saber escrever as instruções para
Como Joana César criara o alfabeto
que computadores destrinchem aos 12 anos, ponderaram, não devia ser
problemas impossíveis de serem resolvi- um código muito complexo. Uma busdos manualmente é uma habilidade ca na internet levou Orenstein a um
quase tão importante quanto fazer as blog de cultura. Vendo fotos de Joana
operações básicas. Como Orenstein pintando um viaduto, concluiu que ela
queria aprender a programar, entusias- escrevia da esquerda para a direita. No
mou-se em decifrar os símbolos miste- texto, ela deu uma pista sobre a natureriosos que via numa escola quando za do alfabeto: “A única coisa que digo
corria na Lagoa Rodrigo de Freitas.
é que todas as letras estão dentro da próJuliana Freire também topou o rep- pria letra.” E deu um único exemplo,
to. Ela e Orenstein aceitaram uma tare- mostrando como um P estilizado dava
fa semelhante à do sacerdote asteca origem ao símbolo que o representava.
Tzinacán. Num relato publicado na Ar- Restava descobrir as outras 25 letras.
gentina, em 1949, o mago contou que
Se a hipótese dos dois matemáticos
fora encarcerado pelos espanhóis numa estivesse correta, o alfabeto da artista seprisão escura, no fundo do chão. Na ria uma cifra de substituição: o sistema
hora sem sombra (o meio-dia), um car- em que cada símbolo corresponde a
cereiro abria uma janela no alto da abó- uma letra do alfabeto, um código clássibada e fazia descer água e carne por co que é usado pelo menos desde a
meio de uma roldana. Só então ele via Roma antiga. Júlio César se comunicava
que a cela era dividida por uma fileira com seus generais por meio de uma cifra
de barras de ferro. O seu companhei- de substituição que hoje leva seu nome.
ro de infortúnio, do outro lado da caO uso dessa forma de cifra foi seguro
deia, era um jaguar. Sem ter mais o que até o século ix, quando o matemático ára-
A
E
be Al-Kindi, num marco inaugural da
criptoanálise, descreveu um método capaz de quebrá-la. Al-Kindi mostrou que a
frequência com que ocorrem os símbolos
de uma mensagem cifrada permite apontar seus correspondentes no alfabeto de
origem. Se a mensagem original estiver
em português, por exemplo, é grande a
chance de que os sinais mais frequentes
correspondam às letras mais comuns no
idioma luso – A, E e O.
A análise de frequência é até hoje
o método fundamental para quebrar
cifras clássicas. Foi graças a ela que
matemáticos decifraram o código dos
prisioneiros da Califórnia. Lá, porém,
não bastou comparar a constância da
ocorrência de cada letra, provavelmente porque os prisioneiros escreviam em
mais de uma língua. A cifra só foi quebrada quando se comparou a frequência com a de pares de letras. Foi esse o
caminho que Paulo Orenstein e Juliana Freire trilharam.
upondo-se que Joana César escrevera as mensagens em português, era
preciso comparar a distribuição dos
símbolos nos muros com a frequência
dos pares de letras no idioma. Executar a
tarefa manualmente seria demorado e
trabalhoso. Um computador, ao contrário, poderia resolvê-la com grande rapidez e sem os erros que a resolução
manual acarretaria. Mas era necessário
ensinar o computador a fazer isso. A tarefa de Orenstein e Juliana Freire consistiu
em escrever as instruções – ou o algoritmo, como se diz em computação – para
que a máquina enfrentasse o problema.
Usando uma linguagem de programação chamada C++, eles ensinaram
o computador a testar milhares de soluções possíveis para o código de Joana e
a compará-las com a frequência dos pares de letras em português. Ao final,
avaliaram, chegariam à combinação
que melhor correspondia à distribuição
das letras na língua portuguesa.
Precisavam antes determinar quais
são os pares de letras mais frequentes
no idioma. Para isso, era preciso analisar um texto extenso e representativo do
português brasileiro. Orenstein pensou
no verbete “Brasil”, um dos mais longos
da Wikipédia lusófona. Mas preferiu
escolher um texto literário, por achar
que estaria mais próximo do registro
lírico que Joana César deveria ter usado
nas mensagens. Escolheu Dom Casmurro. A análise do romance de Machado de Assis revelou que os pares de
letras mais frequentes eram AS, RA e OT.
Era chegada a hora de testar o algoritmo. Primeiro, aplicaram um texto
que eles mesmos embaralharam com
um código que conheciam de antemão.
Funcionou: o programa conseguiu decifrar a mensagem. Podiam finalmente
pôr à prova os textos de Joana. Orenstein coletou algumas frases cifradas da
artista para alimentar o algoritmo.
Quando rodou novamente o programa,
obteve uma resposta frustrante. “Não
chegamos nem perto de conseguir ler”,
contou. Ao ver o resultado, Juliana Freire duvidou que as inscrições fizessem
sentido. “Aquilo é só bobagem, são letras aleatórias”, disse ao aluno.
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ceticismo da professora atiçou
Orenstein. Achava que o algoritmo decifraria os escritos se coletasse um volume maior de texto. De
acordo com a literatura técnica, 1 500
caracteres de texto cifrado eram a amostra mínima para quebrar um código
com segurança. Era preciso voltar às
ruas e registrar mais inscrições.
Depois de um levantamento feito
com a ajuda de parentes e amigos,
Orenstein percorreu o Rio durante três
tardes e fotografou todas as mensagens
cifradas de que obteve notícia. Depois,
passou um fim de semana anotando
manualmente as inscrições. Tinha compilado 1 692 caracteres do alfabeto em
cinco folhas quadriculadas. O trabalho
braçal não terminou aí: atribuiu aleatoriamente uma letra do alfabeto a cada
símbolo usado pela artista, para que o
computador pudesse processá-los.
Rodou de novo o algoritmo e teve
outra decepção: mais uma vez, a resposta era incompreensível. Também Tzinacán enfrentou enormes dificuldades
para achar sentido na pelagem do jaguar. “Não vou falar das fadigas do meu
trabalho”, escreveu. “Mais de uma vez
gritei para a abóbada que era impossível
decifrar aquele texto.” Mas perseverou.
Orenstein, igualmente, não esmoreceu. Numa troca de e-mails com Juliana Freire, discutiu ideias para refinar o
algoritmo que haviam escrito. Decidiram modificar algumas coisas do programa para fazer uma última tentativa.
O
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cia: RAGUEZO. Jogou o termo na internet
e descobriu que era o nome do boneco
de costelas aparentes que Joana César
desenhava pela cidade. Achou também
uma galeria de fotos do personagem
num repositório de imagens. A titular
da conta se identificava como IT : RAGUEZO : NHVMIDFOMT. Era uma sequência parecida com as letras da resposta
que o algoritmo lhe devolvera. Não tinha como estar errado.
Excitado por estar perto da resposta, começou a fazer uma limpeza manual do texto, de modo a incluir
espaços entre as palavras e corrigir
erros de ortografia que poderiam ter
surgido em qualquer etapa da cadeia,
da escrita por Joana César à transcrição e digitação feita por ele. Notou
que tratara os símbolos usados para as
letras O e Q como se fossem um úniITRAGUEXOFNJFNJDVQMT
co sinal. Concluiu também que a arNa segunda linha, alguns trechos tista usava um sinal gráfico para
pareciam fazer sentido, como:
dobrar a letra anterior.
Abandonaram, por exemplo, a hipótese
de que haveria um símbolo representando o espaço entre as palavras e deixaram de contar letras acentuadas como
caracteres distintos.
Orenstein fez as correções numa
noite chuvosa de outubro, no quarto do
apartamento em que mora com os pais,
no Jardim Botânico. Eram quatro da
manhã quando terminou os ajustes e
rodou o programa. O resultado que recebeu minutos depois parecia uma
nova sequência ininteligível. O estudante rodou o programa várias vezes,
recebendo a mesma resposta, uma algaravia de letras. Intrigado, resolveu
examiná-la com mais atenção.
A resposta consistia num grande bloco de texto sem espaços entre os vocábulos, como um diagrama de caça-palavras.
Seu início era uma sequência sem nexo:
NIMVUMAPESOADESACIDADEMALUCA
Mais adiante, Orenstein identificou
uma expressão:
VAMILIADEPORCOSFICIADOS
Imaginou que talvez o programa tivesse se contentado com um resultado
que trocava o F pelo V. Por fim, notou
uma passagem que não poderia ser fruto do acaso:
ASTRONAUTDOTADODEUMAPICAGIGANTESCO
Orenstein constatou a ocorrência
reiterada de uma palavra que desconhe-
o final, Orenstein tinha um texto
razoavelmente limpo. Ainda havia
um volume considerável de ruído,
mas longos trechos legíveis se destacavam entre letras desconexas.
Num trecho da mureta da via expressa que os matemáticos da puc viam
na saída do campus, por exemplo, Joana
César relatara a perda da virgindade.
“Não imaginava o tamanho da dor que
esse sentimento de ser não mais uma
garotinha”, escrevera. A menção ao as-
A
tronauta bem-dotado, num muro nas
imediações da Lagoa, era seguida por
uma sucessão de palavras que não chegavam a formar uma frase, mas guardavam afinidade: VIRGEM, SANTA, PIRANHA,
MISTÉRIO, MÃE.
Os relatos eróticos eram de fato minoritários. Na borda de um viaduto, Joana
César deixou um recado para um grupo
de grafiteiros cariocas. Num desenho,
Raguezo parecia abraçar a palavra RIVOTRIL. O personagem foi sujeito de uma
frase pintada numa mureta: “Raguezo
significa quase um filho pequeno, precisando dos meus cuidados de mãe.” Noutra inscrição, ela manifestou um receio
que mexeu com os brios do estudante:
“Lá sei que tem gente tentando entender
meu misterioso alfabeto.”
Orenstein se lembrou da euforia que
sentiu quando teve certeza de que quebrara o código – e de como sua agitação
contrastava com o dia que começava lá
fora. “Eram seis da manhã, minha mãe
estava acordando para ir trabalhar e
achou que eu fosse um maluco completo”, contou. “Foi como o final de um livro de mistério. Só não foi um momento
de eureca porque eu estava de roupa.”
o dia seguinte, contou a novidade
a Juliana Freire. Apareceu ao final
de uma aula, trazendo as folhas
com os textos traduzidos e o alfabeto
decifrado. A professora se entusiasmou.
“Eu estava plenamente convencida de
que aquilo era lixo, porque a gente ti-
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nha feito um grande esforço e não tinha
encontrado nada”, disse ela. “Mas não
tem importância eu achar que não tem
nada se ele provar que tem. Essa é a graça da matemática.”
Ele foi depois ao gabinete de Carlos
Tomei, que não estava. Deixou-lhe um
recado no quadro – com o alfabeto de
Joana César. Tomei entendeu assim que
entrou. “Estava mais do que claro”, comentou. “Ele foi elegante.”
Tzinacán também terminou por encontrar o significado das manchas amareladas do jaguar e o descreveu assim:
“É uma fórmula de catorze palavras
casuais (que parecem casuais) e me
bastaria dizê-la em voz alta para ser todo-poderoso. Bastaria dizê-la para abolir esta prisão de pedra, para que o dia
entrasse em minha noite, para ser jovem, para ser imortal.”
O conteúdo das mensagens deixadas
por Joana César era o que menos interessava aos matemáticos. Quando lhes
perguntei quais eram, afinal, as fantasias da artista plástica, não souberam
responder sem consultar a transcrição.
Não haviam guardado detalhes das
mensagens. “Como matemáticos, era o
código que queríamos resolver”, justificou o rapaz.
m meados do século xx, os matemáticos começaram a se destacar nas equipes de quebra de
códigos, eclipsando linguistas e outros especialistas. À medida que aumentava a complexidade das cifras, o
raciocínio abstrato e o domínio da teoria de números tornaram-se pré-requisitos para a sua resolução. A quebra
do sistema de cifragem usado pela
Alemanha nazista – as máquinas
Enigma – foi obra de matemáticos:
primeiro Marian Rejewski, na Polônia, e depois o time que tinha o inglês
Alan Turing, na Inglaterra. A descoberta é considerada decisiva para a
virada em favor dos aliados na Segunda Guerra Mundial.
Quebrar um código como o de Joana César não é um marco na criptoanálise. Por se tratar de uma cifra que
usa um mesmo sistema de sinais para
codificar cada letra da mensagem, ela
é vulnerável à análise de frequência.
A quebra manual de códigos requer sobretudo tempo, além de paciência e
perseverança, mas está ao alcance de
criptoanalistas empenhados – foi assim
que eles procederam até o surgimento
dos computadores.
Ter decifrado o alfabeto de Joana César tampouco terá grande importância
acadêmica para os dois matemáticos.
Mas Orenstein considera que aprendeu
a programar de forma mais criativa do
que conseguiria resolvendo listas de
exercícios. A quebra do código foi o
maior desafio que resolveu. A experiência representou para ele a renovação de
seus laços com a matemática.
Orenstein talvez passe a vida perseguindo o mesmo êxtase que experimentou naquele começo de manhã,
quando enxergou sentido num emaranhado de letras. O sacerdote Tzinacán
também ficou eufórico com a quebra
do código do jaguar. “Ó felicidade de
E
entender, maior do que a de imaginar
ou a de sentir!”, exclamou.
“Foi a primeira vez que consegui fazer algo com matemática que teve impacto na vida real e que ninguém mais
conseguiu”, me disse Orenstein. “Esse
é um problema que não dá para resolver sem matemática.”
Reforçar essa ligação com o mundo
é a maior lição que Carlos Tomei enxerga no episódio. “Foi uma oportunidade
maravilhosa de dizer que, quando sabe
matemática, você volta para o mundo e
consegue ver outras coisas”, disse.
Orenstein e Juliana Freire não tinham a mesma opinião sobre o que fazer com o código que quebraram.
A professora não via maiores problemas
em revelá-lo. O estudante, um tímido,
preferia guardá-lo em sigilo – eram coisas muito pessoais. “Ela quer gritar para
o mundo, mas não quer ser ouvida”, disse ele. “É um grito mudo.”
mãe de Orenstein é amiga de uma
prima de Joana César. Num dia
de novembro, o acaso interferiu
novamente. Viram-se diante de uma
das inscrições da artista. Falaram quase
em uníssono: “Quem pinta com esse
alfabeto é uma prima minha”, disse
uma; “Meu filho conseguiu desvendar
esse código”, atalhou a outra. A mãe
voltou para casa levando o número de
telefone da artista.
A princípio, o matemático não queria procurar a artista. No que dependesse dele, Joana César nem saberia que
seu código fora quebrado. Mas a coincidência o fez mudar de ideia. Ligou
para a artista e ela ficou curiosa em saber como sua escrita fora desembaralhada. A receptividade surpreendeu
Orenstein, que esperava uma atitude
hostil. O matemático teve a impressão
de que a artista se retraiu quando ele
demonstrou que havia mesmo quebrado a cifra. Combinaram um encontro,
mas Joana o cancelou na véspera. Ameaçaram remarcá-lo, hesitaram e a conversa não foi adiante.
Joana César disse ter sido tomada
por um sentimento ambíguo, entre a
curiosidade e a apreensão, quando
soube do feito dos matemáticos. Estava
simultaneamente entusiasmada e envergonhada. Não gostaria de ver seu
código revelado na internet.
Só no dia em que nos encontramos
no Parque Lage, em janeiro, a artista
parece ter-se dado conta de que suas
mensagens tinham sido lidas. Quando
mencionei o astronauta bem-dotado,
interrompeu a frase, levou a mão à boca
e riu. Ao saber que os matemáticos haviam identificado o sinal que dobra a
letra anterior, reagiu com admiração:
“Até isso eles descobriram? Cretinos!”
Joana disse que cogitou voltar às ruas
e cobrir de tinta todas as inscrições.
“Não tenho nenhum problema em apagar as coisas, pelo contrário, é um alívio, sempre foi”, disse. Ela falou com
mais desenvoltura sobre o alfabeto
quando soube que Orenstein não divulgaria o que descobrira. E concordou
em encontrar o matemático.
Como Orenstein, o sacerdote asteca
não revelou o conteúdo da sentença
A
que decodificou: “Quarenta sílabas, catorze palavras, e eu, Tzinacán, regeria
as terras que Montezuma regeu. Mas
eu sei que nunca direi aquelas palavras,
porque já não me lembro de Tzinacán.
Que morra comigo o mistério que está
escrito nos tigres.” O mago nunca existiu na vida real. Ele é o personagem
principal de “A escrita do deus”, conto
fantástico de Jorge Luis Borges que está
no livro O Aleph.
aulo Orenstein chegou antes da
hora marcada ao bar escolhido
por Joana César na Gávea. Tirou
seu bloco de folhas quadriculadas e
começou a trabalhar num problema.
A artista chegou pouco depois das
nove, toda vestida de preto e com uma
boina verde. O rapaz se levantou e ficaram indecisos sobre como se cumprimentariam – foram dois beijos
rápidos e nervosos. Sem jeito, ele corou por alguns instantes.
Joana César parecia insegura. Assim
que se sentou, esfregava as mãos sem
parar. Ficou mais à vontade quando desenrolou sobre a mesa uma grande folha em branco que trouxera. Ao longo
da noite, usou-a para fazer inscrições
em seu alfabeto e desenhar Raguezo
com um pincel atômico. Ela tomou refrigerante zero, e ele, água.
Orenstein mostrou-lhe as folhas de
papel quadriculado que usara na solução do problema, com a transcrição dos
sinais, o primeiro chute e o resultado, já
com as correções manuais e a indicação
de espaços. Ao final, uma folha com o
alfabeto de Joana e o latino dispostos em
duas colunas. A artista sorria boquiaberta enquanto examinava as folhas.
Ele levou algumas fotos de inscrições que haviam lhe intrigado. Queria
saber de Joana se havia explicação para
as letras sem nexo e os longos trechos
ilegíveis – achava espantoso que o algoritmo tivesse sido capaz de resolver o
problema apesar de tanto ruído.
Joana explicou que muitas vezes se
deixava guiar pela estética. “Estou escrevendo algo que faz sentido e de
repente começo a viajar na forma”,
explicou. Desenhou um símbolo que
aparece de vez em quando e que não
quer dizer nada. Admitiu que gosta de
determinados símbolos e às vezes repete várias palavras com as letras preferidas, como VIRGIN, só pelo prazer
de escrever.
Joana revelou o sentido de sua assinatura. IT é o nome com que é conhecida “na rua”. Contou como surgiu
Raguezo, uma criatura sofrida e solitária – no fundo, uma alegoria dela
mesma. E o enigmático aposto NHVMIDFOMT reúne as iniciais de “nenhum
homem vai me impedir de fazer o
meu trabalho”.
Orenstein repetiu que achava as inscrições muito bonitas. Contou que cogitara
estudar desenho industrial. “Queria ter
sido artista,” disse. Joana César lembrou
o dia em que um bêbado praticamente
saiu lendo seus textos depois de ela lhe
dar algumas dicas. E disse ao matemático: “Se o seu olhar fosse completamente
livre, talvez você conseguisse entender o
alfabeto sem a matemática.” ✪
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