O rapazinho mimado - Contos e Historias

Transcrição

O rapazinho mimado - Contos e Historias
O rapazinho mimado
Era uma vez um rapazinho muito mimado. Sempre que pedia alguma coisa,
respondiam-lhe: — Claro, meu querido! Claro, meu querido!
No entanto, o pai, às vezes, cansado de responder sempre “Claro, meu querido!” e
já aborrecido com os caprichos do rapazinho, dizia:
— Não!
— Tu disseste não? — dizia o rapazinho, pensando que tinha ouvido mal.
— Eu disse não, não e não! — repetia o pai.
Muito humilhado, o rapazinho exclamava:
— Então se é assim, vou-me embora! Saio de casa!
— Se queres ir, vai — respondia o pai com muita calma.
Então, o rapazinho ia à cozinha, fazia uma enorme sanduíche, subia ao quarto para
meter algumas roupas no saco, a fazer muito barulho e a gritar:
— Vou-me embora! Vou-me embora!
Descia as escadas e batia com a porta atrás de si.
Mas lá fora estava muito frio e escuro. O rapazinho não sabia lá muito bem para
onde ir. Não se sentia muito seguro. E pensava:
“Lá em cima está mais quente” ou “O meu saco é muito pesado!” ou “A minha
sanduíche é muito pequena.”
Então voltava para trás, entrava devagarinho sem fazer barulho, dava a sandes ao
cão e ao gato, e ia deitar-se.
Toda a noite sonhava que andava a vaguear na noite e no frio, que enfrentava
brigões e animais selvagens, que chocava com soldados que lhe barravam o caminho e
diziam: — Não, não, não!
De manhã, acordado pelo cheiro do pequeno-almoço, o rapazinho ia ter com a
família à cozinha, e contava os seus sonhos como se de facto tivesse vivido aquelas
aventuras. Toda a gente fingia acreditar. E ele acrescentava:
— Se voltei para casa esta manhã, é porque tive pena do cão e do gato, que deviam
estar tristes sem mim.
Ora, um dia em que o pai tinha dito “Não, não, não!”, em que o rapazinho tinha
batido com a porta a dizer: — Vou-me embora!, em que tinha regressado, como de
costume, para se deitar, acordou fresco e bem-disposto.
“Depressa! Vamos lá tomar o pequeno-almoço e contar as minhas aventuras!”,
pensou ele.
Abre a porta do quarto… e então… então é que foi!
Em vez de se encontrar no corredor que dá para a cozinha, encontra-se em plena
floresta, no meio de uma clareira! Vira-se para trás… o quarto já lá não está. Ei-lo
desamparado, muito surpreendido, e também cheio de fome. Naquele momento, vê uns
moranguinhos silvestres.
Mas quando vai a estender os braços para os colher, o morango grita:
— Tem pena de mim, não me comas! Segue pela vereda sem te desviares e, se
precisares, pensa em mim.
O menino teve pena do morango e seguiu o seu conselho.
Estava um dia bonito. Caminhar pela vereda, no fresco da manhã, era muito
agradável. Mas o sol começou a apertar e, em breve, o rapaz sentiu muita sede.
Então, naquele preciso momento, vê um poço à beira do caminho.
Aproxima-se. O poço é fundo, a água está lá em baixo e não há balde para a tirar.
Mas, na borda do poço, no côncavo de uma folha, estão algumas gotas de água. “É
melhor do que nada”, pensa ele.
Quando vai pegar na folha, as gotas de água gritam, numa voz tão clara como a
água de que são feitas:
— Tem pena de nós! Atira-nos ao poço para nos juntarmos às nossas irmãs.
Foi o que ele fez. Pareceu-lhe também ter ouvido as gotas gritarem ao caírem na
água:
— Ploc, OBRIGADO! PLIM, OBRIGADO! PLOC, OBRIGADO!
E, como por encanto, a sede desaparece.
Ele continua o seu caminho, mas, pouco a pouco, o céu encobre-se, levanta-se
vento, um vento glacial. Começa a chover, uma chuva misturada de neve. O menino
bem corre, esfrega as mãos, levanta a gola do casaco, mas fica completamente gelado.
É nesse momento que vê uma casinha de madeira com a chaminé a deitar fumo e,
sobre a porta, um aviso: “Entre sem bater”. Mas, ao pôr a mão no batente, sai uma voz lá
de dentro:
“Será a casa que está a falar? Estará alguém lá dentro?”
— Tem pena de mim! Não abras! Não deixes entrar o vento glacial!
O menino não entra. Desata a correr para aquecer, e retoma o caminho.
Imediatamente a neve pára, o vento acalma, as nuvens dissipam-se e o sol volta a brilhar.
O menino depressa secou e aqueceu. Caminha, caminha, e começa a ficar um pouco
cansado, a ter fome, apesar de ter colhido morangos, amoras, ameixas, ao longo do
caminho.
Dentro em pouco será noite. Onde poderá dormir? O menino não faz ideia.
Mas, de repente, na volta do caminho, num recanto do bosque, torna a ver uma
casinha. A porta está aberta e cheira a comida e, diante da casa, um homem, de rosto
corado e sorriso acolhedor, convida-o a partilhar a refeição e a passar a noite sob telha.
O menino não se fez rogado. A comida era boa, a cama, fofa, o pequeno-almoço,
delicioso bem como as refeições seguintes, pois ficou na casa, e ali retomou os hábitos de
menino mimado. O dono da casa dava-lhe tudo o que ele queria, sem nunca dizer “Não,
não, não!”
Chegou o domingo, e o dono da casa disse:
— Ao meio-dia, vou comer carne com ervas aromáticas. A carne já a tenho, mas as
ervas, não. Vou ao mercado e devo voltar por volta do meio-dia.
Curioso e glutão, o rapaz quis ver se a carne para assar chegaria para os dois.
Procura no frigorífico, nos armários, em todos os cantos. Carne, nem vê-la. Mas na
cozinha, em cima da mesa, encontra um grande livro com um pequeno papel a marcar
uma página. Abre o livro e lê: “Receita de assado de menino com ervas aromáticas” e, na
capa, “Cozinha dos Ogres”.
— O assado sou eu!
Apavorado, corre em direcção à porta para fugir. Mas está fechada. A janela está
trancada, uma janela de vidros pequenos. Mesmo que parta os vidros, é impossível sair
por ela. Que fazer? Que fazer? Não há nada a fazer!
Sim! Pensar no moranguinho que lhe dissera “Se te vires atrapalhado, pensa em
mim!” Imediatamente um grande sorriso lhe iluminou o rosto. Naquele preciso
momento o ogre entra.
— Estás a rir-te de quê? — pergunta o ogre.
— Estou a rir porque o senhor vai fazer uma comida que não presta para nada,
enquanto podia fazer uma muito melhor.
— Se soubesses o que vou comer ao meio-dia, não te rias tanto!
— Vai comer um menino assado aromatizado com ervas. E o menino sou eu. Mas
estou a rir porque o senhor podia comer um menino assado com morangos silvestres, o
que é bem melhor do que com ervas.
— Morangos silvestres? — perguntou o ogre cheio de curiosidade e guloso.
Nem sequer sabia o que eram morangos silvestres.
— Há muitos morangos silvestres ali atrás da cama. — disse o menino. — Venha
colhê-los e prová-los!
E lá foram. Havia muitos morangos. O ogre provou um e achou-o delicioso.
Provou um segundo, um terceiro, e mais, e mais.
Sorrateiramente, o rapaz fugiu.
Instantes depois, o ogre disse:
— Vou comer mais um ou dois, mas será que ainda sobram para o assado? O que
achas? Tu, que conheces a receita?
O menino não estava lá para lhe responder mas, imitando-lhe a voz, um morango
respondeu:
— Ainda podes comer mais alguns.
O ogre não se fez rogado. Demorou mais uma hora, duas horas, e disse então:
— Já chega! Tenho de guardá-los para o assado.
Ergueu a cabeça e deu um grito:
— O meu assado desapareceu!
Então, depressa! Tão depressa quanto lhe permitia o estômago atafulhado de
morangos, correu à procura do menino. Este levava um grande avanço, mas um ogre
corre muito, e não tardou que o menino ouvisse atrás de si os passos do ogre.
Imediatamente pensou no poço e, debaixo dos pés do ogre se abriu um poço onde, ploc!,
o ogre caiu. Mas conseguiu sair de lá e de novo o menino ouviu atrás de si o fôlego do
ogre a cheirar a morangos silvestres. Pensou então na casinha a que não abrira a porta e à
sua frente viu uma casa pequena para onde entrou e fechou imediatamente a porta. O
ogre vinha tão depressa que não pôde parar, e partiu a cabeça contra a porta. O menino
olhou à sua volta e — oh, que surpresa! — estava na sua casa, recebido pelo cão e pelo
gato.
— Hoje não há sandes — disse ele — mas amanhã ides regalar-vos com ogre
estufado acompanhado de morangos silvestres.
E o menino foi deitar-se.
Na manhã seguinte, juntou-se à família para tomar o pequeno-almoço e contou o
que lhe tinha acontecido. Desta vez contava a verdade, mas ninguém acreditou nele.
— Se não acreditam em mim, venham ver!
Abriu a porta e o corpo do ogre lá estava.
Então, cão e o gato atiraram-se a ele para o comerem.
Se fosses tu, o que farias?
Alain Gaussel
Les plus beaux contes de conteurs
Paris, Syros, 1999
Texto adaptado

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